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ANDRELINO COTTA E A CARICATURA EM BELÉM DO PARÁ ENTRE
1920-1925.
Raimundo Nonato de Castro
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará
1. Introdução
O nome de Andrelino Cotta ganhou destaque quando mudou para a cidade de
Belém. Na capital do Pará, atuou como professor, no entanto, a sua principal atuação nos
primeiros anos foi nas redações dos jornais e revistas, principalmente na revista A
Semana1, quando no dia 02 de julho de 1921, Rocha Moreira2, proprietário do magazine
o apresentou à sociedade belenense como o mais novo caricaturista. Cotta tornou-se, ao
longo de sua trajetória, uma referência no campo da caricatura local, mostrando-se
extremamente atuante, haja vista que sobreviveu das suas produções. Trabalhou em
diferentes frentes, pois além de caricaturista, atuou como músico e artista plástico, assim,
é possível afirmar que se tornou um operário da arte e, como tal, lançou seu olhar sobre
os mais diversos pontos. Dentre eles, um merece destaque: o campo da ótica social, posto
que nos seus trabalhos se visualiza os diversos problemas sociais vividos na capital do
Pará, dentre os quais o abastecimento de água, a carestia de vida e os transportes públicos.
Outro elemento importante reside no cenário político vivido na capital do
Pará, durante os anos de 1920, na medida em que quem fazia oposição ao governo
estadual ou municipal corria o risco de ser perseguido e, essa se dava pela ameaça, ou
mesmo pela violência física. Talvez por isso, em alguns momentos, o jovem caricaturista
não tenha assinado os seus trabalhos. Outro ponto interessante reside na participação ativa
1 Circulou na cidade de Belém entre os anos de 1918 e 1943. Sendo considerada uma das principais e mais
duradouras revistas de generalidades do Norte do Brasil. Revista de propriedade de Manuel Lobato e
Alcides Santos e que circulou na cidade de Belém entre os anos de 1918 e 1943. Serviu como um divulgador
de ideias e como revelador de talentos, pois muitos intelectuais passaram pela redação deste importante
semanário. 2 José da Rocha Moreira, nasceu no Ceará e faleceu em Belém do Pará. Nesta cidade desenvolveu seus
estudos. Foi redator da Folha do Norte e da revista A Semana, colaborando permanentemente na Belém
Nova, revista que encampou a Semana Modernista de São Paulo. Publicou vários livros como: Brocatellos;
Versos pagãos, Pompas; Pan; entre outros. Informações disponíveis em:
http://www.fcp.pa.gov.br/images/dli/gbpav/espacos/obrasraras/pdf/cov.pdf. Acesso em: 03/11/2016.
de diversos artistas ocupando espaços nas redações dos periódicos, manifestando seu
posicionamento crítico, pelas letras, crônicas e imagens.
O periódico O Estado do Pará, na década de 1920, foi considerado o mais
feroz jornal de oposição em circulação na cidade de Belém. No periódico, Andrelino
Cotta encontrou o espaço privilegiado para intensificar as suas narrativas visuais, capazes
de apresentar a capital do Pará, enquanto uma cidade que sofria, com a falta de recurso,
devido à crise econômica vivenciada no Pará, desde os anos de 1912. O aspecto negativo
econômico impediu a realização de serviços básicos, como o abastecimento de água,
serviço de transporte entre outros.
Andrelino Cotta produziu representações, como alguém que detinha o olhar
diferenciado da cidade. Conseguiu mostrar as precariedades vividas na capital. Assim, as
imagens, além de possibilitarem aos leitores uma compreensão sobre a condição
econômica vivida, também fizeram o público rir da “frágil modernidade” vivenciada em
Belém.
Figura 1. CARAS E CARETAS. A Semana: Revista ilustrada. Belém, 02 de julho de 1921. Ano 4, nº 169.
