Andradina/MS AILTON RIBEIRO NASCIMENTO INTRODUÇÃO · 2018. 5. 8. · AILTON RIBEIRO NASCIMENTO...
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Entre Películas e Memórias: a sala de cinema Cine Rex no contexto sociocultural de Nova
Andradina/MS
AILTON RIBEIRO NASCIMENTO
INTRODUÇÃO
No início da década de 1960, quando Nova Andradina havia recém passado por um
processo de elevação a município, a instalação de uma sala de cinema naquele momento
contribuiu para que se solidificasse a prática cinematográfica de exibição de filmes na cidade
que então se formava. Entretanto, ao longo de duas décadas, tal sala ganhou destaque por
representar um espaço propício para manifestações culturais e atividades de recreação e lazer,
e, acima de tudo, por gerar novas possibilidades de sociabilidade.
Oficialmente fundado em 1958, os antecedentes históricos do município datam do
final da década de 1930, quando o pecuarista Antônio Joaquim de Moura Andrade,
proprietário da empresa Moura Andrade S/A, adquiriu terras na região sul do então estado de
Mato Grosso e deu início ali a um processo de colonização, que vale destacar, naquele
momento era impulsionado pelo Estado brasileiro. Com a chegada de clérigos e de
trabalhadores de diferentes regiões do Brasil e do Paraguai, formou-se naquela região uma
pequena comunidade que se expandiu. O que levou Antônio Joaquim de Moura Andrade a
idealizar mais uma cidade, como havia feito anteriormente no Estado de São Paulo1.
Entre o período de chegada dos primeiros moradores e a fundação do município, a
pequena população que se formou, composta majoritariamente por trabalhadores ligados ao
serviço braçal, encontrava nos bares e nos campos de futebol improvisados, a quebra para a
rotina laboral. Diante de poucas opções de lazer e entretenimento, o deslocamento a
municípios vizinhos era a única opção para aqueles que buscavam outras formas de diversão,
como bailes e cinemas.
Em uma época em que as relações sociais e culturais na cidade eram bastante atreladas
à religiosidade e à criatividade popular, a chegada de uma sala de cinema tornou-se um marco
na memória dos antigos moradores de Nova Andradina.
UFGD, Mestrando em História, apoio CAPES. 1 Antônio Joaquim de Moura Andrade também é responsável por fundar a cidade de Andradina, localizada na
região oeste do Estado de São Paulo.
2
Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é discutir sobre como a sala de cinema Cine
Rex se inseriu no cotidiano nova-andradinense, compreender como se deu a apropriação deste
espaço pelo público local, bem como refletir acerca do relacionamento dos espectadores com
os filmes exibidos. Acreditando no potencial da memória enquanto reveladora de sutilezas
resultantes de relações entre os sujeitos e, neste caso, também de suas interações com a sala
de cinema, as memórias de ex-funcionários e antigos frequentadores formaram a principal
fonte de informação para tal estudo, além do periódico O Pioneiro, único jornal em circulação
à época.
Destarte, esse texto é decorrente de um trabalho de conclusão de curso defendido no
ano de 2016. No entanto, aqui se fez um recorte retomando alguns pontos que ficaram mais
explícitos no desenvolvimento da pesquisa. Naquele momento, a escolha deste tema se
limitava a apenas registrar a história do Cine Rex, para assim preencher um vazio
bibliográfico, fazendo tão somente um panorama acerca de sua existência. Porém, à medida
que a pesquisa se desenvolvia, tornava-se imprescindível ampliá-la a outros âmbitos,
partindo de elementos que as fontes orais tornavam mais evidentes. Um exemplo disso, são
os distintos motivos que levavam os indivíduos ao cinema. Nesse sentido, as narrativas dos
moradores se apresentaram de forma eficaz, não só por suprir a escassez de documentos e
fontes escritas com a qual me deparava, mas também por terem contribuído em aspectos
muito mais vivos e dar uma dimensão das particularidades nem sempre manifestadas em
um registro escrito.
