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Angústia Graciliano Ramos Julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compri- das umas sombras permanecem, sombras que se mis- turam à realidade e me produzem calafrios. Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-me que eles cresceram muito, e, apro- ximando-se de mim, não vão gemer peditórios: vão gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa. Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos. Passo diante de uma livraria, olho com des· gosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas. exibindo tftulos e preços nos rostos, ven- dendo-se. E uma espécie de prostituição. Um sujeito chega, atenta, encolhendo os ombros ou estirando o beiço, naqueles desconhecidos que se amontoam por detrás do vidro. Outro larga uma opinião à-toa. Bas- baques escutam, saem. E os autores, resignados, mos- tram as letras e os algarismos, oferecendo-se como as mulheres da Rua da La.ma. Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das palmas cicatrizaram. Impossivel trabalhar. Dão-me um oficio, um re- latório, para datilografar, na repartição. Até dez linhas vou bem. Daf em diante a cara balofa de Julião Tava- res aparece em cima do original, e os meus dedos en- Contram no teclado uma resistência mole de carne gorda. E lá vem o erro. Tento vencer a obsessão, ca

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Angústia

Graciliano Ramos

Julgo que ainda não me restabeleci completamente.Das visões que me perseguiam naquelas noites compri-das umas sombras permanecem, sombras que se mis-turam à realidade e me produzem calafrios.Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, porexemplo. Parece-me que eles cresceram muito, e, apro-ximando-se de mim, não vão gemer peditórios: vãogritar, exigir, tomar-me qualquer coisa.Certos lugares que me davam prazer tornaram-seodiosos. Passo diante de uma livraria, olho com des·gosto as vitrinas, tenho a impressão de que se achamali pessoas. exibindo tftulos e preços nos rostos, ven-dendo-se. E uma espécie de prostituição. Um sujeitochega, atenta, encolhendo os ombros ou estirandoo beiço, naqueles desconhecidos que se amontoam pordetrás do vidro. Outro larga uma opinião à-toa. Bas-baques escutam, saem. E os autores, resignados, mos-tram as letras e os algarismos, oferecendo-se como asmulheres da Rua da La.ma.Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nasmãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas:são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações daspalmas cicatrizaram.Impossivel trabalhar. Dão-me um oficio, um re-latório, para datilografar, na repartição. Até dez linhasvou bem. Daf em diante a cara balofa de Julião Tava-res aparece em cima do original, e os meus dedos en-Contram no teclado uma resistência mole de carnegorda. E lá vem o erro. Tento vencer a obsessão, capricho em não usar a borracha. Concluo o trabalho,#mas a resma de papel fica muito reduzida.?A noite fecho as portas, sento-me à mesa da salade jantar, a munheca emperrada, o pensamento vadio

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longe do artigo que me pediram para o jornal.Vitória resmunga na cozinha, ratos famintos reme-xem latas e embrulhos no guarda-comidas, automóveisroncam na rua.Em duas horas escrevo uma palavra: MarinaDepois, aproveitando letras deste nome, arranjo coisa,absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns vintenomes. Quando nâo consigo formar combinaçôes novastraço rabiscos que representam uma espada, uma lirauma cabeça de mulher e outros disparates. Penso errindivíduos e em objetos que nâo têm relação com o:desenhos: processos, orçamentos, o diretor, o secretário, políticos, sujeitos remediados que me desprezanporque sou um pobre-diabo.Tipos bestas. Ficam dias inteiros fuxicando no �cafés e preguiçando, indecentes. Quando avisto essacambada, encolho-me, colo-me às paredes como unrato assustado. Como um rato, exatamente. Fzjo do�negociantes que soltam gargalhadas enormes, discutenpolítica e putaria.Não posso pagar o aluguel da casa. Dr. Gouveiaperta-me com bilhetes de cobrança. Bilhetes inútei:mas dr. Gouveia não compreende is.to. Há tambéro homem da luz, o Moisés das prestações, uma promi.sória de quinhentos mil-réis, já reformulada. E coisapiores, muito piores.O artigo que me pediram afasta-se do papel. ve:�dade que tenho o cigarro e tenho o álcool, mas quandbebo demais ou fumo demais, a minha tristeza cresc �Tristeza e raiva. Ar, mar, ria, arma, ira. Passatempestúpido.Dr. Gouveia é um monstro. Compôs, no quintano, duas colunas que publicou por dinheiro na secçãlivre de um jornal ordinário. Meteu esse trabalhinhnum caixilho dourado e pregou-o na parede, por cimdo bureau. Está cheio de erros e pastéis. Mas dr. Go �veia não os sente. O espírito dele não tem ambiçôeDr. Gouveia só se ocupa com o temporal: a renda dapropriedades e o cobre que o tesouro lhe pinga.8

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Não consigo escrever. Dinhefro e propriedades, queme dão sempre desejos violentos de mortandade e ou-tras destruições, as duas colunas mal impressas, caixi-lho, dr. Gouveia, Moisés, homem da luz, negociantes,polfticos, diretor e secretário, tudo se move na minhacabeça, como um bando de vermes, em cima de umacoisa amarela, gorda e mole que é, reparando-se bem,a cara balofa de Julião Tavares mufto aumentada.Essas sombras se arrastam com lentidão viscosa, mis-turando-se, formando um novelo confuso.Afinal tudo desaparece. E, inteiramente vazio, ficotempo sem fim ocupado em riscar as palavras e osdesenhos. Engrosso as linhas, suprimo as curvas, atéque deixo no papel alguns borrões compridos, umastarjas muito pretas.* * *Se pudesse, abandonaria tudo e recomeçaria asminhas viagens. Esta vida monótona, agarrada à bancadas nove horas ao meio-dia e das duas às cinco, é estúpida. Vida de sururu. Estúpida. Quando a repartiçãose fecha, arrasto-me até o relógio oficial, meto-me noprimeiro bonde de Ponta-da Terra.Que estará fazendo Marina? Procuro afastar demim essa criatura. Uma viagem, embria.guez, suicídio. . .Peno no meu cadáver, magrfssimo, com os dentes�arreganhados, os olhos como duas jabuticabas sem cas-#ca, os dedos pretos do cigarro cruzados no peito fundoOs conhecidos dirão que eu era um bom tipo e con-duzirão para o cemitërio, num caixão barato, a minhaCarcaça meio bichada. Enquanto pegarem e soltaremas alças, revezando-se no mister piedoso e cacete deCarregar defunto pobre, procurarão saber quem seráo meu substituto na Diretoria da Fazenda.Enxoto as imagens lúgubres. Vão e voltam, semvergonha, e com elas a lembrança de Julião Tavares.Intolerável. Esforço-me por desviar o pensamento des-sas coisas. Não sou um rato, não quero ser um rato.Tento distrair-me olhando a rua.A medida que o carro se afasta do centro sinto

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que me vou desanuviando. Tenho a sensação de que9viajo para muito longe e não voltarei nunca. Do ladesquerdo são as casas da gente rica, dos homens qume amedrontam, das mulheres que usam peles de cortos de réis, Diante delas, Marina é uma ratufna. Dlado direito, navios. As vezes hâ diversos ancorado;Rolam bondes para a cidade, que está invisível, lá ercima, distante. Vida de sururu.Hâ quinze anos era diferente. O barulho dos bondenã,o deixava a gente ouvir o sino da igreja. O me �quarto, no primeiro andar, era um inferno de calo �Por isso, à hora em que os outros hóspedes iam para escola, estudar medicina, eu dava um salto ao Pa:seio Público e lia, debaixo das árvores, o noticiário dpolfcia. Naturalmente a pensão se fechou e d. Aurorfque naquele tempo era velha, morreu.O calor aqui também é grande demais. E faltarplantas. Apenas, um pouco afastados, coqueiros m �cambúzios, perfilados, como se esperassem ordens.Cidade grande, falta de trabalho. O meu quartficava junto à escada, e à noite o cheiro do gás erinsuportável. Quando escurecia, Dagoberto, estudante repórter, vinha despejar sobre a minha cama uIcompêndio de anatomia e uma cesta de ossos.O bonde chega ao fim da linha, volta. Bairro misErável, casas de paIha, crianças doentes. Barcos de pe;cadores, as chaminés dos navios, longe.D. Aurora, que tinha sobrenome inglês, às seihoras encostava-se ao guarda-roupa e rosnava, agitavos caracóis brancos, pregava os óculos nos hóspedEque comiam demais e nos que estavam em atras �Havia um rapaz de Minas, dispêptico, que ela adorave queria casar com a neta. Enquanto os outros mastgavam, Dagoberto esquecia o prato e falava sobre cdiscursos da Câmara.Retorno à cidade. Os globos opalinos do Ater �iluminam o gramado murcho e a praia branca. Ccoqueiros empertígados ficam para trás. Penso nuxrditadura militar, em paradas, em disciplina. Os navu

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também ficam para trás. A pensão, o meu quarto abfado, o focinho de d. Aurora e a cesta de ossosDagoberto somem-se.10O carro passa pelos lundos do tesouro. E ali quetrabalho. Ocupação estúpida e quinhentos mil-réis deordenado.Rua do Comércio. Lá estâo os grupos que me des-gostam. Conto as pessoas conhecidas: quase sempreaté os Martírios encontro umas vinte. Distraio-me,esqueço Marina, que algumas ruas apenas separamde mim. Afasto-me outra vez da realidade, mas agoranão vejo os navios, a recordação da cidade grandedesapareceu completamente. O bonde roda para oeste,diríge-se ao interior. Tenho a impressão de que ele mevai levar ao meu municipio sertanejo. E nem perceboos casebres miseráveis que trepam o morro, à direi-#ta, os palacetes que têm os pés na lama, junto aomangue, à esquerda. Quanto mais me aproximo de Be-bedouro mais remoço. Marina, Julião Tavares, as apo-quentações que tenho experimentado estes últimostempos, nunca existiram.Volto a ser criança, revejo a figura de meu avó,Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, quealcancei velhíssimo. Os negócios na fazenda andavammal. E meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva,fIcava dias inteiros manzanzando numa rede armadanos esteios do copiar, cortando palha de milho paracigarros, lendo o Cczrtos Magno, sonhando com a vitó-ria do partido que padre Inácio chefiava. Dez ou dozereses, arrepiadas no carrapato e na varejeira, enver-gavam o espinhaço e comiam o mandacaru que Amarro vaqueiro cortava nos cestos. O cupim devorava osmourões do curral e as línhas da casa. No chiqueiroalguns bichos bodejavam. Um carro de bois apodreciadeba,ixo das catingueiras sem folhas. Tinham amar-rado no pescoço da cachorra Maqueca um rosário desabugos de milho queimados. Quitéria, na cozinha,mexia em cumbucos cheios de miudezas, escondia peles

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de fumo no caritó.Eu andava no pátio, arrastando um chocalho,brincando de boi. Mínha avó, sinha Germana, passavaos dias falando só, xingando as escravas, que não exis-tiam. Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silvatomava pileques tremendos. As vezes subia à vila, des-composto, um camisão vermelho por cima da ceroulaIIde algodão encaroçado, chapéu de ouricuri, alpercatae varapau. Nos dias santos, de volta da igreja, mestrDomingos, que havía sído escravo dele e agora possuf �venda sortida, encontrava o antigo senhor escoraido mbalcão de Teotoninho Sabiá, bebendo cachaça e jogando três-setes com os soldados. O preto era unsujeíto perfeítamente respeftável. Em horas de solen:dade usava sobrecasaca de chita, correntão de our �atravessado de um bolso a outro do colete, chinelode trança, por causa dos calos, que não agüentavansapatos. Por baixo do chapéu duro, a testa retintaúmída de suor, brilhava como um espelho. Pois, apesar de tantas vantagens, mestre Domingos, quand �vfa meu avô naquela desordem, dava-lhe o braço, levava-o para casa, curava-lhe a bebedeira com amonfaccTrajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva vomitava na sobrecasaca de mestre Domingos e grítava:- Negro, tu não respeitas teu senhor não, negroQuando o carro pára, essas sombras antigas desaparecem de supetão - e vejo coisas que não me excitam nenhum interesse: os focos da iluminação públ:ca, espaçados, cochilando, píongos, tão píongos comluzes de cemitério; um palácio transformado em albergue de vagabundos; escuridões, capoeiras, barrefracortadas a pique no monte; a frontaria de uma fábric,de tecidos; e, de Ionge em longe, através de ramagen:pedaços de mangue, cinzentos. A medida que noaproximamos do fim da linha as paradas são menofreqüentes. Os postes cintados de branco passam correndo, o carro está quase vazio, as recordações da minha infâncía precipitam-se. E a decadência de TrajanPereira de Aquino Cavalcante e Silva precipita-s

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também.Estava pegando um século quando entrou a c:ducar. Encolhido na cama de couro cru, mijava-,todo, contava os dedos dos pés e caía na madorn;De repente acordava sobressaltado:- Sinha Germana!Meu pai largava o Carlos Magno, abria o tabaquEro, deixava a rede, impaciente:#Que é que há?12- Homem, você não me dirá onde está sua mãe?Aqui mais de uma hora chamando essa mulher!- Morreu.- Que está me dizendo? estranhava o velho arr �galando os olhos quase cegos. Quando foi isso?Camilo Pereira da Silva amolava-se:- Deixe de arrelia. Morreu o ano passado.- Tanto tempo! dizia Trajano. E vocês calados. . .- Punha-se a folgar com os dedos e pegava nosono. Quinze minutos depois estava berrando:- Sinha Germana!Acabou-se numa agonia leve que não queria terfim. E enterrou-se na catacumba desmantelada quenossa família tinha no cemitério da vila. Mestre Do-mingos pegou na alça do caixão e declarou a meu paique a morte é um mundéu. Fomos morar na vila. Me-teram-me na escola de seu Antônio Justino, para desas-nar, pois, como disse Camilo quando me apresentouao mestre, eu era um cavalo de dez anos e não conhe-cia a mão direita. Aprendi leitura, o catecismo, a con-jugação dos verbos. O professor dormia durante aslições. E a gente bocejava olhando as paredes, espe-rando que uma réstia chegasse ao risco de lápis quemarcava duas horas. Saíamos em algazarra. Eu iajogar pião, sozinho, ou empinar papagaio. Semprebrïnquei só.* * *Uma chuvinha renitente açoita as folhas da man-guefra que ensombra o fundo do meu quintal, a água

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empapa o chão, mole como terra de cemitério, qual-quer coisa desagradável persegue-me sem se fixar cla-ramente no meu espírito. Sinto-me aborrecido, aper-readoDebaixo da chuva azucrinante, espécie de neblinapegajosa, a mangueira do quintal e as roseiras da casavizinha estão quase invisíveis.Emendo um artigo que Pimentel me pediu, artigofeito contra vontade, só para não descontentar Pi-mentel. Felizmente a idéia do livro que me persegueàs vezes dias e dias desapareceu.13Penso em mestre Domingos, no velho Trajano, emmeu pai. Não sei porque mexi com eles, tão remotos,dilufdos em tantos anos de separação. Não têm ne-nhuma relação com as pessoas e as coisas que mecercam.Releio com desgosto o artigo que vou dar a Pi-mentel.Os defuntos antigos me importunam. Deve ser porcausa da chuva. Nos meses compridos daqueles in-vernos de serra muítas vezes fiquei tardes inteiras sen-tado à porta da nossa casa na vila, olhando a rua quedesaparecia aebaixo de um lençol branco de águaem pó. Os chuviscos entravam pela sala, os móveis e aroupa da gente pareciam cobrir-se de pontinhas dealfinetes. De tempos a tempos um vulto embuçadopassava na calçada. O velho Acrísio, de cachimbo naboca, chegava à janela para conversar com meu pai.Nâo entrava: dava umas notfcias, esfregando as mãos,agüentando aqueles pinguinhos que não molhavam,apenas lhe umedeciam o capote e o cachenê de lã ver-melha.Agora a chuva é um pouco diferente, o nevoeiramenos denso. De longe em longe a água bate no telhado com força, depois continua a peneira que ocultao jardim da casa vizinna.Se Marina tivesse a idéia de se banhar ali àquelahora da tarde, eu não lhe veria o corno. Talvez visse#

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apenas uma sombra, como acontece nõ cinema quandcse apresentam mulheres nuas. Este pensamento esquisito - Marina despida, arrepiada, coberta de caroci �nhos - bole comigo durante alguns minutos.Gostava de me lavar assim quando era meninoA trovoada ainda roncava no céu, e iá me preparavaAs vezes a preparação durava três dias. O trovão rolavspor este mundo, os relâmpagos sucediam-se com fúriaQuitéria encafuava-se, oferecia peles de fumo a SantfClara, escondia a cabeça debaixo das cobertas e gri �tava: - "Misericórdial "; meu pai largava o romancenervoso; Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e SilvFchamava sinha Germana, que tínha morrido. Quandco aguaceiro chegava, o couro cru da cama do velhcTrajano virava mingau, tanta goteira havia; a redi14suja de Camilo fedia a bode; os bichos da fazendavinham abrigar-se no copiar; o chão de terra batidaficava todo coberto de excremento.Eu tirava as alpercatas, arrancava do corpo a ca-misinha de algodão encardida, agarrava um cabo devassoura, fazia dele um cavalo e saía pinoteando, pe-rerê, pererê, pererê, até o fim do pátio, onde haviatrês pés de juá. Repetia o exercicio, cheio de alegriadoida, e gritava para os animais do curral, que se lava-ram como eu. Fatigado, saltava no lombo do cavalo 'de fábrica, velho e lazarento, galopava até o Ipanemae cafa no poço da Pedra. As cobras tomavam banhocom a gente, mas dentro da água não mordiam.O poço da Pedra era uma piscina enorme. Antesde entrar nela, o Ipanema tinha dois metros de lar-gura e arrastava-se debaixo dos garranchos de algu-mas quixabeiras sem folhas.Quando eu ainda nã.o sabfa nadar, meu paf melevava para ali, segurava-me um braço e atirava-menum lugar fundo. Puxava-me para cima e deixava-merespirar um instante. Em seguida repetia a tortura.Com o correr do tempo aprendi natação com os biehose livrei-me disso. Mais tarde, na escola de mestre An-t8nfo Justino, lf a história de um pintor e de um

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cachorro que morria afogado. Pois para mim era nopoço da Pedra que se dava o desastre. Sempre imaginei o pintor com a cara de Camilo Pereira da Silva,e o cachorro parecia-se comigo.Se eu pudesse fazer o mesmo com Marina, afogá-ladevagar, trazendo-a para a superffcie quando ela estf-resse perdendo o fôlego, prolongar o suplicfo um diainteiro . . .Debaixo da chuva, a manguefra do quintal estátoda branca. O papagaio na cozinha bate as asas, sa-cudindo os salpicos que vêm da biqueira. Afago o pêlomacio do meu gato mourisco, que dorme enroscadonuma cadeira. As idéias ruins desaparecem. Marinadesaparece.Ponho-me a vagabundear em pensamento pela viladistante, entro na igreja, escuto os sermões e os desa-foros que padre Inácio pregava aos matutos: - ·Ar�reda, povo, raça de cachorro com porco." Sento-me no15paredão do açude, ouço a cantilena dos sapos. Vejoa figura sinistra de seu Evaristo enforcado e os ho-mens que iam para a cadeia amarrados de cordas.Lembro-me de um fato, de outro fato anterior ouposterior ao primeiro, mas os doís vêm juntos. E ostipos que evoco não têm relevo. Tudo empastado, con·fuso. Em seguida os dois acontecimentos se distanciame entre eles nascem outros acontecimentos que vãocrescendo até me darem sofrfvel nocão de realidade,As feições das pessoas ganham nitidez. De toda aquelavida havia no meu espírito vagos indïcios. Saíram da#entorpecimento recordações que a imaginação com �pletou.A escola era triste. Mas, durante as lições, em pé;de braços cruzados, escutando as emboanças de mestreAntônio Justino, eu via, no outro lado da rua, umacasa que tinha sempre a porta escancarada mostrandca sala, o corredor e o quintal cheio de roseiras. Mora �vam ali três mulheres velhas que pareciam formigas.Havia rosas em todo o canto. Os trastes cobriam-se de

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grandes manchas vermelhas. Enquanto uma das formigas, de mangas arregaçadas, remexia a terra do jar �dím, podava, regava, as outras andavam atarefadascarregando braçadas de rosas.Daqui também se véem algumas roseiras maltrata �das no quintal da casa vizinha. Foi entre essas planta;que, no começo do ano passado, avistei Marina pelEprimeira vez, suada, os cabelos pegando fogo.Lá estão novamente gritando os meus desejos. Calam-se acovardados, tornam-se inofensivos, transformam-se, correm para a vila recomposta. Um arrepuatravessa-me a espinha, inteiriça-me os dedos sobre ipapel. Naturalmente são os desejos que fazem isto, ma �atribuo a coisa à chuva que bate no telhado e à recordação daquela peneira ranzinza que descia do céu diae dias.Meu pai cochilava, encostado ao balcão. Na salet �da nossa casa, por detrás da bodega, eu recordava alições, entorpecido. Enfiando os olhos pela janela, vina rua o meu vizinho Joaquim Sabiá, de cócoras, fazendo construções com areia molhada. Havia um grandsilêncio, um silêncio incômodo. As vezes punha-meistossir, para me convencer de que não tinha ficado surdo.Era como se a gente houvesse deixado a Terra. De re-pente surgiam vozes estranhas. Que eram? Ainda hojenão sef. Vozes que iam crescendo, monótonas, e me cau-sa.vam medo. Um alarido, um queixume, clamor enor-me, sempre no mesmo tom. As ruas enchiam-se, s sa-leta enchia-se - e eu tinha a impressão de que o bradolastimoso saía das paredes, safa dos móveis. Fechava osouvidos para não perceber aquilo: as vozes continuavam, cada vez mais fortes. Que seriam? Tentava desco-brir a causa do extraordinário lamento. Supunha queeram patos gritando, embora nunca tivesse ouvido a vozdos patos. Também me inclinava a admitir que fossemsapos. Mas os sapos do açude da Penha cantavam deoutra forma. Não podiam ser sapos. A verdade é quemuitas vezes perguntef a mim mesmo se realmente ouviaaquele barulho grande, diferente dos outros barulhos.

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Perguntei naquele tempo ou perguntei depois? Não sei.Tenho-me esforçado por tornar-me criança - e em con-seqüência misturo cofsas atuais a cofsas antigas.* * *Penso na morte de meu pai. Quando voltef da es-cola, ele estava estirado num marquesão, coberto comum lençol branco que Ihe escondfa o corpo todo atéa cabeça. Só ficavam expostos os pés, que iam além deuma das pontas do marquesão, pequeno para o defuntoenorme. Muitas pessoas se tinham tornado donas dacasa: Rosenda lavadeira, padre Inácio, cabo José daLuz, o velho Acrisio.Fuf sentar-me numa prensa de farinha que havlano fundo do nosso quintal. Tentei chorar, mas nãotinha vontade de chorar. Estava espantado, imaginandoa vida que ia suportar, sozinho neste mundo. Sentiairfo e pena de mim mesmo. A casa era dos outros,o defunto era dos outros. Eu estava ali como um bichi-nho abandonado, encolhido na prensa que apodrecfa.Ouvia o barulho de um descaroçador de algodão, pró-atmo, no Cavalo-Morto. E via o corredor da nossa casa#por onde passavam a batina de padre Inácio, a fardá1 �de cabo José da Luz, o vestido vermelho de R.osendae o capote do velho Acrfsio.Que ia ser de mim, solto no mundo? Pensava nospés de Camilo Pereira da Silva, sujos, com tendões dagrossura de um dedo, cheios de nós, as unhas roxas,Eram magros, ossudos, enormes. O resto do corpo es �tava debaixo do lençol branco, que fazia um vinccentre as pernas compridas. Eu não podfa ter saudadedaqueles pés horríveis, cheios de calos e joanetes. Pracurava chorar - lembrava-me dos mergulhos no poçcda Pedra, das primeiras lições do alfabeto, que me ren �diam cocorotes e bolos. Desejava em vão sentir a mortede meu pai. Tudo aquilo era desagradável. - "Istcé um cavalo ae dez anos e nã,o conhece a mão di �reita."Agora eu tinha catorze, conhecfa a mão direit2

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e os verbosVoltei à sala9 nas pontas dos pés. Ninguém miviu. Camilo Pereira da Silva continuava escondido debaixo do pano branco, que apresentava no lugar dacara uma nódoa vermelha coberta de moscas. Rosendfqueimava alfazema num caco de telha. Seu Acrfsio nã �servia para nada. Era impossfvel saber onde se fixavf0 olho de padre Inácio, duro, de vidro, imóvel na órbita escura. Ninguém me vfu. Fiquei num canto, roendias unhas, olhando os pés do finado, compridos, chatosamarelos.Sempre abafando os passos, dirigf-me novament �ao fundo do quintal, com medo daquela gente que nenme havfa mandado buscar à escola para assistir �morte de meu paf. Até a preta Quitéria se esquecer �de mim. Ao passar pela cozinha, encontrei-a mexend �nas panelas e lastimando-se. Sentei-me na prensa, cansado, o estômago doendo. Que iria fazer por af à toamiúdo, tão miúdo que ninguém me via? Encostei-mao muro, escorreguei por cima da madeira bichad �a.dormecf pensando nos mergulhos do poço da Pedrsnos bolos e nos pés de Camilo Pereira da Silva. E, enquanto dormia, ouvfa a cantiga dos sapos no açudda Penha, o burburinho dos intrusos que se acavalavam no corredor, o barulho do descaroçador de algcdão no Cavalo-Morto. Vozes chegavam-me, confusas,18eu não conseguia apreender o sentido delas. Visões tam-bém. Via a casa da fazenda, arruinada, os bichos defi-nhando na morrinha, o chiqueiro bodejando, relâm-pagos cortando o céu. A chuva caía, eu andava pelopátio, nu, montado num cabo de vassoura. Quem meacordou foi Rosenda, que me trazia uma xícara decafé.- Muito obrigado, Rosenda.E comecei a soluçar como um desgraçado.Desde esse dia tenho recebido muito coice. Tam-bém me apareceram alguns sujeitos que me fizeramfavores. Mas até hoje, que me lembre, nada me sensi-bilizou tanto como aquele braço estirado, aquela fala

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mansa que me despertava.- Obrigado, Rosenda.Iam levando o cadáver de Camilo Pereira da Silva.Corri para a sala, chorando. Na verdade chorava porcausa da xícara de café de Rosenda, mas consegui en-ganar-me e evitei remorsos.Na casa escura, cheia das lamentações de Quitéria,não encontrei sossego. Adormeci pela madrugada.No dia seguinte os credores passaram os gada-nhos no que acharam. Tipos desconhecidos entravamna loja, mediam peças de pano. Chegavam de chapéuna cabeça, cigarro no bico, invadiam os quartos, pra-#guejavam. Enterrar os mortos, obra de misericórdia.0 morto estava enterrado. Padre Inácio e os outrossumiram-se. E os homens batiam os pés com força,levavam ,as mercadorias, levavam os móveis, nem meolhavam, nem olhavam Quitéria, que se encolhia ge-mendo "Misericórdia! ", como quando o trovão rolavano céu e os bichos iam abrigar-se no copiar da fazenda.Passei a noite a um canto da sala de jantar, numaede encardida, a cabeça debaixo do cobertor, com�medo da alma de Camilo Pereira da Silva. Pensava narede armada no copiar, no poço da Pedra, no pátiobranco onde se arrastavam cascavéis e jararacas. Aqui-lo agora tinha outro dono. O cupim continuava a roeros mourões do curral e os caibros da casa, o carro debois apodrecia sob as catingueiras, os bichos bodeja-vam no chiqueiro. Mas a sombra do velho Trajano nãobrincava com os dedos dos pés, Amaro vaqueiro não19cortava mandacaru para o gado, a cachorra Moquec �tinha morrido, Camilo Pereira da 8ilva não foiheav �o romance.Que estaria fazendo a alma de Camilo Pereïra d �Silva? Provavelmente rondava a casa, entrava pelaportas fechadas, olhava as prateleiras vazias. As outraalmas mais antigas, Trajano, seu Evaristo, sinh Cle�� �mana, nã,o me atemorizavam; mas aquela, tão próxma, ainda agarrada ao corpo, dava-me tremuras. iJ suo

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corria-me pelo rosto. Como estariam os pés de (amil�Pereira da Silva? Certamente estavam inchados, ve �des, com pedaços ficando pretos.* * *Seu Ivo, silencioso e faminto, vem visitar-rrde. Fsagrados ao gato e ao papagaio, entende-se com Vitór;e arranja um osso na cozinha. Não quero vê-lo, baizos olhos para não vê-lo.Fico de pé, encostado à mesa da sala de y antaolhando a janela, a porta aberta, os degraus de cime �to que dão para o quintal. tgua estagnada, lixo, o ca� �teiro de alfaces amarelas, a sombra da manguei.;a. Picima do muro baixo ao fundo vêem-se pipas, nont�� �de cisco e cacos de vidro, um homem triste que encldornas sob um telheiro, uma mulher magra que la �garrafas.Seu Ivo está invisivel. Ouço a voz áspera de Vitóre isto me desagrada. Entro no quarto, procuro urefúgio no passado. Mas não me posso esconder inttramente nele. Não sou o que era naquele tempFalta-me tranqüilidade, falta-me inocência, estou fei �um molambo que a cidade puiu demais e sujou.Fumo. Assisto a uma discussão do barbeira AndLaerte com o negociante Filipe Benigno. As palavrme chegam quase apagadas, destituidas de senso. E prvável que não digam nada. Filipe Benigno é u n pomnebuloso : só percebo dele claramente as barbas bracas e os olhos miúdos. Mas a figura de André Laertem bastante nitidez. Parece um gato: anda er i reddo outro como se estivesse preparando um salo pa�agarrá-lo. Tem um avental manchado de sang;ze, u�20bigodinho ralo e faz "Pfu!" Seu Batista, vestído emrobe-de-chambre, passeia na calçada, com as mãos atrásdas costas. D. Conceição, mulher de Teotoninho Sabiá,prepara milho para o xerém. Carcará solta gargalha-das que se ouvem na outra extremidade da rua. O dou-tor juiz de direito conta ao vigário histórias de onçase jacarés do Amazonas. Cabo José da Luz, à porta doquartel, espalha tristezas:

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Assentei praça Na polícia eu vivoPor ser amigo da distinta farda...O sino da igrejinha bate a primeira pancada das#ave-marias.Não, não é o sino da igreja, é o relógio da sala dejantar. Oito e meia. Preciso vestir-me depressaw chegarà repartição às nove horas. Apronto-me, calço as meiaspelo avesso e saio correndo. Paro sobressaltado, tenhoa impressão de que me faltam peças do vestuário.Assaltam-me dúvidas idíotas. Estarei à porta de casaou já terei chegado à repartição? Em que ponto dotrajeto me acho? Não tenho conscíêncía dos movímen-tos, sinto-me leve. Ignoro quanto tempo fíco assim.Provavelmente um segundo, mas um segundo que pa-rece eternidade. Está claro que todo o desarranjo éinterior. Por fora devo ser um cidadão como os outros,um diminuto cidadão que vai para o trabalho maçador,um Luís da Silva qualquer. Mexo-me, atravesso a ruaa grandes pernadas.Tenho contudo a impressão de que os transeuntesme olham espantados por eu estar ímóvel.Tmóvel. Camilo Pereira da Silva também estavaimóvel, debaixo da terra. D. Conceição vinha ofere-cer-me comida. As meninas dela, d. Maria e Teresa,tentavam consolar-me. Retraía-me como um animalacuado, fechava os ouvidos às consolações, cerrava osolhos, apalpava a cabeça e sentia a dureza de ossos,dava estalos com os dedos e ouvia o som de ossos.- Obrigado, muito obrigado.Nâo precisava de nada. Os ossos de Camilo Pereirada Silva desconjuntavam-se na podrïdão da cova, e aalma já nã,o me fazia medo. Era uma alma que enve �22lhecia e estava fora da terra, provavelmente no purga·tório. Quitéria rezava alto na cozinha:- Ofereço este padre-nosso e esta ave-maria àsalmas do purgatório.Era lá que devia estacionar uma parte de meu pai,curando uns restos de pecados. Leves pecados. Apenas

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muita preguiça. Por isso eu agüentava fome e ouvia&Q lamentações de Quitéria.Para que banda ficaria o purgatório? Seu AntônioJustino não sabia. Nem eu. Sabia onde ficavam o Riode Janeiro, São Paulo, Minas, lugares que me atrafam,que atraem a minha raça vagabunda e queimada pelaseca. Resolvi desertar para uma dessas terras distantes.Abandonei a vila, com uma trouxa debaixo do braçoe os livros da escola. - "Adeus, d. Conceição. Muitoobrigado pela comida com que me matou a fome.Adeus, Joaquim Sabiá, d. Maria, Teresa. Adeus, Quité-ria, Rosenda, cabo José da Luz." E comecei a andarlenta.mente pelo caminho estreito, afastando-me davila adormecida.Começo a andar depressa, receando encontrar oponto encerrado. Tolice. Provavelmente tudo aquilo sepassou num segundo. Tenho a impressão de que umaobjetiva me pegou, num instantâneo. Ficarei assim,com a perna erguida, a pasta debaixo do braço, o cha-péu embicado.Lufs da Silva, a caminho da repartição, lesando.pensando em defuntos.i ;Este mês ffz um sacriffcio: def uns dinheiros aoMoisés das prestações para amortizar a minha conta.Dr. Gouveia há de ter paciência: espera mais uns dias.Deixarei de andar pela Rua do Sol para não encon-trá-lo. O que não posso é continuar a esconder-me deMoisés. Escondo-me, estive algumas semanas sem irao café, com receio de ver o judeu. E gosto do café,passo lá uma hora por dia, olhando as caras.Há o grupo dos médicos, o dos advogados, o doscomerciantes, o dos funcionários públicos, o dos litera-#tos. Certos indivfduos pertencem a mais de um grupo,23outros circulam, procurando familfaridades proveftosas. Naquele espaço de dez metros formam-se vária;sociedades com caracteres perfeitamente definidos, mui

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to distanciadas. A mesa a que me sento fica ao pé davitrina dos cigarros. É um lugar incômodo: as pessoa;que entram e as que saem empurram-me as pernasContudo não poderia sentar-me dois passos adianteporque às seis horas da tarde estão lá os desembargadores. E agradável observar aquela gente. Com umadespesa de doís tostões, passo alí uma hora, encolhídcjunto à porta, distraindò-me.Pois-ultimamente precisef renuncfar ao café, po �causa de Moisés. Ele também se esquivava. Iiá dia;deu de cara comigo ao dobrar uma esquina e empalfdeceu, balbuciou na sua lingua avariada:- Olá! Como vai? Estou com muita pressa.É um péssimo cobrador. Dei-lhe este mês cem milréis para pôr termo a esses vexames, Mas ainda devcmuito, nem sei quanto. A culpa é minha. Quando m �vendeu as fazendas, Moisés foi franco:- Isto é caro como o diabo. Você faz melhor negócio comprando a dinheiro noutra loja.Mas eu estava na pindaïba e precisava adquirir o;trapos para Marina. Desde entâo venho suando parfreduzir o débito. Quando me atraso, Moisés foge d �mim. Agora, depois de receber o cobre, declarou-mique as mercadorias já tinham sido pagas. Infelizment �não me podia dar quitação, porque os troços que vendisão do tio, judeu verdadeiro.- Está muito bem.E o constrangimento desapareceu. As sefs horaestamos de novo sentados junto à vitrina dos cigarro �Moisés fala com abundância, desforrando-se do silêncio em que estivemos ultimamente. Procura a expre,são, coça a testa, franze os beiços numa careta qulhe mostra os dentes largos e diz:- Está percebendo?Sim, percebo, embora ele tenha sintaxe medonhe pronúncia incrfvel. Faz rodeios fatigantes, deturpasentido das palavras e usa esdrúxulas de maneira irsensata. Escuto-o. Os ouvídos são para ele, os olhcpara as figuras habituais do café. Os olhos estão qua �24

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invisfveis por baixo da aba do chapéu, e uma folhada porta oculta-me o corpo. Uma criaturinha insigni-ficante, um percevejo social, acanhado, encolhido paranão ser empurrado pelos que entram e pelos que saem.Perto um capitalista fala muito alto, e os cotov �los sobre o mármore dão-lhe na sala estreita espaçoexcessivo. No grupo da justiça as palavras tombammedidas, pesadas, e os gestos são lentos. Além, doispolíticos cochicham e olham para os lados.Moisés comenta o jornal. Nunca vi ninguém lercom tanta rapidez. Percorre as colunas com o dedoe pára no ponto que lhe interessa. Engrola, saltandolinhas, a.quela prosa em lfngua estranha, relaciona oconteúdo com leituras anteriores e passa adiante. E umdedo inteligente o do Moisés. O resto do corpo tempouca importância; os ombros estreitos, a corcunda,os dertes que se mostram num sorriso parado. O quea gente nota é o dedo. O dedo e a voz sibilada, des-contente, sempre a anunciar desgraças. Moisés é umacoruja. Acha que tudo vai acabar, tudo, a começarpelo tio, que esfola os fregueses. E eu acredito emMoisés, que não escora as suas opiniões com a palavrado Senhor, como os antigos: cita livros, argumenta.Prega a revolução, baixinho, e tem os bolsos cheios defolhetos incendiários.#De repente cala-se: foi o doutor chefe de policiaque apareceu e começou a cochichar com os polfticos.0 dedo de Moisés some-se entre as folhas do jornal,o revolucionário esconde-se por detrás do sorriso inex-pressivo. Covardia. Mas afasto este pensamento severo.Moisés não tem jeito de herói: é apenas um sujeitobom e inteligente. Por isso fiz o sacrificio de lhe daroem mil-réis, que me vão transtornar o orçamento.Estava tão abandonado neste deserto. . . Só se diri-giam a mim para dar ordens:- Seu Luís, é bom modificar esta informaçã,o.Corrija isto, seu Luís.Fora daí, o silêncio, a indiferença. Agradavam-meos passageiros que mP pisavam os pés, nos bondes,

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e se voltavam, atenciosos:- Perdão, perdão. Faz favor de desculpar.- Sem dúvida. Ora essa.25Ou então:- Tem a bondade de me dizer onde fica a Ruado Apolo?- Perfeftamente, minha senhora. Vamos para láÉ o meu caminho.Agora estou defronte de um amigo, amigo que mfliga pouca importâ,ncia, é verdade, amigo todo entre �gue aos telegramas estrangefros, mas que me custoucem mil-réis. Parece-me que até certo ponto Moisé:é propriedade minha. Os cem mil-réfs me vão faze �muita falta.Estremeço : dr. Cfouvefa entra na sala, marchspara a vitrina dos cigarros.- Vamos dar o fora, Moisés?Dois minutos depois estamos sentados num banccda Praça Montepio. Aqui há sossego, não vêm cá certos indivfduos impertinentes. O que me desgosta é ve �de relance, nos bancos do centro, que a folhagem dis �farça mal, pessoas atracadas. Sinto furores de mora �tista. Cães! Amando-se em público, descaradamentelCães! Tremo de indignação. Depois esmoreço: julgueidistinguir entre as folhas dos crótons o vulto de Ma �rina. Foi ilusão, mas a imagem permanece. Cachor �rada!Moisés fala em polfticos reacionárfos. Encho-mede ferocidade:- Malandros! Ladrões!Agora Moisés está contando as perseguições ao:judeus, na Europa. Lembro-me do tío dele e digo co-migo que provavelmente a narração é exagerada. SEMoisés não fosse inteligente, com certeza muitos da �queles fatos não existlriam. Sofrlmentos. Iniqüidades- Aqui há tanto dísso! Mas somos fatalistas, es �tamos habituados e não temos imaginação como vocêsEntro a falar sobre a minha vida de cigano, d �fazenda em fazenda, transformado em mestre de me

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ninos. Quando ensinava tudo que seu Antônio Justimme ensinara, passava a outra escola. Tinha o sustentcDepois era a caserna. Todas as manhãs nos exerclcios. - "Meia-volta! Ordinário!" As peças do fuzilmarchas na lama, a bandeira nacional, o hino, atarimbas sujas, os desaforos do sargento Em seguid �26vinha a banca de revisão: seis hora,s de trabalho pornoite, os olhos queimando junto a um foco de cemvelas, cinco mil-réis de salário, multas, suspensões.E coisas piores, que me envergonham e não contoa Moisés. Empregos vasqueiros, a bainha das calçasrofda, o estômago roído, noites passadas num banco,importunado pelo guarda. Farejava o provinciano delonge, conhecia o nordestino pela roupa, pela cor des·; botada, pela pronúncia. E assaltava-o:#- Um filho do nordeste, perseguido pela adversi·dade, apela para a generosidade de v. exa.! Valorizava a esmola:- Trago um romance entre os meus papéis. Com-pus um livro de versos, um livro de contos. Sou obri-gado a recorrer aos meus conterrâneos. Até que mesrranje, até que possa editar as minhas obras.lecebia, com um sorriso, o níquel e o gesto de�desprezo. O frege-moscas fedia a vinho podre, e o ga-lego, de tamancos, coberto de nódoas, era asqueroso.Mais tarde, já aqui em Maceió, gastando sola pelasrepartições, indignidades, curvaturas, mentiras, na caçaI ao pistolo.�- Escrevi muito atacando a república velha, dou·tor; sacrifiquei-me, endividei-me, estive preso por causada ideologia, doutor.Afinal, para se livrarem de mim, atiraram-me este! osso que vou roendo com ódio.- Chegue mais cedo amanhã, seu Luis.E eu chego.- Informe lá, seu Luís.E eu informo. Como sou diferente de meu av8!Um dia um cabra de Cabo Preto apareceu na fa-

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zenda com uma carta do chefe. Deixou o clavinoteencostado a um dos juazeiros do fim do pátio, e delonge ia varrendo o chd,o com a aba do chapéu decouro. Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva8oletrou o papel que o homem lhe deu e mandou Ama-ro laçar uma novilha. O cabra jantou, recebeu umanota de vinte mil-réis, que naquele tempo era muitodinheiro, e atravessou o Ipanema, tangendo o bicho.Dia de Natal meu avó foi à vila, com a mulher, e en-controu no caminho o grupo de Cabo Preto, que se27meteu na capueira para não assustar a dona, .inr�Germana, de saias arregaçadas, escanchada na selum mosquetão na maçaneta, não viu nada, mas meavô fez um gesto de agradecimento aos angicos e acmandacarus que marginavam a estrada. Quando a p �Iftica de padre Inâcio caiu, o delegado prendeu u �cangaceiro de Cabo Preto. O velho Trajano suiu�vila e pediu ao doutor juiz de direito a soltu:~a ccriminoso. Impossível. Andou, virou, mexeu, yastcdinheiro com habeas-corpus - e o doutor duro comchifre.- Está direito, exclamou Trajano plantando o s �pato de couro cru na palha da cadeira do juz. E�vou soltar o rapaz.No sábado reuniu o povo da feira, nomens :: mi�lheres, moços e velhos, mandou desmanchar o eFrca� �do vigário, armou todos com estacas e foi derrt:barcadeia.Está af uma histórfa que narro com satisfaçãoMoisés. Ouve-me desatento. O que Ihe intere: sa rminha terra é o sofrimento da multidão, a tragéd:periódíca das secas. Procuro recordar-me dos verõ �sertanejos, que duram anos. A lembrança chega miturada com episódios agarrados aqui e alf, em roma �ces. D'ficilmente poderia distinguir a realidade àficção. De resto a dor dos flagelados naquele tem �nã.o me fazia mossa. Penso em coisas percebias v� �gamente: o gado, escuro de carrapatos, roendo a madeira do curral; o cavalo de fábrica, lazarerto e co� �

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esparavões; bodes defínhando na morrinha; o carro cbois apodrecendo; na catinga parda, mancha: bracas de ossadas e vôo negro dos urubus. Tento lenbrar-me de uma dor humana. As leituras auxiliar-matiçam-me o sentimento. Mas a verdade é que o pesoal da nossa casa sofria pouco. Trajano Per:ira i�Aquino Cavalcante e Silva caáucava; meu ps.i viv#preocupado com os doze pares de França; sinha thmana tinha morrído; Quitéria, coitada, era bruta cmais e por isso insensfvel. Os outros moradoresfazenda, as criaturas que viviam em ranchos d pal�construídos nas ribanceiras do Ipanema, não :e qu�xavam. José Bafa falava baixo e ria sempre Sin:28Terta rezava novenas e fazia partos pela vizinhança.Amaro vaqueiro alimentava-se, nas secas, com sementesde mucunã lavadas em sete águas, raiz de imbu, miolode xique-xique, e de tempos a tempos furtava umacabra no chiqueiro e atirava a culpa à suçuarana.Dores só as minhas, mas estas vieram depois.�* * *A minha criada Vitória anda em cinqüenta anos,é meio surda e possui um papagaio inteframente mudo,que pretende educar assim :Currupaco, lcagaco,�A mulher do rnacczcoEla fia, ela cose,Ela toma tabacoTorrado no ca,oo.O papagaio prega na velha o olho redondo. Emseguida cerra as pálpebras e baixa a cabeça. As vezesse aborrece da gaiola e bate as asas. A dona correpara o quintal e espia a folhagem da mangueira:- Meu louro, meu louro! Currupaco, papaco. MeuMeu louro! Onde andará o sem-vergonha desse papagaio?Só se acomoda depois de percorrer a vizinhançae encontrar o fugitivo. Pega então a parolar com ele,que não diz nada. Quando se cansa, agarra o jornal

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e lê com atenção os nomes dos navios que chegam edos que saem. Nunca embarcou, sempre viveu em Ma-ceió, mas tem o espfrito cheio de barcos. Dá-me fre-qüentemente notícias deste gênero:- O Pedro II chega amanhã. O Aratimbó vemm atraso. Terá havido desastre?�Não sei como se pode capacitar de que a comu-nicação me interessa. Há três anos, quando a conheci,a mania dela me espantava. Agora estou habituado.heio o jornal e deixo-o em cima da mesa, dobrado napágina em que se publica o movimento do porto. Vitó-rIa toma a folha e vai para a cozinha ler ao papagaioa lista dos viajantes.29No princípio do mês, quando se aproxima o recebimento do ordenado, excita-se e não larga o DiâricOficíal.- Faltam dois dias, falta um dia, é hoje.E faz cálculos que não acabam, cálculos inúteisporque não gasta nada: usa os meus sapatos velho:e traz um xale preto amarelento que deve ter dez anosRecolhe a mensa.lidade e mete-se no fundo do quintalpõe-se a esgaravatar a terra como se plantasse quatquer coisa. Esquece os navios e as lições ao papagaioVolta a tratar das ocupações domésticas, mas dEquando em quando lá vai rondar a mangueira e acocorar-se junto ao canteiro das alfaces. Dá um saltcà cozinha, fala com o louro, tempera a bóia. Minuto:depois está novamente remexendo a terra.Observo esses manejos. Sentindo-se observada, levanta-se, deita água no caco das galinhas, vai ao ba �nheiro, sai com uma braçada de roupa, que estendEno arame esticado entre a cerca e um dos ramos d �mangueira. Entra em casa, abre o jornal e anuncia;- O delegado fiscal viajou ontem.Nota, pela minha eara, que o delegado fiseai nãcme fnteressa e dá uma notícia importante:- O arcebispo chegou do Rio.#Escapole-se, vai consertar a cerca, tapar os bura �

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cos por onde passam bichos que estragam a horta. D2minha cadeira vejo-lhe o cocó grisalho, a cabeça curvaatenta sobre a terra que escava, fingindo tratar do:canteiros ou fincar as estacas da cerca. No outro diatirará as estacas, que, de tanto removidas, fizeram aluma espécie de porteira.Nem à noite a pobre descansa: levanta-se pelamadrugada e abre a porta do fundo, cautelosamenteCautela inútil. Como é meio surda, pensa que não fabarulho, mas arrasta os sapatões com força, e as pernas reumáticas atiram-na contra os móveis, às esçura:tropeçam nos degraus de címento quebrado. Ausenta-suma hora. Depois a porta range de novo e as pisadareaparecem. Daí a pouco estâ a criatura resmungand �fazendo contas intermináveis. Erra os números e ri30começa. Esta agitação dura quatro, cinco dias por mês.Sossega, volta às listas dos passageiros, à tagarelicecom o papagaio :Currupaco, papczco,�A muLher do macaco...A voz é áspera e desdentada. E, acompanhandoa cadência, tremem as pelancas do pescoço engelhadocomo um pescoço de peru, tremem os pêlos do buçoe as duas verrugas escuras. É terrivelmente feia.Logo que me entrou em casa, descobri nela umaparticularidade alarmante. Sou um desleixado. Quandomudo a roupa, esqueço papéis nos bolsos. Deixo freqüen-temente níqueis e pratas sobre os móveis. Essas fra-ções de pecúnia somem-se, e certa vez desapareceu-meda carteira uma cédula de cinqüenta mil-réis. As fal-tas coincidem com uma grande excitação da velha.Recomeçam as fugas para o quintal. Vendo-lhe o cocóbambeante entre as folhas de alface, sei perfeitamenteque ela está enterrando o dinheiro. Descubro ao pé dacerca, junto à raiz da mangueira, covas frescas.Assustei-me a princípio, depois me tranqüilizei.A nota de cinqüenta mil-réis foi achada entre as pá-ginas de um livro. E as moedas voltam para os luga-res donde saíram. Finjo não prestar atenção a elas,

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para a mulher não se ofender, meto algumas no bolso,com indiferença. Só quando estou necessitado, digopor alto, escolhendo as palavras:- Vitória, hoje pela manhã deixei cair umas pra-tas no chão. Apanhei duas ou trës, mas parece queas outras rolaram para trás da cama. Você, varrendoo quarto, não terá encontrado algumas?Vitória estica-se, o pescoço encarquilhado incha,os olhos miúdos fuzilam, as verrugas tremem indig-nadas:- O senhor tem cada uma! Se não está satis-feito comigo, é dizer. Já vivi em muita casa de genterica, seu Luís. Criei-me vendo dinheiro, seu Lufs. Seto está achando bom, é arriar a trouxa. Descon-�fiança comigo, não.31- Deixe disso, criatura. Quem falou em descon-fiança? E que derrubei as moedas. Que vocé não viuesté, claro, náo se discute. Dé uma busca.- Ah! exlama Vitória. Eu não tinha compreen-�dido bem.Torna-se amável, coça o queixo cabeludo, puxaconversa fora de propósito, a voz sumida, uns risinhosencabulados. Julgando-me distraido, afasta-se nas pon-tas dos pés, olhando-me com o rabo do olho, e vai�apanhar alfaces. Daí a pouco volta, entra no quarto,arrasta a cama, examina os cantos da parede:- Só vejo teia de aranha.De repente aparece chocalhando as moedas:#- Estão aqui. Não sei quando o senhor quer to-mar jeito. A vida inteira perdendo dinheiro!Cluardo algumas pratas e deixo o resto em cimada mesa. Npo há perigo. Receio é que Vitória se en-gane nas contas e me traga mais que o que tirou.* # #Em janeiro do ano passado estava eu uma tardEno qu;ntal, deitado numa espreguiçadeira, fuma.ndo �lendo um romance. O romance nã.o prestava, mas o;meus negócios iam equilibrados, os chefes me tolera

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vam, as dívidas eram pequenas - e eu rosnava conum bocejo tranqüilo:- Tem coisas boas este livro.Lia desatento, e as letras esmoreciam na sombr �que a mangueira estirava sobre o quintal.Moisés e Pimentel apareciam-me às vezes, e algunrapazes acanhados vinham pedir-me em segredo artigos e composições poéticas, que eu vendia a dez, a quinze mil-réis. Isto chegava para o aluguel da casa -e dr. Glouveia não me importunava. Distraia-me conleituras inúteis. Quando me caia nas mãos uma obr �ordinária, ficava contentíssimo:- Ora, muito bem. Isto é tão ruim que eu, cortrabalho, poderia fazer coisa igual.Os livros idiotas animam a gente. Se não fosser�eles, nem sei quem se atreveria a começar.S2Esse que eu lia debaixo da mangueira, saltandopáginas, era bem safado. Por isso interrompia a leitu-ra, acendia o cigarro.Foi numa dessas suspensões que percebi um vultomexendo-se no quintal da casa vizinha. Como já disse,existe apenas uma cerca separando os dois quintais.Do lado esquerdo há um muro, e ignoro completamen-te o que se passa além dele. Mas daquela banda o quetemos é a cerca baixa, que Vitória conserta semprepor causa das galinhas e para guardar dinheiro nospés das estacas podres. Para lá dessa linha de demar-cação tudo me era familiar: o banheiro, paredes meiascom o meu, algumas roseiras, um monte de lixo quea inquilina, senhora idosa, às vezes queimava.O vulto que se mexia não era a senhora idosa:era uma sujeitinha vermelhaça, de olhos azuis e ca-belos tão amarelos que pareciam oxigenados. Foi sóo que vi, de supetão, porque nã.o sou indiscreto, erainconveniente olhar aquela desconhecida como um bas-baque. Demais não havia nada interessante nela.Onde andaria a senhora idosa, que todas as ma-nhãs ia regar as plantas, com um pano branco amar-rado à cabeça? Mudara-se, provavelmente, e aquela

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que ali estava devia ser moradora nova.- Sim senhor, disse comigo, muito poética, aientre as roseiras, com os cabelos pegando fogo e acara pintada.Sentia a ausência da senhora idosa, cheia de rugas,tranqüila, um pano amarrado à cabeça e o rega,dor namão, movendo-se tão devagar que era como se esti-vesse parada. Essa outra estava em todos os lugaresao mesmo tempo, ocupava o quintal inteiro. Umazougue.- Quem diabo tem ela?E mergulhei na leitura, desatento, está claro, por-qve o livro não valia nada. Virava a página muitasoezes, e quando isto acontecia, olhava, fingindo desin-teresse, a mulher dos cabelos de fogo. Tinha as unhaspintadas.- LambisgóiatFiquei lendo o romance, péssimo romance, enquan-tO a tipinha se mexeu entre as roseiras. Notei, notei33#positivamente que ela me observava. Encabulei. Sou.tímido: quando me vejo diante de senhoras, emburrodigo besteiras. Trinta e cinco anos, funcionário públi-co, homem de ocupações marcadas pelo regulamento.O Estado não me paga para eu olhar as pernas dasgarotas. E aquilo era uma garota. Além de tudo seique sou feio. Perfeitamente, tenho espelho em casa.Os olhos baços, a boca muito grande, o nariz grosso.Como se chamava a senhora idosa que vinha regar as�plantas? A verdade é que nunca me empatou a leitura.Fiquei ali até que escureceu e a mulherinha deu o fora.Mais tarde informei-me:- Ó Vitória, a vizinha aqui da direita mudou-se?- Morreu, disse Vitória depois de me fazer repe·tir a pergunta quatro vezes, porque era lua nova e elaestava inteiramente surda. O senhor não viu o enterro7Pois é. Agora há outros moradores.Pobre da velha. Morta e enterrada, e eu nem havia

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percebido alteraçâo na casa.Moisés e Pimentel apareceram à noite e conver �saram muito, mas ouvi-os distrafdo.Além das plantas mencionadas, havia também unmamoeiro no quintal vizinho. Era engraçada o diabcda pequena. Para o inferno. Um homem lido e corridopegando trinta e cinco anos, amolecendo, preocupando-se com aquela guenza!- Vamos deixar de tolice.E contrariei Pimentel e Moisés, arranjei umas opiniôes descabidas, porque realmente não sabia o qmeles estavam dizendo.No dia seguinte (era sábado e não havia expediente à tarde) sentei-me de novo à sombra da mangueira, com o romance. A coisinha loura tornou a apa,recer, em companhia de uma mulherona sardentacomeçaram ambas a cortar os ramos secos das rcseiras. A pequena estouvada nâo me prestava atençãodescontentara-a provavelmente o exame da véspera. Unsujeito feio: os olhos baços, o nariz grosso, um sorrisbesta e a atrapalhação, o encolhimento que é mesmuma desgraça.Apesar destas desvantagens, os negócios não iarmal. E foi exatamente por me correr a vida quase ber34que a mulherinha me inspirou interesse - novidade,pofs sempre fuf alhefo aos casos de sentimento. Traba·lhos, compreendem? Trabalhos e pobreza. As vezes o coração se apertava como corda de relógio bem enro-�¡ lada. Um rato rofa-me as entranhas.Nestes últimos tempos nem por isso. Antigamente' era uma existência de cachorro. As mulheres tinhamchefros excessivos, e eu me sentia impelido vfolenta-mente para elas. Mas a voz do chefe da revisão estavacolada aos meus ouvidos:- Suspenso por cinco dfas, seu Silva.A unha suja de tinta rfscava na prova o corpo dedelito. Vida de cachorro. Como irfa pagar a pensão?- D. Aurora, tenha pu,ciêncfa. Veja se me arranja

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um quarto mafs barato. Os tempos andam safados,d. Aurora.' As ruas estavam chefas de mulheres. E o rato' rofa-me por dentro.Ora, um dia, sem motivo, convidef d. Aurora parao cinema. Tenho desses rompantes idiotas. Faço umaÏ tohce sabendo perfeitamente que estou fazendo tolice.Quando tento corrigir o disparate, caio noutro e cadavez mais me complico. Foi o que se deu. Convidef d. Au-rora e a neta para o cinema. Arrependi-me e ofere-d-Ihes refrescos. Aceitaram tudo - e começou a minha#tortura. Lá fui com elas, capiongo, pagar bonde, sor-vetes e três cadeiras. Tipo besta.- Agüenta, maluco, trouxa, filho de uma puta.E contava mentalmente o dinheiro suado e mes-quinho. Na sala de projeçâo a neta de d. Aurora abriuum leque enorme em cima das coxas e meteu a minhaperna entre as dela. Subitamente o rato deixou deroer-me. O que eu estava era indignado. E calculava.Três passagens de bonde - mil e duzentos. Três sor-vetes - três vezes cinco, quinze. E entradas no cf-riema. As coxas da moça eram frias. Com certeza faziasquilo por hábito. Naquele tempo eu andava comoum bode. Mas esfriei também. Cinco mil-réis por seishoras de trabalho, à noite, suspensões, multas, o jor-nal indo para cima e para baixo. Era um sofrimentoa idéia de que no fim da quinzena ficaríamos sem ocobre que estava enganchado.35- Hoje ninguém recebe.Lá ia, de cabeça baixa, beber um copo de catdcde cana e comer um pastel. Os niqueis amarrado;como dfnheiro de matuto. Pofs, numa quebra,deir �assim, bande, sorvete, cfnema. E ainda faltavam apassagens de volta. A fita era tão compridal A moçftinha as pernas frias.Aquela que estava ali a meia dúzfa de passos, cortando os ramos secos das roseiras, vermelha como pimenta, os braços levantados mostrando os sovacos

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devía ser quente demais.- Carga de risco!A mulher sardenta e sarará tinha traços dela.Com o livro esquecido nos f oelhos, o cigarro apa,gado, o olho meio cerrado, lembrei-me com preguiç:de coísas vagas, sem importância. Havta no CavaloMorto uma rapariga desbragadfssima. Não tinha decom, amava aos gritos, como os gatos e os ciganosEm horas de recolhimento natural berrava danadamente :- Rasga, diabo! Vai fazer isso com tua mãepeste!Eu era mu;to moço, e aquela fúria me espantavaAmores selvagens.Da janela de seu Antônio Justino via-se um jardim bem tratado, onde três mulheres velhas que pareciam formigas cavavam, podavam, regavam.Berta, uma alemãzinha bonita que antigament �conheci, também tinha as unhas pintadas e pontiatzdas. Aquilo arranhava docemente. A orimefra mu�lher de jeito com quem me atraquei. Eu levava ncbolso uns dinheiros curtos anhos no jogo e a catt� �de recomendação aue um deputado, depois de muitosalamaIeques e muítas viagens, me havfa dado na C5mara para o diretor de um jornal. Cada solecismo hoirfvel. Metia a mão no bolso e certificava-me de quas pelegas machucadas e os solecismos exfstiam. Ia dcabeça baixa, ruminando projeto.s. De repente uma vcestrangeirada, cheia de rr, gargarejou perto de mirr- Senhor não quer entrar?E duas mãos miúdas agarrara.m-me um braço, arastaram-me por uma porta até a escada. Escorei-n36ao corrimã,o, acuado, pigarreef com um nó na garganta:- Madame, eu sou um bfcho do mato, nunca meencostei a uma pessoa como a senhora. Seja franca,madame. Quanto é que lhe devo dar?Berta era engraçada : lourinha, gordinha, uma vozsuave, apesar dos rr.

