ANDRADA, Cris F. (2005). O encontro da política com o trabalho: história e repercussões da...
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CRIS FERNNDEZ ANDRADA
O encontro da poltica com o trabalho:
histria e repercusses da experincia de autogesto das cooperadas da UNIVENS
Dissertao apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de So Paulo,
como parte dos requisitos para obteno
do ttulo de Mestre em Psicologia.
So Paulo
2005
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CRIS FERNNDEZ ANDRADA
O encontro da poltica com o trabalho:
histria e repercusses da experincia de autogesto das cooperadas da UNIVENS
Dissertao apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de So Paulo,
como parte dos requisitos para obteno
do ttulo de Mestre em Psicologia
rea de concentrao: Psicologia Social
Orientadora: Prof.a Dra. Leny Sato
So Paulo
2005
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AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE
ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Ficha Catalogrfica preparada pelo Servio de Biblioteca e Documentao do Instituto de Psicologia da USP
Andrada, C. F. O encontro da poltica com o trabalho: histria e repercusses da experincia de autogesto das cooperadas da UNIVENS./ Cris Fernndez Andrada. So Paulo: s.n., 2005. 267p. Dissertao (mestrado) Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo. Departamento de Psicologia Social e do Trabalho. Orientadora: Leny Sato.
1. Psicologia Social 2. Trabalho 3. Autogesto 4. Cooperativismo
5. Economia Solidria 6. Democracia Participativa I. Ttulo.
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O encontro da poltica com o trabalho:
histria e repercusses da experincia de autogesto das cooperadas da UNIVENS
CRIS FERNNDEZ ANDRADA
BANCA EXAMINADORA
(nome e assinatura)
(nome e assinatura)
(nome e assinatura)
Dissertao defendida e aprovada em:___/___/___
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i
O mundo no . O mundo est sendo.
Paulo Freire
Porque los pueblos saben romper las cadenas.
Idea Vilario e Jos Luis Guerra
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ii
A meus pais, Cristina e Eduardo.
Com ele, conheci o trabalho e a liberdade.
Com ela, a indignao e a esperana.
Ao Egeu,
Com quem conheci o encontro.
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iii
Agradeo
s trabalhadoras da UNIVENS, pela franqueza e generosidade com que me
receberam e me abriram seus lugares mais caros: a Vila, a cooperativa, as casas....
Cada dia perto de vocs era uma revoluo no esprito. Agradeo por tudo que
vocs me ensinaram que, certamente, me acompanhar para sempre. Em especial,
agradeo Isaurina, Julieta, Terezinha, Gladis e Nelsa, pelas ricas conversas na
forma de entrevistas. Elas transcenderam qualquer carter de funcionalidade.
s trabalhadoras da Itacooperarte, que antes, j me haviam ensinado tanto sobre
trabalho, poltica, e principalmente, sobre a condio feminina. Jamais esquecerei
aquelas teras-feiras dos nossos encontros, to afetivas quanto instigantes.
Professora Leny Sato, pela dedicada e generosa orientao desde a graduao.
Sua escuta paciente e suas indicaes sempre perspicazes foram fundamentais para
as snteses desta dissertao. Sobretudo, agradeo por reunir e nos oferecer, de modo
to estimulante, companhia e liberdade.
Professora Sylvia Leser, pelas valiosas e zelosas sugestes por ocasio do
Exame de Qualificao. Volta e meia, elas me vinham memria e me auxiliavam
muito a clarear os caminhos a seguir. O seu primoroso estudo, junto s mulheres da
Vila Helena, revelou-se uma preciosa descoberta para esta pesquisa.
Ao Professor Paul Singer, pela ilimitada generosidade e pela permanente
inspirao, seja nas reunies da ITCP-USP, nas linhas de seus textos, ou,
recentemente, no Exame de Qualificao. Seus comentrios e apontamentos me
acompanharam cotidianamente dali em diante e foram de suma importncia para o
desenho final deste estudo.
Ao Egeu, por tanto... Esta pesquisa nasceu do nosso encontro, nutriu-se do nosso
cotidiano e se inspirou em boa parte dos nossos sonhos. Sua companhia frtil e
amorosa me tem ofertado inestimveis tesouros desde que nos conhecemos. Um
deles foi a UNIVENS. Jamais vou esquecer o dia em que voc chegou em casa
dizendo: Cris, conheci uma cooperativa que voc vai gostar muito...
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iv
Joanne e Alice, pela zelosa verso do resumo para a lngua inglesa. Alice,
especialmente, agradeo pela amizade. Essa experincia to amada por voc, que
rene na minha memria muitos dos nossos encontros.
Alcione, pela fiel companhia e pela farta comunicao, sempre. Na reviso de
todo este texto, nos trabalhos da Incubadora, nos idos da graduao, mas
principalmente, nos momentos mais fundamentais dos ltimos dez anos, tempo da
nossa amorosa amizade.
Aos companheiros passados e presentes na Incubadora da USP, pelo que
pudemos aprender e realizar juntos e pela permanente alimentao do sonho.
Aos amigos e companheiros da Verso, pelas tantas partilhas, pelo freqente
estmulo que muitos me deram para a realizao deste trabalho, e pela reedio
cotidiana do projeto da nossa cooperativa.
Nalva e Ceclia, secretrias do Departamento (PST), pela infalvel presena e
pelas inmeras contribuies para o bom desenvolvimento dos trabalhos da pesquisa.
Ao CNPq, pela bolsa de estudos que viabilizou a realizao deste estudo.
Aos meus avs, Erclia e Juan Manuel, por me nutrirem com afinco e afeto desde
a raiz. Deles veio um apoio infinito para a realizao desta e de muitas outras
empreitadas.
Aos meus pais, agradeo por terem sido sempre capazes de acreditar que era
graa o que viam, ainda que isso fosse um reflexo do imenso amor que sempre me
dedicaram. Dessa forma, sempre me acompanharam e me estimularam
incondicionalmente.
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v
SUMRIO
RESUMO ...................................................................................................................vii ABSTRACT..............................................................................................................viii Apresentao ................................................................................................................ 1 Captulo I. Introduo ............................................................................................ 5 1. O ressurgimento da autogesto ............................................................................ 8 2. O surgimento do tema da pesquisa ...................................................................... 9 3. Repercusses da vivncia da autogesto na esfera do trabalho ......................... 11 4. Repercusses da vivncia da autogesto em outras esferas da vida social ........ 14 Captulo II. Sobre o trabalho de campo................................................................. 19 1. procura: os caminhos da prospeco.............................................................. 20 2. O achado da UNIVENS ..................................................................................... 23 3. Breve apresentao da cooperativa .................................................................... 24 4. As etapas do trabalho de campo......................................................................... 29 Captulo III. Primeiros contatos, fortes indcios ..................................................... 33 1. Indcios de enraizamento na relao com a cidade ............................................ 37 2. Indcios de autonomia ........................................................................................ 38 3. Indcios do convvio entre trabalho e poltica no cotidiano ............................... 53 4. Indcios de enraizamento na relao com a Vila................................................ 56 5. A necessidade de reposicionar os objetivos da pesquisa ................................... 62 Captulo IV. Histria da Vila e da Cooperativa .................................................. 64 1. A Vila Nossa Senhora Aparecida....................................................................... 66 2. O Oramento Participativo como signo de mudana......................................... 70 3. O nascimento da cooperativa ............................................................................. 77 4. A solido do incio ............................................................................................. 82 5. Motivaes e expectativas ................................................................................. 85 6. A primeira fase: trs anos trabalhando na Capela.............................................. 87 7. A precariedade dos primeiros trabalhos............................................................. 89 8. A sada de cooperadas do grupo ........................................................................ 90 9. O desafio dos primeiros trabalhos completos .................................................... 92
-
vi
10. A luta por recursos: o encontro de parceiros importantes.............................. 93 11. A cooperativa incuba a Incubadora ............................................................ 95 12. A conquista da estabilidade econmica ......................................................... 99 13. A situao econmica atual da cooperativa ................................................. 103 14. Os conflitos no cotidiano ............................................................................. 105 15. O sonho e a conquista da sede prpria ......................................................... 110 Captulo V. Repercusses da autogesto para quatro cooperadas ....................... 112 1. Isaurina............................................................................................................. 116 a. Os trabalhos de Isaurina: embates com as necessidades e a subordinao ...... 118 b. As repercusses da vivncia da autogesto para Isaurina................................ 125 2. Julieta ............................................................................................................... 137 a. Os trabalhos de Julieta: vida agitada de casa e trabalho............................... 140 b. As repercusses da vivncia da autogesto para Julieta .................................. 152 3. Gladis ............................................................................................................... 162 a. Os trabalhos de Gladis: necessidade de conciliar famlia e trabalho ............... 164 b. Repercusses da autogesto para Gladis.......................................................... 168 4. Nelsa................................................................................................................. 176 a. Os trabalhos de Nelsa: profisso militante....................................................... 177 b. A liderana de Nelsa ........................................................................................ 200 c. Repercusses da vivncia da autogesto para Nelsa........................................ 213 Captulo VI. Do encontro da poltica com o trabalho, as permanncias .......... 228 1. De volta querncia: a experincia poltica no OP como fonte simblica...... 231 2. Repercusses da autogesto na UNIVENS como permanncias .................... 239 3. Outras repercusses da autogesto e dessas permanncias ............................. 246 4. Sonhar, projetar e construir aes futuras: repercusso de segundo grau........ 249 Consideraes Finais................................................................................................ 254 Referncias Bibliogrficas ....................................................................................... 260
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vii
RESUMO
ANDRADA, Cris Fernndez. O encontro da poltica com o trabalho: histria e repercusses da experincia de autogesto das cooperadas da UNIVENS. So Paulo, 2005. 267p. Dissertao (Mestrado). Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo.
Inserida em um contexto de ressurgimento de relaes autogestionrias de
trabalho, esta pesquisa tem por objetivos compreender o processo de construo da cooperativa de costureiras gachas Unidas Venceremos (UNIVENS) e, principalmente, identificar e discutir as principais repercusses psicossociais desta experincia na vida das scias-trabalhadoras. Ou seja, busca compreender como a vivncia de relaes autogestionrias de trabalho afetaram e afetam as vidas sociais de seus sujeitos, tanto no mbito do trabalho, quanto nos espaos da famlia, do bairro ou at mesmo da cidade.