Para tal estudo foram utilizadas entrevistas, realizadas em 2015, com ex-funcionários e
antigos frequentadores do Cine Rex. Entre os primeiros temos o Sr. João Defaveri, que atuou
como revisionista e o Sr. Francisco Santi, que trabalhou como enrolador de filmes; ambos
destacaram pontos referentes tanto a suas funções quanto ao funcionamento da sala de
exibições. Já entre aqueles que frequentaram a sala de exibições, nos valemos das narrativas
de Maria de Fátima Dantas, Samir Sami, Orlando Moreira e Arlindo Klein, apesar destes dois
últimos não serem mencionados diretamente neste texto, suas narrativas ajudaram a
compreender aquilo que se pretendia. Enfim, são pessoas que se dispuseram falar de suas
experiências na sala de cinema e em seus entornos, bem como nos dar uma dimensão do
contexto sócio cultural de Nova Andradina nas décadas de atividade do Cine rex.
CINE REX: TRAJETÓRIA E MEMÓRIA
Inaugurado em 1962 por um senhor popularmente conhecido como Nakamura, o
Cine Rex se localizava na região central de Nova Andradina. Erguido com paredes feitas de
3
madeira e cobertas por cortinas vermelhas. Na entrada uma bomboniere; em seu interior,
aproximadamente 850 cadeiras, sendo 50 delas, fixadas na parte superior do prédio,
próximo à cabine de projeção; dispunha de uma tela que media por volta de nove metros de
comprimento e ótimos equipamentos para a época. Assim o senhor João Defaveri2 descreve
o cinema onde trabalhou por muitos anos exercendo a função de revisador de películas.
Contudo, apesar das boas condições tecnológicas, o entrevistado revelou que o Cine Rex
muitas vezes enfrentava problemas externos à sala.
Ao final da década de 1960, Nova Andradina ainda se encontrava num processo de
desenvolvimento marcado por uma considerável precariedade nos serviços de infraestrutura
urbana. Sem saneamento básico e com pavimentação asfáltica em pouquíssimas ruas,
contava com um singelo sistema de distribuição de energia elétrica, realizado pela ETNA,
empresa termoelétrica administrada pelo grupo Moura Andrade S/A, que funcionava a
partir da queima de combustível diesel. O funcionamento desse sistema era limitado e
frequentemente apresentava falhas em sua operação. Porém, mesmo com essas dificuldades,
as sessões dificilmente eram interrompidas, pois havia no cinema um gerador interno, ao
qual se recorria para garantir o andamento das projeções. De acordo o Sr. Defaveri,
“funcionava até às dez horas, aí o cinema tinha um motor [...] era uma correria danada.
Acabava a energia, eu que era o ajudante, por exemplo, corria lá trocava a polia, ligava o
motor pra poder continuar o filme”.
No tocante aos filmes exibidos, nas edições do jornal O Pioneiro, datadas de 1968,
encontram-se diversos anúncios com a programação de filmes que estavam ou que entrariam
em cartaz nos próximos dias ou semanas. Além do jornal, os filmes também eram
divulgados por cartazes e anunciados em carros de alto-falante. Dentre grandes sucessos
mundiais e nacionais, o cinema proporcionava uma diversidade de gêneros cinematográficos
como o faroeste, bíblicos, terror e drama. Entretanto, a grande preferência do público eram
os filmes de comédia, sobretudo os de Mazzaropi, que lotavam as sessões que ocorriam
repetidas vezes no mesmo dia para dar conta de atender a demanda.
Algumas narrativas nos dão noção da força dessa grande apreciação audiovisual e
do impacto que os filmes causavam no público local que, devido a grande empolgação,
muitas vezes incorporava elementos da trama, “trazendo-os” à realidade. Segundo o Sr.
João Defaveri, ao término das sessões dos filmes de Bruce Lee, “todo mundo queria lutar
2 Sr. João Defaveri, idade não informada, proprietário de restaurante. Sua função era verificar a película antes
que fosse exibida, procurando por possíveis cortes ou fazendo emendas quando necessário.
4
karatê [...] e saia de lá ‘tchá’! ‘tchá!’”. Outro entrevistado, o Sr. Samir Sami, um antigo
frequentador do Cine Rex, também relembrou como o espetáculo cinematográfico o
impressionava.