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- Deixa disso. Não faz feio.E eu, a mão no bolso, apertando os cobres:#- Não brinque, madame. Sou um sertanejo, umbruto, um selvagerr. Quanto é que a senhora costuma�receber?Bonitinha, Berta. E mais decente que a neta ded. Aurora. Bonde, cinema, refrescos. Menina viciada.Dagoberto fugia dela. Uma piranha. Ser rofdo poraquilo! Ah! não. Lembrava-me dos bancos do passefo,das botinas de elástico bambo.- Senhor, um nordestino perseguido pela adversi-dade apela para v. exa.E o frege-moscas fedorento, as toalhas cobertasde nódoas de vinho, bóia nauseabunda, o galego, detamancos, sujo, cantando. Com semelhantes recorda-ções, quem pensa em mulheres?A mocinha, no lado de lá da cerca, não me davaatenção. Perua. Cabelos de milho, unhas pintadas, bei-ços vermelhos e o pernão aparecendo.- As vezes aquilo é só ã casca. Por baixo - mar-cas de feridas e molambos. Sirigaita. Sou um homemprático, passado pelos corrimboques do diabo, lido eeorrido. Para o inferno.Levantei-me, aprumei-me e recolhi-me, com o livro: debaixo do braço, a cara enferrujada, importante. Na�,r véspera o diretor me tinha dito:�- Necessitamos um governo forte, seu Lufs, umgoverno que estique a corda. Esse povo anda de rédeasolta. Um governo duro.E eu havia concordado, naturalmente:- E o que eu digo, doutor. Um governo duro.E que reconheça os valores.Considerava-me um valor, valor miúdo, uma espé-`. eie de niquel .social, mas enfim valor. O aluguel da;eesa estava pago. Andava em todas as ruas sem pre-37cisar dobrar esquinas. Por uma diferença de doiz votos,tinha deixado de ser eleito Secretário da .Assocfação

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Alagoana de Imprensa. Quinhentos mil-réis de orde-nado. Com alguns ganchos, embirava uns setecentos.Podia até casar. Casar ou amigar-me com uma cria,turasensata, amante da ordem. Nada de melíndrosas pin-tadas. Mulher direita, sisuda. Passar a vida naquelainsipidez, agüentando uma cria,da surda, reumática,cheia de manias!- õ Vitória, gritei ao ouvido da velha, quem é essagente que chegou si ao lado?Vitória não sabia. Tentei ler um srtigo político dePimentel, mas estava distraido, pensava em Berta, naneta de d. Aurora e na rapariga do Cavalo-Morto. Dei-tei-me cedo. Não pude dormir: os cabelos de fogo, osolhos e especialmente as pernas da vizinha começarama bulir comigo. Aquilo devia ser uma pimenta. Passei anoite imaginando cenas terríveis com ela. No outro dialevantei-me aperreado. Quando me aparecem esses aces-sos, fico açsim uma semana, calado, murcho, pensandoem safadezas.r r rAinda não disse que moro na Rua do Macena, pertoda usina elétrica. Ocupado em várias coisas, freqüent �mente esqueço o essencial. Que, para mim, a casa andemoramos não tem importância grande demais. Tenhovivido em numerosos chiqueiras. Provavelmente essesimóveis influiram no meu caráter, mas sou incapaz derecordar-me das divisões de qualquer deles. Não espe-rem a descrição destas paredes velhas que dr. Clouveiame aluga, sem remorso, por cento e vinte mil-réis men-sais, fora a pena de água.Afinal, para a minha história, o quintal vale maisque a casa. Era ali, debaixo da mangueira, que, devolta da repaxtição, me sentava todas as tardes, com#um livro. Foí Iá que vi Marina pela primeira vez, emjaneiro do ano passado. E lá nos tornamos amígos.Se ela morasse no prédio à esquerda, talvez nãonos conhecêssemos. Quando saio para o serviço, passoem irente da casa à direita e cumprimento as pessoas38

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que estão à janela. Transito raramente pelo outro lado.Reside ali uma d. Rosália, que tem o marido sempreausente. Mulher antipática, amarela, muito faladora.Quase nunca a encontro. Felizmente há o muro quenos afasta. Vejo às vezes por cima dele cabecinhas decrianças que esperam momento favorável para furtaras mangas dos galhos que lhes chegam ao alcance dasgarras. Fujo para não importuná-las, mas são assusta-diças e escondem-se.O meu horizonte ali era o quintal da casa à di-reita: as roseiras, o monte de lixo, o mamoeiro. Tudofeio, pobre, sujo. Até as roseiras eram mesquinhas:algumas rosas apenas, miúdas. Monturos próximos,águas estagnadas, mandavam para cá emanações desa-gradáveis. Mas havia silêncio, havia sombra. O vozei-rão de Vitória era um murmúrio abafado. Talvez o ma-moeiro, as roseiras, o monte de lixo me passassem des-percebidos, e se os menciono, é que, escrevendo estasnotas, revejo-os daqui.Tornei-me, pois, amigo de Marina. Com certezacomeçamos por olhares, movimentos de cabeça, sorri-sos, como sempre acontece. Depois, palavra aqui, pala-vra ali, em pouco tempo estávamos camaradas, tratan-do-nos por você. Procurando reproduzir os nossos diá-lagos, compreendo que não dizíamos nada. Frfvola, in-capaz de agarrar uma idéia, a mocinha pulava comouma cabra em redor dos canteiros e pulava de umassunto para outro. O que me aborrecia nela eramCertas inclinações imbecis ou safadas.- Porque é que você não manda fazer urr, synoking,�Lufs? Um rapaz que ganha dinheiro andar com essasroupas mal-amanhadas! Eu, se fosse você, brilhava,vivia no trinque.Eu pilheriava com ela:- Maria, nem só de smoking vive o homem.Outras vezes:- D. Mercedes estava hoje chamando a atençãode todo o mundo na Igreja do Rosário. Vestido cor deCinza com vivos encarnados, luvas cor de cinza, bolsaencarnada, chapéu encarnado e sapatos encarnados.

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Você gosta do encarnado?39D. Mercedes é uma espanhola madura da vizi-nhança, axnigada em segredo com uma personagemoficial que lhe entra em casa alta noite. Possui mobi-lia complicadfssima, passa os dias olhando-se ao espe-lho e polindo as unhas, metida num peigno'ir de seda,�e quando mergulha na banheira, sente-se de longe ocheiro da água-de-colônia. Marina admirava-a com exa-gero, arregalando os olhos:- D. Mercedes é linda. Parece uma artista de ci �nema.Eu me aperreava:- Que tolice! Vocé elogiando uma tipa ordináriauma galega de arribação que ninguém sabe donde saiulNão está direito. Uma bicha feia e velha, um couro, mrcanhão!Marina excitava-se:- Que couro, que nada! D. Mercedes é uma senhora vistosa, bem conservada, muito distinta. E ricaTem filha no colégio e manda dinheiro ao marido.Vejam que miolo. E que tendências. Eu, se nãfosse um idiota com fumaças de homem prático, lidie corrido, teria cortado relações com aquela criaturE#Admirar uma estrangeira que vive só, tem filha no cclégio e sustenta marido ausente!Estirava-me na espreguiçadeira, abria o livro; catrancudo. A leitura não me atraía, mas atirava-me a elaMarina ficava por ali, rondando, machucando pétalade rosas, acanhada, o nariz comprido, procurando conversa. Dava um giro entre os canteiros, temperavagoela e, de repente :- Que livro é esse que você está lendo?Fingia-me distraído, encostava a cara ao volumi- Deve ser uma obra interessante.- Nem por isso.- Eu também estou lendo um livro interessant �da biblioteca das moças. Muito penoso.Olhava-a com ódio:

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- Passe bem, Marina.Aproximando-me da cozinha, percebia a voz de Vtória, que resmungava junto à gaiola do Currupaco:- Franguinha assanhada. Cochichando com uhomem no escurol Cabrita enxerida.40/ ll li %l l i.l: ����� � � �� � � � �,I á. llyl .,'r ·', :., ,..a�� � ��� � � � J yl T ' .;i'' : . .í!i ..;'= ..� �� � � �� � � �' /,'.·.' Z'l,r., ,, II i:' r� �� � � � � � � ��il ,II%ii ; r ' � �� � � � � � � � �, , _, .,ií l j/�-. ;1, ; .., / ; I .� Ír,,.nc:,.,:,::,'s!i¡'i ! I I¡;1/'' . ,. ��� ��� � ��� � � � � � � �� � � � i; ;� �, Ili' I�_ , , "/ ' lr ;' ,,' ",'; ' I r,,,� � � � � � �I....r ·jl ,f /� �;i ,'»::" Irll ,!..I. ·,��-,,;, , ·: · ,::L..' , i;. i /.� �, /` , I I I y ,:: ; : I . · : /I r n .,r/i5ir ;;!nr/ .� � � � ��� �/ 'í 5 /� � � � III I ' ' Llt I1, I' 1%Ï r i 'l , í % il� � ��� � � �/'! ILI. , Iar;:I/I f, " "/� �� �/III IlI i I�I rI ,'I, ' .� � � �/ , 1 ;;irl, ÍI �,,J t , .,.l:.," I,. �� �1I I:,_I· , ; I", lí' rv,'� � ����rll';'í .ir .�

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Fatigado, sentava-me um instante na sala de jan-tar. A parada justificava outra, instantes depois, à ja·nela da rua. Debruçava-me, olhava os paralelepfpedos,a sarjeta, o poste de ferro, os arames, a calçada dacasa à esquerda. Virava-me para a esquerda. O outrolado não me interessava. Uma pancada no postigo, erecomeçava o passeio. Nova demora na sala de jantar.Coçava a barriga do gato, que se espreguiçava, esti-rava as pernas. Sem-vergonha, parecia mulher. O quin-tal estava escuro. Por cima das árvores havia claridade,até se enxergava, a distância, um anúncio que se podialer; mas perto do chão era aquele pretume. Fastidiosamúsica de grilos, certamente no canteiro das horta �liças.A quanto subiria a fortuna que Vitória tinha alienterrada? A minha situação não era das piores. Unstrês contos de economias depositados no banco. Hátgente que se casa com menos e vive.Pela porta da cozinha via-se na parede a sombrada cabeça de Vitória, enorme, por cima da sombra dojornal.- b Vitória, prepare o café.Precisava ir sacudi-la:- O café, Vitória.42- An!Afastava-me. A chaleira chiava no fogão. A som-bra desaparecia. Arrastar de pés e sons resmungados:- Peruinha, cabritinha descarada.Punha-me também a arrastar os pés na sala dejantar, fumava, bebia um trago de aguãrdente.- Mulheres há muitas.E o diabo da música dos grilos. As letras do anún-cio eram enormes.Daf a pouco lá ia de novo para o corredor, che-gava à janela da frente, abria o postigo, olhava a rua.Mas não me voltava para a direita. Os paralelepípedos,os arames, a sarjeta. A bichinha sem-vergonha deviaandar ali perto, saracoteando na calçada, indo espiara s.ala de d. Mercedes e os móveis de d. Mercedes.

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Não me voltava.- Para o diabo. Aqui me preocupando com aque-la burra! Unhas pintadas, beiços pintados, blbliotecadas moças, preguiça, admiraçâo a d. Mercedes - total:Rua da Lama. Acaba na Rua da Lama, sangrando napedra-lipes. Vamos deixar de besteira, seu Luís. Um#homem é um homem.* * *Foi por aquele tempo que Julião Tavares deu paraaparecer aqui em casa. Lembram-se dele. Os jornaisandaram a elogiá-lo, mas disseram mentira. Julião Ta-vares não tinha nenhuma das qualidades que lhe atri-buíram. Era um sujeito gordo, vermelho, risonho, pa-triota, falador e escrevedor. No relógio oficial, nos cafése noutros lugares freqüentadcs cumprimentava-me dalonge, fingindo suberioridade:- Como vai, Silva?A noite chegava-me a casa, empurrava a porta e,quando eu menos esperava, desembocava na sala dejantar, que, não sei se já disse, é o meu gabinetede trabalho. E lá vinham intimidades que me aborre-ciam. Linguagem arrevesada, muitos adjetivos, pensa-mento nenhum.Conheci esse monstro numa festa de arte no Insti-tuto Histórico. De quando em quando um cidadão se43levantava e lia uma composição literária. Em seguiduma senhora abancava ao piano e tocava. Depois outrdeclamava. Aí chegava de novo a vez do homem,assim por diante. Pelo meio da função um sujeito gotdo assaltou a tribuna e gritou um discurso furios �e patriótico. Citou os coqueiros, as praias, o céu azu;os canais e outras preciosidades alagoanas, desceu �começou a bater palmas terrfveis aos oradores, aopoetas e às cantoras que vieram depois dele. A safd �deu-me um encontrão, segurou-me um braço e impediu que me despencasse pela escada abaixo. D°sculpou-se por me haver empurrado, agradeci ter-magarrado o braço e saímos juntos pela Rua do Sol

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Repetiu pouco mais ou menos o que tinha dito no discurso e afirmou que adorava o Brasil.- Ah! Eu vi perfeitamente que o senhor é patriota.Foi a conta.- Quem o não é, meu amigo? Nesta hora trágic;em que a sorte da nacionalidade está em jogo. ..- Efetivamente, murmurei, as coisas andam preta �Conversa vai, conversa vem, fiquei sabendo poalto a vida, o nom° e as intenções do homem. Famíli;rica. Tavares & Cia., negociantes de secos e molhado;donos de prédios, membros influentes da Associaçã �Comercial, eram uns ratos. Quando eu passava pel;Rua do Comércio, via-os por detrás do balcão, doisujeitos papudos, carrancudos, vestidos de linho pard �e absolutamente iguais. Esse Julião, literato e bacharel, filho de um deles, tinha os dentes miúdos, afiado,e devia ser um rato, como o pai. Reacionário e católico.- Por disciplina, entende? Considero a religião unsustentáculo da ordem, uma necessidade social.- Se o senhor permite...E divergi dele, porque o achei horrivelmente antipático. Ouviu-me atento e mostrou desejo de saber o qmeu era. Encolhi os ombros, olhei os quatro cantos, fi;um gesto vago, procurando no ar fragmentos da minha existência espalhada.- Luís da 8ilva, Rua do Macena, número tantoPrazer em conhecê-lo.44E meti-me no primeiro bonde que passou. Mas nãoconsegui desembaraçar-me do homem. Dias depoisfez-me uma visita. Em seguida familiarizou-se. E eraLuis para aqui, Luís para ali, elogios na tábua daventa, só com o fim de receber outros. Não tenho jeitopara isso. Duas, três horas de chateação, que me dei-xavam enervado, besta, roendo as unhas.#Habituei-me a escrever, como já disse. Nunca es-tudei, sou um ignorante, e julgo que os meus escritos

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não prestam. Mas adquiri cedo o vício de ler romancese posso, com facilidade, arranjar um artigo, talvez umconto. Compus, no tempo da métrica e da rima, umlivro de versos. Eram duzentos sonetos, aproximada-mente. Não me foi possível publicá-los, e com a idadecompreendi que não valiam nada. Em todo o casoacompanharam-me por onde andei. Um dia, na pensãode d. Aurora; o meu vizinho Macedo começou a elo-giar um desses sonetos, que por sinal era dos piores,e acabou oferecendo-me por ele cinqüenta mil-réis. Nemfoi preciso copiar: arranquei a folha do livro e recebio dinheiro, depois de jurar que a coisa estava inédita.Macedo transigiu comigo umas vinte vezes. Infeliz-mente voltou para S. Paulo sem concluir o curso. Des-de então procuro avistar-me com moços ingênuos queme compram esses produtos. Antigamente eram estam-pados em revistas, mas agora figuram em semanáriosda roça, e vendo-os a dez mil-réis. O volume está re-duzido a um caderno de cinqüenta folhas amarelase roídas pelos ratos.Trabalho num jornal. A noite dou um salto porlá escrevo umas linhas. Os chefes politicos do interiorbrigam demais. Procuram-me, explicam os aconteci-mentos locais, e faço diatribes medonhas que, assina-dae por eles, vão para a matéria paga. Ganho pelaredação e ganho uns tantos por cento pela publicação.Arrumo desaforos em quantidade, e para redigi-los ne-cessito longas explicações, porque os matutos são con-fusos, e acontece-me defender sujeitos que deviam seratacados. Além disso recebo de casas editoras de se-gunda ordem traduções feitas à pressa, livros idiotasdesses que Marina aprecia. Passo uma vista nisso, ali-45nhavo notas ligeiras e vendo os volumes no sebo. Al �guns rapazes vêm consultar-me :- Fulano é bom escritor, Luis?Quando não conheço Fulano, respondo sempre:- E uma besta.E os rapazes acreditam.Ora, foi uma vida assim cheia de ocupações cace �

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tes que Julião Tavares veio perturbar. Atravancou-m;o caminho, obrigou-me a paradas constantes, buiiu-mEcom os nervos.As vezes eu estava espremendo o miolo para obte �uma coluna de amabilidades ou descomposturas. É cque sei fazer, alinhar adjetivos, doces ou amargos, errconformidade com a encomenda. Moisés entrava, puxava uma cadeira, sentava-se, abria o jornal. Vinh �Pimentel, amarelo, triste, silencioso. Seu Ivo, bëbedoacocorava-se a um canto e punha-se a babar, cochi �lando. Nenhuma dessas pessoas me incomodava. Tra �balhava diante delas como se estivesse só, e ninguérrme interrompia.- Revolução na China, dizia Moisés.Pimentel estirava o pescoço e enrugava a testafarejando assunto. E lá vinham confusamente os chineses do telegrama. Seu Ivo queixava-se da carestia do:gêneros. Apertava o cinturão, bocejava, pedia comidaEu dava respostas sem perceber direito as pergunta:e sem interromper o trabalho. As frases iam pingandcno papel, umas traziam as outras, e no fim lá estav �aquela prosa medida, certinha, que me enjoava. Quando a expressão fugia ou as idéias se misturavam, acen �dia um cigarro. E, enquanto desanuviava a cabeçapunha os olhos distraídos na figura aniquilada de seLIvo, que ali estava no canto da parede, babando-se, a:pálpebras cerradas. As mãos eram dois calos escurosos pés descalços eram patas achatadas.#Seu Ivo não mora em parte nenhuma. Conhecfo Estado inteiro, julgo que viaja por todo o nordesteEntra nas casas sem se anunciar, como um cachorrodirige-se às pessoas familiarmente, sempre a pedir co �mida. Passa alguns meses numa cidade, some-se derepente; aboleta-se nas povoações, nas fazendas, nacapital. Freqüenta as salas de jantar e as cozinhas.46IQuase não fala: balbucia lrases ambfguas, aperreado,sempre na carraspana. Faz o que lhe mandam, recebe

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' o que lhe dão, mas não agradece e não faz nada comjeito. - Seu Luisinho, sinha Vitôria, cadê a bóia? E se não lhe damos atenção, conversa com o gato, conversa com o papagaio, acaba mexendo nas panelas, furtando objetos miúdos que não utiliza. Depois de um ano de ausência, pergunto-lhe: - Como vai, seu Ivo? Mas estou pensando noutra coisa. - Ruim, tudo safado, seu Luisinho. A barriga tinindo. E põe-se a chorar como um desgraçado. Continuo a construir mentalmente o período interrompido. - Vá comer, seu Ivo. Vitória, um prato para seu Ivo. O homem do Instituto atrapalhou-me a vida e se- parou-me dos meus amigos. * * *- Que diabo vem fazer este sujeito? murmureicom raiva no dia em que Julião Tavares atravessouo corredor sem pedir licença e entrou na sala de jan-tar, vermelho e com modos de camarada,Soltei a pena, Moisés dobrou o jornal, Pimentelroeu as unhas. E assim ficamos seis meses, roendo asunhas, o jornal dobrado, a pena suspensa, ouvindoopiniões muito diferentes das nossas. As de Moisés sãofrancamente revolucionárias; as minhas são fragmen-tadas, instáveis e numerosas; Pimentel às vezes estáComigo, outras vezes inclina-se para Moisés.Raramente discutfamos. O judeu cansava-se emdissertações longas, que eu aprovava ou desaprovavacom a cabeça. Acontecia aprovar agora e reprovar de-pois. Quando bebia, tornava-me loquaz e discordavade tudo só por espírito de contradição:- Históriat Esta porcaria não endireita. Revolu-çâ,o no Brasil! Conversa! Quem vai fazer revolução? Osoperários? Espere por isso. Estão encolhidos, homem.4?E os camponeses votam com o governo, gostam dovigário.

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O que eu queria era convencer-me de que não tf-nha razão. Desejava que Moisés estirasse argumentose seu Ivo se revoltasse.- Números. Nada de tapeaçâo. Estatistica.O judeu falava em milhões de desempregados, emconsciência de classe, voltava-se para seu Ivo, que nãocompreendia a Ifngua dele:- Não entendo. Vossemecês são brancos, lá searrumem .Eu aritava ao ouvido da criada:- Ele diz que a gente não precisa de Deus. Nemde Deus nem de padres. Vai acabar tudo.- Credo em cruz! opinava a mulher.E ia para a cozinha. Julgo que nunca se ocupoucom assuntos referentes à alma. Rezava em voz alta.A noite sapecava o padre-nosso e a ave-maria, antesdas somas. Agora dizia "Credo em cruz!" e ia prepasaro café, ler os embarques e os desembarques, junto àgaiola do Currupaco. Seu Ivo metia os olhos gulosos#pelos vidros do guarda-comidas:- Seu Luisinho vai bem. Tanto pão! Tanta carne!Escancarava a boca, mostrava os dentes brancos,estirava os braços musculosos.- Uma fora perdida, dizia Moisés.�Talvez houvesse também algurria inteligência per-dida por detrás daqueles olhos mortos pela cachaça.Um sujeito inútil, sujo, descontente, remendado, fa-minto.O outro sujeito inútil que nos apareceu era muitodiferente. Gordo, bem vestido, perfumado e falador,tão falador que ficávamos enjoados com as lorotasdele. Não podíamos ser amigos. Em primeiro lugar ohomem era bacharel, o que nos distanciava. Pimentel,forte na palavra escrita, anulava-se diante de JuliãoTavares. Moisés, apesar de falar cinco línguas, emu-decia. Eu, que viajei muito e sei que há doutores quar-taus, metia também a viola no saco.Além disso Julião Tavares tinha educação diferen-te da nossa. Vestia casaca, freqüentava os bailes da

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Associação Comercial e era amável em demasia. Ama-48bilidade toda na casca. Ouvi-o, na festa de aniversáriode um figurão, conversar com uma sirigaita. Eu estavabebendo cerveja no jardim, e eles num caramanchãodiziam besteiras horrfveis. Como falavam alto, percebiclaramente as palavras de Julião Tavares. Não tinhamsentido. Como o discurso do Instituto Histórico.Pois foram tolices assim que aquele tipo nos veioimpingir. Horrivel. Diante dele eu me sentia estúpido.Sorria, esfregava as mãos com esta covardia que a vidaáspera me deu e não encontrava uma palavra paradizer. A minha linguagem é baixa, a,canalhada. As ve-zes sapeco palavrões obscenos. Não os adoto escre-vendo por falta de hábito e porque os jornais nâo ospublicariam, mas é a minha maneira ordinária defalar quando não estou na presença dos chefes. ComMoisés dá-se coisa semelhante. Apenas, se lhe aconteceengasgar-se, recorre a locuções estrangeiras. As nossasconversas são naturais, não temos papas na língua.Abro um livro, fico alguns minutos fazendo cacoetes,de repente dou um grito:-- Que sujeito burro! Puta que o pariu! Isto é umcavalo.Moisés toma o volume, lé uma página com aten-ção, funga.ndo:- Tem coisas boas, tem idéias.- Que idéia! Isto é um sendeiro, não sabe es-Crever.Julião Tavares veio tornar impossíveis expansõe3assim. Dizia, referindo-se a um poeta morto:- Era um grande espírito, um nobre espírito.Quanta emoção! Além disso conhecimento perfeito dalíngua. Artista privilegiado.Filho de uma puta. Esse artista privilegiado aper-reou-me durante semanas, tirou-me o apetite. Na re-partição, no cinema, no jornaa, no café, perseguia-mea lemrrança da voz antipática:- Um grande espirito, um nobre espirito. Emoçãoe conhecimento perfeito da língua.

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' Filho de uma puta. Não podia ser nosso amigo.Encontrava-me na rua:- Como vai, Silva?49E ali, no outro lado da mesa, as pernas cruzadas,com a intenção de se demorar - sorrisos, patriotis-mo, a grandeza do poeta morto.Comecei a odiar Julião Tavares. Farejava-o, perce-bia-o de longe, só pelo modo de empurrar a portae atravessar o corredor.#- Canalha!E rangia os dentes, arrumava os papéis tremendode raiva. Tudo nele era postiço, tudo dos outrosSe aquele patife tivesse chegado aqui natural-mente, eu não me zangaria. Se me tivesse encomendado e pago um artigo de elogio à firma Tavares & Cia.,eu teria escrito o artigo. E isto. Pratiquei neste mundomuita safadeza. Para que dizer que nãe pratiquei safa-dezas? Se eu as pratiquei! E melhor botar a trouxaabaixo e contar a história direito. Teria escrito o ar-tigo e recebido o dinheiro. O que não achava certo eraouvir Julião Tavares todos os dias afirmar, em linguargem pulha, que o Brasil é um mundo, os poetasalagoanos uns poetas enormes e Tavares pai, chefe dafirma Tavares & Cia., um talento notável, porque jun-tou dinheiro. Essas coisas a gente diz no jornal, e ne-nhuma pessoa medianamente sensata liga importânciaa elas. Mas na sala de jantar, fumando, de pernatrançada, é falta de vergonha. Francamente, é falta devergonha.* * *- Boa tarde, d. Adélia. Como vai a senhora?- Assim, assim, respondeu a mãe de Marina en-costando-se à janela para esconder a saia encardida.Hoje em dia quem é que vai bem?Agora eu conhecia mais ou menos d. Adélia, fa-lava com ela, parava na calçada às vezes: - "Bomdia, boa tarde, sim senhora, como tem passado?"Conhecia também o marido, seu Ra,malho, sujeito ca-

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lado, sério, asxrático, eletricista da Nordeste. Não gos-�tava de mim, provavelmente por causa das minhaspalestras com a filha. Perturbava-nos:- Marina, venha lavar os pratos. Marina, venhacuidar das panela,s. Lugar de moça é a cozinha.50TOra, se Marina lfdava com pratos e panelas!- Velho pau!E continuava na prosa.- Cuidado com o sereno, Marfna.- Se isto é coisa que se suporte!Entrava dando muxoxos, arrelfada.Seu Ramalho era uma criatura seca por naturezae humilde por offcio. Tinha um sorriso franzido, umombro alto e outro baixo. D. Adélia, bamba, a voz su-mida, os olhos assustados, parecia viver escondendo-se.Agora estava resolvida a conversar. Serfa a respeito domeu namoro com Marina? Suspirou, mexeu os beiços,tornou a suspirar:- Tudo pela hora da morte, seu Luis.- É verdade, tudo pela hora da morte, d. Adélfa.A senhora já reparou nos preços dos remédios? A far-mácia tem uma goela!D. Adélia fez um gesto de desalento:- Nem me fale. A gente não pode adoecer maisnão, seu Luis.Ficamos um instante calados, olhando a rua, cons-trangfdos.- Sim senhora, murmurei esfregando as mãas e8orri;ndo para o mulherão sardento.- E isso mesmo, respondeu d. Adélia.E, depofs de um silêncio comprfdo, enrolando asmãos no babado da roupa:- Para sustentar uma casa a gente torce a orelha.Concordef com alvoroço:- Torce, d. Adélfa. Que dúvfda! Depois do diavinte é preciso que uma pessoa se tranque para en-curtar a despesa. Porque na rua é o café, o bilhete deteatro, a subscrfção. Um horror.

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- E o mercado, seu Luís! Quer chova, quer faça#sol, é alf no duro. Nfnguém pode passar sem comer.- Perfeitamente, d. Adélfa. Ninguém pode passareem comer. O pior é o aluguel da casa. O aluguel dacasa, d. Adélfa! Quanto paga a senhora pelo aluguelda casa?- Cento e trinta mfl-réis. Um roubo.- Eu pago cento e vinte. Um roubo mafor, queaquilo não é casa. Uns quartfnhos escuros, sujos. E tan-51to buraco de rato como nunca se viu. Uns ratinhosmiúdos, deste tamanho, não sef se a senhora conhecedanados para roer pano. Não tenho um lenço inteiro,tudo furado.- Aqui é o mesmo, declarou d. Adélia.Deu um suspiro que elevou o peito volumoso,curvou-se mais para fora :- õ seu Lufs, eu queria pedir-lhe um favor. Fazuma semana que estou matutando e sem coragem. Ioje�botei a vergonha de banda.- Que é que há, d. Adélia?D. Adélia reeditou o suspiro :. - Estive pensando . . . Se o senhor puder, ouviu?Pedir nâo é desonra. A gente faz das tripas coraçâo.Necessidade tem cara de herege.- Diga, d. Adélia.A vizinha baixou mais a voz, que tremia, e o carãosardento ficou encarnado como o vestido de chita:- É por causa da Marina. Assim desocupada comas mãos abanando . . . Ela não é preguiçosa. Cose, bordamas trabalho de mulher em casa nã.o adfanta. Gasta-setempo sem fim num bordado e recebe-se uma ninharia.Se fosse possivel arranjar um emprego para Marina. .Acendi um cigarro, pus-me a contãr os paralelepi-pedos sem me animar a desiludir a vizinha.- Dê uma penada por ela.Coitado de mim.- Diffcil. E preciso pistolão.- Eu sei, disse d. Adélia. Foi por isso que me lem-

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brei do senhor, que é bem relacionado. Só conhecemoso senhor.- Mas d. Adélia, respondi aflito, a senhora estáenganada. Eu sou um infeliz, não tenho onde cairmorto. Uma recomendação minha não serve. Mas voatentar, ouvfu?Seu Ramalho dobrou o beco da usina elétrica e veiovindo, lento, negro de azeite e carvão.- Boa tarde.- Boa tarde, seu Ramalho. Como vai essa gordura?Estávamos falando sobre a ca,restia.Seu Ramalho estirou o beiço :52- Cada dia vai ficando pior. 7 de fazer um cristão�endoidecer. Ora, eu lhe conto.Mas nã,o contou nada. Costuma defxar as frasesem meio.- Pois é como lhe disse, murmurei. Vamos ver.Que, para ser franco, nem sei se a Marina se ajeita.�Ela. sabe datilografia?- Não sabe nada, atalhou seu Ramalho. Você foiamolar o rapaz com peditórios, mulher? Eu não lhetinha dito que não tocasse nisso?- Que é que tem, seu Ramalho? Ela quer quea moça trabalhe. L na,tural.- Trabalhar .em qué, meu amigo? Só se for empintar a cara, que é o que ela sabe fazer.D. Adélia, vexada, continuava a enrolar os dedostrémulos no vestido.- Eu falei por falar. 8e fosse possfvel. Um orde-nadozinho gue desse para a roupa. Não há tantas moçasempregadas? Nos telefones, nos correios . . .#- São pessoas que sabem onde têm as ventas, cria-tura, interrompeu seu Ramalho. Ou que arranjaramproteçáo. E sua filha entrou na escola e saiu comoentrou. Ou as escolas não prestam ou ela é bruta de-mais. Emprego para roupa. Tem graça. Cinqüenta mil-réis de sapatos todos os meses. Não há dinheiro quechegue.

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- O senhor é duro, seu Ramalho, arrisquei.- Pois sim, respondeu o homem arqueja,ndo porcausa da asma. E que vivo no toco, roendo um chifre.Falava de cabeça baixa, os olhos no chão, os mí.s-�culos da cara imóveis, a boca entreaberta, a voz bran-da, provavelmente pelo hábito de obedecer.- Eu falei por falar, gaguejou d. Adélia caindopara uma banda, as banhas derramadas no parapeitoda janela, onde fincava o cotovelo. Foi, a menina comas mâos abanando . . .8eu Ramalho acendeu o cachimbo e p8s-se a esga-ravatar as unhas com o fósforo queimado :- E isso. Eu aqui não sei nada. Todo o mundode rédea no pescoço. Casa de Conçalo. As mulheres�mandam, e o corno velho é o último que tem conheci-mento das coisas.58Ant8nia, a criada de d. Rosátia, passou bambo-leando-se, foi até a esquina da Rua Augusta e estevealgum tempo conversando com um soldado de policia.Voltou, sempre se rebolando e com as pernas abertas.É uma criatura ingênua, meio selvagem. Acreditaem tudo quanto lhe dizem e tem grande necessidadede machos. Quando pega um, entrega-se inteiramente.Não escolhe, é uma rede.Todas as tardes, findo o serviço, arruma a louça,veste os trapos melhores, calça os sapatos de vernize sai. Se arranja algum dinheiro, deixa o emprego eamiga-se. Erra sempre. Ciasta as economias, volta ao�trabalho, vai acumular novo pecúlio para sustentarnovos amantes, novas decepções. E doida pelas crian-ças: passa o dia gritando, brincando com elas. Masà noite esquece tudo e corre para a crápula. D. Rosáliaatura-a por causa dos filhos. Quando lhe faz as contas,diz numa voz áspera que ouço perfeitamente na salade j antar:- Pegue o seu ordenado, Ant8nla, e suma-se, nãotorne a aparecer aqui.Antônia recebe o salário, entrouxa os cacarecos,beij a as crianças e sai cantando, certa de que encon·

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trou um homem. Volta faminta, com marcas novas deAnt8nia.berreiro feio - e An·vagabunda e galicadaA cabocla respondeu descerrando os beiços gros-sos e mostrando os dentes largos num sorriso infantil.Seu Ramalho não a viu: estaa de cabeça baixa, mono-�logando, remexendo a cinza do cachimbo com o iós-foro. D. Adélia continuava encalistrada, bicuda, ma-chucando o vestido. Senti-me leve, quase alegre, e es-pantei-me de ver aquelas caras fúnebres.- Isso no tem importãncia. Procurando bem...�Há muitas por ai cavando a vida. Vamos ver se arran-jamos alguma coisa, d. Adélia. Vamos ver. Depois lhedigo.feridas.- acabas no hospital,�Mas as crianças fazem umt8nia fica.A presença dessa criaturatraz-me sentimentos bons.- Como vai, Ant8nia?54#- História, murmurou seu Ramalho com desãnimo. Aquela não dá para nada. O homem que casarcom ela faz negócio ruim.* * *Como era grande o calor, abri a janela do quintal.Uma baforada de ar quente bateu-me no rosto. Debru-cei-me e distrai-me acompanhando com a vista os mo-vimentos da mulher que lava garrafas. O gato puloude um galho da mangueira, saltou o muro, trepounum monte de lixo e cacos de vidro. O homem tristeandava entre as pipas, debaixo do telheiro, a encherdornas.Que estaria fazendo Marina? Pensei em d. Merce-des. Vida bem sossegada a dessa galega. Um sem-vergonha o figurão que a sustentava, um caloteiro: deviaos cabelos da cabeça e dava festas, punha automóveis

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à disposição da amásia. Como diabõ podia um machogostar daquela tipa de carnes bambas?- Ladrões, velhacos, porcos!Bati a janela com força. Depois voltei a abri-la.A mulher magra, de cócoras, a saia entalada entre aspernas, continuava a lavar garrafas. O homem tristepasseava entre as pipas.Com certeza a minha vizinha àquela hora pintavaas unhas. Indignei-me:- õ Vitória, porque não varre esta casa direito?Cisco por toda a parte, montes de cisco. Tudo cheiode poeira.Vitória rião percebeu a repreensão. Agarrei umatoalha e esfreguei com ela o guarda-louça:- Porcaria!Peguei urn livro, abri a porta e desci os degrausdo quintal, furioso com o amante de d. Mercedes. Ve-lhaco. Devia nas lojas, devia nas mercearias, devia aoalfaiate. Atracado aos usineiros, aos banqueiros, os ho-mens da Associação Comercial, numa adulação torpe.Os credores miúdos deixavam-se esfolar com medo; osgrandes sangravam por conveniência: tinham interes-ses, arranjavam o que queriam. E um safado comoaquele era troço no Estado. Que desgraça!55Deitef-me na espreguiçadeira, acendi um cigarro,abri o livro e comecei a ler maquinalmente. De quan-do em quando bocejava, suspendia a leitura incom-i. preensfvel.O jardim, que a antiga inquilina vinha regar todasas manhãs, estava sujo, maltratado, coberto de gar-ranchos e folhas secas.Soltei o livro e fechei os olhos, aborrecido. Mas osolhos não ficaram bem fechados: através das pálpebrasmeio cerradas distinguiam-se as coisas que estavamperto do chão, dez ou quinze metros em redor -o tronco do mamoeiro, o monte de lixo, as florinhasdesbotadas. D. Adélia, no banheiro, lavava roupa, e aágua espumosa corria de lá, vinha estagnar-se numapoça junto à cerca.

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Se aquela tonta prestasse, estaria ajudando a mãe,ensaboando panos. Preguiça. Estava era lendo bestei-ras, arrancando cabelos das sobrancelhas com a pinçaou raspando os sovacos. A princfpio ainda tratara doscanteiros. Habituara-se depois a levar para ali um ro-mance, que não abria. Conversava. E eu me zangavacom as conversas dela, que, como já disse, eram ma-lucas. Zangava-me de verdade. Mas estava ali com osolhos meio fechados, espiando os canteiros e esperandoque a mulherinha chegasse.Fazia uma semana que eu andava cavando umacolocação para ela. Arranjar emprego, como não igno-ram, é dificuldade. As pessoas a que a gente se dirigesorriem. Tudo fácil, às ordens, perfeitamente. Escutam#as choradeiras com paciência e escrevem cartões a ou-tras pessoas. Estas escrevem outros cartões, e assim�por diante. Cada um se desaperta. Eu falara ao diretorda minha repartição.- Doutor, tenho uma vizinha que faz pena, moçaprendada. Mata-se para ajudar a familia, mas, comosabe, trabalho de mulher em casa não rende. Se o se-nhor pudesse, com a sua influência...O diretor respondera distrafdo:- Está bem. Vamos ver.Noutras repartições, a mesma história com peque-nas variantes:56- Moça decente, instruida, matando-se para au-xiliar a familia. Um modelo. A mãe doente . .Enfim uma cambada de mentiras inúteis. Nost bancos:- Moça digna, alguns conhecimentos de escritu-ração mercantil e de aritmética.. Nos armazéns:- Muito preparo, muita leitura, excelente cal-culista. Podia encarregar-se da correspondência.Nas redações:- ó Fulano, você não me arranja ai na expedi-ção qualquer coisa para uma moça que eu conheço?

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Um osso, uma sinecura que justifique dofs ou três vales; por mês.I Afinal fora encontrar para Marina um empregode cem mil-réis numa loja de fazendas. E ali estavaespiando o quinta,l com o rabo do olho.Chap, chap, chap. Era o vascolejar da água nazI , garrafas. Lfquido se derramava: o homem triste en-chia dornas. D. Adélia tossia no banheiro, espremendo( . roupa. E Vitória, na cozinha, cantava: - "Currupa-! co, papaco. A mulher do macaco . . . " Um galo no gali-nheiro pôs-se a arrastar a asa a uma franga. Eu estarJ , va fazendo ali a mesma coisa, apena,s com mais habi-lidade e mais demora. A franga não aparecia. QuemI,;F. se ligasse a ela faria negócio mau, seu Ramalho tinha ,.,, . razão. Se ele, que era pai, sustentava opinião assim,�° imaginem. Sovaco raspado, unhas cor de sangue e so-�' brancelhas que eram dofs traços. Mulher pelada. Para� � : que diabo uma pessoa arrancar as sobrancelhas.� �De repente a frangufnha surgiu dentro do meu re-r; duzido campo de observação. Com.o disse, eu apenas�., enxergava uns dez ou quinze metros do jardim. Pri-�meframente distingui as biqueiras vermelhas de unssa.patos, aqueles sapatos que, segundo a declaração deseu Ramalho, custavam cinqüenta mil-réis e duravamum mês. Para ir ao quintal, sapato de sair e meia deseda esticada no pernão bem feito. Õtimas pernas. Ascoxas e as nádegas, apertadas na saia estreita, esta-vam com vontade de rebentar as costuras.Talvez a franguinha tivesse percebido que eu fin-gia dormir: pôs-ss a ciscar por ali, rindo baiadnho,57: Tavançando, recuando, mostrando-se pela frente e pelaretaguarda. Eu respirava com dificuldade e pensavanas lições de geografia de seu Antônio Justino: -"Primeiro desaparece o casco, depois os mastros." Erao contrário que se dava agora: quando Marina se afas-tava, desaparecia em primeiro lugar a parte superiordo corpo, isto é, a cintura, pois a cabeça e o troncoestavam fora do meu campo de observação.

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Voltava-me as costas:- Chi, chi, chi.Um riso semelhante a um cochicho. Curvava-separa a frente: a cintura fina sumia-se, os quadris au-mentavam. O pano marcava-lhe a s.eparação das#nádegas. Um passo, outro passo. As ancas morriam,�agora eram as coxas grossãs. flutro passo: uma rugana meia cor de creme mostrava a articulaçâo da coxacom a perna. E a perna cheia ia adelgaçando até fin-dar num jarrete fino encastoado no tacão vermelhodo sapato.- Chi, chi, chi.O cochicho risonho afastava-se, chegava-me aosouvidos como o chiar de um rato. Chiar de rato, exata-mente. Chiar de rato ou carne assada na grelha. Pa-recia-me que aquilo estava chiando dentro de mim, Guea minha carne se assava e chiava. Os tacões verme-lhos viravam-se para o outro lado. As biqueiras sur-giam e avançavam. Lá vinham pedaços de canelas. Asmãos puxavam a saia para trás, distinguiam-se os joe-lhos e as coxas. Como vinha curvada para a frente,a barriga desaparecia.- Chi, chi, chi.O rato roía-me por dentro. Senti cheiro de carneassada. Não, cheiro de fêmea, o mesmo cheiro queantigamente me perseguia, em rreses de quebradeira.�- "D. Aurora, veja se me arranja um quarto maisbarato. Os tempos andam safados, d. Aurora."As pernas de Berta eram assim bem torneadas.Apenas as de Berta eram nuas, tudo em Berta era nu.- Chi, chi, chi.Lá estavam novamente os quadris expostos. Paraque aqueles panos? gritei interiormente. Não era me-58lhor que se descobrisse tudo? Coxas descobertas, rabodescoberto.Foi assim que vi Marina entre as pestanas meiocerradas, como Berta me aparecia. As nádegas cres-ciam monstruosamente - e eu mal podia respirar.

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Se d. Adélia e Vitória viessem ali, veriam aquela ar-mada: Marina despida, curvada para a frente, mos-trando um traseiro enorme.Tolice. D. Adélia, fria, com o pensamento distantede coisas assim, espremia camisas molhadas no ba-nheiro. E Vitória conversava com o Currupaco, o vi-vente que ela estima e não lhe provoca imagens in-decentes.Chap, chap, chap. A mulher magra não acabavade lavar garrafas. Ã torneira derramava líquido nadorna. Ouvia-se perfeitamente. A princípio chega-va-me um som confuso. Agora, porém, os sentidos irri-tados percebiam tudo. O chap-chap da mulher, o ru-mor do líquido, pregões de vendedores ambulantes,rolar de automóveis, a correria dos filhos de d. Rosá-lia no quintal próximo, o cheiro das flores, dos mon-turos, da água estagnada, da carne de Marina, entra-vam-me no corpo violentamente. Apertei as pálpebras.A poça de água, os canteiros mofinos, o monte de lixosumiram-se. O que eu via bem eram os quartos brancosde Marina curvada, as coxas brancas.- Chi, chi, chi.Devia estar um pouco afastada, mostrando apenasos tacões ou as biqueiras dos sapatos. Mais perto, maisperto, o cheiro mais vivo, o chichichi mais perceptfvel- e eu sentia uma espécie de desmaio com aquela apro-imação. O livro caiu, cruzei as pernas, sentei-me, vi�Marina em pé junto da cerca, rindo como uma doida:- Puxa! Que olhos abotoados! Parece que vai teruma congestão.Eu devia estar ridículo. Baixei a cara, com ver-gonha, e pus-me a esfregar as pálpebras, a agitar acabeça para espalhar as ruindades que havia dentrodela. Quando terminei a esfregação, Marina continua-va no mesmo lugar, exibindo os dentinhos, com tantamalícia no rosto que fiquei besta, acuado. Felizmente#podia vê-la da barriga para cima.59..

