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Angélica Karim Garcia Simão

Maria Angélica Deângeli

(Organização)

Tendências Contemporâneas dos Estudos da Tradução

Volume 1

Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas

Câmpus de São José do Rio Preto

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2015 - Tendências Contemporâneas dos Estudos da Tradução – volume 1 © Todos os direitos reservados para esta edição.

Organização: Angélica Karim Garcia Simão e Maria Angélica Deângeli

Projeto gráfico e diagramação: Luma Almeida Seleghim

Preparação e Revisão: Fábio Henrique de Carvalho Bertonha

Foto da capa: Pedras de Sete Pilões (Cristina Carneiro Rodrigues)

Conselho Consultivo

Adriana Zavaglia Universidade de São Paulo (USP)

Álvaro Luiz Hattnher

Universidade Estadual Paulista (Unesp)

Enilde Leite de Jesus Faulstich Universidade de Brasília (UnB)

Lauro Maia Amorim

Universidade Estadual Paulista (Unesp)

Leila C. Melo Darin Pontifícia Universidade Católica (PUC - SP)

Márcia do Amaral Peixoto Martins

Pontifícia Universidade Católica (PUC - RJ)

Maria Viviane do Amaral Veras Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Marize Mattos Dall’Aglio Hattnher Universidade Estadual Paulista (Unesp)

Mauricio Mendonça Cardozo

Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Paula Godoi Arbex Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

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Tendências contemporâneas dos Estudos da Tradução [recurso eletrônico]

/ organizado por Angélica Karim Garcia Simão, Maria Angélica Deângeli.

- São José do Rio Preto:

UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto, 2015.

2 v.

ISBN 978-85-8224-109-7 Tipo de arquivo: Texto

Requisito do sistema: Software leitor de pdf

1. Linguística. 2. Tradução e interpretação – Estudo e ensino. 3.

Traduções. I. Simão, Angélica Karim Garcia. II. Deângeli, Maria

Angélica. III. Título.

CDU – 8.035

Nesta obra respeitou-se o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE

UNESP - Câmpus de São José do Rio Preto

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SUMÁRIO

9 Apresentação

Cristina Carneiro Rodrigues

15 Uma análise paratextual das traduções francesas de Menino de Engenho Flora Marina Figueiredo Ajala e Marta Pragana Dantas

34 Riscando milagres: Lídio Corró e a tradução intersemiótica em Tenda dos Milagres André Batista

53 A tradução política de Langston Hughes Paula Campos

64 Literaturas não canônicas e a tradução de antologias de contos brasileiros Janaína Araújo Coutinho

84 Traduzir La Disparition de Georges Perec para o português: entretraduzir: entredizer o “e” interditado em O Sumiço José Roberto Andrade Féres

99 Apreendendo a ler a tradução: considerações acerca do projeto de tradução O Centauro Bronco, de Mauricio Mendonça Cardozo Renê Wellington Pereira Fernandes

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A tradução da literatura infantil: uma análise linguística no par inglês/português brasileiro Kícila Ferreguetti e Flávia Ferreira de Paula

155 Procedimentos tradutórios e teoria literária nas traduções de Geir Campos de Folhas de Relva, de Walt Whitman Bruno Gambarotto

175 O bilinguismo literário de Nancy Huston: escrita traduzida entre línguas Gabriela Oliveira e Maria Angélica Deângeli

191 Traite petit de titrologie : regard critique sur la traduction de titres

Slav Petkov

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Apresentação

O Bacharelado em Letras com habilitação de Tradutor do

Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Unesp, câmpus

de São José do Rio Preto, foi criado em 1978 e, na época, era o único

em uma instituição pública no Brasil. Os Estudos da Tradução eram,

ainda incipientes, por isso docentes e discentes do curso pensaram

em abrir um espaço para discutir questões teóricas e práticas acerca

da tradução. Com essa finalidade, programaram, em 1981, um

evento que pudesse preencher essa função, a Semana do Tradutor.

Suas primeiras edições foram modestas em termos

orçamentários e contaram com a participação de palestrantes e

conferencistas da região, principalmente da própria Unesp.

Inicialmente organizada quase exclusivamente pelo corpo discente,

aos poucos, com o apoio dos docentes do curso, a Semana passou

a contar com o auxílio de órgãos de fomento e passou a receber

grandes nomes dos Estudos da Tradução, tanto da vertente teórica

quanto da prática.

A partir do momento em que sua programação, mais ampla

e diversificada do que inicialmente, começou a ser mais divulgada,

muitos alunos e docentes de outras instituições passaram a

participar da Semana do Tradutor, vindos de diversas regiões do

Brasil.

Em 2014, houve uma inovação. Em sua 34. edição, a

Semana do Tradutor foi realizada junto com o I Simpósio

Internacional de Tradução (SIT). À discussão mais voltada para

alunos de graduação, incorporou-se a troca de experiências entre

pesquisadores do Brasil e do exterior.

Nesse ano, o evento contou com mais de trezentos

participantes inscritos, e mais de duzentos apresentaram trabalhos

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em forma de comunicação oral. Convidados e participantes dos dois

eventos vindos de quatorze Estados do Brasil e de dez outros países

(Áustria, Canadá, China, Colômbia, Espanha, Estados Unidos,

França, Inglaterra, Itália e Peru), apresentaram conferências,

workshops e comunicações orais que envolveram diferentes

aspectos dos Estudos da Tradução.

A diversidade da produção dos participantes, assim como

sua qualidade, fez nascer a ideia de publicação dos trabalhos

apresentados. Formou-se um Conselho Consultivo que cuidou da

seleção dos textos e as organizadoras agruparam-nos em dois eixos

temáticos.

Neste volume incluem-se artigos que abordam crítica de

tradução, tradução literária, assim como questões identitárias. A

disposição dos textos, que apresento a seguir, não é temática, segue

ordem alfabética pelo sobrenome dos autores.

Ajala e Dantas examinam alguns elementos paratextuais de

duas traduções francesas de Menino de engenho (1932), de José Lins do

Rego, uma publicada em 1953, outra em 2013. Concluem que a obra

mais recente tende a evidenciar a proveniência estrangeira do texto,

além de ser mais informativa que a anterior.

Tomando como base os Estudos da Tradução na pós-

modernidade, Batista questiona as concepções tradicionais de

originalidade, fidelidade e essência semântica. Para fazê-lo, examina

a prática, apresentada por Jorge Amado em Tenda dos Milagres, de

encomendar a artistas populares a pintura de milagres supostamente

realizados por santos. Como se trata de um processo que envolve a

transformação da narrativa oral do milagre em uma imagem, ou seja,

uma tradução intersemiótica, o autor argumenta que ambas as

atividades envolvem leitura e interpretação e o resultado é um novo

objeto, que suplementa e revitaliza o texto de partida.

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O texto de Campos propõe-se a, a partir da tradução que faz

de poemas do estadunidense Langston Hughes, discutir a tradução

de literatura de escritores afrodescendentes no Brasil, buscando dar

visibilidade às semelhanças e diferenças entre o contexto do Brasil e

o dos Estados Unidos. Suas traduções levam em consideração a

estética literária não canônica do autor e sua força como ativista

político e intelectual engajado.

Considerando a tradução literária no plano da mediação nas

trocas entre línguas diferentes, Coutinho concebe uma obra

traduzida como um novo produto, que passou por processos de

adaptação no novo contexto de recepção. É desse prisma que

analisa a obra traduzida Je suis favela (2011), uma coletânea de 22

contos brasileiros escritos por autores não canônicos, que tem como

objeto a favela brasileira na contemporaneidade e publicada pela

editora francesa independente Anacaona, pertencente a Paula

Anacaona, que se encarregou da tradução. Enfoca especialmente a

representação que se molda do Brasil e a imagem que se forma da

literatura brasileira contemporânea traduzida ao se levar aos países

de língua francesa uma literatura que retrata as periferias brasileiras.

Féres expõe como entretraduz La Disparition, de Georges

Perec, romance lipogramático sem uma vogal “e”, que narra o

desaparecimento dessa letra. Seu texto intitula-se, em português, O

Sumiço e nele o autor busca traduzir entre livros, religando os mais

variados intertextos entrelaçados, buscando, na maior parte das

vezes, não traduzir as palavras em si, mas traduzir entre elas, traduzir

o que lê nas entrelinhas, a metatextualidade que as une entre si e lhes

dá razão de ser – e dizer tudo também sem “e”.

Baseado especialmente em Zilly, Arrojo, Berman e Moraes,

Fernandes explora o projeto tradutório de Cardozo de dupla

tradução da novela “Der Schimelreiter”, do escritor alemão Theodor

Storm. O primeiro trabalho intitula-se A assombrosa História do

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Homem do Cavalo Branco, e apresenta-se com os contornos do

estrangeiro. O segundo, sobre o qual Fernandes se debruça

detidamente, denominado O Centauro Bronco, é transformado na luta

de um homem do sertão brasileiro contra a aridez do clima

nordestino.

Partindo do pressuposto de que traduzir é recontar e

reescrever, Ferreguetti e Paula examinam a tradução de literatura

infantil. As autoras analisam quatro obras com o uso de ferramentas

da Linguística de Corpus e com o aporte teórico da Linguística

Sistêmico-Funcional. Nas obras analisadas detectam a tendência a

mudanças na organização temática, na pontuação, no nome de

personagens, explicitação de imagens, assim como uso de itálicos e

caixa alta para ênfase.

Gambarotto parte da convergência entre estratégias e

procedimentos tradutórios e uma visada do objeto literário

orientada pela história e a teoria literárias para analisar duas

diferentes versões dos poemas de Folhas de relva, de Walt Whitman,

publicadas pelo tradutor e poeta brasileiro Geir Campos, uma em

1964, outra em 1983. Como seu interesse é investigar as

possibilidades de incorporação da teoria literária e da história crítica

à prática tradutória, discorre sobre a recepção de Whitman no Brasil

para, então, examinar as duas traduções de Campos. Em sua

avaliação, as diferenças que se apresentam são menos fruto de

posturas tradutórias que da cultura e produção literária que as

informa. Ao evidenciar um tradutor preso a seu(s) tempo(s), conclui

que o trabalho de tradução não se dissocia de uma recepção

assujeitada a determinações histórico-sociais.

Fundamentadas na concepção de que bilinguismo é um

acontecimento que atravessa a subjetividade dos que, por diversas

razões, partilham a experiência de viver entre línguas e culturas,

Oliveira e Deângeli examinam a questão da autotradução, ou

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reescritura, realizada pela autora canadense Nancy Huston.

Evidenciam que a tarefa evoca o entre-línguas e a alteridade, que a

escritora está na posição de sujeito entrelínguas, transpassada pelas

línguas que a constituem.

Petkov trata de títulos, das diferentes maneiras de nomear

textos, filmes, séries televisivas, estudo que Hoek e Genette

denominaram titulologia.1 Considera que a teoria da tradução

deveria incorporar o estudo dos títulos, exemplificando com uma

breve análise de alguns títulos em francês, inglês e búlgaro.

Temos, assim, representadas neste volume algumas das

principais tendências dos Estudos da Tradução contemporâneos,

tanto em termos de fundamentação teórica quanto de objetos

examinados.

Cristina Carneiro Rodrigues

Referência bibliográfica GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. Cotia: Ateliê Editorial, 2009.

1 Adoto aqui a tradução de Álvaro Faleiros para titrologie (Genette, 2009, p. 55).

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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UMA ANÁLISE PARATEXTUAL DAS TRADUÇÕES

FRANCESAS DE MENINO DE ENGENHO

Flora Marina Figueiredo AJALA

Marta Pragana DANTAS

1. Introdução

O presente artigo consiste em uma análise paratextual de

duas traduções da obra Menino de engenho (1932), de José Lins do

Rego, para o francês. Tem por objetivo comparar as escolhas

tradutórias e verificar o avanço nos Estudos da Tradução a partir

dos paratextos presentes em L’Enfant de la plantation (1953 e 2013).

A análise se baseia no modelo descritivo de tradução literária

desenvolvido por José Lambert e Hendrik Van Gorp (2011),

permitindo descrever as traduções e examinar as estratégias em

diferentes aspectos, bem como nas reflexões de Genette (2009)

sobre os paratextos editoriais – elementos que contribuem para a

produção de sentido e orientam a recepção de uma obra. A partir

do modelo proposto por Lambert e Van Gorp, a presente análise

das traduções francesas se detém nas seguintes questões

preliminares propostas pelos autores: os elementos que compõem

capa, coleção, página de rosto e quarta capa.

UFPB, Programa de Pós-Graduação em Letras, Brasil, [email protected] UFPB, Universidade Federal da Paraíba, Brasil, [email protected]

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A análise tem por finalidade verificar as implicações das

escolhas tradutórias em L’Enfant de la plantation. Busca-se, dessa

forma, contribuir para a reflexão sobre a produção de traduções de

obras literárias, mostrando a importância dos paratextos para a

contextualização de uma obra estrangeira.

2. Modelo descritivo de tradução literária

Para a realização da análise proposta, adotou-se o modelo de

descrição de tradução desenvolvido por José Lambert e Hendrik

Van Gorp, em 1985. O modelo prático elaborado pelos autores

objetiva uma análise textual que descreva e examine as estratégias

tradutórias. Segundo os pesquisadores, seu modelo proposto tem

como principal vantagem a possibilidade de ignorar as ideias

tradicionais que se relacionam a “fidelidade” e “qualidade”

tradutória, ideias essas que priorizam o texto-fonte.

O esquema para a descrição de tradução (Quadro 1)

apresentado pelos autores se divide em: dados preliminares;

macronível; micronível; e contexto sistêmico. Sendo que cada um

deles é subdividido em aspectos mais específicos.

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Quadro 1 – Reprodução do esquema sintetizado para a descrição de tradução.

UM ESQUEMA SINTETIZADO PARA A

DESCRIÇÃO DE TRADUÇÃO

1. Dados preliminares: - Título e página-título (por exemplo, presença ou ausência da indicação de gênero, nome do autor, nome do tradutor); - Metatextos (na página-título; no prefácio; nas notas de rodapé – no texto ou separado); - Estratégia geral (tradução parcial ou completa). Esses dados preliminares deveriam levar a hipóteses para análise posterior tanto no nível macroestrutural como no nível microestrutural.

2. Macronível: - Divisão do texto (em capítulos, atos e cenas, estrofes); - Título dos capítulos, apresentação dos atos e cenas; - Relação entre os tipos de narrativa, diálogos, descrição; entre diálogo e monólogo, voz solo e coro; - Estrutura narrativa interna (enredo episódico, final aberto); intriga dramática (prólogo, exposição, clímax, conclusão, epílogo); estrutura poética (por exemplo, contraste entre quartetos e tercetos em um soneto); - Comentário autoral, instruções de palco. Esses dados macroestruturais devem levar a hipóteses sobre as estratégias microestruturais.

3. Micronível (isto é, mudanças nos níveis fônico, gráfico, microssintático, léxico-semântico, estilístico, elocucionário e modal): - Seleção de palavras; - Padrões gramaticais dominantes e estruturas literárias formais (metro, rima); - Formas de reprodução da fala (direta, indireta, fala indireta livre); - Narrativa, perspectiva e ponto de vista; - Modalidade (passiva ou ativa; expressão de incerteza; ambiguidade); - Níveis de linguagem (socioleto; arcaico/popular/dialeto; jargão). Esses dados sobre estratégias microestruturais deveriam levar a um confronto renovado com as estratégias macroestruturais e, em seguida, a considerações em termos do contexto sistemático mais amplo.

4. Contexto sistêmico: - Oposições entre micro e macroníveis e entre texto e teoria (normas, modelos); - Relações intertextuais (outras traduções e obras “criativas”); - Relações intersistêmicas (por exemplo, estruturas de gênero, códigos estilísticos).

Fonte: LAMBERT; VAN GORP, 2011, p. 222-223.

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Pelo fato de o esquema ser abrangente e apresentar várias

relações específicas, Lambert e Van Gorp afirmam que “a tarefa do

estudioso será estabelecer quais relações são as mais importantes”

(ibid., p. 211). Dessa forma, entre os dados preliminares, elegemos o

título e página-título como elementos de análise. O título e a página

título abrangem aspectos como: capa, coleção, página de rosto e

quarta capa.

2.1 Dados preliminares

A análise dos dados preliminares aqui proposta se baseia na

reflexão de Genette (2009) sobre o paratexto editorial. Inicialmente,

resume paratexto como “aquilo por meio de que um texto se torna

livro e se propõe como tal a seus leitores” (Genette, 2009, p. 9),

afirmando que o texto

raramente se apresenta em estado nu, sem o esforço e o acompanhamento de certo número de produções, verbais ou não, como um nome de autor, um título, um prefácio, ilustrações, que nunca sabemos se devemos ou não considerar parte dele, mas que em todo caso o cercam e o prolongam, exatamente para apresentá-lo, no sentido habitual do verbo, mas também em seu sentido mais forte: para torná-lo presente, para garantir sua presença no mundo, sua “recepção” e seu consumo, sob a forma, pelo menos hoje, de um livro (ibid., p. 9, grifos no original).

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Genette (2009) afirma que o paratexto é uma “zona

indecisa” entre o interior (o texto) e o exterior (o discurso do mundo

sobre o texto) e faz referência a Philippe Lejeune, que nomeia os

paratextos como “franja do texto impresso que, na realidade,

comanda toda a leitura”. Genette conclui,

[...] com efeito, essa franja, sempre carregando um comentário autoral, ou mais ou menos legitimada pelo autor, constitui entre o texto e o extratexto uma zona não apenas de transição, mas também de transação: lugar privilegiado de uma pragmática e de uma estratégia, de uma ação sobre o público, a serviço, bem ou mal compreendido e acabado, de uma melhor acolhida do texto e de uma leitura mais pertinente – mais pertinente, entenda-se, aos olhos do autor e de seus aliados (ibid., p. 10, grifo no original).

O autor afirma que o paratexto desdobra-se em duas

modalidades: peritexto e epitexto. O peritexto consiste nos

elementos paratextuais que se situam em torno do texto, no espaço

do mesmo volume, como o título, o prefácio, as notas de rodapé

etc. Já o epitexto concerne aos elementos paratextuais que se

encontram a certa distância do texto, que se situam na parte externa

do livro, um suporte midiático (conversas, entrevistas etc.) ou uma

comunicação privada (correspondências, diários etc.).

Genette (2009) também aborda a questão de uma obra se

encontrar inserida em uma coleção e comenta que essa inserção tem

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seus objetivos e significados, inclusive a ausência de coleção,

segundo o autor, é sentida pelo público. Segundo o autor,

[o] selo de coleção, mesmo sob essa forma muda, é, pois, uma duplicação do selo editorial, que indica imediatamente ao potencial leitor que tipo ou que gênero de obra tem a sua frente: literatura francesa ou estrangeira, vanguarda ou tradição, ficção ou ensaio, história ou filosofia etc. (ibid., p. 26).

A capa apresenta algumas informações que são praticamente

obrigatórias, como: nome do autor, título da obra e selo do editor.

Além dessas informações, outras podem aparecer, entre elas:

indicação genérica, nome do tradutor, nome do prefaciador, retrato

do autor, ilustração específica, endereço do editor, preço de venda.

Na página de rosto, encontram-se geralmente título, nome do autor,

nome do tradutor e da editora, podendo conter indicação genérica,

epígrafe e dedicatória (GENETTE, 2009).

A quarta capa é um lugar considerado estratégico e seu

conteúdo pode variar. Pode apresentar o nome do autor e do título

da obra novamente, uma nota biográfica, um release, uma relação de

obras de uma coleção, citações da imprensa, comentários elogiosos,

preço de venda, entre outros (GENETTE, 2009).

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3. Análise dos dados preliminares

A partir do modelo de descrição de tradução proposto por

Lambert e Van Gorp (2011), e das reflexões de Genette (2009),

serão considerados para fins de análise: a capa, a coleção, a página

de rosto e a quarta capa das duas traduções do romance de José Lins

do Rego.

3.1 Capa

A capa da primeira tradução de J. W. Reims (1953) é

considerada clássica, já que contém as informações que, segundo

Genette (2009), são praticamente obrigatórias (nome do autor, título

e editora) e outras informações que, segundo o autor, podem

constar na capa. Em destaque, na metade superior da capa, aparece

o título da obra em uma fonte maior.

Já a capa da segunda tradução (2013), de Paula Anacaona,

apresenta, além das informações consideradas praticamente

obrigatórias, uma ilustração que preenche grande parte do espaço

disponível. A importância dada à ilustração não é perceptível apenas

no espaço disponibilizado para a mesma, mas também na opção

feita pela xilogravura, arte presente na literatura de cordel2

2 O Centre de Recherches Latino-Américaines da Université de Poitiers, na França (http://www.mshs.univ-poitiers.fr/crla/), torna conhecida, através de colóquios e jornadas de estudos internacionais, essa manifestação literária e popular brasileira.

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nordestina e na representação de um ambiente rural, oferecendo

indícios sobre o enredo da obra.

Figura 1: Capas de L’Enfant de la plantation 1953 e 2013

As demais informações presentes na capa das obras se

apresentam no Quadro 2.

Quadro 2 – Levantamento de informações presentes nas duas capas

Informação L'Enfant de la plantation (1953)

L'Enfant de la plantation (2013)

Coleção Collection Rive Ouest Collection Terra

Autor José Lins do Rego José Lins do Rego

Título L'Enfant de la plantation L'Enfant de la plantation

Indicação genérica Roman -

Prefácio Présenté par Blaise Cendrars -

Editora Deux Rives Anacaona

A capa da edição de 1953 não fornece qualquer informação

sobre a origem estrangeira da obra, nem mesmo indica que se trata

de uma tradução. A única informação que dá um caráter estrangeiro

à obra diz respeito ao nome do autor.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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Como dito anteriormente, a capa da edição de 2013 fornece,

a partir da ilustração, um caráter estrangeiro à obra, precisando

ainda, para os que conhecem a xilogravura e a literatura de cordel, a

origem nordestina e rural do romance. Como na primeira edição,

outra informação presente na capa que dá um caráter estrangeiro à

obra é o nome do autor. Diferentemente da primeira tradução, não

há indicação sobre a autoria do prefácio na capa, e o mesmo é

assinado pela própria Paula Anacaona.

É importante salientar que a tradução de 2013 foi publicada

por uma pequena casa editorial independente e que a tradutora Paula

Anacaona acumula as funções de editora, tradutora e prefaciadora

da obra; diferentemente da edição de 1953, com a tradução de J. W.

Reims e prefácio de Blaise Cendrars3 – prefácio que serve como

indício de que a Deux Rives era uma editora provavelmente de porte

maior que a Anacaona.

3.2 Coleção

A primeira tradução francesa de Menino de engenho se encontra

inserida na Collection Rive Ouest. Nas pesquisas feitas para

contextualização da editora, não foram encontradas informações

sobre o perfil dessa coleção. Porém, na quarta capa encontra-se uma

lista das obras da mesma coleção, provenientes de outros países e

3 Novelista e poeta suíço, segundo relata Carelli (1994), possui uma história particular com o Brasil, país reconhecido por ele como sua segunda pátria e onde permaneceu durante a década de 1920.

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literaturas (Quadro 3).Os títulos não apresentam ligação específica

com o Brasil; apenas sugerem que se trata de uma coleção de obras

estrangeiras contemporâneas. A forma como opera a coleção ao

introduzir a obra traduzida em um novo contexto, induzindo a sua

recepção, é objeto de análise de Adriana Pagano (2001) em seu

estudo exemplar sobre traduções e coleções de editoras no contexto

editorial do Brasil e da Argentina entre 1930 e 1950. Para a autora

(2001, p. 179-181) as coleções organizam a recepção da obra,

estabelecendo critérios de classificação que expressam a posição

ideológica de determinado grupo (os editores) e filtram as escolhas

feitas em meio a obras da literatura mundial a serem inseridas no

repertório nacional. Apoiando-se em Stewart (1993), a pesquisadora

afirma que a coleção é um espaço a-histórico que organiza e

categoriza. A diversidade dos autores que são apresentados em

conjunto, reunidos em uma mesma categoria, revela esse efeito

descontextualizante e a-historicizante que supõe a constituição das

coleções, como ilustra o caso aqui analisado da Collection Rive Ouest.

Quadro 3 – Levantamento das obras presentes na Collection Rive Ouest Collection Rive Ouest

Autor Obra Título original País de origem

H.-G. Wells

Dolorès, Roman (1946)

Le coin du Rêve, Un songe (1946)

Les Enfants dans la Forêt, Roman (1947)

Apropos of Dolores (1938)

The Happy Turning (1945)

Babes in the Darkling Wood

(1940)

Inglaterra

Emil Ludwig Quatuor, Roman (1946)

Quartet (1938) Alemanha

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Diana Frederics

Diana, Roman (1946) Diana: A Strange Autobiography

(1939)

Estados Unidos da América

Hart Stilwell Ville frontière, Roman (1947)

Border City (1945) Estados Unidos da América

Christina Stead

Vent d’amour, Roman (1947)

For Love Alone (1944)

Austrália

D.-H. Lawrence

Lady Chatterley, Roman (1947)

Lady Chatterley's Lover (1928)

Inglaterra

Marg. Campbell-

Barnes

Anne de Cleves, 4 ͤ femme de Henri

VIII (1947)

My Lady of Cleves: A Novel of Henry VIII and Anne of

Cleves (1946)

Inglaterra

Harry Reasoner

Douce Marys, Roman (1950)

Tell Me About Women (1946)

Estados Unidos da América

Gore Vidal Un garçon près de la rivière, Roman (1949)

The City and the Pillar (1948)

Estados Unidos da América

A segunda edição, por sua vez, encontra-se inserida na

Collection Terra e evidencia o aspecto estrangeiro da coleção ao

manter o termo “Terra” em português (língua estrangeira para o

público-alvo da tradução), além de situar a obra em um contexto

rural a partir da ilustração da capa. Além disso, na Collection Terra

estão inseridas outras obras brasileiras de temática rural, tais como:

Nossos ossos, de Marcelino Freire (Nos os, 2014), O quinze, de Rachel

de Queiroz (La terre de la soif, 2014) e Bernarda Soledade – A tigre do

sertão, de Raimundo Carrero (Bernarda Soledade, Tigresse du sertão,

2014).

3.3 Página de rosto

Na página de rosto da primeira edição, repetem-se as

informações constantes na capa sobre a coleção, o autor, o título, a

indicação genérica, o prefácio e a editora. Os elementos

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acrescentados informam o caráter estrangeiro da obra: o título

original Menino de Engenho abaixo do título traduzido e a indicação

Traduit par J. W. Reims.

No entanto, o que chama a atenção nessa edição, tanto na

capa como na página de rosto, é o fato de:

Na capa: encontra-se a informação sobre o prefaciador,

Blaise Cendrars;

Na página de rosto: repete-se a informação sobre o

prefaciador, cujo nome se encontra acima da indicação do

tradutor.

O reconhecimento da autoridade do poeta suíço no campo

literário francês e a sua relação com o Brasil conferem validade ou

crédito ao que ele afirma sobre a obra. Ao prefaciar o romance,

Cendrars empresta-lhe prestígio, em uma operação de transferência

de capital simbólico4 conforme descrito por Bourdieu (2002). Já a

informação sobre o tradutor se restringe às letras iniciais e ao

sobrenome, J. W. Reims.

A tradução de J. W. Reims (1953) não informa o texto de

partida utilizado, mas tudo indica que tenha sido uma tradução

4 Conceito desenvolvido por Pierre Bourdieu para se referir ao crédito ou prestígio atribuído a determinado agente (indivíduo, instituição etc.) ou prática social (a literatura sendo uma delas) e que se traduz em vantagem efetiva na disputa pelo reconhecimento e pela legitimação no espaço social.

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direta do português, tendo em vista o acesso de Blaise Cendrars à

obra5.

Na página de rosto da segunda edição é mantida a ilustração

presente na capa, repetem-se as informações sobre o autor, o título

e a editora, mas suprime-se a informação sobre a coleção. A

informação acrescentada torna claro o caráter estrangeiro da obra e

indica o texto de partida utilizado para a tradução, por meio da

menção: Traduit du brésilien par Paula Anacaona.

Figura 2: Páginas de rosto de L’Enfant de la plantation 1953 e 2013

5 Conforme o prefácio da primeira tradução francesa (1953) escrito por Blaise Cendrars: “Menino de Engenho é de 1932. Doidinho de 1933. Banguê de 1934. Em 1935, Paulo Prado me dando, em Paris, o Ciclo da Cana-de-Açúcar de José Lins do Rego disse-me: [...].” (tradução nossa de: “Menino de Engenho est de 1932. Doidinho de 1933. Banguê de 1934. En 1935, Paulo Prado en me donnant à Paris O Ciclo de Cana de Assucar de José Lins do Rego me déclarait: [...]”).

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3.4 Quarta capa

O espaço da quarta capa é tido como um lugar estratégico

do peritexto editorial. Na primeira edição, encontram-se nesse

espaço informações sobre as obras editadas pela Deux Rives,

presentes em outras coleções da editora (Éditions de luxe e Collection

«De quoi vivaient-ils?»), e as demais obras inseridas na Collection Rive

Ouest. Na parte inferior dessa mesma zona, encontra-se um

endereço, provavelmente da editora. Segundo Genette (2009), entre

as informações presentes na capa de uma obra, poderia figurar o

endereço do editor/casa editorial; no presente caso, a informação

em questão é disponibilizada na quarta capa.

Na quarta capa da segunda edição, encontra-se um trecho

do prefácio de Blaise Cendrars “La voix du sang” presente na primeira

tradução, retomando-se a estratégia de transferência do prestígio de

Cendrars, considerado uma autoridade no sistema literário francês.

O texto escrito por Cendrars e com referências ao Brasil (“Todo o

Brasil está nesse livro transparente”6) atesta o caráter estrangeiro da

obra, marcando-a como uma tradução. Além do texto, a quarta capa

apresenta uma ilustração que, à semelhança da capa, trata da obra

revelando o contexto rural ao qual faz referência. Outra informação

presente nessa zona é o preço de venda, localizado no canto inferior

esquerdo, próximo ao código de barras e ao endereço eletrônico da

editora.

6 Cujo título em francês é “Tout le Brésil est dans ce livre transparent.”

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Figura 3: Quartas capas de L’Enfant de la plantation 1953 e 2013

A partir da capa e da quarta capa da primeira edição, é

possível depreender a apresentação sóbria e mais clássica da obra,

direcionada a um público restrito7. A quarta capa não apresenta

informação sobre a obra em si, optando por contextualizá-la em

relação aos títulos publicados na mesma coleção, bem como às

outras coleções da editora, conforme já mencionado, em uma

estratégia de orientar a recepção no contexto de chegada e de

divulgar o acervo para o público. Sobre a capa e a quarta capa da

segunda tradução percebe-se a agradabilidade visual, se comparada

com a primeira edição, mais sóbria. Ao apresentar as ilustrações em

xilogravuras, a tradução de 2013 busca, segundo a tradutora, “fazer

a Revolução da Literatura”, e comenta:

[...] Na França, os livros são muito feios, muito clássicos e se as pessoas agora vão comprar e-book, é porque realmente o livro com um papel vagabundo, com uma capa feia, não atrai.

7 Noção desenvolvida por P. Bourdieu para designar “o escritor, o artista e mesmo o erudito, escrevem não apenas para um público, mas para um público de pares” (BOURDIEU, 2007, p. 108). A noção de público restrito se contrapõe à de grande público.

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Penso que isso [ilustrar os livros] é uma maneira de salvar o papel e também porque eu constatei que todos os meus amigos não leem, eu sou a única que lê [...] ideia era atrair um público mais jovem, que pode ser seduzido pelas imagens (AJALA, 2013, p. 41).

O quadro recapitulativo (Quadro 4) sintetiza os aspectos dos

dados preliminares, com o intuito de fornecer uma visão geral do

que foi analisado.

Quadro 4 – Quadro recapitulativo Aspectos Deux Rives (1953) Anacaona (2013)

Ilustração na capa Não Sim

Coleção Rive Ouest Terra

Título L’Enfant de la plantation L’Enfant de la plantation

Indicação genérica na capa

Sim (roman) Não

Nome do prefaciador na capa

Sim (Blaise Cendrars) Não

Menção à origem brasileira ou

estrangeira na capa

Nome do autor Nome do autor, nome da coleção e

ilustração

Ligação explícita entre a coleção e o

Brasil

Não Sim

Quarta capa Obras editadas Trecho do prefácio de Blaise

Cendrars

Página de rosto Coleção, autor, título, indicação genérica, prefácio, título original e indicação do

tradutor

Autor, título e indicação do

tradutor

O resultado dessa análise evidencia o caráter assumidamente

estrangeiro da segunda tradução (2013), por meio da ilustração na

capa (e página de rosto), da coleção com um termo em francês

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(Collection) e outro em português (Terra). A coleção também reúne

outras obras brasileiras e rurais, e não apenas estrangeiras, como é o

caso da Collection Rive Ouest, na qual a primeira tradução (1953) está

inserida.

4. Conclusão

A partir das reflexões de Genette (2009), e feita análise dos

dados preliminares, é possível confirmar a importância dos

paratextos para a contextualização de uma obra traduzida. Como

observado, as escolhas presentes na segunda tradução (2013), além

de revelarem o caráter estrangeiro por meio da ilustração e do nome

da coleção com um termo em língua estrangeira, contextualizam o

ambiente do enredo por meio de elementos presentes na ilustração.

Considerando o avanço nos Estudos da Tradução, também,

verificou-se que o período de sessenta anos que separa uma

tradução da outra é significativo para a produção e apresentação da

obra. O modo como a tradução em 1953 é produzida e apresentada

– menos estrangeira, sóbria e sem ilustração – contrasta com a

tradução de 2013, assumidamente estrangeira e informativa;

possibilitando ao leitor uma contextualização em um coup d'œil.