Trata-se de um estudo de caso que teve como escolhas metodolgicas a observao etnogrfica e a realizao de entrevistas semi-abertas de longa durao. Como resultados, este trabalho apresenta e analisa tanto o processo histrico de construo da cooperativa, como as histrias de trabalho e as principais repercusses da experincia de autogesto apontadas por quatro cooperadas.
A experincia poltica vivida por algumas cooperadas junto ao Oramento Participativo local surgiu como fonte simblica da cooperativa, tendo inspirado, inclusive, parte de seus princpios, como o carter igualitrio das relaes e a gesto democrtica e participativa. Neste sentido, concluiu-se que foi a experincia poltica que propiciou a experincia econmica, e no o contrrio.
O direito ao trabalho, o pertencimento ao grupo da cooperativa e o enraizamento como sujeitos nos espaos da Vila e do trabalho, representam as principais repercusses destas experincias Oramento Participativo e cooperativa chamadas aqui de permanncias, na medida que compem dialeticamente um campo estvel de referncias para essas trabalhadoras, capaz de salvaguardar a manuteno da vida familiar e o poder de interveno de suas aes cotidianas. Dessa forma, essas permanncias possibilitam o enlace firme e perene destas pessoas em seus lugares atravs do tempo, uma vez que passam a conhecer e a construir a histria da cooperativa e do bairro (passado), a circular por estes espaos com maior apropriao e segurana (presente) e a arquitetar para eles novas aes interventivas (futuro). As permanncias tambm se apresentaram como condies simblicas para a ao poltica, por permitir a estas trabalhadoras, ainda que momentaneamente, o afastamento das atividades voltadas para a sobrevivncia e o alcance da liberdade necessria para a prtica da poltica em espaos comuns.
Ainda como concluses, esta pesquisa apresenta a possibilidade de sonhar, projetar e realizar aes polticas em horizontes mais amplos como uma repercusso de segundo grau destas permanncias e, por conseguinte, desta experincia autogestionria, para seus sujeitos.
Palavras-chave: Psicologia Social. Trabalho. Autogesto. Cooperativismo. Economia Solidria. Democracia Participativa.
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viii
ABSTRACT
ANDRADA, Cris Fernndez. The meeting of politics and work: history and repercussions of the self-management experience in the UNIVENS cooperatives. So Paulo, 2005. 267 pp. Masters Thesis. Instituto de Psicologia, USP. This study is closely tied to a social context which witnessed the reappearance of
self-management as a characteristic of work relations. The objectives of the study are to comprehend the process of construction of the Porto Alegre-based seamstress Cooperative Unidas Venceremos (UNIVENS) and most importantly, to identify and discuss the principle socio-psychological repercussions of that experience in the lives of the worker members of the organization. In other words, this investigation strives to understand how the experiencing of self-management work relations affected, and affect, the social lives of the subjects considered, in the work environment as well as in the family, the neighborhood, and even the city.
The investigation is a case-study in which the researcher opted for a methodology based on ethnographic observation and the realization of partially structured long-duration interviews. The results present and analyze the historical process of construction of the cooperative, as well as the work histories and the principle repercussions of the self-management experience on four members of the cooperative.
The political experience which some of the members of the cooperative underwent, influenced by the local so-called Participatory Budget, surfaced as a kind of symbolic mainspring of the cooperative, having even inspired some of its principles such as the equalitarian nature of its work relations and the democratic and participatory tendencies of its management practices. Due to the above facts, the study reached the conclusion that it was the political experience that led to the economic experience, and not vice versa.
The right to work, the fact of belonging to the group constituted by the cooperative, and the character of rootedness as subjects in the spaces of neighborhood and work represent the principle repercussions of these experiences that is, of the Participatory Budget and the cooperative and are referred to here as permanencies since they make up a dialectically-construed stable field of references for these workers, references which safeguard the maintenance of family life and the enabling power of intervention in daily life. In this way, these permanencies make possible the firm and perennial connectedness of these persons to their spaces through time, since they are able to know and construct the history of the cooperative and the community (the past), to circulate through these spaces with more of a sense of security and belongingness (the present), and to construct for themselves new ways of intervening in these particular spaces (the future). The permanencies also appeared as symbolic conditions for political action, permitting these workers, even though momentarily, to go beyond mere survival activities and to attain the necessary freedom for political practice within communal spaces.
Finally, in conclusion, this study presents the possibility of dreaming, projecting and realizing political actions on a wider scale as a secondary repercussion of the above cited permanencies and, therefore, of the self-management experience itself.
Keywords: Social psychology. Work. Self-management. Co-operatives. Social economics. Participatory democracy.
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1
Apresentao
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2
As motivaes desta pesquisa despontaram tempos atrs, ainda nas cadeiras das
salas de aula do curso de graduao em psicologia. Se antes j havia sido conduzida
pelas palavras de meu av a ocupar as oficinas e fbricas do seu tempo - tempo de
ser sapateiro, tempo de ser eletricista - e ali permanecia com ele, emaranhada quelas
pessoas e queles feitos, ao ser confrontada com as reflexes acadmicas acerca dos
fenmenos do tal mundo do trabalho, com todas as suas complexidades, tenses e
ambivalncias, nunca mais estive livre do desejo ou da necessidade de me dedicar a
tentar conhec-lo, sempre a partir de seus habitantes.
s primeiras discusses ocasionadas nas salas de aula da Profa. Leny Sato1,
somaram-se outras tantas, algumas delas travadas j nos corredores e nas mesas da
lanchonete do Instituto de Psicologia. Em pequenos crculos, falvamos inquietos de
questes como a centralidade do trabalho, de seus diferentes modos de organizao e
das possveis repercusses que a vivncia de cada um deles poderia ocasionar aos
trabalhadores. E as angstias tornavam-se ainda mais intensas quando tratvamos das
mazelas do desemprego crescente e do aumento da freqncia e dos modos de
precarizao das condies de trabalho daquelas pessoas ainda empregadas.
Pensvamos tambm como poderia ser uma experincia de trabalho que
salvaguardasse princpios humanistas bastante simples, porm, a nossos olhos,
fundamentais, como igualdade, autonomia e pertencimento.
E assim, na companhia de Egeu, Alcione e Daniela2, recordo ter ouvido pela
primeira vez os nomes economia solidria, cooperativismo, autogesto. Reunidos,
olhvamos e vibrvamos juntos, com o pouco que dispnhamos, e de um modo
bastante ingnuo, para as possibilidades e os limites do trabalho autogestionrio.
1 Refiro-me as aulas ministradas pela Profa. Leny junto s disciplinas Seleo Profissional I e II. 2 Egeu Gmez Esteves, Alcione Carolina Gabriel da Silva e Daniela Lahoz Fernandez.
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3
Pouco depois, dali da psicologia fomos ao encontro dos companheiros que se
reuniam na recm criada Incubadora Tecnolgica de Cooperativas Populares da USP,
a ITCP-USP. Estvamos no incio de 1999. Hoje posso dizer que foi este o stio
simblico no qual nasceu esta pesquisa. Ali encontramos cho e alimento para
nossas aes e reflexes, e para construir e compreender relaes solidrias e
socialistas de trabalho. E o mais importante, foi na ITCP que obtivemos companhia e
sentido para viv-las, no s junto aos demais estudantes e professores de diversas
reas, mas principalmente, ao lado dos trabalhadores das cooperativas que tivemos o
privilgio de acompanhar.
J em 2000, passados dois anos de atividades como formadora e membro da
equipe da ITCP, formei parte do grupo de vinte e seis psiclogos fundadores da
Verso Cooperativa de Psicologia3. Assim como eu, outros companheiros j estavam
bastante envolvidos com a proposta do cooperativismo inclusive alguns deles
tambm eram formadores da ITCP e juntos, passamos a desejar para ns e para
nossos trabalhos, os valores e os princpios de que tratvamos nos cursos de
formao junto aos trabalhadores das futuras cooperativas.
Desde ento, a partir da experincia como cooperada da Verso, tive a
oportunidade de reencontrar questes que me ocupavam em pensamento e afeto
desde o incio dos meus trabalhos na Incubadora. Agora, no entanto, podia senti-las
mais de perto. Encontrava-me com elas ao mesmo tempo em que fazia as contas do
fim do ms, quando me via aflita diante de um conflito nas minhas prprias relaes
de trabalho, ou ainda no cansao de chegar tarde da noite em casa, aps outra
discusso sobre os temas do momento da Verso.
Uma das questes que me acompanha desde os idos da Incubadora, e com a qual
ainda me deparo na Verso, o prprio tema deste trabalho. nela que penso toda vez
que algum me pergunta qual a relao da Psicologia com a Economia Solidria.
Muito j se estudou sobre os impactos e os sofrimentos psicossociais para a classe
trabalhadora de experincias reificantes de trabalho, prprias do modo de produo
capitalista. Entretanto, ainda que tenham sido enunciadas algumas das condies que
poderiam garantir maneiras mais justas e dignas de se viver o trabalho relaes de
3 Com existncia legal desde abril de 2001, a Verso conta hoje com vinte e dois cooperados. Para saber mais a respeito consultar Andrada (2002).
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4
igualdade e de autonomia, bem como o controle e a participao efetiva do
trabalhador em todo o processo produtivo pouco se conhece a respeito do processo
de construo de experincias orientadas por esses preceitos, e principalmente, pouco
sabemos sobre as repercusses da vivncia desta realidade na vida cotidiana dos
trabalhadores brasileiros envolvidos com estas prticas, em nosso atual contexto.
Essas questes foram ganhando solidez ao longo das experincias que pude ter
como formadora e como cooperada. E so elas as foras propulsoras deste estudo:
Como se d a experincia de construo de relaes autogestionrias de trabalho?
E, principalmente, que espcie de repercusses essa experincia traz para as vidas
dos trabalhadores envolvidos, tanto na esfera do prprio trabalho, como nos demais
espaos de suas vidas sociais?