2. Um jovem caricaturista na revista A Semana de Belém do Pará
Andrelino da Costa Cotta (1894-1972) nasceu na cidade paraense de Cametá,
em 30 de novembro. Filho de Roque da Costa Cotta e Olímpia de Leão Cotta. Estudou
música na Associação dos Artistas Paraenses e pintura na Academia de Belas Artes do
Pará. Foi professor do Conservatório de Belas Artes do Pará. Fez música de câmara no
Rádio Clube do Pará e deu recitais no Teatro da Paz e foi membro da Orquestra Sinfônica
Paraense. Era violoncelista e compôs pequenas peças para seu instrumento (SALLES.
1970). Cotta destacou-se pela produção artística, sobretudo após a sua vinda para a cidade
de Belém, ao que tudo indica, em julho de 1919, pois as primeiras referências ao pintor,
na capital do Pará, estão nas páginas do jornal O Estado do Pará, como professor do
Instituto Siqueira Mendes, na vila do Pinheiro (atual distrito de Icoaraci).
Assim, quando iniciamos o trabalho sobre a figura de Andrelino Cotta, nos
deparamos com um caricaturista bastante atuante no cenário paraense. Muito jovem
iniciou de maneira acalorada a sua participação na roda intelectual do período e escolheu
a caricatura como meio de ingresso numa das principais revistas de circulação local e
nacional, neste caso A Semana. Inserido, viu seu nome com mais frequência, nas páginas
dos periódicos e mãos dos leitores, estes em muitos momentos aguardavam as suas
“endiabradas” caricaturas, para rirem dos sujeitos e paisagens caricaturadas. Cotta foi
inserido na vida da imprensa paraense como um caricaturista de grande talento, teria
empolgado os redatores e o espírito dos leitores pela “graça e a flagrâncias”, na qual
copiava a figura dos seus caricaturados, “não os expondo ao ridículo, mas nem por isso
deixando de arrancar um sorriso a pessoa que manuseia a revista” (MOREIRA, A Semana,
02/07/1921).
Os primeiros traços delineados pelo caricaturista foram das características dos
colaboradores da revista, como Genaro Ponte Sousa, Marcos Hesketh, Thiago de Souza
e inúmeros outros. Andrelino Cotta fez com uma “perfeição admirável, apenas digna de
aplausos”. Para Rocha Moreira (A Semana, 02/07/1921) “é de prever que o não tenhamos
aqui, entre nós, por muito tempo, onde os talentos de sua tempera se anulam, por falta de
uma escola de aperfeiçoamento no gênero”. As palavras do redator tinham sentido, pois
outros caricaturistas e pintores haviam saído de Belém, como “J. Arthur e Antônio
Nascimento”. O redator assim referenciava acreditando na necessidade de aperfeiçoar as
“brilhantes qualidades de caricaturista”.
Andrelino Cotta, segundo os redatores do magazine, deveria realizar seu
aprendizado no Rio de Janeiro, na capital da república. Cotta encontraria o lugar onde
teria “uma educação esmerada”, o tornando nome “respeitável no manejo do lápis”. Neste
sentido, Andrelino Cotta caracterizava-se como dotado de inspiração e portador de um
pulso firme, sabia emprestar às suas produções “um humorismo delicioso”. Havia
encontrado na A Semana o lugar para desenvolver com qualidade.
Figura 2. A Semana: Revista ilustrada. Belém, 13 de agosto de 1921. Ano 4, nº 175
Nos anos 20, do século XX, uma das grandes questões sobre a caricatura,
residia em saber a sua finalidade e sua relação como arte séria? Cotta colaborou com esse
questionamento, pois na imagem acima mostrou um dos problemas para os rumos da
república, bem como o trato com os trabalhadores. O papel do garçom, pela imagem, é
realizado pelo patrão que questiona as consequências das greves, chamando atenção para
os caixeiros ausentes, ficando os patrões responsáveis pelos atendimentos aos clientes.
Cotta demonstra, assim, a sua maneira de ver o contexto das greves enfrentadas no Brasil,
na década de 20.