Por meio da análise descritiva é possível refletir sobre as

escolhas nas traduções e o significado delas na produção e inserção

de uma obra estrangeira em determinado país. As escolhas

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tradutórias podem revelar a relação existente entre os países

envolvidos nessa troca cultural.

Referências bibliográficas AJALA, Flora Marina Figueiredo. Menino de engenho (José Lins do Rego) na França: um estudo descritivo-comparativo de duas traduções. João Pessoa, 2013. 69 f. Monografia (Bacharelado em Tradução) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas: introdução, organização e seleção Sergio Miceli. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. ______. Les conditions sociales de la circulation internationale des idées. In : Actes de la recherche en sciences sociales, nº 145, p. 3-8, 2002. Disponível: http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/arss_0335-5322_2002_num_145_1_2793. Acesso em: 27 jul. 2013. CARELLI, Mario. Culturas cruzadas: intercâmbios culturais entre França e Brasil. Tradução de Nícia Adan Bonatti. Campinas: Papirus, 1994. CENDRARS, Blaise. La voix du sang. In: REGO, José Lins do. L'Enfant de la plantation. Traduit par Jeanne Worms-Reims. Paris: Deux-Rives, 1953. GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. São Paulo: Ateliê, 2009. LAMBERT, José; VAN GORP, Hendrik. Sobre a descrição de traduções. In: GUERINI, A.; TORRES, M.H.C.; COSTA, W.C. (Org.) Literatura e tradução: textos selecionados de José Lambert. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011. p. 208-223.

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PAGANO, Adriana S. “An Item Called Books”: Translations and Publishers’ Collections in the Editorial Booms in Brazil and Argentina from 1930 to 1950. Crop, nº 6, 2001. p. 171-194. REGO, José Lins do. Menino de engenho. Rio de Janeiro: Adersen-Editores, 1932. ______. L'Enfant de la plantation. Traduit par Jeanne Worms-Reims. Paris: Deux Rives, 1953. ______. L'Enfant de la plantation. Traduit par Paula Anacaona. Paris:

Éditions Anacaona, 2013.

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RISCANDO MILAGRES: LÍDIO CORRÓ E A TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA EM TENDA DOS MILAGRES

André BATISTA

Tenda dos Milagres, romance escrito pelo baiano Jorge

Amado, publicado em 1969, é uma narrativa basilar para se

compreender os principais componentes da produção literária

amadiana. O livro trata de discriminação, intolerância religiosa, mito

da democracia racial e sociedade de consumo, entre outras questões.

O romance é, segundo o próprio Jorge Amado, dentre os livros que

escreveu, o seu favorito, e Pedro Archanjo, personagem principal da

trama, aquele que mais se assemelha ao seu criador – apesar de ter

sido baseado também em outras figuras da vida real, como Manuel

Querino e Miguel de Santana.

No entanto, o título do romance está diretamente ligado a

outro – e também importante – personagem da narrativa: Lídio

Corró, o melhor amigo de Pedro Archanjo. A Tenda dos Milagres,

situada na Rua do Tabuão, nº 60, próximo ao Largo do Pelourinho,

era o ateliê onde Lídio Corró exercia seu ofício de artista plástico

cuja razão do nome está relacionada ao tipo de trabalho que ele

exercia – Lídio era riscador de milagres. Seu ofício se configurava da

seguinte forma: alguém que estivesse passando por um problema de

difícil solução – principalmente, casos de doença – fazia uma

UFBA, Instituto de Letras, Brasil, [email protected]

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promessa para determinado santo e, alcançada a graça, ou milagre –

como também era conhecido o feito –, o devoto ia até o riscador,

narrava-lhe de que forma o milagre havia ocorrido e encomendava

uma pintura que o representasse.

Quem fez promessa a Nosso Senhor do Bonfim, a Nossa Senhora das Candeias, a outro santo qualquer, e foi atendido, mereceu graça, benefício, vem às tendas dos riscadores de milagres para lhes encomendar um quadro a ser pendurado na igreja, em grato pagamento (AMADO, 1969, p. 17).

Os quadros nos quais se riscam milagres são formalmente

conhecidos como tábuas votivas, compostos por uma pintura e uma

legenda. Segundo Klebson Oliveira,

dividem-se em três planos: no terço inferior, a legenda com o nome do miraculado e as circunstâncias e data em que ocorreu o milagre; no terço médio, a figura do milagrado, em seu quarto, geralmente deitado em posição pré-mortuária; no plano superior, habitualmente à esquerda, representa-se a divindade, geralmente envolta em raios ou nuvens, que propiciou a graça (OLIVEIRA, 2008, p. 47).

Cada obra servia de modelo para “riscos” posteriores, apesar

do seu compromisso de representar um acontecimento, os

riscadores, em muitos casos, exerciam sua imaginação de forma

consideravelmente livre, particularmente, quando quem

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encomendava a obra não fornecia uma narrativa detalhada do

milagre, embora, em geral, seguissem, de alguma forma, um padrão

estabelecido. As tábuas votivas, por serem produzidas por artistas

oriundos das camadas mais populares e, geralmente, encomendadas

por fiéis pertencentes ao mesmo extrato social, não eram

consideradas propriamente manifestações artísticas. O material com

o qual os quadros eram confeccionados variava desde os de melhor

qualidade, como algum tipo de madeira nobre, até os mais

improvisados, feitos com pedaços de caixote. Normalmente, as

peças encomendadas não possuíam grandes dimensões, o que

tornava o custo acessível pra os devotos (SCARANO, 2004, p. 75).

A figura do riscador de milagres era bastante popular no

Brasil até a metade do século XX. O “risco” do milagre

(representação pictográfica de uma graça concedida por uma

divindade católica) é um dos vários tipos de ex-voto, isto é, um

“quadro, imagem, inscrição ou órgão de cera ou madeira etc. que se

oferece e se expõe numa igreja ou numa capela em comemoração a

um voto ou a promessa cumprida” (FERREIRA apud OLIVEIRA,

2008, p. 5). A variedade dos tipos de ex-voto é vasta, desde os mais

prováveis e “condizentes” com o sagrado até os mais insólitos. Além

dos quadros pintados pelos riscadores e das esculturas talhadas

pelos santeiros, existem “cartas, placas, objetos orgânicos, esculturas

trabalhadas em alta reprodutibilidade” (OLIVEIRA, 2009, p. 3). Em

inúmeras religiões, há uma relação “mercadológica” entre os fiéis e

as divindades, configurada em constantes barganhas pagas por meio

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de orações, bênçãos, sacrifícios, milagres, penitências e graças. No

âmbito do catolicismo brasileiro, o ex-voto é uma dessas

importantes moedas de troca dessa relação. A principal distinção

entre o risco do milagre e os demais tipos de ex-votos é o fato de

que um “procura comunicar-se, informando determinada

ocorrência” e o outro “intenciona apenas uma reverência”

(VALLADARES apud OLIVEIRA, 2009, p. 4). Restam, no Brasil,

poucos riscadores de milagres, “a marca da evolução da história

econômica é clara. Hoje, concluímos que a fotografia veio sobrepor

à pintura” (OLIVEIRA, 2008, p. 6), talvez pela sua praticidade e

imediatismo, talvez pelo seu custo relativamente baixo, ou ainda,

por produzir uma representação mais documental e verossímil.

Atualmente, os tipos de ex-votos mais recorrentes são os

escultóricos, principalmente, aqueles que representam as partes

afetadas do corpo humano e para as quais a graça é pedida.

Dentre as diferentes formas de ex-votos, a pintura é a que

mais aproximava o devoto do objeto, no que diz respeito à sua

feitura. A exigência da existência de um relato – tão minucioso

quanto possível – do milagre fazia do asceta um contador de

histórias, além disso, a relevância que atribuía ao santo e ao milagre

era refletida na sua eloquência e na riqueza de detalhes para que o

riscador pudesse captar, sem falhas, o caráter do milagre. O

contador tornava-se, então, o autor de uma narrativa, construtor de

uma “verdade palpável” a partir de outra, de cunho metafísico,

supondo que o riscador, construtor de um terceiro discurso,

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reproduziria aquela narrativa inicial, pois acreditava que essas

“verdades” fossem únicas.

O riscador de milagres era, portanto, responsável por recriar

uma narrativa oral em forma pictográfica, ou seja, por traduzir de

um sistema de signos (linguagem oral) para outro (pintura). A esse

tipo de transcriação, Roman Jakobson chamou de tradução

intersemiótica, definindo-a como a “interpretação dos signos verbais

por meio de sistemas de signos não verbais” (JAKOBSON, 2000,

p. 65). Poder-se-ia supor, portanto, que o trabalho do riscador seria

captar a “essência” do relato e transpô-la para a tela.

Por ser uma tradução intersemiótica, transcriação, ou, ainda

segundo Jakobson, uma transmutação, o trabalho do riscador de

milagres é uma recriação, uma ressignificação da narrativa do

devoto. Trata-se de uma nova narrativa, um novo olhar, uma

construção a partir daquilo que já é uma construção – o relato do

milagre. Construção, porque tudo o que se tem no momento do

relato é a palavra de quem conta (única referência ao “fato”). Essa

construção, ou representação, é uma interpretação do

“acontecimento”, uma tradução do “fato” plasmada a partir de um

determinado ponto de vista, ideologicamente fundamentado,

interessado, permeado pelas idiossincrasias do contador, assim

como o que narra o milagre a Lídio Corró: “foi milagre de primeira,

seu Corró, aquilo não era uma onça, era um despropósito de bicho

sem entranhas, os olhos, acredite, uma iluminação” (AMADO, 1969

p. 102). O evento ganha ares de grandeza na voz do narrador, o que

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justificaria a súplica, a relevância da intercessão do santo, conferindo

grandeza ao milagre, a gratidão do devoto e sua relação de débito

com o santo e, como consequência, a responsabilidade do riscador

em recontar, com seus traços, o feito da divindade, sem deixar de

incluir os detalhes mais significantes e ainda assegurar a qualidade

estética de que o milagre era digno.

A pintura ou “risco” do milagre é uma leitura e uma

interpretação do relato, sendo, portanto, uma releitura e reescritura

do “fato”, ou seja, uma nova construção, um novo texto, que tem

como referência inicial uma narrativa anterior. Para muitos, o fato

de a pintura ter como ponto de partida o relato pressupõe uma

dívida, uma obrigação de “fidelidade” ao milagre alcançado. Tal

pressuposto, porém, suscita alguns questionamentos, haja vista ser

o relato do milagre uma interpretação do “acontecimento”, a

construção de uma “verdade”, tecida a partir da perspectiva de, pelo

menos, um indivíduo, carregada de elementos do consciente e do

inconsciente desse sujeito que se somam ao contexto histórico e

cultural em que está imerso. Em outras palavras, uma leitura parcial

– leia-se parcial não como deficitária, mas como não absoluta ou

definitiva. Octavio Paz afirma que “a linguagem torna-se paisagem

e esta paisagem, por sua vez, é uma invenção, a metáfora de uma

nação ou de um indivíduo” (PAZ, 2009, p. 19). A “paisagem” que a

narrativa do milagre descreve revela não apenas o próprio milagre,

mas o contador e a comunidade do qual é parte e porta-voz. Ora, se

o relato do milagre é produto de uma leitura parcial, como

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estabelecer uma relação de “fidelidade” entre a narrativa oral e o

“fato”? A “fidelidade”, portanto, não nos parece cabível.

Poder-se-ia argumentar que a “fidelidade” esperada estaria

entre a narrativa oral e o “risco” do milagre, sendo a narrativa o

texto “original” e o “risco”, sua tradução. Se o relato do milagre

consiste numa construção passível de questionamentos quanto à

“veracidade” ou “integralidade do fato”, desestrutura-se o conceito

de “originalidade”, como é visto tradicionalmente, pois nem o

“original” é puro, ou seja, “nenhum texto é inteiramente original,

porque a própria linguagem em sua essência já é uma tradução” (id.,

ibid., 2009, p. 13). Como vimos anteriormente, a representação

pictórica do milagre é uma leitura interpretativa do relato, ou seja,

uma reconstrução do acontecimento, uma ressignificação desse

milagre e, assim, outro texto. Portanto, ainda que seja uma tradução,

a pintura do milagre é uma obra original, pois, “todos os textos são

originais porque cada tradução é distinta. Cada tradução é, até certo

ponto, uma invenção e assim constitui um texto único” (id., ibid.,

2009, p. 15). Essa outra obra é, também, carregada de sensibilidade,

percepção, impulsos e ponderações do artista aliados a seu lugar de

fala. A obra de arte, além de se construir sobre os rastros da narrativa

de partida, relaciona-se com todo o repertório de histórias,

experiências afetivas, sociais, políticas, culturais, artísticas e

sensoriais do autor, afinal, “cada elemento se constitui a partir do

rastro dos outros elementos da cadeia ou do sistema” (DERRIDA

apud RODRIGUES, 2000, p. 198). Esses elementos se relacionam

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“guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se já

moldar com o elemento futuro” (id., ibid., 2000, p. 198). Deparamo-

nos, então com a impossibilidade de se estabelecer uma relação de

“fidelidade” ou de pura e simples repetição do que foi narrado, tal

qual pretendia um dos clientes de Lídio Corró quando ordenou:

“Quero um quadro com tudo que contei, tudo, sem tirar nem pôr”

(AMADO, 1969, p. 102).

Essa impossibilidade pode ser explicada, também, pelo fato

de que o texto “original” não é um “objeto estável, ‘transportável’,

de contornos absolutamente claros, cujo conteúdo nós podemos

classificar completa e objetivamente” (ARROJO, 1986, p. 12).

Ainda a esse respeito, Rodrigues afirma que “o pressuposto da

equivalência [...] só teria lugar em um sistema em que houvesse um

centro, um ponto fixo” (RODRIGUES, 2000, p. 200), e o milagre,

a cada vez que contado oralmente, sofre algum grau de modificação,

não tendo, portanto, uma “essência” determinável, um significado

absoluto que possibilitasse uma correspondência linear entre as

diferentes formas de significação. A pesquisadora também defende

que “a tradução só poderia ser uma operação que transfere, ou

transporta significados, se houvesse a possibilidade do ‘significado

transcendental’ [...]” (id., ibid., 2000, p. 192).

No campo da tradução, incluindo-se a tradução

intersemiótica, a busca pela “fidelidade” é pauta de uma discussão

contínua, fundamentada numa hierarquia platônica entre o texto de

partida e a tradução. No caso do ofício de Lídio Corró, o milagre

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estaria no nível do ideal, a “essência” do acontecimento, assim, o

relato oral seria a representação, a materialidade justa que nos é

acessível, desprovida de essência, porém, autorizada pela sua

“proximidade factual” com o acontecimento. O “risco” do milagre,

na condição de representação da narrativa oral, seria, portanto, um

simulacro, “imitação afastada no terceiro grau da verdade”

(PLATÃO, 2005, p. 374). A ficção amadiana confirma a crença de

que uma tradução deve ser subserviente, pois está sempre em débito

com o texto de partida. Esse é um pensamento corrente quando se

avalia uma tradução intersemiótica – ou “adaptação”, como é

comumente chamada. Temos, como exemplo, inúmeros filmes

baseados em romances os quais, por inúmeros fatores, são

considerados “infiéis” à obra que lhes deu origem, sendo,

consequentemente, tratados como inferiores. Em contrapartida,

Robert Stam acredita haver uma “interminável permutação de

textualidades, ao invés de ‘fidelidade’ de um texto posterior a um

modelo anterior” (STAM, 2006, p. 21).

O exemplo de Lídio Corró vai ao encontro dessa crença na

subserviência. Pelo seu trabalho, o milagre ganhava cores, luzes e

podia ser visto e sentido durante anos, por todos os que se

dispusessem a contemplar a sua obra de arte. O ofício do riscador

perpetuava o milagre, dava-lhe sobrevida. Lídio era criativo,

“riscando o milagre portentoso, [...] deixa[va] a imaginação correr”

(AMADO, 1969, p. 102), ignorando a relação de subserviência para

com o milagre,

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[...] não pensa na grandeza da graça concedida, na categoria do prodígio, do próprio quadro decorrem seu sorriso e seu contentamento: da luz obtida, das cores e da composição difícil, com as figuras, a fuga dos cavalos, o santo e a mata virgem (AMADO, 1969, p. 99).

No âmbito da lógica platônica, não conseguindo reproduzir

uma suposta integralidade do relato oral, essa nova criação artística

não se configura como cópia, “uma imagem dotada de semelhança”

(DELEUZE, 1974, p. 263), mas como um simulacro, “construído

sobre uma disparidade, uma diferença, ele interioriza uma

dissimilitude” (id., ibid., 1974, p. 263). O “risco” do milagre era um

simulacro sim. Mas não o simulacro platônico, relegado a um posto

inferior, em eterno débito com a “essência”. Ao invés disso, o

“risco” do milagre, como força de criação, “encerra uma potência

positiva” (id., ibid., 1974, p. 267).

Pelo menos das duas séries divergentes interiorizadas no simulacro, nenhuma pode ser designada como original, nenhuma como cópia. Não basta nem mesmo invocar um modelo do Outro, pois nenhum modelo resiste à vertigem do simulacro. Não há mais ponto de vista privilegiado do que objeto comum a todos os pontos de vista. Não há mais hierarquia possível: nem segundo, nem terceiro [...] (DELEUZE, 1974, p. 267).

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Lídio não negava o acontecimento, mas subvertia o status quo

que submete o artista à mera reprodução, reconstruindo o milagre

conforme o sentia e o interpretava.

Não se pode dizer que a subversão do platonismo consista apenas em virar a pretensão do pretendente contra a fonte da pretensão, o simulacro contra o modelo; o fundamental de sua estratégia antiplatônica de glorificação dos simulacros é abolir as noções de original e derivado (MACHADO, 2009, p. 48).

Grande parte dos riscadores de milagres tinha a

preocupação de retratar o milagre seguindo à risca as palavras do

narrador, procurando incluir, no pequeno espaço do quadro, os

pormenores da obra divina, sem deixar de dar um lugar de destaque

à divindade que havia concedido a graça ao devoto, conforme

preconizava a cartilha do seu ofício. A razão de ser do “risco” não

era exaltar o perigo experimentado pelo fiel, nem sua recuperação

ou sua sobrevivência. O “risco” do milagre existia em função do

santo e de sua glória, assim, a representação pictórica da façanha só

deveria concorrer para a exaltação da divindade. Pode-se imaginar

que não restava margem a “desvios” ou interpretações que

parecessem muito particulares, pois os riscadores estavam não

apenas comprometidos com os fiéis que lhe encomendavam a obra,

mas também presos por um laço de reverência que os atava ao santo.

No entanto, Lídio Corró não se prendia a essas convenções. Para

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ele, sua arte não tinha apenas valor de culto. Era a expressão da sua

alma à qual mantinha uma relação de intimidade, era a sua obra, “na

meia-luz do fim da tarde, ao roxo clarão crepuscular, mestre Corró,

sincero e comovido, admira o trabalho terminado: uma beleza”

(AMADO, 1969, p. 104). Seu encantamento pelo próprio trabalho

chegava ao desejo de mantê-lo na Tenda dos Milagres, tal o

embevecimento provocado pelo quadro.

Por vezes, ao término de um milagre riscado na arte e no capricho, mestre Lídio Corró experimenta o desejo de desistir da remuneração, de reter o quadro, de não entregá-lo, deixando-o na parede da oficina. Os mais bonitos, pelo menos (AMADO, 1969, p. 107).

Lídio Corró tinha reverência pelos santos, conforme

atestado em sua pintura e nas legendas que compunham o quadro.

Entretanto, não condicionava seu trabalho à grandeza do santo. Seu

esmero em destacar a figura da divindade no quadro poderia

depender de quão tocante ou dramática julgasse ter sido a proeza:

“Vou caprichar no santo, ele fez por merecer” (id., ibid., 1969, p.

103). Para Lídio, por vezes, aquilo que o encantava no relato do

milagre não era a tensão ou o perigo de morte que rondava a cena.

Tampouco era o clamor do devoto ou a importância do santo. Lídio

se desviava de uma ordem estabelecida ao dar maior proeminência

a elementos que normalmente estariam em segundo plano em

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relação ao santo, demonstrado quando da confecção da tela que

trata do Senhor do Bonfim afugentando a onça:

Volta Lídio Corró, porém, à sua figura predileta e insubmissa: a onça rajada, inclemente, gigantesca, os olhos fuzilantes, e a boca, ai a boca a sorrir para o menino. O artista já fez tudo para apagar esse sorriso, essa ternura; deu à onça sertaneja porte de tigre e ares de dragão. É superior às suas forças, por mais feroz a pinte, ela sorri; existe entre a fera e a criança um pacto secreto, antigo conhecimento, imemoriável amizade (AMADO, 1969, p. 104).

Na tela de Corró, a onça cresce, fulgura mais que o

resplendor do santo, torna-se a figura central do quadro,

diferentemente do relato. Ao invés de ameaçar o menino, constrói

uma cumplicidade entre os dois cujo pacto é denunciado pelo

sorriso da onça. O felino, que antes simbolizava o “mal”, agora, na

tela do riscador, faz resplandecer uma luz que é própria do “bem”,

sorri, terno, revelando a Lídio sua “imemoriável amizade” com a

pureza, personificada pela criança. A tela pintada por Lídio Corró

foge dos padrões, subverte a “lógica” vigente, desestrutura os

fundamentos de uma ordem, assim, essa é a força do simulacro.

Reconhece o santo, mas louva o animal, trazendo das profundezas

um “antigo conhecimento”, o milagre do pacto entre a criança e a

onça. É o simulacro que se recusa a ser recalcado, nega o triunfo da

cópia, insiste em emergir e escandalizar, fazer com que o mundo

experimente a descontinuidade.

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A arte na tela tem vida própria e não põe fim ao jogo de

interpretação da narrativa oral. O “risco” de Lídio é uma das muitas

leituras possíveis do mesmo milagre. Outros riscadores, que

pintassem a graça alcançada pelo fiel, fariam-no de maneiras

diversas, sendo que nenhum deles faria, necessariamente, melhor ou

pior que o outro. Seriam todos fiéis, não ao milagre, mas à sua

própria interpretação do milagre, à sua força criativa. O jogo

interpretativo não cessa, pois “os signos se encadeiam em uma rede

inesgotável, também infinita, não porque repousam em uma

semelhança sem limite, mas porque há uma hiância e abertura

irredutíveis” (FOUCAULT, 2009, p. 45). Tal abertura leva cada

intérprete a pontos cada vez mais distantes de um referencial, que

alguns chamariam de “origem” ou “essência”. O narrador interpreta

o milagre, o riscador interpreta o relato, o contemplador interpreta

o “risco” do milagre e o descreve a um ouvinte que, por sua vez, irá

interpretá-lo à sua maneira. Essa cadeia se estende em todas as

direções, ramifica-se, fragmenta-se, refrata-se, seus elos se

tangenciam e se afastam novamente, resultando, nas palavras de

Foucault, no fato de que “nada há de absolutamente primeiro a

interpretar, pois no fundo tudo já é interpretação; cada signo é nele

mesmo não a coisa que se oferece à interpretação, mas interpretação

de outros signos” (id., ibid., 2009, p. 47). Criam-se, assim, novos

textos e diluem-se as possibilidades de “fidelidade à essência”, ao

“ponto primeiro”. Se um mesmo milagre fosse relatado a riscadores

diferentes, cada um dos quadros teria uma nova perspectiva do

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evento e permitiria a adição de um número infinito de outras

interpretações e outras obras de arte. Cada obra seria, então, um

suplemento, “uma parte que se adiciona a um todo para ampliá-lo,

um aditamento, um acréscimo. Nesse sentido, é algo extra, não

essencial, acrescentando a algo que supostamente está completo”

(RODRIGUES, 2000, p. 208).

A arte do riscador se une à voz do narrador numa relação de

cumplicidade e troca, sendo que o primeiro fornece a matéria prima,

o texto de partida, o acontecimento, enquanto o último propicia sua

perpetuação, a continuidade e o alcance mais amplo. Jacques

Derrida constrói a metáfora da relação matrimonial: “uma tradução

desposa o original quando os dois fragmentos unidos, tão diferentes

quanto possível, completam-se para formar uma língua maior que

muda todos os dois” (DERRIDA apud RODRIGUES 2000, p.

208). O milagre se transforma, ganha cores, ares e texturas que só a

arte lhe pode dar. A tela, por sua vez, não é só um receptáculo de

tinta e traços, é a materialidade da graça, a manifestação da crença

de um povo, credo que os ajuda a persistir na árdua tarefa de

sobreviver. Dá-se, assim, a aliança entre o relato do milagre e a obra

de arte, em uma transformação mútua.

A maioria das telas de milagres não possuía a identificação

do autor, possivelmente em sinal de reverência à divindade, que,

para a comunidade, era o “autor” do milagre. “O milagreiro não tem

a preocupação de assiná-los ou colocar qualquer sinal que os

identifique, razão pela qual o fazedor de ex-votos dificilmente é

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reconhecido por meio do seu trabalho” (CASTRO apud

OLIVEIRA, 2008, p. 54). Lídio Corró, no entanto, fazia questão de

assinar os quadros, marcando, assim, seu lugar de autor da obra de

arte. Ora, se o risco do milagre, mesmo sendo uma tradução, é um

novo texto, diferente da narrativa oral, realizado por outro

indivíduo, é perfeitamente coerente que se faça assinalar o lugar do

autor dessa nova obra. Sob o ponto de vista da tradição, o tradutor

é responsável por transportar uma carga de “significados”, fazendo

com que ela “chegue intacta ao seu destino [...] mas não deve

interferir nela, não deve interpretá-la” (ARROJO, 1986, p. 12).

Entretanto, não há “carga” que chegue “intacta”, as intenções do

autor do texto de partida não podem ser captadas, pois tudo o que

afirmamos ser a intenção do autor, nada mais é do que aquilo que

supomos ser sua intenção. O que cabe, então, ao tradutor, é a

interpretação do texto que lhe foi posto nas mãos, interpretação essa

que, como vimos anteriormente, está permeada de toda sorte de

elementos, que compõem o indivíduo/intérprete. De posse dessa

interpretação, o intérprete/tradutor constrói seu próprio texto, uma

atividade que envolve escolhas, posicionamentos, autonomia,

opinião, tornando-se, a partir daí, o autor de uma nova obra. Lídio

Corró, talvez diferentemente de outros riscadores de milagres (os

mais tradicionalistas, talvez) assume de bom grado sua condição de

autor (mesmo o sendo de maneira multifacetada e refratada) e se

utiliza dela para liberar sua expressividade e força criativa, rejeita a

função de mero transportador de uma “essência” semântica, talvez

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por saber ou intuir que não há uma “essência” a ser captada e

transposta. De fato, o que há são transformações operadas

principalmente pelo artista, na condição de autor, e nas relações com

o mundo que o cerca.

À luz dos Estudos Contemporâneos de Tradução, o ofício

do riscador de milagres, de Lídio Corró, configura a tradução de

relatos de feitos de milagres para a pintura, que, em circunstância

alguma, coloca-se em débito com a narrativa oral tomada como

texto de partida. O “risco” do milagre é um texto novo, construído

nas limitações que sua natureza pictórica lhe impõe, pois a oralidade

dispõe de recursos dos quais a pintura não dispõe – o que é evidente,

tratando-se de diferentes linguagens, duas formas de expressão, sob

determinado ponto de vista, antagônicas. Por outro lado, a pintura

consegue atingir o contemplador de uma forma singular,

despertando sensações que apenas essa forma de arte é capaz, e, no

caso do risco do milagre, dando à prática votiva uma dimensão

particular e uma forma de apreciação que vai além do universo

religioso. Desconstrói-se, por essa razão, qualquer ilusão de

“fidelidade ao original”, ou seja, ao relato oral. Porém há, ainda,

outros motivos pelos quais a expectativa de fidelidade cai por terra:

a “fidelidade” implica pureza, mas o texto de partida já se mostra

“impuro”, construído a partir de rastros de outros textos, de saberes

diversos, de um contexto histórico-cultural específico. Portanto sua

“originalidade”, assim como toda aura e carga valorativa, que esse

termo possa trazer, são questionáveis. Ademais, mesmo que o artista

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esteja, a priori, a serviço da religião, nem sempre assume o

sentimento de débito que o fiel tem para com a divindade. A

tradução é uma obra nova, “única”, apesar de também ser

construída sobre rastros de outros textos – inclusive e obviamente

do texto de partida. Finalmente, não há no texto de partida, um

significado absoluto que possa ser depreendido, decodificado e

transposto para outra linguagem. A construção desse novo texto, a

tradução para outra linguagem de signos, depende de um exercício

interpretativo, contínuo e mutável. Essa perpetuidade interpretativa

mantém o texto de partida no jogo das linguagens e das

interpretações. O “risco” na tela de Lídio Corró e de outros

riscadores é a sobrevida, a perpetuação, a multiplicação do milagre.

Referências bibliográficas AMADO, Jorge. Tenda dos Milagres. Rio de Janeiro: Record, 1969. 338 p. ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução: A teoria na prática. São Paulo: Ática, 1986. DELEUZE, Gilles. Platão e o simulacro. In: ___. A lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas. São Paulo: Perspectiva; EDUSP, 1974. p. 259-271. (Estudos) FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009.

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A TRADUÇÃO POLÍTICA DE LANGSTON HUGHES

Paula CAMPOS

James Mercer Langston Hughes nasceu em 1902 e faleceu

em 1967 e pôde testemunhar momentos históricos importantes na

vida social, política e cultural dos afrodescendentes nos Estados

Unidos da primeira metade do século XX. Como a história das

sociedades escravocratas nos mostra, mesmo após a abolição da

escravatura, os africanos que foram escravizados e seus

descendentes não tiveram direito à cidadania estadunidense. É

nesse contexto histórico que Langston Hughes nasce e, neste

mesmo momento, alguns movimentos na luta pelos direitos civis

surgem.

Em 1910, surge um movimento político chamado “New

Negro” (Novo Negro) que, em sua origem, remetia aos novos

africanos escravizados recém-chegados aos Estados Unidos. No

início do século XX, entretanto, significou uma resistência potente

contra a opressão, a favor do reconhecimento dos direitos humanos

básicos aos afrodescendentes.

Outro movimento foi o da “Associação Nacional para o

Desenvolvimento dos Afrodescendentes” que, em 1917, promoveu

um protesto contra as terríveis condições de vida às quais os negros

UFBA, Instituto de Letras, Brasil, [email protected]

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eram expostos naquele momento. Esse protesto ficou conhecido

como The Silent March (Março Silencioso)1, que foi uma caminhada a

partir do Harlem para o centro de Manhattan.

Alguns anos depois, nos anos de 1920, surgiu outro

movimento dos afrodescendentes norte-americanos, chamado

Harlem Renaissance, e o seu diferencial em relação aos movimentos

políticos anteriores, foi ter sido um movimento de caráter artístico-

intelectual do “Novo Negro”. Envolto nessa atmosfera sócio-

histórica, Hughes surge como escritor promissor, mas já mostrando

indícios de uma performance política aguçada.

Ainda muito jovem, aos 17 anos, junto a outros escritores

da época, idealizara este movimento político e cultural – o Harlem

Renaissance – que durou de 1919 até 1935. De acordo com David

Lewis, podemos marcar o início do movimento em 1919 com a

publicação de If we must die, poema de Claude McKay, e podemos

marcar seu final em 1935, quando houve o The Harlem Riot (O motim

do Harlem)2, em 19 de março.

Langston Hughes também foi tradutor e utilizava-se dessa

função de forma endereçada, de forma política. Ele via a tradução

como um meio de espraiar seus textos literários e de outros

escritores, como forma de compartilhar as experiências da diáspora

negra nos Estados Unidos, como também compartilhar as políticas

efetuadas na luta pela igualdade de direitos.

1 Tradução minha. 2 Tradução minha.

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Diversos pensadores e filósofos renomados na nossa

sociedade ocidental teorizaram sobre a tradução. A grande maioria

viu a tradução como uma função menor, como uma profissão não

grata, pois, no pensamento conservador, a tradução traía o

“original” e este perdia seu valor, já que haveria mais perdas do que

ganhos.

Um grande pensador do século passado, Walter Benjamin,

escreveu, em 1923, um ensaio que se tornou um marco dentro da

teoria literária e da teoria da tradução, pois, mesmo timidamente,

reivindicava o valor da tradução como a grande responsável pela

“sobrevivência” da obra traduzida, ou seja, de “corruptora” da obra

literária, ela se torna a “salvadora”, já que é por causa da tradução

que o texto vive mais e em outras culturas.

Muitos vieram depois, tanto para corroborar e suplementar

essa ideia, quanto para colocar-se contra. Mas a ideia que trago

comigo, de linha benjaminiana, é da tradução como a responsável

pela sobrevivência da obra e da nova vida que ela ganha na nova

cultura de que passa a fazer parte.

Digo isso também, pois tendo ou não contato com esses

textos, Hughes agiu pensando a tradução como responsável pela

vida e pela sobrevida da obra literária em outras culturas. Não é por

acaso que traduziu seus textos e de outros colegas afro-norte-

americanos para outras línguas, como traduziu obras literárias de

autores afrodescendentes de diversas nacionalidades para a língua

Inglesa.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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Além da sobrevivência da obra por mais tempo do que

talvez vivesse se tivesse ficado em sua cultura de partida, o poder

que a tradução de determinados textos possui dentro de uma

sociedade é imenso, inclusive, esse poder foi utilizado durante

séculos para criar estereótipos e perpetuar preconceitos. Uma vez

que pensamos que a tradução é direcionada para um determinado

público leitor, percebemos mais claramente as relações de poder

que perpassam a tradução. Ela pode formar identidades culturais,

criar determinadas representações de povos e culturas, além de

ajudar a construir a subjetividade desses leitores.