Teve um dia que eu assisti aquele filme Piranha. Quando nós entramos o tempo
tava bom, sabe?! Quando a gente saiu, tinha chovido. Rapaz, você sabe que a
gente tinha medo de pisar até nas poças d’água [...] Aquilo pra época foi muito,
sabe?! Oh loco meu! Você saía impressionado do cinema.3
Com sessões de filmes que empolgavam o público local, o Cine Rex consagrou-se
como um local de muitas experiências em Nova Andradina. Por ter sido o único cinema na
cidade, sabemos que, para seus habitantes, boa parte das experiências com os filmes advêm
desta sala de projeções que proporcionava à população nova-andradinense o encantamento
com a arte cinematográfica, ao passo que os inseria na dinâmica da vida moderna. Para a
população local, o cinema representava o progresso e a modernidade, porém a apropriação
que se fazia de seu espaço misturava-se a outras práticas de convívio social.
Quando perguntado se os filmes eram o principal motivo que levava as pessoas ao
cinema em Nova Andradina, o Sr João Defaveri revela que apesar do entusiasmo causado
pelos filmes, o cinema também servia para atender a propósitos muitas vezes distantes da
mera apreciação audiovisual. Conforme responde o entrevistado: “realmente não tinha aonde
ir [...] os caras queria sair com a namorada. Qualquer filme o cara ia. Era tudo novidade na
época, né”4. A fala do entrevistado nos revela esse outro significado atribuído ao Cine Rex: o
de mediador das relações sociais entre os habitantes de Nova Andradina.
CINE REX E AS EXPERIÊNCIAS PARA ALÉM DOS FILMES
As relações travadas no Cine Rex foram mais complexas que uma mera admiração
pela sétima arte, havia também relação com a vivência e os anseios da população nova-
andradinense, que diante do marasmo que cobria a cidade, procurava, nas calorosas rodas
de conversa sobre a calçada do cinema ou nos discretos romances ainda proibidos no
interior da sala escura, uma fuga da monotonia provinciana. Um ponto de referência,
sobretudo, para a juventude que aproveitava as festas de quermesse que ocorriam no pátio da
igreja para marcar encontros amistosos ou amorosos no cinema.
3 Sr. Samir Sami Rodrigues Ibraim, 50 anos, funcionário público. 4 Sr. João Defaveri
5
Nessas quermesses era onde começava os encontros, os namoros, né [...] usava o
cinema como um ponto de referência, né. Era o cinema mesmo. Se conheciam
através da quermesse ou no clube, mas o ponto de encontro era o cinema aos finais
de semana.5.
Nesse contexto, o Sr. Samir Sami diz se lembrar muito bem dos muitos “namoricos”
que aconteciam no interior do cinema. Em suas palavras, “canal mesmo era quando você
conseguia levar uma menina pra assistir no cinema com você”.6 E entre as opções de
assento, as poltronas que se localizavam no camarote eram as mais apropriadas para garantir a
discrição entre os casais mais ousados, que queriam desfrutar de suas relações amorosas sem
serem pegos pelo “lanterninha” ou julgados pela população.
Na maioria das vezes, as relações que aconteciam dentro da sala eram pueris e não
passavam de efêmeros romances, no entanto, para uma de nossas entrevistadas, essa
aventura tornou-se algo mais duradouro. Em sua narrativa, Dona Fátima contou que aos
dezesseis anos de idade conheceu dentro do cinema, o homem que seis anos mais tarde
tornou-se seu marido. A interlocutora, ao recordar que o cinema era um local de encontro
onde aconteciam muitas paqueras, relatou que seu irmão também havia iniciado um
relacionamento com uma menina, porém “não casou com ela, mas chegou a noivar, e ele a
conheceu no cinema”.7 Fatos como esse nos levam a pensar o Cine Rex como um lugar que
afetivamente marcou a vida de muita gente, tanto em meras paqueras de finais de semana,
como em relacionamentos que se tornaram sólidos e resistiram ao tempo.
Além desses romances e encontros, a ida ao cinema juntava-se à prática religiosa de
ir à missa e proporcionava o contato com meio urbano àqueles que residiam em fazendas e
sítios localizados nas proximidades do município. Conforme o Sr. Defaveri, por não haver
igrejas nas fazendas, as pessoas se deslocavam à cidade para cumprirem com seus ritos
religiosos: “as fazenda era tudo pertinho, final de semana vinha tudo pra cidade. Vinha pra
missa e pro cinema”.8 Assim, este rito movimentava a cidade e lotava as sessões de cinema
aos finais de semana. Durante a Semana Santa, filmes que retratavam a vida e morte de
Jesus Cristo, como por exemplo, a obra O Evangelho segundo São Mateus (Pier Paolo
Pasolini, 1964), faziam bastante sucesso, chegando a serem exibidos diversas vezes a um
público que lotava até três sessões num mesmo dia.