-
5
Captulo I. Introduo
-
6
Um dos temas mais falados nos tempos atuais o desemprego. Como disse o
Prof. Paul Singer, todo mundo, no mundo inteiro, fala do desemprego. (Singer,
2003. p. 11) Ouve-se falar dele dentro dos nibus, na rdio, nos corredores, nas rodas
de amigos, nos telejornais, nas mesas de bar, nas filas dos bancos e, claro, nos livros
e teses de economia e das cincias sociais.
So muitos os estudiosos que vm tratando desse fenmeno da
contemporaneidade que tem assolado no apenas as classes pobres, mas tambm as
classes mdias. Eles alertam para o recrudescimento crescente dos ndices de
desemprego e para a precarizao cada vez mais grave das condies de trabalho nos
ltimos anos, dentro da crise da sociedade salarial. Fenmenos prprios desse
quadro, para os trabalhadores ainda empregados, so as altas jornadas de trabalho, o
achatamento dos salrios e a perda parcial dos direitos trabalhistas. Entre aqueles que
j se encontram expostos ao flagelo do desemprego, contam-se os contratos
informais e incertos de trabalho ou o exerccio de atividades autnomas espordicas
e mal-remuneradas (os chamados bicos).
Pochmann (2001) e Singer (2003) apontam a incidncia da globalizao dos
mercados na composio desta realidade brasileira4, fator que tem agravado a crise
do emprego formal e a precarizao das condies gerais de trabalho, uma vez que
altera a diviso internacional do trabalho, conduzindo capitais produtivos para pases
ainda mais perifricos que o Brasil, interessados em alta produtividade a baixos
custos. Segundo Souza (2003), este processo pressiona para baixo os ndices
4 No Brasil este quadro pode ser descrito atravs de nmeros oficiais de modo comparativo. Em 1986, ocupvamos a 13a.colocao na escala de volume de desemprego aberto no mundo (1,68% do desemprego mundial). J em 1999, atingamos o 3o. lugar (5,61% do desemprego mundial) (Pochmann, 2001).
-
7
tributrios e salariais nacionais, o que pe em risco conquistas histricas da classe
trabalhadora.
Conforme Mattoso (1999), o Brasil nunca conviveu com um desemprego to
elevado. Esse processo, nos diz o economista, vem sendo configurado a partir dos
anos 80, com as primeiras alteraes da dinmica do mercado de trabalho, atingida
pelas oscilaes do ciclo econmico e pelo forte processo inflacionrio. Entretanto,
foi ao longo dos anos 90, com a abertura dos mercados, que a situao foi agravada,
por meio do desmantelamento parcial das estruturas produtivas j existentes, como
vimos, aliado precariedade das polticas pblicas de gerao de novos postos de
trabalho.
Com isso, observou-se um enfraquecimento cada vez maior do poder da classe
trabalhadora de impor resistncia precarizao e ao desemprego crescente por meio
de suas estratgias clssicas de organizao, ou seja, atravs do movimento sindical e
dos atos de mobilizao a partir de suas categorias nos prprios locais de trabalho.
Luiz Gaiger (2004) acrescenta ainda outra dificuldade presente para os trabalhadores
neste cenrio: mesmo as iniciativas individuais de reinsero no mercado de trabalho
tm se revelado cada vez mais incuas.
Paul Singer (2003) nos alerta tambm para o aspecto funcional dos
desempregados para a acumulao capitalista, dentro do chamado desemprego
estrutural. Afinal, ao disputar cada vez em maior nmero os postos de trabalho
formais, os trabalhadores aumentam a oferta do produto fora de trabalho no
mercado e, considerando tambm a baixa demanda por contratao, temos
caracterizado o que Marx chamou de exrcito industrial de reserva que, segundo
Singer, atualmente aproxima-se mais de um exrcito tercirio de reserva.
Esse panorama macroeconmico, apesar de ser por si s muito triste, no revela
os flagelos cotidianos vivenciados por incontveis famlias na luta diria pela
sobrevivncia5. Muitas vezes, as repercusses do desemprego prolongado
ultrapassam as carncias materiais e atingem outras esferas da vida do trabalhador.
5 Ver a esse respeito Mandelbaum (2004), Jardim (2004) e Azevedo et al. (1998)
-
8
1. O ressurgimento da autogesto6
Diante deste contexto desolador, muitas iniciativas locais tm sido tomadas por
vrios setores organizados da sociedade, devido inviabilidade de polticas pblicas
que, dirigidas a questes macroestruturais, possam conter o crescimento do
desemprego (Dowbor, 2002).
Nesse sentido, a Economia Solidria7 ressurgiu fortemente, em vrios pases,
como um dos caminhos possveis de combate ao desemprego, mas com vistas a
ultrapassar esse objetivo, considerando seu poder de contestao de relaes
subordinadas de trabalho (Singer, 2003). Muitos vislumbram a possibilidade de
construir uma rede slida de produo e distribuio no-capitalista, ainda que
inseridas em uma economia de mercado.
Para Paul Singer, mais que um ressurgimento da Economia Solidria, trata-se de
uma reinveno, ainda que inspirada nos primeiros movimentos e aes da Escola
Associativista do sculo XIX, que tinha como base terica os escritos dos chamados
socialistas utpicos, como Proudhon, Fourier e Owen (Singer, 1998).
O que distingue este novo cooperativismo a volta aos princpios, o grande valor atribudo democracia e igualdade dentro dos empreendimentos, a insistncia na autogesto e o repdio ao assalariamento. (Singer, 2002. p. 111)
O incentivo e o financiamento de aes no campo da Economia Solidria tm
sido realizados tanto por organizaes no-governamentais quanto pelo poder
pblico. Como frutos deste movimento ressaltam-se as aes da ANTEAG
(Associao Nacional de Trabalhadores de Empresas de Autogesto e de
Participao Acionria), da UNISOL BRASIL (Unio e Solidariedade das
6 Opta-se aqui por utilizar o termo autogesto ou autogestionrio, em detrimento de outros possveis, como cooperao ou cooperativo, tendo em vista os inmeros empreendimentos organizados formalmente como cooperativas, mas que assim o fazem para obter benefcios tributrios e trabalhistas, mantendo em seu interior relaes hierarquizadas de trabalho e, em geral, em condies bastante precrias. Para saber mais, consultar Verardo (1999) e Singer & Souza (2000). 7 Este termo j foi significado de vrias formas. Fiquemos com uma das definies do Prof. Paul Singer (2002), quem principalmente concedeu solidez terica a este movimento: A Economia Solidria outro modo de produo, cujos princpios bsicos so a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito liberdade individual. A aplicao desses princpios une todos os que produzem numa nica classe de trabalhadores que so possuidores de capital por igual em cada cooperativa ou sociedade econmica. (p.10)
-
9
Cooperativas e Empreendimentos da Economia Social do Brasil), da ADS (Agncia
de Desenvolvimento Solidrio, ligada CUT Central nica dos Trabalhadores),
entre tantas outras (Souza, 2003; Gaiger, 2004) e a recente constituio da SENAES
(Secretaria Nacional de Economia Solidria).
Merecem destaque tambm as Incubadoras Tecnolgicas de Cooperativas
Populares (ITCPs). Instituies ligadas s universidades - organizadas em uma rede
nacional - tm como principal objetivo a gerao de trabalho e renda junto a grupos
de trabalhadores, por meio da formao de cooperativas autogestionrias. 8
Assim, como principal motivao social relacionada ao tema desta pesquisa, tem-
se o desenvolvimento crescente e mais complexo destes modos de gerao de renda,
e a emergncia, por conseguinte, da demanda pela melhor compreenso das
implicaes desta vivncia para os trabalhadores envolvidos neste movimento9.
Entretanto, pouco tem sido estudado a esse respeito no mbito da psicologia social
do trabalho, considerando como principal justificativa para este fato, o carter
recente da ampliao e conformao do campo supracitado.
2. O surgimento do tema da pesquisa
Este projeto de pesquisa surgiu como um dos resultados de uma importante
experincia pessoal, relatada brevemente na Apresentao. J capturada pelas
questes do mundo do trabalho, tivemos a feliz oportunidade de conhecer e de tomar
parte das atividades da Incubadora Tecnolgica de Cooperativas Populares desta
universidade (ITCP-USP), no incio do ltimo ano do curso da graduao (1999).
A tarefa inicial de um estgio obrigatrio10 ganhou outros sentidos para o grupo
(outros trs colegas me acompanhavam neste momento) ainda em seus primrdios.
8 A atividade das ITCPs est compreendida como extenso universitria. Busca a participao de alunos, docentes e funcionrios das universidades, oriundos de vrias reas do conhecimento, para disponibilizarem suas especialidades em intervenes e pesquisas junto aos grupos de trabalhadores atendidos por seus programas. Para saber mais, ver Guimares (2000) e Singer (2000). 9 Os empreendimentos de economia solidria relatados nesta obra agregam por volta de cem mil trabalhadores. Esse conjunto nfimo no quadro ocupacional brasileiro, mas est em evidente expanso e extremamente promissor (...) Os empreendimentos solidrios ainda tm pouco peso econmico, mas possuem grande significao cultural; (...) (Souza, 2000. p. 07) 10 Este estgio parte das disciplinas Seleo Profissional I e II, ministradas pela Profa. Dra. Leny Sato. A superviso do estgio tambm foi de responsabilidade desta docente.
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10
Uma vez que j possuamos interesses anteriores sobre o tema da autogesto,
pudemos propor a instituio na qual realizaramos o trabalho.
Passado o calendrio letivo, a experincia s crescia, se alastrava e se
aprofundava, pedia mais reflexes, mais vivncias, tomava mais tempo e exigia mais
presena. Neste sentido, logo se aglutinaram os lugares de pesquisadora e formadora,
acompanhando e assessorando vrios grupos de trabalhadores que pretendiam
constituir cooperativas. Como parte do mesmo percurso, concorreu tambm a
participao em um grupo de estudos sobre Economia Solidria11 e a confeco de
um artigo12 sobre esta experincia.