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- Cara de mal-assombrado, pilheriou Marina. S �nhou com alma do outro mundo?A visão obscena e os desejos lúbricos esmoreceran- Sonhei nada!Estava num entorpecimento estúpido. Tive a inpressão extravagante de que o ar havia tomado crepente a consistência mole e pegajosa de goma-ar!bica. Nesse ambiente gelatinoso Marina se movia, n �dava, desesperadamente bonita, o peitinho redondo sibindo e descendo, a querer saltar pelo decote baix �pimenta nos olhos azuis, os cabelos de fogo desmaxchando-se ao vento morno e empestado que sopravdos quintais. Veio-me o pensamento maluco de que tnham dividido Marina. Serrada viva, como se faziantigamente. Esta idéia absurda e sangüinária deu-rr:grande satisfação. Nádegas e pernas para um lado, cfbeça e tronco para outro. A parte inferior mexia-;como um rabo de lagartixa cortado. Mas eu nâo reparava na parte inferior, que tanto me perturbara: recibia as faíscas dos olhos azuis e deejava enxugar cor�beijos a saliva que umedecia os beiços um pouco grosos da minha amiga. Estava linda. Tinha corrido pcali alguns minutos como um rato, chiando. Eu era mgato ordnário. Podia saltar em cima dela e abocf�nhá-la: ao pé das estacas podres que Vitória removtodos os meses, desafiava-me com os olhos e com cdentes miúdos. Não saltei. O que fiz foi arranjar umcarranca sérfa, que devia ser burlesca, porque Marinsoltou uma gargalhada.- Marina, grunhi, sua mâe não lhe falou?- Sobre o quê?- Sobre uma colocação. Uma colocação para vociSim, é bom uma pessoa pensar no futuro. Vocês nãconversaram?- Não.- Ah! Pensei que tivessem conversado. PoisSua mâe me falou e eu andei por aí rrartelando. Fi�o que pude.Marina tinha agora o rosto comprido e uma rugentre as sobrancelhas:

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- Parece que minha mãe está com pena do bccado que me dá.so - Não diga isso, crfatura. E para o seu bem. D. Adélia saiu do banheiro com uma bacfa de roupa molhada, que fa enxugar lá dentro, a ferro. - Boa noite, gritou de longe. E entrou logo. Ia escurecendo, e aquele boa naite era uma espécie de censura, que ela não fazia clara- mente porque tinha medo da filha. - Está af, Marina. A pobre a esta hora lavando roupa! Marina, em silêncio, quebrava torrões com o salto do sapato. - Você me desculpa a franqueza. Eu não devfa estar dando opinião sobre sua casa. E porque Ihe te- nho muita amizade. Por isso andei pedindo por af. - Encontrou alguma coisa? perguntou Marina sem entusiasmo. - Encontrei. Para bem dizer, não encontref coisa boa não. Emprego público nã.o há. Tudo fechado, tudo escuro. Enfim sempre achei um gancho. - Onde? - Numa loja. Cem mil-réis por mês. Um prin- cipio. Depois a gente cava serviço mais fácil e mais rendoso. O que é preciso é começar. - Numa loja? disse Marina com um risinho mau.# Obrigação de aturar pilhérias e até descomposturas dos fregueses. E beliscões dos empregados. Muito bem. - Oh! Marina! - Julgo que minha mãe está com intenção de me ver na rua. E você também está. - Oh! Marina! Que horror! Se você não quer, acabou-se. Meti-me nisso porque sua mãe me pediu, compreende? E porque lhe quero muito bem. Marina sensibilizou-se. Os olhos aguaram-se, o bef- cinho tremeu : - Obrigada, Lufs. E estirou a mão. Levantei-me, tomef-lhe os dedos,

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0 contacto da pele quente deu-me tremuras, acendeu os desejos brutais que tinham esmorecido. Olhando-a de cima para baixo, via-lhe os seios, que subiam e des- ciam, as coxas, a curva dos quadris. Veio-me a tenta- ção de rasgar-lhe a saia. E repetia como um demente: - É porque Ihe quero muito bem, Marina.61Apertei-lhe a mão, mordi-a, mordf o pulso e obraço. Marina, pálida, só fazia perguntar:; - Que é isso, Lufs? Que doidice é essa.?Mas não se afastava. Desloquei as estacas podres,puxei Marina para junto de mim, abracei-a, beijei-lhea boca, o colo. Enquanto fazia isto, as minhas mãospercorriam-lhe o corpo. Quando nos separamos, fica-mos comendo-nos cõm os olhos, tremendo. Tudo emredor girava. E Marina estava tão perturbada que seesqueceu de recolher um peito que havia escapado daroupa. Eu queria mordê-lo e receava ao mesmo tempoque d. Adélia nos surpreendesse, encontrasse a filhadescomposta.- Meu Deus! exclamou Marina sobressaltada.E virou-se rapidamente. Quando tornou a mostraio rosto, o peito havia desaparecido.- Que foi que nós fizemos, Luís?E começou a choramigar. A comoção dela me trou �xe alguma vaidade, um pouco de arrependimento equase a certeza de que nunca ninguém lhe havia to �cado nos peitos. Apesar da admiração idiota que Ma �rina tinha a d. Mercedes, tomei aqueles soluços comcprova de inocência.- Que foi que nós fizemos, Luís?A cantilena chorosa arrasava-me os nervos. Coceia testa, agoniado:- É o diabo, Marina. Ninguém tem culpa. Fo;uma topada. E agora é continuar. Qualquer dia a gente casa. E verdade, precisamos tratar disso. Você qufacha?Concordou pa.ssivamente, numa sílaba:- É.Esta anuêncfa chocha me desorientou. Várias ve �

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zes tinha pensado em amarrar-me a ela, e nunca mEpassara pela cabeça a idéia de que a minha amigzhesitasse. Mordi os beiços, despeitado:- Falei nisto porque pensei . . . Compreende. Simperfeitamente. Enfim você é quem sabe.- Marina! gritou lá de dentro seu Iamalho. Cuf� �dado com o sereno.- Está certo, disse Marina rapidamente. Velhcpau. Se você acha que deve ser . . . Adeus.62- Adeus, Marina. Outra coisa. Vamos deixar debesteira. Porque é que a gente não se encontra aquino escuro, meia-noite, quando estiverem dormindo?Valeu? Dá cá um beijo.- Venha lavar os pratos, Marina.- Já vou.E escapuliu-se correndo. Sentei-me na espreguiça-deira, apanhei o livro:#- É uma dos diabos. Eu queria dar a ela algumaindependéncia. Acabou-se. Gfosto da pequena, amarrouma pedra no pescoço e mergulho.* * *Defronte da minha casa veio morar uma famíliaesquisita, que não se relacionou com a vizinhança: umvelho barbudo, encolhido, e trés moças amarelas, sujas,mal vestidas, ruivas e arrepiadas. O homem, de nomeignorado, andava olhando os pés, carrancudo, e nãocumprimentava ninguém. As vezes surgia a figura deuma das moças à janela; mas se alguém aparecia narua, o postigo se fechava silenciosamente.- Eu queria saber que esnécie de gente é aquela,resmungava d. Adélia. Só bicho.- E mesmo, d. Adélia, concordava AntBnia Tudoentocado. Só b;cho.Seu Ivo procurou entrar na toca, bateu, pediu com:-da: não teve resposta. Um dia d. Mercedes atracou-mena passagem:- O senhor não me dirá que mistério é esse?- E eu sei? minha senhora.

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- De que viverão eles? perguntava d. Adélia.Seu Ramalho explicava.- Cada qual tem seus ganchos.- É exato, confirmava d. Adélia.Enquanto a criada andava em busca de machos,d. Rosália esquecia os meninos e ficava horas ganhan-do calos nos cotovelos, o olho pregado na casa da fa-milia esquisita:- Que vidal Uma pessoa assim cria mofo. rTemvão à igreja.63- Talvez sejam protestantes, comentava seu Rafmalho.- Com certeza. Devem ser bodes.Até Marina fervia de curiosidade:- Luís, descubra isso, meu filho.' De repente começaram a circular boatos fefos: amoças eram filhas e amantes do velho.- Que horror! Logo três!- E por isso que ele anda capiongo. São remorsos' - Provavelmente.- Eu queria que me dissessem como se soube.- Ora como se soube! Sabe-se tudo.- Mas quem viu?O carvoeiro tinha visto o homem abotoado a um �das sujeitas, no quarto. Porcaria. Nem fechavamporta. D. Mercedes resumiu o caso:- E verdade.- O carvoeiro lhe contou, d. Mercedes?- Não, foi outra pessoa. Na cidade onde eles mcravam todo o mundo falava. Foi o que me disseraxrSei de fonte limpa.Quem teria dito? Com certeza a personagem gratda que vivia com ela.- Estâo ouvindo? d. Mercedes garantiu., - Até dá engulhos, exclamou Antônio cuspindcComer três filhas! Que lobisomem!Daí em diante o velho se chamou Lobisomem.- Parece que Lobisomem amanheceu doente. Nã

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saiu hoje.- São pecados.As crianças de d. Rosália contavam histórias dlobisomens, e o herói delas era o vizinho. A notfcia chEgou a,os ouvidos de Julião Tavares:- Diz que um velho por aqui destambocou afilhas? Como é?- Calúnias, respondeu Moisés.- Em todo o caso é bom verificar isso. TalvE#a gente pudesse agarrar uma.Cachorro! Lobisomem continuava como tinha ch �gado, indiferente, a cara enferrujada, tão distrafdo quesbarrava com as pessoas, e os choferes paravam cautos violentamente para não atropelá-lo. E as filha64coitadas, amarelas, feias, nem se penteavam. Saberiamalguma coisa? Talvez não soubessem. Ao mudar-separa ali, certamente já traziam uma carga de infeli-cidades. E era possfvel que houvessem percebido frag-mentos de horrores, gestos de desprezo, pilhérias ladra-das na rua. Pobre do Lobisomem! Não tinha hora parasair, hora para chegár. Sempre só. Nem um guarda-chuva, nem uma bengala, trãstes necessários a homemtão curvado. Ora para um lado, ora para outro, semdestino. Que vida! Nem um hábito. Esta idéia de umapessoa viver sem hábitos era para mim extremamentedolorosa. Apesar de haver atravessado uma existênciahorrível, sempre encontrara nela, mesmo nos temposmais duros, ocupações que me entretinham. Compara-va-me a Lobisomem. Eu era quase feliz, e a compara-ção me atenazava.Marina tinha deixado de ver-me à tarde, mas todasas noites a gente se reunia no fundo do quintal. Elapassava pelo buraco da cerca, encostava-se ao troncoda mangueira, e eram beijos, amolegações que nosenervavam.- Vamos entrar, descansar um bocado, Marina.Já que chegou aqui, dê mais uns passos.- Você está maluco? Eu vou dar o fora. Qual-

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quer dia a gente mete o rabo na ratoeira. Os velhosdescobrem tudo, estrilam, e é um fuzuê da desgraça- Deixa disso, Marina, vamos lá para dentro.- Good-bye.- Vem cá, Marina.- Vai-te embora, Lobisomem.Até ali, àquela hora, surgia o nome do vizinho.O que mais me aborrecia era não saber se as pessoasque falavam dele acreditavam na história suja. En-chia-me de raiva por não conseguir livrar-me dosfuxicos. Desprezava involuntariamente o desgraçadoLobisomem. Se aquilo fosse verdade? Não tinha verossi-milhança, era aleive, disparate. Mas tanta gente repe-tindo as mesmas palavras... E casos iguais já se ti-nham visto.- Besteira. Perdendo tempo com bobagens. Parao inferno.65Realmente a cara de Lobisom.em não inspiravasimpatia. E as fílhas, de boca aberta, brancas, enros-cadas, moles... Gente suspeita. Estas dúvidas eramterrfveis. Agarrava-me ao judeu para libertar-me delas:'` - Isto é o diabo. Uma criatura inofensíva, umacriatura parada!4' - Safadeza, dizia Moísés tranqüilamente.- Infâmia. Esta canalha precisa chicote.- Pois não fale nisso, homem. Para que mexer emporcaria?- Não é tanto assim, intervinha Juliã.o Tavares.;,.O incesto é natural, explica-se.- Lá vem pedantismo.E nâo prestava atenção à conversa de Julião Tava-res. Lembrava-me de outro indivíduo infeliz, um serta-nejo que vi há muitos anos, quando ele saia da prisãodepois de cumprir sentença. Era um cearense esfomeadoque tinha aparecido na vila em tempo de seca. Esmo-lambado, cheio de feridas, trazia escanchada no pescoçouma filhinha de quatro anos. Tinham ido morar narua das putas e viviam de esmolas. Um dia as vizinhas

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#ouviram gritos na casinha de palha e taipa que elesocupavam. Juntaram-se curiosos, olharam por um bu-; raco da parede e viram o homem na esteira, nu, abrin-do à força as pernas da filha nua, ensangüentada. Ar-rombaram a porta, passaram o homem na embira,deram-lhe pancada de criar bicho - e ele confessou,debaixo do zinco, meio morto, que tinha estuprado amenina. Processo, condenação no júri. Anos depois osmédicos examinaram a pequena: estava inteírinha.O que havia era sujidade e um corrimento. Tratando adoença da filha com remédios brutos da medicina ser-taneja, o homem tinha sido preso, espancado, julgadoe condenado.- Está ouvindo, seu Moisés? Cipó de boi, facãoe pé no tronco.Moisés indignava-se. Julião Tavares bocejava:- Natural. A justiça não é infalível.* * *66- Marina, a gente deve acabar com isto, minhafilha. Vamos para dentro.- Vou nada!Torcia o corpo, defendia a virgindade com unhase dentes.- Está direito. Então é melhor apressar o casório.- Com que roupa? disse Marina.- Que é que falta?- Tudo. Eu sou uma noiva pelada, meu filho.Impacientei-me :- Ora! ora! ora! Entre nós não há cerim8nia. Ar-ranja-se. Eu tenho umas economias, pouco, mas tenho.Também você não precisa de muita coisa. Urrtas fronhas,umas camisas.Como vêem, eu tinha boa vontade. O que receavaera transformar as nossas relações, miúdas, num acon-tecimento social importante.Aquilo viera pouco a pouco, sem a gente sentir.Naturalmente gastei meses construindo esta Marinaque vive dentro de mim, que é diferente da outra, mas

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se confunde com ela. Antes de eu conhecer a moci-nha dos cabelos de fogo, ela me aparecia dividida numagrande quantidade de pedaços de mulher, e às vezesos pedaços não se combinavam bem, davam-me a im-pressão de que a vizinha estava desconjuntada. Agoramesmo temo deixar aqui uma sucessão de peças e dequalidades: nádegas, coxas, olhos, braços, inquietação,vivacidade, arror ao luxo, quentura, admiração a�d. Mercedes. Foi difícil reunir essas coisas e muitasoutras, formar com elas a máquina que ia encon-trar-me à noite, ao pé da mangueira. Preguiçosa, in-grata, leviana. Os defeitos, porém, só me pareceramcensuráveis no começo das nossas rela.ções. Logo quese juntaram para formar com o resto uma criaturacompleta, achei-os naturais, e náo poderia imaginarMarina sem eles, como não a poderia imaginar semcorpo. Além disso ela era meiga, muito limpa. Asseio,cuidado excessivo com as mâos. Passava uma hora nobanheiro, e a roupa branca que vestia cheirava. Nosnossos momentos de intimidade eu sentia às vezes umatentação maluca; baixava-me, agarrava-lhe a orla da67camisa, beijava-a, mordia-s. Isto me dava um praze �muito vivo.- O pior é que você ainda não me pediu, gemetMarina.E fingiu-se amuada. Liguei pouca importância a �amuo, mas fiquei remoendo aquela idéia desagradâvede explicar-me aos outros sobre coisas que só eram in;.teressantes para nós. Explicações horríveis. Necessári �#entender-me com seu Ramalho, pedir o consentimenttdele, dizer besteiras. Ia escrever-lhe uma carta conlaços sagrados, felicidade conjugal, himeneu. InfâmiaSó a idéia de escrever isto me dava náuseas. Intençõe;puras. E era preciso comprar móveis, trastes de cozinha, cortinas para janelas, almofadas. Intenções purasDomingo, na missa, o padre leria: - "Querem casar-s �Luís Pereira da Silva, com trinta e cinco anos, etc.

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etc., e Marina Ramalho, etc., etc.". Luís Pereira da Silva, com trinta e cinco anos, estava longe da igrej �e dos banhos. Que necessidade tinha Luis Pereira d �Silva daquela verbiagem? Depois os cartões de comunicação, grandes, com letras douradas, aos colegas d �repartição, aos conhecidos, às amigas de Marina, aapadrinho, oficial do exército. Indispensável um cartã �' ao padrinho, que era oficial do exército e servia en° Mato Qrosso. Alguém me mandaria um telegrama�Intenções puras. Marina dá grande valor aos telegramas.- Peço amanhã, murmurei compondo mentalmente as frases bestas da carta. Falo amanhã. Ou escrevo.Mão de esposo, união conjugal, intenções puras -Marina gosta disto. Provavelmente iria recortar e guardar com cuidado a notícia que o jornal publicari �na sétima página, junto aos versos. Em pé, diante dilivro aberto, o juiz me perguntaria: - "O senhor Luida Suva quer casar com d. Marina Ramalho?" Eu, encabulado, mastigaria uma sflaba, esirega,ndo as mãoaMarina, de roupa branca e flores de laranjeira, aürma,ria com a cabeça, pálida e comovida. O diretor m �diria: - "Entrou no rol dos homens sérios, seu Luis.'D. Adélia choraria abraçada à filha, como é de costume. Os sapatos me apertariam os calos, e o telegra68ima seria pouco mais ou menos assim: "Felicitaçóes aoprezado amigo." Automóveis da casa para a igreja e daigreja para a casa. Haveria na minha sala alguns tro-ços novos e inúteis. A noite, quando eu fosse procurarem minha mulher as últimas novidades, ela me falariacom entusiasmo naquela glória toda. No dia segninted. Rosália, se penduraria à janela para gritar: - "Es-tava muito bonita a sua grinalda, minha negra." Quan-to iriam custar tantas maçadas? Talvez os três contosde réis voassem.- d o diabo, Marina. Vamos ver se arranjamosisto com simplicidade.

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* * * No outro dia retirei quinhentos mil-réis do banco e fui à casa vizinha: - Õ d. Adélia, faça o favor de chamar a Marina. E, enquanto esperava: - Ela contou à senhora, nã,o contou? Pois é. Pa- rece que o mês vindouro a gente se engancha. Tenha a bondade de explicar isto a seu Rsmalho. Ele já sabe, não? D. Adélfa embrenhou-se em circunlóquios para dizer que o marido sabia e não sabia. 8abia que eu gostava da menina. Isto se via perfeitamente. Agora ir para a igreja assim tão depressa era surpresa. Marina se vestia num quarto próximo, topando nos móveis, derrubando as coisas. - E isto, d. Adélia. Quem tem de se empenha,r que se venda logo. A senhora não acha? Esplique a seu Ramalho. Esse negócio de pedido de casamento é mui- to pau, não tenho jeito. Apareça, àãarina. - Um minuto, respondeu a minha amiga mos- trando um pedaço da cara pela porta entresberta. Estou acabando de me calçar.# - Está nada! Está pintando os beiços. Essa sua filha é uma pintura, d. Adélia. Sem saber se aquilo era eloglo ou censura, d. Ad � lia sorriu veuada e justüicou ãarinav:� - E a mocidade.69Metf a mão no bolso para tirar os quinhentosmil-réis, acanhei-me. Tirei um cigarro, que machuquefolhando as figuras das paredes:- A senhora tem um Coração de Jesus muíto bo-nito.Marina apareceu, enroscando-se como uma cobrade cipó e tão bem vestida como se fosse para umafesta. Ao pegar-me a mão, ficou agarrada, os dedoscontrafdos, o braço estirado, mostrando-se, na faixade luz que entrava pela janela. Isto me dava a im-pressão de que o meu braço havia crescido enorme-

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mente. Na extremidade dele um formigueiro em rebu-liço tinha tomado subitamente a conformação de umcorpo de mulher. As formigas fam e vinham, entra-vam-me pelos dedos, pela palma e pelas costas da mão,corriam-me por baixo da pele, e eram ferroadas medo-nhas, eu estava cheio de calombos envenenados. Nãodistinguia os m,ovimentos desses bichinhos insignifi-cantes que formavam o peito, a cara, as coxas e asnádegas de Marina, mas sentia as pícadas - e tinhaprovavelmente os olhos acesos e esbugalhados. Comuma sacudidela, desembaracei-me da garra que meprendia e tornei-me um sujeito razoável:- Estávamos combinando, Marina. Quanto maisdepressa melhor, foi o que eu disse a d. Adélia. Gentepobre não tem luxo.- E preciso fazer as coisas com decência, opinouMarina.- Claro. Mas com modéstia. Não é, d. Adélia?Dispensa-se o véu. Para que véu? Eu por mim casavahoj e.Marina escandalizou-se, trombuda. E d. Adélia, me-xendo-se aflita na cadeira, que rangia sob as banhasexcessivas, baixava os olhos, escondia as mãos papu-das debaixo do avental, dava razão a mim, dava razãoà filha, num desconchavo:- É mesmo, seu Luís, gente pobre não tem luxo.Com decência, e então? Antigamente um noivado eraserviço. Preparar a roupa branca, bordar a colcha, quetrabalhão! Tarefa para meses. Hoje em dia, na máquí �na, vuco, vuco, vuco, num instante se borda umacolcha.70- A gente podia passar sem a colcha bordada.- Isso é casamento de cambembe, disse Marina.D. Adélia, com os olhos suplicantes, pedia silêncio.- A propósito de roupa branca, d. Adélia. .Calei-me, com vergonha de oferecer os quinhentosmil-réis. O mulherão suspirou :- No meu tempo de moça um pedido de casa-mento era coisa muito séria.

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Agora eu estava ali conversando sobre lençóis.- A propósito de roupa branca, d. Adélia, estivepensando . . . Até falei com a Marina, provavelmenteela disse à senhora. Para abreviar, compreende?Compreendia.- Cedo ou tarde eu havia de comprar esse panos.Para que etiqueta? Por isso me lembrei de propor aMarina . . . A senhora não leva a mal, suponho.Não levava:- Quando duas pessoas se entendem . .- Pois é. Uma espécie de adiantamento. É tirarde uma mão e botar ná outra. Fica tudo em casa.Entreguei a Marina a pelega de quinhentos:#- Está aqui, minha filha. Comece os arranjos.E adeus, que não quero perder o ponto.Marina recebeu o dinheiro sem constrangimento,e eu me sensibilizei julgando que ela procedia assimpor estar identificada comigo. Fiz-lhe algumas reco-mendações miúdas e retirei-me.A primeira pessoa conhecida que encontrei na ruafoi Julião Tavares. Senti um estremecimento desagra-dável, a repugnância que sempre me vinha quandodava de cara com aquele sujeito, e fingi não vê-lo,entrei numa loja para não falar com ele. Na reparti-ção as horas correram doces e rápidas. O café estavacheio de caras amáveis. Guardei na memória pedaçUsde sonversas. O cego dos bilhetes de loteria passouenre as cadeiras, batendo com o cajado no chão, can-�tando o número.Se eu pegasse a sorte grande, Marina teria colchasbordadas a mão. Pobre de Marina! Precisava fazendamacia, pulseiras de ouro, penduricalhos.As cadeiras da minha casa eram bem ordinárias.No tijolo safado não havia tapete. Nem um quadro na?1parede. E o colchão, duro como pedra, faria escorfaçõesno corpo de Marina. Contento-me com muito pouco,habituei-me cedo a dormir nas estradas, nos bancos dosjardins.

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- 16.384, gemfa o cego batendo com a bengala nocimento.Ou seria outro número. Cem contos de réls, di-nheiro bastante para a felicldade de Marina. Se eu pos-sufsse aquilo, construiria um bangalô no alto do Farol,um bangalô com vista para a lagoa. Sentar-me-ia ali,de volta da repartição, à tarde, como Tavares & Cia.,dr. Clouveia e os outros, contaria histórias à minhamulher, olhando os coqueiros, as canoas dos pesca-dores.- 16.384.Vestido de pijama, fumando, olharia lá de cima ostelhados da cidade, os bondes pequeninos a rodar quaseparados e sem rumor, os focos da iluminação pública,os coqueiros negros à noite. Uns quadros a óleo enfei-tariam a minha sala. Marina dormiria num colchãode paina. E quando saltasse da cama, pisaria num ta-pete felpudo que lhe acariciaria os pés descalços.- 16.384.; Um tapete fofo, sem dúvida. E a cama teria umacolcha bordada cobrindo o colchão de paina, uma col-cha bordada em seis meses.* * *Alguns dias depois Marina me chamou para mos �trar os objetos que tinha comprado. Não era quasenada: calças de seda, camisas de seda e outras ni-nharias.- Que é do resto?- Que resto? perguntou espantada. E só isto. Vejase as camisas estão bem feitas, diga se as cores lheagradam.- Mufto boas, murmurei.- Mas você nem está olhando.- Para quê? Não entendo. O que vejo é que faltaquase tudo.72. .,·" .i!¡ %,1` -'� �� �� �·. . ~ :,Jc .. '�� � � �

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perdício! Se ela suasse no veio da máquina ou agüen-tasse as enxaquecas do chefe na repartição, não fariasemelhante loucura. Mas não despropositei, como 0coração me pedia.; - Está bem. Vamos comprar o resto. Faço eco-nomia, ouviu? Os cobres estâ,o escassos.Sangrei mais quinhentos mil-réis. Depois sangreiduzentos, adquiriu móveis em leilão e vesti-me de novo,porque as minhas camisas estavam esfiapadas e o paletóse cobria de nódoas. Ma.rina aplaudia a transformaçãoque se ia operando no meu exterior:. - Precisa é mandar consertar essa gola. O corpoestá bom. Os pés não prestam, com esses sapatos inde-centes. Dê por visto um pavã:o.Ofereci a seu Ivo os meus sapatos cambaios e re-formei os pés. O dinheiro sumia-se, essas alterações chu-pavam-me as reservas acumuladas com paciência. Euvivia preocupado, fazendo cálculos na rua. E ainda nã,o; havia comprado uma lembrança para Marina.Liquidei a minha conta no banco, estudei cuidado-samente uma vitrina de jóias, escolhi um relógio-pul-seira e um anel. Saf da joalheria com vinte mil-réisna carteira, algumas pratas e nfqueis. Mais nada.Apenas confiança no futuro, apesar dos encontrõesque tenho suportado. Os matutos acreditaram na mi-nha literatura. Vinte mil-réis para café e cigarros.Ia cheio de satis;fação maluca. Não tirava a mãodo bolso, apalpava as ca,ixinhas, sentia através do papelde seda a macieza do veludo. Na alvura do braço ro-liço a fita do relógio faria uma cinta negra; a pedri-nha branca faiscaria no dedo miúdo.- Moisés me emprestará cinqüenta mil-réis até omês vindouro.Ao chegar à Rua do Macena recebi um choquetremendo. Foi a decepçâo maior que já experimentei.#A janela da minha casa, caído para fora, vermelho,74papudo, Julião Tavares pregava os olhos em Marina,que, da casa vizinha, se derretia para ele, tão embe-

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bida que não percebeu a minha chegada. Empurrei aporta brutalmente, o coração estalando de raiva, e fi-quei em pé diante de Julião Tavares, sentindo um de-sejo enorme de apertar-lhe as goelas. O homem per-turbou-se, sorriu amarelo, esgueirou-se para o sofá,onde se abateu.- Tem negócio comigo?A cólera engasgava-me. Julião Tavares começou afalar e pouco a pouco serenou, mas não compreendio que ele disse. Canalha. Meses atrás se entalara numprocesso de defloramento, de que se tinha livrado gra-ças ao dinheiro do pai. Com o olho guloso em cimadas mulheres bonitas, estava mesmo precisando umasurra. E um cachorro daquele fazia versos, era poeta.Aprumava-se, as palavras corriam-lhe facilmente,mas continuei a ignorar o que significavam.- Tem negócio comigo? repeti sem pensar queo tipo já havia provavelmente dado resposta.A loquacidade de Julião Tavares aborrecia-me. Umavoz líquida e oleosa que escorria sem parar. A minhacólera esfriava, o suor colava-me a camisa ao corpo.A roupa do intruso era bem feita, os sapatos bri-lhavam. Baixpi a cabeça. Os meus sapatos novos esta-vam mal engraxados, cobertos de poeira. Pés de pavão.Julião Tavares falou sobre a política do pafs.A enxurrada cobria-se de nódoas de gordura, que sealastravam.Ia lá discutir com aquele bandido? O meu desejoera insultá-lo.- Nunca estou em casa a esta hora. Estou noserviço, percebe? Sou um homem ocupado.- Perfeitamente, respondeu Julião Tavares. Umavida cheia, uma vida nobre, dedicada ao trabalho.Só a pontapés.- Muito bonito, seu doutor.Ultimamente, embora repugnado, eu o tratava porvocé.- Uma coisa é jogar frases em cima do trabalhoalheio, outra é pegar no pesado.Julião Tavares fechou a cara:

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75- Todos nós temos as nossas obrigações, homem.Cada qual sabe onde o sapato lhe aperta.Olhei os pés dele, e o meu ódio aumentou:- Os seus não devem apertar muito.- Acha?Baixei a cabeça, mordi os beiços para não gritalos desaforos que me subiam à garganta e que eu en·golia, pus-me a marchar na sala estreita, batendo oscalcanhares com força. De uma parede a outra qua-tro passos. A porta, que tinha ficado aberta, mostra-va-me os paralelepfpedos, as sarjetas, as pernas dostranseuntes, só as pernas, porque, como já disse, eutinha a cabeça baixa. A minha curiosidade se concen-trava nos sapatos dos transeuntes. Passaram os taman-cos de um carregador, os chinelos de Antónia, umasbotínas velhas que julguei serem de Lobisomem. A �críanças de d. Rosállía corriam e gritavam, mas esta-vam descalças.Lembrei-me da fazenda de meu avô. As cobras searrastavam no pátio. Eu juntava punha,dos de seixosmiúdos que atirava nelas até matá-las. As vezes a brin-cadeira se prolongava, mas afina,l as cobras morriam,e perto dos cadáveres ficavam montes de pedras. Certodia uma cascavel se tinha enrolado no pescoço do velhoTrajano, que dormia no banco do copiar. Eu olhava#üe longe aquele enfeite esquisito. A cascavel chocalha-va, Trajano dançava no chão de terra batida e gri·tava: - "Tira, tira, tira." As alpercatas de Amaro va·queiro iam do curral dos bois ão chiqueiro de cabras,Em dias de pega Camilo Pereira da Silva desenrosca �va-se, vestia o gibão, calçava as perneiras. O barbica �cho do chapéu de couro terminava debaixo do queixcnuma borla que lhe fazia uma barbinha ridïcula. Assinparamentado, Camflo Pereira da Silva andava emproa �do como um galo, e as rosetas das esporas de ferrctilintavam.Levantei a cabeça. Julião Tava,res sorria e continuava a derramar a voz azeitada. Perto, pancadas di

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ferro tinindo. Eram as picaretas dos calceteiros qmdeslocavam as pedras da rua, consertavam o calçamento. No fim de uma daquelas viagens de quatro passos eu via, a alguns metros de distância, um montâ �?6de paralelepipedos que a poeira cobria. E, nessa nu-vem de poeira, figuras curvadas, movendo-se. Desejeiatirar todos aqueles paralelepfpedos em cima de JuliãoTavares.Tornei a bafxar a cabeça, desanimado, continueia olhar os pés dos raros transeuntes que passavam narua. Ia e vinha. Um, dois, um, dois - meia-volta. Esteexercicio era irritante. A porta escancarada convidarva-me a abandonar tudo, a sair sem destino - um,dois, um, dois - e não parar tão cedo. Nenhum sar-gento me mandaria fazer meia-volta. Os meus passosme levariam para oeste, e à medida que me embre-nhasse no interior, perderia as peias que me impuse-ram, como a um cavalo que aprende a trotar. Tor-nar-me-ia de novo meio cigano, meio selvagem, anda-ria numa corrida vagabunda pelas fazendas sertane-jas, ouviria as cantigas dos cantadores e as conversasdas velhas nas fontes, veria à beira dos caminhos es-treitos pequenas cruzes de madeira, as mesmas que vihá muitos anos, enfeitadas de flores secas e fitas des-botadas. Indicaria uma delas, estirando o beiço. Quemteria morrido ali? E alguém me informaria, repetindoas histórias dos cantadores e as conversas das velhasnas fontes: - "Um sujeito que namorou a noiva deoutro."Estremeci. Os meus dedos contrafram-se, move-ram-se para Julião Tavares. Com um salto eu poderfaagarrá-lo.Pensei em seu Evaristo e na cobra enrolada nopescoço do velho Trajano. Parei no meio da sala, ater-rado com a imagem medonha que me apareceu. O pes-coço do homem estirava-se, os ossos afastavam-se, osbeiços entreabriram-se, roxos, intumescidos, mostran-do a língua escura e os dentinhos de rato.- Está doente? perguntou-me Julião Tavares.

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Suponho que a minha resposta foi despropositada.0 rapaz levantou-se, aproximou-se, e eu me desviei delecom um palavrão. Não me lembro do que disse, massei perfeitamente que terminei com um palavrão obsce-no. Juliáo Tavares aprumou-se.- Puta que o pariu, resmunguef.?7 Parece que ele ouviu. Mas fingiu que não tinha ouvido. Agarrou o chapéu e saiu. - Bonitol E pus-me a esfregar as mãos: - Por causa de uma guenza de maus costumes estar um homem a aperrear-se. Enrolem-se, durmam, danem-se, vão para a casa do diabo. Fui à cozinha e conversei um minuto com o Curru- paco. - O jantar está na mesa, disse Vitória.# Entrei na sala de jantar, bebi um pouco de aguar- dente, fiquei um instante olhando, por cima do muro, a mulher que lava garrafas e o homem que enche dornas. A sombra da mangueira ia cobrindo o quintal. - As moscas estão comendo o jantar, gritou Vi- tória. Cheguei-me à mesa, bebi mais um trago de aguar- dente e tomei o caminho da rua. Marina estava à ja- nela : - Que é isso? Vai com tanta pressa! Fale com os pobres. Pareceu-me contrafeita. Sem-vergonha. - Não matei seu boi não, moço. Me largue. ` Passeei à toa pelas ruas, parando em frente às vitrinas, com a tentação de destruir os objetos expos- tos. As mulheres que ali estavarr em pasmaceira, ad-� mirando aquelas porcarias, mereciam chicote. Fui ao jornal, li os telegramas. Eram notícias sem importân- cia, mas julguei perceber nelas graves sintomas de de- composiçâo social. Estive olhando sem ler os cartazes do cinema, entrei maquinalmente. O porteiro sabe que

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trabalho na imprensa e não pediu bilhete de ingresso. Na sala de projeção fiquei de pé, ao fundo, por baixo da cabina, sem ver a tela. Nunca presto atenção às coisas, não sei para que diabo quero olhos. Trancado num quarto, sapecando as pestanas em cima de um livro, como s'ou vaidoso e como sou besta! Caminhei tanto, e o que fiz foi mastigar papel impresso. Idiota. Podia estar ali a distrair-me com a fita. Depois, finda a projeção, instruir-me vendo as caras. Sou uma besta. Quando a realidade me entra pelos olhos, o meu pe- ?8queno mundo desaba. A safda encontref Moisés enco �tado a um poste de iluminação, lendo um jornal.- Acabe com essa literatura, Moisés, exclamef im-paciente. Nâo serve.Moisés dobrou a folha, sorrindo:- Que história é essa?- E o que lhe digo. Não serve. A linguagem es-crita é uma safadeza que vocês inventaram para engarnar a hurranidade, em negócios ou com mentiras.�- Que diabo tem você? perguntou Moisés.- Não é nada não. E que nso vale a pena, acre-dite que não vale a pena. Uma pessoa passa a vidaremoendo essas bobagens. Tempo perdido. Uma crfançamete a gente num chinelo, Moisés; qualquer imbecilmete a gente num chinelo, Moisés.As onze horas achava-me encostado a uma bancado Helvética, bebendo aguardente e nâo distinguindobem as pessoas que se serviam nas outras mesas, fun-cionários, políticos, negociantes, choferes, prostitutas.Uma criaturinha magra empurrou uma das portinho-las que dão para a Igreja do Livramento, avançou demanso. Ninguém lhe prestou atenção.- Pst. Senta af.Chegou-se acanhada e esperou a repetição do con-vite.- Senta af.Sentou-se. O peito era uma tábua, os braços finos,as pernas uns cambitos, que nem sei como agüenta-vam o corpo. A carinha não era feia, talvez tivesse sido

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bonita.- Beba alguma coisa.- Não, muito obrigada.E espalhou a vista pelas mesas.- Procurando algném?- Era. Parece que ele hoje nâo vem. Já é tãotarde!- Onde mora?#- Aqui na Rua da Lama. É perto.E mostrou a chave que trazia na mão.- Beba alguma coisa, insisti.- Não senhor, eu não bebo.Tossia e olhava a porta da cozinha.?9- Um petisco.Pimentel entrou na sala e perguntou-me ao ouvido:- Onde arranjou esse canhão?Coitadinha. Não era feia, o que estava era estra-gada.- Aceite.A criatura hesitava, afogueada. Afinal se resolveu:- Muito obrigada. Eu aceito. O senhor vai comi-go, não? E aqui pertinho.Comeu de cabeça baixa, em silêncio, e repetiu oprato. Só falou ao terminar o café:- Vamos?Meti a mão no bolso e lembrei-me de que me res-tava uma cédula de vinte mil-réis. Recebi o troco elevantei-me.- Vai com.igo? tornou a perguntar a mulher.Bebi o resto da aguardente:;- Vamos lá.No quartinho sujo a rapariga despiu-se e veio abra-çar-me desajeitada. O cabelo tinha um óleo de cheiroenjoativo.- Esteja quieta.E afastei-me, sentei-me na cama, sem tirar ochapéu. Ela acomodou-se, as pernas cruzadas, os bra-

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ços cruzados escondendo os peitos bambos. Curvada,mostrava apenas um pedaço da barriga engelhada eescura.- Anda na vida há muito tempo?- Nem por isso. Quatro anos.- An.Quatro anos. E ali estava aquela carcaça comidapelo treponema. Panos caídos no chão, o irrigador compermanganato. Na mesinha da cabeceira essências or-dinárias disfarçavam um cheiro forte de esperma. Tivenecessidade de fumar. Encontrei cigarros, mas procureifósforos em todos os bolsos, e o que achei foi o pacotecom as caixinhas de veludo - o relógio-pulseira e oanel.- Faz o obséquio de me arranjar uma caixa defósforos?80A mulher levantou-se. Escanzelada, coxas finas' com marcas de varizes, nádegas murchas. Chi! que pe-! leiro!- Muito obrigado.Acendi o cigarro. A mulher sentou-se junto deÍ mim e começou o seu trabalho de abraços, beijos, etc- Esteja quieta.Meti a mão no bolso, senti através do papel da; seda a macieza do veludo. A fita do relógio faria umacinta negra no braço roliço, um braço macio como ve-ludo. Os beijos começavam no pulso, onde a fita seenrolaria. O tique-taque seria do relógio ou do sanguecorrendo na artéria? Na escuridão do quintal os meusbeiços avançavam na pele, que se cobria de borbulhaspequenas como pontas de alfinetes.- Sempre foi assim magra?- Ah! nãol respondeu as mulher ocultando as pe-Iancas dos peitos com os cotovelos ossudos. Era cheia,gordinha.Acariciei com as pontas dos dedos o papel de seda.A mulher bocejava, caceteada. Que horas seriam? Tal-vez uma hora. A folhagem da mangueira estendia um#

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pretume no quintal. Os mais insignificantes rumorescresciam: o salto dos grilos nos canteiros, a queda dasfolhas, o trabalho das formigas. A luz vermelha dofarol espalhava-se pelo telhado. Um minuto depois nãoera vermelha, era branca- Usávamos precauções exces-sivas, receávamos que os nossos suspiros fossem ouvi-�dos nas casas fechadas.- Parece que isso rende pouco, hem? pergunteiabarcando com a vista a mesinha, o espelho rachado,o irrigador, as camisas sujas, toda a miséria do quarto.A mulher teve um gesto de esmorecimento:- E então! Não está vendo?- E. Não se da. Por que não arranja outra vida?Levantou os ombros, quase agastada:- Ora outra vida! Que vida? Sempre os mesmosconselhos. Daqui só para a cova.Realmente, coitada, dali era para a cova, com es-cala pelo hospital. Infelicidade. Eu é que me podia81conslderar um sujeito feliz. Repetia isto maquinal-mente, enquanto apalpava as caixinhas de veludo. Sol-tei-as com raiva, ergui-me, esfreguei as mã,os. O senti-do das palavras que me dançavam no espírito tornou-seclaro. Perfeitamente, um sujeito feliz. Que é que mefaltava? Livre. Se me viesse aquela desgra,ça depois docasamento? A sem-vergonha, admiradora de d. Merce-des, tinha feitio para cornear marido mais vigilanteque eu. - "D. Mercedes é linda, parece uma artista de'cinema." Sem-vergonha. Recuperava a minha liber-dade. Muito bem. Fazia tempo que não freqüextava�as mulheres. Pois estava em casa de uma. O pior é queso me restavam catorze mil-réis e uns niqueis. J di-�nheiro tinha voado, tinha-se esbagaçado, virara cami-sas de seda, po-de-arroz. Dos males o menor.- Vão-se os anéis, fiquem os dedos.Magnífica solução. Liberdade, liberdade completa.Pus-me a cantar estupidamente, batendo com os edos�na tábua da mesinha: Liberdade, liberdacle Abre as asas sobre nós...

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- Está indisposto? perguntou a mulher. E bom deitar-se, descansar. Vamos dormir. Dormir, que lembrança! - Não, adeus. Está aqui. Não lhe dou mai.a por � que não tenho, ouviu? Desculpe. A criatura recusou os dez mil-réis que Ihe apre � sentei: ; - Pode guardar. Nós não fizemos nada. Além dissc pagou a ceia. Eu estava com fome. - Não senhora. Receba. E o que tenho. - Muito obrigada. Já não lhe disse que não aceito ï Eu estava com fome. Encolerizei-me de verdade e despropositei: - Não me faça cometer um desatino. A senYzora E ; relógio para trabalhar de graça? A senhora tem obri gação de andar nua diante de mim? Duas horas d � chateação, de conversa mole! A senhora é relógio? A se � nhora não é relógio. 82A mulher recebeu o dinheiro, espantada. Julgou-medoido, suponho. Realmente as últimas palavras me ha-viam tornado furioso.* * *Marina me explicou muito direitinho que eu nãotinha razão. O que tinha era falta de confiança nela.Chorou, e fiquei meio lá, meio cá, propenso a acreditarque me havia enganado.- Posso obrigar uma pessoa a não olhar para mim?Posso furar os olhos do povo?Não senhora. A coisa era diferente. Eles tinham sido#pegados com a boca na botija, grelando, esquecidos domundo. Tinham ou não tinham? Sim senhor, mas semmalícia.- Posso furar os olhos do povo?Esta frase besta foi repetida muitas vezes, e, emfalta de coisa melhor, aceitei-a. Sem dúvida. As mulhe-res hoje não vivem como antigamente, escondidas, evi-tando os homens. Tudo é descoberto, cara a cara. Umapessoa topa outra. Se gostou, gostou : se não gostou, até

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logo. E eu de fato não tinha visto nada. As aparênciasmentem. A terra não é redonda? Esta prova da ino-cência de Marina me pareceu considerável. Tantos indi-vfduos condenados injustamente neste mundo ruim!O retirante que fora encontrado violando a filha dequatro anos - estava aí um exemplo. As vizinhas ti-nham visto o homem afastando as pernas da menina,todo o mundo pensava que ele era um monstro. Engano.Quem pode lá jurar que isto é assim ou assado? Pro-curei mesmo capacitar-me de que Julião Tavares nãoexistia. Julião Tavares era uma sensação. Uma sensaçãodesagradável, que eu pretendia afastar de minha casaquando me juntasse àquela sensação agradável que aliestava a choramigar.- Pois bem, minha filha, não vale a pena falarmais nisso. Enxugue os olhos. Se você diz que não foi,não foi. Acabou-se, não se discute. Está aqui uma lem-brancinha que eu lhe trouxe. Vamos ver se fica bonito.Marina .desembaraçou-se das lamúrias, passou auma alegria ruidosa. Muitos agradecimentos, uns beijos83ainda com a cara molhada. Estranhei aquela, mudançarepentina.- Nervoso. Quando casar, endireita.�Marina examinava o relógio e o anel: levantava amão, afa,stava-a, aproximava-a.- Uma beleza. Você tomando incômodo!Incômodo! Eu estava com o bolso pegando fogo Edevendo cinqüenta mil-réis ao Pimentel." - Não se preocupe. O que precisamos é acertar essahistória do casamento. Quando é isso?Respondeu vagamente. Andava bordando uma:guarnições, preparando umas almofadas. E faltavarrcertas coisas. Impacientei-me:- Se você só decidir quando tiver tudo . . . Assirrninguém acaba. Vamos marcar o dia. Valeu? Dê um �nota dos troços que faltam.- Talvez fosse melhor eu fazer a compra.- É. Talvez fosse, gaguejei aflito. Eu vou se �franco. Estou na pindaíba, ouviu? E necessário a gentE

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escolher mercadoria barata.Esperei que minha noiva se conformasse com a situação. Baixou a eabeça, e as partes do rosto que nãcestavam pintadas empalideceram:- Bém.- Dê cá a nota.- Para quê? Assim com essa pobreza. . .- Deixa disso, murmurei ressentido. Donde verri tanto luxo? Riqueza não tenho, mas para vivermo;com decência o que há chega. Dá cá a nota.Marina entregou-me lápis e papel, ditou coisa:absurdas, com um risinho ruim, e eu percebi nela a in �tenção perversa de me humilhar. Quando falou errtapetes e tapeçarias, não me contive:- Oh! Isso também é demais. Eu estava fazendcdas fraquezas forças, compreenda. Diga os objetos in �dispensáveis. Meu avô não possuía tapetes e foi uxrhomem feliz.- Naquele tempo era diferente, respondeu Marina.- Está bem.#84Náo escrevi as tapeçarias, terminei a nota e de �pedi-me bastante aperreado. Tudo aquilo estava forados eicos. Mais tarde encontrei Moisés:�- Olhe cá. 8eu tio me quererá vender estas por-carias a crédito?- Esse negócio de prestações é por preço horri-rel, disse Moisés. Era melhor voc comprar a dinheiro.�- Mas se não tenho! Fstou na quebradeira, Moi-aés. Mande as iasendas.Assim, acabei de encalacrar-me. Marina recebeu ospanos iriamente, insensivel ao sacrificio que eu iazia,aquela ingrata. Se eu não tivesse cataratas no enten-dimento, teria percebido logo que ela estava com a ca-beça virada. Virada para um sujeito que podia pagar-lhecamisas de seda, meiaa de seda. Que valiam os tecidosgrosseiros comprados ao velho Abraão, ou Salomão,o tio de Moisés? Nem olhou os pobres trapos, que üca-

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ram em cima de uma cadeira, esquecidos.Lembro-me perieitamente da cena muda que hou-ve naquela tarde. 8entada, a cabeça caída para o en-costo da cadeira, aa pernas cruzadas, os dedos cruzadosnum joelho, não me via, era como se estivesse só. A caraparada mostrava cansaço, enjbo. De longe em longebatia com o calcanhar no chão. A saia esticada exibiaa coxa, mas a minha atenção se concentrava nos bra-ços e nos dedos. Não trazia o relógio nem o anel queeu lhe tinha oferecido na véspera. Isto me desapon-tava, arrancava-me pragas e insultos, que eu engoliacom medo de praticar uma violóncia - "Ordinária!Arrasa-se a gente para ser agradável a uma peste as-sim, e o resultado é este : coice. Ordinária. Safada."Desejei falar novamente em Julião Tavares, mas teminão convencer-me de que me havia enganado. O rostóimóvel, como se eu niïo estivesse ali. As mãos ünascruzadas sobre o joelho. Ia escurecendo. Aquela horassu Ramalho, coberto de azeite, abreriaa os dias no�calor da usina elétrica, limando bmn8es. D. Adélia, nacozinha, enchio- se de fumaça, envenenava-se. Marinapermanecia imóvel. Que é que eu estava iazendo, na-quele constrangimento, olhando o pacote aberto, estri-pado, em cima de uma cadeira? As entreristas no quin-tal eram coisas muito antigas. O relógio e o anel ti-85nham sido oferecidos na véspera, mas eram antigostambém. E parecia-me que tinham sido dados a outrapessoa. Em que estaria pensando Marina? Agora eunão lhe via o rosto: as feições dilufam-se na escuridão.Sentia-me atordoado, com um nó na garganta. Se fa-lasse, diria injúrias. Uma ingratidão assim! Nâo espe-rava aquilo. Fatos e indivíduos desencontrados, velhose novos, fervilhavam-me na cabeça, misturavam-se. Nocop:ar da fazenda José Baía explicava-me as virtudesda oração da cabra preta. Sen Evaristo balançava,pendurado num galho de carrapateira. Berta me haviasegurado um braço e arrastado até a escada. E eu,agarrando-me ao corrimão: - "Madame, a senhoranão está vendo que não posso encostar-me a uma cria-

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tura da sua marca?" Tavares & Cia., negociantes desecos e molhados na Rua do Comércio, vestidos de brimde linho, viviam escondidos por detrás dos fardos eeram uns ratos. - "Escrevi muito atacando a primei-ra república, doutor. As minhas opiniões são conhe-cidas." Pobre da mulher da Rua da Lama. Rondandoas mesas, com fome, às onze horas da noite.- Bem. Parece que me vou embora, Marina. Boanoite.- Já vai? perguntou Marina sem se mexer.- Já.Saf resmungando:#- Escolher marido por dinheiro. Que miséria! Nãohá pior espécie de prostituição.* * *Porque foi que aquela criatura não procedeu comfranqueza? Devia ter-me chamado e dito: - "Luís, va-mos acabar com isto. Pensei que gostava de você, en-ganei-me, estou embeiçada por outro. Fica zangadocomigo?" E eu teria respondido: - "Não fico não, Ma-rina. Você havia de casar contra a vontade? Seria umdesastre. Adeus. Seja feliz." Era o que eu teria dito.Sentiria despeito, mas nenhuma desgraça teria acon-tecido. Lembrar-me-ia de Marina com vaidade, até comorgulho: - "Sim senhor, gostei de uma mulher de86i, caráter, mulher de cabelo na venta." Nã,o seria esta miséria, esta recordação de coisas mesquinhas. De todo aquele romance as particularida,des que melhor guardei na memória foram os montes de cisco, a água empapando a terra, o cheiro dos monturos, urubus nos galhos da mangueira farejando ratos em decomposição no lixo. Tão morno, tão chato! Nesse ambiente empestado Marina continuava a oferecer-se negaceando. Conservava-me preso, fazendo gatimanhos, esticando a saia estreita que lhe mostrava bem as coxas e as nádegas. - Marina, esse procedimento é incorreto. Porque

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não me larga? Dê o fora, desocupe o beco. - Está roendo courana. Coitadinho dele. Não tornamos a falar em casamento. Creio que ela procedeu assim por hábito. Ou talvez quisesse pa-� gar os objetos que tinham esgotado a minha fortuna. Mas ia-se distanciando, e eu não podia agarrá-la. As vezes ficava trombuda, aparentando gravidade. As dis- trações eram constantes, aquele modo de se descango- tar, abrir a boca e olhar por cima da cabeça da gente. Isto me amarrava e atenazava. Presumo que a intenção dela era desembaraçar-se de mim lentamente, ou desem- baraçar-se ela própria do costume que havia adquirido. A tarde eram aqueles maneios, mas pela manhã, quando eu saía para a repartição, plantava os coto- velos na janela e enxeria-sé com Julião Tavares. Uma vez por semana eu largava o serviço antes do meio-dia, s6 para pegá-los. Ao dobrar a Rua Augusta, avistava Juliã.o Tavares na prosa com ela, vermelho, soprando, derretendo-se, a roupa de brim com manchas de suor nos sovacos. Vendo-me, o cana,lha voltava as costas, porque estava intrigado comigo. Abri-me com d. Adé- lia, comentei aquele escândalo: - A senhora aprova o comportamento de sua filha? D. Adélia torceu as mãos, engoliu em seco e res· pondeu numa atrapalhação: - a mocidade.� Perdi os estribos: - Que mocidade! E sem-vergonheza. Não lhe in- vejo a sorte, d. Adélia. Sua filha acaba mal. 8? - Quem tem família está sujefto a tudo, seu Lufs. Ninguém deve dizer "Deste pão não comereí nem desta água beberei." - Não deve não, d. Adélia. E uma tristeza. A se- nhora lavando, engomando, cozinhando, e seu Rama- lho na quentura da usina elétrica, matando-se para sustentar os luxos daquela tonta. Sua filha não tem , coração.

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- Muito nova, dizia a mãe. Depois endirefta. Quan- do casar, endireíta. - E a senhora pensa que há no mundo um trouxa# que se engane com ela? Não casa não, d. Adélia. Aque- la dá com os burros na água. D. Adélia tinha lágrimas na voz e gaguejava fra- ses truncadas: ' - Entâo.. . Eu não sabia. Uma coisa apalavra- da... Não há rnotivo, seu Luís, acredite que não há motivo. Porque foi? Eu sentia prazer em atormentar a pobre da velha: - D. Adélia, olhe para a minha cara. A senhora me acha com jeito de corno? - Deus me livre, seu Lufs, exclamava a mulher recuando e arregalando os olhos. Eu havia de achar semelhante barbaridade? - Então, se nâo me acha com jeito de corno, nâo me faça perguntas dessa natureza. O meu desejo era desligar-me daquela gente, pas- sar calado, carrancudo, as mãos nos bolsos, o chapéu embicado. Esforçava-me por me dedicar às minhas ocupações cacetes: escrever elogios ao governo, ler ro- ;.' mances e arranjar uma opnião sobre eles. Não há ma-� çada pior. A princípio a gente lê por gosto. Mas quan- do aquilo se torna obrigação e é precíso o sujeito dizer se a coisa é boa ou nâo é e porque, não há livro que não seja um estrupfcio. ,. O que eu devia fazer era mudar de casa,. Esta é inconveniente, cheia de barulhos, parece mal-assom- brada. Os ratos não me deixavam fixar a atenção no trabalho. Eu pegava o papel, e eles corneçavam a dar uns gritinhos que me aperreavam. Tinham aberto um buraco no guarda-comidas, viviam lá dentro, numa chiadeira infernal. As vezes havia um cheiro de po- 88dridão. Vitória se enfrenesiava, andava para cima epara baixo, manejando um regador com água e creo-lina, molhando tudo. Mas o fedor resistia. Afinal íamos

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encontrar o armário dos livros transformado em cemi-tério de ratos. Os miseráveis escolhiam para sepulturaas obras que mais me agradavam. Antes, porém, fa-ziam um sarapatel feio na papelada. Mijavam-me r �literatura toda, comiam-me os sonetos inéditos. Eu nãopodia escrever.Os grilos não me incomodavam, escrevo perfeita-mente ouvindo os grilos. Havia uma orquestra deles,mas eu nem os notava. Saltavam-me em cima do pa-pel, eu dava-lhes piparotes, e eles desapareciam.Os ratos é que me roíam a paciência. Corrote,corrote - era como se roessem qualquer coisa dentrode mim. Lembrava-me do tempo em que andava pelasruas sentindo o cheiro das mulheres. Miudinhos, de-viam ser catitas. Corriam pela sala de jantar, vinhammexer nos meus chinelos, sem medo, sem vergonha.Levantava-me, abria as portas do guarda-comidas, sal-tavam três, quatro, que se escapuliam para os buracosdas paredes. Voltavam, assustados, ganhavam confian-ça, aproximavam-se, bonitinhos, os olhos vivos e asorelhas arrebitadas. O meio de obrigá-los ao silênciodurante uns minutos era espalhar na sala pedaços demiolo de pão, que eles devõravam depressá. Casa in-fame. E dr. Gouveia cobrava-me cento e vinte mil-réisde aluguel! De quando em quando o madeiramentobichado estalava.- Qualquer dia esta cumeeira vem abaixo, gemiaVitória. Porque é que o senhor não se muda?As noites eram medonhas. Os galos marcavam otempo, importunavam mais que os relógios. E os ratosnão descansavam. Enquanto alguns roíam a madeirado guarda-comidas, outros deviam estar lá dentro noarmário, devastando os manuscritos, morrendo na lite-ratura. Fogo nos livros imundos. Mas a casa enchia-se#de pulgas. O gato amava nos telhados, gato ordinário.Uns miados estridentes, indiscretos: - "Rasga, diabo!"Marina, quando se excitava, enrolava-se como umagata e miava. Miava baixinho, para não acordar a vizi-nhança.