Venuti (2002, p. 299) discute que, nos países hegemônicos,

a tradução modela imagens de seus Outros subordinados, que

podem variar entre os polos do narcisismo e da autocrítica,

confirmando ou interrogando os valores domésticos dominantes,

reforçando ou revendo os estereótipos étnicos, os cânones

literários, os padrões de mercado e as políticas estrangeiras às quais

outra cultura possa estar sujeita. Nos países em desenvolvimento a

tradução modela imagens de seus Outros hegemônicos e deles

próprios que podem tanto clamar por submissão, colaboração, ou

resistência, que podem assimilar os valores estrangeiros dominantes

com a aprovação ou aquiescência, ou revê-los criticamente para

criar autoimagens domésticas mais oposicionistas (nacionalismos,

fundamentalismos).

Langston Hughes vê a tradução como potência de

resistência, como mais uma forma de resistir ao esmagamento

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geopolítico social. A tradução como um gesto político, que podia

(pode) remarcar os territórios, apagar e escrever por cima uma nova

imagem. É um poder simbólico, que muitos países hegemônicos

utilizaram durante séculos para fins diversos, mas, em seu maior

propósito, subalternizar a cultura do Outro.

Esse poder simbólico foi utilizado pelas empresas coloniais

com o objetivo de recalcar até o quase apagamento das culturas e

das línguas locais a fim de destruir subjetivamente aqueles sujeitos

que foram colonizados. Um dos grandes pensadores da diferença é

Homi Bhabha, que traz questões interessantes sobre tradução

cultural e o papel potente que figuras com identidade “híbrida” têm

dentro de sociedades sob o julgo de uma hegemonia branca.

Seus pensamentos se coadunam com a própria figura de

Langston Hughes e seus escritos, pois ele trabalha com a ideia da

potência dos sujeitos que ocupam a posição de “entre-lugar”.

Hughes é esse sujeito híbrido, do “entre-lugar”, pois mesmo sendo

“americano” nascido nesse espaço geográfico, não tinha direitos

iguais aos outros americanos brancos e daí vem sua potência.

Ele é potente, pois se constrói em meio a duas vivências, e

passa a agir nas fronteiras, friccionando as relações de poder,

rasurando os espaços que antes eram “naturalmente” ocupados pela

ideia hierarquizante de matriz europeia. Podemos inclusive

perceber essas questões claramente no poema abaixo, escrito por

Langston Hughes.

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Eu, também, canto a América Eu, também, canto a América Eu sou o irmão mais escuro. Eles me mandam comer na cozinha Quando a visita chega, Mas eu gargalho, E como bem, E cresço forte Amanhã, Eu comerei à mesa Quando as visitas vierem. Ninguém ousará Dizer para mim, “Coma na cozinha”, Então. Além disso, Eles verão o quão lindo eu sou E se envergonharão- Eu, também, canto a América.3

A atenção de Bhaba se dirige justamente a esses sujeitos e

às formas como eles se construíram e se empoderaram. O teórico

também busca verificar quais as estratégias de representações que

utilizaram para se inserirem nessa comunidade como sujeitos e

como produtores artísticos e culturais. Além dos meios que

desenvolveram para se infiltrarem e rasuraram as redes

hegemônicas de representações.

Neste poema, podemos perceber estratégias como a

reversão de certos valores: o primeiro é a ideia de cidadania que era

3 Tradução minha.

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negada aos descendentes dos africanos (fato que perdurou até 1968,

quando da eclosão dos Movimentos de Direitos Civis, nos Estados

Unidos). O poeta reivindica o direito de sujeito nascido naquele

local geográfico de participar de sua política e de ter direitos que a

cidadania oferecia. Reivindica o direito de cantar, de louvar a

“América”, pois, mesmo sua manifestação cultural não sendo a

central (a instituída), como nascido naquele território, ele tinha o

direito de pertencer, de ser considerado irmão pelos cidadãos

brancos.

Também, reivindicava que suas formas culturais e

representativas deixassem de ser marginalizadas a fim de

participarem do jogo com o centro. Isso fica claro quando,

metaforicamente, demonstra que suas manifestações, sejam quais

fossem, deviam ceder lugar para aqueles que já estavam

“originalmente”, anteriormente e “naturalmente” ocupando um

determinado lugar; pois quando as visitas chegavam, ele deveria se

esconder e “comer na cozinha”. Porém, quando ele ri, quando

gargalha a respeito dessa situação, ele descobre um meio ou uma

forma de burlar aquela configuração, aquelas representações.

Ele diz que se fortalece e que, um dia, todo aquele arranjo

sociorracial e os estereótipos em torno daqueles sujeitos iriam se

transformar e, por isso, diz que, em breve, ele “comerá à mesa”, ou

seja, fará parte de uma configuração política, social e artística a que

anteriormente não pertencia, e ninguém ousará dizer que não

poderá ocupar aquele espaço.

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Além da vergonha pelas atrocidades cometidas contra os

afrodescendentes, eles descobririam sua beleza, a beleza do Outro, a

beleza que era forçadamente recalcada naquela sociedade. Além

dessa resposta a esse arranjo sociorracial ao qual ele estava inserido

nos EUA, Hughes dá uma resposta direta a um dos grandes poetas

norte-americanos: Walt Whitiman, que é considerado uma das

grandes vozes nacionais.

O poema I Hear America Singing4, de Whitiman, trata de uma

ideia de América, de nacionalismo, da qual os negros não faziam

parte. Apesar de ser sabido que Whitman foi um defensor da

abolição da escravatura e de colocar em seus poemas sujeitos que

antes não eram citados, como pobres, pessoas do campo e mesmo

os afrodescendentes, essa América que cantava essa voz em busca

de sua “nacionalidade”, por uma voz independente das vozes

europeias, não incluíam os descendentes dos africanos.

Por isso, Hughes dá uma resposta bastante direta,

reivindicando seu direito de cantar a América, de fazer parte da

América, visto que ele havia nascido nesse território. Contudo,

mesmo sendo um cidadão estadunidense, não possuía direitos civis,

como os outros. Destarte, reclama o seu direito de ser “irmão”, e

ser o irmão mais escuro, como diz no poema.

Ele cria estratégias para reconfigurar aquelas representações

a que estavam submetidos, por meio de sua agência cultural,

introduz o “novo” no mundo. Utilizo, como expressão, o título de

4 Eu escuto o canto da América (Tradução minha).

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um dos capítulos do livro O local da cultura, de Bhabha, “Como o

novo entra no mundo”. O intuito de Hughes era que esses escritos

de autores afrodescendentes pudessem alcançar o maior número de

leitores possível e, assim, as ideias que circulavam naquele momento

histórico pudessem ser compartilhadas com outras nações que

também participaram da diáspora africana.

O meu maior desafio no processo de tradução dos poemas

de Langston Hughes é a possibilidade de perder sua força política

ou que essa voz potente fique sufocada pela minha voz. Contudo,

a minha maior aliada é a possibilidade, ou as possibilidades, que a

tradução cultural me oferece no momento em que possibilita a

redemarcação de posições, o movimento dos signos centrais,

propiciando novas significações e ampliando as possibilidades de

representações e de discursos.

Esse contradiscurso da tradução cultural junto ao próprio

posicionamento não canônico (canônico como sinônimo de forma,

molde europeu) de Hughes, possibilita a ideia de que as diferenças

de gênero, etnia, história e geografia não sejam impedimento para

que essa tentativa de sobrevivência e vivência textual seja feita. A

tradução cultural tira da redoma os ideais de supremacia cultural, de

raça, gênero e etnia, permitindo um fluxo contínuo de

transformações. Ela reescreve a própria história da história da

tradução.

Escolho a mesma ferramenta (a tradução) que outrora havia

sido utilizada para reforçar estereótipos negativos sob determinados

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povos e que espalhara discursos ideológicos de exclusão, mas que

agora utilizo para espalhar contradiscursos como os de Langston

Hughes. O autor/tradutor/intelectual lutou contra estereótipos

negativos em relação aos povos da diáspora africana e contra a

violência com que esses povos foram excluídos de qualquer forma

de existir, seja política, social ou culturalmente.

E é inspirada por Hughes, que enxergava a tradução como

uma forma de sobrevivência de seus textos e como uma ação

política, que sigo no propósito de continuar um trabalho feito por

ele durante anos e que teve tanta reverberação ao ponto de encantar

de forma avassaladora, uma jovem latino-americana, nos anos 2000,

fenotipicamente branca e que supostamente não seria afetada pelos

seus escritos.

Referências bibliográficas BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. BRAZILLER. G. The Langston Hughes Reader. New York: Ninth Printing, 1958. DELEUZE, G. Post-scriptum sobre a sociedade de controle. In: Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. DERRIDA, J. A estrutura, o signo e jogo no discurso das ciências humanas. In: A escritura e a diferença. São Paulo: Editora Perspectiva,1995.

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FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. FOUCAULT, M. Nietzsche, Freud e Mark – Theareum Philosoficum. São Paulo: Princípio Editora, 1997. GILROY, P. O Atlântico negro. São Paulo: Editora 34, 2001. VENUTI, L. Globalização. In: Escândalos da tradução: por uma ética da diferença. Tradução de Laureano Pelegrin, Luciléia Marcelino Villela, Marileide Esqueda e Valéria Brando. Bauru: Edusc, 2002.

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LITERATURAS NÃO CANÔNICAS E A TRADUÇÃO DE ANTOLOGIAS DE CONTOS BRASILEIROS

Janaína Araújo COUTINHO

1. Introdução

O presente artigo intenciona discutir algumas relações entre

a literatura não canônica brasileira traduzida para a língua francesa,

tendo como corpus a obra Je suis favela (2011), buscando compreender

a relevância desse processo para as trocas culturais entre os países

envolvidos. Assim sendo, discutiremos os efeitos da tradução de

antologias de autores alocados fora do eixo sacralizado e suas

implicações para a formação da identidade da literatura brasileira

contemporânea por meio do gênero conto.

Desde cedo, a literatura se apresentou como veículo capaz

de transpor as barreiras históricas e geográficas, fazendo com que

as especificidades culturais dos povos pudessem interagir entre si.

Criada para ser a concretização da oralidade, a mesma foi utilizada

de acordo com as necessidades de cada época e, dessa forma,

perpassou os campos da moralidade (literatura pedagogizante de

Charles Perrault), do registro documental histórico, como também

serviu de apoio para o ensino de línguas. Por vezes, era concebida

como leitura despretensiosa, isto é, aquela em que se busca o prazer

UFPB, Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes, Brasil. [email protected]

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tão somente pelo ato de ler.

Para que fosse possível ultrapassar barreiras linguísticas, foi

necessário utilizar o ato de traduzir que, como a própria literatura,

também tem sua gênese situada em tempos passados. De início,

tradutores experientes se dedicavam à tradução literal, privilegiando-

se o texto puro, ou seja, o conjunto de palavras e suas relações.

Porém, viu-se que tal escolha se punha insuficiente, uma vez que era

necessário levar em consideração o que vinha atrelado ao texto

escrito, ou seja, a cultura a que o mesmo pertencia. Desse modo,

emergiram-se os estudos sociológicos da tradução defendidos por

Pierre Bourdieu e reproduzidos por Heilbron e Sapiro (2009), nos

quais a mesma é compreendida por meio das peculiaridades

culturais capazes de demarcar as especificidades próprias de cada

nação, relacionando dialeticamente com o campo e a cultura de

chegada.

Partilhando dessa nova abordagem, o presente artigo

também visita outros teóricos, a exemplo de André Lefevere (2007),

quando este enriquece os debates acerca da tradução, pondo-a na

categoria de texto reescrito, ou seja, de texto original recriado em

novo contexto, permitindo-lhe ser visto de modo distanciado do

texto base. Outra contribuição relevante de Lefereve (2007) é o

modo como são concebidas as antologias, sejam elas de contos ou

de poesias, e como as mesmas podem formar a identidade literária

dos países envolvidos.

Acerca do assunto proposto, indagamo-nos: Qual é a

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imagem do Brasil composta via literatura contemporânea traduzida

e escrita por autores não canônicos presentes na obra Je suis favela

(2011)? Vejamos o que traz o presente estudo.

2. Literatura e tradução sociológica: um encontro necessário

Ao estarmos diante de um texto literário, colocamo-nos em

contato, direta ou indiretamente, também e, sobretudo, com

culturas, aspectos sociais e políticos, desse modo, acabam por

ocupar a posição de formadores de identidades nacionais, regionais

ou mesmo individuais. Refletindo a esse respeito, e tendo a literatura

como foco, Antoine Compagnon, em seu livro O demônio da teoria:

literatura e senso comum (2012), argumenta que a literatura, seja oral ou

escrita, exerce, sobre os homens, certo poder capaz de sensibilizá-

los para situações singulares, tornando-os quase dependentes dessa

matéria.

[...] há um conhecimento no mundo e dos homens propiciado pela experiência literária (talvez não apenas por ela, mas principalmente por ela) um conhecimento que só (ou quase só) a experiência literária nos proporciona. Seríamos capazes de paixão se nunca tivéssemos lido uma história de amor, se nunca nos houvessem contado uma única história de amor? (COMPAGNON, 2012, p. 35)

De acordo com esse teórico, à literatura, é delegada a função

de uma instituição habilitada a coferir àqueles que dela utilizam

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ensinamentos capazes de despertar conhecimentos que ora

poderiam permanecer adormecidos. Ressalta-se ainda que à

literatura é permitido, no caso de registro escrito, ser vista como

fonte documental para estudo nas mais diversas áreas do

conhecimento, uma vez que toda produção literária é construída

dentro de uma realidade histórica específica.

Quando imaginada como produto da criatividade e nascida

para o deleite daqueles que a querem ingênua, a literatura pode, por

vezes, ir ao encontro desse pensamento e assumir postos relevantes

dentro da coletividade, pois, “a literatura pode estar de acordo com

a sociedade, mas também em desacordo; pode acompanhar o

movimento, mas também precedê-lo” (COMPAGNON, 2012, p.

37). Desse modo, a literatura se constituiu como forma

independente de expressão artística capaz de servir como pano de

fundo para o estudo de inúmeras abordagens e disciplinas.

A tradução, como a literatura, desde sua gênese, vem

recebendo olhares diferenciados, resultantes dos inúmeros estudos

que se aprofundam com as necessidades surgidas com a passar do

tempo. De início, ela se deu via perspectiva morfológica de texto, ou

seja, era realizada palavra a palavra, excluindo assim a necessidade

de compreender o contexto de produção do texto literário base e

suas relações com o campo de recepção.

Indo de encontro a essa abordagem, os estudos tradutórios

viram emergir a preocupação com todo o processo que envolve o

ato de verter um texto escrito para outra língua, pois é sabido que a

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linguagem literária se apresenta como um campo movediço, em que

há a possibilidade de algumas interpretações e também o

reconhecimento que em cada palavra traduzida podem ser

encontradas especificidades capazes de tornar singulares as culturas

que envolvem o texto de partida.

Desse modo, a perspectiva sociológica da tradução ganha

força na academia devido a sua abrangência no que concerne olhar

com mais acuidade todos os sujeitos que compõem os processos

tradutórios como também os campos de produção e de recepção.

Sob essa ótica e baseados na teoria de Pierre Bordieu, Heilbron e

Sapiro (2009) afirmam que

uma abordagem sociológica da tradução deve levar em conta diversos aspectos das condições de circulação transnacional dos bens culturais, a saber, a estrutura dos espaços das trocas culturais internacionais, os tipos de exigências – políticas e econômicas – que pesam sobre as trocas, os agentes da intermediação e os processos de importação e de recepção no país de destino (HEILBRON; SAPIRO, 2009, p. 16).

Por meio dessa abordagem, é notório que a tradução se

configura como um relevante modo de permitir os intercâmbios

culturais como também a necessidade de se levar em conta o campo

de recepção, pois é ele que, na maioria das vezes, guiará o processo

tradutório escolhido por todos os agentes envolvidos na

materialização do livro, sejam eles o editor, o autor, o tradutor, entre

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outros. Assim sendo, além de conhecimentos linguísticos

aprofundados, o tradutor deverá ser sensível às culturas envolvidas,

principalmente, àquela que receberá essa literatura estrangeira.

Nesse momento o tradutor poderá optar por fazer do texto

traduzido um texto independente, no qual ele, o tradutor, passa a

ocupar a função de autor. Esse novo produto, moldado às regras do

sistema de recepção, será testemunha de processos domesticadores, em

que características inerentes ao campo de partida podem ser

modificadas ou mesmo apagadas, deixando o texto inteligível para a

cultura de chegada. Porém, se há o apagamento de características

culturais que possivelmente motivaram a tradução, o que fará a

cultura receptora consumir essa tradução? Indo ao encontro do

pensamento de Venutti (2002), as especificidades culturais impressas

nas literaturas traduzidas poderão ser intercambiadas,

exclusivamente, por meio da linguagem, assim, mostrando-se

necessário que “adaptações” sejam feitas, provando que esse

processo se dá tão somente por meio de relações de força.

Compreender a efetivação dessas trocas culturais e do

reconhecimento autoral intermediados pela tradução de textos

escritos é compreender a independência da obra traduzida quando

lida e apreendida pelo público receptor. Segundo Helenice

Rodrigues (2010), na efetivação do ato tradutório, ou seja, do ato

de reapropriação de um texto, ocorrem transformações e deformações. Assim, quando um livro, uma teoria, uma tendência estética,

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ultrapassam as fronteiras (espaciais, temporais, e virtuais) entre espaços culturais distintos, sua significação, subentendida por seu contexto (intelectual e histórico), modifica-se pelo simples fato da defasagem (em geral, temporal) da transferência. Logo os objetos de análise são os mais distintos possíveis: os processos de seleção, de mediação, de recepção, de mestiçagem, de tradução, de migração, de intercâmbio etc. (RODRIGUES, 2010, p. 208).

De acordo com o mencionado, a ideia que defende a

tradução como mediadora nas trocas entre línguas diferentes é

corroborada por Rodrigues (2010) que, de modo claro, explicita a

necessidade de observar a obra traduzida como um novo produto,

que passou por processos de adaptação no novo contexto de

receptação que, por sua vez, possui histórico social e político

diferentes do lugar de partida do texto dito original.

Ainda tratando do texto traduzido visto como

independente, André Lefevere, em seu livro Tradução, Reescritura e

Manipulação da Fama Literária (2007), afirma que a tradução se

constitui no ato de reescrever algo sob a ótica do tradutor ou do

sistema que o cerca. Desse modo, o agente que verte culturas é

coautor e responsável por fazer com que escritos que ora estiveram

adormecidos sejam consumidos por leitores intitulados de “não-

profissionais” (LEFEVERE, 2007, p. 13), ou seja, leitores que não

estão na academia ou que não são estudiosos da literatura, mas que

fazem com que a produção e a venda do livro se perpetue.

Ainda segundo Lefevere (2007), os reescritores ainda são

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responsáveis por fazer com que cânones consagrados continuem

inalterados devido à aceitação e corroboração por parte dos leitores

profissionais e de instituições que continuam a ter a percepção que

a literatura se divide em alta e baixa literatura, resultando em alta e

em baixa reescritura (op. cit., p. 15).

O que é notório no campo da reescritura é que seu consumo

por parte dos leitores não-profissionais é muito mais expressivo que

o consumo do texto base, ao qual vemos atreladas questões como o

não acesso ao sistema linguístico da cultura de partida como

também, quando se trata de literatura mais antiga, o não acesso à

obra em si, por ela estar, talvez, esgotada ou por estar escrita em um

sistema não mais usual. Além de ser responsável pelas trocas

culturais, a reescritura colabora ainda para a composição da

identidade literária do país de partida perante aqueles que

consomem essa literatura traduzida, seja ela contemporânea ou não.

No passado, assim como no presente, reescritores criaram imagens de um escritor, de uma obra, de um período, de um gênero e, às vezes, de toda uma literatura. Essas imagens existiam ao lado das originais com as quais elas competiam, mas as imagens sempre tenderam a alcançar mais pessoas do que o original correspondente e, assim, certamente o fazem hoje (LEFEVERE, 2007, p. 18-19).

Confirmando a assertiva de Lefevere (2007), as reescrituras

continuam sendo mecanismos de formação de imagens

representativas e, seguindo esse mesmo caminho, vê-se que as

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literaturas não canônicas vão lentamente ganhando espaço com o

intuito de atualizar e alargar essa imagem literária que ora se

consolidou tanto nos cânones nacionais como também

internacionais e que, um dia, por escolhas desconhecidas, ficaram

relegadas a poucos leitores que buscavam, fora da sacralidade

acadêmica, por literaturas que se aproximassem com suas

experiências de mundo, fazendo-os quase parte integrante da

narrativa.

3. A Tradução de literaturas não canônicas e a coletânea Je suis favela

Como vimos acima, a literatura e, por conseguinte, a

tradução como reescritura, divide-se historicamente em alta e baixa,

ou seja, em canônica e não canônica. Mas o que, então, configura

uma literatura como canônica ou não canônica? Quem, dentro do

processo de produção literária, consagra as escrituras e seus autores?

De início, faz-se necessário reforçar que traduzir pressupõe relações

de poder entre as nações envolvidas, sejam essas relações políticas,

econômicas ou culturais. Nesse processo, cada país e cada língua

possuem créditos e reconhecimento internacional que interferem

diretamente nas escolhas do material a ser vertido para outro idioma,

como também na forma como essa inserção cultural se dará. De

acordo com Heilbron e Sapiro (2009), cada nação, devido a sua

relação com o campo político e econômico, ocupa um espaço

específico no capital literário internacional, intituladas de hiper-central

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(inglês), central (francês) e periférica (português). Desse modo, a

escolha de textos para compor o hall das literaturas canônicas

depende também dessa relação com o campo literário internacional

e como as literaturas específicas de cada nação são produzidas,

segundo as regras de aceitação dentro e fora do campo de origem.

De acordo com o exposto, as literaturas são assim nomeadas

de acordo com fatores externos aos textos e a seus autores, a

exemplo dos mecenatos – pessoas que arcavam financeiramente

com a produção do livro –, da aceitação em centros de difusão

literária internacional como Paris, que, segundo Casanova (2002),

constituiu-se como centro literário consagrador, como também o

recebimento de prêmios nacionais e internacionais que conferem ao

autor reconhecimento e exposição perante os leitores profissionais

ou não.

Canonizar, de acordo com Otte (1999), é um termo que se

origina na igreja que, buscando universalizar pessoas e ações,

formulou uma lista, o cânon, servindo-se de referência para

pesquisas, reconhecimento e respeito perante os outros. Desse

modo,

sancionar, consagrar, canonizar, todos esses termos têm sua origem no âmbito clerical e apontam para uma das preocupações principais da Igreja, ou seja, a de subtrair determinados objetos e personagens do mundo profano para universalizá-los no espaço e eternizá-los no tempo, de torná-los imortais. As diversas Academias Nacionais de Letras parecem ter se

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inspirado nos processos clericais de canonização (OTTE, 1999, p. 12-13).

Assim, como afirmou Otte (1999), as academias se

apropriaram do termo religioso para formular sua própria lista de

imortais literários, compondo o panorama que continua a ser

perpetuado nas instituições de ensino. Porém, apesar de haver

normas que vão da estilística textual até a forma como são

abordados os temas, inúmeros autores e suas obras ficam relegados

ao conhecimento de uma parte da população que se dedica a dar voz

a essa literatura. Vale ressaltar que esse movimento em torno do

reconhecimento não se refere a uma questão valorativa da escrita,

por se configurar inferior ao molde sacralizado, mas porque ainda

não conseguiu ser reconhecida como representante da literatura

nacional. Dessa forma, muitas das literaturas não canônicas estão

sendo descobertas e inseridas lentamente na academia, como forma

de dar voz às minorias que, por algum motivo, ficam relegadas a

contextos específicos de produção.

Outra possibilidade que emerge lentamente no campo da

produção do livro, visando a conferir o reconhecimento que essas

literaturas não sacralizadas buscam receber, está sendo percebida

por meio de intercâmbios culturais, por meio da tradução que,

interessada em ampliar e renovar seus moldes de atuação, dedica-se

a apresentar ao público estrangeiro uma imagem diferenciada

daquela já sedimentada da cultura de partida. Assim sendo, vê-se a

necessidade de alargar o cânone em busca de atualizá-lo e,

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sobretudo, de aproximá-lo daqueles leitores não-profissionais,

alterando, dessa maneira, as características que compõem a

identidade literária em questão, tanto para aqueles de mesma

nacionalidade como para os de nacionalidade outras. A esse

propósito, Venuti (2002) afirma que

a tradução exerce um poder enorme na construção de representações de culturas estrangeiras. A seleção de textos estrangeiros e o desenvolvimento de estratégias de tradução podem estabelecer cânones peculiarmente domésticos para literaturas estrangeiras, cânones que se amoldam a valores estéticos domésticos, revelando assim admissões e exclusões, centros e periferias que se distanciam daqueles existentes na língua estrangeira (VENUTI, 2002, p. 130).

Ciente desse processo dependente, no qual as relações de

poder presentes na tradução influenciarão nas escolhas feitas e,

assim, na constituição das representações identitárias por meio da

literatura, vê-se nas literaturas não canônicas o caminho, como dito,

de permitir que vozes ora abafadas sejam ouvidas e analisadas como

fonte fértil de dados sociais que cercam o contexto de produção.

Outro dado relevante no processo de

tradução/representação é a constituição de coletâneas ou antologias

de literaturas não canônicas, pois, como afirma Venuti (2002), as

relações de trocas culturais, quando ligadas à tradução, pressupõem

escolhas, sejam elas ideológicas ou políticas. Desse modo, caberá ao

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projeto de tradução selecionar os textos, sejam poemas ou contos,

que representarão, por meio da escrita, a cultura estrangeira em

questão. Em seu capítulo Antologia – Antologização da África (2007),

Lefereve expõe claramente o quanto essa representação é

dependente do mercado editorial, o qual impõe um número

específico de páginas, reduzindo e impedindo uma real

representação literária.

Pensadas para versarem em torno de um mesmo tema, as

coletâneas se tornaram o produto preterido de editores que buscam

se inserir no campo do livro e por isso se debruçam sobre traduções

de autores já conhecidos pelo público, conferindo assim certa

porcentagem de acerto na relação aceitabilidade/retorno financeiro.

Desse modo, quando se trata de tradução de literaturas não

canônicas, as coletâneas ganham públicos que normalmente se

distanciam da realidade narrada pelos autores, fato que se confirma

em Lefevere (2007).

Uma grande parte do público de poesia africana hoje é branca. As primeiras tentativas de canonizar poetas africanos e projetar uma imagem da poesia africana não foram realizadas por negros africanos, mas por brancos europeus e americanos. Uma vez que o público da poesia africana é relativamente pequeno, os editores tentarão fazer o maior número possível de leitores potenciais comprarem as antologias que eles publicam. O resultado é competição, mas também diversidade de seleção, ao menos desde 1973, quando novos editores tentaram entrar no

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mercado oferecendo seleções de novos poemas para seu público potencial (LEFEVERE, 2007, p. 202).

Assim sendo, fica explícito que o projeto de tradução, além

de formador de identidades, é também o mecanismo pelo qual se

afirma o caráter prático/financeiro da indústria do livro, fazendo

com que escolhas sejam realizadas também pela via econômica.

Esse mesmo movimento das relações entre as

representações, as literaturas não canônicas e a competição

mercadológica é também verificado em traduções de autores

brasileiros que, buscando se dedicar a temas pertinentes ao

cotidiano das minorias, produzem obras que vão ganhando espaço

além das fronteiras geográficas.

Um exemplo é a obra Je suis favela, uma coletânea de contos

brasileiros, impressa em 2011 pela editora francesa Anacaona,

composta por autores não-canônicos e que tem como mote a favela

brasileira e suas particularidades discutidas pela ótica da

contemporaneidade. Violência doméstica, abuso sexual infantil,

tiroteios entre traficantes e polícia, população refém da situação

socioeconômica são temáticas que ensejam os vinte e dois contos.

O interesse em levar à França a escrita de autores brasileiros

atuais marginalizados1 surge com a criação, em 2009, das Éditions

Anacaona, uma editora francesa independente, pertencente à Paula

1 Referimos-nos aos autores ainda desconhecidos do grande público e que por isso vivem à margem das discussões em instituições responsáveis por disseminar a literatura.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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Anacaona, agente que atua nas funções de tradutora e editora,

escolhendo materiais que devam ser traduzidos e publicados com o

selo Anacaona. Voltada exclusivamente para a literatura brasileira ou,

como informa o endereço eletrônico da editora, “Une passerelle de

diffusion de la littérature brésilienne en France”, a editora se dedica a

publicar traduções de livros de autores pouco conhecidos do grande

público, ao lado de autores nordestinos consagrados como Rachel

de Queiroz e José Lins do Rego.

É interessante perceber no trabalho da Anacaona que alguns

textos brasileiros iniciaram seu contato com o grande público via

língua francesa, uma vez que obras como Je suis favela, foram

compostas para os leitores francófonos, remetendo-nos diretamente

ao estudo feito por Lefevere (2007) acerca da poesia africana. O que

queremos dizer é que se trata de uma reunião de contos feita para

ser publicada, primeiramente, em língua francesa, o que não implica

dizer que os textos originais não circularam antes em língua

portuguesa. Em 2012, as Éditions Anacaona lançam a tradução da

coletânea para o português, Eu sou favela, utilizando-se dos mesmos

recursos gráficos encontrados na versão francesa, tanto na capa

quanto no interior da obra.

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Figura 1: Publicação em 2011 Figura 2: Publicação em 2012

Como é possível observar, na capa, não há a indicação de se

tratar de uma tradução de obra brasileira. O que pode levar o leitor

a supor a origem do texto é o termo “favela”, que, historicamente

está atrelado à imagem do Brasil. Somente na folha de rosto se

encontra a referência a qual cultura pertence a obra: “Traduit du

brésilien par Paula Anacaona”. Aqui, verifica-se um dado interessante,

pois ao usar a palavra brésilien, a tradutora afasta qualquer

possibilidade de confusão linguística em relação aos portugueses.

Acerca dos autores da coletânea, ressalta-se que alguns deles

possuem certo histórico de produção de textos voltados à denúncia

das problemáticas sociais do país. Desse modo, destaca-se a

trajetória profissional do autor para que se busque compreender se

houve influências no processo tradutório ou não. Um dos escritores

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é João Anzanello Carrascoza, professor do curso de Publicidade e

Propaganda da Universidade São Paulo.

Carrascoza se destaca também pelo considerável número de

obras publicadas, aproximadamente 40 livros, tanto de literatura

(gêneros conto e romance), como livros de publicidade. Alguns de

seus textos já foram traduzidos para o inglês, francês, sueco,

espanhol e italiano e, em 2012, esteve no Salon du Livre de Paris,

participando de debates sobre o conto No morro, com o apoio da

Fundação Biblioteca Nacional em conjunto com a Câmara Brasileira

do Livro.

Diante do exposto, interrogamo-nos o que faz uma editora

francesa dedicar seus serviços à literatura brasileira, em especial, à

literatura periférica brasileira? De acordo com o site da editora, no

qual é possível encontrar uma entrevista dada por Paula Anacaona

para o blog Estudos Lusófonos, da Universidade Paris IV, mostrando-

se adepta a leituras engajadas, que permitem ao leitor refletir sobre

problemas sociais e, a partir da leitura de Cidade de Deus, obra

indicada pelo autor brasileiro Paulo Lins, a tradutora começou a se

interessar pela literatura das minorias do Brasil, vertendo o romance

Manual prático do ódio2 para a língua francesa, publicando em Paris em

2009, ano da criação da Éditions Anacaona.

Diante das escolhas de publicação da editora em questão, na

qual é visto um bom número de obras que abordam a realidade da

2 Livro de autoria do romancista e contista paulista Férrez, que se dedica a escrever sobre as minorias marginalizadas do Brasil. O título da tradução para o francês é Manuel pratique de la haine.

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periferia brasileira, estando afastadas do cânone literário, surge a

inquietação de compreender qual imagem da literatura

contemporânea brasileira está sendo construída nos países

francófonos. A esse respeito, Martins (2008) levanta questões acerca

do papel da patronagem nas escolhas feitas para a tradução e na

assimetria em trocas culturais quando envolvem a literatura

brasileira, pois,

além de pouco divulgada e consumida no exterior, [a literatura] tem contribuído para criar imagens e representações parciais e estereotipadas na nossa cultura, diante dos autores e temáticas comumente selecionados para tradução e que contam, ainda, com o reforço da mídia e do cinema. De modo geral, os aspectos mais ressaltados têm sido, por um lado, o exotismo, a sensualidade e a religiosidade/misticismo e, de outro, a miséria e a violência urbana (MARTINS, 2009, p. 39).

Compreende-se que a literatura auxilia na formação da

imagem cultural tanto dentro do país, quanto principalmente fora

dele. Porém, lançar esse olhar sobre a literatura contemporânea

engajada e não canônica se mostra uma ação um tanto equivocada,

uma vez que também é função da literatura levar os leitores/atores

a refletir sobre seu cotidiano, fazendo dela um meio pelo qual as

realidades abafadas sejam proferidas sem ressalvas, mesmo que

estejam sujeitas às regras de edição. É somente por meio das

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traduções que nações menores e suas literaturas não sacralizadas

conseguirão ultrapassar as barreiras linguísticas, ganhando assim, a

possibilidade de ter seu número de leitores aumentado. Desse modo,

reconhece-se a relevância da dedicação despendida pela Anacaona

em dar ênfase aos escritos brasileiros que relatam o cotidiano difícil

de algumas localidades. Por esse olhar de denúncia engajada, a

literatura brasileira não canônica começa a ser reconhecida tanto

fora como também dentro de seu contexto de produção.