Na imagem podem ser vistos dois homens, o primeiro bem vestido, de terno
e chapéu apresenta-se com o rosto preocupado, aguardando o atendimento. O salão está
praticamente vazio. O garçom, com bule na mão esquerda e segurando uma espécie de
bandeja na mão direta, volta-se com ar de lamentação para reclamar da situação vivida
no momento. A questão da greve era séria e Cotta a relata de forma humorada e
melancólica.
3. Caricaturas: algumas considerações
As caricaturas serviam para apresentar situações provocadoras para a
sociedade, mostravam os males de forma humorada, e isso levou a diversos
questionamentos, por isso, Julião Machado3, em artigo publicado no jornal, O Paiz, de 20
de janeiro de 1920, questionou se a caricatura era uma arte, ao mesmo tempo, procurou
saber se o principal fim dela seria fazer as pessoas rirem. Para “muita gente está verdade
ainda pode parecer absurda e paradoxal. Não conviria vulgarizá-la e esclarecê-la o melhor
possível”? Confirmando sua tese buscou sua definição em Paul Guartier, em sua obra de
1911, intitulada Le rire et la caricature, onde afirmava:
Afinal, embora a caricatura encontre o riso no seu caminho, nada tem de uma
arte do riso, como muitos autores avançaram e é tida pelo preconceito corrente.
A confusão, em virtude da qual a apresentaram como essencialmente folgada
explica-se e até pode ser desculpada pelo frequente recurso que ela obtém e,
sobretudo, obteve, da charge, ou exagero aviltante. Não só não provoca o riso
inevitavelmente e a propósito de tudo – visto que há caricaturas que não fazem
rir e até as há tristes – assim, as Lorettes vieil lles, de Gavarni, ou o Doux pays,
de Forain, nunca passaram como alegres, bem como Le massacre de la rue
Transonain, ou L’ordre régne a Varsovie – mas ainda se pode acrescentar que
a caricatura é triste de inspiração e triste de fundo, mesmo quando provoca o
riso com o auxílio da charge, visto que a sátira se deve fixar essencialmente,
sobre o lado feio das coisas e os que mais contradizem o ideal do artista, com
exclusão de todos os outros” (MACHADO, O PAÍZ, 20/01/1920, p. 3).
3 Segundo Fonseca (2016) Julião Félix Machado nasceu em 19 de junho de 1863, na cidade de São Paulo
de Luanda, capital de Angola, e que era possessão colonial portuguesa. O pai de Julião era comerciante da
praça de Luanda e membro da Associação Comercial. Julião Machado estudou em Coimbra e depois em
Lisboa, Portugal. Porém os interesses o levaram para a vida boêmia. Retornou a cidade natal e começou a
trabalhar nos negócios da família. Causou escândalo, quando foram descobertos nos importantes livros de
contabilidade seus irreverentes personagens desenhados. Passou a satirizar a sociedade. Considerava que a
arte da caricatura “deveria ser independente” (p. 102). Estudou na França. No Brasil trabalhou com vários
nomes importantes, como J. Carlos e Olavo Bilac. Sempre atuando em revistas e jornais. Faleceu em 1930,
em Lisboa – Portugal.
Partindo dessa premissa, para Herman Lima (1943) a caricatura se mostrava
como “arte gentil”, pois era praticada em intervalos dos “conspícuos trabalhos do atelier
de uma grande escola de pintores italianos”. Como se tratava de um trabalho no qual, para
muitos teóricos, era comparado com o período da adolescência. Os caricaturistas
iniciavam essas atividades como uma espécie de passatempo, no qual objetivavam extrair
das imagens determinados traços pessoais, considerados absurdos e, em muitos casos,
inventavam onde não existiam. Importante essa manifestação, pois a caricatura se
apresentava como um elemento divulgador “dos acontecimentos contemporâneos”, a tal
ponto que a história, em muitos momentos, se vê forçada a recorrer a uma “expressão do
grotesco intencional duma charge do passado”, objetivando-se compreender a maneira
como os homens e as coisas do seu tempo se comportavam, “dado sê-lhe, assim o mesmo
apreço que a um palimpsesto ou a um códice” (LIMA, 1943, p. 6).