5 Dona Maria de Fátima Dantas de Oliveira, 61 anos, funcionária pública. 6 Sr. Samir Sami. 7 Dona Fátima. 8 Sr. João Defaveri.
6
Era o mesmo filme e lotava todo ano. Parece que o cara fazia uma promessa “vou
na procissão, vou na missa e vou no cinema”. Naquela época o povo tinha mais fé.
O povo fazia certinho, vinha na procissão, a molecada vinha mais cedo pro
cinema, porque as mães deixavam vir e lotava.9
Essa movimentação no espaço urbano, como narra o entrevistado, sugere que a
visitação ao cinema, parte do roteiro dos moradores, sobretudo das áreas rurais, estava
habitualmente tão “sacralizada” quanto à própria celebração eucarística. Já que, como
demonstrou Claudinei Araújo dos Santos (2010) em sua monografia, a igreja, além de cumprir
com suas atribuições religiosas, também dava conta de estreitar o convívio dentro da
comunidade, pois segundo ele, “a população local participava e organizava as festas
religiosas que possibilitavam a constituição de um momento, um lugar de sociabilidade,
solidariedade e convivência entre os membros da comunidade” (2010: 44). Em outro
momento, o autor comenta que “de acordo com os entrevistados, as orações que aconteciam
aos sábados [...] precediam um momento de festa e interação, que se materializava com a
realização de um baile” (2010: 61). Essas informações levantadas pelo autor demonstram o
entrecruzamento entre as práticas religiosas e o lazer. Essas são considerações que
reafirmam a narrativa de Dona Fátima quando ela diz: “era o cinema e o clube paroquial
onde a juventude se reunia, né”.10
O final de semana precisava ser preenchido por atividades antagônicas ao trabalho -
ou o estudo - que dessem conta de dinamizar a aproximação e convívio entre indivíduos e
proporcionar-lhes o lazer. Nesse contexto, o cinema, assim como a igreja, funcionava como
um catalisador das relações sociais no município.
Para o historiador Marcos Lobato Martins (2010), a “homogeneização do espaço
capitalista” própria de uma sociedade globalizada, encontra de certa forma, “resistência do
regional e do local” (MARTINS, 2010: 139) uma vez que os sujeitos, famintos pela
valorização de suas identidades, procuram conservar atributos próprios de suas
singularidades. Por conseguinte, esse desejo de permanência e firmamento frente às
possíveis rupturas para com o passado manifesta-se numa apropriação de “espaços
concretos tecidos por relações sociais”, formando assim um amálgama de indivíduos que
correspondem uns aos outros num aproximado espírito comum de pertencimento. Conforme
destacou o autor, “mais e mais gente busca especificidades, algo que seja querido, práticas e
cantinhos que sejam seus, de seus vizinhos e amigos, experiências pessoais e comunitárias
9 Idem. 10 Dona Fátima.
7
para rememorar e criar identidades”. (MARTINS, 2010: 139).
A calçadona era o lugar, ponto de encontro. Antes de começar o filme, o pessoal
ficava no calçadão, tinha cobertura, tinha uma calçada na frente. Ah, o pessoal
ficava lá, né, conversando do filme de ontem e ia na expectativa do de hoje.11
Outro elemento que sustenta a ideia do Cine Rex para além de uma sala de
projeções cinematográficas e que ajuda a compreendê-lo como ambiente propício para as
interações sociais, são os shows dominicais que ali ocorriam. Nesses eventos, artistas locais
faziam apresentações musicais todos os domingos pela manhã sobre um palco instalado em
frente à tela de exibições, o que demonstra outra finalidade atribuída ao cinema. Usualmente,
tais shows eram promovidos pelo senhor Sílvio Souza que, assim como Pedro Nascimento
Filho, foi um dos primeiros radialistas de Nova Andradina.