Referências bibliográficas ANACAONA ÉDITIONS. Romans brésiliens. Disponible sur: http://www.anacaona.fr/. CASANOVA, Pascale. A República Mundial das Letras. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. LEVEFERE, André. Tradução, reescritura e manipulação da fama literária. Tradução de Claudia Matos Seligmann. Bauru: EDUSC, 2007. HEILBRON, Johan; SAPIRO, Gisèle. Por uma sociologia da tradução: balanço e perspectivas. Tradução de Marta Pragana Dantas. In: Graphos. João Pessoa. v. 11, n. 2, 2009. p. 13-28. MARTINS, Márcia A. P. O papel da patronagem na difusão da literatura brasileira: o Programa de Apoio à Tradução da Biblioteca Nacional. In: GUERINI, Andréia; TORRES, Marie-Hélène

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Catherine; COSTA, Walter Carlos. Literatura traduzida e literatura nacional. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. p. 39-52. OTTE, Georg. A obra de arte e a narrativa – Reflexões em torno do cânone em Walter Benjamin. In: OTTE, Georg; OLIVEIRA, Silvana Pessoa de. (Org.). Mosaico Crítico. Ensaios sobre literatura contemporânea. Belo Horizonte: Autêntica, NELAM, 1999, p. 9-15. RODRIGUES, Helenice. Transferência de saberes: modalidades e possibilidades. In: História: Questões & Debates, n. 53. Curitiba: Editora UFPR, 2010. p. 203-225. VENUTI, Lawrence. Escândalos da Tradução. Tradução de Laureano Pelegrin, Lucinéia M. Villela, Marileide D. Esquerda e Valéria Biondo. Bauru: EDUSC, 2002.

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TRADUZIR LA DISPARITION DE GEORGES PEREC PARA O PORTUGUÊS: ENTRETRADUZIR: ENTREDIZER O “E”

INTERDITADO EM O SUMIÇO

José Roberto Andrade FÉRES

1. Introdução

La Disparition, romance lipogramático de Georges Perec,

escrito em 1969, ainda inédito em língua portuguesa, eis o que ando

traduzindo, após ter feito duas dissertações de mestrado sobre ele,

ainda o estudo no doutorado. São 320 páginas sem nenhuma letra

“e”, a mais frequente da língua francesa, também a letra que retiro

da minha tradução. E o problema maior não é sequer a quantidade

de vezes que essa vogal aparece tanto em uma quanto na outra

língua, o pior – e o melhor – de tudo é que a tal narrativa é um relato

de nada mais, nada menos, que o sumiço do “e”. Tudo isso para

frisar que esse livro é, acima de tudo, “metatextual”, o que quer

dizer, nas palavras daquele que é ainda hoje – mesmo vivo apenas

em palavras – um dos maiores especialistas perecquianos, Bernard

Magné (1986, p. 77), “appartient au métatextuel tout énoncé qui,

dans un texte, apporte une information, dénotativement et/ou

UFBA, Instituto de Letras, Brasil, [email protected]

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connotativement, sur la scription du texte et/ou sur son écriture

et/ou sa lecture”1.

Mas como traduzir a metatextualidade de um texto como

esse? Como traduzir algo que aponta sem cessar para os próprios

tecer e tecido do texto, o próprio fazer da língua, sendo que as

línguas se diferem em seus fazeres e afazeres em potencial? Ainda

mais quando o que está em jogo – como se não bastasse – não são

duas línguas naturais, mas duas línguas que só se falam nos seus

mundos específicos de letras e seres de papel e tinta: o francês sem

“e”, ou melhor, o disparicionês2 de La Disparition e o sumiçol, o

português sem “e” dos nativos de O Sumiço, título que dou à minha

tradução (em andamento). Como traduzir La Disparition, um

romance metatextual por excelência? Essa é a pergunta cuja resposta

é a meta deste artigo, resposta que toma por ponto de partida uma

pista de outro livro do mesmo autor, 53 Jours: “la vérité que je

cherche n’est pas dans le livre, mais entre les livres [...] il faut lire entre

les livres comme on lit ‘entre les lignes’[...]”3 (PEREC, 2001, p. 93).

Ora, da mesma maneira que se deve ler “entre os livros”

quando certa “verdade” é buscada na obra de Perec, vejo-me

encorajado a traduzir entre os livros, tanto do autor quanto de outros,

haja vista, por exemplo, às intertextualidades. Aliás, fazem-se

1 Minha tradução: “pertence ao metatextual todo enunciado que, em um texto, traz uma informação, denotativa e/ou conotativamente, sobre a scription [termo de Roland Barthes] do texto e/ou sobre sua escrita e/ou sua leitura”. 2 Minha tradução do neologismo “disparitionnais”, de Warren Motte (1990), e inspiração para o meu sumiçol. 3 Minha tradução: “a verdade que busco não está no livro, mas entre os livros [...] é preciso ler entre os livros como se lê nas ‘entrelinhas’ [...]”.

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igualmente necessários métodos de tradução nas entrelinhas e

estratégias que possibilitem traduzir-se entre as línguas – estranhas

e/ou estrangeiras que aparecem por lá –, ou até mesmo entre os

números – também metatextuais neste caso. Enfim, esse traduzir

entre, esse entretraduzir, que mal se deixa entrever até agora, por esta

porta entreaberta que é esta “Introdução”, adiante, ficará mais

esclarecido assim que feitas a leitura e a análise deste trecho de O

Sumiço que segue, entretradução minha de uma grande parte do

capítulo 4 de La Disparition (PEREC, 1969, p. 53-55).

4 No qual, malgrado um “Voo dos Borrachudos”, não há alusão alguma a Nicolas Rimski-Korsakov

Antoin Vagol sumiu no dia dos Finados. Um tríduo atrás, ficara alarmado com um

artigo lido num jornal noturno:

Um indivíduo, mantido incógnito por apavorar a todos com sua força obscura, invadindo o arquivo do Comissariado Principal da polícia, roubara uma prova contida numa carta julgada capital, pois sua divulgação, diziam, podia malsinar o trio dos porcos no comando da Polícia Militar. Para sanar a situação, urgia capturar o inoportuno manuscrito, caso contrário, o dispachado larápio não tardaria a passar aquilo às mãos dum outro. Mas, após umas trinta vasculhadas na sua casa, na qual, tudo fazia supor, havia obumbrado a carta com a prova, não a acharam.

Jogando a sua última cartada, um Capitão, Romain Didot, junto com o adjunto favorito,

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Garamond, foi trocar umas palavras com Dupin, o qual gozava dum notório faro fino.

— A priori — falou o Capitão —, pouco nos importa caso um bandido bata asas a voar com uma prova do tipo x ou y, composta por algo, digamos, normal. Mas a afiliação do borrão batido aqui implica uma borrada tramada por um borrachudo importantíssimo...

— Borrão, borrada, borrachudos? — intrigado, Dupin mostrava não achar a ligação das palavras com a sua significação.

— Por favor, ignora o jargão — sorriu Didot —: noutras palavras, supomos tratar duma batida vital pra nós, cuja prolongação arrisca abolir, tornar vão, tornar caduco todo o cuidado com a organização: afraca nossas forças na proporção dum oitavo, no mínimo!

— Bom, portanto — solicitou mais informação o Dupin —, já passaram uns trinta crivos finos na casa do ladrão?

— Sim — admitiu Didot —, não achando nada na inquisição. Mas lugar algum ficou pra trás nas vistorias.

— Pra mim, não dá pra ficar mais claro — afirmou Dupin —, olha só: fuçaram cada cantinho, sondaram cada chão ou muro, não surtindo fruto algum do trabalho, pois são dotados da vista, mas não logram avistar: olha agora o mais óbvio, ô cuca oca, o nosso camarada optaria por um sumidouro mais sutil: o cara não iria obumbrar aquilo num muro ou algo assim, no máximo sujou ou amassou o troço, como uma coisa banal, aí tacou aquilo num porta-cartas, apanhado por tuas próprias mãos hora ou outra, mas não havias visto, não havias quisto ou podido avistar ali o furto tão primordial, só um rascunho trivial!

— Mas — confutou Didot —, não tinha porta-cartas algum ali!

— Não brinca — ironizou Dupin.

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Colocou a casaca, apanhou o guarda-chuva, saiu, com a afirmação:

— Vou lá dar uma olhada nisso. Trago num minuto o tal papiro.

Havia calculado com astúcia, com toda a razão do mundo, mas só voltou com um murmúrio para dar:

— Nada. Logo tornou a sair, puxando a porta numa

batida à la um “Pou!”. Por consolação, largando para lá a agitação da DP, foi inquirir a história dum orangotango inculpado por um triplo assassinato.

Conquanto o Dupin haja captado tudo por instinto, dos “a” aos “z”, dado o fracasso da sua busca, não há absolvição pra mim – anotou Antoin Vagol no Diário.

Postou uma carta a todos os amigos, na qual dizia: “Aspirava tanto a dormir um bocado. Aspirava tanto a tirar um bom cochilo. Mas sumiu! Algum indivíduo? Algo? Só dá pra imaginar! Sumiram com aquilo. Quanto a mim, sigo agora rumo ao fim da vida, rumo ao grandioso olvido branco, rumo à omissão. Sou obrigado a isso. Sorry. Aspirava tanto a alcançar o logos. Fui torturado por um mal tão tortuoso. Minha voz soa rouca como um ruído corroído. Oh, fim da vida minha, livrai minha alma da louca paixão a habitá-la. Antoin Vagol”.

Abaixo, havia um postscriptum, um postscriptum pavoroso, mostrando faltar a razão a Antoin Vagol: “Proponha x bons whiskys quando o advogado fajuto fumar no zoológico”.

No fim, havia uma rubrica formada por um traçado tríptico (com um dos braços mais curto na comparação com os outros dois) rasurado do cimo a baixo por um risco confuso. [...]

Todos ainda ignoram o fim do Antoin: vivo ou morto, ou morrido ou matado...

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[...] Mas Antoin Vagol havia sumido.

2. Traduzir entre os livros

Antes de mais nada, quando digo “livros”, penso em textos,

no mais amplo sentido do termo, referindo-me não somente a um

objeto de papel – ou até mesmo virtual, um e-book, com letras

impressas e imagens –, mas também à própria imagem por si só, um

exemplar de um sistema de linguagem não-verbal, que faz uso de

outros tipos de signos, bem como a música e também um texto,

exatamente o texto no qual eu queria chegar devido ao intertexto

que se vê logo no título do capítulo que cito acima:

Où, nonobstant un “Vol du Bourdon”, l'on n'a pas fait d'allusion à Nicolas Rimski-Korsakov (La Disparition4, p. 53); No qual, malgrado um “Voo dos Borrachudos”, não há alusão alguma a Nicolas Rimski-Korsakov (O Sumiço5).

Como a própria abertura do capítulo adverte, o “Vol du

Bourdon”, do qual se tratará, não é a obra de Korsakov, mas sim de

outro artista, do escritor Edgar Allan Poe – criador do investigador

Dupin e de um certo orangotango homicida (autor do conto “A carta

4 Doravante designado pela sigla LD. 5 Doravante designado pela sigla OS.

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roubada”, ali reescrito por Perec, justamente porque, em francês, o

conto se chama “La lettre volée”), ou seja, graças à polissemia de

“lettre” (carta e letra), de “vol” (voo e roubo) e de “bourdon” (que

iremos explorar com mais cuidado a seguir), coloca-se em relação o

“Voo dos besouros” (de Korsakov), “A carta roubada” (de Poe) e a

letra sumida do romance. E como inter-relacionar todos esses

intertextos? Intertraduzindo-os, ou melhor, entretraduzindo-os.

Para começar, “besouros” (com e) não poderiam aparecer na

minha tradução, mas “Voo dos moscardos” (sem e) – outro nome

dado à música de Korsakov – sim, poderia. No entanto, nem besouros

nem moscardos apontaria, metatextualmente, para Poe e para a letra

sumida. Portanto, no intento de traduzir entre esses livros (e/ou

intertextualidades), lanço mão de uma estratégia que elaborei para a

tradução dos inúmeros “bourdons” de LD, partindo de um

procedimento bem simples nomeado por Henri Meschonnic (1999,

p. 27) “non-concordances”: traduzir uma única palavra por várias outras.

A palavra “bourdon” aparece em inúmeros momentos do romance,

com muitos sentidos diferentes: (i) como som de sino: “Un

carillon […], plus profond qu’un bourdon […], sonna” (LD, p. 17) /

“borrachudo como a badalar à borda duma borrasca […], um sino

soou” (OS); (ii) como porrete: “On s’attaquait au bourdon ou au

fauchard” (LD, p. 47) / “Porfiavam a borrachadas ou a foiçadas”

(OS); (iii) como besouro (como no título do quarto capítulo, se o

tomarmos como referência à música de Korsakov) etc.[sem saltar

para novo parágrafo] Entretanto, a cada vez,

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nas entrelinhas, “bourdon” remete a um significado metatextual: um

erro tipográfico, a omissão de uma letra durante a composição de

um texto: “vos omissions, vos trous, vos bourdons” (LD, p. 113) / “tua

omissão, os buracos, o borrão” (OS).

Já que não há uma palavra da língua portuguesa que abarque

todo essa carga polissêmica de “bourdon”, construo uma nova rede

(meta)textual – como se pode ver pelos últimos exemplos – com

lexias que tenham algo a ver com borracha e borrão, ainda

contribuindo com a metatextualidade, sugerindo uma referência à

conjunção apagada do romance, mas que se deixa entrever o tempo

todo, como se borrada. É assim que o “Vol du Bourdon” se

transforma em um “Voo dos borrachudos” (sendo que um

borrachudo é também um animal voador, assim como um besouro,

ou um moscardo, uma espécie de mosca). Sem contar que, no fim

das contas, tento também levar em conta duas expressões que

conectem o voo ao roubo do “vol” desses borrachudos: bater

carteira e bater asas e voar. O resultado desse entretraduzir no

excerto que estou esmiuçando é o seguinte:

—A priori, lui dit-il, nous n'aurions pas dû tant pâtir du vol; pour tout pli disons normal, si l'on nous avait ravi un x ou un y, ça nous aurait fait un faux bond minimal. Mais ici, il a pour filiation un bourdon trop important... —Un bourdon ? s'intrigua Dupin qui, à coup sûr, ignorait la signification du mot (LD, p. 53);

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— A priori — falou o Capitão —, pouco nos importa caso um bandido bata asas a voar com uma prova do tipo x ou y, composta por algo, digamos, normal. Mas a afiliação do borrão batido aqui implica uma borrada tramada por um borrachudo importantíssimo...

— Borrão, borrada, borrachudos? — intrigado, Dupin mostrava não achar a ligação das palavras com a sua significação (OS).

Agora, deixando de lado toda essa “borracharia”, e ainda

retomando novamente Poe, seu próprio nome aparece num jogo de

homofonia nesse capítulo 4 de LD, seu nome próprio faz uma

“aparição hipográfica” (OULIPO, 1988, p. 394) na expressão “j’avais

du Pot”, com letra maiúscula para “Pot” (pronúncia de Poe, na

França), expressão que, além de ser proibida na minha tradução (“eu

tinha Sorte”), sonoramente, não lembra de forma alguma o nome de

Allan Poe dito em português. Para que ele ressurja

homofoneticamente em OS, foi preciso traduzir entre essa expressão

francesa e outra situação bem diferente, no entanto, uma em que a

língua portuguesa me permitia um jogo análogo (que sublinho aqui):

il manqua son coup. —Jadis, au moins, j'avais du Pot, murmura-

t-il. Puis, par consolation, il s'occupa, laissant la

P.J. à son tracas, d'un orang-outang qui avait commis trois assassinats (LD, p. 54);

mas só voltou com um murmúrio para dar:

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— Nada. Logo tornou a sair, puxando a porta

numa batida à la um “Pou!”. Por consolação, largando para lá a agitação da DP, foi inquirir a história dum orangotango inculpado por um triplo assassinato (OS).

3. Traduzir entre os números

Como já comentei alhures, em outro artigo (FÉRES, 2014),

o número “três” está por todos os lados em LD, tanto na palavra

“trois”, incessantemente repetida, quanto em estruturas sintáticas

tripartidas e em descrições de imagens que lembrem o “3”, um “E”

maiúsculo visto no espelho, praticamente. Sarah Greaves (2000, p.

110) afirma que “ce procédé s’insère dans un réseau de procédés

permettant d’inscrire malgré tout la lettre et dans le texte”6.

Mesmo que, por um lado, não possa escrever “três” em OS,

então, uso e abuso de outras palavras radicalmente semelhantes

(“tríduo” ou, por exemplo, traduzindo “vingt” por “trinta”, por causa

do “e” de “vinte”), por outro lado, posso pintar a grafia do “3” no

espelho, o “E”, tal qual em:

trois traits horizontaux (dont l'un au moins paraissait plus court) qu'un gribouillis confus barrait (LD, p. 55);

6 Minha tradução: “esse procedimento se insere em uma rede de procedimentos que permitem, apesar de tudo, que se inscreva a letra e no texto”.

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um traçado tríptico (com um dos braços mais curto na comparação com os outros dois) rasurado do cimo a baixo por um risco confuso (OS).

Entretanto, o que mais me importa neste artigo é o traduzir

entre e, mais especificamente, nesta seção, entre os números. No

trecho do capítulo lido mais atrás, há um exemplo bem esclarecedor

desse meu método tradutório:

un vol pour nous vital […]: il affaiblit nos pouvoirs dans la proportion d'au moins un sur cinq (LD, p. 54); batida vital pra nós [...]: afraca nossas forças na proporção dum oitavo, no mínimo (OS).

Quando traduzo “un sur cinq” (“um quinto”, que poderia

muito bem ser escrito no português sem “e” de OS) por “um

oitavo”, interpreto esse “un sur cinq” metatextualmente: o

investigador de Perec perde quase “um quinto” da sua força porque

a frequência da vogal “e” na língua francesa é de mais de 17%

(MÜLLER). Havendo uma diferença significante entre a frequência

dessa letra no francês e no português – em que a ocorrência do “e”

varia entre 13,9% (REIS, 2014) e 14,64% (TKOTZ, 2005) –, o meu

investigador, lusófono – ou sumiço-hablante –, não perde – como

ocorre com o francês de LD – um quinto do seu poder, e sim “um

oitavo”.

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4. Traduzir entre as línguas

Segundo um dos tradutores de LD para o espanhol –

também autor de uma dissertação de mestrado e uma tese de

doutorado a respeito desse romance, ambas orientadas por Bernard

Magné –, Marc Parayre (1985, p. 74), “lorsque, malgré tout, le

vocabulaire français se révèle improductif, l’auteur [Perec, dans LD]

n’hésite pas à faire des emprunts à d’autres langues”7. Por exemplo,

próximo ao fim do capítulo 4, lê-se “It is a must. Pardon!” (LD, p. 55),

já que, ao que me parece, o autor não podia escrever em francês

“C’est obligé. Pardon!” ou “Je n’ai pas le choix. Pardon!”, aquilo que seria

dito no dia a dia. Só que posso muito bem utilizar “Sou obrigado a

isso”, em português, sem nenhum “e”, para traduzir da língua

inglesa “It’s a must!”, embora, em compensação, não podendo

oferecer um “Me desculpe!” ou “Peço perdão!” como tradução para

o francês “Pardon!”, lancei mão do crédito que acabei de ganhar e já

vinha com outra palavra inglesa no lugar:

It is a must. Pardon (LD, p. 55); Sou obrigado a isso. Sorry (OS).

É assim que faço aquilo que chamo de traduzir entre as línguas,

por estar consciente de que uma simples reprodução dos

empréstimos presentes em LD, feitos justamente para apontar na

7 Minha tradução: “quando, apesar de tudo, o vocabulário francês se revela improdutivo, o autor [Perec, em LD] não hesita em fazer empréstimos de outras línguas”.

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direção de algo que não se pode dizer, pode implicar um

enfraquecimento do caráter metatextual do texto. Só faz sentido

tomar emprestado algo de uma língua estrangeira quando isso se

torna necessário, o qual ocorre em momentos distintos no francês

(sem “e”) e no português (sem “e”). Por isso devo sempre transitar

entre o que foi dito em língua estrangeira – por não se ter podido

dizer em francês – e aquilo que posso ou não dizer em língua

portuguesa, respeitando a regra lipogramática, o sumiço do “e”. E

outro dever – igualmente, um direito que também diz respeito a isso

– é ter sempre em mente a quantia desses empréstimos no texto

original a fim de que não haja nenhuma soma injustificável – nem

lacunas – na contagem final da tradução.

5. Conclusão

Relembrando a dica de 53 Jours, em que o protagonista

sugere um tipo de leitura que acabou se transformando em guia para

O Sumiço, espero que minha tradução (ainda inacabada) de La

Disparition – “la vérité que je cherche n’est pas dans le livre, mais entre

les livres [...] il faut lire entre les livres comme on lit ‘entre les

lignes’[...]”8 (PEREC, 2001, p. 93) – tenha se tornado mais evidente

a fim de explicitar o que quero dizer com meu lúdico entretraduzir

(uma das soluções que encontrei para esse trabalho tradutório e que

8 Minha tradução: “a verdade que busco não está no livro, mas entre os livros [...] é preciso ler entre os livros como se lê nas ‘entrelinhas’ [...]”.

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tentei expor nessas poucas linhas). Trata-se de traduzir entre os livros

(religando os mais variados intertextos entrelaçados por La

Disparition, sempre de cunho metatextual), entre os números (cuja

metatextualidade é repensada nos parâmetros da língua na qual se

traduz), entre as línguas, estranhas e estrangeiras (cujo emprego só se

justifica em prol do metatexto) etc. Dessa maneira, na maior parte

das vezes, não se trata de traduzir as palavras em si, mas traduzir

entre elas, traduzir o que se lê nas entrelinhas, a metatextualidade que

as une entre si e lhes dá razão de ser – e dizer o que é ser – sem “e”.

Assim como Georges Perec, sempre “driblando”, de uma

forma ou de outra, a interdição da vogal por meio de uma entredicção

metatextual, “recheando” La Disparition com pistas e jogos de

linguagem que entredizem o que foi interdito dizer, minha maior

preocupação é trazer, entredito, o “e” interdito em O Sumiço e –

obviamente, mesmo que com jogos não tão óbvios assim – manter

o leitor do meu sumiçol tão entretido quanto o do disparicionês

perecquiano.

Referências bibliográficas FÉRES, J. R. A. Transcriações poéticas d’O Sumiço: traduções e retraduções lipogramáticas de poemas de La Disparition de Georges Perec – e outros. In: Tradução em Revista. Rio de Janeiro, n. 15, 2013/2, 2014. Disponível em: http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/trad_em_revista.php?strSecao=input0. Acesso em: 31 out. 2014.

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GREAVES, S. Une traduction non plausible? La Disparition de Georges Perec. Traduit par John Lee. In : Palimpsestes, Paris, n.12, 2000. p. 103-116. MAGNÉ, Bernard. Métatextuel et lisibilité. In : Protée, Université du Québec à Chicoutimi, v.14, n.1-2, 1986. p. 77-88. MESCHONNIC, H. Poétique du traduire. Lagrasse: Editions Verdier, 1999. 608 p. MOTTE, W. F. Jeux mortels. Etudes littéraires, Université de Laval, v.23, n.1-2, 1990. p. 43-52. MÜLLER, D. Analyse des fréquences en français. Table des matières. Ars Cryptographica. Disponível em: www.apprendre-en-ligne.net/crypto/activites/. Acesso em: 31 out. 2014. OULIPO. Atlas de littérature potentielle. Paris: Gallimard, 1988. 432 p. PARAYRE, M. Comment fait un homme de lettres sans caser d’e. Toulouse, 1985. 124 f. Dissertação (Mestrado em Lettres Modernes) – U. F. R. de Lettres Modernes, Université de Toulouse le Mirail. PEREC, G. La Disparition. Paris: Denoël, 1969. 320 p. ______. 53 Jours. Paris: Gallimard, 2001. 336 p. REIS, R. Tabelas de frequências na língua portuguesa. Faculdade de Ciências. Universidade do Porto. Disponível em: http://www.dcc.fc.up.pt/~rvr/naulas/tabelasPT/. Acesso em: 31 out. 2014. TKOTZ, V. Frequência de ocorrência de letras no português. Criptografia: Criptoanálise, 28 ago. 2005. Aldeia Numa boa. Disponível em: http://www.numaboa.com.br/criptografia/criptoanalise/310-Frequencia-no-Portugues. Acesso em: 31 out. 2014.

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APREENDENDO A LER A TRADUÇÃO: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE TRADUÇÃO O

CENTAURO BRONCO, DE MAURICIO MENDONÇA CARDOZO

Renê Wellington Pereira FERNANDES

1. A tradução como ato de (re)leitura: a teoria do tradutor

implícito e sua pertinência para a leitura de O centauro bronco

Em 2006, o tradutor e professor da Universidade Federal do

Paraná, Mauricio Mendonça Cardozo dá a conhecer duas traduções

para o português do Brasil da novela Der Schimelreiter, do escritor

alemão Theodor Storm. A primeira recebe o título de A assombrosa

História do Homem do Cavalo Branco (STORM, 2006a), apresentando-

se como uma tradução mais tradicional, no sentido dogmático do

termo. Já a segunda, cuja publicação é concomitante à primeira, é

denominada de O Centauro Bronco (STORM, 2006b), uma tradução

menos ortodoxa da obra alemã, concebida na forma de recriação.

Nesta, Cardozo reconfigura o universo ficcional da história ao

transubstanciar o tema central da novela de Storm (o embate do

cavaleiro frísio contra a intemperança das tempestades de vento e

da consequente força das águas do Mar do Norte) na luta do

“homem do sertão” brasileiro contra a aridez do clima nordestino.

Unicamp, Instituto de Estudos da Linguagem, Brasil, [email protected]

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No entanto, é necessário salientar que, para produzir as duas

versões, Cardozo partiu da leitura da obra Der Schimmelreiter, texto

em alemão, publicado em 1888, e da leitura de traduções já

existentes desse livro para o português, das quais aquelas já

consagradas de João Távora (O Homem do Cavalo Branco, 1952) e de

Albertino Pinheiro Júnior (O Homem do Cavalo Branco, 1963).

E, justamente pelo fato de se tratar de um trabalho de

tradução feito com base em amplas e diversas leituras, iremos

abordá-lo, dentre outras linhas teóricas adotadas, a partir da revisão

de leitura que Berthold Zilly (2011) faz sobre a teoria do leitor

implícito, concebida por Wolfgang Iser (1972). Nela, o teórico e

tradutor alemão reitera a ideia de que a leitura é a condição sine qua

non para existência da Literatura. A vida e, sobretudo, a sobrevida

das obras literárias, segundo ele, advém dos sentidos que lhes atribui

o leitor em diferentes momentos de atualização, isto é, para um

texto alcançar sua plenitude, para realizar-se, precisa de que alguém

o leia, grosso modo, não só os textos de cunho literário, mas todo e

qualquer texto é escrito para ser lido e, como enfatizava Benjamin

(2001), para ser constantemente relido. Essa é sua condição de ser

enquanto texto, um princípio imanente a seu estatuto ontológico.

Por essa razão, de acordo com Benjamin, a obra literária não

existe em função do leitor, porém, pelo contrário, sua função é

ratificá-la. À vista disso, Zilly (2001) explicita, em seus

apontamentos, a ideia de Benjamin de que o “[...] tom e significado

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das grandes obras poéticas se transformam completamente ao longo

dos séculos [...]” (BENJAMIN, 2001, p. 197).

Destarte, como a própria raiz etimológica da palavra indica,

o texto é um tecido urdido por palavras que, constituindo uma

trama, suscita sentidos (comportados nessas palavras ou a elas

atribuídos) e, portanto, reclama a participação daquele(s) que lhe

persiga(m) o “fio da meada”. Assim, ainda segundo Zilly, os textos

literários “quando narrativos ou dramáticos” precisam da

“encenação mental do leitor, assim como as peças de teatro

precisam da representação , os filmes da exibição e as partituras da

execução, pelo menos imaginada, por parte de quem as entende e

sabe evocar” (ZILLY, 2001, p. 344).

Por esse motivo, também, a leitura não se resume à atividade

meramente mecânica de reconhecer caracteres combinados

fonologicamente entre si, justapostos linearmente de modo a

formarem, em seu agrupamento, vocábulos, palavras, frases,

períodos etc. Ela implica a interpretação de significados subjacentes

ou possíveis de serem suscitados, a partir do e no texto, ou mais

estritamente, a partir da e na letra.

Conscientes desse imperativo, como comenta Zilly (2001),

os autores:

(...) desde há muito não apenas se preocupam em discursar ou narrar, para informar, ensinar, entreter, edificar, para expressar seus afetos, atiçar a curiosidade, para transmitir a sua visão do mundo, para atacar ou se defender, mas se

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preocupam também com que tal mensagem ou história – os ensinamentos, a trama, as cenas, os personagens – sejam percebidas numa determinada perspectiva e lidas “corretamente”. Por um lado, eles incitam a fantasia do leitor, da qual as obras, incompletas e abertas, de certo modo precisam, por outro lado procuram guiá-la (ZILLY, 2001, p. 344).

Para esse leitor, de quem se espera uma leitura proativa, ou

seja, de quem se espera que, por interesse diletante ou compromisso

profissional, provenha maturidade suficiente para efetuar uma

leitura participativa e acurada,Wolfgang Iser cunhou o termo leitor

implícito (ISER, 1972).

Ora, se o tradutor é antes de tudo um leitor, posto que para

realizar sua tarefa ele deva, de acordo com Berman (1994), proceder

às leituras do original e às leituras e releituras da tradução que realiza,

Zilly ainda enfatiza o fato de ele ser “um leitor especialmente atento,

assíduo, escrupuloso, crítico e exaustivo na tarefa de (re)constituição

dos significados da obra” (ZILLY, 2001, p. 347), transmutando o

termo leitor implícito em tradutor implícito.

Sendo assim, essas características, tidas como atributos do

leitor, tradutor implícito nesse caso, parecem estar em consonância

com o processo ao qual Arrojo (2007) denomina de “aprender a

ler”, já que, para ela, “aprender a ler envolve muita leitura, muita

pesquisa, muita aquisição de informação e, acima de tudo, um

espírito aguçado, além de uma curiosidade persistente e difícil de ser

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satisfeita” (ARROJO, 2007, p. 77). Portanto, sendo o tradutor um

“leitor por excelência” (ZILLY, 2001, p. 347), haja vista ser ele

um Vor-leser em vários sentidos, ou seja, um pré-leitor e pró-leitor, aquele que lê antes dos outros e pelos outros, sendo ao mesmo tempo um recitador, aquele que lê em voz alta para os outros, para uma audiência, prefigurando a sua compreensão do texto, espécie de preletor, que ensina como se deve ler (loc. cit.)

Nós podemos inferir que, ao elaborar seus textos, os autores

considerem o tradutor como o primeiro leitor estrangeiro em

potencial de suas obras, ou seja, na verdade, o primeiro leitor

sofisticado.

E, uma vez que, para o leitor implícito os autores criam “[...]

dispositivos e marcas que assinalam de que modo ele deve ler um

texto para realizar mentalmente grande parte das potencialidades do

seu sentido” (ZILLY, 2001, p. 345) para o tradutor, como leitor

previsto e, portanto, implícito, todo texto literário também possui

as indicações de como deve ser traduzido. Por conta disso,

o papel do leitor previsto dentro do texto teria como corolário o do tradutor igualmente previsto, embora menos manifesto, um feixe de orientações e recomendações de como determinada obra deve ser lida por falantes de outras línguas e como para estas deve ser trasladada (ZILLY, 2001, p. 355).

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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Portanto, se ler é um ato ativo, que exige a interação do leitor

para reconstruir significados prévios ou construir novos significados

com base no quadro de experiências diversas no qual se encontra

implicado, sobretudo, como sujeito historicamente condicionado, e

se ler e traduzir não são ações meramente similares, mas idênticas,

logo, ler e traduzir coincidem (ou seja, incidem juntamente) com

interpretar. Isso quer dizer que, ao lermos algo, automaticamente

lhe atribuímos uma interpretação pessoal, com base na rede de

inferências que estabelecemos a partir de nossa familiaridade,

estranheza, predileção e necessidades em relação ao(s) assunto(s)

contemplado(s) pelo texto para que assim seja possível obtermos da

leitura, e na leitura, aquilo pelo que procuramos ou aquilo de que

precisamos, e isso nada mais é do que traduzir.

Por isso ler, traduzir e interpretar são atividades

concomitantes e, por conseguinte, intrínsecas umas a outras das

quais procede a afirmação de Rosemary Arrojo de que:

Toda tradução, por mais simples e breve que seja, trai sua procedência, revela as opções, as circunstâncias, o tempo e a história de seu realizador. Toda tradução, por mais simples e breve que seja, revela ser produto de uma perspectiva, de um sujeito interpretante e, não, meramente, uma compreensão “neutra” e desinteressada ou um resgate comprovadamente “correto” ou “incorreto” dos significados supostamente estáveis do texto de partida. Essa ligação intrínseca e inevitável que qualquer tradução mantém com uma interpretação tem criado um sério

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embaraço para a grande maioria das teorias de tradução, em especial para aquelas que alimentam a ilusão de chegar, um dia, a uma sistematização do processo de traduzir (ARROJO, 1992, p. 68).