Ainda seguindo as referências de Lima (1943, p. 5) acerca do papel
desempenhado pela caricatura, no qual a destacava enquanto uma arma “dos tempos
modernos” e “tão poderosa que dispensa os excessos da deformação e da distorção”,
porém se evidenciavam nas produções caricatas, do início do século XX, justamente o
excesso de deformação e distorção. A imagem caricata, em muitos momentos, tornou-se
tão poderosa e chegou a representar “muito mais do que o escritor, como no caso de
Ângelo Agostini”, se tornou uma espécie de homem profético, pelas suas imagens.
Representavam as suas impressões dos momentos históricos vividos no Brasil Império,
por exemplo.
A maior parte dos trabalhos de Agostini tinham como objeto a figura do
imperador Pedro II. Apesar de ter sido representado de diversas formas, as imagens foram
bem recepcionadas pelo povo e, em muitos momentos a representação do Imperador o
apresentava como “sua conduta de homem honrado” (TAVORA, 1975, p. 14). Para
Araken Távora (1975) a simpatia despertada pela imagem de Pedro II manifestou-se ainda
mais pela tolerância para com os seus críticos, pois diversos “conselheiros e aduladores”
pediram o fim desse tipo de produção, já que em muitos momentos, o exagero das
caricaturas, mostraram o Imperador travestido ou metamorfoseado de galinha.
Neste sentido, a caricatura política apresentou-se, no caso brasileiro, como
uma fonte de um realismo, como fundamento de uma arte diferente, neste tipo de arte, os
desenhos apresentam elementos possíveis de observação do caráter físico e moral, embora
na caricatura não exista caráter, segundo Herman Lima (1943). Em contrapartida, o
desenho humorístico não se vincula a ideia de um desenho puro, pois não é, em muitos
casos, concebido em toda a liberdade, mas sob o signo da imaginação. Por essa razão, as
imagens caricaturais buscaram no desenho humorístico o “nivelamento de classes”, nas
palavras de Herman Lima, pois havia uma espécie de aproximação, mostrando-se certo
sentimento de prazer, contribuindo na formação artística das massas.
O alvo das caricaturas são justamente o grande público e como as imagens
eram oferecidas ao público, mesmo o homem analfabeto tinha acesso ao vê-las poderia
analisar, de acordo, com os seus padrões. Nery (2011, p. 244) diz que, neste caso, as
imagens são apresentadas enquanto uma “peça pronta para uma justa avaliação”.
Produzindo um efeito cômico manifestado por intermédio de análises implícita e
intensamente embutida, levando o expectador a apreciá-la de maneira distanciada.
Embora não tenham quaisquer identificações com o protagonista, o leitor vê a imagem e
dela manifesta a sua impressão cômica da representação.
Diferente das representações feitas sobre as cidades, como no caso do Rio de
Janeiro, São Paulo ou Belém, ou mesmo sobre personagens ilustres, como o Imperador
Pedro II, percebe-se a representação das imagens levando os habitantes ou súditos a
perceberem a realidade vivenciada. Em todas essas situações mostra-se o caricaturista
como crítico e guardião dos usos e “costumes da sociedade” (NERY, 2011, p. 232). O
autor da caricatura, em muitos momentos, observa o seu meio, aproveitando para anotar
as informações colhidas, ao mesmo tempo busca, nos documentos a sua disposição, os
elementos necessários para construir a sua narrativa visual.
Neste sentido, as imagens humorísticas, principalmente a caricatura para
Herman Lima (1943) tendem a nivelar as classes, pois elas podem assegurar ao
leitor/observador o mesmo sentimento de prazer, além de poder contribuir na construção
de uma educação crítica acerca da representação, mesmo da massa geral das populações,
porque são especialidades que, pela sua natureza e função social e política, se dirige e
interessam a um grande público.