Usar o cinema como salão de festas e espetáculos artísticos foi uma prática muito
recorrente em diversas cidades do interior brasileiro. A falta de espaços exclusivos para tais
finalidades, sobretudo em pequenas cidades, propiciava essa ambiguidade, característica de
diversos cinemas adaptados para suprirem certas necessidades. Inversamente, essa
transformação/reorganização em casas de espetáculos já houvera acontecido desde a
disseminação da arte cinematográfica, quando naquele momento era o teatro que se
adaptava para receber o cinema. Ézio Luiz da R. Bittencourt (2007) ao definir o significado
da palavra teatro, dá a dimensão de como esse termo sofreu alterações ao logo do tempo e
como este espaço arquitetônico destinado a um fim específico, sofreu mutações para atender
a demandas da sociedade. Segundo o autor “durante as primeiras décadas do século XX é
difícil perceber casas de espetáculos que apresentassem exclusivamente projeções
cinematográficas. Mesmo sem área de palco, a maior parte dos cinemas de então [...]
exibiam números de variedades” (BITTENCOURT, 2007: 180).
A soma destas práticas em torno do Cine Rex, como as reuniões entre amigos,
encontros amorosos e espetáculos festivos, possibilitam-nos vislumbrar o uso que se faziam
de seus entornos. Desse modo, percebe-se que, ao passo que se tornava notório pelos filmes
que exibia, supria certas necessidades em contraste às antigas atividades, anteriormente,
tidas como de lazer no meio rural, como a pesca, a cantiga de roda, a moda de viola e a
dança, ligadas à noção de entretenimento tipicamente urbano, como bares, clubes, teatros e
11 Sr. Francisco Santi, 58 anos, proprietário de um hotel. Ao descrever sua função de enrolador de fitas, ele
conta que “tinha que enrolar a fita [...] pegava na lata e ponhava ela na máquina, da máquina você
passava na carretilha que era uma bobina. Bobinava ela todinha pra ela entrar na máquina”.
8
cinemas. Quando perguntado aos entrevistados, sobre as formas de lazer e diversão da
época, a resposta era sempre bem próxima de “não tinha outra alternativa, né, não tinha outra
coisa, era cinema casa, casa cinema e trabalho, né. Só isso!”.12 Contudo, ao longo de suas
falas eram evidenciadas atividades como o futebol, brincadeiras dançantes e festas de
quermesses, portanto, compreendidas por eles como atividades comuns, relegadas a um
segundo plano.
Depois deste panorama acerca da trajetória, desenvolvimento e das peculiares
formas de apropriação do Cine Rex, passemos para o tópico seguinte, a fim de compreender
como um local de expressão cultural e ambiente para práticas sociais de grande
expressividade para o município entrou em decadência após anos em atividade.
DA GLÓRIA À LEMBRANÇA: O FIM DO CINEMA DE NOVA ANDRADINA
Identificar os fatores que ocasionaram o fechamento de grande parte das salas de
cinema de rua é uma tarefa um tanto quanto árdua e, que não pode ser analisada de maneira
reduzida ou particular. Para tanto, requer uma análise ampla das condições políticas, sociais
e econômicas pelas quais o cinema (e aqui entenda cinema sob os três pilares, produção,
distribuição e exibição) passou a partir dos anos 1950 (BARBÁCHANO, 1979: 32).
No Brasil, a crise que rodeava a exibição cinematográfica atingiu seu ápice no início
da década de 1980. De acordo com Carlos Barbáchano (1979), até a própria linguagem
cinematográfica se abatia, ao passo que o abandono das salas era impulsionado pelo
entusiasmo em torno de espetáculos esportivos e pela “proliferação do hábito do final de
semana” (BARBÁCHANO, 1979: 36-37). Para Nelson Silva Junior (2008), o processo de
globalização, no qual o mundo entrou no final dos anos 1970, colocou a convivência do
homem num conflito de valores, posto que as identidades individuais se esfacelaram diante
de valores ditos globais, valores, sobretudo, de consumo. O Brasil, com a volta da
democracia, em meados da década de 1980, passou por um processo de reestruturação
econômica que possibilitou o “ganho real de compra” dos brasileiros, o que,
consequentemente, acabou afetando toda sociedade.
Todos esses acontecimentos econômicos no país viriam a traçar um novo perfil na
sociedade de consumo, que agora investiria não somente recursos financeiros, mas
também tempo e espaço, em aparelhos de TV, vídeo cassete e vídeo locadoras,
para satisfazer necessidades de entretenimento. (SILVA JUNIOR, 2008: 47).