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89 Irritava-me um som de armadores de rede. Em á noites de calor Marina dormia em rede, balançava-se. Os armadores rangiam. O que eu precisava era ler um romance fantástico, um romance besta, em que os homens e as mulheres fossem criações absurdas, nã,o andassem magoando-se, traindo-se. Histórias fáceis, sem almas complicadas. Infelizmente essas leituras já não me comovem. Os armadores continuavam a ranger. Provavel- mente estava deitada de costas, as pernas cafdas, os pés no chão dando o impulso para o balanço. Talvez estivesse nua por causa do calor. Seu Ramalho tossia. D. Adélia descansava na cama dura a armação fatigada. Ou não descansava. Era possfvel que fizesse contas, aperreada - tanto para o aluguel da casa, tanto para o mercado, tanto para a luz, tanto para a roupa. Vitó- ria também calculava, resmungando. Os números mis- turavam-se ao canto dos galos e ao chiar dos ratos. No princípio do mês iria revolver as pratas enterradas no ,.i . canteiro das alfaces, na raiz da mangueira, ao hé da cerca. Não havia agora ninguém lá. Bichos miúdos i apenas, grilos, formigas. Em que estaria pensando Marina? Provavelmente no outro. Um sujeito gordo, vermelho, suado, bexn fa- lante, de olhos abotoados. Seria possível que ela gos- tasse daquilo? Seu Ramalho tossia. Assaltava-me o desejo de ver Juliâo Tavares sujo de azeite e carvão, recebendo na cara as faíscas da fornalha. Porque não? Derret,endo as banhas. Inútil preguiçoso, discursador. Canalha. * * *Pouco a pouco nos fomos distanciando, um mês, depois éramos inimigos. A princípio houve brigas, re-conciliações desajeitadas, conversas azedas com d. Adé-lia. Tempo perdido. Marina estava realmente com acabeça virada para Julião Tavares. Comecei a passar

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trombudo pela calçada, remoendo a decepçâo, que pro-curei recalcar.- Mulheres não faltam.90Entrei a procurá-las, a observá-las. Porque só ha-! veria de servir aquela safadinha? Uma datilógrafa queme aparecia em toda a parte era bem engraçada. Boni-j tinha, com olhos verdes e rosto de santa. Eu ia dobraruma esquina - dava de cara com ela; tomava o bonde- ela era minha companheira de viagem. Depois de, ta.ntos acasos, a gente se cumprimentava, embora sem��saber que rumo cada um ia tomar. As vezes eu estavadistrafdo, pensando em coisas à-toa. Quando menos¡ esperava, surgiam os olhos de gato da datilógrafa.I Outras vezes chegava-me de supetão a idéia de que! ia vê-la. E acontecia acertar. Sumiu-se umas semanas.I Se não se tivesse sumido, é possível que a minha vidafosse hoje diferente. E talvez não fosse. Duas criatu-i�ras juntam-se um minuto, mas entre elas há umI obstáculo. Provavelmente a datilógrafa dos olhos ver-des, enquanto sorria para mim no bonde ou na es-quina, pensava numa espécie de Julião Tavares queiria visitá-la horas depois. Morava numa casa de quin-tal sujo, lia romances tolos, admirava uma quenga#semelhante a d. Mercedes. O pai era um pobre homem carregado de achaques e consumido pelo trabalho, a��mãe lavava roupa e queixava-se da carestia.Vitória é que tinha razão:- Cabritinha enxerida. Esfregando-se nos homens.O sem-vergonha metera-se na casa, ficava lá horas,intimo da família, unha com carne. Empurrava a por; ta, entrava como se aquilo fosse dele. Seu RamalhoI. nem se voltava: debruçado à janela, aperreado, fuman-do cachimbo, mordia os beiços, encolhia os ombros.Vinha conversar comigo, desabafava:- Não se case, seu Lufs. É o conselho que Ihe dou.Quando o intruso saía, começava a arenga:- Isto tem cabimento? Entra quenl quer.

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Marina defendia-se, malcriada:- Entrou porque deixaram. Eu tenho culpa? Nãomandei. Posso amarrar as pernas dos outros?- Falem baixo, pedia d. Adélia. Os vizinhos estãoy° ouvindo.�- Que vizinhos! grita.va seu Ramalho. Faço um. ' escândalo. Isto é pensão?�91Não fez o escándalo. E Julião Tavares continuoufreqüentar a casa, levando presentes às mulheres. fvezes jantava lá. Nesses dias um carregador trazia iarmazém de Tavares & Cia. um caixão de embrulholatas e garrafas. Da minha sala de jantar, eu ouvas conversas, as risadas, o barulho dos vidros e ditalheres. No fim a coisa descambava em discurso.Seu Ramalho não tomava parte nessas orgiaembicava o chapéu, acendia o cachimbo e saía. D. Rsália balançava a cabeça com um sorrisinho safado:- Feias coisas. Não dou um ano que isto chei �a alfazema.Antônia ia comentar a história com o guarda-civda esquinaPunha-me a passear pelo corredor, olhando as tqueiras dos sapatos, os tijolos gastos, o rodapé vermlho da parede úmida. Por ali passava um cano. Alg �mas porcas das juntas estavam mal apertadas e pcelas a água esguichava, formando poças no tijolo gastO cano estirava-se como uma corda grossa bem estca,da, uma corda muito comprida. Eu andava pa �cima e para baixo, o ouvido atento aos mais insignilcantes rumores da casa vizinha. Preocupava-me sobrtudo o silêncio. Enquanto estavam batendo nos copotagarelando, nem por isso. Mas quando se calavarvinham-me suposições que me davam tremuras. Prov,velmente d. Adélia tinha ido à cozinha preparar o cafE os dois aproveitavam o tempo. Sem dúvida. Imagnava o que eles faziam. Era aquilo, sem dúvida.- Que é que o senhor tem? perguntava-me VitóriSem dúvida. Imaginava perfeitamente. E não tra.va os olhos da parede manchada, do rodapé verm

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lho, do cano.- Um pedaço daquilo é arma terrivel. Arma tenvel, sim senhor, rebenta a cabeça de um homem. Já :tem visto.Mas aquele, comprido demais, pregado ao châ �não tinha jeito de arma: parecia uma corda estirad �Quando vinha o silêncio, detinha-me na sala de jaatar, contígua à outra sala onde a súcia se regalavpunha a mão atrás da orelha, continha a respiraçã �Furava com os olhos a cal que se descascava e dav92,'%'r'� � � %, ll ..: ;. , ,. '. , J / .. y .-y, ü:/ % .� �� � � � � � � ' . � � t i i ÏJ , " . ' , . . % .lr� Ï# _ ,' � � � . y.i� r . / ,I� _ .., 1. � �...'.' Ï� :· .. / r9, -� , - .. , , -. , . /. , . . , � , r . %

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// , . , . . . . i � � - i , �/ il - /n / · ,I / · r . ;' - - ' · ,· : `! / / `, 2r'- ' ,Ji� � � ,,í l, ' / / é � � � � - -- i / _ ' ; . .. r, . i/ �.i yil� .// , � ' �� !/! / I. l ,' i .'''''� l'. -�� � ��r ' · .J�� � �ao muro a aparência de uma cara sardenta, furava` o reboco, furava os tijolos. No outro lado a mesa numdesarranjo, restos de comida, pontas de cigarros, nó-doas na toalha, garrafas abertas, os dois juntos, pernacom perna. D. Adélia, encostada ao fogão, respiravafumaça, engelhava as pálpebras, gemia uma desculpa:- "E a mocidade." Estava invisível e escaldava os dedostorcendo o pano de café. Os dois, grudados, cochicha-vam, esfregavam-se. Alguns botões tinham saído doslugares. Afinal tudo era suposição. Talvez d. Adéliaestivesse ali, um pouco afastada, os olhos atentos,observando o que se passava por baixo da mesa. His-tória! Escondia-se e justificava aquela sem-vergonha:

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- "É a mocidade." Indecência. Atracados, os olhos ver-melhos, baba no canto da boca, uns bichos. Aproxi-mava-me da parede. Ali a poucos passos, tontos pelabebida, beijando-se. Conservavam-se em silêncio uminstante, mas isto me parecia tempo excessivo, sufi-ciente para todas as patifarias. Risos, a continuaçãode uma conversa interrompida. A voz precipitada deMarina era ininteligível; a de Julião Tavares perce-bia-se distintamente e causava-me arrepios: fazia-mepensar em gordura, em brancura, em moleza, em qual-quer coisa semelhante a toicinho cru. Pescoço enor-me, sem ossos, tudo banha. Quando o homem andavana rua, olhando para cima, risonho, aprumado, com° passinhos curtos, a papada tremia. Aquilo era bamboflác?do, devia ter a consistência de filhó. De repented. Adélia começava a falar. As mesmas queixas de sem-pre, lamentações tranqüilas. Nunca ouvi ninguém se:: lamentar assim. Palavras arrastadas, monótonas, umpequeno assobio no fim de cada pausa. Aquele sossegome irritava quase tanto como os derramamentos deJulião Tavares. Afastava-me, sacudia a cabeça para nãoi .. escutar a conversa, passeava pelo corredor, tossindo,batendo os pés, encaminhando o pensamento para coi-sas diversas, que se embaralhavam. Muitos crimes de-pois da revolução de 30. Valeria a pena escrever isto?Impossível, porque eu trabalhava em jornal do go-verno. Moisés se tinha ausentado: a polícia incomo-1 dava os rapazes que liam livros suspeitos e falavam�baixo. Seu Ivo furtara-me uns pratos. A menina dos#i", 94olhos agateados desaparecera. A mulher da Rua daLama, a que eu encontrara uma noite no Helvética,andava caipora, no hospital, com doença do mundo.A voz oleosa de Julião Tavares continuava a perso-guir-me. Era como se eu estivesse diante de um apa-relho de rádio, ouvindo língua estranha. Distancia-va-me. As palavras gordas iam comigo. Umas chega-vam completas, outras alteravam-se - ruídos confu-

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sos e vogais indistintas. Necessário dar cabo daquelavoz. Se o homem se calasse, as minhas apoquentaçõesdiminuiriam. A criatura faminta da Rua da I.ama, seuIvo, Moisés, a menina dos olhos agateados, tudo istome passava pelo espirito sem se fixar. Um tropel, de-pois nada. O que ficava era aquela gordura que sederramava pelas paredes. As vezes eu estava certo deque Julião Tavares se tinha calado, mas a voz nãodeixava de perseguir-me. Mexia-me, tossia. E olhavacom insisténcia o cano que se estirava ao pé da pa-rede, como uma corda.* * *Aos domingos iam ao cinema, juntos, de braçodado, bancando marido e mulher - ele com ar bicudoe saciado, ela bem vestida como uma boneca e todadengosa. Seda, veludo, peles caras, tanto ouro nas mãose no pescoço que era uma vergonha. O pessoal davizinhança povoava as janelas. D. Mercedes indigna-va-se, as filhas do Lobisomem mastravam as caras es-pantadas entre as rótulas. Antónia andava como lan-çadeira, ouvindo os comentários. As exclamações ia.mde um lado para outro. S6 queriam saber se aindaestava inteira. As opiniões variavam. Discutiam as mo-dificaçôes do tipo: a grossura da barriga, o modo deandar. Eu, com os ouvidos abertos, simulando indife-rença, escutava palavra aqui, palavra ali.- Que é que temos, Antónia?Antônia, bamboleando-se, cosia pedaços daquelesfuxicos.E os dois lá iam até o fim da rua, grudados, eladesconjuntando-se, enrolando-se, torcendo-se como umacobra de cipó. Dobravam a esquina, a rua ficava de-95serta. Reaparecfam. Com certeza tinham desistido dccinema. Quando se aproximavam, é que eu notavao engano: era outro casal. Julião Tavares e Marinatransformavam-se por momentos nas pessoas que vtnham da Praça Deodoro, mas eu continuava a vê-lo:longe, em diferentes lugares.As três filhas de Lobisomem apareciam juntas

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num feixe, confusão de cabelos arrepiados e olhos espantados. Antônia, colorida de vermelho e branco, safaà procura de machos. O vento gemia nos arames daNordeste, e os arames balançavam como cordas.Julfâo Tavares e Marina tinham entrado no Livra �mento e lá iam juntinhos, esfregando-se. Cadeiras nacalçada. Era necessário saltar no paralelepípedo. Urrpasso em falso, topada ná sarjeta, e os dois corpos sEchocavam. Diante da igreja, nos bancos da praça miú �da, gente esquisita: homens sujos, mulheres sem com �panhia. E crianças abandonadas pelos cantos. Cochi �chos, palavrões, descontentamento, frases incendiáriasNa calçada estreita da igreja as crianças abandonada;aplnhavam-se. Automóveis parados, choferes adormecidos, vagabundos, exposição de prostitutas á entrada d �Rua da Lama.D. Rosália conversava com d. Adélia. Picuinhasperffdias: - "Não se queixe não, minha negra. A senhora até não é das mafs caiporas. Tem quem lhe dÉtudo." D. Adélia sorria vexada, mexia os befços e nã.c#encontrava resposta.Mass algumas pernadas, e os dois estavam defrontEdo café. Julião Tavares passava como um pavão. E cpessoal se calava, arregalava os olhos para Marinaque não ligava importância a ninguém, ia fofa, cor�'` ' o vestido colado às nádegas, as unhas vermelhas, o;befços vermelhos, as sobrancelhas arrancadas a pinçaEntravam no cinema, Julião Tavares comprava ur�jornal. Na sala de espera toda a gente se voltava, corruma pergunta nos olhos. Julião Tavares sentava-sefingia ler os telegramas, vafdoso. - "Quem é?" Infor �mações em voz baixa, muita inveja. Sim senhor. QuEbicho de sorte! Marina fazia água na boca dos homensAgora estava escuro. Debruçado à janela, eu fumava sem ver a rua. Via seu Ivo, Pimentel, a datilógrafa96desaparecida. Onde estaria a datilógrafa? Bonitinha,com uns olhos de gato que acariciavam a gente.E amável, sem fumaças. Quando eu tirava o chapéu,

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respondia com um sorrisinho modesto. O meu desejoera sair de casa, ir procurá-la. Talvez estlvesse num cI-nema de arrabalde, com o namorado. Coitadinha. Pro-vavelmente nem pensava nisso. O dia inteiro batendono teclado com os dedos entorpecidos, e duzentos mil-réis por mês. Talvez tivesse irmãos pequenos. Inva-dia-me uma ternura, querla ligar-me àquela moça quevestia roupas ordinárias e andava à pressa, com umapasta debaixo do braço. Seriamos felizes. Ela trabalha-ria menos. Ao chegar a casa, fatigada, distrair-sis�papagueando com o Currupaco, meteria as mâos doídasno pêlo do gato. Eu escreveria um livro de contos, queela datilografaria nas horas vagas, interessando-se.Convidarfamos Pimentel e Moisés. Quando a corja esti-vesse na sala vizinha, bebendo, nós conversarfamossobre literatura. Moisés atacaria os llvros feitos comfrases bem arrumadas. A arte deveria estar ao alcancede todos, a serviço da polftica. - "Que diz, seu Pi-mentel?" Pimentel respõnderia estirando o belço. Es-crevendo, é capaz de demonstrar qualquer coisa. Dian-te da folha de papel, em mangas de camisa, trabalhacomo um carroceiro, os dedos grossos pegando a ca-neta com força. Depois fecha o cérebro e desenrugaa testa. - "Que diz, seu Pimentel r" Não diria nada.Para que um homem discutir, se não é obrigado a isto?Do outro lado da parede, risos, tinir de copos. Nóscontinuarfamos a conversa tranqüilamente.Onde andaria a datilógrafa dos olhas agateados?0 que é certo é que eu precisava mulher. Devia acabaraquela maluquelra e meter-me na farra. Se achasseuma criatura como Berta... O diabo da alemâ vol-tava-me sempre à lembrança, provavelmente por tersido a primeira mulher bonita e limpa a que me en-costei - "Senhor não quer entrar?" Tipo admirável,ariano puro. - "Madame, um sujeito como eu podeagarrar-se a uma pessoa da sua marca?" A ariana puratinha respondido numa lingua embrulhada.As vezes seu Ramalho puxava uma cadeira, sen-tava-se à porta. Eu olhava distraido os arames, que�

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97balançavam como cordas bambas. Esta comparaçã.o dosarames a cordas vinham-me ao espírito com ínsistência.Se pudesse trabalhar, escrever, lívrar-me daqueles ara-mes... Não podia: a literatura cambembe para os po-líticos da roça tinha parado. Além disso eu necessitavabeber muito, sentia preguiça, passava horas no café,esbagaçando dinheiro. O ordenado voava, as dividascresciam.Naquele momento, porém, não pensava em nadadisso. Pensava na miséria antiga e tinha a impressão#de que estava amarrado de cordas, sem poder mexer-me.No banco do jardim, com os sapatos gastos, as meiasreduzidas a canos, esperava ansíosamente um auxílloqualquer. Estudava as caras, numa agonia. A fome tri-turava-me a barriga, uma fome de muitos dias, enga-nada com pedaços de pão e cálices de aguardente. -"Cidadão, um nortista perseguido pela adversidade . . "Não distinguia bem a cara do cidadão: a cabeça incli-nava-se, a vista escurecia e pregava-se nos dedos dospés, que saíam pelos buracos dos sapatos. Se pudesse,se não estivesse policiado e exausto, mataria o cidadãopara roubar-lhe um níquel. Andava sujo, as calças comos fundilhos rotos e as bainhas esfiapadas, a gravata�feita uma corda. Apanhava os jornais esquecidos nosbancos e procurava os anúncios miúdos para ver sedescobria trabalho, mas as letras dançavam, fugiam.Imaginava fortunas absurdas: dinheiro achado na rua,um roubo que nunca tive coragem de praticar, o apare-cimento de um fazendeiro rico e atílado que me diria:- "Ninguém percebe o seu valor, rapaz. O que lhefalta é roupa. Roupa e trato. Vamos comer no restau-rante. E toca para S. Paulo, meter a cara na lavourado café: ' Qualquer serviço que me dessem seria bom.Oferecia-me para garçom de botequim, para revisor dejornal. Tinha uma inclinação maluca para os jornais.- "Queria que o senhor experimentasse, que me dei-xasse trabalhar uns dias de graça." Humilhações. De-,

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pois era a pensão de d. Aurora. A fome desapareceramas a falta de mulher atormentava me. As que pas-savam na rua tinham cheiros violentos, e eu andava�com as narinas muíto abertas, farejando-as, como umbode. No colchão duro da minha cama de ferro os98percevejos passeavam sobre os ossos amarelos que Da-goberto jogava lá.Tarde. Os meninos de d. Rosália corriam no cal-çamento e faziam algazarra doida. As rótulas da casade Loblsomem estavam cerradas. Encostado à janela,fumando, eu olhava a rua comprida e estreita. Dequando em quando vultos distantes assustavam-me.E os arames balançavam como cordas.O meu pensamento fugia dali, entrava no quartoescuro que ficava ao pé da escada. Dagoberto pegavauma vértebra, eu escancarava o compêndio. A caveiradesdentada era horrívcl, toda queimada de cigarros,o frontal cheio de buracos que serviam de cinzeiros.De que teria morrido o dono daquela caveira? MasDagoberto e os ossos desapareciam. Lá vinham d. Au-'ora e a neta marchando para o cinema. As minhas�mãos úmidas apertavam no bolso as notas, eu sorriaencolhido e silencioso, fazendo cálculos. D. Aurora,mole, tomava no bonde o lugar de dois passageiros,sacolejava-se com o movim.ento do carro, os caracóisbrancos agitavam-se. Parecia-me que, se ela não esti-vesse entrouxada, as banhas se despegariam do corpo.A neta emproava-se, a vaidade pingava do leque, dotorgnon, dos olhos. Na sala de projeção a gente nãovia a tela. Iioras horrivelmente cacetes, em que peda-ços de duas pessoas se encontravam. Só uns pedaços,os outros estavam longe. As pernas da moça eramfrias. Onde andariam o pensamento dela? Eu pensavanos bancos do passeio, nos sapatos sem sola, no galegodo frege, no chefe da revisão. Com os dedos esmore-cidos no joelho da pequena, lembrava-me também dacesta de ossos de Dagoberto e dizia mentalmente expressões téc.nicas. D. Aurora dormia.Com r.erteza àquela hora o Capitólio se esvaziava,

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uma expsição de roupas desfilavã nos corredores que�limitam a sala de espera. Os ventiladores parados,#grande calor. Marina, bamba, apertava os olhos, en-colhia-se no vestido machucado, bocejava; Juliáo Tavares abanava-se com o jornal.Que diabo fazia eu ali, debruçado à janela? Entrarva, ia para a sala de jantar, abria um livro, punha-mea ler marcando os períodos com o dedo. Quando ter.99minava um perfodo, baixa o dedo a um lugar onde eraprovável haver ponto final. Pa,recia-me que este exercf-cio me fixava a atençâo na leitura: às vezes conse-gnla compreender uma página inteira. Mas o dedo fati-gava-se, entorpecia, e os olhos desviavam-se das letras,pregavam-se na toalha, nas moscas adormecidas sobreas nódoas. Um relógio batia. Julião Tavares e Marinaausentes. Vitória falava alto na cozinha. Antônia em-balava o filho mais novo de d. Rosé,lia, e a criançamanhosa berrava com de.sespero. Felizmente ainda eracedo para os ratos roerem a madeira do guarda-co-midas. A vitrola de d. Mercedes começava a tocar,o galo de d. Adélia batia as asas. Alguma cantiga dis-tante, de bêbedo. Que fim teria levado seu Ivo, coi-tado? Apito de trem, provavelmente dez horas. O re-lógio da sala de jantar quase sempre parado. Passosna calçada. Quem seria? Muito tarde. O rolar dos vef-culos esmorecia. O gato já andava miando nos telha-aos. Os papéis, livros com as folhas intactas, esquec-� �dos nas cadeiras, causavam-me enjôo. Rumor de ferro-lho na casa vizinha, pisadas no corredor. Com certezatinham voltado. Engano. Era seu Ramalho que entrava,aperreado, ia arengar com a mulher por causa do pro-cedimento da filha. As vezes a discussã,o se arrastavadurante horas, mastiga,da e rancorosa. E Marina au-sente.- Isso tem jeito?D. Adélia chorava, assoava-se, gemfa desculpas sempé nem cabeça.* * *

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D. Rosália era casada, mas eu não conhecia o ma �rido dela, caixeiro-viajante que andava sempre no in �terior. Conhecia a voz. Quando ele chegava, depois deuma ausência de meses, a casa ficava em rebulfço. Umsujeito moreno e calvo rosnava um cumprimento e to �cava o chapéu ao passar na minha calçada. Presumcque era o marfdo de d. Rosália, mas não tenho a cer �teza. Fala mansa e abafada, muito diferente da quEeu ouvia da minha sala de jantar. Nunca vi o homexrcalvo e moreno entrar na casa à esquerda, mas comco aparecimento dele coincidia, com a presença do ma100Irido de d. Rosália, suponho que os dois eram umapessoa só.Antônia chegava à minha janela e, piscando osolhos, segredava: - "O homem está af." Mordia o beiçoe safa bamboleando-se, com um risinho canalha, aspernas grossas muito abertas exibindo marcas de fe-ridas. Para não descontentar a rapariga, eu sorria agra-decendo a comunicação, aperreado em excesso, porquenesses dias não me era possível dormir sossegado.D. Rosália, honesta, vivia excitada, e o marido vinhafeito um bode. Aquilo durava uma semana, mais deuma semana, até que o casal se acalmava e surgianova viagem.Nessa lua-de-mel, sempre renovada, as criançasmarchavam cedo para a cama. Antônia aprontava ocafé, ia correr a zõna. E o trabalho do amor começava,ruidoso, indiscreto. Antes da minha cabeçada com Ma-rina, eu não agüentava aquilo. Escrevia, lia, dormia,acordava, levantava-me, tornava a deitar-me. Não mecontinha: vestia-me, ia para a rua, meia-noite, de ma-#drugada. Por fim nem esperava tanto: quando Antâ-nia servia o café, aos muxoxos, derrubando louça, e aporta da frente se fechava com um baque, eu agar-rava o chapéu e saía. Agora não podia arredar-me dali.Parecia-me que, na minha ausência, Julião Tavarespenetraria na casa e levaria o que me restava: livros,

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papéi.s, a garrafa de aguardente. Sentia-me preso comoum cachorro acorrentado, como um urubu atraído pelacarniça. Se pudesse dormir . . .Durante o dia passava muitas vezes pela porta deMarina, desejando reconciliar-me com elã. Faltava-mecoragem, a vergonha baixava-me o rosto, esquentava-meas orelhas.Que me importava que Marina fosse de outro? Asmulheres não são de ninguém, não têm dono. SinhaGermana fora de Trajano Pereira de Aquino Cavalcantee Silva, só dele, mas há que tempo! Trajano possuíraescravos, prendera cabras no tronco. E os cangaceiros,vendo-o, varriam o chão com a aba do chapéu de couro.Tudo agora diferente. Sinha Germana nunca havia tras-tejado: ali no duro, as costas calejando a esfregar-se nocouro cru do leito de Trajano. - "Sinha Germana!"101E sinha Germana, doente ou com saúde, quisesse ounão quisesse, lá estava pronta, livre de desejos, tran-qüila, para o rápido amor dos brutos. Malfcia nenhuma.Como a cidade me afastara de meus avós! O amor paramim sempre fora uma coísa dolorosa, complicada e in-completa.Se Marina voltasse . . . Porque não? Se voltasse es-quecida inteiramente de Julião Tavares, serfamos felizes.Absurdo pretender que uma pessoa passe a vida comos olhos fechados e vá abri-los exatamente na hora emque aparecemos diante dela.Nu, deitado de costas na cama de ferro, esfrega-va-me no colchão estreito e coçava-me, mordido pelaspulgas. No quarto, escuro para a conta da Nordeste nãocrescer, a luz que havia era a do cigarro, que me faziadesviar os olhos de um lado para outro. Não podia dèi-xar de olhá,-la. As vezes me entorpecia, e a luz ia diml-nuindo, cobria-se de cinza. De repente despertava sobres-saltado: parecia-me que, se o cigarro se apagasse, algu-ma desgraça me sucederia. E entrava a fumar desespe-radamente, e soprava a cinza. Impossivel dormir. O quar-to de d. Rosália ficava paredes-meias com o meu. An-tônla tinha-me dito, em confidência: - "O homem

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chegou." Devia ser o sujeito calvo e moreno que tocavao chapu e rosnava um cumprimento. Agora se dis-�tinguiam palavras claras: - "Bichinha, gordinha..."Não sef como aquelas criaturas se podiam amar assimem voz alta, sem ligar importância à curiosidade dosvizinhos. D. Rosália resfolegava e tinha uns espasmoslongos terminados num ui! medonho que devfa ouvir-sena rua. Antes desse uivo prolongado o homem soltavapaavrões obscenos. Parecia-me que o meu quarto se�enchia de órgãos sexuais soltos, voando. A brasa doclgarro iluminava corpos atracados, gemendo: - "Bi-chinha, gordinha . . . " - "Ui! " Na escuridão a paredeestreita desaparecia. Estávamos os três na mesma peça,eu rebolando-me no colchão estrelto, picado de pulgas,respirando o cheiro de pano sujo e espérma, eles agar-rados, torcendo-se, espumando, mordendo-se. Aquiloiria prolongar-se por muitas horas. Depois o silêncio,o cansaço, a luz da madrugada, o sono, a parede, nosafastaríam. Se nos encontrássemos, farfamos um ligei-102 Este livro foi digitalizado por Paulo Sérgio Resende de Almeida, com aintenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais umamanifestação do pensamento humano..ro movimento de cabeça, resmungarfamos uma sau-dação apressada. D. Rosália, pendurando-se à janela,comentaria os modos suspeitos de Lobisomem e o pro·cedimento de Marina; o homem calvo e moreno pros-seguiria nas suas viagens pelo interior; eu redigiriainformações. "Em conformidade com o artigo tal doregulamento . . . "Não havia regulamento, nem janela, nem mostruá-rios. O que havia eram duas camas próximas. Umadelas rangia escandalosamente. - "Bichinha, taludi-nha..." Esses diminutivos contrastavam com a voz dohomem, grossa, arrastada. Além disso d. Rosália tinhabem quarenta anos e não éra taluda: era magra, cheiade ângulos, o carão chupado com duas olheiras fundasque no dia seguinte estariam medonhas. Silêncio dealguns minutos. Iam deixar-me dormir. Nada. Acendiaoutro cigarro e continuava com a vista presa na brasa,

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que se aproximava e afastava, em movimentos bruscos,como uma coisa viva mordida pelas pulgas. Aquela es-pécie de fogo-corredor me fascinavã. Se Marina vol-tasse . . . Porque nâo? A água lava tudo, as feridas ci-catrizam. Não valia a pena pensar no outro. JuliãoTavares era um caminho errãdo. Tantos caminhos errados na vida! Quem sabe lá escolher com segurançaos atalhos menos perigosos? A gente vai, vem, fazcurvas e ziguezagues, e dá topadas de arrancar asunhas. A água lava tudo, as feridas mais graves cica-trizam. Lembrava-me de uma queda antiga que metinha jogado à cama quinze dias. O cavalo se haviaempinado, eu caíra nas pedras do Ipanema, racharaa cabeça, esfolara a coxa. Porque era que uma feridadevia ser vergonhosa e outra nâo? Depois desse tom-bo, andara uns tempos bambo, tossindo, e nunca mehavia consolidado, nem com os exercfcios da caserna.- Ora af estão ferimentos que me deviam enver-gonhar, porque .me tornaram fraco. E nâo me enver-gonham.A brasa do cigarro chegava-me perto dos beiços,brilhava, faiscava, parecia mangar de mim na escuri-dão. Sinha Germana só tinha aberto os olhos diantedo velho Trajano. Sem dúvida. Mas eu queria ver8inha Germana agora, no cinema, ou correndo as ruas,103com uma pasta debaixo do braço, e mais tarde nescritório, batendo no teclado da máquina, ouvindo acantigas dos marmanjos. Hábitos diferentes, necessidades novas.Afinal porque seria que d. Rosália afirmava quMarina dera com os burros na água? Não havia ceiteza. E para que certeza?- Que me importa o que se passa nas casaalheias?O que se passava na cama de d. Rosália era quaspúblico, pelo menos estava no conhecimento dos viz �nhos. Fazia minutos que os doi.s se conservavam ensilêncio. Enjoados, provavelmente, separados, cada uncom o seu lençol. Engano. O barulho recomeçava: cc

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chichos que iam crescendo e se transformavam engritos, beijos compridos, chupões gorgolejados.Quando se debruçava à janela, fiscalizando a ruad. Rosália usava linguagem decente para censurar afilhas de Lobisomem, engulhava, cheia de pudores.Uma criança urinava na cama e chorava. Distinguia-se perfeitamente o som das gotas que batiam mchão.- Cala a boca! ordenava d. Rosália.O choro findava, mas as gotas continuavam a ca.ne a respiração do homem se arrastava, entrecortadaencatarroada, fungada, interrompida por um pigarrcuma respiração de quem se está estrangulando. Aquil �#me irritava tanto que eu apertava as mãos nos ouvidoe mordia as cobertas para não gritar. O resfolegar d �cachorro cansado atravessava-me as palmas das mãosrasgava-me os ouvidos, e os pingos de urina, penetrando a palha podre do colchão, caíam-me dentro da cabeça como martela.das. A criança recomeçava a chorar- Cala a boca.Soluços engolidos da criança e a respiraçâo arquejante do homem. Inútil apertar os ouvidos que sipegavam às palmas como ventosas. Estirava-me, espreguiçava-me. De costas, as mãos sobre o peito, experimentava relaxar os músculos e não pensar. Através da;pálpebras meio cerradas via apenas a brasa do cigarroque se cobria de cinza. Tranqüilo, tranqüilo, nenhun104pensamento. Sentia vontade de chorar, tinha um bolona garganta.- Tranqüilo, tranqüilo.Esta repetiçâo me exasperava e endoidecia. O cor-po em completo sossego, o cfgarro apagado. Não sabiaem que posição estavam as pernas. As mãos pesa-vam em cima do peito. Mas as pernas, onde estariamelas? Flutuava como um balão. O corpo quase adorme-cido e sem pernas. As idéias, porém, não me deixavam,idéias truncadas. Uma guerra na Europa. D. Mercedescomprara discos novos para a vitrola. Moisés se oculta-

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va, com medo da polícia. Um espúito puro, um espí-rito boiando, livre da matéria. As botinas de Lobiso-mem estavam cada vez mais cambadas. Onde andariaseu Ivo? Um espírito boiando. Como seria? O espíritode Deus era levado sobre as águas.As pulgas mordiam-me. Sem mudar de posição,esforçava-me por não fixar o pensamento em coisa n �nhuma. Quando vinha uma idéia, afastava-a, agarra-va-me a outra, que saía logo. Algumas voltavam cominsistência. As botinas de Lobisomem estavam cam-badas. O espírito de Deus boiava sobre as águas.Suava irio, mas prolongava a tortura que produ-ziam as picadas das pulgas e a imobllidade. Afinal aspicadas das pulgas e a imobilidade me distrairiam da-queles beijos e daqueles uivos. Outra vez o choro dacriança, novamente a voz de d. Rosáaia, arreliada:- Cala a boca, diabo!O pranto continuava. Pisadas de pés descalços,palmadas, muxicões. A criança choramigava baixirihoe aquietava-se. Novos passos abafados e um baque nacama, que rangia. O espírito de Deus boiava sobre aságuas. Como estariam as minhas pernas? Cruzadas ouafastadas? Seria mais fácil saber como estavam as per-nas de d. Rosália. O resfolegar prosseguia, resfolegar deporco fossando. Quantas horas aquilo duraria ainda?Seu Ivo, os dfscos da vitrola, Moisés, as botinas deLobisomem, tudo inútiL Inúteis as picadas das pulgas.O homem calvo e moreno, com os olhos abotoados,tungava e arquejava, a baba escorrendo no beiço eumedecendo a pele seca de d. Rosálla. Estava mesmoassim: os olhos arregalados, as ventas muito abertas,105a boca pingando gosma, a cara barbuda arranhando eescovando o couro de d. Rosália. E aquela respiraçãoestertorosa de bicho sufocado!Sentava-me e acendia um cigarro. Perdido o sacri-ffcio de permanecer imóvel, suportando as pulgas. Fe-chava as mãos com força. Estertor de bicho sufocado.O que eu desejava era apertar o pescoço do homemcalvo e moreno, apertá-lo até que ele enrijasse e

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esfriasse. Lutaria e estrobucharia a princípio, depoisseriam apenas convulsões, estremecimentos. Os meusdedos continuariam crispados, penetrando a carne quese imobilizaria, em silêncio. Este pensamento afugen-#tava os outros. O espírito de Deus deixava de boiarsobre as águas. Uma criatura morrendo e esfriando,os meus dedos entrando na carne silenciosa. Não melembrava de Julião Tavares. O que me aparecia namente era o sujeito calvo e moreno que eu presumiaser o marido de d. Rosália e talvez nem fosse. Enfimdesejava matar um homem que me roubava o sono.* * *Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixa-ram-se coisas insignificantes. Depois um esquecimentoquase completo. As minhas açõés surgem baralhadase esmorecidas, como se fossem de outra pessoa. Pensonelas com indiferença. Certos atos aparecem inexpli-cáveis. Até as feições das pessoas e os lugares por ondetransitei perdem a nitidez. Tudo aquilo era uma con-fusão, em que avultava a idéia de reaver Marina. Maisde um mês, quase dois meses em intimidade com ooutro. Procurei por todos os meios uma nova aproxi-macão. O despeito, a raiva que senti naqueles dias com-pridos, uns restos de amor próprio, tudo se sumiu.A tarde voltava a sentar-me na espreguiçadeira, abriaum livro. Marina ausente. Deitava-me, fingia dormir,ficava uma hora espiando o quintal vizinho atravésdas pestanas meio cerradas. As galinhas ciscavam,d. Adélia cantava no banheiro, a sombra da mangueiracrescia, além do muro a mulher que lava garrafas tra-balhava sacolejando-se num ritmo de batuque e o ho-mem triste enchia dornas. As vezes passos apressados106revelavam-me a presença de Marina. Eu tinha vergonhade abrir os olhos, e quando me decidia a acordar, jáela estava longe. Erguia-me irritado. Perdendo ali, comoum rapazinho, momentos preciosos! Esforçava-me poracreditar que os meus momentos eram preciosos.* * *

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A noite sentava-me à calçada e olhava a rua. SeuRamalho fazia o mesmo. Palavra de cá, palavra de lá- como falávamos baixo, era necessário aproximarmosas cadeiras. Depois do namoro da filha com JuliãoTavares, d. Adélia mostrava-me antipatia. A princípioera aquela subserviência, tremura, cumplicidade; masagora nem me via; enrugava a testa e grunhia "Humlhum!" com um modo insuportável. Seu Ramalho, quemeses atrás me olhava desconfiado, tornara-se um ex-celente amigo e dava-me conselhos.- Não se case, seu Luís. Casamento é buraco.O mundo está perdido.- Isso é por causa do cinema, seu Ramalho. O se-nhor nunca vai lá. E feliz. Nem calcula as sem-vergo-nhezas que há na tela.Seu Ramalho baixava a cabeça, pensativo:- Deve ser também por falta de religiã.o.- E. Deve ser também por isso.Realmente a minha vizinha desconhecia as igrejas,e isto não me preocupava.- O cinema é o diabo, seu Ramalho. O senhornão imagina. São uns beijos safados, lingua com lín-gua, nem lhe conto. Provavelmente as moças saem delá esquentadas.- Devem sair, concordava seu Ramalho. Por issohá tanta gente de rédea no pescoço.- Que rédea! Hoje não há rédea. Um sujeitocorre atrás de uma saia, pega a mulher, larga, pegaoutra, e é aquela garapa.- Safadeza.- E. Tudo é safadeza. Antigamente essa históriade honra era coisa séria. Mulher falada não tinha valia.- Nenhuma, exclamava seu Ramalho, cansado,tossindo. E eram vinganças medonhas.107#.- Vinganças horrorosas, bradava eu excitado.Nesse ponto da conversa contávamos sempre ama�série de casos que ilustravam as nossas afirmacwões.Animado, o cachimbo apertado entre os dentes, seu

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Ramalho assobiava as mesmas anedotas, empregandoo mesmo vocabulário. As vezes eu o interrompia:- O senhor já contou essa.Mas seu Ramalho continuava sem se perturbar:falava para dar prazer a si mesmo, não me escutava.Talvez quisesse enganar-se e convencer-se de queseria também capaz de praticar façanhas. As palavrassaíam-lhe sem variações. Era amigo da verdade e tinhaimaginaçã.o fraca. As minhas narrativas não se com-paravam às dele: sendo muito numerosas, eu esqueciafreqüentemente certas passagens, ficavam brechas, so-luções de continuidade. Além di.sso eram transmitidasem linguagem artificial, que o vizinho achava falsa eretocava.O conto sensacional de seu Ramalho era o seguinte.Um moleque de bagaceira tinha arrancado os tarnposda filha do senhor de engenho. Sabendo a patifaria,o senhor de engenho mandara amarrar o cabra e àboca da noite começara a furá-lo devagar, com pontade faca. De madrugada o paciente ainda bulia, :mastodo picado. Aí cortaram-lhe os testículos e meteram-lhos pela garganta, a punhal. Em seguida tiraram-lheos beiços. E afinal abriram-lhe a veia do pescoço, por-que vinha amanhecendo e era impossível continuar a,�tortura.- Medonho! Seu Ramalho. Que coisa extraordi-nária!Pedia-lhe explicações:- Porque foi que arrancaram os quibas antes dosbeiços?- Quem sabe?No dia seguinte reproduziria o mesmo caso : o mo-leque morreria lentamente, sem beiços, a boca enchu-maçada, por causa dos gritos. Eu desejava que seu�Ramalho acrescentasse alguma coisa à história. Masseu Ramalho só sabia aquilo e era incapaz de inventar.Por isso fazia pausas para recordar os fatos com segu-rança, batia na testa, interrogava-se a cada ins.tan°e e�108acusava-se quando avançava uma informação inveri-

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dica:- 1910. Minto, 1911. 1911, Manoel?As duas datas produziam-lhe verdadeira aflição.Nunca pôde fixar-se em nenhuma. Detinha-se em cál-culos, sempre se reportando a acontecimentos notáveisna sua pequena vida: o dia do casamento, a mudançapara a capital, o sarampo da filha. D. Adélia, com flo-res de laranjeira, sem aquele corpo mole e pesado, erabem bonita; na viagem, em estrada de ferro, o tremda Great Western descarnlara; Marina ficara cobertade calombos e vergões encarnados.Naquela noite seu Ramalho voltou a referir-se aesses três casos importantes. Nunca tinha viajado emestrada de ferro. Um descarrilamento para começar.- Não é esquisito? Todos os dias rodam trens, quechegam no horário. Pois justamente quando eu embar-co vem o desastre. Nâo parece que estava ali um diaboesperando por mim para botar as rodas fora dos trilhos?E descreveu a cena. Abandonados no campo, ospassageiros metiam os olhos pela.s vidraças, e só enxer-gavam uma luzinha distante. Fazia frio. Ele tirava opaletó e enrolava a menina, que esperneava no bancodo carro de segunda classe. Alguns trabalhadores, demalotes, dormiam. Uma velha gemia de quando emquando: - "Fechem essa janela." Uma rapariga chei-rosa encostava-se so.s homens. Ele acalentava a meni-#na, que se arreliava no banco imundo. E olhava des-confiado a rapariga, receando que ela se aproximassede d. Adélia. Mulher da vida, cheirosa, roçando-se noshomens, ali no carro pequeno, cheio de gente e quasesem luz. Apenas um lampião fumacento, de vidros tis-nados.D. Adélia, corada, risonha, de carnes enxutas, eraum mulherâo. O casamento foram quatro anos antesda viagem. Bonita de verdade. Com o véu, a grinalda deflores de laranjeira, dançara uma noite sem descansar.Olhava os moços cara a cara, e eles baixavam a cabeça.- Ah! Os marmanjos desanimavam.O sarampo de Marina tinha sido dez anos depois

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da viagem. Estivera vai não vai, batendo a caçoleta.109- Antes tivesse batido, que era inocente e nãodava desgosto a ninguém.A febre durara muitos dias. Mal respirava, magrf-nha como um palito, e por cima dos olhos vidradosas moscas passeavam. D. Adélia, bamba, arrastava oschinelos de trança que pareciam dois sapos. Estavamole, encolhida, machucada, e habituara-se a falarcochichando e a baixar a cabeça diante de toda agente.Seu Ramalho deu um suspiro e empurrou a his-tória do moleque da bagaceira, o que havia arrancadoos tampos da filha do patrão.- 1910 ou 1911?Nunca pude saber com precisão a data da mortedo moleque. Isto não tinha importância: não guardonúmeros, e a angustiada confusão de seu Ramalho irri-tava-me. Enquanto ele batia na testa, avançava erecuava, eu ia pouco a pouco distinguindo uma fzguranua e preta estirada nas pedras da rua. O ventre erauma pasta escura de carne retalhada; os membros, tor-cidos na agonia, estavam cobertos de buracos que es-guichavam sangue; a boca, sem beiços, mostrava den-tes acavalados e vermelhos, numa careta medonha; osolhos esbugalhados tornavam-se vermelhos. O negro ar-quejava. Corria sangue entre as frestas dos parallepf-�pedos e empoçava na sarjeta. A poça crescia, em poucotempo transformava-se num regato espumoso e ver-melho.- Af, ai! suspirou seu Ramalho. Vou chegando aoserviço.Ergueu-se como se levantasse da cadefra um pesoenorme. E, descontente, arfando, um ombro alto, outrobaixo, o cachimbo entre os dentes, lá se foi para a usf-na elétrica. Seguf-o com a vista até a esquina. Quandoele de.sceu da calçada, estremeci: pareceu-me que tinhasujado os sapatos no sangue.A vitrola de d. Mercedes rodava marchas de car-naval; d. Adélia abriu os postigos: - "Hum, hum!";

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a cabeça de d. Rosália tinha os cabelos vermelhos. An-tônia, pintada de vermelho, as pernas abertas, passoubamboleando-se. Das saias dela desprendeu-se um chei-ro forte de sangue. Provavelmente estava menstruada110e não se lavava. Os arames da Nordeste balançavamcomo cordas. Eu receava que os transuntes tropeças-�sem no moleque estendido no calçamento. Rangia osdentes e dizia baixinho:- Que estupidez! Que estupidez!Mas a figura continuava a escabujar no chão.Agora não era preta nem estava nua. Pouco a poucoia embranquecendo e engordando, o sangue estancava,as feridas saravam.Aquela hora Marina devia descansar, escanchadana rede, deitada de costas. Uma perna dava o impulsopara o balanço, e os armadores rangiam: ran, ran.#Provavelmente se estragava pensando num romancebesta. O ar refrescava-lhe as coxas suadas. E os arma-dores faziam: ran, ran.- Que estupidez! Que estupidez!A figura deitada no calçamento estava branca evestida de linho pardo, com manchas de suor nos sova-cos. Felizmente o sangue tinha desaparecido, já nãohavia a umidade pgajosa na sarjeta, nos cabelos de�d. Rosália, nas saias de Antônia. Em redor tudo calmo.Gente indo e vindo, crianças brincando, roncos de au-tomóveis. O hmem tinha os olhos esbugalhados�e estrebucha -~· rrn, nedaço de corda� � �amarrado n -�e duas mão �parecia que'o �seguravam :gordura bal ' " ó ; ' c o �� � � � � � � � �A vitrol ó o o o õ cor-� � � � � � � �entavaos armador ente. Os� �tado balan �

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rença. Eu o' ' . Sentar� � � �0 osene, encos-palmas, trc ó t O . ~� � � �va-me a ca o ~ r a cachaça. Mas� � � � �não tinham paraos olhos aa língua ' o ,°, o, 0 4ualquer coisa, dar� �abundo, que tinha an-sa, ó nos bancos dos passeios,° riam a sério. Viam um su- , pálido, tossindo por causa da� �Quar ° olhado a roupa. A luz do can-pletamen oscilava no balcã.o gorduroso. Iio-.' 113casa e os bilhetes errados e grosseiros de dr. Gouveia.Aporrinhações. Por causa de uma porcaria, algunsmeses de aluguel deste chiqueiro, coices. Pagar tudo,perfeitamente. Bastava reduzir um pouco as despesase voltar ao jornal. Marina que fosse para o diabo.Agarrava a papelada com entusiasmo de fogo depalha. Tempo perdido. Marina não ia para o diabo,E eu m° metia por estas ruas, passava horas no café,lesando, bebendo. Seria fácil regularizar a minha vida,liquidar as contas, botar tudo de novo nos trilhos. Un:pouco de boa vontade, método.- Outro conhaque.Método, perfeitamente, tudo se arranjaria. Sai �dali, ia olhar as vitrinas e os cartazes. Bacharel idiotaaperreando um bom inquilino. Porcaria.- Quem andou por este mundo roendo chifre nãcse engancha em bobagens. Porcaria. Tenho comidctoicinho com mais cabelo.Foi nesta disposição que li os cartazes da companhia lírica. Não dei importância a ela. Companhuvagabunda, com pessoal rouco, as cantoras canhõesprovavelmente. Encolhi os ombro.s: não sei músic:e tenho péssimo ouvido. As paredes dos cafés cobriam-se de retratos de artistas. Visa no papel, havi� �uma soprano bem regular.No dia da estréia notei rebuliço em casa de sei

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Ramalho. Pela manhã chegaram caixas e pacotes; maitarde bateu palmas uma criatura de preto, certamenta modista; o menino da sapataria apareceu muitavezes; depois seu Chico, o carteiro, que sabe cortacabelos de senhoras. Marina largava os sapatos e corri �pelo corredor, aos gritos com a mâe, que se mexia condificuldade. A noit2 um carro buzinou à porta, e M �rina saiu de casa, bem vestida como as senhoras d �#Ate.~ro quando vão às festas da Associação Comercia:Atravessou a calçada, sem se virar, e entrou na Limoasine, onde brilhava a cam.sa de Julião Tavares, so�o foco elétrico. Os pneumáticos rodaram süenciosos erdireçâo à Praça Deodoro, e na rua ficou um cheiresquisito de gasolina, po-de-arroz e perfumes.Cinco dias seguidos a mesma cena se reproduziuMarina atravessou a calçada com o andar seguro da112senhoras do Aterro, o peitilho engomado brilhou, o arse encheu de uma estranha mistura de gasolina e per-fumes.Não me continha: saía de casa e andava à toapor estas ruas, fatigando-me em caminhadas longas.O inverno tinha começado, quase sempre caía umachuvinha renitente. Ia sentar-me num ba,nco da Praçados Martírios, e os pingos que tombavam da folhagemdas árvores molhavam-me a cabeça descoberta e escal-dada. A sentinela cochilava no portâo do palácio. Aopé do morro, pedaços da igreja fechada apareciam en-tre os ramos. Um barulho horrível de motores e rodas.Automóveis a roncar. Todos queimavam gasolina mis-turada com perfume. Depois um rádio começava a tro-vejar óperas. O cheiro e o som tornavam-se insuportá �veis. Esforçava-me por esquecer o nariz e o ouvido,abria os olhos. A sentinela cochilava encostada aofuzil. Serviço pau. Um pobre homem dormindo em pé.Acordava, escancarava a boca, via com tédio as gradesdo jardim, o hall deserto, a escada ao fundo, vermelha.O tapete vermelho da escada me dava impressão desa-gradável. Podia ser de outra cor. As luzes do farol mn-

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davam de minuto a minuto, branca, vermelha, branca,vermelha. Porque nâo aparecia uma terceira cor? Aquiloera irritante, mas a farol me atraia. Pelo menos va-riava mais que a sentinela, tinha mais vida que a sen-tinela.Levantava-me, subia a Ladeira Santa Cruz, percor-ria ruas cheias de lama, entrava numa bodega, tentavaconversas com os vagabundos, bebia aguardente. Osvagabundos não tinham confiança em mim. Senta-vam-se, como eu, em caixões de querosene, encos-tavam-se ao balcão úmido e sujo, bebiam cachaça. Masestavam longe. As minhas palavras não tinham paraeles significação. Eu queria dizer qualquer coisa, dara entender que também era vagabundo, que tinha an-dado sem descanso, dormido nos bancos dos passeios,curtido fome. Não me tomariam a sério. Viam um su-jeito de modos corretos, pálido, tossindo por causa dachuva que lhe havia molhado a roupa. A luz do can-deeiro de petróleo oscilava no balcão gorduroso. Ho-113mens de camisa de meia exibiam músculos enormes, queme envergonhavam.Encolhia-me timidamente. Não simpatizavam co-migo. Eu estava ali como um repórter, colhendo im-pressões. Nenhuma simpatia.A literatura nos afastou: o que sei deles foi vistonos livros. Comovo-me lendo os sofrimentos alh2ios,penso nas minhas misérias passadas, nas viagens pelasfazendas, no sono curto à beira das estradas ou nosbancos dos jardins. Mas a fome desapareceu, os to.~-mentos são apenas recordações. Onde andariam os ou-tros vagabundos daquele tempo? Naturalmente a fomeantiga me enfraqueceu a memória. Lembro-me de vul-tos bisonhos que se arrastavam como bichos, remoendopragas. Que fim teriam levado? Mortos nos hospitais,nas cadeias, debaixo dos bondes, nos rolos sangrentosdas favelas. Alguns, raros, teriam conseguido, como eu,um emprego público, seriam parafusos insignificantes�na máquina do Estado e estariam visitando outras fa-#

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velas, desajeitados, ignorando tudo, olhando com assom-bro as pessoas e as coisas. Teriam as suas pequeninasalmas de parafusos fazendo voltas num lugar só.Ia sentar-me no canto mais escuro, longe do can-deeiro de petróleo, longe dos homens de camisas semmangas e das mulheres que arrastavam tamancos.Vagabundos? Nada. Estavam ali indivfduos de váriasprofissões. O moleque tisnado era engraxate. A mulherde chinelos, que trazia uma garrafa de querosene pen-durada no dedo por um cordel, tinha modos de p: ssoaséria, casada ou amigada. A rapariga pintada de brancoe vermelho, com marcas de feridas nos braços, deviaser uma ratufna como Antônia. O homem gordo erapedreiro, via-se pelas manchas de cal na roupa. Pe-dreiro com aquele corpo, que perigo! Um cochilo noandaime, pisada em falso na ponta da tábua, e no diaseguinte a famflia estaria de luto. O rapaz de cabeloscompridos que tocava violâo provavelmente não seocupava. No carnaval devia ser uma das figuras maisimportantes do cordão, e pela festa de Natal, na barcade terra e varas que ali estava armada em frente àbodega, seria um bicho na chegança, contramestre pelomenos, talvez almirante. Os meninos que brincavarn na114rua quando estiava, às carreiras e aos gritos, horas de-pois estariam no grupo escolar, os cotovelos na carteira, escutando, ou não escutando, a voz da profes-sora. Vinte anos depois seriam balizas no clube carna-valesco, contramestres de chegança, donas-de-casa sos-segadas que levariam, pendurada no fura-bolo, umagarrafa de querosene amarrada pelo gargalo, mendigoscomo aquele que ali estava com a perna estirada co-berta de trapos. Felizmente as moscas dormiam, e ohomem dos trapos não precisava mandar as almas cari-dosas para o reino do céu em voz alta, para a casado diabo em voz baixa. Agora não havia esmolas e ohomem da perna entrapada conversava com os outrosquae naturalmente. O dóno da bodega era triste. Cer-�tamente pensava no aluguel, na figura odiosa de umdr. Gouveia, no imposto e nas faturas dos gêneros.