2. À busca do tradutor, escoramento da prática tradutória e a

postura tradutória em O Centauro Bronco

Ora, se até aqui concordamos e reiteramos a ideia de que ler,

traduzir e interpretar são ações que redundam num mesmo e único

processo – o processo de tradução –, para compreendermos o modo

pelo qual ele é concebido, é necessário nos voltarmos para aquele

de quem ele deriva, isto é, para o tradutor. Podemos dizer, sob esse

ponto de vista, que toda e qualquer tentativa de se separar a tradução

daquele que a realiza, ou seja, do tradutor, tornar-se-ia

contraproducente ao trabalho do crítico e do estudioso de literatura

estrangeira traduzida e, em última análise, para a própria identidade

da tradução. Em decorrência desses aspectos, perguntamo-nos até

que ponto o trabalho desse tradutor-leitor (ou seja, sua tradução) é

lido e tido como tal, isto é, como um texto que foi vertido de uma

determinada língua estrangeira (do autor) para uma determinada

língua materna (do leitor).

A partir desse ponto, devemos, então, compactuar com o

pensamento de Antoine Berman (2001), de que no âmago de

qualquer questão que envolva a crítica, a teorização, a realização ou

as relações estabelecidas em diversos aspectos, níveis e setores do

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trabalho tradutório, enfim, “na origem” de toda e qualquer

problematicidade prática ou teórica advinda da atividade

tradutológica, está o tradutor, pois na “origem havia o tradutor”

(BERMAN, 2001, p. 15).

Por conseguinte, outra concepção teórica que cabe a esse

artigo se encontra na obra Pour une critique des traductions: John Donne

(BERMAN, 1994), e é baseada naquela análise que “à medida que

praticava estudos de traduções, ao tentar definir (e sistematizar) os

procedimentos” Berman (1994, p. 64) elabora com base nas

abordagens teóricas propostas por Meschonnic e pela escola de Tel-

Aviv, a partir do conceito benjaminiano de crítica de tradução e no

desenvolvimento de uma metodologia e conceitos próprios, aos

quais denomina “aprender a ler uma tradução” (op. cit.).

Assim, como leitores de textos literários produzidos numa

determinada língua materna, devemos aprender a ler para que

possamos apreender sentidos imanentes e também para que

possamos criar novos sentidos, igualmente como críticos ou

estudiosos de Literatura, ou mesmo, como tradutores, devemos

aprender a ler uma tradução para que possamos nos ocupar de sua

análise. Mas sobre o que nos apoiaríamos para dar início ao nosso

aprendizado? Como abordaríamos a leitura de O Centauro Bronco?

Berman propõe que nos voltemos para o trabalho de

tradução sob um novo viés: “indo ao tradutor”, ou seja, abordando-

o dentro dos estudos da tradução como aquele no qual a progênie

do texto traduzido se engendra. Assim, ele estipula que “uma das

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tarefas de uma hermenêutica do traduzir é considerar o sujeito que

traduz” (BERMAN, 1994, p. 67). Para tanto, elabora seis passos

nessa “reviravolta metodológica” (op. cit., p. 70): 1) Leitura e releitura

da tradução; 2) As leituras do original; 3) A busca do tradutor; 4) A

postura tradutória; 5) O projeto de tradução; 6) O horizonte do

tradutor.

Entretanto, por questão de ordem prática e a fim de alcançar

os objetivos propostos em nosso estudo sobre a tradução O centauro

bronco, de Cardozo, excetuar-se-á a abordagem do terceiro passo, a

saber: a busca do tradutor.

Em primeiro lugar, atentemos para o fato de que Berman

volta a ressaltar a condição primeira de leitor desempenhada pelo

tradutor, uma vez que para ele “traduzir exige leituras vastas e

diversificadas. Um tradutor ignorante – que não lê desse modo – é

um tradutor deficiente. Traduz-se com livros” (BERMAN, 1994, p.

67). O teórico francês denomina esse recurso de escoramento da

prática tradutória, mas adverte que tal noção não coincide com a de

escoramento da própria tradução. Em nota de rodapé, explica: “o

escoramento da tradução compreende todos os paratextos que vêm

a sustentar: introdução, prefácio, notas, glossários etc.” (BERMAN,

loc.cit.).

Por isso é por meio de um paratexto (dentre tantos outros

textos, como os artigos que escreveu a respeito) usado por Cardozo

para o escoramento de sua tradução – a saber, do posfácio que

elaborou para O Centauro Bronco – que analisaremos, neste primeiro

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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momento, sua postura tradutória, pois, como aponta Berman, as

posturas tradutórias “[...] podem ser reconstituídas a partir das

próprias traduções, que as dizem implicitamente, e a partir das

diversas enunciações que o tradutor fez a respeito de suas traduções,

do traduzir ou de quaisquer outros temas” (BERMAN, 1994, p. 72).

Assim, Berman define postura tradutória como “o compromisso entre

a maneira pela qual o tradutor, enquanto sujeito tomado pela pulsão

do traduzir percebe a tarefa da tradução, e a maneira pela qual

internalizou o discurso ambiente sobre o traduzir (as normas)”

(BERMAN, 1994, p. 71).

Partindo dessas formulações, encontramos em O Centauro

Bronco um tradutor que discorre a respeito de seu trabalho com

fluidez literária e que, ao mesmo tempo, concebe a tradução

enquanto relação.

Traduzir é um movimento fundado na relação: é pôr em relação; é construir uma relação; é relacionar. Portanto, é também – e necessariamente – um modo de equacionar uma determinada relação. E se diferenças e semelhanças se manifestam apenas na relação, a tradução surge então como ocasião e modo de equacioná-las (CARDOZO, 2006b, p. 155).

3. A tradução enquanto relação para Cardozo e para Marcelo Jacques de Moraes

Ora, se para Cardozo a tradução é relação e consiste na

equação de semelhanças e diferenças – haja vista que “é na relação,

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ou seja, somente quando há uma relação, a partir da relação, que se

tencionam e deslizam as noções do diferente e do semelhante, do

próximo e do distante, do próprio e do alheio” (op. cit., p. 154) –,

nós então perguntamos se essa relação de fato se faz sentir em seu

trabalho no que diz respeito ao Outro (ao estrangeiro), representado

por sua língua e sua cultura.

Nesse sentido, no que concerne à tradução entendida

enquanto relação, encontramos no ensaio de Marcelo Jaques de

Moraes, Sobre a Violência da Relação Tradutória, a reflexão sobre o

pensamento de Berman a respeito de que a essência da tradução é,

verdadeiramente, relação. Justamente por isso, recorremos a sua

contribuição para o tema.

Desse modo, ao revisitar as ideias apresentadas por Berman

em A Tradução e a Letra: ou o Albergue do Longínquo, Moraes desdobra

a discussão suscitada pelo teórico francês, situando-a em torno da

violência da relação tradutória, pois, para ele, “[...] há uma violência

fundamental na experiência da relação, e que não é a violência

operada pelo chamado etnocentrismo da tradução” (op. cit., p. 73).

Assim, para Moraes, a violência não é provocada pela língua do

tradutor sobre a língua do autor do texto original, já que, de acordo

com suas próprias palavras, “a violência fundamental dessa

experiência, e que deflagra de fato a pulsão de traduzir, é, repito mais

uma vez, a violência do original sobre o tradutor” (loc. cit.).

Aliás, aqui se apresenta o momento apropriado para ressaltar

a concepção desse estudioso no que diz respeito à ideia de original

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autônomo (na língua do autor ou língua de partida) e tradução

autônoma (na língua de chegada ou língua para qual o tradutor verte

o texto), uma vez que, embasado em Walter Benjamin (2001),

afirma:

(...) não há primeiramente o original, apreendido na autonomia significante de sua língua, e depois a tradução, por meio da qual o tradutor transporia esse original para sua própria língua, ela também autônoma. A experiência da tradução é de saída uma relação já em movimento, uma tensão já estabelecida com um original que, se exige, se deseja intrinsecamente tradução (MORAES, 2001, p. 64).

Não obstante, ao deter-se sobre a afirmação do autor de A

Prova do Estrangeiro de que “a tradução é relação, ou não é nada” (op. cit.,

p. 65), Moraes descobre que “a tradução que não é relação, e que

por isso não é nada, seria aquela em que a língua do tradutor

iluminaria o texto estrangeiro de tal forma que o clássico problema

da literalidade da tradução sequer chegaria a se formular como tal”

(op. cit., p. 66). Adiantemos, porém, que com a expressão “ser nada”,

Moraes não quer dizer ser uma tradução ruim, mas sim uma

tradução que deixa de ser tradução e passa a ser lida como texto

original.

Então, vemo-nos retomar a discussão proposta por

Friedrich Schleiermacher no século XIX, de que o tradutor deve

levar o leitor até o autor do texto estrangeiro, uma vez que explica

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que nesse método: “[...] o tradutor está empenhado em substituir,

por meio de seu trabalho, a compreensão da língua de origem, que

falta ao leitor” (SCHLEIERMACHER, 2001, p. 43).

Desse modo, Moraes reclama, para a efetivação da tradução

como tal, o conhecimento linguístico do leitor a respeito da língua

do texto original, já que, como Schleiermacher, ele aponta a

necessidade que o tradutor tem de “(...) transmitir aos leitores a

mesma imagem, a mesma impressão que ele próprio teve pelo

conhecimento da língua de origem da obra, de como ela é, tenta,

levá-los à posição dela, na verdade estranha para eles” (op. cit., p. 43-

45).

Dessa forma, para pensarmos a tradução de Cardozo como

relação, centrada no princípio de alteridade, como ele mesmo a

prefigura, é necessário notar primeiramente se ela faz ecoar “o

burburinho da letra estrangeira” (MORAES, 2001, p. 68), se ela

reverbera centelhas da estranheza que é particular a uma língua que

não é a nossa. Sendo que, para que isso aconteça, é preciso que o

leitor conheça a língua do original, que consiga pressentir sua

imaterialidade a frequentar os signos materiais da língua materna.

Decorrente dessa concepção de Moraes, para quem desconhece a

língua do Outro no processo de relação fundado pela tradução “[...]

jamais existe tradução” (op. cit., p. 67).

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4. O projeto de tradução de Mauricio Mendonça Cardozo

Contudo, antes de discorrermos sobre a tradução que se

sustenta com base no conhecimento linguístico (e por consequência,

cultural) do leitor, abordaremos o projeto de tradução de Cardozo,

segundo delineia o termo Antonie Berman.

Destarte, para Berman, o projeto de tradução, por sua vez, “[...]

define a maneira como, por um lado, o tradutor vai cumprir a

translação literária e, por outro, assumir a própria tradução, escolher

um modo de tradução, uma maneira de traduzir” (BERMAN, 1994, p.

72).

Aplicando esse conceito ao trabalho de Cardozo, outra vez

por meio da leitura do posfácio de O Centauro Bronco, o tradutor

expõe o recurso que empregou na realização de seu trabalho: “O

instrumento principal de construção da tessitura do Centauro Bronco

é a citação, tanto na forma de colagem, quanto na forma de

pastiche” (CARDOZO, 2006, p. 162). Não cabe aqui a análise e

explanação sobre o termo e sobre o artifício conhecido como

pastiche, posto ser o próprio Cardozo quem o define, especificando

o modo pelo qual esse instrumento de (re)criação é empregado na

tradução que realizou: “O procedimento do pastiche, como forma

de citação, foi levado aqui às últimas consequências. Porém, se por

um lado, fazer uso do pastiche é reproduzir o estilo de um autor –

pastiche, por definição –, por outro, procuro não fazê-lo

mecanicamente” (loc. cit.).

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Ora, se “as formas de um projeto de tradução, quando é

enunciado pelos tradutores, são múltiplas” (BERMAN, 1994, p. 73),

no caso da tradução desta novela de Storm, elas estão expostas de

maneira contundente, embora articuladas no breve espaço de um

paratexto.

Assim, o modo pelo qual Cardozo assume a própria

tradução fica explicitado. E não só isso, fica pormenorizado o

trajeto que calca, já que explica o segundo expediente do qual lançou

mão na elaboração de sua tradução.

A colagem é recurso extremamente produtivo nos casos em que se constata, por exemplo, que uma determinada passagem de uma obra em vernáculo pode ser lida como tradução da passagem de uma obra de língua estrangeira – imagine-se aqui o caso em que uma fala de Riobaldo pudesse traduzir uma fala do protagonista de Storm (CARDOZO, 2006, p. 162).

Sob esse aspecto, essa ideia de Cardozo se coaduna à de

Haroldo de Campos, que ao comentar a impossibilidade da

tradução, explica:

Admitida a tese da impossibilidade, em princípio, da tradução de textos criativos, parece-nos que esta engendra o corolário da possibilidade, também em princípio, da recriação desses textos. Teremos, como quer Bense, em outra língua, outra informação estética, autônoma, mas ambas estarão ligadas

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entre si por uma relação de isomorfia: serão diferentes enquanto linguagem, mas, como os corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro de um mesmo sistema (CAMPOS, 2006, p. 34).

Mas, notemos que com “outra informação estética,

autônoma” (loc. cit.), Haroldo de Campos quer dizer uma tradução

que, em seu meio linguístico e cultural, atua como original. Contudo,

no caso de Cardozo, a complexidade é maior, pois ele, em sua

tradução intitulada A Assombrosa História do Homem do Cavalo Branco

(STORM, 2006a), busca uma aproximação mais evidente com a

língua e cultura alemãs, fato do qual podemos nos certificar

mediante as notas de tradução que acrescenta ao fim do livro. E,

lembremo-nos, antes de mais nada, de que ambas as traduções

juntas constituem seu projeto de tradução.

Por conseguinte, entendemos que a questão não se reduz à

problemática de traduzirem-se textos criativos, como aponta

Campos (2006), haja vista ter Cardozo realizado a tradução da

mesma obra sob prismas diferentes: a literalidade e a recriação

literária.

Não obstante, é nesse contexto que – ao expor os eixos

temáticos do livro de Storm, a saber, o embate entre homem e

espaço e entre homem e homem – Cardozo justifica seu modo de

trasladar: “Essas relações, constitutivas do espaço humano da obra,

parecem levantar – ainda que hipoteticamente – mais uma

possibilidade de alinhamento entre o Schimmelreiter e algumas obras

da ficção brasileira de temática e ambientação regionalistas”

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(CARDOZO, 2006, p. 160). Assim, Cardozo promove um diálogo

entre as técnicas narrativas e representativas de alguns autores

brasileiros dos séculos XIX e XX e a retórica literária de um autor

de língua estrangeira do fim do século XIX.

Entretanto, notemos que traduzir por meio da colagem ou

do pastiche não se ajusta à ideia de Moraes, quando cita a

reivindicação reiterada de Berman por literalidade.

(...) essa tradução literal que Berman não cessa de reivindicar (...) é essa espécie de retorno tautológico do original, para quem conhece a língua em que ele é produzido, que funda a sensação paradoxal de uma espécie de precedência a posteriori do literal sobre a predicação figural que qualquer tradução não pode evitar derivar desse suposto original literal. O que a experiência da tradução como tal propicia ao transfigurar necessariamente o original em outra letra, desliteralizando-o inevitavelmente, é uma espécie de diferença original do original para consigo próprio, que o torna desde sempre irremediavelmente distinto de si mesmo (MORAES, 2001, p. 67-68).

Sendo assim, até que ponto podemos perceber a

desliteralização de Der Schimmelreiter, de Storm, por meio da tradução

O centauro bronco, de Cardozo? Ou seja, onde se opera a diferença do

original de Der Schimmelreiter para consigo próprio, se a língua alemã,

seu “resíduo” pelo menos, foi recalcado pela transliteração?

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5. A contribuição de Walter Benjamin para o tema: O Centauro Bronco como sobrevida de Der Schimmelreiter

A resposta, dada pelo tradutor para tal questionamento, é a

explicação de que a intervenção feita na physis implicou uma

intervenção no âmbito humano, o que, por conseguinte, “no caso

do Centauro Bronco [...] tem uma implicação direta na questão da

linguagem” (CARDOZO, 2006 p. 161). E, por conta disso,

apresenta a razão de ter fundado a autoridade narrativa de sua

reescritura na plêiade literária brasileira, tendo predileção por um de

seus integrantes, haja vista que: “De fato, a voz do Guimarães Rosa

(autor do Grande sertão: veredas) predomina na leitura como matriz

principal [...] porque a obra roseana representa, em língua

portuguesa, o exemplo mais radical de tratamento da linguagem”

(op. cit., p. 162).

Porém, já que para o filósofo alemão Walter Benjamin, “[...]

numa tradução, a afinidade entre as línguas demonstra-se muito

mais profunda e definida do que a semelhança superficial e vaga

entre duas obras poéticas”, como a linguagem de O Centauro Bronco

faz ressurgir, pelo menos, como assomo de reencontro, de

redescoberta, de “eco”, o alemão de Der Schimmelreiter para o leitor

brasileiro? Pois, se comparado ao que Cardozo se propôs a fazer –

e de fato o fez –, ao eleger a prosa de Guimarães Rosa como modelo

narrativo (“o exemplo mais radical de tratamento da linguagem”, no

português do Brasil), o emprego da variante dialetal da língua alemã

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– conhecida como baixo alemão (plattdeutsch) – é pouco utilizada por

Storm como elemento composicional de sua ficção.

A partir dessa perspectiva, o que observamos nesse artigo,

não é um mero processo de intensificação da língua (no texto de

Cardozo em português) que visa apenas à elevação do estilo – ou à

sua supervalorização –, mas a realização de um projeto de leitura do

original que explora dimensões contidas no texto de Theodor

Storm, em alemão, apenas realizáveis em português, isto é, um

movimento de leitura que, ao apresentar, em um primeiro

momento, a tradução como aparentemente original em sua língua,

procura fazer com que o leitor seja impulsionado para o texto em

alemão. Por isso, pontua Moraes:

(...) independentemente de a tradução ser boa ou ruim, de ser mais ou menos etnocêntrica, sua importância, para os que não entendem o original, não está, a meu ver, em possibilitar a relação com o estrangeiro como tal. Mas em despertar eventualmente esse desejo de relação, que só pode de fato se realizar se o leitor for então levado a aprender outra língua, e assim estar continuamente exposto à experiência estrangeira inclusive em relação à própria língua (MORAES, 2001, p. 69).

É óbvio, no entanto, não se tratar aqui de uma tradução

etnocêntrica, mas de uma reconfiguração da história de Der

Schimmelreiter que, ao realizar-se, propicia uma relação, um

movimento em direção a uma dimensão potencial da língua

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portuguesa ao mesmo tempo em que provoca o desejo de “visitar”

ou, pelo menos, vislumbrar, a letra estrangeira da história. Isso

parece estar em acordo com a reflexão sobre a tradução enquanto

instância responsável pela perpetuação da obra de arte literária

dentro de um processo histórico definido que Walter Benjamin

realizou em meados do século XX. Portanto, o filósofo alemão

reconhece ser essa “continuação da vida das obras” (BENJAMIN,

2001, p. 193) aquilo a que se convencionou chamar de fama (a razão

pela qual, para ele, as “boas traduções” existem), concluindo o

filósofo que, caso visasse apenas à imitação objetiva do original, a

tradução decretaria ironicamente o fim deste, já que:

[...] na continuação de sua vida (que não mereceria esse nome, se não continuasse em transformação e renovação de tudo aquilo que vive), o original se modifica. Também existe uma maturação póstuma das palavras que já se fixaram: elementos que à época do autor podem ter obedecido a uma tendência de sua linguagem poética, poderão mais tarde ter-se esgotado; tendências implícitas podem destacar-se ex (sic) novo daquilo que já possui sua forma (BENJAMIN, 2001, p. 197).

Assim sendo, sugerimos que seja sob esse ponto de vista que

devamos compreender a razão pela qual Cardozo concebe a

tradução como movimento, haja vista sua afirmação de que

“traduzir é como partir numa viagem [...] é movimento”

(CARDOZO, 2006, p. 153). Essa consciência atesta que a mera

imitação representa a estagnação e, portanto, o fim da sobrevida

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(fama) da obra. Por outro lado, o movimento, ou seja, a renovação

garante-lhe um estágio de maturidade sempre ascendente.

6. O horizonte tradutório ou aquilo-a-partir-do-que Cardozo (re)traduz

Não obstante, para melhor entendermos essa questão,

temos de ter conhecimento do horizonte do tradutor, definido por

Berman como “o conjunto dos parâmetros linguísticos, literários,

culturais e históricos que determina o sentir, o agir e o pensar de um

tradutor” (BERMAN, 1994, p. 75).

Comecemos pelos parâmetros linguísticos e literários que,

no caso de O Centauro Bronco, como já apontado anteriormente, têm

base na prosa regionalista de Alencar, Guimarães Rosa, Euclides da

Cunha e Graciliano Ramos. Como ressalta Berman (1994, p. 75), é

importante ter em mente aquilo-a-partir-do-que se retraduz uma obra,

quais são os “[...] condicionamentos (...) pensados de forma causal

ou de forma estrutural” (loc. cit.), que levam o tradutor a retraduzir

uma obra já contemplada por traduções anteriores. Com isso,

segundo o teórico francês, podemos pensar esse horizonte no plural

e nos perguntar quais são os horizontes, em nosso caso, da

retradução de O Homem do Cavalo Branco.

Assim, posto termos em conta a totalidade das traduções de

Der Schimmelreiter no Brasil, em língua portuguesa, também importa

sabermos que Cardozo leu não só as duas traduções já existentes em

português – de Albertino Pinheiro Júnior (1963) e de João Távora

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(1952) – ou o texto escrito em língua alemã, Der Schimmelreiter, mas

também “uma das fontes mais centrais na matriz de referências da

novela de Storm” (CARDOZO, 2006, p. 145), o folhetim Der

Gespenstige Reiter. Ein Reise Abentheuer. O que faz com que ele

apreenda a experiência da tradução provocada pela pulsão tradutória

em seu aspecto bivalente: tanto como leitor que sente a necessidade

de conhecer a língua do original em sua plenitude de possibilidades,

quanto tradutor que, além de seguir o imperativo de confrontar a

violência do original sobre sua língua, deve também contribuir para

o “(...) mais tardio e vasto desdobramento” (BENJAMIN, 2001, p.

195) da obra de arte literária.

7. Antoine Berman e Jacques Derrida: a tradução concebida e

entendida no âmbito acadêmico-universitário

Para tanto, em um primeiro momento, seria proveitoso

conhecermos a situação da literatura alemã no Brasil e, portanto,

inteirarmo-nos acerca de qual seria o Sprachraum1 da língua e da

literatura alemã em nosso país, atualmente. Ou melhor,

questionarmo-nos se, de fato, ele existe em grande escala fora do

círculo acadêmico.

À vista disso, se ponderarmos o contexto editorial brasileiro,

podemos nos indagar de que outro modo estudiosos e críticos,

1 Termo linguístico usado para designar uma área geográfica onde uma língua, um dialeto, um grupo ou uma família de línguas são falados ou gozam de certo grau de prestígio.

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alunos universitários e leitores interessados em literatura estrangeira

(que em sua maioria não leem nesse idioma) travariam seus

primeiros contatos com a literatura em língua alemã, se não por

meio da tradução? De que outro modo eles seriam acossados pela

estranheza dessa outra língua a não ser pelas traduções, realizadas,

na maioria das vezes, em meio ao próprio âmbito acadêmico? Por

isso, Berman pronunciou-se a respeito.

Não é necessário se estender mais: parece-me evidente que a ligação da tradução com a Universidade, tal qual se opera atualmente, é um fenômeno histórico importante, no qual estará em jogo boa parte do destino da tradução e daquilo que se chama, no Ocidente, de Universidade (BERMAN, 2001, p. 17).

Chegamos, com isso, ao “[...] próprio caminho proposto por

Derrida: ver a tradução arquitetada e montada pela instituição

universitária” (OTTONI, 1998, p. 17). Mais que isso, se por um

lado, percebemos que no tradutor opera-se uma pulsão tradutória,

que o leva a reagir contra a violência da língua do Outro e o

impulsiona para o ato tradutório – a pulsão tradutória assim

entendida –, por outro, também entendemos que a pulsão tradutória

refrata-se em meio a seu processo de engendramento, instigando o

leitor que não conhece a língua do original a travar contato com essa

em seu domínio particular, em sua diferença e semelhança

estrangeiras.

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A partir daí, tendo em mente que “as literaturas estrangeiras

tornam-se mediadoras nos conflitos internos das literaturas

nacionais e lhes oferecem uma imagem delas mesmas que elas não

saberiam ter” (BERMAN, 2002, p. 118), percebemos que o trabalho

de Cardozo opera numa via dupla, pois, também indica para nós

qual seria o Sprachraum do próprio idioma português no Brasil, no

tocante à construção da nossa Literatura enquanto objeto estético

em constante devir.

Referências bibliográficas ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução: a teoria na prática. 5. ed. São Paulo: Ática, 2007. BERMAN, Antoine. Esboço de um método. Tradução de Brigitte Monique Hervot. In: Pour une critique des traductions: John Donne. Paris: Galliard, 1994, p. 64-83. ______. Au début était le traducteur. TTR: traduction, terminologie, rédaction, v. 14, n. 2, 2001. p. 15-18. BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. In: Clássicos da teoria da tradução. Tradução de Susana Kampff Lages. Florianópolis: UFSC, Núcleo de tradução, v. 1, 2001. CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 2006. CARDOZO, Mauricio Mendonça. ...E o mar vai virar sertão. In: O centauro bronco. Curitiba: Ed. UFPR, 2006.

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ISER, Wolfgang. Der Implizite Leser: Kommunikations formen des Romans von Bunyan bis Beckett. München: Wilhelm Fink, 1972. MORAES, Marcelo Jaques de. Sobre a violência da relação tradutória. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.19, 2011. p. 61-77. OTTONI, Paulo. (Org.). Tradução: a prática da diferença. Campinas, SP: Editora da Unicamp, FAPESP, 1998. SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre os diferentes métodos de tradução. In: HEIDERMAN, W. (Org.). Clássicos da tradução. Florianópolis: UFSC, Núcleo de tradução, v.1, 2001. p. 207-245. Antologia bilíngue, alemão-português. STORM, Theodor. A assombrosa história do homem do cavalo branco. Tradução de Mauricio Mendonça Cardozo. Curitiba: Ed. UFPR, 2006a. ______. O centauro bronco. Tradução de Mauricio Mendonça Cardozo. Curitiba: Ed. UFPR, 2006b. ZILLY, Berthold. Do leitor implícito ao tradutor implícito. In: Studien zur brasilianischen und portugiesischen Literatur. Frankfurt am Main: Domus Editora Europaea, 2001.

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A TRADUÇÃO DA LITERATURA INFANTIL: UMA ANÁLISE LINGUÍSTICA NO PAR INGLÊS/PORTUGUÊS BRASILEIRO

Kícila FERREGUETTI

Flávia Ferreira de PAULA

1. Introdução

Todas as crianças possuem grande necessidade de imaginar,

criar histórias e entrar no mundo da fantasia, assim, os livros de

histórias são de vital importância durante a infância. As histórias

entretêm seus ouvintes e/ou leitores ao mesmo tempo em que os

inserem na cultura e lhes apresentam à dualidade do bem e do mal.

Aventuras a lugares distantes, sonhos que se tornam realidade,

mistérios da morte, sentimentos de amor, ciúme, inveja e o bem que

sempre vence. Também enriquecem o vocabulário das crianças e as

levam a perceber a temporalidade dos contos, bem como a se

familiarizar com a presença de figuras de linguagem. No que diz

respeito à origem das histórias infantis, Lajolo e Zilberman explicam

que

[...] apenas durante o classicismo francês, no século XVII, foram escritas histórias que vieram a ser englobadas como literatura também apropriada à infância: as Fábulas, de La Fontaine, editadas entre 1668 e 1694, As

UFMG, Faculdade de Letras, Brasil, [email protected] UFMG, Faculdade de Letras, Brasil, [email protected]

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aventuras de Telêmaco, de Fénelon, lançadas postumamente, em 1717, e os Contos da Mamãe Gansa, cujo título original era Histórias ou narrativas do tempo passado com moralidades, que Charles Perrault publicou em 1697 (LAJOLO; ZILBERMAN, 2004, p. 15).

Os contos de fadas são narrativas que têm seus argumentos

desenvolvidos dentro de uma magia feérica (personagens do mundo

da realeza, fadas, gênios, bruxas, gigantes, anões, metamorfoses,

objetos mágicos, tempo e espaço fora de nossa realidade) e de uma

problemática existencial (COELHO, 1991, p. 13). Já as fábulas,

caracterizam-se como narrativas em prosa ou em verso, cujas

personagens são geralmente animais com características humanas

(pensam, agem, sentem e falam). Tais histórias mostram pontos de

vista sobre comportamentos humanos de forma a recomendar

certas atitudes e censurar outras. O ponto de vista que geralmente é

explicitado no final das fábulas é chamado de lição ou moral da história.

Teresa Colomer (2003, p. 13) esclarece que, apesar de esses textos

estarem presentes no imaginário popular desde tempos remotos, os

livros infantis e juvenis são um fato recente, pois as figuras da

criança e do adolescente só passaram a existir como fenômeno

cultural, de certo valor, a partir do século XVIII, antes disso, eram

vistos apenas como miniadultos, sem necessidades próprias.

Em artigo intitulado “A tradução: núcleo geratriz da

literatura infantil/juvenil”, Coelho (1987) trata da importância que

o ato de traduzir tem entre os homens desde os primórdios da

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história. Segundo Coelho (1987, p. 22), essa importância se torna

evidente quando começamos a estudar a origem das primeiras

narrativas exemplares ou das primeiras fábulas e acompanhamos seu

lento percurso. Essas histórias que venceram não apenas barreiras

no tempo, mas também grandes distâncias geográficas permitindo a

comunicação fecunda entre os homens da terra, divertindo ou

emocionando seus ouvintes/leitores ao mesmo tempo em que

funcionavam como mediadoras entre os homens e os ideais de

civilização que começavam a surgir.

Nas nações novas, como é o caso dos países das Américas,

a literatura infantil se iniciou com as traduções trazidas pelos

colonizadores aos povos colonizados (COELHO, 1987, p. 24). No

Brasil, foi por meio de traduções portuguesas que as crianças

conheceram o prazer de ouvir e/ou de ler histórias. Com Monteiro

Lobato, a literatura infantil iniciou uma reação nacionalista contra a

predominância lusitana em nossa cultura, não sem a grande

influência dos heróis e anti-heróis importados. Assim, conclui a

autora, a tarefa que vem sendo desempenhada pela tradução é de

grande relevância já que está ligada à gênese da literatura

infantil/juvenil no Brasil e no mundo.

Nesse cenário, este artigo almeja examinar o processo de

recontar e reescrever, na literatura infantil, a partir da análise de duas

obras escritas originalmente em língua inglesa e suas respectivas

traduções para o português brasileiro, a saber: Clifford, the big red dog

(de Norman Bridwell); Guess how much I love you (de Sam McBratney);

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Pacheco, o cachorro gigante (de Maria Clara Machado); Adivinha o quanto

eu te amo (de Fernando Nuno). Para tanto, pretende-se analisar as

obras sob uma perspectiva linguística com o uso da metodologia dos

Estudos da Tradução Baseados em Corpus e aporte teórico da

Linguística Sistêmico-Funcional. O artigo é embasado nos trabalhos

de Knowles e Malmkjaer (1996) e O’Sullivan (2003) com o intuito

de identificar em que medida as escolhas feitas pelos tradutores

oferecem indícios de suas vozes ou presenças discursivas nos textos

em questão.

2. Literatura infantil e tradução

A tradução em literatura infantil foi tema da 33ª edição do

Congresso da IBBY1, realizada em Londres em agosto de 2012. Em

palestra intitulada Why Translate Children’s Books? (Por que traduzir

livros infantis), O’Sullivan (2012) elucida um ponto importante da

tradução de livros infantis: a tradução se justifica frequentemente

como forma de enriquecer a cultura alvo e apresentar às crianças

1 A IBBY (International Board on Books for Young People) é uma instituição sem fins lucrativos que representa uma rede internacional de pessoas do mundo todo comprometida em reunir livros e crianças. Foi fundada em 1953, em Zurique, Suíça, atualmente conta com 70 seções nacionais pelo mundo todo, sendo que a brasileira é a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), criada em 1968, no Rio de Janeiro. A missão da IBBY é, entre outras, promover o estudo internacional de livros infantis e juvenis, estimulando a pesquisa e os trabalhos acadêmicos no campo da literatura voltada para crianças e jovens. A cada dois anos, a instituição organiza congressos que reúne seus membros e profissionais envolvidos com livros infantis e juvenis, promovendo a leitura por todo o mundo. O evento é sediado por uma seção nacional diferente a cada edição e conta com palestras, mesas redondas, seminários e minicursos, além da celebração do prêmio Hans Christian Andersen – considerado o Nobel da Literatura para crianças e jovens.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

128

culturas estrangeiras e, paradoxalmente, elementos estrangeiros

geralmente são apagados em textos traduzidos. A autora continua

dizendo que os tradutores de livros infantis, por vezes, querem

“proteger” o leitor de ser desafiado além de sua capacidade, com

medo de que eles não compreendam elementos estrangeiros.

A autora também aborda a questão da assimetria na

comunicação a respeito da literatura infantil e em livros infantis: são

adultos que escrevem livros infantis, adultos que os editam, adultos

que os escolhem na livraria ou na escola e adultos que os criticam.

Em suma, “adultos atuam em nome das crianças em todos os

estágios nesta comunicação literária” (O’SULLIVAN, 2006, p.

113)2. A autora afirma que no processo de tradução para crianças,

essa assimétrica comunicação é refletida, dessa forma, desde a

seleção dos textos até os detalhes de como cada item será traduzido,

são submetidos à avaliação de editores e tradutores. De modo tal

que se avalia o que os pequenos leitores “podem entender, do que

eles gostam, o que é apropriado e aceitável. Essas normas e

suposições funcionam em níveis educacionais, socioculturais,

ideológicos e estéticos” (O’SULLIVAN, 2006, p. 113)3.