Figura 4. A Semana: Revista ilustrada. Belém, 31 de dezembro de 1921. Ano 4. nº. 195.
Nesta imagem o debate fica por conta dos valores cobrados pelos aluguéis.
Cotta mostrou a preocupação residente nas exigências do proprietário com ameaçava a
suspensão do aluguel das casas. O encontro, segundo o caricaturista, ocorre no passeio
público, local onde diversos temas poderiam ser colocados em pauta. No caso da
representação, os homens aparentam certa idade. Pelos trajes é possível afirmar
pertencerem ao mesmo grupo social, a cena mostra ainda o conhecimento de ambos sobre
o tema recorrente no dia a dia da sociedade local.
Partindo dessa consideração, o professor Elias Thomé Saliba (2002) diz que
as caricaturas são objetos capazes de gerar uma narrativa cômica. Com isso, a produção
do humor consiste na construção de um sentimento do contrário, “provocado pela
reflexão, que não se oculta nem se converte em forma de sentimento como uma sombra”
(SALIBA. 2002, p. 25). Vale destacar, seguindo essa análise, as caricaturas são colocadas
como construções carregadas de dados históricos e sociais.
Assim, “a atitude humorística é vista como parte indistinta dos processos
cognitivos, pois ela partilha, como o jogo, a arte e o inconsciente, o espaço do indizível,
do não dito e, até, do impensado” (SALIBA. 2002, p. 28). Como um elemento histórico
é possível identificar, na representação humorística, fontes capazes de construir
racionalmente os elementos nelas apresentados. Neste caminho, a representação
humorística coloca-se como capaz de constituir-se, como forma privilegiada de
representar a história, demonstrando os elementos de ruptura e de contrariedade marcando
a narrativa histórica. Quando se volta à análise acerca da caricatura no Brasil vê-se com
a representação cômica uma marca na primeira república brasileira, mas que não nasceu
neste período, “certamente adquiriu novas dimensões” (SALIBA. 2002, p. 38). Mesmo
durante o Império os principais caricaturistas atuantes no Brasil tiveram liberdade para
produzir seus trabalhos, mostrando muitas vezes o Imperador em condições delicadas,
sem que houvesse por parte do monarca quaisquer tipos de retaliação.
Com o crescimento significativo da imprensa no Brasil, os jornais passaram
a carregar, em suas páginas, imagens com traços leves e baratos, espelhando, em muitos
casos, a maneira popular de representar-se, mostrava-se como um mecanismo de difusão
de opiniões sintetizadas, nas quais as aspirações, conquistas e a ideia do progresso
ganhavam espaço e adeptos. Havia por parte desses periódicos uma ideologia manifestada
pela maneira como apresentava o seu estilo de escrita e a busca de um público leitor.
Luciano Magno (2012) em sua obra sobre a história da caricatura brasileira enfatiza a
formar como a mesma adquiriu a sua relevância para a história nacional, construindo
narrativas caricaturais capazes de demonstrar de forma “mais expressiva que a palavra
escrita” (MAGNO, 2012, p. 24) um conjunto de ideias em pouco espaço. Dessa forma
essa arte foi capaz de comunicar de forma acelerada os aspectos sociais e políticos. Tanto
é que no Brasil monárquico a liberdade de expressão foi considerável, pois permitiu entre
outros o debate aberto acerca da república.
As caricaturas são, segundo Christie Davies (2011, p. 94) “objetos visuais e
materiais compostos por um indivíduo específico para um grupo específico de
indivíduos” e, devem circular objetivando atingir os resultados esperados, para tanto
utiliza-se de vários mecanismos de circulação, como o meio impresso ou eletrônico. As
produções caricatas seguem certo roteiro, quer dizer no momento da sua produção os
eventos mostram qual o circuito a ser percorrido e quais os tipos de imagens irão, de certo
modo, agradar ao público. Por seu turno a imagem editorial, em determinadas situações,
tendem a avançar em direção ao deboche, porém, em certos casos, a “intenção do autor
não é tanto enviar uma mensagem, mas, antes, provocar o humor, mesmo que para isso
necessite submeter seu objeto ao ridículo” (DAVIES. 2011, p 95).