Mas foi o encontro com a dinmica cotidiana da autogesto, vivida por seus
sujeitos, envoltos na tarefa de construir modos diferentes de viver o trabalho, com
todo seu arcabouo de desafios, impasses e revelaes, que consolidou uma escolha
profissional, tanto no mbito da interveno quanto na esfera da pesquisa. Foi no seio
da experincia como formadora em cooperativismo desenvolvida ao longo de dois
anos, em que pudemos conhecer vrios grupos de trabalhadores em seus rduos e
cativantes processos de formao de cooperativas autogestionrias que se
engendrou a escolha pessoal por uma dedicao exaustiva compreenso de alguns
aspectos desta realidade.
Na relao de trabalho autogestionria13, os trabalhadores organizam-se
democraticamente para a construo de um modo de produo que pertena a todos
os membros, em amplo sentido, que todos sejam co-proprietrios e que todos possam
fazer parte dele como sujeitos, pelo exerccio da voz e do voto nos espaos formais
das assemblias, bem como nos espaos cotidianos de interao. Essa relao baseia-
se por princpio, portanto, na socializao dos meios e dos resultados da produo, na
conquista pelos associados do controle e do planejamento das aes do trabalho, e na
fundamental condio de igualdade entre todos os trabalhadores envolvidos.
11 Ao longo do ano de 1999 participamos deste grupo, coordenado pelo Prof. Paul Singer. De cunho multidisciplinar, congregava pessoas de diversas reas e instituies, ultrapassando os limites da ITCP-USP. 12 Andrada, Esteves & Silva (2001). 13 Sato & Esteves (2002) assim definem a empresa autogestionria: Diz-se autogestionria a empresa cujos scios so os trabalhadores e cujos trabalhadores so os scios, sem presena de outros vnculos de trabalho ou de investimento, logo, a autogesto uma forma especfica de democracia industrial, distinta de sistemas de participao, seja acionria, seja nos lucros da empresa.. (p. 06)
-
11
A Economia Solidria, portanto, por se tratar de um movimento de resgate de
relaes dadas nestes termos, e ainda mais, em um contexto adverso a estas
dinmicas, principalmente para as classes populares, convoca por si vrias reas do
conhecimento para nele se debruar. E no interior de cada uma delas, ou mesmo de
combinaes entre as mesmas, surgem inmeras questes relevantes para estudo e
reflexo14.
Porm, uma vez que inevitvel a adoo de um determinado ponto de vista, e
neste caso, tendo como prisma a Psicologia Social do Trabalho, algumas questes
surgiram como relevantes em nossa experincia junto a esses grupos de
trabalhadores.
3. Repercusses da vivncia da autogesto na esfera do trabalho
Uma das questes que emerge quando focalizamos os trabalhadores, sujeitos
sociais deste movimento, trata dos modos como estes vem suas vidas, rotinas e
concepes marcadas pela vivncia da autogesto.
Estas pessoas, advindas de outras experincias de trabalho (como empregados,
trabalhadores familiares ou autnomos), percebem-se diante da tarefa da
resignificao, do renomear e do recriar, processos possivelmente ansiognicos e
ambguos (Sato, 1999), dspares da aparente harmonia idlica da cooperao solidria
no trabalho, quando vista distncia.
Estas demandas por resignificao advm, em grande medida, das diferenas de
referenciais, de concepes e de valores existentes entre estas realidades, que acabam
encerrando compreenses e modos cotidianos de agir diversos e, por vezes,
contraditrios. Concepes anteriores acerca de trabalho, diviso de tarefas,
remunerao, planejamento e coordenao das atividades produtivas, so alguns
poucos exemplos de questes que trabalhadores envolvidos com empreendimentos
autogestionrios se vem impelidos a rever em seus novos cotidianos de trabalho
(Pedrini, 2000) (Holzmann, 2000).
14 Estudos recentes nesta rea vm sendo realizados: Oda (2001) e Rufino (2003) (ambos da Engenharia de Produo), Parra (2002) (Sociologia), Cunha (2002) (Cincia Poltica), vora (2000/2001) e Esteves (2004) (Psicologia Social), entre outros.
-
12
Luigi Verardo, representante da ANTEAG15, trata este tema:
Quase todos os trabalhadores vieram de uma situao anterior, em que trabalhavam numa empresa com caracterstica taylorista-fordista, herdaram aquela cultura, viso fragmentria e parcializada do processo de produo que tanto criticamos. (...) Eu trabalhei antes no movimento sindical e sempre achava que os trabalhadores, em seu aspecto subjetivo, teriam facilidade de assumir a gesto das empresas em que trabalhavam. Essa foi uma das minhas desiluses. impressionante como o taylorismo e o fordismo fizeram e fazem a cabea dos trabalhadores. Como difcil esses trabalhadores assumirem, de fato, a gesto da empresa! (Verardo, 1999. p. 71)
Ainda sobre isso, vale rever o primoroso trabalho de Lorena Holzmann (2001)
em Operrios sem patro. Ao estudar a tomada de duas indstrias por seus
trabalhadores, organizados em cooperativas autogestionrias, ela salienta a
necessidade de compreender como se articulam as experincias anteriores de
trabalho (vnculos empregatcios) com a nova realidade daqueles trabalhadores, e
conseqentemente, como esta passa a ser compreendida:
Neste contnuo refazer da experincia diante de novas situaes, as pessoas respondem a partir de vivncias anteriores, em relao s quais construram valores, noes, condutas e prticas que se configuram como patrimnio orientador da elaborao de novas respostas s situaes novas que se apresentam. Foi assim com os trabalhadores das Cooperativas. (p. 16)
Nesse sentido, cabe recordar um dos tantos episdios vividos como formadora,
junto a um grupo de mulheres artess do municpio de Itapevi (Grande So Paulo), a
Itacooperarte. Em meio ao cotidiano da produo, uma das cooperadas comea a
falar que certa vez havia trabalhado em uma linha de montagem. Ela disse que
cuidava apenas de uma pequena pea do produto final e ressaltou, com pesar que,
mesmo aps anos de trabalho, desconhecia o lugar e a funo do que produzia na
mercadoria acabada. Diante da nova situao, foi inevitvel para ela comparar esse
desconhecimento e no-controle com aquela outra forma de viver e organizar o
15 Associao Nacional dos Trabalhadores de Empresas de Autogesto e de Participao Acionria. Em 2000, a entidade congregava 103 empreendimentos, reunindo aproximadamente vinte e cinco mil trabalhadores (Nakano, 2000).
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13
trabalho, onde o processo produtivo era cuidadosamente configurado pelas
discusses e pelas decises daquele coletivo do qual ela fazia parte como scio-
trabalhadora16.
As comparaes e resignificaes tambm so narradas como parte das
repercusses ocasionadas pela vivncia da autogesto por outros cooperados de
diversos empreendimentos, independente do grau de educao formal ou do tipo de
atividade17.
Podemos citar como exemplo a experincia vivida como cooperada no grupo de
psiclogos organizados na Verso Cooperativa de Psicologia (Andrada, 2002).
Alguns cooperados referem-se difcil ambigidade que esta realidade inicialmente
encerra. Por um lado, o ter tudo por construir parece brindar uma liberdade
criativa; inspira muito saber que podem ser edificadas relaes e projetos de trabalho
desde os seus primrdios, de modo a servir aos desejos e s necessidades dos
cooperados. Mas por outro lado, em alguns momentos essa mesma ausncia de
lastros angustia. Para os que se expem a viver a autogesto no contexto atual, no
h muitas referncias de onde ou como partir, a no ser aquelas herdadas como
valores scio-culturais que, necessariamente, so convocadas resignificao, j que
inegvel a hegemonia do vnculo empregatcio como modelo de relao de trabalho
nesta sociedade (Nakano, 2000).
Outro campo farto para resignificaes o que trata das relaes de trabalho
propriamente, no universo da autogesto. Se em organizaes capitalistas muitos dos
conflitos vividos no cotidiano de trabalho so significados como frutos das relaes
de poder no embate entre capital e trabalho nas cooperativas autogestionrias este
binmio, em tese, no existe (Marx, 1986)18. Por isso, as diferenas entre as pessoas
correm o risco de serem significadas como desigualdades, como se existisse um jeito
16 Neste texto as palavras que se seguem tero relao de sinnimos. So elas: scio-trabalhador, cooperado, cooperador, trabalhador cooperado, ou ainda trabalhador associado. 17 Para saber mais, consultar uma obra muito interessante a esse respeito, organizada por Singer & Souza (2000). Trata-se de um livro que rene vrios relatos de experincias de empreendimentos autogestionrios recentes em diversas regies do pas, algumas citadas nesta pesquisa. 18 As fbricas das cooperativas de trabalhadores, no interior do regime capitalista, so a primeira ruptura da velha forma, embora naturalmente, em sua organizao efetiva, por toda parte reproduzam e tenham de reproduzir todos os defeitos do sistema capitalista. Mas dentro delas suprimiu-se a oposio entre capital e trabalho (...) Elas mostram como, em certo nvel de desenvolvimento das foras produtivas materiais e das formas sociais de produo correspondentes, novo modo de produo naturalmente desponta e se desenvolve partindo do antigo (Marx, 1986. p. 509).
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14
melhor de ser ou de proceder, justificando a reproduo de modelos hierarquizados
de relaes de trabalho (Pedrini, 2000) (Andrada, 2003).
E mais, a prpria concepo de conflito exige reviso por parte dos cooperadores,
uma vez que divergncias no deixaro de existir em seus cotidianos, porm, no
mais sero indicativos de tenses entre patro e empregados, mas de dinmicas
cotidianas e democrticas de pessoas com interesses, histrias e opinies diferentes
entre si, ainda mais quando expostas construo de um projeto que guarda tantos
desafios e ambigidades (Sato, 1999).
Assim, torna-se interessante e necessrio compreender como o trabalhador
articula essas referncias de trabalho, passadas e atuais, e a partir da, que significados
e sentidos constri para a vivncia da autogesto, bem como quais as dificuldades e
conseqncias que este processo acarreta para ele.
4. Repercusses da vivncia da autogesto em outras esferas da vida social
Tambm pudemos observar, junto aos grupos com os quais trabalhamos pela
ITCP-USP, algumas repercusses da experincia da autogesto para alm dos
portes da cooperativa, presentes nas relaes de famlia e vizinhana dos
cooperados.