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Talvez dentro de seis meses a bodega estivesse fechada,e ele, com os cacarecos, a mulher, de garrafa pendu-rada no dedo, e os filhos, que agora dançavam na ruamolhada, tivesse descido o morro pela banda do nortee vivesse à beira do Reginaldo, onde há febres, inun-dações e lixo. As crianças dançavam e cantavam na ruamolhada. Dentro de vinte anos as que gostassem detorcer-se no mesmo canto seriam parafusos. Ignora-riam o que existisse longe delas, mas conheceriam per-feitamente as coisas por onde passassem as suas roscas.Haveria dentro de vinte anos criaturas assim encaraco-ladas que, tendo corrido mundo, se resignam a vivernum fundo de quintal, olhando canteiros murchos, res-pirando podridões, desejando um pedaço de carne vi-ciada? Tudo ali era tão simples! Os bordões do violãogemiam, as gargalhadas sonoras da mulher pintadaenchiam a praça. A história que o homem acaboclado,de peito cabeludo e cicatrizes no rosto, contava aoengraxate devia ser interessante. Gestos expressivos,provavelmente façanhas de capueiras. Eu não compreen-dia a linguagem do narrador, as particularidades queprovocavam admiração perdiam-se. As gargalhadas damulher transformavam-se naquela viagem curta aosmeus ouvidos, chegavam-me frias, geladas. E a marchado carnaval entristecia nos bordões do pinho. Todasaquelas pessoas entendiam-se perfeitamente. Diferiam115, muito umas das outras, mas havia qualquer coisa queas aproximava, com certeza os remendos, a roupa suja,a imprevidência, a alegria, qualquer coisa. Eu é que#` não podia entendê-las. - "Sim senhor. Não senhor."' Entre elas não havia esse senhor que nos separava. Euera um sujeito de fala arrevesada e modos de parafuso.Aquele tipo acaboclado, que dizia histórias de capueirae se balançava num pé só, tinha bíceps enormes, pro-vavelmente estrangularia um homem sem grande es-forço. A rapariga pintada cheirava a pó-de-arroz. A pó-de-arroz e a gasolina. O rapaz de cabelos compridos' largava os sambas carnavalescos e punha-se a arrancar

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do pinho coisas absurdas que pareciam trechos de ópe-ras. Insuportável. Afinal que estava eu fazendo ali,sentado num caixão, diante de um copo vazio? Pro-curava fixar a atenção nas crianças que dançavam ecorriam, como dançavam Q corriam, na areia do Ca-valo-Morto, os meus companheiros, alunos de mestreAntônio Justino. Lá estava novamente entrando no pas-sado, torcendo-me como parafuso. - "Rei meu senhormandou dizer que fossem ao cemitério e trouxessemum osso de defunto." Quem tinha coragem? Os maisatrevidos chegavam até o muro de seu Honório, noüm da rua. Adiante o lugar era mal-assombrado e nin-guém se aventurava por lá. Eu queria gritar e espo-jar-me na areia como os outros. Mas meu pal estava' na esquina, conversando com Teotoninho Sabiá, e nãoconsentia que me aproximasse das crianças, certamentereceando que me corrompesse. Sempre brinquei só. Porisso cresci assim besta e mofino.Lembrava-me da minha chegada à vila. As ruasme causavam grande espanto: nunca havia imaginadoque as ruas fossem tão compridas e tão largas. Sai decasa e comecei a passear na calçada, olhando a janelade um sobra.dinho onde se debruçava um homem far-dado. Quis recolher-me e entrei pela primeira porta queencontrei. Na sala de jantar descobri uma mulheramamentando o filho, sentada numa esteira, com umgato de banda. Fiquei encabulado e perguntei: - "Dequem é csse gato?" A mulher respondeu: - "E meu."Saí e continuei a passear na calçada, mas sem prestaratençã,o ao homem de farda que se debruçava à janela116! do sobradinho. Arrisquei-me a entrar por outra porta.Na sala de jantar a mulher amamentava o filho. E ogato de banda. Tornei a perguntar: - "De quem é essegato?" A mulher respondeu : - "É meu." Mais tardecabo José da Luz me encontrou perdido e levou-me paracasa. Um menino grande e besta, muito diferente dosque brincavam junto à barca de terra e varas. Na escolade mestre Antônio Justino sentava-me afastado dos ou-tros, naturalmente para não me corromper.

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E ali estava encostado ao balcão, sem percebero que diziam, meio bêbedo, susceptivel e vaidoso, des-conffado como um bicho. Tudo aquilo me envergo-nhava: as conversas simples, a alegria, especfalmenteoa músculos do homem que falava ao engraxate. Mús-culos e mãos enormes, que esganarfam facilmente uminimigo. Levantava-me.- Insuportável.A mulher cheirava a gasolina. O violão tocavaóperas.- Insuportável.Os bfceps e as mãos do homem acaboclado eramrealmente enormes.* * *O último dia foi medonho. Quando a limozcsinerolou no paralelepfpedo e o peftilho de Julião Tavaresse sumfu, não me afastei da janela,. Fiquef mastigandoo cigarro e respirando aquela mistura desagradável queenchia a rua. Nenhum desejo de ir aos Martirios, subiro morro do Farol e escutar os tipos que se encostavamao bakão sujo e gorduroso da bodega. Apalpei a car-#tefra vazia, meti os dedos noa bolsos miúdos, vazios.Sentia-me incompleto e sem ãnimo de me aventurarsozimho por aquelas ruas esquisitas. sentia,-me iraco edesarmado.Porque serfa que o peftilho de Julião Tavares bri-lhava tanto e não se amarrotava? Julião Tavares licavaduro como um osso fraturado envolvido em gesso, tinhao espinhaço aprumado em demasia., olhava em lrente,oom segurança, a vinte passos. O peitilho da camisaabsolutamente chato.117A minha camisa estufa no peito, é um desastre.Quando caminho, a cabeça baixa, como a procurar df-nheiro perdido no châo, há sempre muito pano subin-do-me na barriga, machucando-se, e é necessário puxá-lo,ajeitá-lo, sujeitá-lo com o cinto, que se afrouxa. Estesmovimentos contínuos dão-me a aparência de um bo-neco desengonçado, uma criatura mordida pelas pulgas.

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A camisa sobe constantemente, não há meio de conser-vá-la estirada. Também não é possivel manter a es-pinha direita. O diabo tomba para a frente, e lá voumarchando como se fosse encostar as mãos no chão.Levanto-me. Sou um bfpede, é preciso ter a dignidadedos bípedes. Um cachorro como Julião Tavares andarempertigado, e eu curvar-me para a terra, como umbicho! Desentorto o espinhaço. Que é que me podeacontecer? Se dr. Gouveia passar por mim, finjo nãovê-lo. E impossfvel pagar o aluguel da casa. Não pago.Hei de furtar? Dr. Gouveia que se lixe. Se o governadore o secretário me encontrarem, é como se não encon-trassem. Não os enxergo, na rua sou um homem. Pen-sam que vou encolher-me, sorrir, o chapéu na mão, osombros derreados? Pensam? Estão enganados. Sou umbfpede. E isto, um bípede. Mas não é necessário quedr. Gouveia, o governador e o secretário apareçam narua. Aliás é bom que eu não veja essas criaturas exi-gentes. Se elas desejarem qualquer coisa de mim, fala-rão de longe: escreverão um bilhete ou darão umaordem para o jornal, ao Pimentel, pelo telefone. Man-darei um mês do aluguel da casa, se puder, ou escre-veref mais uma coluna que já escrevi centenas devezeç e reproduzo sempre, substituindo palavras. Esseshomens dominam-me sem mostrar o focinho: manifes-tam-se pelo arame, num pedaço de papel.Pensam que vou ficar assim curvado, nesta posi-ção que adquiri na carteira suja de mestre AntônioJustino, no banco do jardim, no tamborete da revisâo,na mesa da redação? Pensam? Procuro ajeitar as vér-tebras, mas as vértebras parecem soltas, presas apenaspor um fio, como as que Dagoberto vinha jogar emcima da minha cama. Resvalam pouco a pouco, e aocabo de vinte minutos de exercício penoso o meu cor-no toma a configuração de um arco. A cabeça pende,118como se procurasse dinheiro na calçada, e a camisataz pafos no peito. Inútil tentar abaixá-la e prendê-lana cintura Sobe sempre e me arrelia. Enquanto meaperreio com ela, não vejo as pessoas. Que será de

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mim para o futuro? Está claro que não inspiro confi-ança aos trabalhadores. Na sessão mais agitada seuRamalho gemerá, cansado e asmático, um ombro alto,outro baixo: - "Camarada Lufs da Silva, você escre-veu um artigo defendendo o imperialismo " - "Nãoescrevi não. Sou lá homem para defender o imperia-lismo?" - "Está aqui o original, é a sua letra", diráo rapaz de cabelos compridos, que toca violão. Moisésnão terá coragem de interceder por mim. Pimentelestará fuzilado. Lobisomem tomará uma nota lentanos papéis. Fico pensando em coisas assim, cabisbai-xo, a testa enrugada. Se dr. Gouveia, o governador, o#secretário, passarem por mim, não os verei: seguirei omeu caminho com dignidade curva, o espirito distan-te. Os conhecidos que me virem pensarão: - "Luís daSilva é um sujeito que não tem subserviéncia nenhu-ma." E os que me cumprimentarem e não obtiveremresposta dirão: - "Lufs da Silva é uma besta, umimbecil, um cretino." E bom não levantar a espinha.& a levantasse, teria de baixá-la de novo a cada pas.so, aflito e apressado, o chapéu na mão. Assim, nãovejo ninguém, caminho batendo nos transeuntes,enmlando palavras de desculpa, entrando no fqturocomo um parafuso. - "Camarada Luis da Silva, antesda revolução vocé elogiava os polfticoa safados do inte-rior, os prefeitoz ladrões. Onde está o dinheiro queesza gente lhe deu?" Sabia lá!Agora náo tinha dinheiro. De quando em quandometia a mão no bolzo. Desarmado e só, inteiramentedó, encoatado à janela, ouvindo o barulho dos autom �veis. Nenhum desejo de lugir daa pessoaa que Iam aoteatro. &ntia era vontade de ir também, sentar-meauma cadeira junto do palco, bater palmas, olhar oscamarotes. Faltavam-me cinco ou seis dias para rece-ber o ordenado. Agora não havia dinheiro, só resta-vam niqueis. Um empréstimo, sem dúvida, um emprés-timo. Mas quem me iria emprestar vinte mil-réis àqus-la hora?119

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D. Mercedes entrou no carro. A personagem off-cfal não a acompanhava. Tipo de responsabilidades,pai de famflia, ia ao teatro em companhia da mulhere das filhas. D. Mercedes sentava-se num camarotefronteiro, não bem fronteiro, um pouco de esguelha, enão se exibia demais.Se Pimentel aparecesse, talvez me arranjasse oingresso do jornal. Ou um empréstimo. Dentro de cin-co dias, seis quando muito, o Tesouro pingaria o orde-nado da gente.- Daqui a dez anos terei esse ordenado?E Julião Tavares? Julião Tavares estaria expatria-do, fuzilado ou enforcado. Enforcado, Julião Tavaresenforcado. Marina deixaria de pintar as unhas e iriatrabalhar no asilo das órfãs.Vinte mil-réis, vinte mil-réis. Lembrava-me dosleilões em que se cavava dinheiro para um santo, dian-te da igreja da vila. - "Vinte mil-réis me dão por estaprenda..." O olho de vidro de padre Inácio, imóvelna órbita escura, tinha uma dureza sinistra.Vinte mil-réis, vinte mil-réis. Não haveria leilões,não haveria santos, Marina trabalhando no asilo dasórfãs, Julião Tavares enforcado, padre Inácio mortomuitos anos antes.Aquela hora a platéia, começava a encher-se, umgaroto dizia pilhérias, as cantoras pintadas e empaca-viradas em mantos compridos entrãvam pela portinho-�la da caixa. Mantos pretos. Pareceu-me que os man-tos deveriam ser pretos, mas não pude saber porqueme vinha esta idéia.Vinte mil-réis, vinte mil-réis. Padre Inácio cravavanos ofertantes o olho duro e imóvel, andava em tornoda mesa com as mãos atrás das costas, todo preto.Um empréstimo, era o que me valia. Pensei nasminhas entrevistas com Marina, ,lta noite, no quin�tal. Certamente ela havia esquecido aquilo, mas eu melembrava de tudo muito berr. As formigas rendilha-�vam as folhas. Um grilo saltava no canteiro. A ilumi-nação da cidade chegava ali muito reduzida. Quasenão tfnhamos necessidade de roupa. - "Vamos entrar

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meu coração." As luzes se tinham apagado e eu con-seguira que Marina se despisse. Beijara-a da cabeça120#aos pés, sentira nos beiços os carocinhos que se forma-vam na pele macia. Ela curvava-se e cobria os peitoscom as mãos. Olhava-a e apenas distinguia uma som-bra que se torcia junto ao tronco da mangueira. Pare-cia-me que Marina estava vestida de preto.Ali, perto da raiz, ao pé da cerca, no canteiro dasalfaces, escondia-se a fortuna de Vitória. Aqueles pon-tos me eram familiares, seria capaz de encontrá-loscom os olhos fechados.Tempo sem fim à janela, olhando os automóveisque passavam para o teatro. Ainda passavam alguns.Bem. A representação ainda não tinha começado.Vinte mil-réis. Cinco ou seis dias depois pagaria,com juro de cento por cento. Daria cento por cento aovelho Abraão. Uma semana de prazo. Pimentel nãoaparecia, Moisés não aparscia.Com certeza a platéia estava quase cheia, serfadiffcil encontrar cadeiras perto da orquestra. - "LetraD, letra F" - "Acabaram-se. Só há de S para trás."Marina passeava o Lorgnon pelos camarotes, indiferen-te, e os rapazes abotoavam para ela os olhos gulosos.D. Mercedes mordia os beiços com despeito. JuliãoTavares, apertado no smokzng, parecia menos gordo.Dentro de alguns anos estaria enforcado, mas agoraestava bem vivo. E na camisa branca, sem uma dobra,as pedras dos botões faiscavam, no dedo grosso o rubifaiscava, a gola do srcoking faiscava.�Entrei desanimado, fui debruçar-me à janela dasala de jantar. Vitória pôs a xfcara, o açucareiro e agarrafa térmica sobre a mesa, foi deitar-se. Ouvi orumor da chave na fechadura, depois o resmungar deorações e o chocalhar das contas do rosário. Em segui-da houve silêncio. Os olhos de um gato passaram porcima do muro de d. Rosália. Currupaco mexeu-se nagaiola e bateu as asas.Uma açã.o indigna. Perfeitamente, ação indigna,

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mas não ousei confessar a mim mesmo qual era aação, qual era a indignidade. Horrivel fixar aquilo nopensamento. Não queria pensar.A casa devia estar cheia, o homem da bilheteriacochilava. Um olho, no palco, observava a platéia por121um buraco do pano de boca. Marina bocejava pordetrás do leque, Julião Tavares amolava-se.Afinal Vitória encontrava sempre moedas minhasno chão quando varria a casa. Depois elas apareciamem cima da mesa de jantar, nas cadeiras, debaixo dostravesseiros, mas antes tinham estado ocultas naqueleslugares que eu conhecia bem. Muito provável que avelha se enganasse nas contas e deixasse algumas láenterradas. Natural estarem ali vinte mil-réis meus.Indignei-me com a pobre e entrei a descompô-la men-talmente:- Ladra! Estar um homem em dificuldade porcausa de vinte mil-réis, uma porcaria, e saber que essamiserável esconde as economias dele, economias suadas,em buracos no chão.Decidi-me a ir pisar mais uma vez a terra queMarina havia pisado, encostar-me ao tronco da man-gueira, onde ela estivera nua, enrolada na escuridáo,torcendo-se e mordendo os braços para não gritar porcausa dos beijos que eu Ihe dava na barriga e nascoxas. Deci os degraus. Na porta do banheiro meti o�pé numa poça.Julião Tavares serfa enforcado. Marina trabalhai. �ria no asilo das órfãs.�Perfeitamente, era ali que ela havia tirado a cami-sa uma noite. Agora estava embrulhada em roupa com-prida, o largnon insultando as mulheres dos outroscamarotes. O pano já se tinha levantado, Ffgaro e#Almaviva se escondiam perto da janela de Rosina, odr. Bartholo fechava a porta. Marina olhava a cenacom fastio.Meses atrás estava ali no escuro, nua, o corpo todocoberto de carocinhos miúdos como pontas de alfine-

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tes. Inteiriçava-me, rangia os dentes, pisava com raivao chão que escondia o tesouro de Vitória. Debaixo dassolas dos meus sapatos, a alguns centfmetros de pro-fundidade, estavam as moedas que eu precisava. Ras-par um pouco a terra, mergulhar a mâo, agarrar umpunhado delas.Os olhos do gato brilharam outra vez em cima domuro de d. Rosália e ficaram parados, redondos e fos-forescentes. Pensef na datilógrafa que tinha desapare-122,. ; r/'- , .." :: .r !. r!lllrn%ly, r.,l! /'� � � �� � � �l i I·Z .�r , j`: í:,nll% r r,l·, ·:..:·;¡:,f·� � � � ��" %; :, ., ',I., ; ' . I· .. . = .p� � �� � � �,-.,, , ·,.,i' , '. MJIl ,¡ ;.ly � � � �� � � ������,. ,:·; ;,:.%.:...;!", ,,.ly, i , ,, i .,, . ::� � � ��� � � �� �.:,,I,.,l4/, / / , ,, ,f i , ,,� ��� � � �� �, 1 o J y y HI : :A; .,ráí� � �. _W ,· , l . , ·���. !'l, f br' : .' � �,i ' .' J %J: r . ,. . , : .:. J!� � � � � � � � � �· ;, ' /�;··. ·.., ,,,-. : , ,.;,:l Í i /�/. 1

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Mexia-me, e não podia desviar os olhos das duastochas que me espiavam por cima do muro. Sentia ostorrões se esfareL3rem sob as solas dos sapatos, quaseque ouvia o tilintar das moedas. Soaram pisadas perto.Encolhi-me e acocorei-me, receando que alguém tre-passe o muro e viesse reforçar a espionagem do gato.Estava cheio de atrapalhação e vergonha. Uma açãoindígna. Procurava afastar esta idéia pensando emMarína, imaginando-a vestida de preto. Um mantoimpalpável que eu atravessava com as mãos e com osbeiços.D. Basílio comparava a calúnia a um incêndio.Que fazia Marina, chateada, bocejando por detrás doleque? Só para se mostrar, só para mostrar a roupa eo orgnon. Amolada, sonolenta. Julião Tavares tam-�bem estava amolado e sonolento. D. Basílio descreviao incêndio, acompanhando com as mãos o movimentodas labaredas. A princfpio eram chamas fracas, e d.Basílio, para segui-las, baixava-se, estava quase encos-tando as mãos no soalho.As minhas mãos encontraram-se esgaravatando araiz da mangueira.- Que miséria! Que miséria!Repetia as palavras como um idiota, olhando asduas brasas imóveis em cima do muro. Mas os dedoscontinuavam a remexer os torrões. Cavando a terracom as unhas, como um gato!- Que miséría! Que miséria!Umidade pegajosa corría-me pelos braços, molha-va a camisa. Cinco dias, seis dias depois, receberia odinheiro no Tesouro. Recebería o dinheíro, trocariauma cédula por pratas e deitaria ali as moedas, comacréscimo de c°nto por cento. Se Moisés tivesse apa-recido. . . Moisés e Pimentel só apareciam quando nãoeram necessários. Restituiria as moedas com aumento.Considerei que Vitória não se assemelhava ao tio deMoisés. Vitória não tinha a paixão do lucro: apenasguardava enterrado o dinheiro ganho. E queria que,muito ou pouco, ele estivesse alí em segurança. A idéiade que ela ia surgir, resmungando, arrastando os pés

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124Ireumáticos, paralisou-me os dedos. Survreendi-me adizer e a repetir em voz baixa:- O dinheiro foi feito para circular.Com certeza Vitória estava dormindo, sonhando comos navios e com o Currupaco. Os olhos do gato¡ cresciam, cresciam extraordinariamente, iluminavam oI quintal todo.- Sim ou não. Sim ou nã.o. É estúpido, absoluta-mente estúpido. Afinal o dinheiro foi feito para cir-cular.Lembrei-me do jogo das crianças. Cara ou cunho?Se desse cara, sim; se desse cunho, não. Mergulhariaa mão na terra úmida, tiraria uma moeda, acenderiaum fósforo. Se saísse cunho, iria deitar-me, não torna-#ria a ver Marina. Tantos tormentos por causa de umafêmea! Dorrrir, dormir. Senti as pálpebras pesadas;�I julgo que, fascinado pelos olhos do gato, deixei a cabe-ça inclinar-se num cochilo. Se saisse cara, acabariadepressa com aquilo e iria ao teatro. Tinha quase acerteza de que, indo ao teatro, tudo se arranjaria:Marina voltaria para mim, Julião Tavares se achata-ria, se desagregaria, como um pouco de azeite emágua corrente. Meter a mâo na terra, agarrar um�dobrão do império, riscar um fósforo. Afastei a idéia.Que lembrança! Bastavam as luzes medonhas dos olhosdo gato. Acabar depressa, acabar depressa. Não eranenhum selvagerr para adotar recursos infantis. Sim�ou não. Um homem livre. Perfeitamente, um homemlivre de superstições. Comecei a cavar a terra comdesespero, ralando os dedos. Estava decidido. Pronto!Seis dias depois colocaria no buraco o duplo da quan-tia retirada.- Nenhuma ação indigna. Nenhuma açâo indigna.Continuei a aprofundar a cova com as unhas,' como um gato. Restituiria o dnheiro com acréscimo�' de cento por cento. Um roubo. Roubaria de mim mes-mo para aumentar o tesouro da ladra. Sobressaltei-me.

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Se as moedas nâo estivessem ali? Se a velha as tivessetransportado para outro lugar? Revolvi apressado aterra mole. Chegaria a tempo de alcancar o segundoato? Agora não sentia vergonha: indignava-me por¡ causa da hesitação que tinha consumido uma eterni-125dade. Um homem livre, sem dúvida. O que me incomo-dava era o gato. Se não fosse o receio de fazer baru-lho, atiraria um punhado de torrões no animal. Astochas desapareceriam, eu me tranqüillzaria.Até que enfim! Lá estavam elas debaixo dosdedos: dobrões enormes da colônia, peças menores emais fornidas, da monarquia, rodelas atuais, de deztostões e de dois mil-réis. Apanhei vinte destas últi-mas. Vinte mil-réis, ou mais, que Vitória não ia enter-rar níqueis. Fechei a cova, fui ao banheiro lavar asmãos e as moedas. Esfreguei-as, enxuguei-as com olenço. E fugi, atravessei a casa, abri a porta da rua.Alcançaria o fim do segundo ato ou o princípio do ter-ceiro. Lembrei-me de contar o dinheiro. Desdobrei olenço, examinei as moedas ainda úmidas. Vinte e seismil-réis em prata e duas libras esterlinas. Tomei ochapéu, desci a calçada. Como diabo teria Vitória con-seguido agadanhar aquele ouro?Pus-me a andar lentamente, a pressa havia desa-parecido. Atônito, o lenço com as pratas na mãoesquerda, as duas libras na direita, avizinhei-me dapraça. Tfnha repugnância de meter as moedas no bol-so. Olhei os dedos com atenção, cheirei-os. Fedor deazinhavre, terra nas unhas. Porcaria. Esfreguei asmâos no lenço molhado.Era necessário livrar-me do dinheiro. Pensei emvoltar, afrontar de novo os olhos do gato. Um engra-xate ambulante olhou-me os pós e bateu na caixa.Onde guardaria aquilo? Já perto do teatro parei, meioaliviado. Baixei-me e escondi num sapato as duaslibras esterlinas. As pratas ficaram envolvidas nolenço.* * *Introduzi perturbaçôes muito sérias numa vida

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Quando recebi o ordenado, obtive no café cinqüenta e dois mil-réis em prata. Vitória fazia inconscientemente ótimo negócio. Juro de cento por cento. fnoite juntei a isso as duas libras esterlinas etarde, quando houve silêncio, pus tudo sob a raiz dFmangueira. Infelizmente coloquei as moedas empilhadas, como num cartucho, posição diferente da que ti#126nham as que lá estavam. Suponho que isso provocoua desconfiança de Vitória.No dia segulnte paguel o salário dela. E via-a,como todos os meses, andar numa agltação, trocandoas cédulas, sumlndo-se à noite em viagens ao quintal.Mas a confusão, que ordinariamente dura três, quatrodias, desapareceu logo e foi substituída por um abati-mento que me causou grande mal-estar. Ouvia-a umanoite intelrinha contar dinheiro. Como já disse, elapensa em voz alta. O metal tilintava em cima da camada velha, e os números se acumulavam numa somainfindável, sempre emendada. As vezes a chave ran-gia na fechadura, a porta abria-se, tornava a fechar-se, abrla-se a da sala de jantar, os passos pesados des-ciam os degraus. Meia hora depoiz a mulher voltava,as moedas tiniam novamente em clma da cama. Outrosumiço. Eu adormecia, mas o ferrolho da sala de jan-tar e a fechadura do quarto próxlmo acordavam-me.O solilóquio e os tinidos tiravam-me o sono.Levantei-me cedo e encontrei Vltória muito velha emuito bamba. Delxava-se cair a um canto da cozinha,e era difícil arrancar-se dali. Interrompeu as idas aoquintal e abandonou as liões ao Currupaco. Notei�que as covas estavam revolvidas e mal cobertas.- Vitória!Tinha vergonha de chamá-la, temia que ela mepregasse os olhos brancos e cansados, cheios de aflição.- Vitória!Estava sentada, encolhlda, movendo em siléncioos belços moles. E quando levantava a cabeça, mostra-va no rosto uma suspeita agoniada. Se ela andava com

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as suas contas em ordem, certamente se espantava dehaver achado em um dos buracos vinte e seis mil-réisa mais; se as contas não estavam em regra, talvez sejulgasse roubada. E Vitória engolia em seco, olhava oCurrupaco ansiosa, numa interrogação desalentadaque fazia pena.- Vã descansar, Vitória. Vocã está doente.Não podia descansar, e a minha piedade era ind-til. Level o desespero a uma alma que vivia sossegada.Toda a segurança daquela vlda perdeu-se. A linha tra.çada do quarto à ralz da mangueira, uma linha curtaque os passos trôpegos e vagarosos percorriam naescuridão, fora de repente cortada.- Vá descansar, Vitória.Conselho inútil. O céu de Vitória, miudinho, ondegrilos e formigas moravam, tinha sido violado.* * *As visitas de Julião Tavares foram escasseando ea alegria ruidosa de Marina pouco a pouco desapare-ceu. Havia grande silëncio na casa vizinha. Seu Rama-lho estava contente.- Parece que a tonta criou juízo.- Acha? perguntei incrédulo.- É cá uma idéia. Essa gente moça desembestae faz tolice. É o sangue. Mas um dia acerta a pisada.D. Adélia andava com a cara comprida e o narizvermelho, assoando-se e soltando longos suspiros. Umatarde encontrei Marina engulhando junto ao mamoei-ro. Eram arrancos que a sacudiam toda, a faziam tor-cer-se agarrada ao tronco, o rosto contraído, muitodescorado. Não me viu e entrou em casa cuspindo.- Que terá ela? diss comigo sem atinar com o�motivo dos engulhos, da palidez e das cusparadas.- An! Estava feia. Bem. Estava feia demais,amarela, torcendo-se, enxugando na manga a caramolhada de suor, tentando vomitar, cuspindo à toana roupa.- ótimo!#Onde andavam os vestdos caros, as tintas, os tre-�

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meliques e os modos insolentes que escandalizavamd. Rosália? Estava ali com os músculos da cara repuxa-dos, fechando os olhos, agitando a cabeça como umalagartixa.- Que diabo tem ela?Desgovernada, cuspindo-se.- ótimo! Está muito bem assim. Que se lixe.* * rUma criatura dissipou as fumaças mesquinhas devingança, uma figura que apareceu numa esquina e128logo se sumiu, mas que me ficou profundamente gra-vada na cabeça.Como certos acontecimentos insignificantes to-mam vulto, perturbam a gente! Vamos andando semnada ver. O mundo é empastado e nevoento. Súbitouma coisa entre mil nos desperta a atenção e nosacompanha. Não sei se com os outros se dá o nlesmo.Comigo é assim. Caminho como um cego, não poderia dizer porque me desvio para aqui e para ali. F`re-qüentemente não me desvio - e são choques que medeixam atordoado: o pau do andaime derruba-me ochapéu, faz-me um calombo na testa; a calçada foge-me dos pés como se se tivesse encolhido de chofre; oautomóvel pára bruscamente a alguns centimetros demim, com um barulho de ferragem, um raspar violen-to de borracha na p_ edra e um berro do chofer. Entrona realidade cheio de vergonha, prometo corrigir-me.- "Perdão! Perdão!" digo às nessoas que me abalroam porque não me afastei dõ caminho. As pessoasvão para os seus negócios, nem se voltam, e eu me con-sidero um sujeito mal-educado. Tenho a imbressão deque estou cercado de inimigos, e como caminho deva-gar, noto que os outros têm demasiada pressa empisar-me os pés e bater-me nos calcanharès. Quantomais me vejo rodeado mais me isolo e entristeço. Que-ro recolher-me, afastar-me daqueles estranhos que nãocompreendo, ouvir o Currupaço, ler, escrever. A mul-tidão é hostil e terrivel. Raramente percebo qualquercoisa que se relacione comigo: um rosto bilioso e

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faminto de trabalhador sem emprego, um cochicho degente nova que deseja ir para a cama, um choro decriança perdida. As vezes isso me perturba, tira-me osono. Se o marido de d. Rosália está presente, é o quejá se sábe; se não está, penso nos namorados que seatracam junto a uma vitrina, em posição inc8moda,no operário que tem fome e ameaça o patrão, na crl-anca pue chora perdida, chamando a mamãezinha.Tudo foi visto ou ouvido de relance, talvez não tenhasido visto nem ouvido bem, mas avulta quando estou�só - e distingo perfeitamente a criança, o operáriofaminto, os namorados que desejam deitar-se. Eles melnvadiram por assim dizer violentamente. Não fiz ne-129nhum esforço para observar o que se passava na mul-tidão, ia de cabeça baixa, dando encontrões a torto ea direito nos transeuntes. De repente um grito, umapalavra amarga, um suspiro - e algumas figuras secriaram, foram bulir comigo na cama.A pessoa a que me referi surgiu de supetão entrea Rua lo de Março e a Rua do Comércio. Eu ia dobrara esquina, ela vinha em sentido contrário - e foi umacolisão feia. A aba do meu chapéu de palha bateu-lhena testa, provavelmente feriu-a.- Perdão! Perdão!Dei um passo para trás e distingui uma criaturaenorme que também havia recuado com o choque eestava diante de mim, a mã,o cobrindo um dos olhos,onde tinha batido a aba do chapéu. O olho descober-#to, os beiços contraídos, as rugãs da cara exprimiamespanto, raiva e dor. Encostei-me ã parede, deixei-apassar. Foi um tempo insignificante, mas deu paravé-la da cabeça aos pés. Um minuto depois tinha desa-parecido, a banda do rosto crispada, o olho disponi-vel voltado para mim com um brilho de ódio. O espa-ço que ocupara na calçada era atravessado por outroscorpos que iam e vinham, sem me despertar intersse.�Mas a imagem do primeiro corpo vivia em mim. Erauma mulher gorda, amarela, mal vestida, com uma

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barriga monstruosa. Não sei como podia andar na ruaconduzindo aquela gravidez que estava por dias. Asaia, esticada na irente, levantava-se exibindo pernassujas e inchadas. Os pés, sujos e inchados, cresciamdemais nos sapatos cheios de buracos. Com uma dasmãos segurava o braço de uma criança magra e páli-da, com a outra escondia o olho e um pedaço de cara.Eu encostava-me à parede, resmungando atrapalhado:- Perdão! Perdão!Findo o primeiro momento, aquela figura me pro-vocara cócegas na garganta e um desejo idiota de rir.A barriga disforme resistia ao pano desbotado quetentava contê-la e empinava-se, tinha uma formaagressiva. Estava ali um cidadão que, antes de nascer,ameaçava a gente. A mãe, que só tinha uma banda derosto, torcia-se por causa da pancada recebida e cra-130vava-me um olhar duro, a metade de um olhar irrita-do e cheio de sofrimento.¡ - Perdão! Perdão!Subitamente as cócegas desapareceram, a vontadede rir morreu, atentei vexado naquela barriga enormeque me provocava. A roupa esgarçava-se, desbotada,fuxicada e remendada; os pés, metidos à força nossapatos furados, pareciam bolos. Dera, recuando, umpuxão na criança, que se pusera a chorar. Nenhumapalavra, apenas uma interjeição de dor e raiva, gritorouco, perfeitamente selvagem. Com certeza já vinha; recebendo encontrões, e aquele, demasiado rude, Iheesgotara a paciência. Andar no meio da multidão, aosemboléus, com semelhante barriga! Só muita neces-sidade.Era o tipo da mulher de subúrbio mesquinho, quevarre a casa lava as panelas e prega os botões comas dores do parto. pare sozinha e se levanta três diasdepois, vai tratar da vida. Vida infeliz, vida porca. OI homem para um lado, ela para outro, arrastando a! filha pequena, a barriga deformada, estazando-se,i agüentando pancadas nos olhos. Ta,lvez estivesse navéspera de ter menino, talvez estivesse no dia, talvez

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já sentisse as entranhas se contraírem. Rebolar-se-Iadentro de algumas horas na cama dura, a carne can-sada se rasgaria, os dentes morderiam as cobertasremendadaz. E o macho ausente, ninguém para ir cha-mar a parteira dos pobres. Uma vizinha tomaria con-' ta da casa, faria o fogo, prepararia tisanas, aos repe-' lões, rosnando:- Porcaria. Que gentel' Depois ofereceria consolaçóes:- Tenha paciência. Isso vai logo. Faça força.A mulher tinha desaparecido, a banda do rosto; passara cravando-me o olho carregado de ódio. Eu nãosentia desejo de rir. Na calçada um ventre extraordi-nário ia inchando, ventre que tomava proporções ian-tásticas. Os transeuntes atravessavam aquela barri-! ga transparente, às vezes paravam dentro dela, e istoera absurdo, dava-me a idéia de gestações extrava-, gantes.131Agora havfa duas imagens distintas: uma barriga#que se alargava pela cidade e a mulher que mostravaapenas um pedaço de cara. Nessa parte vfsfvel, endu-recida pelo sofrimento, pouco a pouco se esboçavamas feições de Marfna. Os cabelos, que a mulher tinhagrisalhos, tornavam-se louros. A bochecha era pfnta-da, a metade da boca excessivamente vermelha, o olhoúnico muito azul.Eu fervfa de raiva. Se tivesse encontrado JuliãoTavares naquele dia, um de nós terfa ficado estiradona rua.* * *Alguns dias depois achava-me no banheiro, nu,fumando, fantasiando maluqueira, o que sempre me�acontece. Fico assim duas horas, sentado no cimento.Tomo uma xfcara de café às seis horas e entro nobanheiro. Sajo às oito, depofs das oito. Visto-me àpressa e corro para a repartição. Enquanto estoufumando, nu, as pernas estiradas, dão-se grandes revo-luções na minha vida. Faço um livro, livro notável,

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um romance. Os jornais gritam, uns me atacam,outros me defendem. O diretor olha-me com raiva,mas sei perfeitamente que aquilo é ciúme e não meincomodo. Vou crescer muito. Quando o homem merepreender por causa da informação errada, compre-enderei que se zanga porque o meu livro é comentadonas cidades grandes. E ouvirei as censuras resignado.Um sujeito me dirá:- Meus parabéns, seu Silva. O senhor escreveuuma obra excelente. Está aqui a opinião dos crfticos.- Muito obrigado, doutor.Abro a torneira, molho os pés. As vezes passo umasemana compondo esse livro que vai ter grande êxftoe acaba traduzfdo em lfnguas distantes. Mas isto meenerva. Ando no mundo da lua. Quando saio de casa.não vejo os conhecidos. Chego atrasado à repartição.Escrevo omitindo palavras, e se alguém me fala, acon-tece-me responder verdadeiros contra-sensos. Para limi-tar-me às práticas ordinárias, necessito esforço enor-me, e is.to é doloroso. Nâo consfgo voltar a ser o Lufs132da 8üva de todos os dias. Olham-me surpreendidos:naturalinente digo tolices, sinto que tenho um ar apa-lermado. Tento reprimir essas crises de megalomania,luto desesperadamente para afastá-las. Nã,o me dãoprazer: excitam-me e abatem-me. Felizmente passam meses sem que isto me apareça.�De ordinário fico no banheiro, sentado, sem pen-sar, ou pensando em muftas coisas diversas uma dasoutras, com os pés na água, fumando, perfeftamenteLufs da Silva. Uma formiga que surge traz-me quanti-dade enorme de recordações, tudo quanto li em alma-naques sobre os insetos. Agora não há nenhum livrotraduzido, nenhuma vafdade. Olho a formiga. Quandoela vai entrar no formiguefro, trago-a para perto demim, faço no chão um circulo com o dedo molhado,deixo-a numa ilha, sem poder escapulir-se. Observo-ae penso nos costumes dela, que vi nos alinanaques.O banhefro da casa de seu Ramalho é junto, sepa.rado do meu por uma parede estreita. Sentado no

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cimento, brincando com a formfga ou pensando nolivro, distingo as pessoas que se banham lá. SeuRamalho chega tossindo, escarra e bate a porta c;omforça. Molha-se com três baldes de água e nunca seesfrega. Bate a porta de novo, pronto. Aquilo dura umminuto. D. Adélia. vem docerente, lava-se docemente�e canta baixinho: - "Bendito, louvado seja..." Ma-rina entra com um estouvamento ruidoso. Entrava.Agora está reservada e silenciosa, mas o ano passadosurgia como um pé-de-vento e despia-se às arranca-das, falando alto. Se os botões não safam logo das#casas, dava um repelão na roupa e largava uma prarga: - "Com os diabosl" Lá se iam os botões, lá serasgava o pano. Notavam-se todas as minudêncfas dobanho comprido. (astava dez minutcs escovando os� �dentes. Pancadas de água no citnento e o chiar daescova, interrompido por palavras soltas, que nãotinham sentido. Em seguida mijava. Eu continha arespiração e aguçava o ouvido para aquela mijada lon-ga que me tornava Marina precfosa. Mesmo depois queela brigou comigo, nunca deixei de esperar aquelemomento e dedicar a ele uma atenção concentrada.Quando Marina se desnudou junto de mim, não egpe-133rimentei prazer muito grande. Aquilo vefo de supetão,atordoou-me. E a minha amiga opôs uma resistêncfadesarrazoada: cerrava as coxas, curvava-se, cobria ospeitos com as mãos, e não havia meio de estar quieta.Agora arrancava os botões, praguejava, escovava osdentes, mijava. Abria-se a torneira: rumor de água,uns gritinhos, resfolegar de animal novo. A torneirase fechava - e era uma esfregação interminável.- Para casa, Marina, bradava d. Adélia. Acabecom isso. Você gasta o sabão todo.Marina dava um muxoxo, e o movfmento das mãosfrfccionando a pele macia continuava.- Baixe o fogo, Marina. Venha para casa.A espuma entrando nos sovacos e nas virilhas faziaum gluglu que me excitava extraordinariamente. Pare-

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cia que Marina queria esfolar-se. Imaginava-a em car-ne viva, toda vermelha. Imaginava-a branquinha, co-berta de uma pasta de sabão que se rachava, os cabe-los alvos, como uma velha Essas duas imagens medavam muito prazer. Queria que aparecesse a JuliãoTavares assim encarnada e pingando sangue, ouencarquilhada e decrépita, os pêlos do ventre comoum capulho de algodão. A torneira se abria. Lá esta-va Marina outra vez nova e fresca, enchendo a bocae atirando bochechos nas paredes, resfolegando, sape-cando frases desconexas.Nunca tive o desejo de vê-la nesse estado. No altoda parede há um tijolo deslocado que se pode retirarfacilmente. Pondo um caixão na beira do tanque, ser-me-ia possível afastar o tfjolo e distinguir o corpo deMarina. A experiência não me tentou. O esforço neces-sário para manter-me em equilíbrio reduzir-me-ia aatenção. E eu não queria vê-la despida sem o consen-timento dela. Contentava-me com aqueles rumores, epercebia-a como se a visse Poderfa daqui palestrarcom ela no tempo em que éramos amigos. Terfamosa impressão de que nos banhávamos juntos. Mas aminha amiga ficaria limitada pelas conveniências,armando frases, procurando ser amável. O que meencantava eam aqueles modos de garota estabanada,�as palavras soltas à toa, pedaços de cantigas, o glugluda espuma e a mijada sonora.134Pois tudo isso desapareceu. Fazia algum tempoque os rumores familiares se vinham atenuando, mas¡ naquele dia tudo se tornou claro, a suspeita que tivej na rua se confirmou. Marina entrou no banheiro eesteve uns minutos em silêncio, despindo-se com lenti-dão. Os movimentos dela eram tão vagarosos que euos percebia a custo. Era preciso adivinhá-los. Assoou-se e lavou as mãos na torneira.- Virgem Nossa Senhora!E punha-se a cusp:r. Aquela queixa, mostrava umdesengano enorme. Pareceu-me que o mundo se tinhadespovoado e Marina estava completamente só. Senti

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o desejo de bater na parede e chamá-la:- Marina, que foi que aconteceu?#Queria que ela me iludisse, jurasse que não haviaacontecido nada. Mordi as mãos para nâo gritar.Afastei-me, como um bêbedo. Mas o ventre disfor-me continuava a perseguir-me. Era-me necessá.riofalar, ir ao café, libertar-me da obsessão, do ódio queme enchia.Com certeza não precisava de mim. Precisava deJulião Tavares, que tinha levado sumiço. As cuspara-das sucediam-se. Marina assoava-se e lavava os ddos.�Os soluços subiam e desciam. Aquele muco que a águalevava, as lágrimas, a saliva abundante, aquela misé-ria, aquele abandono, tudo me atraía.- Valha-me Nossa Senhora.Isto me cortava o coração e aumentava o meuódio a Julião Tavares. Vi-o claramente como o vi natarde em que o surpreendi à minha janela, derreten-do-se para Marina. Atrapalhado, procurara tapear-mecom adulações. Eu resmungava pragas obscenas e anda-va de uma parede a outra, sentia desejo imenso de¡ fugir, pensava na fazenda, em Camilo Pereira da Sil-va, em Amaro vaqueiro e nas cobras, especialmentei numa que se enrolara no pescoço do welho Trajano.j - Que vai ser de mim, santo Deus?O escorrego de Marina era evidente. Lembrei-medo meu despeito, de palavras duras jogadas a d. Adé-lia meses antes: - "A senhora pensa que ela endirei-ta? Perca as esperanças. Aquela dá com os burros naÍ água." Estava agora ali, enojada, cuspindo, apalpan-135do a barriga e os peitos intumescidos. E o prantosubia e descia, era às vezes um lamento de criançafatigada, outras vezes os soluços rebentavam, numarajada de gritos histéricos e bestiais. Olharia realmen-te a barriga e os peitos que se avolumavam? Impos-sfvel imaginar qualquer coisa sobre os movimentosdela. Ciemidos e choro. Nenhum outro som. Desesperoestúpido, revolta de bicho logrado. Nem palavras sol-

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tas, nem cantigas, nem passos no cimento molhado,nem água correndo da torneira. Dias antes esses rumo-res combinados me davam uma imagem quase perfei-ta de Marina. Sabia quando ela se baixava, quando selevantava, quando enxugava os cabelos, quando aca-riciava com espuma o umbigo, os bicos dos peitos, asvirilhas. Ciritinhos, respiração diferente da respiraçãoordinária. Agora estava provavelmente imóvel. Essesgestos não lhe dariam nenhum pra,zer. As cantigastruncadas não lhe dariam nenhum prazer. Talvez nemolhasse a barriga e os peitos, que dofam e se deforma-vam. Todo o corpo era um instrumento de desgosto.O pé da barriga endurecido, uma coisa apertando-lhea cabeça como esses aparelhos de suplício que usamno sertão, feitos de pau e corda. Os pauzinhos tor-ciam-se, a corda penetrava na carne, os ossos estala-vam, os miolos queimavam. Eu sentia raiva, aborreci-mento, piedade e nojo. E cuspia, como Marina. Aque-la imobilidade e aquele choro me afligiam. Porque nãose molhava, não passava uma hora debaixo da tornei-ra, esfregando-se, ensaboando-se? F'ungava; provavel-mente as lágrimas se misturavam com restos de po-de-arroz e poeira; o suor lustrava-lhe a pele e produziacoceiras nos sovacos; a moleza do sono amorrinhava-Ihe o corpo. Estava suja e feia, precisando banho.Houve umas pancadas na porta, o choro desapa-receu. O meu banheiro tornou-se vazio. Agucei o ouvi-do, arregacei as narinas: apenas o cheiro desagradá-vel da água que escapava da sarjeta e se estagnavanuma poça, a parolagem do Currupaco, que arengavacom outros Currupacos invisíveis. Novas pancadas naporta e a voz de d. Adélia:- Marina!#136Marina abriu a torneira e entrou a lavar-se, can-tando uma cantiga rouca, estrangulada, medonha.Mas as pancadas e a voz cresciam.- Marina, abra a porta. Abra a porta, minhafilha.

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Uma súplica zangada e arquejante que sxigia gran-de esforço. Marina devia estar quase limpa. O suor, Ocatarro, a poeira, as lágrimas e as tintas rolavam noenxurro, e Marina era outra, vermelha, o espinhaçolevantado, como um ano antes, quando havia surgidoentre os canteiros, empinando-se, os cabelos pegandofogo. As visões do sono tinham-se dissipado.- Marina!Marina continuava a cantar, a gritar, em gra,ndeespalhafato. Para que serviam as queixas e as expro-brações de d. Adélia? A água corria e se desperdiçava,abafando a voz aguda e trêmula. E Marina enxugava-se cantando com raiva.- Abra, meu coração.O ferrolho correu, a porta se abriu de chofre etornou a fechar-se. Estavam as duas cara a cara, numsilêncio de atrapalhação. Sentei-me à beira do tanque,olhei o tijolo deslocado.- Que latomia é essa? perguntou d. Adélia comautnridade mole. Creio em Deus Padre. Parece quemorreu gente.Provavelmente d. Adélia conhecia mais ou menoso que tinha sucedido. Mas queria acreditar que nãohouvera infelicidade sem remédio, ou então, caso istonão fosse possível, botar os quartos de banda, lamen-tar-se e atirar a responsabilidade para o destino.- Estou desconhecendo você. Que foi que houve?Af o pranto de Marina rebentou novamente, enro-lado com palavras ásperas que não entendi. D. Adéliabaixou a pancada:- Que horror, filns, da minha alma! Santo Deuslvalha-me Nossa Senhora do Amparo.- Que Deus, que Nossa Senhora, que nada! gri-tou Marina reduzindo a cacos as lamúrias e a religiãoda mãe. De quem é a culpa? A senhora não sabia?Para que fingir que não sabia? A senhora sabia.Calaram-se, fungando.13?- Criar uma filha tantos anos, gemeu d. Adélia,passar a vida sonhando com a felicidade dela, e ue

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repente uma desgraça desta!- Pois sim, disse Marina com um risinho. Boni-ta criação. Está vendo?Tlnha-se acalmado um pouco e podia falar, já nãoestava sozinha no mundo, urrando lamentações. Arrometia contra a mãe, arfando, grunhindo, como umbicho mal domesticado que quer morder:- Coitadinha! Não via, não sabia. Tão inoceate!�Agora já sabe. Pois é. Escangalhada, com um filho nabarriga. Não faça essa carinha de santa não. É o quelhe digo. Estou mentindo? Arrombada, com um mole·que no bucho. Não quer ouvir não? Tape os ouvidos.- Cale a boca, Marina, gaguejou d. Adélia tre �mendo. Me respeite, Marina.Esta ordem bamba pareceu-me ridicula e despro-positada, mas produziu um efeito que me espantou:Marina deitou água na fervura. Virei d. Adélia po �todos os lados e não achei que ela fosse digna de res �peito. Nem de respeito nem de ódio. Lembrei-me da:referências do marido: - "Com as flores de laran �jeira na cabeça, dançava como carrapeta, olhava o;homens sem baixar as pestanas. An! E eles se atrapalhavam." Agora, aquela moleza, aquela confusãcangustiada, o desejo de minguar, achatarse, a pisadt�#macia do chinelo de corda, os modos lentos e sutis dEquem pega nas coisa,s às escondidas e tem medo dEquebrá-las, de levar carão. Nada disso podia inspira:respeito. Toda ela era uma desgraça arrastada e obli �qua, destinada a suportar grosserias e rejelões. Quan�do o homem da casa vinha receber o aluguel atrasado, gritava: - "Boto-lhe os troços na rua." Seu Ramalho brigava por causa das cuecas sem botões. Coitada! Ela era uma só para tanto trabalho! D. Rosálifescarnecia dela: - "A senhora não se anerta. Tenquem lhe dê tudo." D. Adélia torcia as mãos, engolitem seco. Julião Tavares dirigia-Ihe graçolas pesada,saquele cachorro. D. Adélia baixava a cabeça. Apenaum gmnhido de reprovação, quase imperceptivel: -"Hum! hum!"

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- Me respeite, Marina.138i Aquela ordem gaguejada nem era ordem: era umpedido assustado em voz de choro. Marina calou-se eentrou a soluçar. Tive o desejo de gritar através daj parede estreita:- A senhora não tem culpa de viver nesse esta-do, d. Adélia. A senhora não nasceu assim. Era cora-da, risonha, dançava como carrapeta, olhava os ho-mens cara a cara, e os homens se desaprumavam. Seumarido impava de orgulho e fazia: - "An!" Depoistransformaram a senhora nisso, d. Adélia. Um trapo,uma velha sem-vergonha. Qualquer caixeiro de bodegachega-lhe à porta e berra para dentro: - "Mandepagar a conta, madama. O patrão está às cascas." Ea senhorn sofre com isso, porque tem uns restos dedignidade e quer que a respeitem. Nunca se acaba adignidade da gente, d. Adélia. A gente é molambosujo de pus e rola nos monturos com outras porca-rias, mas recorda-se do tempo em que estava na peça,antes de servir. D. Adélia se lembra das flores delaranjeira que lhe enfeitavam a cabeça bonita. Tantasesperanças! Hoje é essa miséria que se vé. Fizeram dasenhora uma bola de bilhar, uma coisa que vai paraonde a empurram. Entretanto a senhora dançavacomo carrapeta, e seu Ramalho estava contente.Marina continuava a chorar. D. Adélia queixava-se baixinho. Eu tinha vontade de chorar também, con-doia-me da sorte das duas mulheres e da minha pró �j pria sorte.* * *E estranho que elas não houvessem aludido umaúnica vez a Julião Tavares. Nenhuma referéncia àque-le patife. Era o que me espantava quando sai do barnheiro, já muito tarde. Nesse dia faltei ao ponto.Marina acabara numa resignação estúpida, entre-gara-se a Deus; d. Adélia não responsabilizara ninguém.Julião Tavares era como viga que tomba do andaimee racha a cabeça do transeunte. Ou um castigo, umdecreto da Providéncia, qualquer coisa deste género.