4. Bolhas de sabão: um caricaturista ousado.
Os costumes foram um dos principais elementos representados por Andrelino
Cotta em suas caricaturas. Para isso, boa parte das imagens construídas para confrontar
determinadas situações apresentavam-se ricas em referências aos padrões sociais
constituídos. Em 26 de janeiro de 1924, A Semana publicou a imagem abaixo,
aparentemente descompromissada, contudo, pelo conjunto da cena, mostra a relevância
do poema, fazendo referência a um acessório tão comum no dia a dia das mulheres
belenenses, daquele período. Havia, com isso, a intenção de construir um modelo social
capaz de albergar novos padrões. Ao observa a mulher caricaturada, vê-se, primeiro a
intencionalidade de mostrar seus trajes, e segundo a discordância com a grande bengala
trazida no braço direito. Vale destacar, esse elemento tinha o uso mais comum entre os
homens e foi sendo incorporado à moda feminina.
Figura 4. A Semana: Revista ilustrada. Belém, 26 de janeiro de 1924. Ano 6. nº. 301
Cotta é ousado na sua produção porque além dessa representação, na mesma
edição da A Semana, outro texto intitulado “Bolhas de Sabão” voltava-se para diversos
conceitos. O autor, que não é identificado, chamou atenção para as senhoras de Belém,
as quais faziam uso de “bengalões”, justamente neste momento, até os homens usavam
“pó de arroz e pulseiras”. Seguindo a narrativa, apresentava as “Janeleiras” pelo
“Vocábulo” diferenciando as moças habilidosas na arte da costura, do bordado e do
“adubar” da panela, daquelas que nada entendem, em compensação escreviam textos para
jornais. Depois das “Janeleiras” chegava ao “Cachorro” nome representativo da lealdade,
quando fazia referência ao homem representava algo ruim. Já o “Burro” era um
quadrupede inteligente, no entanto, quando se adjetiva o bípede ficava evidente quem
deveria andar de quatro patas.
Importa destacar, no caso das caricaturas, no que diz respeito às suas
especificidades, apresentam características representativas capazes de revelar olhares
sobre o mundo, de modo a aproximar a algo considerado real. Muitas vezes, apresenta
elementos históricos um pouco distante das intencionalidades da história oficial, da
manipulação das intenções, de configurações as quais seduzem pela importância
adquirida pelas imagens ao longo da história e, em muitos casos, evidenciadas na
condição ambígua da caricatura.
Ora as caricaturas mostram-se como elementos, na sua composição,
apresentando diversos elementos sociais, em muitos casos não isoladas, pois eram
construídas para atender determinadas ações e intenções. Apresenta-se ainda desafiadora,
porque em muitos casos serviam para alertar sobre os comportamentos desviantes,
exibindo o desrespeito às normas e às regras. Via de regra o caricaturista demonstra o seu
olhar apurado, percebendo os deslizes cometidos pela população, por isso mostrava-se
ousada e desestabilizadora (PESAVENTO, 1993).
Figura 5. O Seguro morreu de velho... O Estado do Pará. Belém, 06 de abril de 1924.
Andrelino Cotta, com esta imagem, publicada nas páginas do periódico, O
Estado do Pará, demonstrava as suas habilidades, ao focar em temas comuns os quais
afetavam a população de Belém. Assim, o abastecimento de água foi apresentado como
uma carência constante em várias partes da cidade. A representação mostra com a
construção da narrativa focada na personagem criado pelo caricaturista, o Zé se mostrava
curioso com o comportamento da população, em verdadeiro ato de desespero buscava
assegurar a água para o banho e para o café da manhã, pelo menos enquanto o verão não
chegava. As personagens da imagem buscam assegurar a água, com todos os recursos
disponíveis, ou seja, utilizam-se de latas, pratos e afins. O Zé, da sua janela, pede calma,
para não irem com tanta sede ao pote. Quando se olha para a torneira ao lado da casa do
Zé, apenas gotas caem aos poucos, mostrando claramente, a precária situação enfrentada
pela cidade de Belém.