Depois de Marx (1980), muitos autores estudaram esta questo, qual seja, a
interelao entre as experincias vividas no trabalho e aquelas dadas em outras esferas
da vida social. Inspirado na teoria marxista e apoiado em fenmenos contemporneos,
Ricardo Antunes afirma que atravs do trabalho ocorre um processo que
simultaneamente altera a natureza e transforma o prprio ser que trabalha: A
natureza humana tambm metamorfoseada a partir do processo laborativo
(Antunes, 1999. p. 142).
Vale resgatar tambm aqui o trabalho de Simone Weil, que no s refletiu sobre a
condio operria, como se ps a viv-la intensamente. A certa altura dos seus relatos,
ela lamenta as marcas deixadas pela experincia de trabalho mesmo quando o
operrio ultrapassa os portes da fbrica:
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15
Que bom seria poder depositar a alma, entrada, no carto de ponto e retom-la intacta sada! Mas o contrrio que se d. Ela vai com a gente para a fbrica, onde sofre; de noite este esgotamento como que a anulou, e as horas de lazer so inteis (Weil, 1996. p. 161).
A partir disso, possvel supor que algumas experincias de autogesto, assim
como algumas experincias operrias, podem marcar a alma de seus sujeitos, e assim,
afetar suas relaes sociais de modo mais amplo.
Paulo de Salles Oliveira, ao pensar o movimento da Economia Solidria, coloca a
emergncia de uma conseqente cultura solidria. Sobre o tema em questo, ele
afirma que [...] edificar uma organizao solidria no trabalho implica
simultaneamente a construo de relaes solidrias na totalidade da vida das
pessoas (Oliveira, 2001. p.17).
Esse autor tambm questiona e recoloca em pauta a ciso entre tempo de trabalho
e lazer, ou ainda, entre tempo de trabalho e tempo livre, no contexto da autogesto. A
relativizao dos limites entre esses tempos tambm foi apontada como uma possvel
repercusso desse modo de relao de trabalho, aos olhos de seus sujeitos. Tanto os
psiclogos da Verso (Andrada, 2002), como os cooperados de diversos
empreendimentos acompanhados por Lia Tiriba (2000), falam a esse respeito.
Segundo Friedmann (2001), a ciso entre tempo de trabalho e tempo liberado do
trabalho uma construo scio-histrica, advinda do que ele chamou de civilizao
tecnicista, ps-revoluo industrial, caracterizada por uma rgida organizao do
trabalho determinada por uma classe gerencial sobre o operariado.
Em um contexto de relaes autogestionrias de trabalho, esta diviso geralmente
revista pelos trabalhadores, tanto por escolha, quanto por fora das novas
circunstncias, que pode exigir deles uma dedicao maior em um momento crtico do
empreendimento. comum, por exemplo, ouvir de cooperados que ficaram pensando
exaustivamente em como resolver um problema da cooperativa no final de semana
(Esteves, 2004). Ou ainda, ouvi-los narrar as vezes que permaneceram na cooperativa
aps o fim da jornada, seja a trabalho, seja para estar junto dos companheiros, em um
momento de descontrao do grupo (Andrada, 2002).
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16
Mesmo dentro do horrio de trabalho, passam a concorrer mais manifestaes
ldicas, festivas ou familiares nesta modalidade de organizao do trabalho. Segundo
Lia Tiriba:
[...] possvel verificar que a imensa maioria das unidades analisadas vo mais alm da gerao de renda. Ou seja, o objetivo dos trabalhadores garantir tambm a reproduo ampliada da vida ainda que de forma limitada. Assim, esses dados confirmam a afirmao de Razeto (1993) quanto tendncia das organizaes econmicas populares de combinar atividades econmicas com outras de carter social, educacional e cultural. (Tiriba, 2000, p. 229)
Outro fenmeno vivido nas prticas autogestionrias de trabalho e provvel
fonte de repercusses para experincias vividas em outros espaos sociais a maior
interveno dos trabalhadores no desenho do cotidiano da produo. Em tese, trata-se
de um direito garantido e de uma pea fundamental desse modelo organizativo,
embora possua limites e ambigidades (Esteves, 2004).
A necessidade nesse contexto de recriar, gerir e planejar suas atividades em
companhia de seus pares convoca os trabalhadores, a princpio, a uma maior
expresso e confrontao dos seus pontos de vista. Afinal, no est mais presente a
figura do patro ou do gerente para indicar o qu e como deve ser feito. E mais, nesta
empreitada, no podem recorrer, por princpio e escolha, s representaes correntes
das relaes capitalistas de trabalho que, diante de um conflito, sugerem atitudes
como ditar ordens, advertir, demitir etc. (Sato & Esteves, 2002).
Lorena Holzmann (2001) nos diz que nas novas condies de trabalho os
operrios redefiniram suas posies no interior do coletivo, abandonando a conduta de
submisso e passando a exercitar o direito de interveno e de iniciativa que a
condio de scios lhes propicia.
Dalila Pedrini (2000), que estudou a empreitada autogestionria de um grupo de
trabalhadores de Brusque (SC), parece convergir com as afirmaes de Holzmann,
apontando ainda para uma possvel ampliao dos benefcios da maior comunicao
dos cooperados para alm do ambiente de trabalho:
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17
Quando os trabalhadores fazem um processo de reflexo sobre a prpria comunicao, como meio de assumir o poder pessoal e coletivo sobre a prpria palavra, quando assumem ter voz e vez, est sendo quebrada a secular disciplina que existe sobre estes sujeitos, invisvel, mas vivida por eles, na sua trajetria. A exercitao no interior do grupo prepara o scio para seus embates na sociedade (Pedrini, 2000, p. 42).
Retomemos novamente experincia das artess da Itacooperarte, j que
observamos ali, algumas repercusses da vivncia da autogesto operando em outras
esferas da vida daquelas trabalhadoras, alm dos espaos do trabalho propriamente.
Descontentes com a realidade da escola do bairro freqentada por seus filhos, as
cooperadas passaram a discutir o tema enquanto teciam suas peas, no cotidiano de
trabalho. A partir desse lugar onde freqentemente exerciam aes interventivas
um grupo menor iniciou um movimento pela constituio e efetiva ocupao da
Associao de Pais e Mestres (APM) daquela instituio. Posteriormente, estas
mulheres tambm lutaram pela construo do posto de sade local. Para isso,
recorreram a vrias iniciativas, como reunies com parte dos moradores e das
lideranas locais, alm de convocar audincias com representantes do poder pblico
municipal.
Alm das relaes comunitrias, as artess relatavam algumas mudanas nas
dinmicas das relaes familiares, posteriores constituio da cooperativa.
Tornaram-se mais freqentes, por exemplo, conversas entre as esposas e os maridos
para tomarem decises conjuntas sobre questes do cotidiano, que iam desde o
oramento domstico at o cuidado e a educao dos filhos.
Todavia, vale ressaltar que as repercusses narradas poca no formavam parte
de um estudo para a compreenso deste tema especfico. E mais, os relatos
apontavam reaes muito diversas por parte dos familiares, j que algumas falavam,
por exemplo, da sensao de incompreenso, da ausncia de dilogo e do aumento
dos nveis de agresses e conflitos.
Segundo Henrique Parra (2002), para alguns trabalhadores, a vivncia de um
aprendizado democrtico pode ser revolucionria em suas vidas, especialmente
quando se trata de mulheres:
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18
Informalmente, comum se ouvir das pessoas que trabalham nas ITCPs que um dos primeiros sinais de que a cooperativa est dando certo, ou seja, que ela est funcionando socialmente e economicamente, o surgimento de algumas crises familiares. Tais conflitos teriam origem, conforme relatos dos participantes das ITCPs, no fato de muitas mulheres tornarem-se a provedora financeira da famlia e tambm levarem para casa a prtica das discusses coletivas onde elas teriam redescoberto a prpria fala (Parra, 2002, p. 164).
Trata-se de suspeitas, portanto, as que apontam a necessidade de maior
expresso, e conseqentemente, de ouvir e de negociar diferenas, como
aprendizados passveis de transposio para outros espaos da vida dos trabalhadores
autogestionrios. E ainda que, no mbito da autogesto, o mundo do trabalho e as
outras esferas da vida do trabalhador se entrelaam e se mesclam de modo distinto da
realidade de relaes hierarquizadas de trabalho:
A experincia cooperativa enseja verdadeiro resgate de cidadania. Ao integrar a cooperativa, muitos experimentam pela primeira vez em suas vidas o gozo de direitos iguais para todos, o prazer de poderem se exprimir livremente e de serem escutados e o orgulho de perceber que suas opinies so respeitadas e pesam no destino do coletivo.
Em todos esses sentidos, possvel considerar a organizao de empreendimentos solidrios o incio de revolues locais, que mudam o relacionamento entre cooperadores e destes com a famlia, vizinhos, autoridades pblicas, religiosas, intelectuais etc. (Singer, 2000. p. 28).
Tendo em vista estas experincias e reflexes, reafirmamos o objetivo desta
pesquisa, qual seja, identificar e descrever as principais repercusses psicossociais
vividas por trabalhadores que experimentam vnculos autogestionrios de trabalho,
tanto na esfera do trabalho propriamente dita, quanto nos demais espaos de suas
vidas sociais.
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19
Captulo II. Sobre o trabalho de campo
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20
Este captulo trata dos caminhos e das escolhas metodolgicas desta pesquisa,
questes que tambm comparecem diludas no captulo seguinte. Aqui trazemos uma
primeira apresentao da cooperativa estudada e descrevemos as etapas do estudo
realizado, identificando e discutindo os principais critrios e princpios que o
nortearam.
1. procura: os caminhos da prospeco
Em janeiro de 2003 iniciamos o procedimento de prospeco de campo, com o
objetivo de eleger a cooperativa-foco deste estudo. Esta fase da pesquisa foi bastante
extensa e contou com vrias etapas at sua concluso, com a escolha da cooperativa
em outubro do mesmo ano. Importante ressaltar a suspeita de que foi justamente o
rigor na determinao dos critrios do processo de prospeco que propiciou o
encontro com a experincia relatada a seguir, o que, por sua vez, nos exigiu um novo
posicionamento dos objetivos da pesquisa, processo mais tarde apresentado.