O’Sullivan (2003) trata da questão do agente da tradução, o

tradutor, e sua presença no texto traduzido. Para tanto, a autora

apresenta ferramentas teóricas e analíticas, um modelo

2 Adults act on behalf of children at every stage in this literary communication (O’SULLIVAN, 2006, p. 113, tradução nossa). 3 Can understand, what they enjoy, what is suitable and acceptable. These norms and suppositions function on educational, sociocultural, ideological and aesthetic levels (O’SULLIVAN, 2006, p. 113, tradução nossa).

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

129

comunicativo da tradução, com base nos modelos de Chatman

(1978) e Schiavi (1996). Na Figura 1, o modelo de O’Sullivan (2003)

faz uma ponte entre os campos teóricos da narratologia e dos

estudos da tradução, ajudando a identificar o agente da mudança e o

nível de comunicação na qual as modificações mais relevantes

acontecem. É aplicável a todos os textos literários traduzidos, mas

devido à comunicação assimétrica na e em torno da literatura

infantil, o tradutor implícito se torna visível ou audível como o

narrador da tradução, sendo este particularmente tangível na

literatura infantil traduzida.

Figura 1: Modelo Comunicativo do Texto Narrativo Traduzido.

Fonte: Traduzido de O’Sullivan (2003, p. 201).

Por estar familiarizado com a língua fonte e com as

convenções daquela cultura, o tradutor se coloca na posição de leitor

implícito do texto fonte. O’Sullivan (2003, p. 201) ressalta que esse

fato é particularmente significativo no processo de tradução para

crianças, já que, como um adulto, o tradutor não pertence ao

público-alvo dos livros infantis. Dessa forma, ele precisa negociar

uma comunicação desigual no texto fonte entre o adulto autor

(implícito) e a criança leitora (implícita) para ser capaz de se colocar

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

130

no lugar desse último durante a tarefa de traduzir. A comunicação

entre o autor real do texto fonte e o leitor real do texto traduzido se

dá pelo tradutor real que se posiciona fora do texto, sendo seu

primeiro ato aquele de um agente receptor que, ainda em uma

posição fora do texto, transmite o texto fonte por meio de uma

agência intratextual do tradutor implícito (O’SULLIVAN, 2003, p.

202).

Entretanto, O’Sullivan (2003, p. 201), retomando Schiavi

(1996), esclarece que o tradutor não produz uma mensagem

completamente nova. O tradutor intercepta a comunicação e a

transmite, reprocessando-a para o novo receptor/leitor. Com a

interpretação do texto-fonte, seguindo certas normas, estratégias e

métodos, o tradutor, ainda segundo Schiavi, constrói uma nova

relação entre o texto traduzido e seu público-alvo, o que faz com

que o leitor implícito seja diferente daquele do texto fonte. O leitor

implícito da tradução, assim, pode ser equiparado ao leitor implícito

do texto fonte em muitos níveis, mas eles não são idênticos. Dessa

forma, O’Sullivan (2003, p. 201) conclui que o leitor implícito da

tradução sempre será uma entidade diferente do leitor implícito do

texto-fonte, o que se aplica a todos os textos ficcionais traduzidos.

3. Literatura infantil e linguística sistêmico-funcional

Knowles e Malmkjaer (1998) analisam a ideologia presente

na literatura infantil. Os autores utilizam a linguística sistêmico-

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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funcional para sua análise, partindo do princípio de que a língua é

um agente socializador, pois é por meio dela que a criança aprende

sobre o mundo social, sobre costumes sociais, instituições e

hierarquias (HALLIDAY, 1978). A língua de textos sociais,

incluindo aqueles que são lidos ou dados para as crianças, é um

agente particularmente eficiente na promoção da aceitação desses

costumes, instituições e hierarquias por parte da criança. Neste

artigo, adota-se o mesmo tipo de análise dos autores, com o uso da

linguística sistêmico-funcional, mas diferentemente de Knowles e

Malmkjaer (1998), a análise aqui será de livros de literatura infantil,

ilustrados e traduzidos.

A Linguística sistêmico-funcional, criada e desenvolvida por

Michael Halliday, postula que o texto, sob o ponto de vista de um

linguista, “é um fenômeno rico e multifacetado que ‘significa’ de

muitas formas diferentes”4 e que, consequentemente, possui várias

possibilidades de análise (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p.

3). Dentre essas possibilidades, duas se destacam: (i) um texto pode

ser analisado como um objeto passível de interpretação e avaliação

por parte do leitor; (ii) ou como um instrumento capaz de revelar

características do sistema linguístico no qual foi produzido. Ambas

as possibilidades se complementam, ainda que objetivem explicar

elementos diferentes (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004).

A análise apresentada se baseou no texto como instrumento,

dado que objetivava examinar como os significados foram

4 Nossa tradução para: is a rich, many-faceted phenomenon that ‘means’ in many different ways.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

132

realizados nos textos originais em inglês e nas suas respectivas

traduções para o português brasileiro, visando, a partir de uma

análise comparada e baseada nos recursos linguísticos utilizados por

autores e tradutores, identificar indícios da presença desses últimos

no texto traduzido. Para isso, adotou-se uma perspectiva de análise

que teve como ponto de partida as escolhas realizadas no âmbito da

léxico-gramática (HALLIDAY, 1978; HALLIDAY;

MATTHIESSEN, 2004).

Sob a perspectiva da léxico-gramática, a oração é a unidade

básica de análise, uma vez que “é na oração que os diferentes tipos

de significados são correlacionados em uma estrutura gramatical

integrada”5 (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p. 10). Em

outras palavras, a oração é a unidade em que operam os três sistemas

(transitividade, modo e tema) vinculados a três metafunções

(ideacional/experiencial, interpessoal e textual), realizando

simultaneamente três funções diferentes e, consequentemente,

construindo três tipos de significados distintos.

A metafunção ideacional/experiencial via sistema de

transitividade é responsável por construir os significados

experienciais, ou seja, representar as experiências das pessoas no

mundo por meio de uma configuração de Processos, Participantes e

Circunstâncias, realizados gramaticalmente por grupos verbais, grupos

5 Nossa tradução para: it is in the clause that meanings of different kinds are mapped into an integrated grammatical structure.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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nominais e por grupos adverbiais e frases preposicionais,

respectivamente (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004).

Já a metafunção interpessoal, por meio do sistema de modo,

possibilita a interação entre as pessoas. Tais interações sempre

envolvem algum tipo de troca, seja de informações, seja de bens e

serviços. As trocas de informações acontecem na forma de

proposições, isto é, via orações declarativas ou interrogativas. Já as

trocas de bens e serviços acontecem na forma de propostas,

geralmente por meio de orações imperativas (HALLIDAY;

MATTHIESSEN, 2004).

A metafunção textual, por sua vez, é responsável por

organizar os significados experienciais e interpessoais na oração e

caracterizá-la como mensagem via sistema de tema que confere a

cada oração uma estrutura temática (HALLIDAY;

MATTHIESSEN, 2004).

Com base no exposto, tem-se que a análise das orações que

compõem as obras infantis originais e traduzidas poderia ser

realizada sob três perspectivas diferentes, ou seja, segundo as

metafunções ideacional/experiencial, interpessoal e textual. Neste

artigo, optou-se por conduzir a análise apenas sob a perspectiva

textual, um dos motivos para tal decisão está no fato de que,

segundo Halliday (1978), é a metafunção textual que possibilita as

demais metafunções, isto é, a linguagem só é capaz de representar a

experiência e possibilitar a interação entre as pessoas porque é capaz

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

134

de fazê-lo na forma de texto. A metafunção textual e o sistema de

tema são apresentados mais detalhadamente a seguir.

3.1 A oração como mensagem e o sistema de tema

Cada oração possui uma estrutura temática composta de um

tema e um rema. Tema é o elemento ou informação escolhida para

ter proeminência na oração, ou seja, “é o elemento que funciona

como ponto de partida da mensagem; é o que localiza e orienta a

oração dentro do seu contexto”6 (HALLIDAY; MATTHIESSEN,

2004, p. 64). Já rema é “o restante da mensagem, a parte na qual o

tema é desenvolvido”7 (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p.

64).

O tema, por sua vez, é sempre composto por um elemento

experiencial (um participante, um processo ou uma circunstância),

que sinaliza o término do tema e o início do rema. Se possuir apenas

o elemento experiencial, o tema é considerado simples, porém, se,

além disso, possuir um elemento textual (conjunções, por exemplo)

ou um elemento interpessoal (como vocativos ou adjuntos modais)

ou ambos, é considerado um tema múltiplo (HALLIDAY;

MATTHIESSEN, 2004).

O tema pode ser, ainda, marcado ou não-marcado. Ele é

não-marcado quando conflui com o sujeito nas orações declarativas.

6 Nossa tradução para: is the element which serves as the point of departure of the message; it is that which locates and orients the clause within its context. 7 Nossa tradução para: remainder of the message, the part in which the Theme is developed.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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Quando isso não ocorre, é classificado como marcado. Geralmente,

as circunstâncias de tempo e de lugar figuram como os temas

marcados mais comuns (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004). A

seguir apresenta-se o Quadro 1 que ilustra a explicação acima a partir

de exemplos retirados do corpus de análise.

Quadro 1 – Os temas marcado e não-marcado na oração.

Tema Oração

Não-marcado

Simples Clifford

loves to chew shoes.

Tema Rema

Múltiplo But I love you this much

Tema Rema

Marcado

One Day

I gave Clifford a bath.

Tema Rema

No quadro, é possível observar três exemplos de temas que

ocorrem nas obras analisadas. O primeiro é um tema não-marcado

simples, uma vez que possui apenas o elemento experiencial que

conflui com o sujeito da oração Clifford. Já o segundo é um exemplo

de tema não-marcado, pois além do elemento experiencial que

conflui com o sujeito da oração I, tem-se também um elemento

textual, isto é, a conjunção But. Por fim, o terceiro exemplo é de um

tema marcado em que o ponto de partida da oração é uma

circunstância de tempo (One day) e não há confluência com o sujeito

que é I.

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136

A estrutura temática da oração também desempenha um

papel importante na construção de um texto uma vez que o tema,

além de organizar os significados experienciais e interpessoais,

distribuindo a informação dentro da oração, também realiza essa

função ao longo do texto. Sendo assim, as escolhas feitas com

relação a qual elemento será o ponto de partida de cada oração, bem

como se o tema será marcado ou não-marcado conferem ao texto

uma estrutura e um padrão temático que o situam dentro de um

determinado gênero ou tipo de texto (HALLIDAY, 1978).

Para explicar a organização temática de um texto e como ela

está ligada a um determinado gênero ou tipo textual, é preciso,

primeiramente, analisar como a informação flui ao longo do texto.

A teoria sistêmico-funcional compara o fluxo de informação no

texto como ondas que vão se formando, acumulando e gerando

ondas ainda maiores. Tudo começa com o tema, que confere

proeminência a um determinado elemento da oração. Seguindo a

metáfora da onda, essa proeminência equivale à crista de uma onda,

sendo que é a combinação e acumulação dessas cristas ou dessas

ondas de informação que faz com que o significado flua ao longo

do texto, ao mesmo tempo, em que cria um ritmo, uma

periodicidade para o mesmo (MARTIN; ROSE, 2003).

O ritmo, por sua vez, é criado a partir das fases que podem

ser identificadas no texto. Essas fases, chamadas de fases do

discurso, são criadas por uma sequência de temas não-marcados

(temas que confluem com o sujeito da oração) e continuam até que

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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um tema marcado seja introduzido, pois, como os temas marcados

são compostos por elementos que não configuram como sujeitos da

oração, eles geram uma descontinuidade no discurso, ao mesmo

tempo que sinalizam o início de uma nova fase do mesmo

(MARTIN; ROSE, 2003).

4. Metodologia

Os passos metodológicos podem ser descritos sob as

seguintes etapas: 1) Escolha dos livros que compõem o corpus; 2)

Conversão dos textos para formato eletrônico; 3) Leitura dos textos

pelo software WordSmith Tools 6.0; 4) Análise das linhas de

concordância; 5) Análise da organização temática dos textos; 6)

Análise qualitativa dos dados.

Conforme mencionado anteriormente, o objetivo principal

deste artigo é identificar indícios da voz ou da presença discursiva

do tradutor em livros de literatura infantil traduzidos para o

português brasileiro, para tanto, foi compilado um pequeno corpus

de livros infantis e suas traduções. Sendo assim, o trabalho se insere

na área de Estudos da Tradução Baseados em Corpus (ETBC) e a

metodologia se baseia no uso de ferramentas da Linguística de corpus

com análise quantitativa e qualitativa dos dados.

O corpus escolhido é constituído por duas obras de literatura

infantil ilustradas, escritas originalmente em língua inglesa e suas

respectivas traduções para o português brasileiro. A escolha das

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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duas obras se deve à proximidade da data de publicação de suas

traduções no Brasil (1995 e 1996).

Clifford, the big red dog foi escrita por Norman Bridwell e

publicada pela primeira vez em 1963. A obra virou uma série de

livros publicados pela editora Scholastic Books. De 2000 a 2003, foi

adaptada para a TV e produzida pela Scholastic Studios. Neste artigo,

analisamos apenas a primeira obra da série e sua tradução para o

português brasileiro – Pacheco, o cachorro gigante –, traduzida no Brasil

por Maria Clara Machado e publicada em 1995.

Guess how much I love you foi escrita em 1994 pelo britânico

Sam McBratney e ilustrada por Anita Jeram. A obra recebeu muitos

prêmios e foi traduzida para mais de 37 línguas, além de ter sido

adaptada para desenho animado no meio televisivo. Sua edição

brasileira, traduzida por Fernando Nuno, Adivinha o quanto eu te amo,

foi publicada em 1996 e, desde então, tem sido um sucesso de

vendas, sendo distribuída gratuitamente pela Coleção Itaú de Livros

Infantis no ano de 2011.

Após a escolha do corpus, os textos foram digitados. Os

possíveis erros foram corrigidos e o arquivo foi convertido em

formato .txt para tornar possível sua leitura pelo programa

WordSmith Tools8. Uma vez preparados os textos, foram submetidos

à análise do programa. Com a leitura pela ferramenta WordList,

foram levantados dados estatísticos mais gerais do corpus e de cada

8 Desenvolvido para a análise textual por Mike Scott e publicado pela Oxford University Press, o WordSmith Tools é um programa cuja versão 3.0 pode ser baixada gratuitamente pelo site: http://www.lexically.net/wordsmith/version3/index.htm.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

139

um dos textos originais e textos traduzidos e suas linhas de

concordância, em seguida, foi criada uma nuvem de palavras para

cada obra original e tradução com o uso da mesma ferramenta para

análise.

Terminada a análise quantitativa, deu-se início a análise

qualitativa, inicialmente, com a verificação das escolhas tradutórias

nas obras, seguida pela análise da organização temática em cada

texto-fonte e texto traduzido com o intuito de se identificar a voz

ou presença discursiva dos tradutores nos textos traduzidos.

5. Análise das obras

5.1 Clifford, the big red dog e Pacheco, o cachorro gigante

A partir da análise do paratexto da obra brasileira já é

possível fazer uma observação relevante: enquanto na capa do livro

consta que foi “baseado em ilustrações e texto de Norman

Bridwell”, dando a entender que autoria é de Maria Clara Machado,

na folha de rosto, lê-se “tradução de Maria Clara Machado”.

Maria Clara Machado é uma renomada autora de livros

infantis, logo, seu nome aparecendo junto com o de Norman

Bridwell, na capa, pode ser entendido como uma estratégia

mercadológica da editora para chamar atenção para a obra, além de

valorizar sua tradução. No que diz respeito às ilustrações, são

basicamente as mesmas, mas as cores são mais claras e o efeito de

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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ilustrações, remetendo à lembrança da personagem principal, feito

por cores borradas nas páginas, não é levado à obra traduzida, que

apresenta ilustrações com cores sólidas e personagens com sombras

abaixo, localizando-os no espaço.

No que tange às opções tradutórias, destaca-se o uso do

advérbio de intensidade muito no texto traduzido. Como é possível

observar no Quadro 2, esse recurso é utilizado em três momentos

distintos, conferindo uma avaliação de intensidade que não está

presente no original e que pode ser interpretada como uma forma

de explicitação por parte da tradutora.

Quadro 2 – O uso do advérbio de intensidade muito no texto traduzido.

Clifford, the big red dog Pacheco, o cachorro gigante

We have fun together. Nós dois somos muito amigos.

We play games. Brincamos muito.

I’m a good hide-and-seek player Eu sou muito esperta!

Outro elemento interessante que também pode ser

interpretado como uma forma de explicitação é o uso de pontos de

exclamação no texto traduzido. Enquanto no texto-fonte não foi

verificado o uso desse tipo de pontuação, no texto alvo, foi

empregado sete vezes como ilustrado no Quadro 3.

Quadro 3 – Emprego do ponto de exclamação no texto traduzido. Clifford, the big red dog Pacheco, o cachorro gigante

He makes mistakes sometimes. Mas, às vezes, ele traz outras coisas!

But he's a very good watchdog.

Os ladrões têm medo dele!

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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The bad boys don't come around anymore.

Eu não tenho medo de nenhum moleque!

His house was a problem, too. Todo cachorro tem casa... mas a do Pacheco é diferente!

Clifford loves to chew shoes. Confunde sapatos com chicletes... e as flores com doces!

I’m a good hide-and-seek player

Eu sou muito esperta!

I can find Clifford, no matter where he hides.

Encontro Pacheco em qualquer lugar!

A seguir, será apresentada a análise da organização temática

dos originais e suas traduções. O objetivo é identificar, por meio das

escolhas de tema e rema, indícios da voz ou presença da tradutora,

bem como possíveis marcas de assimetrias como definidas por

O’Sullivan (2003) no texto traduzido.

Como apresentado anteriormente, a metafunção textual é

responsável por organizar o fluxo de informação na oração e ao

longo do texto por meio do sistema de tema que confere

proeminência a um determinado elemento da oração. Além disso, a

forma como a informação flui ao longo da oração e do texto é

comparada a uma onda (MARTIN; ROSE, 2003). A Figura 2

apresenta a organização temática em Clifford, com os temas

identificados em negrito.

Figura 2: A organização temática em Clifford, the big red dog.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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Fonte: Formulada pelas autoras.

Como é possível observar, a partir da Figura 2, a obra

Clifford, the big red dog possui uma predominância de temas simples

não-marcados, nos quais os sujeitos das orações, no caso a menina

Emily Elizabeth, que narra a história, e Clifford, seu cachorro, são os

elementos que mais recebem proeminência nas orações ao longo da

narrativa.

Além disso, ambas as personagens são frequentemente

retomados por meio dos pronomes pessoais I, He e We, que estão

presentes tanto nos temas simples quanto nos temas múltiplos,

acompanhados das conjunções and e but. A partir dessa organização

temática, é possível argumentar que o fluxo da narrativa se

assemelha à fala de uma criança (com repetição de pronomes,

construções e estruturas).

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

143

A organização temática da obra possibilita ainda a

identificação de cinco fases principais durante a história. A primeira

delas começa com a personagem Emily Elizabeth se apresentando,

em seguida, há três fases nas quais ela apresenta o seu cachorro de

estimação e tudo o que fazem juntos, bem como seus defeitos e

qualidades, por fim, há uma última fase na qual ela compartilha uma

experiência com o leitor.

É interessante mencionar que essa última fase é a mais bem

definida da história, pois é introduzida pelo único tema marcado

presente no texto. O tema em questão é a circunstância de lugar One

day, que não só gera uma descontinuidade no texto introduzindo

uma mudança no assunto, mas também inicia uma sequência

temática que conduz à conclusão da história.

Na sequência, a organização temática da tradução é

apresentada e discutida. No entanto, primeiramente, é necessário

esclarecer como a organização temática foi disposta na figura que a

ilustra. Inicialmente, os elementos que constituem os temas das

orações foram identificados em negrito, em seguida, os temas que

configuram como uma sequência de um mesmo assunto foram

localizados logo abaixo do tema que seguiam e sinalizados por meio

de um pequeno recuo para a direita.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

144

Figura 3: A organização temática em Pacheco, o cachorro gigante.

Fonte: Formulada pelas autoras.

A partir da análise da Figura 3, é possível observar que, assim

como no texto-fonte, há uma predominância de temas não-

marcados simples. No entanto, a diferença se apresenta no fato de

que, enquanto no original, esses temas são constituídos, em sua

maioria, pelas duas personagens principais, Emily Elizabeth e seu

cachorro, na tradução há uma maior variedade de sujeitos recebendo

proeminência na oração, como os ladrões e os outros tipos de

cachorros, por exemplo.

É importante mencionar também que muitos dos elementos

que passam a receber proeminência na oração do texto traduzido

estavam presentes no rema do texto original ou poderiam ser

depreendidos por meio das ilustrações. Um exemplo está na

presença de dois temas marcados realizados por circunstâncias de

tempo (Quando acampamos) e de espaço (No jardim Zoológico), que

contribuem para uma localização espaço-temporal da história que

não é feita no original. Sendo assim, é possível que essas escolhas

temáticas se configurem como indícios da presença da tradutora,

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

145

que julgou necessário explicitar determinados elementos da história

para o leitor.

Outra questão que emerge, a partir das escolhas temáticas

feitas pela tradutora, está no fato de que não é possível delimitar as

fases da narrativa traduzida de forma tão evidente como acontece

com o texto traduzido, pois a maior variedade de elementos

recebendo proeminência na oração faz com que a informação seja

distribuída de forma diferente ao longo do texto e com que o

assunto mude com maior frequência. Essa questão pode ser

novamente ilustrada pelos dois temas marcados, introduzidos no

texto traduzido, pois criam uma descontinuidade na narrativa que

não está presente no original. No entanto, é interessante apontar

ainda que o único tema marcado do original, que sinaliza a principal

mudança na narrativa, conduzindo-a para o seu desfecho não foi

mantida na tradução, evidenciando ainda mais a dificuldade de se

delimitar as fases do texto traduzido.

5.2 Guess how much I love you e Adivinha o quanto eu te amo

Na obra Guess how much I love you, a capa apresenta apenas o

nome do autor Sam McBrateney e da ilustradora Anita Jeram, sendo

que o nome do tradutor aparece apenas na ficha catalográfica. As

ilustrações do texto traduzido são as mesmas do texto-fonte.

A história gira em torno de duas personagens: Big Nutbrown

Hare e Little Nutbrown Hare, no texto-fonte, e Coelho Pai e Coelhinho,

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no texto traduzido. Chama atenção o fato de a obra em inglês não

aludir ao grau de parentesco entre as duas personagens, assim,

entende-se que são da mesma família por terem o mesmo

sobrenome, mas a relação não fica explícita para o leitor. Já no texto

em português, essa relação entre as personagens é explicitada como

sendo de pai e filho por meio das escolhas tradutórias para os nomes

dos mesmos: Coelho Pai e Coelhinho.

Outra questão interessante é a tradução de hare (“lebre”, em

português) como “coelho”. Nas figuras, pelo tamanho das

personagens, é possível notar que se trata de lebres. Uma explicação

para essa escolha do tradutor é o fato de, no Brasil, a lebre não ser

um animal tão comum quanto o coelho. Lebres são encontradas na

Europa, Ásia, África e América do Norte. Uma diferença evidente

entre os dois animais é o tamanho de seus membros posteriores.

Além disso, a tradução do nome das personagens se configura como

um grande desafio para o tradutor por uma questão de gênero da

língua portuguesa: a palavra lebre serve apenas para designar a fêmea

do animal, sendo o macho “lebrão” ou “lebracho”, enquanto o

filhote é chamado de “láparo”. Assim, o tradutor optou por Coelho

Pai e Coelhinho já que o uso da palavra “lebrão” ou “láparo” poderia

causar certa estranheza na leitura de uma obra infantil.

A análise da obra traduzida também aponta para o uso de

pontos de exclamação pelo tradutor em uma frequência maior do

que o autor do texto fonte. No total, são duas ocorrências de ponto

de exclamação no texto-fonte, mantidas no texto traduzido, e seis

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no texto traduzido, duas trazidas do texto-fonte e outras quatro

acrescentadas pelo tradutor, o que pode ser interpretado como uma

forma de explicitação por parte do tradutor (Quadro 4).

Quadro 4 – Emprego do ponto de exclamação no texto fonte e texto traduzido.

Guess how much I love you Adivinha o quanto eu te amo

Big Nutbrown Hare had even longer arms. “But I love you this much,” he said.

Só que o Coelho Pai tinha os braços mais compridos. E disse: - E eu te amo tudo isto!

“I love you all the way up to my toes!” he said.

- Eu te amo até as pontas dos dedos dos meus pés!

“I love you as high as I can hop!” laughed Little Nutbrown Hare, bouncing up and down.

- Eu te amo a altura do meu pulo! - riu o Coelhinho, saltando para lá e para cá.

“I love you right up to the moon,” he said, and closed his eyes.

Eu te amo ATÉ A LUA! – disse ele, e fechou os olhos.

“Oh, that’s far,” said Big Nutbrown Hare. “That is very, very far.”

- Puxa, isso é longe – disse o Coelho Pai. – Longe mesmo!

Then he lay down close by and whispered with a smile, “I love you right up to the moon – and back.”

Depois, deitou-se ao lado do filho e sussurrou sorrindo: - Eu te amo até a lua... IDA E VOLTA!

No texto-fonte, as ênfases são marcadas com o uso de

itálicos, recurso comumente empregado nos textos em língua

inglesa. Ressalta-se que o tradutor transpôs tal marcação para o texto

traduzido, como pode ser visualizado no Quadro 5. Tal feito

confirma a hipótese de Saldanha (2011) que mostra uma tendência

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do uso de itálicos para ênfase em textos traduzidos em língua

portuguesa, embora esse uso não se constitua como uma função do

itálico em português. Além da marcação de ênfase com o uso de

itálicos no texto traduzido trazidas do texto-fonte, é possível notar

que o tradutor faz o uso mais recorrente desse recurso no texto

traduzido se comparado ao texto-fonte, como pode ser observado

nas linhas 3 e 4 do Quadro 5.

Quadro 5 – O uso de itálicos para ênfase no texto fonte e texto traduzido.

Guess how much I love you Adivinha o quanto eu te amo

1 Big Nutbrown Hare had even longer arms. “But I love you this much,” he said.

Só que o Coelho Pai tinha os braços mais compridos. E disse: - E eu te amo tudo isto!

2 “I love you as high as I can reach,” said Big Nutbrown Hare.

- E eu te amo toda a minha altura – disse o Coelho Pai.

3 “And I love you all the way up to your toes,” said Big Nutbrown Hare, swinging him up over his head.

- E eu te amo até as pontas dos teus pés – disse o Coelho Pai, balançando o filho no ar.

4 “But I love you as high as I can hop,” smiled Big Nutbrown Hare - and he hopped so high that his ears touched the branches above.

- E eu te amo a altura do meu pulo – riu também o Coelho Pai, e saltou tão alto que suas orelhas tocaram os galhos da árvore.

Além dos itálicos para ênfase que o tradutor transporta do

texto-fonte, pode-se destacar o uso de palavras e frases em “caixa

alta” a fim de dar ênfase, conforme a Quadro 6. O uso de “caixa

alta” pode ser interpretado como um aumento no tom de voz ou

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grito, recurso muito usado principalmente após o advento da rede

mundial de computadores.

Quadro 6 – O uso de caixa-alta para ênfase no texto-fonte e no texto traduzido.

Guess how much I love you Adivinha o quanto eu te amo

1 “I love you right up to the moon,” he said, and closed his eyes.

Eu te amo ATÉ A LUA! – disse ele, e fechou os olhos.

2 Then he lay down close by and whispered with a smile, “I love you right up to the moon - and back.”

Depois, deitou-se ao lado do filho e sussurou sorrindo: - Eu te amo até a lua... IDA E VOLTA!

A parte final da obra, apresentada na linha 2 do Quadro 6,

apresenta uma mudança de sentido interessante como resultado do

emprego desse recurso. No texto-fonte, a personagem Big Nutbrown

Hare coloca Little Nutbrown Hare para dormir e sussurra com um

sorriso “I love you right up to the moon – and back”. A última palavra da

história, back, termina a obra com Big Nutbrown Hare colocando Little

Nutbrown Hare para dormir, entende-se, pois, que o pequeno termina

a história “pegando no sono”. Já no texto traduzido, o recurso

utilizado pelo tradutor não deixa a mesma interpretação: o pai

coloca o filho para dormir, deita-se ao seu lado e sussurra sorrindo

“Eu te amo até a lua... IDA E VOLTA!”. O recurso da “caixa alta”

para enfatizar o amor do pai pelo filho não dá a ideia de que o

coelhinho termina a história pegando no sono, já que o aumento no

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tom de voz é ainda reforçado pelo ponto de exclamação que termina

a narrativa.

No que diz respeito à analise da organização temática da

obra Guess how much I love you, é possível verificar que os elementos

que recebem proeminência nas orações tendem a ser os mesmos no

texto-fonte e texto-alvo, conforme é apresentado na Figura 4.

Figura 4: Temas em Guess how much I love you e Adivinha o quanto eu te amo.

Fonte: Formulada pelas autoras.

Na Figura 4, é possível observar que os temas em ambas as

obras são majoritariamente temas simples, com as personagens

principais recebendo proeminência nas orações. Também é

possível verificar que essas personagens são frequentemente

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retomadas pelos pronomes pessoais I e Eu, logo, sua repetição,

como forma de referência a ambas as personagens, é uma

característica da organização temática tanto do texto-fonte quanto

do texto traduzido.

6. Considerações finais

Em linhas gerais, nas obras analisadas, há uma tendência, na

literatura infantil traduzida para o Brasil, de mudança na organização

temática, de mudança na pontuação, de explicitação das imagens, de

mudança no nome das personagens, de uso de itálicos e de caixa alta

para ênfase. Esses recursos remetem à voz ou à presença discursiva

do tradutor nos textos analisados.

A obra traduzida Pacheco, o cachorro gigante apresenta mais

mudanças no que se refere à organização temática e explicitação das

imagens. A presença da tradutora Maria Clara Machado é notada

desde a capa do livro, com seu nome escrito juntamente com o da

autora Norman Bridwell. Foi possível identificar uma maior

variedade de elementos recebendo proeminência ao longo do texto.

Elementos esses que, no original, faziam parte do rema ou estavam

implícitos nas imagens dos quais a tradutora optou por explicitá-los

no tema. Dessa forma, é possível argumentar que essas questões

configuram não só como indícios da presença da tradutora, mas

também tornam o texto traduzido menos dependente das imagens

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do que o original, com a tradutora “narrando” as ilustrações para

seu leitor.

A obra traduzida Adivinha o quanto eu amo apresentou mais

mudanças no que se refere ao uso de recursos para ênfase. O uso de

“caixa alta”, por exemplo, que não aparecia no original, direciona a

interpretação do leitor e, em dados momentos, a torna diferente

daquela do texto original, como no trecho final da obra. Nesse livro,

ainda foi maior o uso de pontos de exclamação e uso de itálicos para

ênfase do texto-fonte.

Além disso, em Adivinha o quanto eu amo, a relação de

parentesco entre as personagens foi explicitada nos nomes

utilizados na tradução (Coelho Pai e Coelhinho), sendo que essa relação

fica apenas subentendida na obra original. A mudança do animal

ilustrado nas figuras também foi notada, a qual pode ser justificada

pelo gênero feminino da palavra “lebre” em língua portuguesa, em

contraposição ao gênero masculino das personagens da obra. Assim,

pode-se concluir que, apesar de o nome do tradutor aparecer apenas

na ficha catalográfica, sua presença pode ser vista/ouvida por toda

a obra traduzida.

Por fim, destaca-se que as mudanças analisadas mostram

indícios de um leitor implícito que o tradutor tem em mente

enquanto traduz, como destacado por O’Sullivan (2003), o qual se

pretende analisar em mais detalhes em trabalhos posteriores.

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______. Why translate children’s books? 33rd IBBY Congress. London: International Board on Books for Young People, 2012. SALDANHA, G. Emphatic Italics in English Translations: Stylistic Failure or Motivated Stylistic Resources? In: Meta : journal des traducteurs / Meta: Translators' Journal, 56, 2011. p. 424-442.

SCHIAVI, G. There is Always a Teller in a Tale. In: Target, n. 8, 1996. p. 1-21.

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155

PROCEDIMENTOS TRADUTÓRIOS E TEORIA LITERÁRIA NAS TRADUÇÕES DE GEIR CAMPOS DE FOLHAS DE RELVA,

DE WALT WHITMAN

Bruno GAMBAROTTO

“A grandiosidade do conteúdo da poesia de Whitman seria uma função da forma derramada de seus versos?”

Geir Campos, 1983

O presente artigo visa a uma breve avaliação da recepção e

das traduções poéticas brasileiras de Leaves of Grass, de Walt

Whitman, com foco no trabalho do tradutor fluminense Geir

Campos. O interesse de tal avaliação é refletir sobre as

possibilidades de incorporação mediadora dos campos da história e

da teoria literárias à prática tradutória. Para especificar o horizonte

teórico do qual partem os questionamentos deste artigo, formulo

duas questões: 1) como avaliar uma tradução literária a partir das

determinações histórico-sociais que permeiam o trabalho do

tradutor e, principalmente, seu produto enquanto forma literária? 2)

Será possível, mediante pesquisa literária, eliminar os abismos

culturais e históricos que possam separar sociedades e tornar

possível e acessível a um determinado grupo-leitor uma obra que

jamais poderia ter sido produzida em seu próprio contexto para

além do artifício da tradução? Evidentemente, são questões que

USP, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Brasil. [email protected]

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transcendem ao caso que trazemos à baila, aplicando-se ao ofício do

tradutor literário em geral. É preciso expô-las em relação ao autor e

ao tradutor analisados.