Soma-se a falta d’água a ausência de saneamento. As ruas facilmente são
alagadas, além disso, o matagal prevalecia no cenário urbano. Havia um conjunto de
situações as quais ocasionavam problemas como as doenças tão comuns nos primeiros
anos da república brasileira. Assim, ao construir esse tipo de representação, o caricaturista
estava consciente do seu papel como alguém capaz de apresentar os questionamentos
críticos sobre a capital do Pará.
Recém-chegado a Belém, Andrelino Cotta, deparou-se com uma cidade
marcada pela crise econômica tão preocupante para o estado, em especial, pela baixa do
preço do principal produto da região, no caso a borracha. Mesmo diante da crise havia
uma dinâmica social, que permitiu a inclusão deste pintor na redação das revistas. O
caricaturista foi recepcionado pelos editores da revista A Semana. De certo modo, viram
as suas qualidades artísticas, porém acreditaram que a sua permanecia duraria pouco
tempo, devido a sua capacidade de atuação, mas principalmente pela falta de escolas de
qualificação na cidade. No entanto, as pesquisas demonstraram o contrário, pois o pintor
cametaense não se ausentou de Belém, tendo objetivamente atuado em diversos veículos
de comunicação, sempre apresentando as suas caricaturas, charges e tipos sociais, como
pano de fundo do quadro social da cidade.
5. Andrelino Cotta: caricaturas de impacto social.
Cotta inicia sua aventura de caricaturista produzindo imagens impactantes, as
quais se conectavam com práticas, materiais, ideias e sua dimensão simbólica. Contudo,
percebe-se, em relação ao pintor, haver, partindo da análise de Le Goff (2013, p. 390)
“esquecimentos e os silêncios da história”, conduzindo a um processo de manipulação da
memória coletiva e a produção das imagens de Andrelino Cotta, permaneceu esquecida,
pois não foi possível perceber na historiografia a produção intensa deste artista
cametaense.
Figura 6. A vida Fútil. A Semana: Revista ilustrada. Belém, 20 de agosto de 1921. Ano 4, nº 176.
A primeira caricatura de impacto de Andrelino Cotta reproduzida na revista,
A Semana, toca num dos principais problemas da sociedade brasileira: os jogos de azar.
Essa prática se mostrava eficaz, atraindo, além dos adultos, os jovens. Contudo, para o
governo do Estado era necessário acabar com essa prática, no entanto havia um dilema
que, segundo Sousa Castro4 o jogo era destacado como contravenção punível, mas a
população o havia adotado como uma prática comum. Por isso, em Relatório apresentado
ao Congresso Legislativo do Pará, em 07 de setembro de 1921, solicitava “providências
necessárias e oportunas” (PARÁ. 1921, p. 66). Os debates contemporâneos, ao
caricaturista, demonstravam claramente a sua ligação com o momento histórico vivido e
os problemas sociais, representados pela imagem, causavam um impacto positivo, na
opinião dos republicanos.
O caricaturista, a partir de então, destacou-se pela intensa produção de
imagens e, elas recheavam as páginas do semanário A Semana e do jornal Estado do Pará
com temas variados. Os problemas econômicos que assolavam a urb ganhavam espaço
cada vez maior pelo lápis do artista cametaense. Na edição de 14 de janeiro de 1921, a
revista apresentou uma caricatura, na qual Cotta destacava o preço da farinha em
constante aumento. Na figura, o Zé, neste caso, representa o povo, de modo desesperado,
questiona a pressa da farinha em subir a escada, representando a elevação dos preços deste
produto no comércio paraense. A farinha era considerada essencial da dieta da população
do Pará, visto ser consumida com diversos outros acompanhamentos, como o açaí e o
peixe.