A primeira etapa do trabalho de campo consistiu, portanto, na definio de
algumas caractersticas que a experincia autogestionria deveria apresentar, de
modo a garantir que a pesquisa pudesse ser realizada a contento, tendo em vista os
fenmenos que pretendamos enfocar. Terezinha, cooperada da UNIVENS, sintetiza
muito bem os principais critrios que nortearam o processo de escolha da
cooperativa:
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21
Pelo que eu entendi, tu conseguiu achar a cooperativa que caiu como uma luva pra ti, em tudo que tu tava procurando: que j est h um certo tempo no mercado, que j est estabilizada scio e financeiramente, e que tem um pessoal que trabalha dentro da comunidade, que se envolve com ela diretamente. Assim d pra ver como que a gente se desenvolve dentro do bairro, da famlia, de tudo. (Terezinha)
- A cooperativa deve existir h pelo menos dois anos. Este critrio buscou
garantir a existncia de uma vivncia ininterrupta e cotidiana da autogesto por um
perodo que ultrapassasse o processo de formao inicial da cooperativa.
- A cooperativa deve ser autogestionria e contar com a participao
cotidiana dos membros em seus assuntos. Alm de tentar garantir a legitimidade da
autogesto da experincia a ser estudada, consideramos necessrias a participao e
interveno dos cooperados no cotidiano da cooperativa. Com isso, desejvamos que
o uso da voz e do voto no ficassem restritos aos espaos formais de reunio
(assemblias) que, em muitos casos, tm baixa freqncia e nem sempre conseguem
ultrapassar como objetivo a mera ratificao das aes do Conselho de
Administrao (Ortellado, 2003).
A esse respeito, observamos tambm o poder e a importncia dos processos
produtivos na determinao da organizao e das relaes de trabalho (Biazzi, 1994).
Em algumas das cooperativas visitadas por ocasio da prospeco de campo,
notamos que certos processos de produo limitam consideravelmente a interao e a
participao cotidiana dos trabalhadores. Mesmo considerando a dimenso tcnica
dos processos organizativos como um campo socialmente construdo e, portanto,
passvel de contestao e mudana (Spink, 1996; Sato, 1997), optamos por excluir do
procedimento de escolha aquelas cooperativas cujas peculiaridades organizativas
dificultassem a interao freqente entre seus scios-trabalhadores, uma vez que
desejamos focalizar as repercusses psicossociais da vivncia cotidiana da
autogesto.
- A cooperativa deve gerar renda efetiva para a maioria de seus membros. A
definio dessa condio como critrio necessrio para a escolha da cooperativa
apoiou-se na concepo de relaes autogestionrias de trabalho que adotamos aqui.
Ou seja, trata-se de relaes autogestionrias travadas no cerne de um processo
organizativo com fins econmicos que, portanto, tem como principal objetivo a
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22
gerao de renda para seus trabalhadores, atravs da realizao e da comercializao
de uma determinada atividade produtiva. Sendo assim, entendemos que a vivncia da
autogesto no trabalho, com todas as suas caractersticas e riquezas, s se concretiza
completamente quando seus agentes conseguem garantir a renda estvel e necessria
para o sustento prprio e o de suas famlias, a partir dos resultados desta experincia.
- A cooperativa deve manter fortes relaes com o seu entorno social. Tendo
em vista que parte dos objetivos da pesquisa focaliza possveis mudanas
ocasionadas pela vivncia da autogesto nas relaes dos sujeitos com o bairro e com
seus vizinhos, consideramos sumamente importante a existncia de ligaes estreitas
e cotidianas entre esses campos. Por exemplo, caso os trabalhadores da cooperativa
escolhida residissem em bairros diferentes entre si e/ou a cooperativa no
estabelecesse relaes diretas com as pessoas que residem ou trabalham em seus
arredores, a prtica da pesquisa neste aspecto acabaria se tornando mais trabalhosa e
complexa, ainda que possvel.
Depois da definio dos critrios acima, fizemos um breve levantamento das
principais instituies da Economia Solidria atuantes no pas especialmente no
estado de So Paulo uma vez que elas servem como marcos de encontro de vrios
empreendimentos econmicos solidrios (Gaiger, 2004). Aps rpidas consultas
bibliogrficas sobre esse campo, nos reunimos com formadores ou tcnicos que
trabalham em algumas destas instituies (ITCP-USP, UNISOL e ADS-CUT) e, a
partir disso, elegemos cooperativas para visitar e apresentar a proposta da pesquisa.
Entre os meses de maro e junho de 2003 realizamos esses encontros, buscando
levantar o mximo de informaes possvel, tanto institucional quanto informal,
sobre as cooperativas e seus respectivos grupos de cooperados. Dessa forma,
tomamos conhecimento indireto de dezenas de empreendimentos e visitamos
diretamente quatro cooperativas.
Terminada essa etapa, parecia imperativo rever os critrios delineados para a
escolha da cooperativa, uma vez que nenhuma das experincias visitadas ou
conhecidas distncia (a partir das leituras ou dos relatos dos tcnicos) conseguia
contempl-los a contento. Esse fato parece apontar para o carter incipiente, ainda
que em franco desenvolvimento, do campo da Economia Solidria no Brasil (Souza,
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23
2002). Muitas dessas cooperativas apresentavam parte dos critrios como, por
exemplo, uma boa participao democrtica dos cooperados no cotidiano, alm de
uma relao bastante fluente com o entorno do bairro em que se encontram.
Entretanto, nesses casos, ainda no conseguiam gerar renda para a maioria do seu
quadro social. Alm dessa, outras tantas combinaes entre a presena dos critrios
ocorriam, sem que houvesse, no entanto, um nico caso que contemplasse todos.
2. O achado da UNIVENS
Em meio longa procura da cooperativa a ser estudada, e prestes a desistir de
tamanho rigor em relao aos famigerados critrios, nos deparamos com o relatrio
de uma pesquisa realizada em vrios pontos do pas, envolvendo dezenas de
cooperativas e grupos autogestionrios, fruto de um convnio do SEBRAE com a
ADS-CUT19. Entre as experincias relatadas e analisadas ali, constava a UNIVENS,
a cooperativa de costureiras gachas Unidas Venceremos.
As informaes encontradas nesse relatrio de fato nos surpreenderam. Atravs
de dados precisos, elas no s indicavam a completa contemplao dos tais critrios
por parte da UNIVENS, como revelavam uma srie de outros aspectos interessantes,
que sugeriam um campo no apenas adequado, mas tambm muito frtil para a
realizao da pesquisa.
Aps o achado da cooperativa que ainda carecia de confirmao foi feito
um contato telefnico com Nelsa, presidente da cooperativa, a fim de agendar a
primeira visita, ocorrida em outubro de 2003.
19 SEBRAE Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas; ADS Agncia de Desenvolvimento Solidrio, vinculada CUT Central nica dos Trabalhadores. O convnio firmado entre essas instituies resultou no Programa de Ao Integrada em Economia Solidria e Desenvolvimento Local, que tinha por objetivo formar e fortalecer complexos cooperativos entre empreendimentos solidrios do mesmo ramo de atividade situados na mesma regio.
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24
3. Breve apresentao da cooperativa
Apresentaremos aqui, de modo breve e sinttico, as principais caractersticas da
cooperativa escolhida como foco desta pesquisa. O intuito apenas possibilitar um
conhecimento inicial acerca de seus aspectos mais objetivos, j que logo adiante, no
captulo III, trataremos de maneira aprofundada sobre o processo histrico de
formao da UNIVENS at os dias atuais.
A Cooperativa de Costureiras Unidas Venceremos UNIVENS foi fundada em
maio de 1996 e est localizada na Vila Nossa Senhora Aparecida, no bairro Sarandi,
extremo norte do municpio de Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul.
Organizada somente por mulheres, as idades das cooperadas variavam de maneira
impressionante, entre 18 e 80 anos. Apesar de duas delas ter concludo o ensino
mdio, a grande maioria do grupo interrompeu os estudos antes de completar o
ensino fundamental. Elas encontravam-se embebidas em uma larga experincia de
luta por melhorias nas condies do bairro, e no contaram com qualquer apoio,
assessoria ou tutela institucional para iniciar e organizar seus trabalhos.
Quando legalizada, h mais de oito anos, a UNIVENS contava com trinta e cinco
scias-trabalhadoras que se reuniam no salo da capela da Vila para cortar as peas,
posteriormente costuradas em casa.
De 1999 a 2004, a cooperativa esteve sediada em um espao que ajudou a formar,
a Incubadora Popular de Cooperativas e Grupos da Prefeitura de Porto Alegre,
situada no bairro em que todas residem. Em dezembro de 2004, o grupo transferiu
suas atividades para a sede prpria da cooperativa, tambm localizada na Vila. Trata-
se de uma conquista histrica, de forte peso simblico para as trabalhadoras, que
trataremos mais adiante20.
20 O tempo presente deste texto refere-se ao perodo final de permanncia do grupo nas instalaes da Incubadora, exceto atualizaes devidamente indicadas.
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25
O grupo de cooperados
Atualmente a cooperativa formada por vinte e dois cooperados, dos quais
apenas dois so homens. Mais de 80% dos membros so casados e tm filhos, e todos
eles so moradores da Vila Nossa Senhora Aparecida por escolha do grupo,
formalizada como princpio estatutrio da cooperativa.