O poeta norte-americano Walt Whitman (1819-1892) traz

dificuldades bastante específicas a seus tradutores. O tradutor de

poesia é geralmente consagrado pela habilidade com que maneja a

grade formal de um poema. Para ficarmos apenas no exemplo

europeu clássico, isto é, o da poesia de cunho classicizante que se

desenvolve a partir do século XIV e se mantém dominante até fins

do século XVIII em seus diversos modos de construção, cujas

habilidades pressupõem a eficiência do tradutor no trabalho com

medidas e padrões de cunho universalizante: trata-se de formas

fechadas (em seus mais variados gêneros), modelos de assonância

(rima, aliterações etc.), quantidade (sílabas longas ou breves) e

qualidade (tônicas ou átonas) rítmicas que se disseminam por toda a

Europa e constituem uma cultura literária comum, cujas fórmulas –

sejam estas tributárias do sentido ou da forma – são compartilhadas.

A partir da poesia italiana do Renascimento, institui-se certo

conjunto de formas poéticas (a mais importante, o soneto) que

percorre as cortes europeias juntamente com certos

desenvolvimentos tópicos (relacionados à lírica amorosa, por

exemplo). É sabido que o esforço de aclimatação de formas fez com

que o ofício da tradução acompanhasse pari passu a produção literária

propriamente dita a ponto de mal diferenciar-se desta – como se

poderia depreender do petrarquismo dos portugueses Sá de Miranda

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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e Luis de Camões, responsáveis pelo aporte e consolidação da

“medida nova” em sua corte. Tirante questões históricas e sociais

que marcam quaisquer especificidades literárias, o trabalho do

tradutor literário com a poesia tradicional exige o conhecimento de

uma comunidade prévia e consolidada de formas em que mesmo as

equivalências (a tradução do pentâmetro jâmbico pelo decassílabo

em versões do inglês para o português, por exemplo) conhecem

consagração literária que independe do arbítrio e das decisões do

profissional contemporâneo, senão pela necessidade que este terá

de estudá-las e conhecê-las.

O virtuosismo e a cultura daqueles que lidam com essa

máquina que é o poema tradicional ganham outro interesse quando

o assunto é poesia moderna, horizonte do tradutor que se depara

com Leaves of Grass, de Walt Whitman. Ao longo de quase quarenta

anos (1855-1892) e sete edições em que se constrói o volume,

Whitman traz a lume uma das mais importantes e radicais

experiências poéticas da modernidade, instaurando as balizas de

uma poesia propriamente norte-americana ao mesmo tempo em que

produz uma veemente crítica aos modelos da poética europeia e à

instituição literária do Velho Mundo. Transportando esse breve

comentário às preocupações tradutórias acima formuladas, tem-se

aqui um primeiro momento do que consideramos a necessidade do

aporte da história e da teoria literárias ao exame do autor a ser

traduzido. Sob a perspectiva da crítica whitmaniana e, portanto, do

mapeamento das tensões estéticas, sociais, históricas e culturais

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implicadas no desenvolvimento de sua prática poética, a primeira

questão que se coloca diz respeito ao que está em jogo nos versos

de Leaves of Grass. Em sentido bastante amplo, estaríamos diante do

que seria a primeira grande experiência poética moderna sob a forma

de verso livre; no entanto, é bastante problemático assimilar a

liberdade do verso whitmaniano à violência que constitui o

rompimento dos poetas franceses com a prosódia clássica da poesia

francesa – processo já presente em Baudelaire, mas que é levado às

últimas consequências com Rimbaud, Laforgue e Mallarmé nas três

últimas décadas do século XIX, disseminando-se, já sob uma nova

e organizada busca por unidades de ritmo e extensão do verso, na

poesia de vanguarda.

O verso livre de Whitman conhece a ruptura em sentido

muito mais próximo das experiências poéticas do século XX do que

de seus contemporâneos franceses. Justifica-se tal proximidade a

partir de um sentido de invenção que perpassa tanto as necessidades

de reorganização da pesquisa poética europeia em torno do

esfacelamento da grande tradição clássico-humanista – recuperada e

compartilhada mediante os esforços do “talento individual” e da

construção autoral das “tradições”, para ficarmos com T. S. Eliot1 –

quanto o experimento de Whitman de abandono do pentâmetro

jâmbico e exploração do ritmo dos versículos bíblicos, da poesia de

base popular e, principalmente, da prática oratória, disseminada de

1 Cf. ELIOT, T. S. Tradição e talento individual. In: Ensaios (tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira). São Paulo: Art Editora, 1989, p. 37-48.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

159

modo indiscriminado no púlpito religioso e nos palanques políticos.

Chama-se, aqui, invenção o trabalho estético de Whitman a partir da

heterogeneidade de registros e modos discursivos concorrentes à

constituição do verso. Essa já se apresenta nas famosas linhas que,

em 1855, abrem o poema sem nome que viria a ser a primeira versão

de “Canção de mim mesmo”:

I celebrate myself, And what I assume you shall assume,

For every atom belonging to me as good belongs to you.2

Que o leitor atente à indiferença prosaica, à regularidade

métrica, à ressonância bíblica de “shall” e ao endereçamento ao

outro (“you, whoever you are”, na fórmula consagrada por sua poesia),

anônimo com o qual se compartilha uma experiência medida por

“átomos” absolutamente estranhos ao horizonte temático da poesia

tradicional. Diante de tal obra, torna-se redutora uma postura

tradutória que, evidentemente, liberada das dificuldades do verso

tradicional, limite-se a transpor seus versos sem qualquer cuidado

rítmico – julgando-os por sua irregularidade e prosaísmo sem

qualquer consulta ao forte valor cultural de que são prenhes –, ou

ainda, rendendo-se a uma versão instrumental, ou ad verbum, que não

busque a identificação das nuances e o embate com as possibilidades

de sua transposição formal e semântica.

2 Na tradução de Rodrigo Garcia Lopes, temos: “Eu celebro a mim mesmo/E o que eu assumo você vai assumir, /Pois cada átomo que pertence a mim pertence a você”. WHITMAN, Walt. Folhas de relva (A primeira edição, 1855. Tradução e posfácio de Rodrigo Garcia Lopes). São Paulo: Iluminuras, 2005, p. 45.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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Dados os problemas mais imediatos da versão de Whitman,

passemos a sua avaliação em chave brasileira. Apesar de largamente

publicado no último decênio – são duas as traduções completas de

Leaves of Grass (publicadas por Luciano Alves Meira, em 2005, e por

mim, em 2011), sem contar o importante trabalho de Rodrigo

Garcia Lopes com a primeira edição do volume (1855), publicada

em 20053, Walt Whitman foi objeto de interesse literário e tradutório

no Brasil ao longo de todo século XX4, a começar pelos

Modernistas. Sendo que o interesse, neste artigo, é investigar as

possibilidades de incorporação da teoria literária e da história crítica

à prática tradutória, começo tratando dessa primeira recepção de

Whitman – da qual depreendo, como se verá, um prenúncio das

dificuldades compartilhadas por tradutores futuros.

Whitman chega ao Brasil passando primeiramente pelas

vanguardas europeias, que assimilaram às suas preocupações a

“liberdade” e a “grandeza messiânica” da poesia whitmaniana. No

“Prefácio Interessantíssimo” de Mário de Andrade, a sua Pauliceia

desvairada (1922), vemos o poeta citado em uma lista que inclui

3Cf. Bibliografia. 4Sabe-se, pela prof. Maria Clara Bonetti Paro (Unesp de Araraquara), que a reunião de traduções de Whitman produzidas desde a década de 1920 contavam com muitas versões dos mesmos poemas e, em contrapartida, lapsos que só vieram a ser corrigidos com a edição citada. Cf. PARO, Maria Clara Bonetti. Leituras brasileiras da obra de Walt Whitman. Tese de doutoramento. Universidade de São Paulo. Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, 1995. ______. Recepção literária de Walt Whitman no Brasil (1917-1929). Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, 1979.

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nomes díspares como São João Evangelista e Mallarmé5; e entre os

modernistas, Whitman logo transcende as perspectivas

vanguardistas que o colocavam ora nas hostes futuristas, ora nas

espírito-novistas6, para se tornar um poeta de verve nacional –

tendência fundamental de nosso Modernismo. Mário de Andrade,

de maneira crítica, e Ronald de Carvalho, de maneira menos tensa e

mais mimetizante, assumiram o estudo da obra de Whitman nesse

período do qual extraíram, pelo menos, uma grande contribuição –

a Lira paulistana, de Mario de Andrade, já em compasso de revisão

do Modernismo (1945) – e parte dos poemas Toda a América, de

Ronald de Carvalho (1926), bastante calcado nas longas

enumerações descritivas que compõem os “catálogos” de

Whitman7.

5 “Você já leu São João Evangelista? Walt/ Whitman? Mallarmé? Verhaeren?”. “Prefácio Interessantíssimo”. In: ANDRADE, Mário de. Poesias completas (Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio). Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2005, p. 60. 6 Cf. APOLLINAIRE, G. “A tradição antifuturista (Manifesto síntese, 29 de junho de 1913)”; “O Espírito novo e os poetas”. In: TELES, G. M. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1997. 7 Para exemplificar tecnicamente o processo de enumeração na obra de Whitman conhecido como “cataloguing”, cito o início da seção 15 de “Canção de mim mesmo”: “A contralto puro canta na sala do órgão,/O carpinteiro corta a tábua, a lâmina da plaina assovia a seus gestos ascendentes e vigorosos,/ Os filhos casados e solteiros vão para casa para o jantar do dia de Ação de Graças,/ O piloto agarra o leme, seu braço forte o puxa para baixo,/ O imediato está a postos no bote baleeiro, arpão e lança estão prontos,/ O caçador de patos caminha silencioso e se move com cautela,/ Os decanos são ordenados com as mãos cruzadas no altar,/A tecelã recua e avança ao zunir da roda do tear,/O fazendeiro para no cercado de um domingo tranquilo e observa o trigo e o centeio,/O louco é enfim levado para o asilo, um caso confirmado,/(Ele nunca mais dormirá como dormia no catre do quarto de sua mãe;) [...]” WHITMAN, Walt. Folhas de relva (Edição do leito de morte. Organização e tradução de Bruno Gambarotto). São Paulo: Editora Hedra, 2011, p. 54.

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Como poetas, Mário e Ronald assinalam, ao meu ver, os

limites da assimilação da poesia de Whitman pelo Modernismo e a

poesia brasileira dele derivada. Na Lira paulistana, de Mário, são

muitos os níveis da presença whitmaniana. Já na introdução da série

de fragmentos sem título que ocupa praticamente todo o volume, a

“história da viola” (“Minha viola bonita/ Bonita viola minha,/

Cresci, cresceste comigo/ Nas Arábias”) remonta a, pelo menos, um

aspecto da “Canção do Machado”8, de Whitman, que seja, a

recuperação da experiência social que dá forma aos instrumentos (a

viola e o machado) que ensejam ambos os cantares. Recuperar a

experiência social e histórica que dá sentido à forma literária é

central para ambos – e é essa perspectiva que abona a aproximação

crítica dos poetas, não obstante a técnica de verso popular

empregada na primeira parte da Lira difira diametralmente dos

versos derramados de Whitman. Mário observa, porém, como

Whitman, uma formação social do verso. Suas trovas não remontam a

um saber abstrato, preciosismo de pesquisador. De suas rimas e

refrãos salta algo dos cantares tradicionais em choque com a

metrópole, e nisso, os versos ganham uma dimensão social, uma

perspectiva historicamente concertada (isto é, pelo conflito de

classes e interesses que sugere o enfrentamento e o empenho

próprios à Lira) da qual surge a variedade das observações e

experiências que se permitem vazar pela “viola”. Assim, incorpora-

8 Cf. “Canção do machado, 3”. In: Folhas de relva (Edição do leito de morte. Organização e tradução de Bruno Gambarotto). São Paulo: Editora Hedra, 2011, p. 162-163.

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se uma discursividade multifacetada que, à maneira de “Canção de

mim mesmo”, de Whitman, vai da blague ao lirismo e, desse, à

narrativa.

Pensar a Lira paulistana, de Mário, sob a perspectiva de sua

incorporação da poesia whitmaniana significa atentar a um

importante problema de forma no que tange à recepção de

Whitman: a produção social da forma poética, tal como reconhecida

por Mário e Whitman, implica uma especificidade material que, no

limite, impossibilita a simples reprodução da forma. O verso

whitmaniano torna-se, para Mário, inacessível (intraduzível?) da

perspectiva de sua imitação – o palanque político, o púlpito religioso

e a oratória, fundamentais para o alargamento da experiência rítmica

do verso whitmaniano, não pertencem à experiência brasileira9. Há,

em contrapartida, a possibilidade de reflexão comum sobre a

subjetividade e a vida conflituosa na metrópole. É com essa visada

que Mário volta-se a Whitman, ao mesmo tempo em que ressignifica

modelos poéticos tradicionais sob a ótica dos antagonismos sociais.

A preterição velada que Mário faz do verso longo whitmaniano

9 Como dirá Maria Clara Bonetti Paro (1995) em sua pesquisa seminal da presença de Whitman no Brasil, muito embora o norte-americano tenha servido de exemplo para Mário construir (como em Ronald de Carvalho) uma intenção de pluralidade na constituição de si (“Tenho um mapa-múndi de estados de alma”, ou “Sou o compasso que une todos os compassos”), nem sempre veremos Mário aderindo incondicionalmente ao poeta norte-americano. A consulta à marginalia da edição que Mário de Andrade possuía de Leaves of Grass nos mostra como o impulso de aceitá-lo era acompanhado do reconhecimento de diferenças intransponíveis. Escreve Mário no frontispício de sua edição, em comentários que ecoam a construção de Lira paulistana: “Eu não entro no poema”. Versos geralmente longos. Mostrar a miséria moral do Brasil, por causa da infâmia da política republicana com palavras enérgicas e cuidar da eloquência para que seja viril e humana e não romântica e pessoal. Esse tema faz sim polifonia durante todo o poema com a descrição do assunto gerador. Em partes separadas, talvez, como Song of Myself? (PARO, 1995, p. 87).

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como forma possível de enfeixamento da experiência na metrópole

brasileira (e confirmada, como boa regra, pela declarada emulação

promovida pelo poeta na peça que fecha a Lira, “Meditação sobre o

Tietê”, em que o sentido amargo de revisão da vida dialoga

diretamente, em sua versão whitmaniana, com “Travessia pela balsa

do Brooklyn”) terá ressonância, enquanto experiência de recepção literária

no âmbito cultural brasileiro, no histórico das dúvidas tradutórias

propiciadas por Whitman.

Em sentido inverso, a “influência” de Whitman em Ronald

é muito mais evidente – há em Ronald a mimetização do verso livre

whitmaniano, da organização catalógica, dos longos arrolamentos

descritivos, porém, sem muita reflexão sobre a relação entre a

matéria que passa a figurar nesse modelo expressivo e a constituição

desse10. Ronald, porém, produziu o que se tornaria praxe na tradução

10 Veja-se Brasil, poema de Toda a América: “Eu ouço todo o Brasil cantando, zumbindo, gritando, vociferando!/Redes que se balançam,/sereias que apitam,/usinas que rangem, martelam, arfam, estridulam, ululam e roncam, /tubos que explodem,/guindastes que giram,/rodas que batem,/trilhos que trepidam,/rumor de coxilhas e planaltos, campainhas, relinchos, aboiados e mugidos,/repiques de sinos, estouros de foguetes, Ouro-Preto, Bahia, Congonhas, Sabará,/vaias de Bolsas empinando números como papagaios,/tumulto de ruas que saracoteiam sob arranha-céus,/vozes de todas as raças que a maresia dos portos joga no sertão!//Nesta hora de sol puro eu ouço o Brasil./Todas as tuas conversas, pátria morena, correm pelo ar.../a conversa dos fazendeiros nos cafezais,/a conversa dos mineiros nas galerias de ouro,/a conversa dos operários nos fornos de aço,/a conversa dos garimpeiros, peneirando as bateias/a conversa dos coronéis nas varandas das roças...//Mas o que eu ouço, antes de tudo, nesta hora de sol puro/palmas paradas/pedras polidas/claridades/brilhos/faíscas/cintilações/é o canto dos teus berços, Brasil, de todos esses teus berços, onde dorme, com a boca escorrendo leite, moreno, confiante,/o homem de amanhã!” (CARVALHO, 1960, p. 46) O poema “Brasil” (claramente inspirado em “I Hear America Singing”, de Whitman) traz um bom apanhado dessa primeira leitura do poeta norte-americano, uma súmula de procedimentos métricos e imagéticos: a diferença regional transformada em variedade tipológica, que arrolando figuras díspares como “arranha-céus” e “garimpeiros”, promoverá o comum; o gigantismo do sujeito poético, que dá para si a amplitude das manifestações sonoras e visuais arroladas sob o signo do país; os versos longos, modulados pela velocidade com que os elementos se sucedem. O

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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de Whitman: a reprodução do verso livre whitmaniano sem maiores

reflexões sobre as condições de seu surgimento enquanto invenção,

aclimatando-o ao português mediante uma tradição de versificação

livre europeia (principalmente francesa) que não compreende o

verso livre sob o mesmo ímpeto comunicativo e declamatório de

Whitman – do qual o reforço retórico aos aspectos místico-

românticos de sua poesia, a uma grandiloquência passional desfeita

de sua contrapartida comunicativa. Mário, por sua vez, recorre a

formas populares e orais que, socialmente equivalentes do que pressupõe

o verso whitmaniano, são formalmente estranhas a ele, pois – este é

o ponto a que quero chegar – a urbanidade liberal que dá impulso à

poesia de Whitman era, nos idos de 1945 (e mesmo antes, quando

Mário inicia seus estudos sobre a obra de Whitman), incipiente –

para não falar em seu tortuoso desenvolvimento no meio brasileiro.

A ver pelas respostas de nossos literatos, a grandeza de

Whitman não se apresenta necessariamente em função de seu

“verso derramado”, mas da compreensão do movimento crítico que

baliza sua invenção. Como nossos tradutores enfrentarão essa

questão?

panorama brasileiro é amplo, seu ritmo rápido e variado; corre do urbano ao rural; registra seus contrastes; e, sobretudo, configura um modo de perceber as transformações em curso, abraçando a um só tempo o mais arcaico e, principalmente, o mais moderno, com sua euforia de futuro. O poeta da ingênua saudação natalina ficaria extasiado diante desse canto grandioso, vazado pela poesia de Carvalho – extasiado a ponto de talvez não perceber a medida da imitação submissa e da incongruência do arroubo nacional que, certamente, dão o motivo da reação de Mário de Andrade (um dos principais nomes do Modernismo a que Ronald também se filiava), que, alguns anos depois, publica seus “Dois poemas acreanos” dedicados a Carvalho.

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O tradutor que, de maneira mais radical, deparou-se com

essa dificuldade foi Geir Campos. Embora não tenha se dedicado a

uma tradução integral das Folhas, Campos acabou por legar duas

versões muito distintas de sua compilação – Folhas de relva, coletânea

publicada em 1964, pela Civilização Brasileira; e Folhas das Folhas de

relva, publicada pela Brasiliense em 1983. Nelas, torna-se central o

problema de como verter o verso whitmaniano dando relevo a suas

marcas discursivas na língua e cultura de chegada. Vejamos, para

tanto, duas versões do poema “Are you the new person drawn toward

me?”, que doravante nos servirá de parâmetro. O original do poema,

publicado pela primeira vez na seção “Calamus” (“Cálamo”), de

1860, é:

Are you the new person drawn toward me? To begin with, take warning, I am surely far different from what you suppose;

Do you suppose you will find in me your ideal? Do you think it so easy to have me become your lover?

Do you think the friendship of me would be unalloy’d satisfaction? Do you think I am trusty and faithful?

Do you see no further than this façade, this smooth and tolerant manner of me? Do you suppose yourself advancing on real ground toward a real heroic man?

Have you no thought, O dreamer, that it may be all maya, illusion?11

Embora reflita uma escrita lírica mais próxima dos padrões

consagrados, seja pela temática, seja pela extensão, podemos

produzir, a partir da peça, o apanhado técnico que marca os voos

11 WHITMAN, Walt. Poetry and Prose (Library of America). New York: Library of America, 1996, p. 277.

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mais altos e verborrágicos da poesia whitmaniana, presentes em

“Canção de mim mesmo” e nas demais “canções”. O poema citado

traz, dessa poesia, o impulso dialógico que organiza e molda a voz

lírica. O sujeito não expõe uma condição de si para si, tampouco

aponta ao recolhimento íntimo e solitário que marca o lirismo e a

poesia em geral, sobretudo, a partir do romantismo; marca o poema

o esforço de socialização, o movimento ao outro, confrontado em

suas pretensões e posto em conflito com a perspectiva de que o eu-

lírico tem de si. Em termos linguísticos, essa postura dialógica se

adéqua a um tom informal, plataforma da representação dramática

(outro elemento recorrente na poesia de Whitman) que emoldura o

poema, impondo a seus versos o ritmo não dos pés métricos (cuja

regularidade não se percebe), mas da personagem em ação, dando vazão

a suas preocupações. A linguagem do poema parte, portanto, de um

esforço mimético; esse, por sua vez, dá um sentido passional ao

paralelismo (outro recurso próprio à poesia whitmaniana) da

sequência de perguntas endereçadas ao outro, movendo o ato

declamatório não pela regularidade de pés e cesuras, mas por um

fluxo que só a imitação da situação comunicativa permite controlar.

Nas duas versões de Geir Campos, lemos:

És a nova pessoa vinda a mim?

Toma um aviso, para começar: com certeza eu sou muito diferente de quanto imaginaste.

Imaginas que em mim acharás teu ideal?

A nova pessoa que vem a mim

é você?

Ouça um conselho, para começar:

eu sou com certeza bem diferente

do que você imagina.

Você imagina encontrar em mim

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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Julgas tão fácil assim eu me tornar teu amante?

Pensas que minha amizade será satisfação imaculada?

Achas que eu seja fiel e mereça confiança?

Tu nada vês além desta fachada, do meu jeito macio e tolerante?

Julgas estar avançando em bases realmente firmes na direção de um homem realmente heroico?

Não te passou pela cabeça, ó sonhador, que tudo pode ser maya, ilusão?

(1964)

seu ideal?

Acha tão fácil assim eu me tornar

seu amante?

Pensa que minha amizade

é fonte de satisfação sem impureza?

Julga que eu seja fiel e digno de confiança?

Além desta fachada,

do meu jeito macio e tolerante,

você não vê mais nada?

Acha que vem avançando

em bases realmente firmes

na direção de um homem realmente heróico?

Pela cabeça nunca lhe passou,

ó sonhador,

que tudo isso pode ser maya, ilusão?

(1983)

Como se nota, as diferenças entre versões são bastante

acentuadas e partem do que, no posfácio à edição de 1983 (“Esta

tradução”), revela-se uma mudança de horizonte tradutório.

Citando os conceitos de “subinterpretação” e “superinterpretação”

de Josef Cermák (“a subinterpretação aproxima a tradução do autor,

a superinterpretação aproxima-a do leitor”12), Campos revisa a

tradução de 1964, em seu interesse “autoral” e desejo de “acentuar

a cada instante a sua origem alienígena”, com vistas à “possibilidade

de trazer-se a grandiosa poesia de Whitman para o leitor brasileiro

não-erudito”. Fala-se ainda em pôr em prática a lição de Paulo Rónai:

12 CAMPOS, Geir. Esta tradução. In: WHITMAN, Walt. Folhas de Folhas de Relva (seleção e tradução de Geir Campos). São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 140.

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“Conduzir uma obra estrangeira para outro ambiente linguístico

significa adaptá-la ao máximo aos costumes do novo meio, retirar-

lhe as características exóticas, fazer esquecer que reflete uma

realidade longínqua e essencialmente diversa [...]” (id., ibid.),

chamando assim a atenção para as estratégias de que se vale com tal

intuito. A principal delas se manifesta, indiretamente, pela contagem

dos versos de uma e outra versão. Os nove versos de 1964

(acompanhando o original) transformam-se, em 1983, em vinte e

um por aquilo que Campos chama, a partir de Christopher Fry, de

“redistribuição das palavras dos versos alongados do original em

‘segmentos rítmicos’ de menor extensão”, evitando assim (diz o

tradutor em nova citação de Paulo Rónai) “o que o original tem de

estranho, de genuíno” em relação a sua “origem alienígena” (id., p.

141.). Não bastasse a guinada “superinterpretativa” incidir sobre a

qualidade do que há de fundamental na tradução poética – o verso

–, Campos arremata sua decisão com a pergunta que destacamos na

epígrafe: “a grandiosidade do conteúdo da poesia de Whitman seria

uma função da forma derramada de seus versos?” (id. ibid.).

A “forma derramada” dos versos de Whitman possui, como

vimos, relação direta com o mais íntimo de sua poesia enquanto

realização estética, histórica e cultural; porém, compreender tal

realização é, insisto, o ponto central para uma versão que traga a

poesia de Whitman à língua de chegada com toda a sua

consequência. Campos tem razão em colocar seu problema da

extensão do verso na conta de sua “origem alienígena”; mas ao

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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propor um padrão rítmico afeito ao ouvido do leitor, à prosódia de

sua língua e, em última palavra, à sua tradição literária, o tradutor

acaba por despertar fidelidades inexistentes naquela que julgava ser

sua primeira versão mais fiel. É certo que a decisão de quebrar os

versos em “segmentos rítmicos menores” (sob pena da produção de

enjambements, virtualmente desconhecidos da técnica poética de

Whitman) fere a concepção do verso whitmaniano como unidade

de exposição imagética e declamatória; por outro lado, a mudança

de tom, encabeçada pela substituição da segunda pessoa (“tu”) pelo

pronome de tratamento (“você”), e o uso menos marcado de

segmentos sintáticos, bem como de formas prosodicamente mais

relacionadas à oralidade (vide, por exemplo, a passagem de “com

certeza eu sou muito diferente de quanto imaginaste”, de 1964, para

“eu sou com certeza bem diferente/ do que você imagina”, de

1983), mostram-se, enquanto “superinterpretação”, muito mais

próximos às exigências do diálogo encenado com outrem – e, nesse

sentido, amarrados a uma concepção poética whitmaniana que a

elevação da versão de 1964 não preserva.

Da perspectiva dos argumentos estritamente tradutórios de

Geir Campos, teríamos de nos resignar às perdas literárias que a nova

edição traz em relação à primeira; entretanto, enquanto opção

literária se observa a despeito das perdas que de fato existem, ganhos

desconhecidos da primeira versão. O mais provável é que Campos

esteja buscando em teóricos da tradução uma justificativa que se

encontra alhures. Um elemento fundamental para o contraste entre

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as versões de 1964 e 1983 é o referente literário embutido nas

versões. Pensando na dicotomia entre as leituras whitmanianas de

Mário e Ronald, a versão de 1964 está mais próxima do segundo do

que do primeiro: a elevação do tom indica menos uma compreensão

daquilo que esteja em jogo na invenção do verso whitmaniano do

que o silenciamento de suas tensões em torno de uma

grandiloquência vazia, na qual a “grandiosidade” identificada em sua

poesia exige dicção que lhe esteja literalmente à altura – o que, de

resto, parece adequar-se à própria postura literária de Campos à

época como poeta, autor vinculado à geração de 1945, cujos

poemas, apesar da temática engajada, o virtuosismo técnico oferece

pouco espaço a uma discursividade diversa da possibilitada por uma

postura literária tradicionalista. A revisão da tradução, passados

dezenove anos, traz em seu bojo não apenas um aparente

redimensionamento da grandeza whitmaniana, agora passível de ser

vazada em versos de corte mais prosaico, mas também a experiência

poética de duas décadas inteiras – e, em particular, àquela que ficou

conhecida como poesia marginal, incorporando os modos de uma

nova urbanidade, marcada pela resistência e pela revolta e, nesse

sentido, aberta ao influxo libertário de formas não-poéticas e

múltiplos registros discursivos de maneira análoga ao esforço

whitmaniano.

Avaliando as diferenças entre uma e outra versão de

Campos, não são tanto as posturas tradutórias que mudam, a

questão está na cultura e na produção literária que as informa.

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Os erráticos caminhos das traduções de Geir Campos nos

mostram problemas não apenas pragmáticos e de prática tradutória.

Procuramos expor, de um lado, problemas da recepção da poesia de

Whitman no Brasil; e, de outro, como eles, indiretamente – sob os

modos da cultura e da história – adentram o campo da tradução. As

versões de Geir Campos respondem a momentos distintos e acabam

assimiladas por leitores diversos. Se, no horizonte da poesia pós-

modernista e pós-vanguarda produzida entre meados das décadas

de 1940 e 1960, Whitman perdia suas propriedades estéticas radicais,

subsumido por um romantismo utópico que, não obstante a

presença em sua obra, porém, dela é apenas parte, não todo, no

início da década de 1980, o novo ambiente social e as realizações

literárias que o cercam determinam uma nova visada do poeta.

Talvez isso explique a razão de um poeta tão central no cânone

mundial, cujas traduções europeias remontam às primeiras décadas

do século XX, tenha se tornado mais permeável – ou “entrável”,

lembrando o comentário de Mário citado em nota – ao leitor

brasileiro apenas na primeira década do século XXI.

Eram duas as questões que encabeçavam este artigo.

Quanto à primeira, parece-nos claro que o trabalho de tradução se

instala num campo de equivalências que não se dissociam de uma

recepção submetida a determinações histórico-sociais. A avaliação

das diferentes posturas de Geir Campos frente a Whitman mostram

um tradutor evidentemente preso a seu tempo – ou melhor, a seus

tempos. Resta-nos responder, porém, se seria possível mediante

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pesquisa literária, eliminar os abismos culturais e históricos e tornar

acessível a um determinado grupo-leitor uma obra que jamais

poderia ter sido produzida em seu próprio contexto. Trata-se de um

questionamento sobre o aspecto utópico da prática tradutória.

Quanto a ele, vale lembrar que as duas publicações de Geir Campos

surgem em momentos decisivos da história brasileira – início da

ditadura e princípio da mobilização de massa que levaria ao fim do

regime de exceção. Que a poesia de Whitman, por meio de seus

tradutores, faça parte do processo de reflexão política da sociedade

brasileira, eis o bastante para que se responda à pergunta.

“What I assume you shall assume, for every atom belonging to me as

good as belongs to you.” A poesia whitmaniana faz-se do diálogo. Seu

drama é o da possibilidade de reconhecimento da alteridade, da

língua e modos do outro, que só recebem uma representação poética

radical quando subvertem a cristalização de modos sociais e

poéticos. De tais movimentos, deriva o ritmo dessa poesia que, em

seu prosaísmo, confronta tradições e costumes. Talvez o crescente

interesse brasileiro em Whitman na última década, seguindo os bons

passos de Geir Campos, seja índice de nossa maior proximidade,

como brasileiros, da conquista e das responsabilidades e

contradições desse ritmo.

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Referências bibliográficas ANDRADE, Mario de. Poesias completas (Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio). Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2005. CARVALHO, Ronald de. Poesia e prosa. In: Nossos clássicos. JÚNIOR, Peregrino (Org.). Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1960. PARO, Maria Clara Bonetti. Recepção literária de Walt Whitman no Brasil (1917-1929). São Paulo, 1979. 235 f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, FFLCH/DTLLC, Universidade de São Paulo. ______. Leituras brasileiras da obra de Walt Whitman. São Paulo, 1995. 297 f. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, FFLCH/DTLLC, Universidade de São Paulo. WHITMAN, Walt. Folhas de relva. Tradução e seleção de Geir Campos. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1964. ______. Folhas de Folhas de relva (Leaves of Grass). Tradução e seleção de Geir Campos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983. ______. Poetry and Prose (Library of America). New York: Library of America, 1996. ______. Folhas de relva. Tradução de Luciano Alves Meira. São Paulo: Martin Claret, 2005. ______. Folhas de relva. Tradução e posfácio de Rodrigo Garcia Lopes. São Paulo: Iluminuras, 2005. ______. Folhas de relva. Tradução e organização de Bruno Gambarotto. São Paulo: Editora Hedra, 2011.

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O BILINGUISMO LITERÁRIO DE NANCY HUSTON: ESCRITA TRADUZIDA ENTRE LÍNGUAS

Gabriela OLIVEIRA

Maria Angélica DEÂNGELI

1. Questão preliminar

O presente trabalho procura analisar a partir dos escritos da

autora canadense Nancy Huston, mais especificamente de sua obra

Nord Perdu (1999), em que medida a escrita se apresenta como uma

alteridade radical – alteridade de si e do outro; dupla alteridade de

antemão – na tarefa da tradução. Escrever em francês e traduzir para

o inglês ou escrever em inglês e traduzir para o francês, um e outro,

ao mesmo tempo, ou, um entre outro de uma só vez, tal é o desafio

que se impõe Huston ao lidar com sua(s) própria(s) escrita(s).

Partindo dos estudos que tencionam deslocar

conceitualmente a figura do tradutor, pensando-o como sujeito

constituído por representações diversas e que, dessa forma, assume

sempre a posição conflituosa do ser/estar entre-línguas

(CORACINI, 2005), procuraremos mostrar em que sentido a escrita

de Huston nos coloca diante da problemática de um sujeito

atravessado pelo acontecimento do “mais de uma língua”

Unesp, Instituto de Biociência, Letras e Ciências Exatas, Brasil.

[email protected] Unesp, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Brasil.

[email protected]

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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(DERRIDA, 1996). Se, por um lado, tal acontecimento acaba por

desestabilizar todos os atores em cena no ato da escrita, por outro,

se impõe como condição necessária da própria tarefa de tradução.

Tarefa que pode se tornar ainda mais complexa quando se trata de

lidar com a tradução de “seu” próprio texto, ou seja, com a prática

da “autotradução”. Nesse sentido, partiremos das hipóteses de

Clémens (1997) sobre a estrangeiridade presente em todas as línguas e

sobre a tarefa de escrever entendida como movimentação entre os

fragmentos múltiplos e heterogêneos da língua para questionarmos

as considerações segundo as quais a autotradução seria um processo

criativo e libertador capaz de solucionar o conflito original entre

língua materna e língua adotiva (cf. SARDIN-DAMESTOY, 2007).