12 Idem.
9
Depois de quase duas décadas de funcionamento, a sala de cinema Cine Rex em
Nova Andradina, começou a apresentar um enfraquecimento no número de espectadores.
Após ter passado pelas mãos de diversos donos, o último proprietário na direção da sala foi
o Sr. Mario Fuso, que viu a retração gradual do público perante o aparecimento da
televisão, conforme argumentaram vários entrevistados.
Para o Sr. Francisco Santi o surgimento do sinal de TV significou economia ao
público, que daquele momento em diante não precisaria mais gastar com a compra de
ingressos. Em suas palavras, “o pessoal ficou mais na televisão, não gastava, né, parou de ir
no cinema”.13 Seguindo esse mesmo pensamento, o Sr. João Defaveri argumenta que,
devido ao baixo custo de aquisição de um aparelho televisor e, posteriormente um vídeo
cassete, as pessoas podiam optar por ver filmes reservadamente em suas próprias casas. Na
compreensão do Sr. João, a questão era “por que o cara vai no cinema pagar se ele, a
namorada, o pai e a mãe vai assistir o filme em casa?”.14 Isso sugere que a prática de assistir
filmes, apesar de permanecer coletiva, passara agora a se limitar ao espaço privado,
particular, familiar.
Apesar de ter levado os filmes para dentro dos lares, a televisão em si somente não
pode significar o fator que causou o malogro da sala de cinema. Como visto no tópico
anterior, o cinema também era caracterizado como sendo um lugar de encontros,
sociabilidades e trocas de experiências, e não somente uma sala de projeções
cinematográficas. A televisão não poderia exercer essa outra a função conferida ao cinema.
Alguns estudos apontam diversos fatores que podem ter ocasionado o fechamento das salas
de cinema: aquisição do aparelho televisor; especulação imobiliária aos cinemas situados
nos centros das cidades; mudança no ritmo da vida urbana; programação e qualidade dos
filmes; a mudança de atividades de lazer e descaso.
De acordo com André Malverdes (2007), que em sua dissertação de mestrado
desenvolveu uma pesquisa acerca do fechamento das salas de cinema do Espírito Santo,
não apenas o advento da televisão pode ser considerado responsável pela decadência das
salas, pois segundo o autor:
Há uma conjugação de fatores como as mudanças de hábitos da população urbana,
a queda da rentabilidade das salas (que leva vários proprietários a mudarem de
13 Idem. 14 Sr. João Defaveri.
10
ramo e investirem menos nas melhorias das salas), violência nas ruas, transporte
coletivo deficiente, problemas de estacionamento, entre outros. (MALVERDES,
2007: 115).
Dentre hipóteses levantadas, Malverdes aponta a Embrafilmes como sendo também
uma das vilãs das salas de cinema no Brasil. Com sua política de obrigatoriedade na
exibição de filmes brasileiros, pela lei nº. 6.281, de 9 de dezembro de 197515 e por repassar
os custos da produção dos filmes, bem como demais despesas com fiscais aos exibidores.
Segundo o autor, “os exibidores condenavam a exibição compulsória, enquanto o produtor
nacional se valeu do apoio estatal para competir com o cinema estrangeiro, neste período
majoritariamente americano.” (MALVERDES, 2007: 115). Além dessa imposição por parte
da estatal, os exibidores entrevistados por Malverdes queixavam-se do controle que a
Embrafilme passou a ter sobre a renda das salas. O autor conclui afirmando que “por fim,
com diversas liminares contra a máquina de franquiar e a roleta, os exibidores tiveram essa
primeira retirada das salas de exibição” (MALVERDES, 2007: 115).
Sobre a atuação da Embrafilme em Nova Andradina, João Defaveri destava que a
estatal comandava todo o roteiro de exibição, desde a propaganda até a escolha dos filmes a
serem exibidos, em contrapartida eram obrigados a repassar 50% da renda adquirida à
empresa. Além disso, essa dinâmica de total controle sobre a exibição comprometia a
inclusão de lançamentos na programação de filmes do Cine Rex. Porém, para o
entrevistado, a abertura de lanchonetes ao redor do centro foi a principal causa de boa parte
do público não frequentar mais a sala de cinema. Em sua narrativa o interlocutor descreve
que “em oitenta abriu a lanchonete O Monjolo, a primeira ao ar livre. Isso foi diminuindo o
movimento do cinema, porque as pessoas não iam ao cinema mais, ficava tudo sentado na
lanchonete”.16
Na visão de Dona Fátima, o Cine Rex perdeu forças com surgimento de outros
espaços e atividades que se destacaram perante o cinema e, que davam conta de
proporcionar à população nova andradinense divertimento, lazer e sociabilidade. Atributos
antes proporcionados exclusivamente pela sala de cinema.