Aproximadamente metade do quadro social da UNIVENS composta por scias-
fundadoras. Hoje em dia, as idades das cooperadas ainda mantm o trao inicial de
grande variabilidade, conforme podemos notar pelo grfico abaixo:
0
1
2
3
4
5
6
20 - 29 30 - 39 40 - 49 50 -59 60 ou mais
Figura 1. Grfico das faixas etrias das cooperadas
A organizao do trabalho
As atividades produtivas da UNIVENS so divididas pelo grupo em quatro
setores ou mdulos: Corte, Costura, Serigrafia e Culinria (tambm chamado de
Cozinha). Todo o processo de modelagem e de corte das peas feito por quatro
cooperadas alocadas na sede do grupo. J as atividades relativas costura acontecem
tanto na Incubadora onde se encontram quatro costureiras quanto nas casas das
cooperadas que l trabalham (oito cooperadas). No mdulo da serigrafia da
cooperativa trabalham quatro cooperados, inclusive os dois nicos representantes do
gnero masculino do grupo. As atividades da culinria, que tambm ocorrem no
interior do galpo da Incubadora, so realizadas atualmente por apenas duas
cooperadas. O grfico abaixo aponta a distribuio dos trabalhadores da UNIVENS
por estes setores produtivos e por local de trabalho:
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26
0123456789
Corte Costura Serigrafia Culinria
SedeCasa
Figura 2. Grfico das cooperadas por rea de atividade e por local de trabalho
A figura abaixo representa de forma esquemtica a planta baixa e o mezanino do
prdio da Incubadora, local de trabalho de outras duas cooperativas, a COOMESPAR
(metalrgica) e a Mos Dadas (artesanato):
Figura 3. Desenho esquemtico da planta baixa e alta da Incubadora
Ao observar as instalaes da UNIVENS representadas acima, podemos notar
alguns aspectos importantes que interferem na organizao do trabalho do grupo.
Ainda que este tema no faa parte do objetivo desta pesquisa, consideramos
Mez
anin
o T
rreo
Sala de reunies
Coomespar Coomespar
Grupo Mos Dadas
rea externa Coomespar
UNIVENS corte UNIVENS
costura UNIVENS cozinha
UNIVENS serigrafia
Plan
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Equipe SMIC
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mesa de corte I
mesa de
corte II estoque peas I
estoque de matrias-primas
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mq.mq.
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mq.
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mesa ADM.
bancada I
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geladeira
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arara secadora
8 beros trm
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tanque II
esto
que
bancada
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adequado abord-lo rapidamente aqui, j que ele pode nos auxiliar na tarefa de
apresentar as singularidades desta experincia cooperativa.
As trabalhadoras dos mdulos do Corte e da Costura convivem lado a lado, sem
barreiras fsicas que impeam ou dificultem as freqentes interaes cotidianas que
ocorrem entre elas (ver tpico 3.3.). Por outro lado, podemos perceber a existncia de
uma distncia fsica que separa estes setores, integrados ente si, dos demais mdulos,
cozinha e serigrafia.
Outra caracterstica marcante e reveladora deste grupo, que tambm pode ser
notada na figura acima, a inexistncia de uma sala ou de um setor administrativo.
Conforme nos informou Terezinha, cooperada da UNIVENS, trata-se de uma escolha
do grupo, que nunca desejou remunerar as atividades dos cooperados do Conselho
Administrativo, nem tampouco destac-los de suas tarefas produtivas. As atividades-
meio da cooperativa gesto administrativa e contbil, compra de matria-prima e
atendimento aos clientes, por telefone ou pessoalmente sempre foram realizadas
pelas cooperadas em meio ao cotidiano de trabalho. Somente quando necessrio,
agendam-se reunies fora do tempo da produo para conclu-las.
No entanto, notamos que a realizao dessas tarefas concentra-se fortemente nas
cooperadas do setor de Corte, e em menor grau, entre aquelas da Costura que
trabalham na Incubadora. Esse fenmeno parece ocorrer por razes bem prticas e
materiais, uma vez que o telefone, o computador e a porta de entrada da cooperativa
encontram-se bem prximos a esses setores. Porm, podemos supor outras razes
que expliquem essa diviso de tarefas, e deduzir tambm, ainda que de maneira
prematura, a existncia de repercusses micropolticas provenientes desse fato no
interior da cooperativa.
Todos esses aspectos, prprios da dimenso tcnica do processo organizativo da
UNIVENS, podem incidir sobre sua dimenso social, uma vez que tendem a
delimitar e a combinar de maneira diferente os temas, os espaos e os tempos das
interaes cotidianas inter e intramdulos, determinando, ainda que parcialmente, a
dinmica micropoltica da cooperativa.
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Os produtos
A UNIVENS fabrica atualmente diversos tipos de produtos. Se em seus
primrdios o grupo de cooperados sofreu com contratos precrios de trabalho (as
chamadas faces), hoje em dia conta com uma carteira de clientes extensa e muito
diversificada (mais de cento e cinqenta ativos), que as mantm em um ritmo de
produo frentico e preocupante, do ponto de vista da sade dessas trabalhadoras.
Essas costureiras gachas fazem bandeiras, sacolas, bons e camisetas para
sindicatos, movimentos sociais, associaes, escolas, clubes e afins. Elas tambm
fornecem materiais para eventos, como congressos, seminrios e outras espcies de
encontros polticos, cientficos e culturais. Os produtos da UNIVENS alcanam fins
inimaginveis: bandeiras para a Parada Gay da cidade, sapatos para cachorro (com
fecho de velcro e solado antiderrapante!), sacolas e camisetas para os Fruns Sociais
Mundiais, jalecos para os trabalhadores do CEASA, e at singelos uniformes para
empresas dos mais variados setores.
O mdulo da culinria iniciou suas atividades produzindo e vendendo para postos
de sade um composto alimentar a multimistura utilizado para o combate da
desnutrio, mal que atinge diversas famlias nas redondezas da Vila. Alm desse
produto histrico, atualmente as cozinheiras do setor servem refeies dirias para
moradores da Vila e para os trabalhadores da cooperativa vizinha (COOMESPAR).
Elas tambm fazem doces muito elaborados e salgados diversos, por vezes
oferecidos em servios de buffet prestados a eventos e festas familiares. Essas
cooperadas ainda fazem deliciosos pes integrais de cenoura, beterraba e espinafre,
muito apreciados por seus vizinhos, que vo at elas para compr-los em dias
determinados, quando saem quentes do forno.
A situao econmica da cooperativa e dos cooperados
Nos ltimos dois anos, a UNIVENS experimenta uma estabilidade econmica
invejvel, considerando as dificuldades do ramo da confeco no pas, marcado pela
forte competitividade entre as empresas e pela precarizao dos contratos de trabalho
(Cruz-Moreira, 2003). A cooperativa possui atualmente um faturamento mdio
mensal de R$30.000,00, gerando renda estvel para todos os seus membros, em um
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patamar muito superior aos valores praticados pelas empresas tradicionais do setor.
A renda dos cooperados oscila entre R$300,0021 e R$800,00 mensais, alcanando
picos superiores a R$1.200,00, dependendo do tipo de trabalho realizado e do setor
produtivo interno (corte, costura, serigrafia ou culinria).
A UNIVENS adota dois regimes distintos de remunerao. Os mdulos do corte,
da serigrafia e da culinria possuem rotina comum e horrios fixos de trabalho e,
portanto, dividem igualmente a renda gerada entre seus trabalhadores. J as
trabalhadoras da costura optaram pela remunerao por pea produzida, o que
significa retiradas mensais diferentes. Conforme as cooperadas, a escolha baseia-se
no fato de muitas delas trabalharem em casa (o que dificulta o controle sobre o tempo
dedicado ao trabalho) e no princpio do respeito aos ritmos diferentes de
produtividade e s idiossincrasias das situaes pessoais e familiares que, em alguns
casos, permitem ou exigem uma dedicao e uma renda maior, e em outros,
impedem a realizao do trabalho da cooperada em tempo integral.
Devemos ressaltar ainda que a cooperativa conta com um fundo de reserva desde
a fundao, com vistas a reunir recursos para a construo da sede prpria. Esse
fundo composto pela soma acumulada de 10% das retiradas mensais de todos os
cooperados.
4. As etapas do trabalho de campo
O trabalho de campo, propriamente, ocorreu entre os meses de outubro de 2003 a
julho de 2004. A primeira etapa foi a visita inicial, de um dia, em outubro, com os
objetivos de estabelecer o contato inicial entre ns, verificar a presena dos critrios
antes estabelecidos, e claro, apresentar a proposta da investigao para a posterior
avaliao do grupo.
Depois dessa primeira visita, ocorreu o que chamamos Semana de imerso. Em
novembro de 2003, aps a aprovao do incio dos trabalhos da pesquisa pelo grupo
21 Esse valor refere-se retirada mensal de poucas cooperadas da costura que trabalham em casa e que no se dedicam integralmente s atividades da cooperativa.
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de cooperados em assemblia22, passamos uma semana dedicando-nos
exclusivamente ao convvio com as trabalhadoras e ao acompanhamento de suas
atividades.
As intenes em relao a esta semana eram ambiciosas. Em primeiro lugar,
gostaria que pudssemos de fato conhecer-nos. Queria apresentar-me quelas pessoas
que eu j admirava, mas que nada sabiam de mim, a no ser que era a psicloga de
So Paulo. Desejava contar um pouco da minha histria, dos motivos que me
levaram a querer estudar o cooperativismo, de por que fui parar ali, enfim, gostaria
de trocar histrias com elas.
De nada valeriam todos os esforos, os traslados, as formalidades tericas e
burocrticas se no pudesse ter com essas pessoas um vnculo de confiana sincero,
afinal, trataria de questes muito caras a elas, seus trabalhos, suas famlias, sua Vila.
E, sabemos, ningum confidencia intimidades a quem no conhece e confia.
Desejava tambm, se possvel, que elas pudessem ter suas prprias aspiraes em
relao pesquisa, que elas pudessem servir-se dela de alguma maneira. Assim, ao
final desse perodo, todas ns poderamos ratificar (ou no) a escolha pela realizao
da pesquisa. Alm de tudo isso, este perodo foi fundamental para que eu pudesse
conhecer a trajetria dessas pessoas e da prpria cooperativa, material riqussimo que
iria orientar os prximos passos da investigao.