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Ninguém falava nele. Tinha aparecido cheio de lam-banças, usando falsidade em tudo. Entrara-me emcasa sem ser chamado e deixara-se ficar, interrompen-l39do o meu trabalho, afugentando os amigos. Aprovei-tando a minha ausência, seduzira Marina. E azulara.Mostrava-se rarament°, em visitas rápidas, com certezareceando que a moça cometesse um desatino c lheatrapalhasse a vida.Não haveria desatino: as duas mulheres eram fa-talistas e queixavam-se da sort°. Malucas. Revoltava-me o recurso infantil de se xingarem, arrancare:n oscabelos. Era evidente que Julião Tavares devia mor-rer. Não procurei investigar as razões d°sta necessida-de. Ela se impunha, entrava-me na cabeça comu um#prego. Um prego me atravessava os miolos. É estúpido,mas eu tinha realmente a impressão de que um objetoagudo me penetrava a cabeça. Dor terrível, uma idéiaque inutilizava as outras idéias. Julião Tavares deviamorrer.D. Adélia estava justificada: - "A senhora nãonasceu assim. Era forte e bonita. Passou de carrapetaa bola de bilhar. A senhora é um pedaço de panosujo." Marina tinha sido julgada e absolvida. Prova-velmente me deixei influenciar por leituras românti-cas. Esqueci que ela um ano antes invejava as mQia �de seda e os vestidos de d. Mercedes. Agora tinhatudo: meias, vestidos, um filho no bucho, um filhcque sairia gordo, bochechudo e safado, como o palcomo o avô, o Tavares dos Tavares & Cia., uns ratosMarina era instrumento e merecia compaixãoD. Adélia era instrumento e merecia compaixão. Ju �lião Tavares era também instrumento, mas não tivEpena dele. Senti foi o ódio que sempre me inspirouaóora aumentado.Necessário que ele morresse. Julião Tavares cor �tado em pedaços, como o moleque da hlstória que setRamalho contava. Logo me aborrecia da tortura comprida. Nojo, medo, horror ao sangue. Julião Tavare:

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morreria violentamente e sem derramar sangue. Ensonhos ou acordado, vi-o roxo, os olhos esbugalhadosa língua fora da boca. Pensei muitas vezes nos bícepdo homem acaboclado que ensinava capueira ao rapaz, no alto do Farol. Por uma aberração, ima;inav� �que aqueles músculos eram meus.140Os músculos de mestre Domingos eram do velhoTrajano. Os músculos e o ventre de Quitéria também.Sinha Germana concebia e paria no couro de boi, aque o atrito e a velhice tinham levado o cabelo. Qui-téria engendrava filhos no chão, debaixo das catin-gueiras, atrás do curral, e despejava-os na esteira daIsidora, em partos difíceis. Crias de cores e idades di-ferentes espalhavam-se por aquela ribeira, várias deTrajano, cabras alatoados que apareciarn de longe emlonge e pediam a bênção do velho às escondidas. Ospartos de sinha Germana perderam-se: escapou ape-nas Camilo Pereira da Silva, que parafusou no roman-ce e me transmitiu esta inclinação para os impressos.Quitéria e outras semelhantes povoaram a catinga demulatos fortes e brabos que pertenciam a Trajano Pe-reira de Aquino Cavalcante e Silva.São do meu tempo os dois últimos partos deQuitéria. Sinha Terta, parteira da fazenda, batia ataramela do quarto pegado à cozinha. Trajano ronda-va a porta, preocupado com a cria, que não era déle.Depois da abolição, já sem forças, ainda conservavaos modos de patriarca. Estava arrasado, aos sábadossubia à vila, entrava na carrasparZa, encostava-se aoombro de mestre Domingos, babando-se: - "Negro!Tu não respeitas teu senhor não, negro?" Não o al-cancei gerando filhos nas pretas, mas alcancei os ca-bras que lhe pediam a bênção cochichando e vi-o naspontas dos pés rondando o quarto de Quitéria, interes-sando-se pelos moleques, como se fossem dele.Quitéria esperneava, espojava-se e soprava na es-teira, as varas da isidora estalavam. Havia silêncio, ru-mores esquisitos, roncos, voz de sinha Terta, que ade Quitéria acompanh2va, arrastada e nasal:

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Minha santa Margarid.a,�Não estou prenha nem paa ida.Tircv-me ese corpo morto�Que ec tenho na barriga.� �Depois uma coisa se derramava e sinha Tertadizia:#- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.141Meu avô serenava.As outras pretas da fazenda tinham deixado a cozinha depois de 88, e Trajano era senhor de uma escrava só, que se deitara com ele sob as catingueiras �não queria ser livre. Conheci Trajano decadente, excedendo-se na pinga e já sem prestígio para armar cabroeira e ameaçar a cadeia da vila. Mas os cangaceiros ainda se descobriam quando o avistavam, tiposararás de olho vermelho, cabolos de músculos de fec�ro. Se o velho quisesse extinguir um proprietário vizinho, chamaria José Baía, o camarada risonho que mvinha contar histórias de onças no copiar, ajustaria empreitada por meias-palavras, dar-lhe-ia uma cédula. E ficaria tranqüilo, de alpercatas, camisa e ceroulas de algodâo cru, tomando tabaco, escanchado nrede de varandas coloridas que arrastavam.Lembrava-me disso e apalpava com desgosto 0meus muques reduzidos. Que miséria! Escrevendo con:tantemente, o espinhaço doído, as ventas em cima dpapel, lá se foram toda a força e todo o ânimo. Dque me servi;a aquela verbiagem? - "Escreva assinseu Luís." Seu Luís obedecia. - "Escreva assado, seLuís." Seu Luís arrumava no papel as idéias e os irteresses dos outros. Que miséria!Pensava no homem acaboclado que encontrei nalto do Farol, membrudo como os sujeitos que, npresença de Trajano, varriam o pátio da fazenda corchapéus de couro.As cascavéis torciam-se por ali. Uma delas enro;cou-se no pescoço de Trajano, que dormia no bancdo alpendre. Trajano acordou, mas não acordou u

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teiramente, porque estava caduco. Levantou-se, tropiçando, gritando, e sapateou desengonçado como mdoente de coréia. Uma alpercata saltou-lhe do pé.ele, arrepiado, metia os dedos entre os anéis do cohvivo :- Tira, tira, tira.Quem ia tirar a cascavel que chocalhava no pe �coço do velho? Eu era miúdo e olhava aquilo com epanto. Parecia-me que a cobra era um enfeite, umcoisa que Trajano enrolara no pescoço para ficar dif �rente dos outros velhos. Quem ia tocar nela?142- Tira, tira, tira.Quitéria puxava o rosário de contas brancas eazuis: - "Misericórdia!" Trajano Pereira de AquinoCavalcante e Silva dançava no chão de terra batida.Afinal a cobra se soltou, Camilo Pereira da Silva ma-tou-a com o macete de capar boi e Quitéria levou-apendurada num pau, a cabeça encostada ao rabo, ba-lançando como uma corda, e foi jogá-la para lá dosjuazeiros.Agora Quitéria estava morta. E os filhos dela eos das outras pretas que, depois de 88, foram viverem ranchos de palha, nas ribanceiras do Ipanema,começavam a desacatar os descendentes dos antigossenhores. Muitos andavam nos grupos de salteadoresque assolam o nordeste, queimando propriedades, vio-lando moças brancas, enforcando os homens ricos nosramos das árvores.* * *Seu Ivo apareceu aqui em casa faminto, meio nue meio' bêbedo, como sempre. Enquanto Vitória lhepreparava a comida, fez-mé um presente:- Está aqui, seu Luisinho, que eu lhe trouxe.E pôs em cima da mesa uma peça de corda.- Para que me serve isso, seu Ivo? Onde folque você furtou isso?#- Não furtei não, seu Luisinho, achei na rua.Guarde para o senhor. É bonitinha.

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E entregou-se ao prato que Vitória lhe ofereceu.- Muito obrigadó, seu Ivo.Aproximei-me da mesa, desenrolei a peça de corda.Mas, com um estremecimento, larguei-a e meti as mãosnos bolsos, indignado com o caboclo:- Retire isso daí, seu Ivo. Que diabo de lem-brança idiota foi essa?O homem espantou-se:- Porquê? Guarde, seu Luisinho. E dada de bomcoração. Serve para armar rede.Pensei na rede onde Marina descansava à noite eque me roubava o sono, ringindo nos armadores.- Não quero. Tire isso depressa,.143Evítava dizer o nome da coisa que ali estava emcima da mesa, junto ao prato de seu Ivo. Parecia-meque, se pronunciasse o nome, uma parte das minhaspreocupações se revelaria. Enquanto estivera dobrada,não tinha semelhança com o objeto que me perseguia,Era um rolo pequeno, inofensivo. Logo que se desen �roscara, dera-me um choque violento, fizera-me re �cuar tremendo. Antes de refletir, tive a impressão dfque aquilo me ia amarrar ou morder.Lembrei-me de Chico Cobra, um curandeiro qufna vila andava, sempre com um cabaço cheio de jara� �racas. Quando Chico Cobra matou um homem na fei �ra, entrou na mata, fez um rancho de palha e cercou �se de surucucus e outros viventes semelhantes. Toda;as diligências da polícia para prendê-lo falharamNunca ninguém chegou ao rancho do criminoso:distância de quinhentas braças o que se via eram barrocas com enormes rodilhas de serpentes.Desejei insultar seu Ivo. Pareceu-me que ele tinhsvindo aqui mangar de mim. Não era justo. Empurrav �a porta, entrava sem vergonha, nunca lhe faltou a bóiaZombar de mim! Nã.o me contive:- Caboclo safado, mal-agradecido.Seu Ivo olhou-me com assombro:- Oh! xente!Acanhei-me. Dizendo tolices.

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- Está bem. Não discutamos.Entrei a caminhar de uma parede a outra, ma:como numa das viagens batia com a biqueira do sapato no cano de água, desisti do exercfcio e pus-me Fandar em torno da mesa, descrevendo círculos qmpouco a pouco se reduziam. Afinal ia quase tocandcas cadeiras, e isto me dava a impressão de que setIvo e a mesa estavam sendo amarrados. Sentei-me. Chorror que a corda me inspirava foi diminuindo, mao desconchavo nos meus modos e nas minhas idéia �continuou. Pareceu-me que uma das idéias estava alem cima da mesa, simulando laçadas e espirais. Istcera tão burlesco, tão extravagante, que me veio direpente um acesso besta de hilaridade que espantoiseu Ivo. O conjunto daquelas voltas emaranhada;formava um molho no centro da mesa, e tinha feiçãc144,.¡/ ;l-;',f:� � �� � �� �.', , ,l _' . .·� � � � � �; r I �.. ÏI!� � /I i / ' W /,,I4� � �` ,// /. m d � �-.: /,r' -, , , l7% ·� � �_ , d/ i i ! Iy1, / , , a ' yl�#,'I , ,/ , A , ./ ,,,': . ', iil;��� � �, r ,./ 9 / / ,1� �,/ , / ,,1 · ' . ,./, ·i% ! n ! , , I1 I II� �i.r. , ·�I', ,I/ I j I� � � �·>I1 II��� �� �,J, , , I, , ;� �!I , , !r.' .:. ! I jl ,I,'III�� � � � � �� � ��

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Seu Ivo comeu tudo, Vitórfa retirou o prato. Beb:mais um pouco de aguardente e fiquei arriado na ca. �deira, as mâos esquecidas na toalha coberta de manchas, olhando a corda.�Recordei-me da morte de Fabricio, amigo e com �padre de meu paf. Nunca tinha vfsto um homem as �sassinado. Assoando-se e gemendo, sentada na prens �de farinha que apodrecfa no quintal, Quitéria falavzde Fabrício como de uma criatura extraordinária, narrava façanhas maravilhosas dele. Rosenda escutava-Fcorn interjeições, eu pensava em José Baía. Mais tardEfugi de casa e cheguei-me à cadeia pública, onde o cor �po de Fabrício estava exposto, o tronco nu, os olho;vidrados. Esse cangaceiro tornou-se para mim excessfvamente grande, e nenhum dos defuntos que encontre:depois, na vida e em livros, foi como ele. Comparei sFabrfcio mortos ilustres, e Fabrfcio resistfu à compa �ração, porque foi o primeiro homem assassinado quEvi, tevé os elogios de Quitéria e era compadre de meu#pai. No jornal, consertando a sintaxe na revisão ouescrevendo notas de polfcia, quantos cadáveres passa �ram diante de mim! Nenhum deixou mossa. Fabrícicestava nu da cintura para cima, cosido de facadas, ershorrfvel. Passei várfas noites sem dormïr direito, acor �dando agoniado e aos gritos. O segundo homem assas �sinado que vf impressionou-me, mas não me tirou csono. Depois me habituei.146i.Seu Ivo pediu uma pnga. Enchi um cálice para�ele, outro para mim- A sua saúde, seu Luisinho.Foi acocorar-se e cochilar encostado à parede,junto ao cano de água. Sentei-me outra vez à mesa,o braço sobre a toalha, a mão perto da corda. Estavameio entorpecido, as pálpebras pesadas. Os armadoresna casa vizinha rangiam. Seu Ivo tinha dito: - "Giuar-de, seu Luisinho. Dá para armar rede." Avancei os de-dos em direção aos anéis, mas quando ia tocá-los, um

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se desfez e bateu-me na mão como coisa viva.Marina, enjoada e abatida, embalava-se para es-quecer a desgraça. O barulho dos armadores lembrou-me o tempo em que ela me endoidecfa com risadas ecantigas. A compaixão que eu havia sentido algunsdias antes esmoreceu. Encolerizei-me e disse-lhe men-talmente toda a sorte de nomes feios. Levantei-me,bati na mesa, e as voltas da corda tremeram. Olheicom desgosto os olhos sem brilho de seu Ivo.Defuntos não me comovem. Na vila apareciammuitas pessoas acabadas a tiro e a faca. Habituei-mea vê-las de perto. Por fim não me produziam nenhumabalo. Quando a rede apontava na extremidade da rua,os punhos amarrados num pau que dois caboclosagüentavam nos ombros, eu saltava para a calçada,curioso de ver a cor do pano que vinha em cima. Seera branco, o cortejo passava perto de mim, entravano beco, dobrava o Cavalo-Morto e seguia para o cemi-tério. Isto não me despertava interesse. As redes quetransportavam individuos mortos em desgraça eramcobertas de vermelho e iam pelo outro lado da praça,dirigiam-se à cadeia. Escapulia-me. Nenhum constran-gimento. Tornei-me insensfvel. Cinqüenta estocadasno peito e na barriga! Muito bem.Agora estava ali com medo de pegar numa corda.- Você já matou gente, seu Ivo?O caboclo abriu os olhos, espantado:- Eu? Deus me livre. Dou pra isso não, seu Lui-s;nho. Nunca matei um pinto.- Mas tem tido vontade, nã,o?- Deixe de histórias, seu Luisinho. Isso é con-versa?14?Pus-me a rir de novo, esfregando as mãos. De re-pente o riso se imobilizou, e fiquei em pé diante deseu Ivo, com as mãos postas, engasgado.As vezes, horas depois de entrar na vila a rede co-berta de vermelho, uma tropa de cachimbos invadia apraça, conduzindo o criminoso amarrado. Os cachim-bos falavam alto e mostravam, cheios de suficiência,

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facões e lazarinas; o matador tinha os braços presos,da barriga para cima estava todo embirado de cordasA gente se alvoroçava. Os tabuleiros de gamão ficavamabandonados nos tamboretes. Seu Acrisio, quase cegobatia com o cajado no chão e pedia explicações à.paredes. O doutor juiz de direito, que mentia demaiscontava casos do Amazonas. Como o Amazonas erslonge e ninguém ia apurar a veracidade das narraçõeso doutor juiz de direito mentia à vontade. Seu Batistasafa de casa vestido em robde-chambre, André Laerte�#com os bigodes tesos como um gato, andava à pressasem rumor, como um gato. Padre Inácio sacudia cguarda-chuva e gritava: - "Canalhat Raça de cachorro com porco!" Cabo José da Luz, banzeiro, arrastavfa importância, marchava para a cadeia, bambo, os passos lerdos, o cinturão frouxo, cantando baixinho: -"Assentei praça. Na policia eu vivo . . . " E o criminosopisando com força, atravessava o quadro, a cabeça erguida, a testa cortada de rugas, o olhar feroz, trombudo, impando de orgulho. Algumas horas depois estaria acocorado a um canto da prisão, sem vontadecomo seu Ivo. Mas ali, diante dos curiosos que se empurravam, representava o papel de bicho: franzia aventas, mordia os beiços, dava puxões na corda e grunhia. Olhavam para ele com admiração, e os cachimbos se envaideciam por havê-lo pegado vivo. Rosendapasmava.- Estamos costumados a amansar brabo, minh �negra.O carcereiro balançava as chaves, e o delegad �dava encontrões no povo, carrancudo, quase tão importante como o preso. As três mulheres velhas que pareciam formigas chegavam à janela, em seguida e:condiam-se precipitadamente. Seu Filipe Benigno al;sava a barba e gastava palavras diffceis e comprida:148O povaréu se apertava na calçada da cadeia. Os ca-chimbos iam matar o bicho no balcão de TeotoninhoSabiá. E o criminoso, entregue à polfcfa, furava a mul-

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tidão, entrava no corpo da guarda, preto de poeira eazeitado de suor. Na escur:dão do cárcere, depois quea chave tilintava na fechadura da grade, o juiz da ca-deia recebia os duzentos réis do torno e desfazia oslaços que deslocavam os ossos, entravam na carne dohomem. Um ladrão de cavalos seria maltratado, agüen-taria facâo, de joelhos, nu da barriga para cima, umsoldado segurando-lhe o braço direito e batendo-lhe nopeito, outro segurando o braço esquerdo e batendo nascostas. Depois os presos se aproximariam, camaradas,de repente lhe afastariam as pernas. O corpo cairia napedra negra, suja de escarros, sangue, pus e lama. Ocipó de boi chiaria no ar, cortaria o lombo descoberto.Mas isto era com os ladrões, os vagabundos, os auto-res de delitos miúdos. Um criminoso de morte era dife-rente, merecia consideração. Quando ele chegava à cal-çada, toda a gente se espremia, abrindo caminho, e osolhos se arregalavam num pasmo quase religioso, mis-tura de aprovação e medo. Na presença da personagemhavia silêncio. Depois vinham as conversas cochicha-das em que se exagerava o feito. As ações de outroscriminosos empalideciam. Aquele, sixn, era turuna. Con-tavam-se as facadas ou os tiros. Nas tarimbas sujas ossoldados bocejavam, fartos de sangue. O sujeito repre-sentava o seu papel de brabo, a cara enferrujada, es-curo de poeira e molhado de suor. Eu procurava des-cobrir nele semelhança com meu amigo José Bafa.Vitória retirou o prato e limpou a toalha. Comuma sacudidela que deu, a corda se espalhou e ficouocupando quase metade da mesa. Vitória foi sentar-seà porta da cozinha, desdobrou o jornal. Uma das vol-tas da corda parecia um desses laços que as criançasfazem com um cordão nas calçadas. A gente põe odedo no meio e aposta, o parceiro puxa as extremida-des do cordâo. Quando o dedo fica preso, a gente ga-nha. Se eu pusesse o dedo naquele cfrculo que ali esta-va junto a uma nódoa de café, o dedo ficaria preso?Caso ficasse, que iria acontecer?149Pensei em Amaro vaqueiro e em seu Evaristc

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Trepado no mourão do curral, Amaro passava um �#hora abolando.- Vou laçar a novilha careta.E a corda de couro girava. Na extremidade o laç �ia acima e vinha abaixo. Na escola de seu AntôniJustino, decorando a geografia, eu comparava Amarvaqueiro ao sol. Amaro vaqueiro era uma espécie dsol trepado num mourão. O laço que girava em redodele era a terra. De repente essa terra esquisita caí �sobre a novilha careta e prendia-lhe os chifres. Quando havia poucas reses, o exercício era brincadeira. Maem tempo de pega o curral se enchia, os cornos s �chocavam, e mal se distinguia a cabeça do animal visado. O laço rodava no ar uma eternidade, descia, passava perto do alvo, tornava a subir. Amaro aboiava, �os animais agitavam-se, batendo as pontas. Sentad �no último pau da porteira, eu tinha o coração aobaques e torcia desesperadamente. As minhas mãoumedeciam-se de suor. Porque era que Amaro não acabava logo aquilo? Subitamente o aboio estacava, o laç �caía, o zunido da corda continuava um instante mouvido da gente. O animal estava preso.Seu Evaristo sofria necessidades. Tinha vivido enboas condições, fora eleitor, jurado, dera dinheiro par,festas de igreja. E as pessoas que o encontravam naruas da vila tocavam no chapéu.Homem de poucas palavras, trabalhador, o sujeit �mais sério do mundo. Dedicava-se a vários ofícios, enagricultor, redigia procurações e petiçôes. Beirando 0setenta, começou a vender macacos. Os olhos cansaram, a memória emperrou, os braços descarnados nâ �tiveram força para ma.nejar a enxada, a garlopa, imartelo de ferreiro e a tesoura de cortar metais. SeiEvaristo fabricava muitas coisas, mas não se ajeitav �em nenhuma profissão. E quando a velhice chegousentiu-se fraco, uma tremura nos dedos, que seguravam mal o cajado. Andando, formava dois arcos: unpor detrás, nas pernas, outro adiante, no peito; sentado, firmava as mãos na extremidade do cacete,

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sobre as mãos, duras e peludas, de veias enormes, assentava o queixo, donde pendiam pelancas escuras qm150 balançavam como teias de pucumã. Foi baixando, bai-�xando, e na casinha que se escondia no üm da RuaC da Cruz o fogo se apagou. Nos meses compridos daque-les invernos de serra seu Evaristo e a mulher tremiame começavam a tresvariar, porque a fome era grande.A noite andavam tropeçando nos cacarecos, pois nacasa não havia candeia, olhavam a rua triste sob aF: chuvinha impertinente que embaçava os vidros dos�` lampiões esmorecidos. Apertavam-se para enganar o frio, e os moleques que passavam na calçada metiam� os olhos pelos buracos das janelas e gritavam:�- Velhos imoraisl Abraçados, fazendo safadeza.A caridade chegou: seu Filipe Benigno, AndréLaerte, o velho Acrfsio, as três mulheres que pareciamformigas, fizeram uma subscrição - e seu Evaristo co-meçou a receber dez mil-réis por semana. Passou-se oinverno. Plantou uma roça no quintal. E quandoo feijão verde apareceu e o milho deu bonecas, masti-gou uns agradecimentos e dispensou a caridade.- Pobre orgulhoso, disse uma das mulheres quepareciam formigas.Rosenda e cabo José da Luz concordaram.A safra ácabou, o velho sentiu fome, olhou os qua-tro cantos e não encontrou amparo. Procurou traba-lho, mas tinha setenta anos, e ninguém confiava nele.�Um dia, com a mão na barriga, entrou na padaria deseu José Inácio.- Uma esmola pelo amor de Deus, cochichou.#8eu José Inácio estava aporrinhado.- Uma esmola pelo amor de D2us, gemeu seuEvaristo quase sem voz.- Ora...Seu José Inácio gritou uma praga que ofendeu osouvidos de seu Evaristo.- Estou pedindo uma esmola pelo amor de Deus,

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rosnou o velho espantado, sem sa.ber que aquele des-�propósito era com el.e.Tlnha auxiliado muito mendigo, nunca fora gros-reiro. Chegava num momento em que o dono da pada-ria estava zangado.151- Estou pedindo uma esmola pelo amor de Deus,repetiu baixinho.Seu José Inácio apontou um cesto de pães dormi-dos e gritou brutalmente:- Tira ali.Mais tarde arrependeu-se, como disse a Teotoni-nho Sabiá, lembrou-se de que o velho nunca havia im-portunado ninguém. Ainda chegou à porta para cha-má-lo e pedir desculpa, mas a rua estava deserta.Nesse dia seu Evaristo entrou em casa arrastan-do-se como um aleijado e deu um pão seco ã, compa-nheira. Ficou uns minutos vendo-a meter as gengivasna crosta dura, em seguida avizinhou-se da parede,onde havia uma corda pendurada a um torno.- Hum! hum! exclamou a mulher. Pior que mas-tigar chifre.- Com certeza, murmurou seu Evaristo.A mulher comeu o pão e foi deitar-se na esteira.Viu o marido passar a mão pela parede, mas comoestava com a vista curta, não percebeu o que ele fazia.- Só vi que passava a mão pela parede, confessouno dia seguinte a André Laerte. Virei-me na esteirae peguei no sono.Horas depois encontraram seu Evaristo enforcadonum galho de carrapateira. Fui vê-lo, mas não tive cora-gem de me aproximar: fiquei de longe, olhando o corpoque balançava, os pés tocando o chão, como se estives-sem preparando um salto. Eu estranhava que uma pes-soa pudesse agüentar-se numa coisa tão frágil comoum galho de carrapateira. Rosenda me diss que no�momento em que um cristão bota o laço no pescoçoo diabo monta nos ombros dele. Seu Evaristo balançava.As vezes apareciam as costas curvadas. Outras vezessurgiam a barba branca, a língua fora da boca, os

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olhos abotoados, a careca, e era como se ele fosse darum salto. Esta idéia absurda de um homem saltar de-pois de morto bulia comigo. Aquele defunto levantado,com os pés no châo, ameaçando-me com um salto quepoderia trazé-lo para junto de mim, apavorava-me.A corda que o sustinha, apenas visivel de lvnge, fininhacomo aquela que ali estava em cima da mesa, torcia-se152e destorcia-se. A mulher de seu Evaristo, caduca, olha-va-o. sem lágrimas.Vitória, na cozinha, lia o jornal. Os armadores setinham calado. Seu Ivo dormia encostado à parede, coma boca aberta. Agarrei a corda, fiz dela um bolo, meti-ano bolso. O coraça'.o batia-me desesperadamente.- Vá para o diabo, seu Ivo, berrei.Seu Ivo roncava. Sacudi-o. Levantou-se e ficou in-clinado, como se estivesse armando um salto.- Vá para o diabo. Aqui amolando! Eu tenho nadacom você? Suma-se.Seu Ivo baixou a cabeça:- Está direito. Até logo, seu Luisinho. Deus lheacrescente.* * *#Julião Tavares entrava no café. Ia sentar-me longedele, voltava-lhe as costas, mas examinava o espelhocoberto de letras brancas. Afetava desprezo, aparente-mente ignorava a existência do homem. Via, porém,a roupa molhada nos sovacos, os olhos que saltavamdas órbitas, o cabelo escorrido, a papada balofa, asbochechas enormes, tudo riscado de traços brancos queanunciavam bebidas. Se me falavam, eu respondia comuma interjeição qualquer, voz selvagem, gutural, ouvidaantigamente aos almocreves e aos tangerinos e que nãoperdi, apesar dos anos de cidade. Enquanto lançava dis-traido esses gritos estranhos e ásperos, lia os anúnciosque havia no espelho. Juntava letras das palavras maiscompridas e formava nomes novos.Esse exercicio tornou-se em mim um hábito de quenão me posso libertar. Conto pelos dedos as combina-

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ções que vão surgindo, em séries de vinte, correspon-dentes às duas mãos fechadas e abertas. Quando hámuitas vogais, consigo arranjar sessenta, oitenta, àsvezes cem palavras ou mais. Faço assim com os letrei-�ros das casas de comércio, com os cartazes de cinema,com os títulos dos jornais e dos livros. Esse passatempoidiota dá-me uma espécie de anestesia: esqueço as hu-milhações e as dívidas, deixo de pensar. Pelo menos nãopenso numa coisa só. Mas vejo perfeitamente o que se153passa em roda. Pouco a pouco chegam sinais de impaciência: os dedos apertam-se, as unhas ferem a palmae zango-me por estar perdendo tempo com semelhant �estupidez, mas ordinariamente não interrompo a contagem.Ali sentado a um canto, voltado para a parede, sentia-me distante do mundo. Só via as letras brancas qmse estampavam na cara vermelha de Julião TavaresLembrava-me dos desenhos medonhos que os selvagen,fazem no rosto e do costume que os cangaceiros tênde marcar os inimigos com ferro quente. Dos letreiro;brancos safam às vezes nomes que se aplicavam bena Julião Tavares. Se eu fosse um cangaceiro sertanejo iencontrasse Julião Tavares numa estrada, meter-me-ucom ele na capueira e imprimir-lhe-ia no focinho, conferro, algumas das letras brancas que lhe apareciam n:pele e na roupa. Segurava a xícara desatento, derramava açúcar no pires e no mármore, bebia o café maquinalmente. Os traços de alvaiade zebravam as pessoa �que transitavam na rua. Certamente Marina ia surgi;entre elas.Depois que Julião Tavares tinha deixado de freqü°ntar a casa vizinha, qualquer ausência de Marina me trazia a suspeita de que os dois iam encontrar-se. Tomav �o chapéu e acompanhava-a, escondendo-me, encostando-me às paredes, receando que a espionagem fosse descoberta. Evidentemente as relações dos dois estavanreatadas. O homem gordo ia virar uma esquina e dao braço à amante, levá-la a uma ca,sa de recurso. A evidência esmorecia. Marina andava como as outras mu

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lheres, olhava as vitrinas, entrava nas lojas. Ia esperá-l;no primeiro poste cintado de branco. Minutos depoi;a perseguição recorpeçava, até que ela se recolhia. Sentia-me a um tempo aliviado e logrado. Era claro qmeles iam juntar-se em qualquer parte. Acusava-me d �não ter prestado bastante atenção à rua. Com certezatinha-me escapado uma porta meio aberta, uma escadasombria onde aquele sem-vergonha atocaiava. O meidesejo era voltar, examinar os arredores, as esquinasas árvores da Rua Augusta. Estava certo de que, enquanto eu vigiava Marina, Julião Tavares me vigiav �de longe, parando, escondendo-se.154Ali no café, com o jornal enrolado sobre o már#more, a mão gorda e curta distribuindo acenos, o sorriso nos beiços grossos, derretia-se para as moças quepassavam na calçada. Por detrás das linhas brancas doespelho, a cara redonda se afogueava, as bochechasmoles inchavam, o olho azulado queria escapulir-se daórbita. e meter-se no seio das mulheres.Eu procurava um cigarro, sentia a aspereza dacorda. Ficara no bolso desde aquela tarde, misturan-do-se aos cigarros soltos e machucados.As letras dos anúncios desapareciam, e toda a mf-nha atenção se concentrava em Julião Tavares. Lem-brava-me do primeiro encontro que tivemos, no Insti-tuto. Ele catalogava frases monstruosas a respeito dabandeira nacional. A safda dava-me um empurrão, segu-rava-me um braço e escorregava na intimidade. Meiahora depois expunha-me projetos de reforma.- O pafs precisa isto, precisa aquilo.- Ah! Eu conheci logo que o senhor era patriota.Lá estava amolando outro, com o cotovelo no már-more, a voz oleosa, o olho derramado sobre as mulheres.Agitava-me, rangia os dentes, grunhia uma obscenidade.Não ligava importância àquelas bestas, fossem para acasa do diabo. Tinha dormido juntos, ela estava pejada.Muito bem. Era encher-se, parir, enjeitar o filho, mar-char para a Rua da Lama, acabar-se no esquentamento.

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Um filho na barriga, um filho daquele sem-vergonha.Tão bom era um como 0 outro.E apertava a corda com força. Quando retiravaa mão do bolso, via nos dedos os sinais que ela dei-xava, marcas roxas na pele suada. O meu desejo eradar um salto, passar uma daquelas voltas no pescoçodo homem.O doutor chefe de policia estava ali tomando café,de cabeça baixa, preocupado com alguma encrenca.Que é que me podia acontecer? Ir para a cadeia,ser processado e condenado, perder o emprego, cumprirsentença. A vida na prisão não seria pior que a queeu tinha. Realmente as portas ali são pretas e sujas, asgrades de ferro são pretas e sujas, os móveis sâo pretose sujos. É o que me amedronta. Aquele bolor, aquelecheiro e aquela cor horrfveis, aquela sombra que trans-155forma as pessoas em sombras, os movimentos vagaro-sos de almas do outro mundo, apavoravam-me. Nãoposso encostar-me às grades pretas e nojentas. Lavoas mãos uma infinidade de vezes por dia, lavo as cane-tas antes de escrever, tenho horror às apresentações,aos cumprimentos, em que é necessário apertar a mãoque não sei por onde andou, a mão que meteu os dedosno nariz ou mexeu nas coxas de qualquer Marina. Pre-ciso muita água e muito sabão. Viver por detrás da-quelas grades, pisar no chão úmido, coberto de escarros,sangue, pus e lama, é terrível. Mas a vida que levotalvez seja pior. Não tinha medo da cadeia. Se medessem água para lavar as mãos, acomodar-me-ia lá.Podia o resto do corpo ficar sujo, podiam os piolhostomar conta da cabeça e as roupas esfrangalhadascobrir mal a carne friorenta. Se me dessem água paralavar as mãos, estaria tudo muito bem. Dar-me-iamágua para lavar as mãos? A cara do doutor chefe depolícia era triste. Provavelmente ele vivia cheio de abor-recimentos, tinha uma necessidade qualquer e compreen-deria a minha necessidade de lavar as mãos. Decidida-mente a polícia não me inspirava receio.Medo de Julião Tavares? Não havia motivo. Julião

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Tavares procuraria levantar-se do tamborete, faria umbarulho inútil, bateria com os braços na mesa e que-braria a xfcara. As bochechas vermelhas se tornariamroxas, os olhos se rodeariam de olheiras roxas, os bel-ços roxos e intumescidos se descerrariam mostrando os#dentes de rato e a lingua escura e grossa, os movimen-tos das mãos se espaçariam, afinal seriam apenassacudidelas, contrações. A imobilidade dos dedos sobreo mármore, os pés das unhas roxos. Um rebuliço, me-sas cafdas, o guarda-civil do relógio oficial apitar.do,gente correndo, aos gritos.Medo da opinião pública? Não existe opinião pú-blica. O leitor de jornais admite uma chusma de opi-nões desencontradas, assevera isto, assevera aquilo�atrapalha-se e nâo sabe para que banda vai. Ouvindo-o,penso no tempo em que os homens não liam jornais.Penso em Filipe Benigno, que tinha um certo númerode idéias bastante seguras, no velho Trajano, que tinhaidéias muito reduzidas, em mestre Domingos, que era156privado de idéias e vivia feliz. E lamento esta balbúr-dia, esta torre de Babel em que se atarantam os freqüen-tadores do café. Quero bradar:- Eles escrevem assim porque receberam ordempara escrever assim. Depois escreverão de outra forma.É tapeação, é 5afadeza.Aborreço a lida enfadonha, que sd serve para gerarconfusão no espfrito de seu Ramalho. Pimentel é ummalandro. Porque será que Pimentel não escreve sem-pre as mesmas coisas? Repetindo-as, ele próprio, quenão acredita em nada, acabaria acreditando nos seusartigos.Não há opinião pública: há pedaços de opinião,contraditórios. Uns deles estariam do meu lado se eumatasse Julião Tavares, outros estariam contra mim.No júri metade dos juízes de fato lançaria na urnaa bola branca, metade lançaria a bola preta. Qualquerato que eu praticasse agitaria esses retalhos de opi-nião. Inútil esperar unanimidade. Um crime, uma ação

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boa, dá tudo no mesmo. Afinal já nem sabemos o queé bom e o que é ruim, tão embotados vivemos.Eu não podia temer a opinião pública. E talveztemesse. Com certeza temia tudo isso. Era um medoantigo, medo que estava no sangue e me esfriava osdedos trêmulos e suados. A corda áspera ia-se amacian-do por causa do suor das minhas mãos. E as mãostremiam. O chicote do feitor num avô negro, há du-zentos anos, a emboscada dos brancos a outro av8,caboclo, em tempo mais remoto . . . Estudava-me ao es-pelho, via, por entre as linhas dos anúncios, os beiçosfranzidos, os dentes acavalados, os olhos sem brilho,a testa enrugada. Procurava os vestígios das duas raçasinfelizes. Foram elas que me tornaram a vida amargae me fizeram rolar por este mundo, faminto, esmolam-bado e cheio de sonhos. Nã,o preciso de automóveis nemde rádios, viveria bem numa casa de palha, dormiriabem numa cama de varas, num couro de boi ou numarede de cordas, como Quitéria, como o velho Trajanoe Camilo Pereira da Silva. Para que me habituei a lerpapel impresso, a ouvir o rumor de linotipos? Deseja-ria calçar alpercatas, descansar numa rede armada no157copiar, não ler nada ou ler inocentemente a históriados doze pares de França.Onde estariam os descendentes de Amaro vatlueiro?Talvez o guarda-civil do relógio oficial fosse um deles.Se eu mata-sse Julião Tavares, o guarda-civil não levan-taria o cassetete: apitaria. Chegariam outros, que meameaçariam de longe. O guarda-civil não tem coragem.Se tivesse, não olharia os automóveis horas e horas,junto ao relógio oficial: ocupar-se-ia devastando fazen-das, incendiando casas, deflorando moças brancas, en-torcando proprietários nos galhos dos juazeiros. Os sertanejos fortes revoltaram-se e andam matando, rouban-do, violando, quase selvagens, sujos, os cabelos compri-#dos, enfeitados de penduricalhos, os chapéus de courocobertos de medalhas, as cartucheiras pesadas, enormes.Nenhum respeito à autoridade. Se um oficial de polícia

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viajar pela estrada, morre na tocaia. E se não morrerlogo, é pior: levam-no para a capueira e torturam-no.Os campos estão desertos, o gado enegreceu com ocarrapato, os homens valentes pegaram o rifle, amar-raram a cartucheira na cintura. O guarda-civil do re-lógio oficial veio para a cidade e arranjou emprego.E um sujeito magro como eu, civilizado como eu. Sehouver barulho na rua, ele apita. Se houver greve nasfábricas e lhe mandarem atirar contra os grevistas,atira tremendo. As greves acabam. E ele voltará paraa chateação do ponto, magro, triste. E pouco mais oumenos como eu.- Escreva um artigo a respeito de salários, seuLuís.Bocejo e sapeco uma literatura ordinária, cons-trangido. Sei que estou praticando safadeza. Penso noque acontecerá depois. Quando houver uma reviravol-ta, utilizarão as minhas habilidades de escrevedor?E o guarda-civil? Continuará junto ao relógio, olhandoos automóveis, apitando em caso de necessidade? E Ju-lião Tavares, patriota e versejador? Para que serviriaJulião Tavares? Agora era uma figura importante de-mais. Tavares & Cia., negociantes de secos e molhadosna Rua do Comércio, eram uns ratos. A personagemoficial que visitava d. Mercedes, alta noite, devia muito158a Tavares & Cia. E Julião Tavares era importante. Fazfareceio matar um sujeito importante como Julião Ta-vares.* * *Nas horas de serviço conseguia distrair-me. Oslivros enormes de lombos de couro e folhas rotas, osoffcios, a ca,mpainha do telefone e o tique-taque dasmáquinas de escrever me arrastam para longe da terra.O que lá fora é bom, útil, verdadeiro ou belo nâo temaqui nenhuma significação Tudo é diferente. Respira-mos um ar onde voam particulas de papel e de tintae trabalhamos quase às escuras. A voz do diretor édoce, ranzinza e regulamentar. Se um funcionário co-mete falta, o diretor mostra o parágrafo e o artigo ade-

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quados ao caso. Sucede que o funcionárfo se defendEapontando outro artigo. Aí o diretor perturba-se e des-contenta-se: compreende que o serviço não vai bem,mas encolhe-se diante do regulamento e admira e re-ceia o empregado que soube encapar-se nele. Movemo-nos como peças de um relógio cansa,do. As nossasrodas velhas, de dentes gastos, entrosam-se mal a outrasrodas velhas, de dentes gastos. O que tem valor cá den-tro são as coisas vagarosas, sonolentas. Se o maqui-nismo parasse, não darfamos por isto: continuarfámoscom o bico da pena sobre a folha machucada e rota,o cigarro apagado entre os dedos amarelos. Deixarfa-mos de pestanejar, mas ignorarfamos a extinçâo dosmovimentos escassos. Os rumores externos chegam-nosamortecidos. Que barulho, que revolução será capaz deperturbar esta serenidade?Era, pois, na repartição que eu obtinha algum sos-sego. As imagens que me atormentavam na rua sur-giam desbotadas, espaçadas e incompletas. O ambienteera impróprio à vida intensa que elas tinham lá fora.Quando se iam fixando, um tique-taque de máquina deescrever, o chiar de uma folha que roçava sobre outracomo lixa, um toque distante de campainha, uma vozdescontente e adocicada, todas as complicações miúdasque me sustentam, cortavam as figuras esboçadas. Ju-lião Tavares era uma sombra que se arredondava, toma-va a forma de um balãozinho de borracha. Este objeto#159colorido flutuava, seguro por um cordel. O vento arras-tava-o para um lado e para outro, mas o cordão curtonão o deixava arredar-se muito do café. Marina eraoutra sombra que se balançava devagar na rede. O ru-mor dos armadores era interrompido pelo tilintar dotelefone. A rede ia e vinha, Marina se deslocava ummetro para a direita, um metro para a esquerda, e nãopodia ir mais longe. Desaparecia o risco de se aproxi-marem os dois, era como se estivessem amarrados.Logo que me afastava da repartição, tudo mudava.Tropeçando no paralelepípedo, via, meio sncandeado

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pelo sol, os transeuntes juntarem-se e apartarem-se, eisto me parecia cheio de malícia. Havia intenções reser-vadas nos homens que se acercavam das mulheres, haviapromessas nos olhos das mulheres que se desviavam doahomens. Automóveis abertos exibiam casais, automóveisfechados passavam rápidos, e eu adivinhava neles saiasmachucadas, gemidos, cheiros excitantes. Todos os vef-culos transportavam pecados. A cidade estava em cio,era como o chiqueiro do velho Trajano. Que perigo!Três horas escondido - e cá fora esta gente desen-freada, bodejando, com estilo, com demoras e requintes,mas bodejando como os bodes do velho Trajano.Os relógios batiam. Com certeza os machos olhavamos mostradores, pensando em entrevistas. Apressava-me.Três horas metido entre as paredes de uma catacumbaoficial. Imaginava o que teria podido acontecer nessastrês horas e aterrorizava-me. Corria para casa desem-bestado A sala de jantar, a barra vermelha com man-chas de umidade, o cano de ferro. Vitória punha ospratos na mesa. Esforçava-me por conversar, lembra-va-me das moedas e sentia remorso, falava nos vapores.Vitória dizia a lista dos passageiros. Tentara fazerCurrupaco decorar uma das listas, mas Currupaco nãodera conta do recado e ficara nos versos da mulher domacaco, que fia e cose e toma tabaco há muitos anos.- O senhor está magro como um cassaco. Nã,ocome!Arreliava-se e dava-me conselhos. Como eu não lheprestava atenção, afastava-se e ia explicar-se junto àgaiola do Currupaco:- Papagaio não comeu, morreu.160Eu mastigava uns bocados, enganava o est8mago,olhava o quintal, enfadado com a tagarelice da velha.Zangava-me e tinha vontade de lhe pedir silêncio. Con-tinuando a falar tão alto, nâo me deixaria ouvir maisnada.- Vá comprar um maço de cigarros, Vitória.Quando ela voltava, dava-lhe outra incumbência e�conseguia ficar só algum tempo. Aproximava-me da pa.

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rede manchada, aumentava a orelha com a mão e espe-rava, esperava, até que percebia aquela voz sacudidaque ia ficando quebrada. Afastava-me, atravessava ocorredor, chegava à porta da rua.Dez minutos depois entrava no café. Lá estavaJulião Tavares na prosa. Ia sentar-me no meu lugar.Se Moisés e Pimentel apareciam, conversávamos, dis-cutíamos os fuxicos do jornal, metíamos o pau nosliteratos da terra. Sentia-me em segurança. Na anima-ção da palestra procurava cigarros, mas retirava a mãodo bolso como se tivesse sido mordido. Aquela coisapunha termo aos momentos de tranqüilidade.- Um maço de cigarros.Abria o maço de cigarros e deixava-o sobre a mesa.No dia seguinte jogaria a corda por cima do muro ded. Rosália.- Fume um cigarro, Pimentel.Não. As crianças pegariam aquilo, brincariam com#aquilo, e aquilo era sujo e perigoso. Atiraria a cordapor cima do muro do fundo, no monte de lixo e cacosde vidro, onde lançavam ratos mortos. Seu Ivo, aquelecachorro, achava poucas as minhas aporrinhações eainda me trazia encrencas. Seu Ivo que fosse parao diabo.- A arte deve ser assim e assado, explicava Moisés.A tecla de sempre, arte como instrumento de pro-paganda política. Eu queria contrariar o judeu, masesmorecia, sem coragem para a discussão.- Estou em segurança, em perfeita segurança.Cada vez mais me convencia, porém, de que nãoestava numa segurança assim tão perfeita. Parecia-meque na calçada inimigos embiocados me espiavam.isi- Um homem de repartiçã,o habitua-se a não vernada fora dos processos. Vive lesando, como um cego,não é verdade, Pimentel?- Sem dúvida.Pimentel concordava distrafdo. Não desgosta nin-gaém. Escrevendo, agarra uma opinião e, sinta quem

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sentir, sapeca tudo no papel. Saem artigos furiosos,agressivos como uma peste. Mas em conversa aprovao que a gente diz.- Continue, Moisés. Como é lá isso?Tranqüilo, perfeitamente tranqüilo. Seu Ivo era umgrande patife. Onde andaria seu Ivo? Vagabundeandopelos municfpios. Uma tristeza pensar em seu Ivo, quesó servia para incomodar os outros.- Vai tudo muito mal, minha gente. Vai tudoescangalhado. Não há segurança nenhuma.Não havia. A tranqüilidade era pouco a poucosubstitufda por uma inquietaçâo que me tornava bru-tal com os companheiros. Instabilidade, ruina, o mun-do perdido. Nâo argumentava, não me explicava: que-ria descontentar Moisés.- Não há remédio nã,o. 8istória. Tudo perdido.Repisava no mesmo terreno, desajeitado. Uma tei-mosia estúpida. Procurava andar para diante, sentia-me burro, e isto me irritava mais. Ridiculo, absoluta-mente ridfculo. E zangava-me com Moisés, que falavasem se alterar. De quando em quando tudo escurecla- ficavam-me diante dos olhos listras coloridas.Receava-me de ofender gravemente Moisés. As minhasmãos dirigiam-se para ele, apertavam-se, como se ofossem estrangular. Eu procurava qualquer coisa, apalpava o bolso que tinha a corda e fazia um chumaçono paletó velho. Baixava a cabeça, prendia as mãosentre as pernas, envergonhado, perguntava a mimmesmo se Moisés teria percebido a tentação e os movi-mentos. Parecia-me ter cometido uma falta. Selvagem.- Ora, sim senhor. Em conversinhas como estaé que se armam fuzuês medonhos.Dizia isto em voz baixa, mas os dois amigo,ouviam algumas palavras e espantavam-se. Fuzuê.medonhos, brigas, sopapos, tiros Lá vinha o titulcenorme da notfcia, em quatro colunas: "Comunists162ÍÍÍ

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Iassassinado num café." Ruim tftulo. Pimentel arran-jaria outro melhor. E escreveria durante uma semanacoisas interessantes. Enquanto matutava nestes absurdos, olhava-me ao espelho: uma cara besta. Evidente·mente o pessoal mangava de mim; Julião Tavares, nooutro lado da sala, m,angava de mim, via-se muito bementre as linhas brancas do espelho. Esforçava-me porendireitar o rosto descomposto, procurava entender o#discurso de Moisés. Com os olhos arregalados e osqueixos contrafdos, o que me dava à boca uma apa-rência de focinho, era como um rato, um rato bem-educado, as patas remexendo o maço de cigarros.- Perfeitamente, perfeitamente.Agora concordava com tudo. Eu tinha lá convic-çâo! Baixava a mão lentamente, tocava no bolso volu·moso. Pensava em Chico Cobra e no cabaço cheio dejararacas. Faltava-me qualquer coisa.- Perfeitamente.Levantava-me:- Está bem. Já volto.Corria à Rua do Macena, entrava em casa, ia àsala de jantar, ao quintal, ao banhefro, demorava-meaté perceber sinais da presença de Marina. Então vol-tava à conversa interrompida com os amigos.- Tranqüilo, tranqüilo.Quando não encontrava Julião Tavares, detinha-me um instante à porta, depois safa pelas ruas, a pro-curá-lo.i i ·Marina caminhava depressa, virava esquina,s, vol·tava-se, como se tivesse medo de ser perseguida.Entrou em várfas lojas, escondeu-se num cinema. Dis·tanciei-me dela e estive quase a perdê-la de vista. Apraximei-me de novo. Marina andava de um lado paraoutro, como formiga desnorteada. Parecia ter o diabono couro. Meteu-se por uma rua onde os sapatos mer-gulhavam na areia. Segufa com dificuldade, curva,passando o lenço na cara. Escondi-me numa esquina,

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porque de quando em quando ela se aprumava e exa-minava "á rua. Duas vezes parou, descalçou-se e esvar163ziou os sapatos cheios de areia. Em seguida começota observar os núxneros das casas. Como se afastassimuito de mim, saí, atravessei rapidamente um quarteirã.o e fui ocultar-me noutra esquina. Arrisquei-midepois a nova escapada e avizinhei-me bastante delaO bairro era uma desgraça: mato nas calçadas, lixocães soltos, um ou outro maloqueiro vadiando à port �de quitandas miseráveis. As casas suj as, muito riscadas com letras a carvâo profundamente revolucionárias. Pensei em Tavares & Cia. e no dr. Gouveia.- Com certeza Moisés anda por aqui, distribuindo boletins a esta gente.Mas nâo se via a gente. Apenas maloqueiros cochilando, alguns mendigos, crianças barrigudas e amarelas. O resto devia estar no trabalho: os homens naoficinas, nos estribos dos bondes da Nordeste, nos quaitéis, em todos os infernos que há por aí; as mulherela,vando roupa, amando por dinheiro, preparandocomida ruim e insuficiente. Os filhos, roídos pelos vermes, seriam vagabundos mais tarde, dormiriam a �meio-dia nas portas das bodegas. Dormiriam? Quandeles crescessem, haveria pessoas dormindo ao meio-di �nas portas das bodegas? Muitos agora tiritavam, batendo os dentes como porcos caititus, na maleita quelama da lagoa oferece aos pobres."Proletários, uni-vos." Isto era escrito sem vfrgLla e sem traço, a piche. Que importavam a vírgulao traço? O conselho estava dado sem eles, claro, numletra que aumentava e diminufa. Talvez a datilógrafdos olhos agateados morasse por ali, num dos becoque iam ter à rua suja. Escondida num quarto escurca datilógrafa dos olhos agateados ocupava-se em batena máquina um boletim subversivo. Um irmão deccraria dele a frase mais incendiária, que seria copiada carvão no muro de uma igreja de arrabalde.Aquela maneira de escrever comendo os sinaiindignou-me. Não dispenso as vfrgulas e os traços. Qm

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#reriam fazer uma revolução sem vfrgulas e sem traçosNuma revolução de tal ordem não haveria lugar parmim. Mas então?- Um homem sapeca as pestanas, conhece liter �tura, colabora nos jornais, e isto não vale na,da? Po:164sim. E só pegar um carvão, sujar a parede. Pois sim.Moisés que se arranje.Senti despeito. Afastar-me-iam da repartição e dojornal, outros me substituiriam. Eu seria um anacro-nismo, uma inutilidade, e me queixaria dos temposnovos, bradaria contra os bárbaros que escrevem semvfrgulas e sem traços.Marina parou diante de uma casinha baixa, hesf-tou, bateu à porta. Toda a minha atençã.o se concen-trou num olho, porque na esquina em que me achavaapenas apresentava à rua uma banda da cara. Quan-do ela entrou, desentoquei-me, aproximei-me da casi-nha e vi uma placa azul com letras brancas: "Alber-tina de tal, parteira diplomada." Fui até o fim da rua.Aparentemente observava os letreiros das bodegas e aslegendas revolucionárias. As bodegas tinham nomesdifíceis. Julguei que os vagabundos me achavam dife-rente dos habitantes do bairro. E isto me fez apressaro passo e virar o rosto. Desejei retirar-me dali, ingres-sa.~ de novo na sociedade dos funcionários e dos lite-ratos.Crianças de azul e branco, naturalmente de voltada escola,. tinham a pele enxofrada, o rosto magrocheio de fome. Sentia-me intruso. A minha roupa eravelha, a gravata enrolada como uma corda. Com cer-teza os rapazes do bairro tinham melhor aparência.Em dias de descanso usavam roupa nova, lenço deseda, sapatos lustrosos. Mas havia em mim qualquercoisa que denuncfava um estranho. As crianças olha-vam-me como olham os homens que aparecem nasescolas pelos exames. Eu era uma das criaturas queelas estavam acostumadas a aborrecer, uma das cria-turas que dizem palavras compridas em discursos. Vol-

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tei, parei novamente diante da casa de d. Albertinade tal, parteira diplomada. Atravessei a rua, entrefnuma bodega.- Faz o obséquio de me dar um pouco de aguar-dente? ,O homem da venda trouxe a garrafa, pôs-se a des-pej,á-la num copo sujo. Como eu não o interrompes-se, derramou a bebida com sovinice.- Quer que encha?165- Vá botando.- An! bom. É o que se leva deste mundo, opi �nou entregando-me o copo cheio.Sentei-me e comecei a beber, olhando a casa fron �teira, o pensamento espalhado.- Seu Ivo deve andar por aqui, não?O homem não respondeu logo: franziu a testa Eagitou vagamente o braço peludo. Não conhecia set;Ivo. Naturalmente. Mas senti uma espécie de decepçâo, as casas em redor pareceram mais fechadas, cdono da bodega mais cabeludo e mais silencioso.- D. Albertina estará em casa?O bodegueiro interrogou-me com a cabeça. Apontei a casa:- D. Albertina. ..- Talvez esteja, respondeu o sujeito depois dialgum tempo. Sua mulher precisa dela?- Nâo E outra coisa.- Está bem.Esta aprovação desgostou-me, tive o desejo de contrariá-lo, mas limitei-me a beber metade da aguarden#te e bater com o copo no balcão. Não havia nada qu �estivesse bem.Vista dali, a placa azul de d. Albertina era ileglvel. Mesmo de perto, dificilmente se decifrava. Envários pontos, especialmente nos cantos, o esmalttdesaparecia e era substituído por manchas de ferrugem. Com certeza aquele traste havia sido mudadimuitas vezes, pregado e despregado, amassado, desa

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massado a martelo. De alto a baixo uma linha escur:indicava que o tinham dobrado e novamente estendido. Ali faltavam as letras.As rótulas verdes de d. Albertina estavam cerradas, a porta fechada. E Marina lá dentro. Lembrei-m �de anúncios revistos há muitos anos: "Fulana de talparteira diplomada, com longa prática, etc., faz voltarem as regras, etc." Trancada num quarto, deitada mcama, Marina se deixava apalpar demorada,mente. �água fervia na caixinha de lata, a chama do álcooempalidecia as figuras.- Quantos meses? perguntava d. Albertina.166 Na casa vizinha um dfstico horrível tomava a parede toda. Letras grandes, letras pequenas, maiús � culas no meio das palavras. E linhas verticais, verdes, produzidas pela água da chuva, cortando a ameaça aos ricos. - Andam muit os agitadores por aqui, não? - An? - Pessoas descontentes que pretendem arrasar isto, construir de novo. Que acha? Apontei a inscrição violenta. O sujeito cabeludo espiou-me com o rabo do olho e amoitou-se: - Aquela sempre esteve ali. - Sempre? Meninos abandonados batiam nas portas, pediam esmolas. - Sempre? Como é lá isso? - É um modo de dizer, respondeu o tipo. Af uns três anos. Quando abri o estabelecimento, ela já esta- va acolá, assim mesmo, com uns pedaços verdes. A gente se acostuma. - Acha? perguntei enjoado. Ora essa! Qual é a sua opinião? Bebi um gole de aguardente, acenài um cigarro, pus-me a bater com os dedos na tábua preta e gor- durosa. - Essa d. Albertina faz negócio? Qual é a sua opinião?