15 Lei que no artigo 13, tonar obrigatório a inclusão do filme nacional em programas que conste filme estrangeiro
de longa-metragem. (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/L6281.htm, acessado dia 10 de
janeiro de 2016). 16 Idem.
11
Na época o pessoal ficou triste, né, mas aí já tinha acesso à TV. Então o pessoal
achou que uma coisa ia suprindo outra, né. Aí depois construíram outros clubes; o
Tênis Clube aqui em Nova Andradina, também trouxe um grande movimento [...]
era um clube muito movimentado também, com piscina. Então uma coisa foi
suprindo a outra, né.17.
Diante de fatores como, a chegada do sinal de TV, mudança das atividades de lazer
e a implicações políticas e econômicas em torno da exibição de filmes, o fato é que redução
efetiva do público foi inevitável, o que acabou acarretando num baixo rendimento
financeiro à sala. E conforme Sr. João, em outubro de 1983, o Cine Rex fecharia suas portas
para nunca mais abrir. Dona Fátima conta que “a princípio tinha fechado pra reforma, mas aí
resolveram fechar definitivamente”.
Mesmo após o fechamento da sala, segundo Sr. João Defaveri, a última exibição
ocorreu com o filme O jeca e a égua milagrosa (Amácio Mazzaropi, 1980) que foi
projetado em outro local: “não passamos nem no cinema, nós tiramos uma máquina do
cinema e passamos no salão São Vicente, onde é a igreja São Vicente”.18 Essa pode ser
considerada a última atividade promovida pelo Cine Rex, que depois dessa exibição
passaria existir somente na lembrança daqueles que nele compartilharam risos, sustos,
emoções, afetos e experiências.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho procurou apresentar a trajetória da antiga sala de cinema de Nova
Andradina, o “Cine Rex”, assim como seu significado para a população local, a percepção
de aspectos culturais e sociais do município e, para tanto, identificar os motivos que
levaram a o fechamento da sala.
A apropriação que se fez dela leva-nos a percebê-la como um local de significados
amplos, muito mais que um mero instrumento da indústria cinematográfica, mas sim como
um lugar onde seus frequentadores construíram lembranças de momentos marcados por
experiências ali vivenciadas.
De maneira ampla, para compreender a relação entre o cinema e a sociedade foi
preciso buscar pressupostos que dessem conta de aproximar esses dois temas ao debate
17 Dona Fátima. 18 Sr. João Defaveri.
12
historiográfico. Com isso, torna-se evidente que, pensar o cinema enquanto revelador de
práticas sociais, requer uma distinção dos diferentes tipos de abordagens que podem ser
feitas a partir deste artefato cultural. Procurou-se aqui dar destaque muito mais ao público e à
exibição que propriamente a aspectos relacionados ao filme.
Com relação ao fechamento da sala, ficou evidente que não apenas a televisão pode
ser considerada a grande vilã, responsável por deflagrar a decadência do Cine Rex, sendo
que, pensar o fechamento do cinema de Nova Andradina isoladamente torna-se um tanto
quanto desapropriado, haja vista que a bibliografia sobre a temática revela que a dinâmica
da exibição cinematográfica passava por acentuadas transformações, na qual manter uma
sala de cinema em funcionamento tornava-se cada vez mais inviável.
Para finalizar, podemos imaginar que ao término de cada sessão no cinema, os
espectadores se voltavam para fora para se envolverem em outras histórias, nas quais
passavam de meros espectadores a personagens principais, desta vez, protagonistas de
tramas não fictícias, muito menos acabadas. Histórias que a cada dia se construíam em meio
a vontades, escolhas e obrigações, constituindo, dessa forma, um tecido de relações sociais
produzidas pelos próprios indivíduos que, em paralelo a fantasia do cinema, vislumbravam
a vida cotidiana se desenrolar no município de Nova Andradina.
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