Alojada a poucos minutos de caminhada da sede da cooperativa, estive com elas
em diversas atividades cotidianas ao longo desta semana: acompanhando os
trabalhos, sentada ao p da mquina ora ajudando a dobrar algumas peas, ora
apenas conversando; os almoos e cafezinhos na cozinha; as idas para casa na hora
do almoo; o ir e vir de casa para a cooperativa e da cooperativa para casa na hora de
entregar e recolher os trabalhos; o chimarro no fim de tarde em casa; a visita a uma
feira de alimentao; o passeio no centro da cidade; a ida a uma das tantas reunies
22 Como ocorre em diversas cooperativas, as reunies peridicas do grupo so chamadas pelas cooperadas de assemblias. Porm, vale ressaltar que no se trata daquelas reunies anuais as Assemblias Gerais Ordinrias ou Extraordinrias previstas por lei e de cunho estatutrio. Entretanto, do ponto de vista micropoltico, costumam representar o frum mais importante de discusso e deliberao. No caso da UNIVENS, essas reunies so mensais e se do sempre prximas aos dias 23, data do aniversrio da cooperativa (23/05/1996).
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das quais o grupo participa; o momento de lazer no CTG23, entre muitos outros.
Como escrevi ao final deste perodo, volto maior do que cheguei (Dirio de
Campo, 14/11/2003. p. 61).
Ao longo dessa semana, bem como de todo o processo investigativo, utilizei
como referencial metodolgico a abordagem etnogrfica, cara antropologia
(Geertz, 1978; Sato & Souza, 2001). Em nenhum momento fiz uso de anotaes ou
gravei qualquer conversa nessa etapa da pesquisa. Ao final de cada dia, j no hotel,
valia-me da memria para relatar no Dirio de Campo os acontecimentos observados
e vividos naquela jornada (observao etnogrfica).
Posteriormente, estive com elas em Porto Alegre em outras duas ocasies, em
maro e junho de 2004. Nesses perodos, apesar de permanecer quatro ou cinco dias
por temporada em constante contato com o grupo, o enfoque era outro. O objetivo
principal no era realizar a experincia das observaes, mas colher as entrevistas.
Porm, tambm utilizei o Dirio de Campo, j que era inevitvel permanecer atenta
aos acontecimentos minha volta.
As entrevistas, semi-estruturadas e prolongadas, seguiram um roteiro geral,
elaborado a partir dos objetivos principais da pesquisa e das observaes feitas at o
momento. Entretanto, foram preparados roteiros individuais, pensando em cada
pessoa entrevistada. Pautei-me para isso em minha experincia pessoal com cada
uma dessas pessoas e em todas as ocorrncias a seu respeito presentes no Dirio de
Campo, de modo a que cada questo tivesse ou buscasse relao com alguma
vivncia compartilhada entre pesquisadora e depoente.
Essa opo metodolgica se justifica na medida em que o principal enfoque desta
pesquisa incide sobre as cooperadas e no sobre a cooperativa em si. Interessa-nos
saber como determinadas trabalhadoras da UNIVENS vivem singularmente aquela
experincia de autogesto, e que repercusses peculiares desta condio
experimentam em outros espaos de sua vidas sociais.
Ao total foram cinco entrevistas, totalizando aproximadamente onze horas de
gravao. A escolha das entrevistadas seguiu alguns critrios, quase todos orientados
23 Os Centros de Tradio Gacha so associaes civis, de cunho tradicionalista, que mantm viva a cultura popular do estado. Nos CTGs acontecem declamaes de versos gauchescos e bailes, como o fandango, a tirana e o balaio.
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por um princpio de representatividade, ainda que no-estatstica, de vrias
caractersticas da cooperativa. Queramos garantir que neste grupo estivessem
presentes: representantes de todos os setores produtivos da UNIVENS (corte, costura
e serigrafia)24; scias-fundadoras e membros mais recentes; cooperadas que
trabalham na sede e pelo menos uma pessoa que trabalha em casa pela cooperativa
(caso de pelo menos um tero do quadro social da UNIVENS); membros atuais ou
passados do Conselho Administrativo e tambm cooperadas que nunca ocuparam
estes cargos; e finalmente, o que parece bvio, pessoas com as quais pude ter maior
contato e que manifestassem em algum momento o desejo de conceder a entrevista.
Alm das etapas formais da pesquisa, ocorreram incontveis comunicaes entre
ns, desde o incio do processo at os dias atuais. Devido distncia entre as cidades
(So Paulo e Porto Alegre), que impossibilitava visitas mais freqentes, recorremos
ao telefone e Internet. Alm disso, em algumas ocasies, pude encontrar-me aqui
em So Paulo com Nelsa, cooperada da UNIVENS que em geral representa o grupo
(ou um dos fruns de Economia Solidria dos quais a cooperativa participa) em
eventos fora do Rio Grande do Sul.
24 Em meados de 2004, pouco antes da realizao das ltimas entrevistas, fomos surpreendidos pelo desmembramento do setor e das trabalhadoras da culinria do restante da cooperativa. Infelizmente no foi possvel acompanhar esse processo de perto, porm, vrias cooperadas disseram que se tratou de uma deciso muito discutida e finalmente acordada entre todos os envolvidos. Com a sada de uma das trabalhadoras do setor e prximas do momento de deixar as instalaes e os demais benefcios conferidos pela Incubadora, a dupla restante decidiu chamar outras pessoas para integrar um grupo maior e formar um novo empreendimento que, desvinculado da UNIVENS, poderia permanecer por mais quatro anos ali. Em funo disso, decidimos no entrevistar uma representante do setor da cozinha, j que a partir daquele momento, elas seguiriam independentes da cooperativa que continuaramos estudando. No entanto, vrias das experincias vividas com essas cooperadas at ento foram mantidas neste texto, j que nos auxiliaram muito na tarefa de conhecer a histria e o cotidiano do grupo como um todo.
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Captulo III. Primeiros contatos, fortes indcios
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O objetivo deste captulo relatar o que encontramos assim que entramos a
campo e como esses momentos repercutiram nos caminhos da pesquisa. Atravs de
uma descrio psicossocial25 do encontro com as cooperadas da UNIVENS,
apresentamos como se deu a relao inicial e o processo de negociao entre
trabalhadoras e pesquisadora. Nos interstcios dessa dinmica e do conhecimento
mtuo, foram sendo revelados, paulatina e surpreendentemente, fortes indcios
daquilo que nos propusemos a estudar, ou seja, possveis repercusses da experincia
de autogesto vivida por estas pessoas. O levantamento e a discusso breve desses
indcios tambm so objetos de trabalho deste captulo.
Pode-se dizer muito a respeito dos primeiros momentos e de toda a experincia de
fazer pesquisa com estas mulheres26, menos que se tratou de uma relao fcil ou
fluida, prpria dos encontros pautados pela aceitao incondicional do forasteiro que
chega e que de imediato acolhido. No. Foi necessria uma conquista trabalhosa e
angustiante do direito de estar ali.
Agora, ao tratar dos primeiros momentos com este grupo, possvel afirmar que
significaram marcos importantes para o desenrolar da pesquisa. Como veremos a
seguir, a maneira singular com que fui tratada e recebida pelas cooperadas da
UNIVENS, em conjunto com outros fenmenos, exigiu uma reorientao da questo
principal deste trabalho. E mais, este modo prprio de se relacionar com o mundo
com as pessoas que delas se aproximam, bem como com os demais temas do
cotidiano parece apontar para condies psicossociais peculiares, possveis
25 A idia de uma descrio psicossocial apia-se na concepo etnogrfica de descrio densa (Geertz, 1978). Este conceito, desenvolvido por Gilbert Ryle e trabalhado por Clifford Geertz, logo adiante ser discutido.
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repercusses da experincia de autogesto por elas vivida e construda. Ou seja,
atravs da maneira como as cooperadas da UNIVENS se relacionaram comigo, elas
estavam expressando, sem que eu soubesse, o que eu gostaria que revelassem:
possveis traos desenvolvidos atravs da vivncia da autogesto.
Neste captulo, portanto, contarei assim, em primeira pessoa, a histria do meu
encontro com essas mulheres, e como o processo de entrada a campo foi se
transformando paulatinamente em uma relao de confiana e respeito entre pessoas.
De incio, enquanto ia tomando contato e sendo afetada pelo campo psicossocial
em que vivem e trabalham as cooperadas da UNIVENS, no foi possvel alcanar, de
imediato e com segurana, os sentidos que aqueles fenmenos e prticas assumiam
naquele contexto singular. Como veremos, foi necessrio manter a angstia da
dvida e do desconhecimento por certo tempo, at ter na pele, elementos que
permitissem compreender minimamente tudo aquilo, de um modo que fosse coerente
e fiel experincia daquelas pessoas, naquele campo.
Esta dificuldade inicial, prpria dos trabalhos etnogrficos, me fez lembrar dos
comentrios de Geertz e de Ryle sobre descrio densa (Geertz, 1978. p. 15). Para
Geertz, o que define o empreendimento etnogrfico no so suas tcnicas ou
instrumentos propriamente, mas o tipo de esforo intelectual que ele representa, ao se
propor construir uma descrio densa do campo em estudo, em contraposio ao que
Ryle chamou de descrio superficial. Ryle apresenta e discute estes modos de
descrio e seus diferentes efeitos interpretativos, em um ensaio, tomando de
exemplo a clssica cena das piscadelas dos trs meninos.
Diferentemente de Ryle, que observava distncia as piscadelas dos meninos,
tentando alcanar os diferentes sentidos que eles conferiam a elas, eu havia penetrado
no campo de ao das cooperadas da UNIVENS, por fora das circunstncias desta
pesquisa. Elas, naturalmente, passaram a exigir de mim como fazem com quem
quer que se aproxime delas a compreenso do significado de suas piscadelas,
melhor dizendo, das maneiras como elas se relacionam com o mundo.
26 Como j mencionado, apesar de contar atualmente com dois cooperados entre seus vinte e dois scios, a UNIVENS e sempre foi formada majoritariamente por mulheres. Justamente por isso, optamos por referir-nos a seus cooperados sempre a partir do gnero feminino.
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Os prprios indcios de repercusses da vivncia da autogesto, apontados ao
longo deste captulo, aparecem sob a forma de piscadelas, uma vez que seus
significados somente mais tarde logramos construir. Passados estes primeiros
contatos, por exemplo, tornou-se evidente que elas buscam a autogesto no apenas
na gide do trabalho, mas em todas as relaes com o mundo social, recusando-se a
sofrer passivamente qualquer interveno alheia.
Assim, o que estas cooperadas de certa forma exigiram, e que nos propusemos a
fazer tarefa