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- Sobre quê? Abarquei com um gesto as garrafas das pratelei- ras, as casas arruinadas, a rua coberta de capim e as crianças que pediam esmolas: - Tudo. Quando a encrenca vier, o senhor perde pouco. - Sef lá! Não leio, não vou aos meetings. Só cui- do da minhá vida. Puxei a cadeira, afastei-me daquele homem indi- ferente. Estupidez. Imaginar que as letras sempre tinham estado na parede. Inútil conversar com ele. Tenho lido muitos livros em lfnguas estrangeiras. Habituei-me a entender algumas. Nunca me serviram para falar, mas sei o que há nos livros. Certas perso � nagens de romances familiarizaram-se comigo. Apesar 16?de serem de outras raças, viverem noutros continen-tes, estão perto de mim, mais perto que aquele homemda minha raça, talvez meu parente, inquilino de umdr. Gouveia, policiado pelos mesmos indivíduos queme policiam. Bebi o resto da aguardente, pensando emcoisas sagradas, Deus, pátria, família, coisas distantes.#Por cima da armação da bodega havia a litografia deuma santinha bonita. Lembrei-me do Deus antigo queincendiava cidades :- A humanidade está ficando pulha.- Hum?- cá uma história. Faz o favor de trazer mais�aguardente?O homem cabeludo trouxe a garrafa:- o que se aproveita neste mundo.�- Mais ou menos.Uma pátria dominada por dr. Gouveia, JuliãoTavares, o diretor da minha repartição, o amante ded. Mercedes, outros desta marca, era chinfrim. Tudoodioso e estúpido, mais odioso e estúpido que o sujei-to cabeludo que despejava aguardente no copo sujo.Que demora de Marina! D. Adélia chegava à jane �a. Seu Ramalho, cansado, um ombro alto e outro bai� �

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xo, entrava sucumbido, assobiando por causa da asma.ia sentar-se à mesa de toalha rasgada, onde a comidaesfriava. D. Adélia inventava desculpas: Marina tinhaido ali, tinha ido acolá, não tardava. Seu Ramalho fun �gava, enjoado: tudo mentira. Alguns dias depois Mari-na apareceria com vestidos caros, peles caras que nãcseriam compradas por ele. Abandonava o prato, detes �tava a mulher, detestava a filha, descia ao quintalpasseava entre os montes de lixo. Que família! Quemiséria! D. Rosália largava os meninos a Antônia, dei �xava a panela esturrar, ia para a janela ganhar calo;nos cotovelos, esponar os vizinhos. D. Merc°des man�dava dinheiro ao marido e tinha filha no colégio.Que demora! D. Albertina não acabaria aquelaoperação para restabelecer as regras? D. Albertina ersterrivelmente criminosa. Rumor de tambores, longetoques de corneta. O filho de Julião Tavares era necessário ao patriotismo. A água fervendo na caixinha dflata, um frasco cheio de líquido vermelho, a chama dc168álcool tremendo, Marina com o rosto escondido entreas mãos, deixando-se apalpar pelos dedos hábeis de d.Albertina. Se não fosse isso, dentro de vinte anos acriatura mofina estaria volvendo à direita, volvendo àesquerda, decorando os nomes das peças de um fuzile passagens gloriosas do Paraguai. Filho de casal direi-to, com pai rico, faria discursos no Instituto e decla-maria versos; mas assim, coitado, nasceria às escondi-das e não passaria daquilo - direita, esquerda, ordi-nário. D. Albertina era criminosa, mas não senti ódioa ela. Sinha Terta não faria semelhante coisa. SinhaTerta não tinha diploma, nem placa, nem anúncionas folhas, acreditava em pecado e vivia num tempoem que os filhos traziam vantagens aos pais. As mu-lheres pariam na esteira, e quando surgia dificuldade,sinha Terta empurrava a reza: - "Minha Santa Mar-garida, não estou prenha nem parida..." Os filhos deQuitéria e os das outras negras da fazenda pertenciamà famflia do velho Trajano. Onde andaria essa famí-lia? Morta, espalhada, esfarelada.

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Os toques de corneta e os rufos de tambor cres-ciam. A minha pátria era a vila perdida no alto daserra, onde a chuva caía numa neblina que escondiatudo. Se eu tivesse ficado ali, ignoraria o resto domundo. Seu Evaristo, que se enforcou, mestre AntBnioJustino, padre Inácio, cabo José da Luz, seriam pessoa.anotáveis. Tão longe! Pensei no jornal francês lido navéspera e aqui chegado vinte e quatro horas depois depublicado. As notfcias dos municípios sertanejos domeu Estado chegam mais atrasadas que um númerode jornal europeu.Como seria a cara de d. Albertina? Imagfnei-amagra, pálida, séria, correta. Não havia otivo para�#Marina esconder os olhos.- Faça o favor de descobrir o rosto. Não se aca-nhe. Tão natural!Depois voltariam as regras.- Dois meses? Perfeitamente. Agora a senhoratoma precauções, usa fsto, usa aquilo.Exatamente como se Marina estfvesse no consul-tório de um médico, sarjando um tumor. Nenhumsinal de crfme ou de ação proibida. A seringa na águ8169que borbulhava, um frasco sobre a mesa da cabeceira,quadros de anatomia nas paredes, a chama do álcooltremendo, a voz calma de d. Albertina a prescrevermedidas de segurança. Uma senhora pálida e franzi-na, de rosto sereno e boas intenções.- Não se acanhe. Fique à vontade.Nenhuma alusão a qualquer espécie de falta. Direi �ta, fria, falando baixinho, empregando termos esco-lhidos.Mas porque era que d. Albertina, parteira diplamada, com longa prática, deveria ser assim e não deoutra forma? Talvez fosse diferente. Os anúncios nãovalem nada, papel agüenta tudo, como dizem os ma-tutos. D. Albertina era uma velha gorda e mole, semdiploma nem prática, de óculos ordinários e hálito

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desagradável, mal-educada, resmungona. Marina esta-va deitada numa cama nojenta; nas paredes nojentasnão havia gravuras de anatomia: hãvia quadros desantos, retratos coloridos, páginas de revistas. Sem la-var as mãos duras, de unhas compridas e negras, d.Albertina examinava brutalmente o corpo de Marina,arranhando-a, machucando-a, rosnando:- Era melhor deixar-se de vergonhas e descobrira cara. Quando andam na pândega, não têm essesluxos. E depois parem bem na bananeira. Feias coisas.Mostrava os dentes amarelos de selvagem. Seriaassim d. Albertina? A cliente mordia as cobertas sujas,continha a respiração, fechava os olhos, apertava ascoxas e engolia o choro.- Abra as pernas, criatura. Donde vêm esses den-gues? Assim ninguém pode trabalhar.O dinheiro do trabalho fora recebido adiantada-mente. Marina dera nome falso e endereço errado,temendo a exploração de d. Albertina.- Nâo vale a pena a senhora se incomodar. Euapareço, compreende? Se houver necessidade, eu apa-reço.- Quanto devo?O homem cabeludo deu a conta. doguei unsníqueis no balcão, disse frases sem sentido, olhando alegenda medonha no muro cortado de listras verdes.Que vida teria d. Albertina? D. Albertina sa.bia umasI70coisas, como eu, e como eu usava linguagem dfferenteda linguagem das outras pessoas. Ordinariamente nãoé preciso que me digam: - "Faça isto. Escrevaassim:' Basta que me mostrem ser conveniente fazeristo e escrever assim. Depois os amigos me felicitam,juram que um artigo que ninguém leu foi muito apre-cia,do. Marina provavelmente não dissera o que dese-java: falara por meias-palavras, aludira a dificuldadesde ordem econômica, desavenças de famflia, etc. D.Albertina riscara um fósforo para desinfetar a seringana caixinha de lata. A segunda d. Albertina, desleixa-da, suja, de unhas compridas e pretas que arranha-

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vam o corpo das clientes, sumiu-se. Voltou a outra,delicada e limpa:- Como não? Perfeitamente. Pode confiar. Semdúvida.#As mãos finas de unhas polidas, a voz baixa egrave.- Perfeitamente.O filho de Julião Tavares rebentaria como umtumor. D. Albertina lavaria as mãos, sorrindo:- A senhora tem uns lindos cabelos.E ajeitaria os cabelos desconsertados de Marina.Receberia o envelope indiferente, como se aquilo nãotivesse importância:- Ora essa!A mulher suja e balofa desaparecera, o quartosujo desaparecera. Uma senhora decente, parteiradiplomada, com longa prática, as mãos brancas emacias, linguagem correta, sorrisos:- Quando quiser. Perfeitamente.O filho de Julião Tavares não viria ao mundopenar, cantar na escola o hino do Ipiranga, mover-seno exercfcio militar, curtir fome nos bancos dos jar-dins, amolar-se nas repartições, adular nos jornais ogoverno. E a família de seu Ramalho nada sofreria.Pensando bem, d. Albertina atentara apenas con-tra Deus e contra a pátria. Se aquilo fosse julgado pelojúri, o promotor gritaria um discurso patético, e osjurados se arrepiariam com indignação. Se o cura dasé ouvisse um pecado tâo grande no confessionário,daria às duas mulheres penitência dura. Mas não171haveria discurso, não haveria penitência, que elaa nãcse julgavam culpadas e despediam-se de coração leveMarina ainda confusa, d. Albertina fingindo acreditaique ela era casada:- Para que ter filhos, minha senhora? A gentesofre, mas se eles vivessem, podia ser pior, não é verdade? Criar infelizes.. Uma responsabilidade, minhasenhora, responsabilidade enorme.

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A justiça e a religião não tomariam conhecimentcdo caso. E a famflia de seu Ramalho continuaria comcestava, sem um escândalo para alimentar d. Rosáliasem peso novo no orçamento, uma criatura que seriFnecessário vestir, calçar, nutrir e mandar à escola. DAdélia censuraria aquele passo arriscado e teria ux �suspiro de alívfo:- Que loucura! Pisou na beira da cova.Seu Ramalho, hostil e distante, perceberia vagamente que a maluca estava criando juízo. Tudo certoMarina de cabeça erguida, criticando a vida suspeit �de Lobisomem; d. Rosália e d. Mercedes falando conela naturalinente; Julião Tavares, no café, exigind �um governo forte; d. Adélia apertando as mãos, gemendo conselhos:- Tenha cuidado, minha filha Não se exponh �não sacrifique a sua vida por causa desses safado;Conserve-se, pode ser que arranje casamento.Levantei-me:- Adeus.DIas não sai: fiquei junto ao balcão, atrapalhadc�olhando, à porta da casa fronteira, o rosto de MarinfPor detrás dela os cabelos brancos de d. Albertina agtavam-se. Só se percebiam os cabelos. Vistas de long �as duas figuras confundiam-se, e tive a impressão dque Marina envelhecera e se purificara depois do trabalho da outra. Inutilizara nas entranhas uma coisruim que se atormentaria se vivesse, agüentaria coces por onde andasse: em casa, no quarto de pensâ �na rua, no jornal, no quartel, na repartição. Tudo co �tinuaria como anteriormente.A neta de d. Aurora iria ao cinema com os hó�pedes que a convidassem. D. Aurora balançaria c172caracóis e as banhas excessivas. Dagoberto se agarrer#ria ao compêndio e ao esqueleto.Impacientei-me e falei ao bodegueiro, tentandoexplicar-lhe as letras pretas manchadas de verde. Aneta de d. Aurora não era Marina e devia estar madu-

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ra, talvez senhora honesta, dona de pensão, ca,sada,gorda. E Dagoberto já não era estudante: era médicono Pará, ou no Amazonas, um destes lugares. Aquelahora estaria examinando a Marina de uma ruela doPará.:- (ual foi a parteira que lhe fez isso? Onde�andava a senhora com a cabeça?Gritos, indignação. E a Marina do Pará, compr �endendo que havia feito doidice, temeria as doençasde nomes complicados. Mas nâo denunciaria nenhu-ma d. Albertina. Dagoberto que lhe desse um remédio,se quisesse. Como estaria Dagoberto, depois de dezanos de separação? Devia estar gordo, encanecido,rico, cheio de filhos, com óculos.Marina ia sair. Viu que se abria uma janela navizinha e retraiu-se. Os cabelos brancos continuavama agitar-se. Não pude saber a qual dos dois tipos ima-ginados d. Albertina se assemelhava. Seria talvez umad. Albertina diferente das minhas.Fazia minutos que me havia despedido do bode-gueiro, mas prosseguia na conversa, decifrando alegenda revolucionária.Subitamente os cabelos brancos desapareceram eMarina saiu. Findei a exposição capenga:- Até logo.Atravessei a rua e cheguei-me a Marina, que seafastava com dificuldade, mergulhando na areia ossapatos vermelhos. Sentia-me perturbado e intimamen-te armava diálogos que ela, não entenderia. Os sapa-tos velhos, rachados e cambados. A roupa desfiando-se nas costuras. Tão miúda, tão reles! Estava quase apisar-lhe os calcanhares. Tossi:- Faz favor?Continuou a marcha penosa, mais lenta e maiscansada depois que dobrou uma esquina. O suor cor-ria-lhe pela nuca, entre os cabelinhos arrepiados. Dequando em quando a mão que enxugava a cara sur173gia por cima de um ombro e esfregava com o lençca penugem amarela.

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- Faz favor?Af ela parou. Em seguida apressou o passo, meteLcom vontade os pés na areia frouxa, e a penugem amarela empastou-se, grudou-se à pele e escureceu.- Deixa disso. Nâo há motivo para esse orgulhctodo. Baixa a pancada. Donde vem uma soberbia tãcgrande?Os músculos do pescoço tremeram, os sapatos vermelhos plantaram-se na areia, mexeram-se como siquisesserr arrancar-se, ficaram imóveis. Avancei doi;�metros, fiz meia-volta e achei-me em frente de Marina- Boa-tarde. Como vai a saúde? Há que tempolVista de costas, o que nela, avultava era a nuc:molhada. Agora percebia-se a testa, molhada tambéne coberta de rugas. Parecia que o resto do corpo se ocultava sob as pálpebras ca.ídas e roxas. O peito cavavase. a barriga sumia-se. Examinei-Ihe brutalmentebarriga, barriga comum, nem grande nem pequenaUma pessoa modesta andando na rua, encolhendo-s �para não dar nas vistas.- Sim senhora, muito digna. Levanta a cabeça.Marina estremeceu e olhou de esguelha para olados, como se procurasse auxílio.- Levanta a cabeça. Deixa de inocência.Aqueles modos pudicos, aqueles movimentos quase imperceptfveis das pálpebras roxas que velavan#olhos inúteis, irritaram-me. Lembrei-me dos armadcres que rangiam, das cantigas, dos banhos ruidoso.E atirei-lhe à cara, com raiva:- Puta!Marina ouviu isto sem se revoltar. Apenas ffcoimais branca, estirou o beiço quase chorando.- Me largue, balbuciou.- Está bem. Ninguém tem nada com isso, não éVamos andando. Puta!Dizia-lhe o insulto, mas estava cheio de piedadENão sentia cólera, o que sentia era desgosto.Marina estava como uma defunta em pé. PensEem Cirilo de Engrácia, visto dias antes em fotografi

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- um ca,ngaceiro morto, amarrado a uma árvorE74�.1,.:..,. ..., ,·...I,!h'%; i; : ; !'''';� � � � �� � �_ l.Iilí,.;;;,l y rlnll,� � �� � � � �/, :,l.' /'% %!'. . . , II, rr� � � � � � � �!'.. ,r. r l·.!/ I.i , ,� � � �' ,r.� � '%% ";,/: ;':i' ' ; %·'á� � � � � � � � �� n ,, .,,,, ,, ..;, ;, ;í í : ; r;I� � � � ��� � � �'./,J \''^ ';'%!,ii' !! ',n ,: ji, !:, j l��� � � � � � � � � ��� �f ,.; , , ' '·; ,,.`r,', il/� ��� � �� � � ���� �� ��"y ,ryíl I/ .i..%,:'yi� � � �� �,/ . à ; '!�/ rí ,, I .;'� � �i; ;í; `! í,, ,yli J,p:',,y i; !,l F.--; :, ' a� � � ��� �� � � �,;, . ,, ,,,....I/i.Í:;;:i..; ;, ,; ,�� � � �/ / , ,; i I;�/';;',,, ., !f,;, , . ;,, Ir ,��� � �. ,r orr;¡' , , I ,,��� � � � � �����. , . , . í,r.� � �,,:,

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:;. ,j/7!�:ry,:a��Parecia vivo e era medonho. O que tinha de mortaeram os pés, suspensos, com os dedos quase tocandco chão. Os pés de Camilo Pereira da Silva, ossudos,magros, eram assim desgovernados. Os de Marina esta �vam metidos na areia. E Marina parecia morta.- Puta!Teria dito e repetido outra palavra que insistissEem vir-me à boca, dessas coisas que a gente diz à toae conserva porque vieram espontaneamente e sãcinsubstituíveis e absurdas. Quanto mais olhava Marina menos me inclinava a admitir que ela fosse umaputa. As pálpebras roxas ocultando olhos aguados, cbeiço trêmulo, a barriga encolhida, a cara mal pinta �#da, a testa amarela coberta de rugas.- Vamos caminhando:Marina pôs-se a andar como um ma.mulengo.O homem cabeludo só cuidava da sua vida;datilógrafa dos olhos de gato copiava um boletim mmáquina estragada; d. Albertina guardava os cem milréis na gaveta; as crianças que voltavam do grupcescolar soletravam as legendas estiradas nas paredesO filho de Marina morria, talvez já tivesse morridoPensei nos ratos, em d. Mercedes, no quintal cheio dilixo, na mulher que lava garrafas e no homem qu �enche dornas. Estas lembranças me produziram uuaperto no coraçâo. Quase todas me pareceram regulares, mas a idéia dos ratos era extravagante, e isto mienfureceu. Que vinham fazer os ratos ali, àquela hora'- Puta! exclamei metendo com raiva os pés n �areia.Talvez não me referisse a Marina: referia-me ao;ratos, a coisas vagas. A palavra infamante tinhaextensão enorme, Nada se fixava no meu espírito. Aberrações, monstruosidades, os uivos compridos de dlosália, a respiração ofegante do marido de d. Rosália�

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Antônia, Berta, a mulher da Rua da Lama, a neta d �d. Aurora, a banca da redação, o cinema, o teatro. 1aparecia-me na rua uma criatura pálida, silenciosaMais forte que aquelas idéias indecisas e misturadas, �lembrança dos ratos continuava a atormentar-me.- Puta!I76Os beiços de Marina estavam como os de umadefunta, os olhos procuravam socorro, e eu cravavaas unhas nas palmas das mãos, mordia a língua porhaver deixado escapar mais uma vez a injúria quenada significava. Deu-me uma tontura, cambaleei.Meses antes Marina ficara nua, a carne arrepiada secobrira de carocinhos. Quando o marido voltava dointerior, d. Rosália soltava uns gritos que não me dei-xavam dormir. A mulher da Rua da Lama ia para ohospital, vinha do hospital, continuava o trabalhoenfadonho no quarto sujo, nua e triste. Os dedos cru-zavam-se nos joelhos agudos como dedos mortos. -"A água lava tudo, as feridas cicatrizam." Repeti men-talmente esta frase, mas não pude saber de quemera ela.- Enfim tudo se acabou, não é? perguntei, Ofilho morreu, boa solução.Marina estremeceu violentamente e parou, olhan-do-me pe)a primeira vez. O rosto contraído esmoreceunum desmaio, o corpo diminuiu. Pareceu-me que iaenterrar-se todo na areia. A voz morria-lhe na gargan-ta, sons roucos e incompreensíveis, mas os olhos apa-vorados negavam, a cabeça agitava-se desordenada-mente, negando.- Merecia estar na cadeia, resmunguei sentindouma necessidade urgente de justiça.Palavras antigas, esquecidas, voltavam-me. - "Osque têm fome de justiça", cantavam os alunos de mes-tre Antônio Justino. Sede ou fome de justiça? Não melembrava. Também já não sabia as vantagens que ocatecismo reserva aos que têm fome ou sede de justiça.- Na cadeia, percebe? Comendo bacalhau e dor-mindo na esteira. Sem-vergonha.

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A frase antiga me perseguia, mas, por mais quetentasse reconstruí-la, não havia meio de tê-la com-pleta. - "Bem-aventurados os que têm sede de justi-ça..." E o resto? Que aconteceria a esses bem-aven-turados? O esforço para recordar-me exasperava-me.Insultava Marina. Puta. A justiça havia de agarrá,-la, jogá-la para lá das grades pretas que a gentenão pode tocar. Vinham-me tiradas incoerentes, que#embranqueciam e enegreciam Marina.177- Fez muito bem Prejuízo pequeno, insignificância. E o que lhe digo. Sem falar nas responsabilidadeanas encrencas.E logo :- D. Albertina guarda segredo? Se nã.o guarda �a reputação de Marina dá em ossos de minhoca.- D. Albertina? perguntou Marina, pálida comflor de algodão.- Sim, d. Albertina, minha sem-vergonha. Vamcpara diante. Marcha!Continuamos a caminhada, segurei o braço molde Marina.- Eu vi a placa na porta. Estava defronte, co:versando com o homem da venda.- Me deixe, pelo amor de Deus, gritou Marindesesperada. Não lhe fiz mal, vou quieta pelo mecaminho. Me deixe. Que é que você quer comigo?Olhou os quatro cantos. Um soldado de políciaum soldado do exército passaram, os quepes de band �- Atraca-te com um deles. Tu só dá.s para isso.Atirei-lhe assim o pior ultraje. Como os pequencmilitares são desprezados, julguei demolir Marinapontando-lhe os dois rapazes. Bem-aventurados cque têm sede de justiça. Esta coisa, repetida, dava-nfúrias de cachorro doido. Para que agarrar-me a sonbras? Um juiz de direito bocejando, fatigado; o primotor decÍamando a acusação e afastando-se dcautos, que não tinha lido; o advogado, que poderia siJulião Tavares, soluçando a defesa e apelando para �

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sent'mentos religiosos dos jurados; oito sujeitos cocrlando, chateados e comprometidos a absolver ou co �denar a ré. Marina escondia a cara e inspirava conpaixão. Todos os jurados tinham a,s feições-de dr. Govveia. Sacudi os ombros:- Ande. Que diabo tem você nas pernas que nFcaminha?A marcha na areia solta era penosa em extrem- Vá-se embora. Me largue, pelo amor de Deuarquejou Marina. Não lhe fiz mal. Porque não me dfxa em paz?Em paz. Cfrunhi de novo o desaforo imundo. Epaz. Nenhum caso importante. Não havia, juiz amol178do tocando o timpano, nem advogado pernóstico, nempromotor botando sabedoria em cima de dr. Gfouveiamultiplicado nas cadeiras. Marina dormiria tranqüila,os armadores guardariam silêncio.- Sem dúvida. Os tempos estão duros. Em frente, ordinário, marche! Tudo isto é uma peste.Entramos na cidade e separamo-nos. Mas logo meveio a idéia de que ela se ia juntar com o amante.* * *Descobri por acaso que Juliâo Tavares tinha feitonova conquista. Foram duas ou três palavras soltas narua que me deram a revelação. Pensei numa das filhasde Lobisomem e na datilógrafa dos olhos verdes.Tudo isto é infantil, mas a verdade é que duran-te dias me atormentou a idéia de que Julião Tavareshavia seduzido a menina dos olhos verdes. Para quelado morava ela? Nunca havia percebido a voz dessacriatura, não conhecia nenhum dos seus gostos, mastinha certezas esquisitas e andava como um pa-entecheio de ciúmes ou como um cachorro que perdeu ofaro, e não sossega.Porque se tinha escondido a datilógrafa dos olhosverdes? Fugiria da policia? Ou estaria de cama coma hemorragia produzida pela intervenção de uma d.Albertina? Agora Julião Tavares tomava um caminho,#

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depois tomava outro - e eu imaginava que ela resi-dia em Bebedouro, na Levada, em Jaraguá, no Farol,enfim admitia que nos quatro pontos cardeais exis-tiam datilógrafas doentes. Todas elas estavam grávi-das e procuravam os serviços de d. Albertina.O bodegueiro cabeludo, com os cotovelos pregadosno balcâo, não via nada, só cuidava da sua vida. EJulião Tavares farejava as datilógrafas como um bode.Porque andava com tanta pressa quando deixava ocafé? Entrava num bonde, espalhava-se no banco,feliz, o olho aceso, o charuto aceso. Ia encolher-menum dos últimos lugares, firmava as mãos no encostodo banco fronteiro, apoiava o queixo nas mãos e obser-vava as costas de Julião Tavares. O cachaço gordo emole como toicinho balançava com o movimento do179carro. A mão curta de unhas cor-de-rosa fazia acen �para baixo. Transeuntes sorriam ao dono da mão cLta de unhas brunidas. Eu notava com raiva aquelsorrisos. Porque tanta subserviência nas caras abertaJuliâo Tavares, patriota e orador, não prestava pa:nada. Nenhum favor esperavam dele. Mas sorriam p �hábito. Eu também havia sorrido, amolado. Os cablos de Julião Tavares começavam a escassear no alda cabeça. Parecia que ele ia adquirindo uma espécde tonsura. Falava alto, atirava cumprimentos a �conhecidos e era amável em excesso, mas a amabi:dade traduzia-se em palavras vãs. O que me aborrecera saber que essa.s palavras eram aceitas: tinham ticsignificação antigamente e continuavam a circular. Fengulhava, metia a mâo no bolso e apertava a corda.�Que fim teria levado seu Ivo? A toa, procurancnas fazendas e nas povoações muitas vezes percondas alguma coisa ignorada. Bêbedo sempre, cochila:do, babando, seu Ivo não encontra sossego. Uns forapara o Amazonas e acabaram-se no beribéri; outr �andam pelo sul, em concorrência com o estrangeirSeu Ivo, incapaz de fixar-se, índio e cigano, corfazendas e povoações, pedindo, furtando. Não saltomar os objetos que necessita: pede, furta, é um inc�

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vfduo inferior. Por isso digo a Vitória quando ele nentra em casa:- Vitória, preste atenção a seu Ivo. Cuidado pa �que ele não me abafe um livro.Inútil. O livro é abafado e oferecido adiante, corra corda que ele me deu.Apalpava a corda. Mexia-me lentamente, pensavnos cabras que meu av8 livrava peitando os jurados cameaando a cadeia da vila. Apareciam no páti�desarmados, varrendo o chão com chagéus de courmas quando tinham empreitada, dormiam na pontria, passavam semanas por detrás de um pau, o clavnote escorado numa forquilha, algumas rapadurasfarinha de mandioca no bisaco.Pouco a pouco tudo se transformava, a catinida minha terra rodava aos solavancos nos trilhos cNordeste. Escondia-me entre aquela vegetação de pasageiros, sobre o encosto do banco apoiava-se um rif180imaginário dirigido às costas de Julião Tavares. Tudonele me aparecia aumentado e deformado. Lembrava-me das conversas que me estragavam as noites, depalavras ouvidas através da parede da sala de jantar,de frases truncadas percebidas no café. O homem sal-tava, eu ia saltar um poste adiante e continuava àespreita. Notava as casas onde ele entrava, as carasdas pessoas a que se dirigia.Como conseqüência da investigação, descobri afi-nal a nova amante de Julião Tavares. Era uma criatu-rinha sardenta e engraçada que trabalhava numa loja#de miudezas. Dentro de alguns meses estaria de barriga, visita,ndo clandestinamente d. Albertina. Venderiaas jóias baratas, furtarfa dinheiro na caixa para d.Albertina. Ou então haveria um espalhafato. JuliãoTavares daria à mocinha sardenta quinhentos mil-réispara ela calar-se e passaria uns tempos aborrecido,ouvindo os sermões de Tavares pai.* * *A casa era em Bebedouro, pequena, isolada. Julião

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Tavares chegava alta noite, entrava, demorava-se duashoras. Afastava-me, para não despertar suspeitas, mas'à safda andava por ali e distinguia um vulto quetinha a gola do paletó erguida e evitava os pontos ilu-minados. Havia raros transeuntes, e a ligaçâo duroupouco, não chegou a dar nas vistas.Julião Tavares seguia pela rodagem, rente aos jar-dins dos palacetes adormecidos. Ou acompanhava a es-trada de ferro, que atravessa a rua, ganha os fundosdas casas. Ali era o silncio, uma sombra que algumas�lâmpadas muito distanciadas e os becog por onde es-pirra um pouco de luz interrompiam. A água do man-gue apresentava manchas brancas entre as árvores.Aproximando-me, ouvia perfeitamente os passos do ho-mem nas folhas secas. Porque era que aquele sem-ver-gonha caminhava como se estivesse em casa, pisando nochão pago?Em toda a parte era assim. Derramava-se no bon-de. e se alguém lhe tocava as pernas, desenroscava-secom lentidão e lançava ao importuno um olhar duro.181Eu encolhia-me, reduzia-me e, em caso de necessidadesentava-me com uma das nádegas. As viagens se tornavam horrivelmente inc8modas, mas havia-me habituadca elas, e ainda que o carro estivesse deserto, não poderia espalhar-me como Julião Tavares: receava que m �viessem empurrar e tomar, sem pedir licença, algumaapolegadas da tábua estreita.Aqueles modos davam-me a impressão de que tudcem roda era dele. Os passeios públicos eram dele. Certa �mente ninguém me proibia andar nos jardins, sentar-me, ver as mulheres. Mas as mulheres não reparavam em mim, pessoas conhecidas olhavam-me distraida �mente. Demais, enquanto me achava ali, perseguia-mEa recordação da vida ordinária, e isto me estragava ahora mesquinha de folga. Os canteiros, o coreto, os glo-bos opalinos, não me serviam para nada. Estimaria queos fios da Nordeste encrencassem e a cidade ficasse à �escuras. Mover-me-ia como um cego, esqueceria as mu �lheres pintadas que imitam d. Mercedes, esqueceria

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Julião Tavares, que estava em todos os bancos. A trevaapagaria aquela exposição desagradável. Mas dar-me-iaa recordação de coisas mais desagradáveis ainda.A gravata enrolava-se como uma corda sobre a ca �m;sa raseada e suja, das bainhas das calças e dos coto-�velos puídos saíam fiapos, manchas de poeira alastra �vam-se na roupa, a sola dos sapatos estava gasta, osmeus olhos se enevoavam por causa da fome e desco-briam entre as árvores cenas irreais.Agora Julião Tavares marchava no escuro, depoisde ter abraçado a mocinha sardenta. Ia deitar-se, arru-mar talvez uns versos indecentes a respeito de segredosde alcova. Aquela hora não tinha com quem desabafar.O café estava fechado, na praça deserta as luzes cochi-lavam. Derramaria a vaidade no papel, imprimi-la-ia nodia seguinte, os amigos lhe dariam parabéns e ele andarria como um pavão. Julião Tavares julgava-se superioraos outros homens porque tinha deflorado várias meni-nas pobres. Pelos modos, imaginava-se dono delas. Con-tra-senso. Então Marina era dele? Tolice. Era a mesmaque eu tinha conhecido um ano antes, vermelha, com#os cabelos pegando fogo, entre as roseiras maltratadas.Evidentemente.I82Lembrava-me de sinha Germana, de Quitéria, dasnegras da fazenda. Sinha Germana só tinha conhecidoum homem. As pretas não se envergonhavam de conhe·cer muitos homens. Que diferença! Descendo de sinhaGermana, que dormiu meio século numa cama dura enunca teve desejos. Adquiro idéias novas, mas estasidéias brigam com sentimentos que não me deixam.Sinha Germana dormia no couro de boi com o velhoTrajano, e se dormisse de outra forma, não dava certo.Os costumes de sinha Germana eram superiores aos deQuitéria. Porquê? Não havia porquê, e isto me enrai-vecia. Um sujeito capaz de escrever sobre muitos assuntos entendendo-os mal, ou sem entendê-los, aceitar asopiniões de Camilo Pereira da Silva, de padre Inácio,de d. Rosália! Essas opiniões não tinham pé nem ca-

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beça. Marina valia o que tinha valido antes de engros-sar a barriga e procurar d. Albertina. As mesmas pernas bem feitas, os mesmos braços que mexiam as ro-seiras do quintal pobre, os mesmos cabelos que pare-ciam oxigenados, os mesmos olhos traquinas. Mas aspernas não se curvavam para mostrar as nádegas aper-tadas na saia estreita, os braços moviam-se vagarosa-mente, pesados, os cabelos amarelos caíam sobre a tes-ta enrugada, os olhos baixavam-se, cheios de culpa, des-viando-se dos outros olhos. Esta consciência de inferio-ridade era contagiosa. Marina tinha descido. Logo merevoltava. Absurdo.- Como as outras, como as outras. Mais bonitaque a maioria das outras.Repetições inúteis. Não podia evitar a idéia de umaqueda. De qualquer forma ela havia diminufdo e habi-tuava-se a esgueirar-se, a pedir desculpa a toda a gente.Seria para o futuro um trapo como d. Adélia:- A senhora tem razão, d. Rosália. isso mesmo.�d. Rosália.Os sapatos vermelhos com o verniz rachado e ossaltos gastos, roupas ordinárias, as unhas estragadas,a voz esmorecendo numa cantilena de aprovação.- Como as outras. Estúpido, absolutamente estú-pido.183Furores perdidos. Marina permaneceria de vistsbaixa, esconder-se-ia como um rato e falaria gemendoconcordando com d. Rosália.* * *Fuí até o fim da linha de bonde e parei, como seme tivesse faltado a corda de repente. Aquelas dua,extremidades de trilhos roubaram-me os movimentos ederam-me impressão desagradável. Esfreguei os olhossenti-me eansado. Até ali não havia experimentadcnenhum cansaço. Teria andado léguas se os trilho;avançassem para o interior, mover-me-ia regularmentecomo um bonde. Apenas não rre deteria diante do;�postes cintados de branco. Nessas marchas comprida;a que me habituei - um, dois, um, dois - a fadiga

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adormece e quase não penso. Exatamente como se umavontade estranha me dirigisse, um sargento invisíve:que se descuidasse do exercício e fosse pelo campo, embrutecido pela cadência - um, dois, um, dois - esquecido da voz de comando, pensando nos versos de ur�Julião Tavares ou nos bilhetes de outra Marina. Andcmeio adormecido. Se alguém me gritasse: - "A direitaà esquerda", volveria à direita, volveria à esquerda, sen�procurar saber donde partia a ordem. Porque à direita'Porque à esquerda? Poderia ser meia-volta. Mas nin �guém fala, e vou para a frente, sem perceber que posscvoltar, libertar-me da autoridade de um sargento invi �#sível e caminhar naturalmente, parando, observandcas casas e as pessoas. De repente os trilhos desapare �cem e relaxa-se a corda do boneco. Está bem. Em quEia pensando?A verdade é que estava com as pernas bambasCaminhada tão extensa! Mais de uma hora. O mesmctempo para voltar - um, dois, um, dois - exatamentEo mesmo número de minutos gastos na vinda.- Está bem.Deviam ser duas horas da madrugada.- Sem dúvida.Julião Tavares não tardaria em deixar a casinh �que se trepa no morro, junto a uma barreira vermelha184Seguiria pela rodagem? Pela estrada de ferro? Só vendo.Esta necessidade de ver encolerizou-me:- Bestal Farejando imundícies como um cachorro.Procurei um cigarro para acalmar-me. Não encon-trei ciga,rras. O .que achei foi a corda que seu Ivo mehavia oferecidó. Desleixado. Conservar no bolso aqueletraste e esquecer os cigarros! Olhei os quatro cantos.Nenhuma bodega. Esperei a passagem de alguém queme desse um cigarro. Ninguém. Idiota! Que estava fa-zendo ali, pisando a ponta do trilho? Farejando imun-dícies como um cachorro, como um urubu. Que horasseriam? Duas, aproximadamente. Aguardei as pancadasde um relógfo. Com certeza Julia`.o Tavares tinha dei-

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xado a cama da mocinha sa,rdenta e recolhia-se, levecomo um balão, saciado, fumando, a brasa do cigarroesmorecendo e avivando-se. O certo era que eu não podiaficar ali subordinado a um relógio duvidoso ou a umtranseunte que talvez nã,o tivesse cigarros. Julião Ta-vares deixara a mocinha sardenta. Seria a mocinha sardenta a amante dele? Na casa havia outras mulheres.Porque imaginei que havia de ser a mocinha sardenta?Uma garoa que se adensava ia toldando as luzes ca-piongas. Um, dois - impossfvel contar os postes deiluminaçãó, que a neblina ocultava. Senti frio. Enquan-to marchava, não tinha frio, nem cansaço, nem desejode fumar. Agora a falta de cigarros me afligia. Levanteia gola, apertou-me a necessidade urgente de voltar.Tinha certeza de que na, volta me apareceriam ciga.rros.Virei-me, pus-me a caminhar desordenadamente. Dequando em quando parava, as pernas bamba,s. Não ha-veria uma bodega, um transeunte? A marcha regularera impossível. Estava irritado como um bicho e levavaa mão ao bolso, num gesto maquinal. Encontrava osanéis da corda. Provavelmente Julião Tavares ia de vol-ta, fumando. Que me importava Julião Tavares? A f?gu-ra de Cirilo de Engrácia passou-me diante dos olhos,mas desapareceu logo. Porque me achava àquela horada noite em Bebedouro, andando à toa como uma bara-ta, parando, correndo? Soprava, enxugava o rosto coma manga. Cansado.Quando me aproximava da casinha encostada aomonte, u vulto pulou na estra,da a alguns passos de�185mim e ganhou os trilhos da reat Western. Adiantei-me�para não perdê-lo de vista. A escuridão esbranquiçadafeita pela neblina aumentava, escuridã.o pegajosa emque os postes espaçados abriam clareiras de luz escassa.Passei o lenço no rosto molhado. Um suor frio, as ore·lhas frias e insensíveis. Nem sabia se aquilo era suorou orvalho caído dos ramos das árvores.Uma hora antes caminhava com animação, mo-via-me executando ordens, tinha os membros amarra-dos a cordões. Agora podia desviar-me para um lado�

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e para outro, avançar, recuar. Alargaria os passos, en-contraria Julião Tavares, pa,ssaria por ele, o chapéu em-bicado. Não me reconheceria na poeira de água. Um su-#jeito que vinha de uma aventura noturna e tinha pres-sa de recolher-se. A mocinha ficara num fundo de quin-tal, em camisa, ao pé do morro. Julião Tavares estre-meceria. Um concorrente. Não presumiria que o con-corrente era um inimigo aperreado e cheio de veneno.A necessida.de de fumar atrapalhava-me os movimentos.Julião Tavares flutuava para a cidade, no ar denso eleitoso. Estaria longe ou perto? Aparecia vagamente nospontos iluminados, em seguida o nevoeiro engolia-o,e eu tinha a impressão de que ele ia voar, sumir-se.Um balão colorido em noite de Sâo João, boiando n �céu escuro.As meninas de Teotoninho Sabiá cantavam, à portada nossa casa estalava uma grande fogueira que meupai alimentava com tábuas de ca.ixões e aduelas, Ro-senda fazia adivinhações consultando uma bacia deágua, na sala de seu Batista as moças brincavam desortes, busca-pés estouravam na Rua da Cruz e no Cavalo-Morto. Debaixo de um mamoeiro de folhas tor-radas, Carcará assava milho verde na fogueira e largavarisa.das enormes. Meu pai dizia: - "Hi! parece umpapa-lagartas." Eu não sabia que espécie de bicho erao papa-lagartas nem porque meu pai se lembrava deleouvindo as gargalhadas de Carcará. Tudo tão simplestAs moças desdobrando os papelinhos das sortes, Rosen-da estudando a bacia de água, Teresa e d. Maria can-tando para o balão cair. Apenas o estouro dos busca-pés e as risadas de Carcará me incomodavam. Teresa�186era boa, chupava o dedo mindinho e chorava quandochegavam as redes e os homens amarrados de cordas.Julião Tavares ia afastar-se, dissipar-se, wirar ne-blina. Apresséi-me, pus-me quase a correr. Bem. Conti-nuava invisível, mas as pisadas ouviam-se distinta-mente.- Bem.

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Dizia isto, e sentia que tudo ia mal, aporrinhava-mepor estar perdendo tempo a acompa,nhar Julião Ta-vares. Afligia-me pensar que dentro em pouco ele en-traria na cidade e dormiria tranqüilo. Cirilo de Engrá-cia, morto, em pé, amarrado a uma árvore, coberto decartucheiras e punhais, tinha os cabelos compridos eera medonho. Eu não poderia dormir. O caminho en-curtava-se. Mas então? Para que seguir o homem odio·so que tinha tudo, mulheres, cigarros? Agora estáva-mos perto um do outro, mas a cidade se aproximava,e em breve estaríamos afastados, ele chupando um ci-garro, eu agüentando os roncos do marido de d. Ro-sália, que tinha chegado na véspera. Pelo resto da noiteouviria os gemidos e os roncos dos vizinhos. O cansaçodeaaparecera. Desejaria caminhar léguas, até fatigar-menovamente e adormecer. Quantos metros faltariam paradesembocarmos na Levada? Quantas horas faltariampara se abrirem os cafés e as bodegas? A idéia de quenos íamos separar me desesperava. Ali era como se eledependesse de mim. Distinguiam-se perfeitamente ospasos; nas luzes que espirravam das travessas a figura�surgia, escura e bojuda, com o chapéu desabado e agola do paletó erguida. De repente senti uma piedadeinexplicável, e qualquer coisa me esfriou mais as mãos.Julião Tavares era fraco e andava desprevenido, comouma criança, naquele ermo, sob ramos de árvores dosquintais mudos. Uma hora, meia hora depois, passariapelo guarda adormecido junto a um poste, seria forte,mas ali, debaixo das árvores, era um ser mesquinhoe abandonado. Contraí as mãos frias e molhadas desuor, meti-as nos bolsos para aquecê-las. Para aquecê-lasou levado pelo hábito. A aspereza da corda aumen-tou-me a frieza das mãos e fez-me parar na estrada,mas a necessidade de fumar deu-me raiva e atirou-me#para a frente. Entrei a caminhar depressa, receando18?que Julião Tavares escapasse. Novamente os passos levesno chão coberto de folhas secas. Distinguia-se agoramuito bem a sombra escura na garoa peganhenta.

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A garoa me entrava no bolso e gelava os dedos, queesfregavam a corda. Porque andava com segurançao homem gordo? Olhos atentos procuravam enxergá-lo,dedos crispados moviam-se em direção a ele. - "Matostêm olhos, paredes têm ouvidos", dizia Quitéria sentadana prensa do quintal. Pareceu-me que as árvores emredor estavam vivas e espiavam Julião Tavares, que osgalhos iam enlaçar-lhe o pescoço. E ele andava sosse-gado como se ali houvesse guardas-civis.Muitos anos antes os cabras de Cabo Preto ha-viam-se escondido na capueira para não assustar sinhaGermana. Sinha Germana passara escanchada na selade campo, e os cabras se amoitavam por detrás dosmandacarus e dos alastrados que vestiam mal a cam-pina. Os cangaceiros eram amigos de Trajano, sinhaGermana esquipava no caminho iluminado pelo sol cru.Nenhum ódio. Trajano Pereira de Aquino Cavalcantee Silva tinha umas reses que definhavam e entendia-seperfeitamente com os emissários de Cabo Preto.O desejo de fumar levava-me ao desespero. O acessode piedade sumiu-se, o ódio voltou. Se me acha,ssediante de Julião Tavares, à luz do dia, talvez o ódiunâo fosse tão grande. Sentir-me-ia miúdo e perturbado,os músculos se relaxariam, a coluna, vertebral se incli-naria para a frente, ocupar-me-ia em meter nas calçasa camisa entufada na barriga. Afastar-me-ia precipita-damente, como um bicho inferior. Agora tudo mudava.�Julião Tavares era uma sombra, sem olhos, sem boca,sem roupa, sombra que se dissipava na poeira de água.A minha raiva crescia, raiva de cangaceiro emboscado.Porque esta comparação? Será que os cangaceiros expe-rimentam a cólera que eu experimentava?José Bafa vinha contar-me histórias no copiar, can-tava mostrando os dentes tortos muito brancos. Erabom e ria sempre. Dava-me explicações a respeito devisagens, mencionava as orações mais fortes. Não meensinou as orações, para não quebrar a virtude delas,mas ofereceu-me conselhos, que esqueci. Tão bom JoséBafa! O clavinote dele tinha vários riscos na coronha.188

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Ninguém ialava alto a José Baía, ninguém lhe mos-trava cara feia. E ele ria, exibindo os dentes acavalardos, e quando avistava o vfgário ou outro hóspede im-portante, a aba do chapéu de couro varria o pátio dafazenda. Não me seria possivel imaginar José Baía ata-cado de uma crise de ódio como a que me fazia pregaras unhas nas 'palinas. Provavelmente ele ficava sosse-gado na capueira, tirando um trago do cigarro de palha,que apagava logo com saliva e guardava atrás da orelha,para a fumaça não denunciar a emboscada. O ouvidoatento a qualquer rumor que viesse do caminho estreito,o joelho no ch.o, em cima do chapéu de couro, o olho�na mira, a arma escorada a uma forquilha, com cer-teza não pensava, não sentia. Estava ali forçado pelanecessidade. No dia seguinte faria com a faca de pontanovo risco na coronha do clavfnote e contaria no al-pendre histórias de onças.- Que fim levou, José Baía?- Por aí, caminhando.Nenhum remorso. Fora a necessidade. Nenhum pen-samento. O patrâo, que dera a ordem, devia ter lá assuas razões. As histórias do alpendre eram simples:as onças que armavam ciladas aos bodes não tinhamferocidade. José Baía, bom tipo. Quando passasse pelacruzinha de pau que ia apodrecer numa volta do cami-#nho, rezaria um padre-nosso e uma ave-maria pelo de-funto. A fraqueza estirou-me os dedos e retardou-mea caminhada. Tive saudade de José Baia e das conver-sas infantis do copiar.- José Bafa, meu irmão, onde estarás a esta hora?Terás morrido em tocaia ou mofarás numa cadeia no-jenta de grades pretas e gordurosas? Entraste um diana vila, amarrado de cordas, negro de suor e poeira,cercado por uma tropa de cachimbos. Os teus olhosclaros se arregalavam num espanto verdadeiro. Enve-lheceste e és outro, uma inutilidade feita pela justiça.Os teus ouvidos e a tua vista se estragaram, as tuasmãos tremem, estás sério e esqueceste a criança a quemdizias as virtudes da oração da cabra preta.

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Quanto tempo duraram as recordações e o enfra-quecunento? Um minuto, ou menos. Novamente as mãosse contrafram e as pernas se estiraram no caminho189extenso. Desejei que Julião Tavares fugisse e me livras-se daquele tormento. Se ele corresse pela estrada de-serta, estaria tudo acabado. Eu tentaria alcançá-lo.Inutilmente. Pensei em gritar, avisá-lo de que haviaperigo, mas o grito morreu-me na garganta. Não grito:habituei-me a falar baixinho na presença dos chefes.Era preciso que alguma coisa prevenisse Julião Tavarese o afastasse dali. Ao mesmo tempo encolerizei-me porele estar pejando o caminho, a desafiar-me. Então eunão era nada? Não bastavam as humilhações recebidasem público? No relógio oficial, nas ruas, nos cafés, vira-va-me as costas. Eu era um cachorro, um ninguém.- "E-me conveniente escrever um artigo, seu Luís." Euescrevia. E pronto, nem muito obrigado. Um JuliãoTavares me voltava as costas e me ignorava. Nas reda-ções, na repartição, no bonde, eu era um trouxa, uminfehz, amarrado. Mas ali, na estrada deserta, voltar-meas costas como a um cachorro sem dentes! Não. Dondevinha aquela grandeza? Porque aquela segurança? Euera um homem. Ali era um homem.- Um homem, percebe? Um homem.Julião Tavares não ouviu e continuou a andar tzan-�qüilamente.- Corre, peste.Porque era que o miserável não corria, não selivrava dos meus instintos ruins? Estaria recordando ascarícias da mocinha sardenta?- Isso não vale nada, Julfão Tavares. Marina,a mocinha sardenta, a datilógrafa dos olhos de gato,não valem nada. O que vale é a tua vida. Foge.Julião Tavares parou e acendeu um cigarro. Porqueparou naquele momento? Eu queria que ele se afastassede mim. Pelo menos que seguisse o seu caminho semofender-me. Mas assim . . . Faltavam-me os cigarros, eaquela parada repentina, a luz do fósforo, a brasa esmo-recendo e avivando-se na escuridão, endoidecia-me. Fiz

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um esforço desesperado para readquirir sentimentos hu-manos :- José Bafa, meu irmão . . .José Bafa não era meu irmã.o: era um estranhode cabelos brancos que apodrecia numa cadeia imunda,cumprindo sentença por homicfdio. - "Recebeu cópfa190do libelo?" José Bafa nâo soubera responder. Tinha re-cebido e não tinha. Que resposta devfa dar àquela per-gunta incompreensível? O presidente se contentaria seele dissesse que sim? Ou seria melhor dizer que não?E José Baía balançava a cabeça, indeciso: tinha rece-bido e não tinha. Afinal que me importava José Bafa,estirado numa esteira por detrás das grades negras epegajosas? Que me importavam as grades negras e pe-gajosas?#Retirei a corda do bolso e em alguns saltos, silen-ciosos como os das onças de José Bafa, estava ao péde Julião Tavares. Tudo isto b absurdo, é incrfvel, masrealizou-se natúralmente. A corda enlaçou o pescoço dohomem, e as minhas mãos apertadas afastaram-se. Hou-ve uma luta rápida, um gorgolejo, braços a debater-se.Exatamente o que eu havia imaginado. O corpo deJulião Tavares ora tombava para a frente e ameaçavaarrastar-me, ora se inclinava para trás e queria cairem cima de mim. A obsessão ia desaparecer. Tive um�deslumbramento. O homenzinho da repartição e dojornal não era eu. Esta convicção afastou qualquerreceio de perigo. Uma alegria enorme encheu-me. Pes-soas que aparecessem ali seriam figurinhas insignificar-tes, todos os moradores da cidade eram figurinhas in-significantes. Tinham-me enganado. Em trinta e cinco�anos haviam-me convencido de que só me podia mexerpela vontade dos outros. Os mergulhos que meu paime dava no poço dá Pedra, a palmatória de mestreAntônio Justino, os berros do sargento, a grosseria dochefe da revisão, a impertinência macia do diretor, tudovirou fumaça. Julião Tavares estrebuchava. Tanta em-páfia, tanta lorota, tanto adjetivo besta em discurso

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- e estava ali, amunhecando, vencido pelo próprio peso,esmorecendo, escorregando para o chão coberto de fo-Ihas secas, amortalhado na neblina. Ao ser alcançadopela corda, tivera um arranco de bicho brabo. Aquietava-se, inclinava-se para a frente, os joelhos dobravam-se, o corpo amolecia. Eu tinha os braços doídose as mãos cortadas. Enquanto Julião Tavares estivessecom a cabeça erguida, a minha responsabilidade nãoseria tão grande como depois da queda. Quando bebiademais, seu Ivo tinha aquele jeito de arriar, não havfa191conversa que o levantasse. A lembrança de seu Ivo en-fureceu-me.-- Com os diabos!E larguei o corpo, que foi bater numa cerca, porbaixo de uns galhos de árvore que aumentavam aescuridão.- Com os diabos!Sentei-me ao pé da cerca, enxuguei o suor que mecorria pela testa. Cansado. A mão direita doía-me horri-velmente, mas continuei a apertar com ela a corda quea circulava. A mão esquerda estava livre. Levei-a aobolso à procura de cigarros, mas retirei-a logo. A figurade seu Ivo, bêbedo, encostado à parede, voltou. Quehoras seriam? As estacas da cerca magoavam-me ascostas. Páreceu-me inconveniente permanecer ali, masnão me veio a idéia de que houvesse perigo. Necessáriocontinuar a marcha. Continuar a marcha, evidente-mente: Fiquei sentado e mudei de posição, porque asestacas da cerca me feriam os ombros. Como conduzirJulião Tavares, tão pesado? Não compreendi que deviadeixá-lo apodrecendo nas folhas, debaixo da árvore. Pre-cisava transportá-lo, isto não me saía da cabeça. Trans-portá-lo, sem dúvida. Apesar de não. sentir medo, perce-bia que era urgente retirar-me. Agucei o ouvido. Apenaso zunzum dos mosquitos. A lagoa próxima fervilhavade carapanãs. Como estaria Julião Tavares? Procurei dis-tingui-lo, avancei a cabeça para o lugar onde supünhater ele ficado. Um vulto quase imperceptível na escuri-dáo leitosa. O rosto encostado à terra, naturalmente.