4 Antonino Emiliano de Souza Castro, segundo Carlos Rocque, o político paraense, foi eleito governador
em 1920, sucedendo a Lauro Sodré. Teve como maior empecilho a sua administração, a crise financeira
vivida no Pará. Segundo Rocque a crise não era mais do que reflexo da queda borracha, que arruinou a
economia “planiciária”. Ficou no governo até 29 de janeiro de 1925, quando passou o governo para Dionisio
Ausier Bentes. Foi várias vezes deputado federal. (ROCQUE, 1968, p. 1610)
Figura 7. A Semana: Revista ilustrada. Belém, 14 de janeiro de 1922. Ano 4, nº 197
O aumento constante do preço deste importante produto afetava boa parte da
população belenense. Vale destacar, a cena apresenta a representação da farinha como
uma mulher, simbolizando a carestia de vida, a qual afetava os habitantes, em especial,
da periferia da cidade e do interior do estado. Com a alta dos preços, não sabia, pela
caricatura de Cotta, os preços possíveis alçados com o passar dos dias, por esta razão a
preocupação do caricaturista. Embora essa imagem tenha sido publicada de modo isolado
nas páginas da revista, pois não havia, ao longo das páginas do magazine, quaisquer textos
indicando ou vinculando a representação, demonstrando, assim, a liberdade que
Andrelino Cotta tinha ao construir as suas narrativas visuais sobre os problemas
marcantes da cidade. Pode-se considerar, neste momento, o caricaturista poderia ter uma
“vocação para negociar, permutar e trocar” (MATTOS, 2010, p. 15), o que possibilitaria
a construção de elementos, os quais atendiam aos interesses da revista.
6. Considerações finais
Andrelino Cotta viveu a cidade de Belém marcada pela presença constante de
pintores, músicos e por uma efervescência teatral muito forte. Os anos 20, do século XX,
apesar de marcarem um momento de crise para a economia do estado, não impediram o
aumento das atividades artísticas vivenciadas na capital do Pará. O cenário era favorável
às apresentações das companhias teatrais. Nas páginas da revista era comuns fotografias
dos espetáculos realizados no suntuoso Teatro da Paz ou mesmo no Palace Theatre. Vê-
se claramente, o momento de crise econômica, apesar de intenso, levou intelectuais e a
elite local a buscarem assegurar determinados valores e a manutenção de atividades
voltadas para reforçar as ideias de “modernidade e civilização” para a cidade, com a
realização de atividades culturais direcionadas ao público intelectual. O sucesso dessas
atividades era tamanho, que as imagens dos protagonistas circulavam em fotografias nas
páginas dos jornais e revistas.
O circuito artístico, vivido em Belém, dos anos 1920, destacou-se como
favorável ao desenvolvimento das atividades artísticas de Andrelino Cotta, o que
possibilitou a compreensão e inserção do pintor no mercado gráfico paraense. Era jovem
e bem relacionado, isso levou a sua rápida aceitação na revista, A Semana, pela
interferência de um amigo dos proprietários do semanário. Mostrava-se disposto a
colaborar com o magazine, por isso, não demorou e suas primeiras imagens invadiram as
páginas da revista provocando riso sem ofender os seus caricaturados.
7. Referências Bibliográficas.
DAVIES, Christie. Cartuns, Caricaturas e piadas: roteiros e estereótipos. In.: LUSTOSA,
Isabel. Imprensa, humor e caricatura: a questão dos estereótipos culturais. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2011.
FONSECA, Letícia Pedruzzi. Uma revolução gráfica: Julião Machado e as revistas
ilustradas no Brasil, 1885-1898. São Paulo: Blucher, 2016.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013.
LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora José Olympio,
1963. 4 volumes.
MAGNO, Luciano. História da caricatura brasileira: os precursores e a consolidação da
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