Concluiremos, ao contrário, que a autotradução coloca em cena um

movimento de línguas que faz apelo a questões de ordem identitária

no sentido em que procuram desestabilizar as fronteiras do materno

e do estrangeiro, do si mesmo e do outro, da origem e do destino,

ou se preferirmos, da “partida” e da “chegada”.

A noção de bilinguismo é aqui entendida não como

fenômeno restrito aos sujeitos que convivem com duas línguas

desde a primeira infância, mas como acontecimento que atravessa a

subjetividade daqueles que, por diversas razões, partilham a

experiência do viver entre línguas e culturas. Não raras vezes, o uso

do termo bilinguismo está atrelado à noção de competência linguística

e parece limitar-se a uma espécie de “domínio” do sujeito das (e

sobre as) línguas que fala; a maior ou menor performance com

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relação a estas, implicando, assim, um maior ou menor grau de

bilinguismo.

Com o intuito de operar um deslocamento na problemática

referente ao “duplo”, sempre presente nas discussões acerca de

bilinguismo, e ao “entre” é que nos interessamos, então, na obra de

Huston.

Não se trata, porém, de ignorar a lógica binária que perpassa

nossas reflexões e até mesmo nossas línguas, mas de questioná-la no

próprio sistema no qual se insere. Se, etimologicamente, o prefixo

“bi-” remete a uma ideia compreendendo “dois”, “duas vezes”, no

espaço de nosso questionamento, o bilinguismo implica uma

pluralidade de “dois”; duas línguas (no caso de Huston, o inglês e o

francês) que são várias línguas e que se desdobram em inúmeras

outras, guardando sempre, em si mesmas, o estranhamento que lhes

é peculiar. Trata-se de um apelo ao “mais de um”, ao “dois”, como

diria Huston, o que faz com que toda comunicação seja permeada

por uma espécie de milagre; o milagre do “entendimento” (que pode

ser também um desentendimento) o qual engaja, nessa

multiplicidade de origem, um certo respeito ao outro, tal como

podemos constatar nas palavras de Huston.

No fundo, me parece, a estrangeiridade é uma metáfora do respeito que devemos ao outro. Nós somos dois, cada um de nós, pelo menos dois, temos de sabê-lo! E mesmo no interior de uma

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só língua, a comunicação é um milagre (HUSTON, 1999, p. 37)1.

Mas, apesar de tudo, nos comunicamos, ainda que a ideia de

comunicação possa variar muito em função do lugar a partir do qual

a comunicação “fala” ou “escreve” ou, às vezes, silencia-se. O

milagre desse ato de comunicar talvez seja simplesmente a promessa

de uma escuta, e é nesse sentido que ele engaja o outro, com todo o

respeito que lhe devemos, em todas as suas línguas, em francês ou

em inglês, no caso de Huston, no movimento de suas

estrangeiridades, como veremos a seguir.

2. Questões bilíngues

Para analisarmos a escrita da autora é preciso, antes,

contextualizar, ainda que sucintamente, sua história de vida. Nancy

Huston nasceu em Calgary, cidade anglófona, no Canadá, mudou-

se para a França aos 20 anos para fazer seu mestrado com Roland

Barthes e começou a escrever pouco tempo depois, em francês.

Escreveu críticas, ensaios, romances, cartas, consagrou-se escritora

de língua francesa, até o ano de 1989, quando escreveu seu primeiro

romance em inglês, Plainsong (1993b). Logo em seguida, dedicou-se

1 Tradução nossa: Au fond, me semble-t-il, l’étrangéité est une métaphore du respect

que l’on doit à l’autre. Nous sommes deux, chacun de nous, au moins deux, il s’agit de

le savoir! Et même à l’intérieur d’une seule langue, la comunication est un miracle.

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a sua primeira autotradução, Cantique des Plaines (1993a). O motivo

de tal empreitada foi simplesmente editorial: em um primeiro

momento, ela não conseguiu publicar o livro escrito em inglês,

então, traduziu-o para o francês a fim de publicá-lo. Após quase

quatro anos de trabalho, os dois livros foram lançados em datas

próximas, sendo que a versão em francês ganhou o prêmio

Gouverneur Général de melhor romance em Quebec. Tal fato

desencadeou grande polêmica no meio literário, pois, para alguns

críticos, o livro deveria ter concorrido na categoria tradução e não

romance2. Foi nesse momento que Huston se viu obrigada a

(re)pensar sua prática e assumir a posição de quem (re)escreve em

mais de uma língua. A partir de então, autotraduzir ou reescrever ou

escrever em francês e em inglês, ao mesmo tempo, foi se tornando

cada vez mais comum para a escritora.

Um dado importante a ser considerado é o que a levou a

escrever Plainsong. Se o francês já era sua língua de produção

acadêmica e literária, como e por que voltar a língua que havia

tentado abandonar? Segundo a própria Huston, foi no momento em

que ela percebeu que também havia algo de estrangeiro, de outro,

na “língua da mãe”, que o inglês se tornou também uma

possibilidade de escrita.

Eu a havia abandonado por muito tempo, minha língua mãe; ela não me reconhecia mais

2 Para uma leitura detalhada sobre o assunto, ver o artigo de Christine Klein-Lataud:

“Les voix parallèles de Nancy Huston”, 1996.

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como sua filha. Assim como em francês, uma gama inteira de possibilidades se abrira para mim [...] (HUSTON, 1999, p. 51)3.

Isso, porque, para Huston, a escrita permitiria justamente

evocar a estrangeiridade da língua, autorizaria um deslocamento de

si mesmo e seria uma forma de tentar conviver com o conflito entre

a “língua materna” e a “língua adotiva”, a língua da morada e a língua

do outro, pois é desta maneira que a autora descobre o prazer da

criatividade e da liberdade contidas no vaivém entre línguas. A ideia

de estranhamento como material comburente da escrita é

encontrada no parágrafo inicial do capítulo “... ET LA PLUME”,

do livro Nord Perdu (1999):

O estrangeiro, dizíamos, é aquele que se adapta. Ora, a necessidade perpétua de se adaptar, que induz nele uma consciência exacerbada da linguagem, pode ser extremamente propícia para a escrita. A aquisição de uma segunda língua anula o caráter “natural” da língua de origem – e a partir daí, nada mais nos é dado de ofício, nem em uma nem em outra; nada mais nos pertence por origem, direito e evidência. (HUSTON, 1999, p. 43)4

3 Tradução nossa : Je l’avais délaissée trop longtemps, ma langue mère; elle ne me

reconnaissait plus comme sa fille. Tout comme en français, la gamme entière des

possibilités m’était ouverte [...]. 4 Tradução nossa: L’étranger, disions-nous, est celui qui s’adapte. Or le besoin

perpétuel de s’adapter qu’induit en lui une conscience exarcebée du langage peut être

extrêmement propice à l’écriture. L’acquisition d’une deuxième langue annule le

caractère «naturel» de la langue d’origine – et à partir de là, plus rien n’est donné

d’office, ni dans l’une ni dans l’autre; plus rien ne vous appartient d’origine, de droit

et d’évidence.

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Assim, a perda da ilusão de transparência da língua materna

causada pelo aprendizado de outra língua pode ser um dado

positivo, já que abre espaço para o jogo criativo da escrita. Por outro

lado, as consequências do encontro inevitável entre (as) línguas

podem ser dolorosas, pois, como Huston afirma:

[...] aquele que conhece duas línguas, conhece, obrigatoriamente, duas culturas, conhecendo também a difícil passagem de uma para a outra e a dolorosa relativização de uma por outra (HUSTON, 1999, p. 37)5.

Mas, por mais paradoxal que possa parecer, é nessa “difícil

passagem” que se define a tarefa da escrita. Tarefa marcada

essencialmente pela descontinuidade, pela fragmentação e, muitas

vezes, pela dor, pois, como assinala Huston: “Toda dor é traduzível”

(op. cit., p. 92)6. Para a autora, a tradução é uma espécie de “proteção

nos momentos de desespero” (p. 92).

Ainda a respeito dos tênues limites entre uma língua e outra,

Huston escreve:

O problema, veja só, é que as línguas não são apenas línguas; são também world views, ou seja, modos de ver e compreender o mundo. Há o intraduzível aí... E se você tem mais de um world

5 Tradução nossa: Car celui qui connaît deux langues connaît forcément deux cultures

aussi, donc le passage difficile de l’une à l’autre et la douloureuse relativisation de

l’une par l’autre. 6 Tradução nossa: Toute douleur est traduisible (...).

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view... você não tem, de certo modo, nenhum (HUSTON, 1999, p. 51)7.

Nessa passagem, notamos o uso de termos em inglês que, a

princípio, poderiam estar em francês. A presença da expressão

“world views” chama nossa atenção principalmente por aparecer no

momento em que a autora explica a impossibilidade de traduzir o

modo de ver o mundo, fazendo-nos pensar, então, que se trata de

uma exemplificação dessa impossibilidade, na medida em que ela

não considera a expressão francesa “visions du monde” equivalente à

expressão inglesa “world views”. Apesar de Huston colocar-se como

sujeito escrevente de língua francesa que, eventualmente, se

autotraduz, sua escrita aponta para o desafio do “entre”, desafio ao

qual ela não pode se furtar, uma vez que esse parece se impor como

a própria condição de escrita.

Dessa forma, a letra atravessada por uma espécie de rasura

das línguas (do francês e do inglês) denuncia o sujeito dividido entre

desejo e renúncia, gozo e dor, vazio e plenitude; pois se não

podemos negar que somos uma construção, como afirma Huston,

nossa história é cheia de buracos, muitas páginas são arrancadas de

nosso livro (op. cit., p. 100). Mas o livro sempre está lá, ele é texto

que remete a outros textos, constituindo-se, dessa forma, como a

7 Tradução nossa: Le problème, voyez-vous, c’est que les langues ne sont pas seulement

des langues ; ce sont aussi des world views, c’est-à-dire des façons de voir et de

comprendre le monde. Il y a de l’intraduisiblie là-dedans... Et si vous avez plus d’une

world view... vous n’en avez, d’une certaine façon, aucune.

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origem disseminada da letra e de seu devir; uma espécie de origem

da origem, tal como sugerido por Derrida:

O rastro não é somente o desaparecimento da origem, ele quer dizer aqui [...] que a origem nem ao menos desapareceu, que ela não foi constituída senão em contrapartida por uma não-origem, o rastro que se torna, assim, a origem da origem (DERRIDA, 1967, p. 90)8.

Por mais que a língua estrangeira pareça um espaço livre das

interdições maternas, é sempre carregada de ambivalências e

contradições internas, criando seus próprios interditos na

subjetividade de cada um. Huston admite só ter conseguido escrever

romances após a morte de seu mestre, Barthes, e revela sua surpresa

ao perceber que a sede por uma “inocência teórica”, ou seja, uma

escrita despojada de obrigações estilísticas e engajamentos

filosóficos existia também em suas tentativas de escrita em inglês.

Em suas palavras:

Sem dúvida é uma das razões pelas quais eu decidi, cerca de uns dez anos depois, voltar à língua inglesa. Estava sedenta de inocência teórica; queria fazer frases livres e irregulares, explorar todos os registros da emoção, incluindo, por que não, o patético, contar histórias no primeiro grau, com fervor, e acreditar nelas, sem medo dos comentários irônicos dos discípulos de Barthes ou de Perec.

8 Tradução nossa: La trace n’est pas seulement la disparition de l’origine, elle veut dire

ici [...] que l’origine n’a même pas disparu, qu’elle n’a jamais été constituée qu’en

retour par une non-origine, la trace qui devient ainsi l’origine de l’origine.

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[...] Mas o que descobri? [...], que a aporia estilística não concernia apenas à minha língua de adoção; ela arruinava também meu domínio do inglês (HUSTON, 1999, p. 50-51)9.

Huston quer “contar histórias no primeiro grau”, sem se

preocupar com a sofisticação do estilo, por vezes afetado, dos meios

acadêmico-literários. Para ela, interessa o registro da emoção e da

inocência, teórica e estilística, ainda que seus desejos se revelem

quase impossíveis. A escrita lhe aparece como possibilidade de fazer

a língua falar em outro lugar e de uma outra maneira, em uma

espécie de ruído da comunicação, que pode arruinar o estilo e a

crença na propriedade da língua, pois esta sempre se apresenta de

forma imprópria e estranhamente estrangeira.

Sobre o estranhamento da língua como possibilitadora da

escrita, Éric Clémens, em seu ensaio “Les langues dans les langues”

(1997), afirma que o escritor tem justamente essa missão de usar a

seu favor a disfunção da língua, pois é capaz de transitar entre as

várias línguas que existem em “sua” língua. Dessa forma, afirma que:

Se a escrita se forja e a ficção se forma nessa travessia e nesse confronto, sem os quais nenhuma experiência vivida, nenhuma

9 Tradução nossa: Sans doute est-ce l’une des raisons pour lesquelles j’ai décidé, une

dizaine d’anées plus tard, de retourner à la langue anglaise. J’étais assoiffée

d’innocence théorique; j’avais envie de faire des phrases libres et dépenaillées,

d’explorer tous les registres de l’émotion y compris, pourquoi pas, le pathétique, de

raconter des histoires au premier degré, avec ferveur, en y croyant, sans redouter les

commentaires narquois des barthésiens et autres pérequiens. [...] Mais qu’ai-je

découvert ? Eh bien [...], l’aporie stylistique ne concernait pas seulement ma langue

d’adoption; elle ruinait aussi ma maîtrise de l’anglais.

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memória, nenhuma reflexão e nenhuma invenção têm lugar, não há nenhum paradoxo na dupla afirmação de que nós somos escritores de língua francesa, não importa de onde viemos, e que a língua francesa, como toda língua, é estrangeira a ela mesma para quem tenta falar. Se o escritor tem uma função, onde ela pode aparecer senão na revelação de sua experiência da disfunção da língua? Toda linguagem verdadeira é incompreensível em termos de função, de comunicação e de compreensão (CLÉMENS, 1997, p. 121-122)10.

Essa fala de Clémens se deu durante um encontro de

escritores francófonos em Paris, e o autor questiona exatamente a

noção de escritor francófono, título dado aos não franceses que

escrevem em francês por diversas razões. Assim, entendemos que,

para Clémens, o francês é língua estrangeira não pelo fato de ele não

ser francês, mas sim porque o francês é sua língua de escrita, muito

além de uma simples ferramenta de comunicação é língua imbricada

de várias outras línguas.

É também na imbricação das línguas, do francês e do inglês,

que situamos a escrita de Huston, nesse movimento que vai do um

10 Tradução nossa: Si l'écriture se forge et la fiction se forme dans cette traversée et cet

affrontement, sans lesquels aucune expérience vécue, aucune mémoire, aucune

réflexion et aucune invention n'ont lieu, nul paradoxe ne réside dans la double

affirmation que nous sommes des écrivains de langue française, d'où que nous venions,

et que la langue française, comme toute langue, est étrangère à elle-même pour qui

cherche à parler. Si l'écrivain a une fonction, où peut-elle apparaître sinon dans la

monstration de son expérience du dysfonctionnement de la langue? Tout vrai langage

est incompréhensible en termes de fonction, de communication et de compréhension.

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ao outro, ainda que não se decida por nenhum ou que se deixe levar

pelo não-lugar dessa travessia.

Catherine Klein-Lataud, em um estudo sobre Huston

(1996), ao analisar os textos Plaisong e Cantique des Plaines, conclui que

a diferença mais marcante entre eles reside no nível do registro de

língua, o inglês se apresentando sob uma forma standard e o francês

sob uma forma mais familiar. Essa proximidade talvez possa ser

explicada pelo modo como os livros foram escritos. Huston, em

entrevista à Klein-Lataud, comenta que os livros foram elaborados

paralelamente, segundo ela “a ‘tradução’ sempre obriga a ver quais

são as falhas do texto original. Então, graças ao francês, eu

melhorava o inglês e vice-versa” (KLEIN-LATAUD, 1993 apud

KLEIN-LATAUD, 1996, p. 226)11.

O trabalho de Huston se revela, de fato, na escrita do entre-

dois, no mais de um da tradução, no “ao menos dois” do eu, como

citado anteriormente. Se o tradutor está sempre entre línguas,

podemos dizer que ele é um escritor por excelência, já que toda

escrita supõe um trabalho de atravessamento de lugares (de mundo,

de línguas, de saberes...) incessante.

Coracini (2005), em artigo intitulado “O sujeito tradutor

entre a ‘sua’ língua e a língua do outro”, retoma a questão do “entre”

na tradução. De acordo com a autora:

11 Tradução nossa: (...) la ‘traduction’ oblige toujours à voir quelles sont les faiblesses du texte original. Donc, grâce au français, j’améliorais l’anglais et vice-versa.

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(...) o tradutor constitui um sujeito entre-línguas-culturas, lugar onde se mesclam e se confundem umas e outras, onde se apagam ou se embaraçam os limites, os contornos e as dicotomias arraigadas na cultura ocidental da qual somos todos herdeiros e na qual somos prisioneiros (CORACINI, 2005, p. 11).

Se não podemos negar essa herança cultural, que marca as

dicotomias de nosso pensamento, se somos, de certo modo,

atravessados por “limites”, podemos ao menos deslocá-los em seus

propósitos, à maneira de Huston, escrevendo e traduzindo ou se

(auto)traduzindo ao escrever. A escrita, enquanto atividade

tradutória, deve então servir para ir além desses limites ou

simplesmente tocá-los, desestabilizando-os, de alguma maneira. A

tarefa de tradução assim concebida é o que o permite dizer o

intervalo ou o interstício das línguas; pois, no fundo, o que nos resta

ainda, segundo Huston, é a escrita (cf. op. cit., p. 92), ou a tradução.

3. Conflitos não apagados

A escrita de Huston revela que a prática da tradução ou, mais

especificamente, em seu caso, da autotradução, tem implicações que

ultrapassam, em muito, a velha polêmica do “passar o texto de uma

língua para outra”, já que, em sua obra, a problemática se situa na

travessia e não na chegada, o que mobiliza, de fato, sua escrita é a

questão do “entre”. Seu percurso literário, como ela própria o

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assinala (cf. HUSTON, 1999), constrói-se na indecidibilidade entre

a invenção e a imitação, como algo que antecipa a tarefa da tradução,

ou o que ela nomeia de autotradução.

Huston relata que, tendo se questionado, durante muito

tempo, sobre o que era de fato importante em sua vida, chegou à

seguinte conclusão:

No momento, eis o que encontrei de melhor: é importante o que é traduzível (HUSTON, 1999, p. 90)12.

O traduzível (que é também uma forma de indizível) se situa

para Huston na tensão entre as línguas, entre a necessidade de se

comunicar e a impossibilidade de ser compreendido, entre o familiar

e o estrangeiro. Nesse sentido, o (in)traduzível coloca em cena o

estrangeiro e pode aparecer como uma ameaça para aqueles que

preferem relegar ao ininteligível a diferença entre as línguas, tal como

a autora denuncia em suas palavras:

Bárbaro: “estrangeiro, estranho, ignorante, diz o dicionário. Radical herdado: barbar, utilizado para a fala ininteligível dos estrangeiros”. É estúpido e ameaçador, aquele com quem não podemos nos comunicar com palavras (HUSTON, 1999, p. 79)13

12 Tradução nossa: Voilà, à ce jour, ce que j’ai trouvé de mieux: est important ce qui est traduisible. 13 Tradução nossa: Barbare: “étranger, étrange, ignorant, dit le dictionnaire. Base échoïque: barbar, utilisé pour le parler inintelligible des étrangers.”Est stupide et menaçant, celui avec qui vouz ne pouvez pas communiquer par les mots.

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Mais uma vez, é a ideia de língua como “comunicação” que

é questionada pela autora, já que, para Huston, o que importa é o

que se traduz (ou se autotraduz), o que se diz não como promessa

de entendimento, mas como apelo à alteridade e ao que de

incompreensível nela se (des)vela.

Nesse contexto, resgatar as diferenças, recuperar as marcas

intrínsecas da escrita, ou seja, fazer valer as divergências de origem

é tarefa primordial da tradução. O que nos é dado a conhecer por

meio do texto traduzido, o (des)velamento da letra estrangeira, torna

“outro” o destino da tradução. São esses caminhos que percorre a

escrita de Nancy Huston, longe de buscar a reconciliação impossível

das línguas, a escritora explora os riscos do desvio significante sob

uma forma de “desassossego” intelectual e subjetivo, quase “barbar”.

Para Huston, não há escrita, nem tradução, sem esses desencontros.

No entanto, ainda há algo que norteia esse “norte perdido”

da (auto)tradução, esse “perder o norte” ao escrever; algo que deriva

do humano, uma crença segundo a qual a escrita (e suas múltiplas

traduções) “é o que celebra este reconhecimento dos outros em si e

de si nos outros. É o gênero humano por excelência” (HUSTON,

1999, p. 107)14.

14 Tradução nossa: c’est ce qui célèbre cette reconnaissance des autres en soi, et de soi dans les autres. Le genre humain par excellence.

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Referências bibliográficas CLÉMENS, É. Les langues dans la langue. In: Études françaises. vol. 33, n. 1, 1997. p. 119-122. CORACINI, M. J. O sujeito tradutor entre a “sua” língua e a língua do outro. In: Cadernos de Tradução, nº 16, 2005/2, Florianópolis. p. 9-24. DERRIDA, J. De la Grammatologie. Paris: Minuit, 1967. ______. Le monolinguisme de l’autre. Paris: Galilée, 1996. HUSTON, N. Cantique des plaines: Paris: Actes Sud, 1993a. ______. Plainsong. Toronto: Harper-Collins, 1993b. ______. Nord perdu. Paris: Actes Sud, 1999. KLEIN-LATAUD, C. Les voix parallèles de Nancy Huston. In : TTR: traduction, terminologie, rédaction. vol. 9, n. 1, 1996. p. 211-231. SARDIN-DAMESTOY, P. Samuel Beckett/Nancy Huston ou le bilinguisme de malentendus en contrefaçons: deux expériences similaires? In: GASQUET, A.; SUREZ, M. (Org.). Écrivains multilingues et écritures métisses. Clermont-Ferrand: Presses universitaires Blaise Pascal, p. 257-269, 2007.

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TRAITE PETIT DE TITROLOGIE : REGARD CRITIQUE SUR LA TRADUCTION DE TITRES

Slav PETKOV

1. Qu’est-ce que la titrologie?

Si vous ouvrez un dictionnaire et que vous cherchez le

substantif « titrologie », il est presque sûr que vous ne trouverez pas

de définition. C’est sans aucun doute parce que c’est un terme

relativement neuf, élaboré par L. Hoek dans les années 1980, et qui

présente une réalité restreinte et spécifique, au sens de

« spécialisée ». Les dictionnaires, comme le Trésor de la langue française,

par exemple, dévoilent le sens du mot « titre » . Nous apprenons

ainsi que c’est « une inscription au début d’un ouvrage pour indiquer

son sujet; nom donné par son auteur à une oeuvre littéraire ou

artistique et qui évoque plus ou moins son contenu, sa

signification1 ».

La titrologie concerne les études sur les titres, les différentes

manières de nommer des textes, des films, des séries télévisées etc.

G. Genette (2009) attribue la même appellation à ce domaine, ce qui

renforce le bien-fondé de la notion.

Université de Plovdiv « Paissii Hilendarski », Département d’études romanes et germaniques, Bulgarie, [email protected] 1 http://atilf.atilf.fr/

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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En y réfléchissant en détail, nous sommes capables

d’affirmer que la titrologie peut être incorporée dans la théorie de la

traduction, dans des cours d’écriture créative ou en musicologie ;

aussi pouvons-nous parler de théorie et pratique du titre.

2. Mécanismes du titre

Considéré comme un nom-guide pour l’interprétation ou

comme un texte contenant l’instruction pour la lecture

(PROTOCHRISTOVA, 2014, p. 11), le titre est une entité

paratextuelle, un brin d’inconnu, qui sert à provoquer l’intérêt, à attirer

l’attention plus ou moins approfondie, à attiser la réflexion et à

pousser au pas vers l’oeuvre. Pour Danièle Pistone il s’agirait, en en

parlant, d’ « un début d’invite, un appel à l’accueil, un premier

façonnement de notre imaginaire » (PISTONE, 2012). Les meilleurs

titres ont toujours des aspects énigmatiques ou incisifs. Le

mécanisme du titre tient de celui de la traduction : le titre révèle sa

vraie nature, son sens, plus tard, après la première vue, le premier

heurt au texte ; une traduction apparaît plus tard que l’original fixé

par l’auteur.

3. Pour une typologie en titrologie

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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On peut trouver bien des typologies de titres. En littérature,

par exemple, Cléo Protochristova distingue

(PROTOCHRISTOVA, 2014, p. 15-20) :

des titres lyriques : agissent de manière purement instructive ; fixent,

pour ainsi dire, orientent la compréhension dès le début (c’est un

cas spécial) ;

des titres romanesques : agissent de manière rétroactive ; on les

décortique ralativement tard (parfois à la fin de l’oeuvre – La

Chartreuse de Parme de Stendhal, 1839).

Suivant des critères visant à une généralisation nous aurons

deux autres typologies :

Typologie sémantique : c’est la systématisation des titres en porteuses

de sujets, thèmes, énigmes, sens etc. Titres référentiels : noms (Matilda,

Dahl), moments dans le temps, années (1984, Orwell), parties du

corps, liens de parenté (Trois soeurs, Tchékov) etc.;

Typologie structuro-syntaxiques : elle présente le titre à travers la

structure qu’il possède : structures dichotomiques (... et ...), les

formules fréquentes (L’histoire de...) etc.

Dans son article, intitulé Seuils éditoriaux, Philippe Lane

(1991, p. 91-108) présente, lui aussi, une typologie des titres, en se

fondant sur les conceptions de Gérard Genette, il y affirme, « selon

la typologie des titres proposée par G. Genette, il faut noter deux

grandes catégoriques de titres : les titres thématiques (“ce livre parle

de ...”) et les titres rhématiques (“ce livre est ...”) ».

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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Palimpsestes et Seuils semblent relever de la première catégorie

; en effet, ces deux titres portent sur le “contenu” des livres. Il s’agit

de titres métaphoriques pour désigner le paratexte […].

Introduction à l’architexte nous paraît relever de la seconde

catégorie de titres, le titre rhématique : ce livre est une introduction

à l’architexte (LANE, 1991, p. 102).

Sur le vaste réseau Internet, nous pouvons trouver aussi des

typologies ayant comme objet principal le titre. Cela vient montrer

que les gens s’intéressent à ce genre de problèmes. Le site

http://www.madmoizelle.com/2 propose les réflexions d’une

blogueuse – Gingermind – en la matière. Elle s’arrête plus précisément

sur la typologie de titres de films traduits. Voilà ce qu’elle nous révèle

au tout début : « Dans la vie, il y a deux genres de titres de film que

je tolère :

Ceux qui ne sont pas traduits. Ne rien tenter c’est encore le

meilleur moyen de ne pas se planter (quoique Kick-Ass ça aurait été

drôle à traduire) ;

Ceux qui sont des traductions exactes du titre original. »

Nous souscrivons nous aussi à cet avis bien cerné.

Gingermind s’est lancée après cette constatation dans l’élaboration

de sa typologie des titres de films (mal) traduits. Des titres à rallonge

(Brokeback Mountain est transmis en français comme Le secret de

Brokeback Mountain, ce qui a détruit quelque peu la surprise générale),

2 http://www.madmoizelle.com/titres-films-traduits-163527 (05.07.2014).

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des titres complexifiés (There is something about Mary est devenu Mary

à tout prix), des titres bien « originaux » (le traducteur veut faire croire

qu’il a gardé le même titre anglais, alors qu’en fait il l’a changé… par

un autre titre anglais), ou des titres « faux amis » (La proposition – The

proposal – mais le mot proposal n’a pas le sens général de proposition

en anglais ; c’est la demande en mariage) attisent la discussion sur la

traduction non seulement en titrologie...

4. Titres et traduction

Nous partons d’un cas idéal : dès le titre une œuvre étrangère

devrait faire penser à une altérité. Pour y atteindre il faut opter pour

la traduction la plus littérale possible. On pourrait penser que c’est

une mission impossible ; or bien souvent ce n'est pas comme cela.

Nous voudrions comparer maintenant quelques titres traduits à

leurs originaux. Cela renforcera l’aspect critique de notre article.

The Hundred-foot journey (titre original), Les recettes du bonheur

(titre en France), Le voyage de cent pas (titre au Québec), A

portée de la louche (На един черпак разстояние, titre en Bulgarie).

Le titre original contient l’idée de mouvement, de

découverte culturelle par le voyage, mais aussi celle de proximité (on

doit faire seulement cent pas). Le titre français a fait voir une autre

facette du film / livre, s’éloignant ainsi de l’original : on aura une

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aventure culinaire comme moteur de la fable. Le titre québécois est

très réussi : tout d’abord c’est une reproduction exacte de l’original

; après il ressemble à la Guerre de cent ans, ce qui orientera les

esprits subtils vers une sorte de rivalité qui sera mise au centre de

notre attention. Le titre bulgare manque uniquement d’idée de

mouvement.

The Casual Vacancy (titre original), Une place à prendre (titre

français), Вакантен пост (Une vacance fortuite, titre bulgare).

Le titre du roman de J. K. Rowling est marqué par le manque

(l’absence) qui “a eu lieu” de manière brusque et brutale. Cette idée

est partiellement gardée dans la traduction bulgare. Le traducteur

français pourtant a mis l’accent sur le remplissage de ce manque ;

ainsi traduit, le titre comporte l’idée de lutte en germe.

The Hundred-Year-Old Man Who Climbed Out the Window and

Disappeared (titre en anglais, titre qui est une reproduction

exacte de l’original qui est en suédois), Le Vieux qui ne voulait

pas fêter son anniversaire (titre en France), Стогодишният

старец, който скочи през прозореца и изчезна (titre en Bulgarie,

reproduction exacte de l’original).

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Le titre français a entièrement transformé l’original, l’a

simplifié en quelque sorte, et la disparition – si importante ici – fait

défaut.

Cougar Town (titre original, titre en France), Bienvenue à Cougar

Town (titre québécois), Агнешко (titre bulgare: De l’agneau).

Le sustantif « cougar » est présent dans les dictionnaires

français ; il y est entré par l’intermédiaire de cette série télévisée ; au

Québéc on « a embelli », le titre de celui-ci en ajoutant

« Bienvenue » ; en Bulgarie, on a adopté un autre point de vue, en

choisissant d’expliciter « la proie » des cougars – c’est un exemple

de modulation en traduction.

Desperate Housewives (titre original, titre en France), Beautés

désespérées (titre québécois), Отчаяни съпруги (titre en

Bulgarie, reproduction exacte de l’original).

Nous voyons ici que le traducteur québécois a préféré beautés

à femmes de ménage ; peut-être l’a-t-on fait parce que c’est un peu plus

poétique ; or toutes les femmes de ménage dans la série ne sont pas

des beautés...

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5. Conclusions

- La traduction de titres nous amène à des constatations curieuses et

à des réflexions intéressantes ;

- S’attacher à l’original semble être parmi les meilleures solutions

devant le traducteur ;

- Un titre peut avoir plusieurs « visages » dans des pays différents :

c’est une question de goût ou de tradition ;

- Les traductions d’un même titre présentent souvent des voyages à

travers des points de vue bien précis ;

- La titrologie, ayant abrité les études sur les titres, devrait devenir

plus riche en études sur les transferts de ceux-ci.

Bibliographie LANE, Ph. Seuils éditoriaux. In : Espaces Temps, 1991. La fabrique des sciences sociales. Lectures d’une écriture. p. 91-108. Disponible sur: http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/espat_0339-3267_1991_num_47_1_3790. Consulté : le 06 juil. 2014. PISTONE, D. Réflexions sur la titrologie appliquée aux œuvres musicales. Musicologies, Paris, n. 9, 2012. Disponible sur : http://omf.paris-sorbonne.fr/IMG/pdf/titrologie.pdf. Consulté : le 04 juil. 2014. PROTOCHRISTOVA, C. Записки от преддверието : теория и практики на заглавието. Plovdiv : Presses Universitaires de Plovdiv, 2014.

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Sobre as organizadoras

Angélica Karim Garcia Simão é docente do curso de graduação de Bacharelado em Letras com Habilitação de Tradutor, na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), câmpus de São José do Rio Preto. Hispanista, especialista em língua espanhola (MAE/AECI), mestre em Estudos Linguísticos (Unesp), e doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). É tradutora, autora do livro Xeretando a Linguagem em Espanhol (Disal) e de artigos na área de Tradução que enfocam as questões do léxico e da fraseologia do espanhol e do português brasileiro. É supervisora de língua espanhola na Oficina de Tradução (Unesp/São José do Rio Preto) desde 2004.

Maria Angélica Deângeli é docente do curso de graduação de Bacharelado em Letras com Habilitação de Tradutor, na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), câmpus de São José do Rio Preto. Doutora em Letras pela Unesp, mestre em Linguística Aplicada pela Université de la Sorbonne Nouvelle Paris III. É tradutora e autora do livro A literatura na língua do outro: Jacques Derrida e Abdelkebir Khatibi (Editora Unesp) e de artigos na área de Tradução que enfocam questões diretamente ligadas à língua francesa, à problemática da língua materna e da língua estrangeira e à própria questão da tradução. Tem se dedicado ao estudo de pensadores franceses contemporâneos, principalmente aos escritos de Jacques Derrida, Jean-Luc Nancy, Marc Crépon, entre outros.

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