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Como estariam os olhos dele? Os de seu Evaristo, quevi de longe, esbugalhavam-se. E a boca se escancarava,mostrando a lingua escura e grossa. Provavelmente Ju-lião Tavares tinha também os olhos muito abertos e oqueixo desgovernado.- Mas que diabo estou fazendo aqui?Necessitava levantar-me, afastar-me depressa, entrar#em casa, dormir. Aquela hora o marido de d. Rosália�resfolegava, arranhava com a barba o couro a.marelode d. Rosália. O marido de d. Rosália resfolegava comoum bicho. E Julião Tavares parado. Minutos antes an-dava na maciota, o cigarro aceso, o pensamento nacama da mocinha sardenta. Agora ali junto da cerca,192estirado. Inconveniente ficar ao lado dele. Inconve-niente. As carapanãs zumbiam, voavam perto da minhacara, picavam-me as orelhas e as mãos escalavradas.�Inconveniente.Matos têm olhos, paredes têm ouvidos.Quitéria, Rosenda e a prensa velha vieram-me àmemória. Olhei os arredores, tentei varar a escuridão.Tudo invisível. A lagoa, povoada de carapanãs, inW -sível. Uma grande fraqueza abateu-me, suor abundanteensopou-me a camisa. Passei a mão na cara molhada,senti na pele a dureza da corda. Se viesse alguém?- Recebeu cópia do libelo?Os amigos de Julião Tavares iriam julgar-me. Pi-mentel e Moisés não eram jurados. Que diriam os jor-nais? De seu Evaristo não tinham dito nada, dos ho-mens que apareciam mortos nos caminhos não diziamnada. Mas agora falariam muito. Quem foi? Porque foi?Pimentel escreveria artigos horrfveis. Pus-me a discutircom Pimentel, gesticulei, uma das mãos bateu no corpode Julião Tavares. Encolhi-me, o suor aumentou na fria-gem da noite.José Baía, velho e manso, dormia na esteira depipiri, por baixo das cortinas de pucumã. Seu Evaristobalançava, pendurado num galho de carrapateira. SeuEvaristo era tão magro, tão cheio de fome, que um

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galho de carrapateira podia sustentá-lo. Cirilo de En-grácia, morto, em pé, amarrado a uma árvore, pareclavivo. Os cabelos compridos, caídos para a frente, es-cureciam-lhe o rosto feroz. Só os nés estavam bemmortos, suspensos, os dedos para baixo. O frio aumen-tava, comecei a bater os queixos como um caititu. Sealóuém surgisse na estrada, eu não teria coragem defugir. Haveria pessoas ali perto? Julguei perceber mnruído esquisito, mas provavelmente era apenas o eco daspancadas dos meus dentes, que não descansavam. Tivea impressão de que os meus dentes estavam longe, fa-zendo um barulho que se misturava ao zumbido irri-tante das carapanãs. Apertei os queixos, mas as casta-nholas permaneceram, e veio-me a certeza de que mshavia tornado velho e impotente.- Inútil, tudo inútil.193Mordi a manga do paletb. Os dentes continuavama entrechocar-se, mas produziam um som abafado. Mas-tiguei o pano, desejei recolher-me. Beberia um copo decachaça, os dentes se calariam. Os relógfos da vizinhan-ça não me deixariam dormir. Certamente Julião Tava-res devia ficar ali deitado. Pensei em ocultá-lo, en-terrá-lo debaixo de uma camada de folhas. A idéiaabsurda de levá-lo comigo para a cidade tinha desapa-recido. Bem. Pus-me a afastar as folhas e a cavar aterra com as unhas. A tentativa de fazer com os dedosuma cova para enterrar um homem era tão dispara-tada que me levantei, receoso de tornar-me idiota. Comoestaria a cara de Julião Tavares? A figura que me veioao espírito foi a de Cirilo de Engrácia, terrível, amar-rado a um tronco, os cabelos compridos ensombrandoo rosto, os pés suspensos, mortos. Pensei também emseu Evaristo, curvado sob a carrapateira, como se pre-parasse um salto. Recuei precipitadamente e bati comos ombros na cerca. Julião Tavares podia ficar assim,pendurado a um galho, como um suicida. Acreditariamque ele fosse um suicida? Acreditariam. Não acredita-#riam. Os jornais fariam escândalo, publicariam o retra-

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to da mocinha sardenta. Um rapaz desvairado, perfeita-mente, rapaz desvairado. Desembaracef a mão direitae numa das extremidads da corda fiz um laço. Vi-�nha-me afinal uma resolução. Entrei a mexer-me, commedo de perdê-la. Se os pensamentos se sumissem? Sevoltasse aquele marasmo?- Tudo inútil.Os dentes já não batiam. Curvei-me, procurandoa cabeça de Julião Tavares. Encontrei o chapéu caído,um braço, que soltei arrepiado porque nunca havfatocado em cadáveres. A idéia de que Julião Tavares eraum cadáver estarreceu-me. Não tinha pensado nisto.Horrfvel o corpo imóvel, esfriando. Lá estava a cabeçaanda morna. Enjoado, cuspindo muitas vezes, erguia-a,�passei o laço no pescoço. Prendi nos dentes a outraponta da corda, subi à cerca, trepei-me num galho daárvore. E comecei o trabalho de guindar o morto. A mãodireita puxava a corda, que se movia lenta por cimado ramo; do outro lado a mão esquerda agüentavao peso do corpo. Moço desvairado. Duas tarjas grossas,194uma no princfpio, outra no fim da página. Qualidades,Julião Tavares tinha muitas qualidades. A literaturadelA reproduzida nas folhas, em tipo graúdo. Comen-tários. Porque foi? Como foi? Enterro complicado, au-tomóveis, todos os automóveis da praça, bondes espe-ciais. O discurso no cemitério, discurso empolado. E otúmulo com uma coluna partida. Muitos túmulos comcolunas partidas. Colunas de mármore, colunas decimento. Moço desvairado. Todos os mortos importa,n-tes eram colunas partidas. Julião Tavares era uma co-luna de mármore, partida. O capitel no chão, esverdi-nhando-se.O corpo subia. No princípio o esforço não era gran-de demais. A cada movimento passavam no galho algu-mas polegadas da corda. Mas quando a massa obesase elevou, as dificuldades foram enormes para correremuns centímetros.- Mais um pouco, mais um pouco.�Estas palavras não me deixavam. O corpo devia

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estar todo erguido, e os meus ossos estalavam. O galhocurvava-se. Ia quebrar-se, atirar-nos ao chão. Tudo perdido. A polícia, a cadeia. Denunciar-me-ia no primeirointerrogatório. Segurei-me à corda, com o intuito deamarrá-la. Desceria. Livre do meu peso, o galho se ele-varia, os pés de Julião ficariam suspensos como os deCirilo de Engrácia.- Bem.Apareceram vozes na estrada. Vozes? Ou seria queeu estava tresvariando? Alucinação. Não queria acredi-tar que pessoas normais se avizinhassem de mim sosse-gadamente. Agarrava-me com desesnero à corda.- Trinta anos de prisão, trinta anos de prisão.As grades que a gente não pode tocar, tão nojentassão elas, as esteiras, as cortinas de pucumã, os murosgrossos, fome, sede, caldo de bacalhau, e nesta misériaJosé Baía fabricando piteiras, pentes de tartaruga,objetos miúdos de casca de coco.- Vão-se embora. Vâo-se embora. Não venham, quese desgraçam. Um homem perdido não respeita nada.O homem perdido ofegava apavorado. As vozes cadavez mais distintas, grossas, finas. Machos e fêmeas. Cer-tamente iam para a farra. Mentira. tudo mentira. Eu195não tinha trinta e cinco anos: tinha dez e estudavaa lição dificil na sala de nossa. casa na vila. A salaenchia se de ruxnores estranhos que vinham de fora esaíam das paredes. Provavelmente eram os sapos doaçude da Penha. Não eram sapos: eram homens e mu-#lheres que se aproximavam. As palavras tornaram-seclaras. Alguém dizia:- Deixa de luxo, minha filha. Será o que Deusquiser.Não me lembro de outra frase. Risos, falas trun-cadas. O grupo foi-se chegando, passou por baixo daárvore. Uma pessoa bateu em Julião Tavares e res-mungou : - "Desculpe." A corda resvalou, recuou unsdez centímetros, com certeza Julião Tavares curvou-seum pouco na escuridão. Eú repetia baixinho:

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- Será o que Deus quiser.Os meus dedos se imobilizavam, feridos, a cordamolhada de suor ameaçava correr sobre o galho, em-borcar no chão úmido o corpo de Julião Tavares. Nãoo poderia levantar outra vez, a policia encontrá-lo-iadeitado nas folhas e iria farejar-me.- Trinta anos de prisão. Trinta anos de prisão.O riso de uma das mulheres que tinham passadosob a árvore estalou a alguns metros de distância. Es-taria mangando de mim? llãangando dos esforços queeu fazia para recuperar os dez centimetros de corda?Sentia que ia fraquejar, que a corda continuaria a es-corregar na madeira. Julião Tavares, inclinado para airente, balançava. Seu Ivo andava assim, zambeta, ba-lançando, os olhos vidrados, sem ver ninguém. Outrasgargalhadas, longe. Seria a mulher que tinha rido? Ouviriam outras pessoas falar debaixo da árvore, bater noombro de Julião Tavares, pedir-lhe desculpa? Não haviaperigo, não havia perigo, entrei a repetir baixinho quenão havia perigo. Estava em segurança, escondido nafolhagem, enrolado no nevoeiro. Podiam passar, parar,tocar em Julião Tavares, que se afastaria duro comouma marionete pesada demais.- Não há perigo, nenhum perlgo.Não havia outra coisa. E pareceu-me falta de sensocomum alguém rir naquele lugar amaldiçoado. Porqueamaldiçoado? Tanta import9ncia! Eu e Julião Tavares196Íéramos umas excrescências miseráveis. As risadas zom-beteiras extinguiam-se, distantes.; - Lufs da Silva, Julião Tavares, isso não vale nada.8ujeitos úteis morrem de morte violenta ou acabam-senas prisões. Não faz mal que vocês desapareçam. Pro-priamente, vocês nunca viveram.Ia adormecer entre as folhas, com os braços esti-rados, afastando-me da árvore para fazer contrapeso ao; corpo de Julião Tavares. Apoia,va-me à curva da pernadireita, presa ao galho. De quando em quando soltavaa corda e ia pegá-la mais abaixo. A mão esquerda

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agüentava o peso, os dedos estavam a ponto de que-brar-se. Julião Tavares teria subido, ou a corda mergu-lhara no pescoço balofo? Qualquer movimento à-toame faria perder o equilibrio. Abria os olhos desmedidarmente, mas tinha medo de virar a cabeça para ver o' o corpo que se alongava e emagrecia.- Sobe, Julfão Tavares. Para que serve essa resis-tência atrasada?Uma lentidão de lesma. Subitamente notei que ocorpo subia e balançava. Passei rápido a corda pelogalho. Outra volta, outras voltas, um nó que me levouo resto da energia, e fiquei ali arquejando, desmanchan-do-me em suor. Desejaria achatar-me, confundir-me comas coisas moles e úmidas que os meus dedos tinhamesmagado sobre a casca da árvore. Agora os dedos se-guravam mal aquele suporte incômodo e oscilante. Enor·me preguiça e enorme sono prendiam-me ao galho. Creioque dormi uns munutos. Seria bom cair: talvez a quedasa,cudisse o torpor e me restituísse a vontade necessá-ria para entrar em casa e embriagar-me. Embriagar-me,#naturalmente. Teria dormido? Meus parentes sertanejos�dormiam montados, viajavam assim. Equilibrava-me nãosei como. - "Currupaco, papaco. A mulher do ma-caco . . . " Vitória sonhava com as moedas escondidas emqualquer parte, depois que os canteiros tinham sidodescobertos. Como me seria possfvel alcançar outmramo? Pa,ssando a outro ramo, estaria em segurança.8e pudesse retirar-me dali . . . Tive a idéia extravagan-te de chegar à cidade andando sobre as árvores.- Em segurança, em segurança.197Evidentemente era preciso descer, mas isto me apa-vorava. Iá embaixo numerosos inimigos iam perse-guir-me. Necessário descer. Soltar-me-ia, tombaria comoum macaco ferido. Os dedos inteiriçavam-se. Escanca-rei os olhos. O que vi foi o corpo de Julião Tavaresdeformado pela escuridão. Balancei a cabeça, enco-lhi-me com um arrepio, o receio de na queda tocaro corpo de Julião Tavares. Não caí. Escorreguei na ma-

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deira molhada, abracei-me a ela. Uma pancada no joe-lho, as pernas estrepando-se na cercã de pau-a-pique,um rasgão nas calças. Dei um salto para trás e caísentado nas folhas secas. A idéia do perigo assaltou-mecom tanta intensidade que me pus a soluçar. Tenteilevantar-me, as pernas vergaram. Arrastei-me chorando,apalpando o chão, a procurar qualquer coisa. Procura-va o chapéu, caido na luta, mas não sabia o que pro·curava. As carapanãs esvoaçavam-me em torno da ca-beça e picavam-me a carne moida. Encontrei um cha-péu, que não dava para mim, era pequeno demais. Atireipara longe, cheio de repugnã.ncia, o chapéu de JuliãoTavares. Continuei a engatinhar, já agora sabendo per-feitamente que procurava o meu chapéu. Achei-o, ma,sftcou-me a dúvida de que fosse o mesmo experimentadominutos antes. Não se acomodava bem na minha ca-beça. Rastejei ao longo da cerca. Alguns metros queme afastasse representavam uma conquista. Estavaaborrecido com Moisés. Que me havia feito Moisés?Não me lembrava de nada, mas era certo que o judeume pregara uma peça. Pareceu-me que ele rondavapor ali, mangando de mim. Rastejando como as cobras!Nova tentativa e consegui levantar-me, lá fui caminhan-do lentamente, amparado à cerca. Faltou-me de repen-te o amparo, andei como uma criança que ensaia osprimeiros passos. Se pudesse correr... Evidentementeo perigo crescia. Quantos metros teria percorrido? Es-�tava certo de que homens e mulheres me acompanha-vam. Tinham passado por baixo da árvore, visto o ho-mem enforcado, iam encontrar-me e denunciar-me.A gargalhada e a frase da mulher ufnazavam-me.� �- Será o que Deus quiser, sem dúvida.Um, dois, um, dois. Inútil. Não podia marchar. Umaleijado, um velho. Mais cem metros, e talvez fosse198ri � ��· . . a� � �w' ./i... v /� ; ii 1� � ��: i.;.-" ` . - � ��� �� �� � �

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é//�./r,v dlll� � ��� � ������ �� �»i r··,. si; /� � � �. -~ i.5r � � � �a salvação. Horrivel atravessar os espaços iluminados.Se alguém desembocasse de uma travessa e me reco-nhecesse? Desejava olhar para trás. Impossfvel. Conse-gui reunir uns restos de força e correr. Uma carreirabamba e trôpega, a boca aberta, contrações na carneenregelada. Corria e chorava, certo de que o esforçoera perdido, porque o meu chapéu tinha ficado à beirado caminho, sobre as moitas. No dia seguinte passa-ria de mão em mâo e chegaria à minha cabeça.- Trinta anos de cadeia.Que utilidade tinha aquela carreira desengonçadae trêmula? Se me vissem correndo e chorando ali nosfundos dos quintais? Precisava pa,rar, mas as pernas,levadas pelo medo, não quiserarrt obedecer. Insuportá-veis os zumbidos e as ferroadas das carapanãs. Umchapéu muito pequeno. Dei um tropeção e estaquei.Para que lado me dirigia? Ia para a cidade ou voltavapara Beredouro? Inteiramente desorientado. Teria depassar outra vez pela árvore onde Julião Tavares sebalançava? Vagar a noite inteira, como um judeu er-rante! Continuei a andar. Bem. Se me encaminhassea Bebedouro, voltaria pela rodagem, entraria em casaantes do amanhecer. Apareceram luzes, as carolinas queenfeitam o canal, os eucaliptos da Levada. Avancei len-tamente até o bueiro, sentei-me. Estava ali um vagabun-do, que acordou com a minha chegada. Eu ia perse-guido por criaturas inexistentes, mas a presença da-quele vagabundo não me produziu medo.- Boa noite.A voz saiu-me abafada e incerta. Julião Tavaresestava longe. Sacudi a cabeça para esquecê-lo e paraafugentar as carapanãs. Exausto. Descansaria, entrariaem casa dentro de alguns minutos, beberia aguardente,dormiria. A garrafa tinha ficado quase cheia. Embria-gar-me, dormir. Tentei cruzar as mãos sobre os joelhosmas os dedos feridos endureciam e qualquer contato

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era extremamente doloroso. Sem nenhum receio, davaas costas ao maloqueiro, escondia a cara instintiva-#mente. As mãos grossas esquecidas nos joelhos pesavamem demasia. Levei-as aos bolsos, senti a ausência doscigarros e a ausência da corda.- Faz favor de me dar um cigarro?200O homem remexeu-se :- Hum!- Há muitas horas que não fumo. Para quem temvicio . . . Desculpe. E a peste do cigarro que me fazfalta. O senhor terá um por acaso?Olhei-o com um olho por cima do ombro, vi-olevantar a cabeça e bulir nos molambos.- Realmente. .. E isso mesmo. Eu estava dor-mindo.Depois de uma busca. derrorada, grunhiu:�- Ah! Tome lá.Estirei a mão ensangüentada e recebi o cigarro defumo picado que se desmanchaoa:- Muito obrigado.Encontrei a caixa dA fósforos, comecei a fumar.A cabeça pesada parecia ter creseido. Tlrei o chapéu,examinei-o. Tive um susptro de alfvio: era o meu, todomachucado e sujo de lama. Pus-me a esfregá-lo coma aba do paletó.- Muito obrigado. Sinto muito dar-lhe incômodo.- Hem?Esta exclamação mostrou-me que o homem haviapercebido em mim um animal diferente dele. As luzesda Nordeste cochilavam. Olhei a minha mupa. Estavaimunda, com um rasgão no joelho, desarranjado. Masusava palavras de gente bem vestida. - "8into muitodar-lhe incômodo." Para que tapeação? Queria fuma,r.Bem. Voltariam as forças.- Dorme aqui sempre?O homem virou-se e enrolou-se mais nos molambos.Arrependi-me de ter feito a pergunta. Horriveis aquelesmodos. Devia muito ao vagabundo. Chegaria a casa fa-

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cilmente, beberia, dormiria,, esqueceria, Julião Tavares.- Não tive intenção de ofendê-lo. Foi uma pala-vra à-toa. O senhor me desculpa. Fazia horas que nãoiumava. Um grande favor, entende? Muito obrigado.As minhas frases eram convencionais e não valiamo cigarro que se apagava a cada instante.- estava dormindo, respondeu o maloqueiro.�Não tem de quê. Foi incômodo não. Boa noite.801Remoeu umas coisas guturais e começou a roncar.Impossível qualquer aproxim.ação. O isolamento emcompanhia de uma pessoa era mais opressivo que a so-lidão completa. Parecia-me que aquele homem estavamorto. Esta idéia afligiu-me tanto que desejei sacudi-lo,conversar com ele, explicar-me, convencê-lo de que es-tava agradecido.- Diabo! murmurei. Eu também fui vagabundo,dormi nos bancos dos jardins e curti fome, mas nuncafui assim grosseiro.Esqueci o benefício recebido, e novamente me sur-giu a idéia de que o homem estava morto. Levantei-me,entr ei na Rua do Apolo. O rasgão mostrava-me a ca-beça do joelho, o colarinho tinha-se desprendido dacamisa, a roupa estava preta de limo e terra, as mãosestavam pretas de limo, terra e sangue. Se alguém mevisse em semelhante desordem... O cigarro de fumopicado findava, a ponta colava-se aos beiços e quef-mava-os. Precisava entrar em casa. Aproximava-me, enão tinha certeza disto. As distâncias desapareciam.O galho que sustentava Julião Tavares balançava porcima do bueiro, e Julião Tavares confundfa-se com ohomem qu me havia oferecido o cfgarro. Um, dois, um,�dois. Agora podia marchar. Com algumas pernadas es-#taria em casa, mas a casa se afastava sempre. Veio-meum desânimo extraordinário. Quase a chegar, depois deesforços imensos, ia ser descoberto e agarrado. Umtranseunte notaria o desarranjo da roupa, a gravatafora do lugar, o rasgão no joelho.- Onde passou a noite de tal dia?

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- Em casa, na redação.Perceberfam logo a mentira. Em seguida viriamperguntas insignificantes em tom mfsterioso, e eu mecansaria fnutilmente para desviar-me delas. Quandoestivesse distrafdo, jogariam de novo a cofsa perversa:- Mas onde foi que o senhor passou a noite detal dia?A testemunha, que me havfa encontrado com umtasgão no joelho e o colarinho desabotoado, arruma-ria o seu depoimento de cabeça bafxa, em poucas pala-vras para não cafr em contradição. Quem seria o advo-202gado? o dr. Fulano, o dr. Sicrano... Esses falavam depapo e tinham recursos para inutilizar o depoimento:- Que horas eram quando o senhor viu o acusado?- Três horas.Quinze minutos depois a mesma pergunta.- Quatro horas.O escrivão registraria as duas respostas, a teste-munha atordoada não se lembraria de dizer que eraimpossfvel saber a hora exata em que via passar umapessoa na rua, o dr. Ftxlano ou o dr. Sicrano explorariaa atrapalhação do homem - e a defesa levantaria acabeça. Apenas eu não podia contratar os serviços deum dos advogados hábeis, contentar-me-ia com um ba-charel novo, gratuito e desastrado. A acusação ficariade pé, o interrogatório rolaria uma eternidade na má-quina de escrever. Coisas simples, malfcia nenhuma.Quando eu menos esperasse, surgiria a intenção ruim- e dai em diante todas as perguntas s°riam comocobras enrodilhadas que se preparavam para armar obote. Um, dois, um, dois. Não apareceria aquela casaamaldiçoada? As luzes da Nordeste subfam e desciam.Olhei os quatro cantos numa ansiedade, certo de quea testemunha ia de repente dobrar a esquina e avari-çar na rua. Viria com passo firme, de cabeça baixa.Quando passasse por mim, levantaria os olhos - eestaria tudo perdido. Para que entâ.o aquele desespero,aquela agonia?- Será o que Deus quiser. O que tem de ser tem

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muita força.Era melhor voltar. Tive a idéia absurda de voltar,sentar-me outra vez no bueiro, conversar com o va-gabundo, pedir-lhe outro cigarro. E depois seguir emfrente, sempre em frente, parar debaixo da árvore quesustentava Julião Tavares. Quando a polícia chegasse,eu contaria tudo:- Não me matem de fome nem me dêem águade bacalhau. Eu me explico. Foi assim.Ninuém teria interesse em descobrir incongruên-�cias nas minhas palavras. Voltar, esperar tranqüila-mente as grades úmidas e pegajosas. Embrutecer-me-iapor detrás delas, tornar-me-ia criança, ouviria as his-tórias ingênuas de algum José Bafa, que me diria as203virtudes da oração da cabra preta. Teriam encontradoJuliáo Tavares esticado no caminho escuro? Estariammetendo uma colher na boca de Julião Tavares? Nosertão introduzem uma colher de prata na. boca dohomem assassinado - e o criminoso que não sabe ora-ções fica preso: desorienta-se e acaba voltando parajunto da vftima. Outros homens e outras mulheres ti-nham passado por baixo do galho, cortado a corda,levado Juhão Tavares para uma casa da travessa mais#próxima. Estava lá o cadáver emborcado, com uma co-iher de prata na boca. E eu regressaria, com medo datestemunha, que ia aparecer na esquina. Tudo se sumiude chofre. A chave rangendo na fechadura, como todosos dias, devagar para não acordar Vitória, o ferrolhocorrido por dentro, passos abafados no corredor. Che-guei à sala de jantar às apalpadelas, abri o comutadore fiquei ao pé da mesa, piscando os olhos à luz. Tiveum arrepio, os cabelos se levantaram, sentf uma doragüda no couro cabeludo. Tirei o chapéu e pus-me aescová-lo com a manga. Era o meu, sem dúvida. Volteià sala e fui pendurá-lo ao cabide. Puxei a corrente dalâmpada, olhei-me ao espelho. Diferente, magro, velho,as pálpebras empapuçadas, rugas, terra seca na barbacrescida.

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- Peste! Andef rolando pelo chão como um porco.Os olhos, ordinariamente embaciados, tinham umpequeno brilho duro. Apaguei a luz e dirigi-me nora�mente à sala de jantar. Lembrei-me da garrafa deaguardente, mas quando fa pegá-la, senti a necessidadsde lavar as mãos. Estava imundo e receava contaminaros objetos. Tomei um pedaço de papel, segurei comele o ferrolho e abri a porta do quintal. Fui ao ba-nheiro, meti as mãos no balde de água e lavei-as,muito lentamente porque as feridas começavam a doerem demasia. Deitei fora a água, mergulhei o balde notanque e recomecei a lavagem. Enxuguei as mãos noscabelos, voltei para a sala de jantar, bebi um poucode aguardente. A garrafa estava quase cheia. Bebi outrogole, mas o meu desejo era tornar ao banheiro. Oscabelos estavam sujos e tinham sujado as mãos. Lem-brei-me de ter posto na cabeça o chapéu de JuliãoTavares. Lembrança intolerável. Fui ao quarto, descal-204 Este livro foi digitalizado por Paulo Sérgio Resende de Almeida, com aintenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais umamanifestação do pensamento humano..cei-me, despi-me às escuras, deixei a roupa e os sapa-tos numa trouxa a um canto, aga.rrei a toalha e voltei,nu, meio atordoado pelo álcool. Achei na borda do tan-que um pedaço de sabão ordinário e esfreguei cuida-dosamente as mãos e os cabelos. O corpo todo estavasujo, mas o que mais me preocupava eram os cabelose as mãos. O banho durou uma eternidade. Que hora,sseriam? Não me viera a idéia de olhar a parede dasala de jantar. A cabeça começou a pesar-me. Bem.Ia dormir como um porco. Certamente . . . Dormir comoum porco. Banhava-me devagar, para não fazer ba-rulho. Se os vizinhos ouvissem as pa.ncadas de águano cimento? Uma culpa grave. Se fosse descoberto,infelicidades me chegãriam. Todos os gestos eramculpas graves. Pisava como um gato. Talvez no ba-nheiro próximo estivessem pessoas esconddas. Que hora3�seriam? A cabeça pesava. Certamente... Sim, certamen-te era preciso dormir, ajudar a noite que não queria

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acabar. Tinha topado num buraco enorme, ia caindonele, mas conseguira escapar agarrando-me às estaca.ide uma cerca e metendo as mãos na terra fofa. Esfre- �gava os dedos. Para lá daquele buraco escuro haviaum nevoeiro. Marina, d. Adélia, seu Ramalho, JuliãoTavares, tudo era nevoeiro. Enrolei-m° na toalha e vol-tei à sala de jantar. Em cima do guarda-comidas en-contrei cigarros e fósforos. Bem. Agora estava limpo.Acendi um cigarro e bebi mais aguardente. Queria em-bebedar-me e dormir, mas tive a idéia de que só pode-ria dormir sentado, encostado à parede. A cama estavasuja, tinham-se espojado nela criaturas que se agatarnhavam com raiva, babando, uivando. Três pancadas.Olhei a parede, mas não consegui distinguir as letraae os ponteiros. Aproximei-me, estirei o pescoço para omostrador, fiquei nas pontas dos pés. Pensei em Cirilode Engrácia e recuei até a mesa sem ver as horas. Comos diabos! Tinha ouvido distintamente três pancadas.Enchi o copo e continuei a beber. Aproximei-me nova-mente da parede: uma neblina diante do mostrador.Felizmente agora estava fumando, quase tranqüilo.Teria ouvido as três pancadas? Então aquilo tinha�acontecido de meia-noite a três horasl A marcha aolongo da linha de bonde, a volta, a necessidade de205tumar, a escurídão cheia de zunzum das carapanãs,aquela coisa terrível - tudo de meia-noíte a três horas.Sentei-me, deitei fora o cigarro apagado, acendi outroe pus-me a esgaravatar as unhas com o fósforo. Asunhas dofdas iam-se entorpecendo. Olhei-as, mas entreos olhos e as mãos havia um nevoeiro que engrossava.As paredes tornaram-se inconsistentes. Fechei os olhos,encostei a cabeça à mesa, remexi os dedos com o fós-foro queimado. Um rumor enchia-me os ouvidos, burbu-rinho que ia crescendo e me dava a impressão de quea casa, a cidade, tudo, caía lentamente. As paredes sedesmoronavam como pastas de algodão. E no ruído con-fuso surgiam sons que me arrastavam à realidade:o tique-taque do relógio, o apito do guarda-civil, o can-to de um galo, um miar de gato no telhado. Essas

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notas familiares me exasperavam. Queria deixar-me em-balar pelo rumor abafado e dormir. Impossível. Osdedos agitavam-se despedaçando o fósforo. Levantei acabeça, arregalei os olhos e novamente cheguei a elesos dedos, que desapareciam no nevoeiro. Ergui-me, deiuns passos cambaleantes. O burburinho morreu: o quese oüvia era a respiração de Vitória. Fechei os olhoscom força, tornei a abrí-los. O nevoeiro adelgaçou-se:as mâos esfoladas e grossas, terra nas unhas. Tomeioutro fósforo e recomeci a limpá-las. Em seguida fui�ao banheiro lavá-las, livrá-las daquela porcaria. Volteidesanmado, enxuguei as pontas dos dedos tempo sem�#fim. Provavelmente não conseguiria dormir. Um, dois,um, dois. Eram as pancadas do nêndulo, mas eu pen-sava em marchas. Olhei a porta aberta. Vi apenas umburaco escuro, mas era como se visse a luz do farolespalhando-se sobre a folhagem da mangueira. Estre-meci. Os galhos iluminados de vermelho, de branco. Queloucura ter deixado aquela porta aberta! Se alguém,oculto entre as folhas, me espiasse? Fechei a porta. Es·tava em segurança. Tentei encaminhar o pensamentopara coisas simples e ordinárias, mas estas coisas fu-giam, truncavam-se. Em segurança. Quantos dias falta-vam para receber o ordenado? Precisava dar uns dI-nheiros a Moisés. Pimentel tinha-me pedido um artigosobre . . . Sobre quê? Lobisomem agora trazia sapatosnovos. D. Rosália e o marido estariam dormindo? Tão206tarde... O marido de d. Rosália chegara do interior.Dar uns cobres a Moisés sem dúvida, quando recebesse0 ordenado. Um artigo para Pimentel. Os sapatos deLobisomem. O marido de d. Rosália com certeza estavacansado e dormia. Eu também estava cansado, mas nãopodia dormir. Enxugava as mãos entorpecidas, lenta-mente, e quase não sentia as escoriações. Dei uns passos,estaquei. Que ia fazer? Avancei até o corredor. Uma fe-licidade não pensar, andar assim trôpego como umpapagaio. Fui fechar a porta da cozinha, devagar paranão acordar Currupaco, que dormia com a cabeça de-

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baixo da asa. De repente estranhei achar-me ali empé, nu, com a toalha no ombro, enxugando os dedos.Dormir, acabar aquela noite imensa. Bebi o resto daaguardente. O estômago contraiu-se, embrulhado, o pes-coço entortou-se, a boca encheu-se de saliva. Senti queia vomitar, encostei-me à mesa para não cair. Fechei osolhos - e o burburinho recomeçou. Pancadas na portada frente. Abri os olhos numa agonia. O suor corria-mepela cara, ensopava a toalha, não havia jeito de es-tancá-lo. Teriam realmente batido na porta? Ia arras-tar-me, bambeando, pé aqui, pé acolá, até o quarto,vestiria o pijama aos tombos, engulhando, arrotando.Quem seria?- Estava lendo, fumando, bebendo. Falta de sono.É costume velho, entende? Não sei nada. Estou aqui hámuitas horas assim.Poderia falar? Quem teria batido? Só se ouviamos roncos de Vitória, o tique-taque do relógio e o chiardos ratos. O estômago embrulhava-se, o suor corria,a boca era pequena para conter a saliva. Quem estarialá fora, na calçada? O relógio bateu meia hora e depoisquatro. Não me lembro de ter feito nenhum movimentona derradeira meia hora, mas quando veio a primeirapancada eu estava de pé, quando soaram as quatroestava sentado, o queixo encosta.do à mesa. Levantei-me,dirigi-me ao quarto, firmando-me às paredes, tombei nacama, pesado, como um morto.* * *207- Ó Vitória, faça o favor de ir aZf à esquina, ouviu?Telefone à repartição, diga que não vou ao serviço hoje.Estou doente.Quando ela saiu, deitef no saco a roupa brancaque tinha vestido na véspera. Em seguida escondi opaletó e a calça rasgada debaixo do colchão.Se dessem busca na casa? Fi remexer o saco, ver�se na roupa branca havia sinais que me pudessemcomprometer. O paletó e a calça não estavam bemescondidos. Pensei em queimá-los, enterrá-los. Levan·tef o colchão, tirei-os. Sujos de lama. Não podiam

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ficar ali. Se fossem descobertos? Atirei-os para trásda mala, apanhei do chão a gravata e iui para a salade jantar.#- Telefonou, Vitória,?- Telefonei.- Muito obrigado. E que estou com febre, morrf·nhento. Que há de novo?- Um senador que chegou do Rio.- Está bem.Bebi uma xicara de café, procurei uma tesouri-nha e pus-me a cortar as unhas, que ainda tinhamterra. Estava com febre e aturdido pela cachaça.- Ó Vitória, se não estiver muito ocupada, levea roupa à lavadeira, ouviu? Preciso camisas.Vitória afastou-se e daf a pouco saiu com umatrouxa de roupa suja. A porta da frente abriu-se efechou-se. Acabei de cortar as unhas arroxeadas. Asmãos engrossavam e deformavam-se, a direita comuma esfoladura na palma, a esquerda cheia de fibrasde madefra, que extraí com a ponta da tesoura. Agravata estava enrolada, como uma corda, exatamen-te igual a todas as gravatas que tenho tido, mas sen-tf a necessidade de destruf-la. Cortei-a em pedacf-nhos, que desfiei, juntando os fios em cima da coxa.Vitória, arrastando os pés, ficaria muito tempo narua. Dediquei-me nervosamente a desfiar os pedaçosda gravata. Tossia e limpava os olhos, que lacrime·javam. Uma felicidade estar com febre. Os rumoresexternos eram os mesmos de todos os dias. D. Rosá·lia despropositava com Antônia, d. Adélia cantava nobanheiro, o trem passava apitando, automóveis e208bondes rolavam longe. Desejei ver seu Ivo, pensei emoferecer qualquer coisa a seu Ivo. Isto me aliviaria.As alfaces no canteiro amarelavam. O homem tristeenchia dornas. A mulher magra agitava garrafas esacolejava-se como se tocasse ganzá. Nenhuma nov·.'-dade. Moisés e Pimentel me seriam desagradáveis na-quele momento, mas a companhia de seu Ivo me

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daria prazer. Subitamente imaginei que o homem tris-te e a mulher magra me espionavam. Afastei a cadei-ra para não ver o homem que enche dornas e a mu-lher que lava garrafas, continuei a tarefa. Quando aterminasse, ficaria tranqüilo. Cortaria depois a calçae o paletó em pedacinhos que seriam desfiados. Fica-ria inteiramente tranqüilo. Nenhuma novidade. Ape-nas a viagem de um senador desconhecido. Tranqüi-lo. Deitar-me-ia, descansasia. De minuto a minutosuspendia o trabalho para enxugar os olhos, e a umidade que havia no lenço era quente demais. Respira-va com dificuldade, o corpo se derreava na cadeira,bocejos enormes. Compreendia que o exercício a queme entregava era inútil, perigoso talvez. Se alguémentrasse de repente e me visse desfiando pedaços depano? Mas continuava a desfiá-los à pressa, e escon-dia o molho de fios entre as pernas. Vitória não che-gava. Com certeza a comida ia esturrar. Que estur-rase. Podre de rica, Vitória: prata, libras esterlinas.�Tentei pensar nas moedas. Impossível. Não acabariaa destruição da gravata? Sentia um medo horrível eao mesmõ tempo desejava que um grito me anuncias-se qualquer acontecimento extraordinário. Aquele si-lêncio, aqueles rumores comuns, espantavam-me. Se-ria tudo ilusão? Findei a tarefa, ergui-me, desci osdegraus e fui espalhar no quintal os fios da gravata.Seria tudo ilusão? Voltei, atravessei o corredor, cha-guei à sala, olhei a rua pelas tabuinhas da rótula. Urr.adas filhas de Lobisomem mostrou a cabeça arrepiada.Antônia passou com o filho mais novo de d. Rosáliapela mão, uma bicicleta rodou no paralelepípedo. Enxu-guei os olhos. A cabeça doía-me. Encostei os cotovelosà janela. Entre duas tabuinhas afastadas distinguia acara amarela, os olhos abotoados e os cabelos ruivos#da filha de Lobisomem. Pelas outras tabuinhas só per-209cebia os pés dos transeuntes. Iam e vinham, ocupados.Todos os dias acontecem desgraças. Estava doente, iapiorar, e isto me alegrava. Deitar-me, dormir, o pensa-

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mento embaralhar-se longe daquelas porcarias. Sentiuma sede horrivel. Os beiços secos, queimados, ra-chavam-se. Evidentemente a sede tinha horas, mas sóentão me apareceu clara a necessidade de beber água.Quis ver-me ao espelho. Tive preguiça, fiquei pregadoà janela, olhando as pernas dos transeuntes. Esfregaei s� �cara com a mão estragada. Os pêlos duros feriram-mea palma em carne viva.- Todos os dias nasce gente, morre gente. Issonão tem importância.Repetia frases assim e soprava a palma ferida, masnão prestava atenção ao que dizia, pensava em coisasdiferentes, em muitas coisas que se misturavam. ïahaver uma escuridão, uma desordem. Parecia-me queos acontecimentos subiam e desciam numa panela, fer-vendo.- Em segurança.Com os cotovelos presos à janela, olhava a rua etremia. Morto de sede, não me aventurava a tirar-medali. As pernas fraquejavam, bambas. As que andavamna rua atravessavam o minguado espaço que a minhavista alcançava, eram bem vestidas, rotas, nuas - e istome bastava para adivinhar as caras. Iam lentas ouapressadas, ignoravam a existência de outras que gira-vam, encostando as pontas dos pés no chão coberto defolhas secas. Duas pernas pararam no meio da rua,voltaram as biqueiras dos sapatos para o meu lado.Olhos atentos, sob a mão em pala na testa, deviamestar observando o número da casa. Isso durou umminuto. As biqueiras avançaram em direção a mim.Descobriram-se os joelhos das calças ord.nárias e sur-�radas. Provavelmente era um investigador, um desseshomens que freqüentam os cafés, escutam conversas efogem como sombras, olhando por baixo da aba dochapéu embicado. Ia aproximar-se macio, bater pal-mas discretamente para não atrair a atenção dos vi-zinhos :- ó de casa!210Eu me afastaria da janela, arrastando as pernas

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que pesavam arrobas, iria abrir a porta. Perguntas sempé nem cabeça, uma busca na casa; a roupa machu-cada e rasgada atrás da mala, as minhas mãos feridas,as unhas roxas, provocando suspeitas que s acumula-�vam e viravam certeza. Eu me atrapalharia logo ediria o que o sujeito quisesse. Não seria preciso medarem água de bacalhau. A garganta ardia-me, passeia língua seca nos beiços gretados. Agua de bacalhau,dias de fome, noites em claro, um tipo martelandohoras a fio:- bom o senhor contar. Para que esconder? Tudo�se descobre. Confesse.Eu arriaria a trouxa com facilidade. Tudo se des-cobre, sem dúvida. Que papéis haveria nos bolsos daroupa que estava atrás da mala? Bilhetes de dr. Gou-veia, correspondência do interior, a carteira vazia, artf-gos manuscritos, recortes de jornais. Se algum dessespapis tivesse caído na estrada? Perdido, trinta anos�de cadeia, a imundície, os trabalhos dos encarcerados:fabricaão de pentes, esteiras, objetos miúdos de tarta-�ruga. Faria um livro na prião. Amarelo, papudo, faria�um grande livro, qu? seria traduzido e circularia emmnitos países. Escrevê-lo-ia a lápis, em papel de embru-Iho, nas margens de jornais velhos. O carcereiro me pe-diria umas explicações. Eu responderia: - "Isto é assim#e assado." Teria consideração, deixar-me-iam escrever olivro. Dormiria numa rede e viveria afastado dos outrospresos. A garganta doía-me, os beiços colavam-se. Pre-cisava beber água e pensava no caldo de bacalhau. Con-fessaria tudo, mostraria á roupa rasgada, os bilhetes.as ca.rtas, os artigos. Os olhos pestanejavam, e chora-vam lágrimas quentes que eu enxugava na manga. Nãopodia ver bem a rua. As pernas teriam marchado paramim ou estacionariam no paralelenípedo, indecisas?Tanto tempo a ameaçar-me com as biqueiras dos sapa-tos cambados e as joelheiras das calças ordiná,rias! Asbiqueiras volveram à esquerda e sumiramjse. Não eragente da polfcia: seria talvez um servente de casa co-mercial, carregado de embrulhos, distribuindo xnercado-

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rias Provavelmente conduzia troços para d. Mercedes eestava em pé na calçada, batendo palmas. D. Mercedes211vinha devagar, cheirosa, o peignoir exibindo o peito ma-duro. Recebia os pacotes, dava uns niqueis ao carrega-dor, entrava, ia desatar os cordões e examinar as com-pras. Entre as duas tabuinhas mais afastadas da rótulavi de novo o rosto espantado da filha de Lobisomem.Porque se espantava? Não havia motivo. Zizdo em ordemna rua. A barriga e as pernas de um homem passaramna calçada e pararam à porta de d. Rosália. Algunsrapazes dirigiam-se ao Colégio Diocesano. Um molequede tabuleiro deu um grito estridente que me assustou.Evidentemente... A rua sossegada, como nos outro5dias. O grito do moleque continuava a furar-me os ou-vidos. Evidentemente . . . Que é que ia dizer? O pensa-mento partia-se. Ia cair de cama, delirar, morrer. A car-ne estremecia, os pés dos cabelos doíam-me. De quandoem quando levava.-a mão ao rosto, e o contato da palmacom a barba crscida arrancava-me palavrões obscenos�grunhidos em voz baixa. Um porco, pareca um porco.�Esta comparação não me entristecia. Desejava sr�comn as bichos e afastar-me dos outros homens.As mãos dofam-me, as pernas doíam-me, os pés doscabelos doíam-me. Não queria imaginar o que aconte-ceria lá fora, o que tinha acontecido. Fatos possíveismisturavam-se a coisas absurdas. Evidentemente. . . Estapalavra solta, repetida, enfurecia-me. Pouco a poucoserenava. Seu Ramalho, no meio das conversas, dizia:- "Eu lhe conto." E não contava nada. D. Adélia cen-surava a filha com um gemido: - "Hum! hum!" AntB-nia dava uma ri.sadinha ruim e piscava um olho: -"Safada moda." Agora a rua estava em silêncio. Noutrarua havia lágrimas, desespero e cablos arrancados. Um�médico vestia o avental, chegava-se ao mármore do ne-crotério. O homem dos caixões d defuntos preparava�coroas de flores roxas, muitas coroas de flores roxascom fitas roxas. Onde andaria Vitória? Surda, a cabeçacheia de moedas e navios, arrastando-se petas bodegas.UIna senhora gorda e mole, com os sovacos molhados,

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chorava noutra rua. Fuf ao quarto, levantef a roupacaída atrás da mala, estendi-a em cima da cama, exa-minei o joelho rasgado, as bainhas puídas, a gola em-branquecida. Machucada, suja de poeira, lama seca eteias de aranha. Cortá-la ia em pedacinhos, que seriam212i desfiados e atirados ao monturo. Procurei uma escova! e pus-me a limpar os trapos. De momento a momentosupendia o trabalho e soprava a mão ferida. Estu-�pidez deixar aquilo no chão, entre a mala e a parede.I Bem. Agora os panos estavam quase decentes. Algu-mas pancadas na porta gelaram-me o sangue. Cai sen-tado na cama. Tudo perdido. Lá estava o sujeito dapolicia com o chapéu embicado. Olhei o rasgão dojoelho, as mãos grossas. Dificil dobrar os dedos. Enas costas da mão direita, a mais estragada, corria um#traço largo que escurecia. Ao amanhecer estava ver-melho, mas agora ia ficando azulado. Enfim tudo per-dido. Era sair, entregar-me, contar a história botandoi os pontos nos ü. Faria um livro na pri.ão, estudaria,�arranjaria camaradagem com dois ou três presos man-sos. Habituar-me-ia. A gente se habitua em toda a! parte. Dorme à beira das estradas, nos bancos dosjardins. Depois de meia-noite as. letras miúdas dan-çavam na prova molhada, a saleta da revisão enchia-se de fantasmas, a gente lia cochilando, emendavacochilando. Um galego dava ordens aos berros. Nasxnesinhas estreitas, forradas com papel de impressão,as vozes esmoreciam, as canetas sujas, nojentas, ca-lavam-se. Vida porca, safada. Agora estava menos por-ca e maí,s safada. Adulações, medo de perder o empre-go, de voltar às estradas, à caserna, aos bancos dosjardins, à mesa da revisão. O suor molhava-me o pes-coço, a vista escurecia, a memória dava saltos, a res-piração encurtava-se. Uma lembrança vaga de cavalosperseuia-me. Onde teria eu visto aqueles cavalos? Nun-�ca fui cavaleiro, nunca montei direito. Uma queda na �pedras do Ipanema ia-me desmantelando. Era estranhoque aqueles animaís viessem perturbar-me. Fazia um

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minuto que o homem da polícia tinha batido. Sentadona cama, suando, tossindo, as mãos esfoladas, nco�lhia-me. Os animais aperreavam-me. A princfpio nãoconseguira distingui-los. Era um tropel distante, rumorque se confundia com a cantiga dos sapos do açudeda Penha e o zumbido das carapanãs. Ãgora percebiaque eram cavalos correndo. Novas pancadas. Levan-tei-me, cheguei à porta do quarto, estirei a cabeça. Um213maloqueiro, um vagabundo que pedia esmola. Enfure-ci-me e gritei:- Puta que o pariu.Estar um homem em casa, sossegado, escovandoa roupa, e de repente pancadas, amolações, peditórios.- Isso tem cabimento? Dá o fora, vai para o diabo.Pus o paletó no encosto de uma cadeira, dobreia calça, ocultando a parte rasgada, e coloquei-a em cimada mala.- Onde vamos parar com tantos mendigos? Issotem jeito?O quarto estava como nos outros dias. O meu desejoera deitar-me, mas fui à sala de jantar, ainda bastantezangado:- Canalhas, preguiçosos.Derreei-me na cadeira, um peso enorme nos braços:- Safados.Não me referia apena.s aas maloqueiros. De quandoem quando passava a manga do pijama nos olhos mo-lhados. E soprava a palma ferida, mas o ar saía quentee a dor não diminuia. Esse movimento de soprar a mãoquase encostando-a à boca fez-me pensar nos gatos.Ia adormecer, perder a consciência. As coisas afasta-vam-se ou aproximavam-se d° maneira absurda, as pa-redes moviam-se. Não ter consciência. Soprava a mão.Ser como um gato que lambe os pés.Que direito tinha aquele bandido de me vir inco-modar quando eu estava ocupado, escovando a roupa?Então não pode um homem pôr em ordem os seustroços sem ser perturbado.- Isto é casa de puta para qualquer um bater

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e entrar?Porque era que o vagabundo me havia enganadofazendo-se passar por gente da polfcia? Dentro em pou-co outras pancadas me esfriariam o sangue, num se-gundo rolariam multidões de pavores. Ttxdo se repetiria- as mesmas caras, as mesmas perguntas, as mesmasameaças, o julgamento, discursos, a escuridão entre qua-#tro paredes, portas de ferro, fechaduras enormes, ferro-lhos enormes. Levantar-me-ia, atravessaria o corredorcomo se me arrastassem. Outro vagabundo, um vende-214dor ambulante, qualquer pessoa levada por endereçoerrado:- Não é aqui não. Desculpe.Voltarfa para junto da mesa, aguardaria novaspancadas, novas torturas. Porque não se acabava logoaquilo? Bati com a mão na mesa e isto me arrancouum grito que abafei e se transformou em praga imunda.Porque não me vinham buscar os miseráveis da polícia?Porque faziam comigo aquela brincadeira de gato comrato? Eu os acompanharia, mostraria a roupa rasgada,os fios da gravata no monturo, falaria no cigarro ofere-cido pelo vagabundo. Porque não vinham logo? Muitosanos nas redes sujas, nas esteiras de pipiri. Escreveriaum livro. A idéia do livro aparecia com regularidade.Tentei afastá-la, porque realmente era absurdo escreverum livro numa rede, numa esteira, nas pedras cobertasde lama, pus, escarro e sangue. Olhava as telhas, move-diças, a garrafa de aguardente, movediça. O livro sópoderia ser escrsto na prisão, em cima das pedras, naesteira, na rede, sob as cortinas de pucumã. Um livroescrito a lápis, nas margens de jornais velhos. Os obje-tos deformavam-s. A janela e a porta do quintal,�a porta da cozinha e a do corredor estavam cheias degente. Estirei o pescoço, observei o homem que enchedornas e a mulher que lava garrafas. Retraí-me. Emvez de se entregarem ao trabalho, eles me espionavam.O movimento de estirar o pescoço para vê-los era hor-rível. O que mais me doía eram os braços, principal-

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mente as mãos. Encolhi o pescoço, tentei metê-lo nocorpo. Um, dois, um, dois. Eram as pancadas do pên-dulo. Não prestava atenção a elas durante o dia. A noitepercebiam-se bem, mas de dia, com o barulho que vinhade fora, não havia relógio. Como Vitória se demoravalO galope dos cavalos não me saía dos ouvidos, crescia,como se avançasse no paralelepípedo. Donde vinhamaqueles cavalos? A cabeça tombou num cochilo. Apru-mei-me, bocejei, estirei os braços doloridos. Recostei-mena cadeira e cerrei os olhos. Passei a língua seca comolfngua de papagaio pelos beiços gretados e cobertos depelículas. Arrastei-me até a moringa, bebi alguns coposde água. Tantas horas com a garganta pegando fogo,suportando aquilo inutilmente. Com certeza a febre ia215crescer. O corpo morrinhento pedia cama. O rumor dascarapanãs misturava-se ao tropel dos cavalos. Achei-mesentado, murmurando pala,vras desconexas. O suor cor-ria entre os pêlos da barba. Passei o lenço na cara e nopescoço, mas retirei logo a mão.- Sou uma pessoa muito hábil.Os cavalos tinham agora um trote macio que nãose distinguia da música das carapanãs. Aborrecia-mesaber que os cavalos nâo existiam, as carapanãs nãoexistiam, os indivfduos que atravancavam as portasnão existiam.- Uma pessoa muito hábil.A roupa molhada colava-se ao corpo. A sede voltou,bebi outro copo de água. Pensei em fumar e isto meproduziu um estremecimento. Mas então? Um sujeitohábil, sem dúvida. Tudo muito direito. Na casa ded. Rosália as crianças gritavam e Antônia lavava alouça. Na casa de seu Ramalho d. Adélia varria a salade jantar. Ouvia-se o chiar da vassoura. Pancadas depratos, gritos de crianças, risos, pragas.- Um sujeito hábil.Que burrice repetir isso! Estirei a cabeça cautelosa-#mente. A mulher magra e o homem triste dedicavam-se

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às suas ocupações e não me viam. Uma criatura ordi-nária, um funcionário que faltava à repartição. Vitóriavoltou, mas isto não teve importância. As carapanãse os cavalos preocupavam-me demais para prestar aten-çâo a Vitória. Um funcionário. Pus-me a rir como umidiota. Continuaria a escrever informações, a bater noteclado da máquina, a redigir artigos bestas. - "Per-feitamente." O sorriso sem-vergonha concordando comtudo. - "Perfeitanente." Não tinha praticado nenhu-�ma façanha, não tinha conversado com o vagabundo,na véspera. Eu? No quarto pequeno junto à escada,�o cheiro do gás era insuportável. Andavam percevejosno papel da parede, manchado e descolado. Aborre-cia-me o estudo cacete de Dagoberto. Mas quando eleempurrava a porta, jogava na cama a cesta e o com-pêndio, acovardava-me, sorria, abria o livro ou pegava0 osso e começava a amolação. - "Perfeitamente, Da·goberto." Para que diabo me servia conhecer as vérte-bras e o frontal? Não fa ser médico. Mas lia, para não216desgostar o rapaz. Olhei a garrafa de aguardente, vazia,pensei em seu Ivo, em seu Earisto e em Cirilo de�Engrácia. Com os braços esmorecidos sobre a mesa,via as paredes afastarem-se, as telhas subirem e des-cerem. Ia dormir, descansar, tresvariar. Levantei-me dechofre. Um rebuliço na casa de seu Ramalho. Fui encos-tar-me à parede. Critos, o cabo da vassoura batendo no�chã.o, risos nervosos e a fala morna de d. Adélia:- Quem faz neste mundo paga é aqui mesmo.Quando Deus tarda, vem em carninho.Olhei os quatro cantos. Não tinha nada comaquilo. Ia trancar-me, enrola.r-me nos lençóis, tremer,ranger os dentes como um caititu. Não tinha nada comaquilo. A garrafa de aguardente estava vazia. As cara-panãs zumbiam. O vagabundo me dera um cigarro.A mulher tinha dito : - "Deixa de luxo, minha filha.Será o que Deus quiser." Eu ficava afastado de tudo.Afastei-me da parede e arregalei os olhos para a mu-lher que lava garrafas e o homem que enche dornas.Não tinha nada com aquilo. - "Um artigo, seu Luís."

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Seu Luís escrevia. - "Perfeitamente, Dagoberto." Eu?As telhas dançavam, era extraordinário que se pudes-sem equilibrar, não viessem espatifar-se no chão, ba-ter-me na cabeça.- Não fui eu, gritei recuando e tropeçando na ca-deira.Os cabelos arrepiavaxr-.se, um frio agudo entrou-me�na carne, os dentes tocaram castanholas. Nada haviaacontecido comigo. Senti-me vítima de uma grande in-justiça e tive desejo de chorar. Vieram-me lágrimas,que esmaguei. Eu estava de parte, ouvindo o zunzumdas carapanãs.- Nâo fui eu. Escrevo, invento mentiras sem difi-culdade. Mas as minhas mãos são fracas, e nunca rea-lizo o que imagino.Olhei as mãos. Pareceram mais curtas e mais largasque as mãos ordinárias que escreviam artigos elogiandoo governo. Os dedos inchados eram mais curtos e maisgrossos. Necessário fechar as tortas. Outro agabundo� �riria bater e confundire cõm o homem da policia.�21?Os braços dofam-me, as mãos penduradas dofam-me.Cruzei os braços, fui ã cozinha. Vitória cortava carneem cima da mesa preta.- Vitória, estou sem fome, ouviu?A mesa preta do necrotério. O médico, de avental.Numa rua afastada, uma mulher chorando. As minhasmãos em carne viva.- Estou muito doente, Vitória. Não quero almo-#çar. Dê a bóia a algum maloqueiro que aparecer por aí.E feche as portas depois. Vou deitar-me, não me agüen-to nas pernas.i · ·A réstia descia a parede, viajava em cima da cama,saltava no tijolo - e era por ai que se via que o tempopassava. Mas no tempo não havia horas. O relógio dasala de jantar tinha parado. Certamente fazia semanasque eu me estirava no colchão duro, longe de tudo. Nosrumores que vinham de fora as pancadas dos relógios

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da vizinhança morriam durante o dia. E o da estava�dividido em quatro partes desiguais: uma parede, umacama estreita, alguns metros de tijolo, outra parede.Depois, a escuridâo cheia de p_ ancadas, que às vezesnão se podiam contar porque batiam vários relógiossimultaneamente, gritos de crianças, a voz arreliada ded. Rosália, o barulho dos ratos no armário dos livros,ranger de armadores, silêncios compridos. Eu escorre-gava nesses silêncios, boiava nesses silêncios como numaágua pesada. Mergulhava neles, subia, descia ao fundo,voltava à superfície, tentava segurar-me a um galho.Estava um galho por cima de mim, e era-me impossivelalcançá-lo. Ia mergulhar outra vez, mergulhar paraempre, fugir das bocas da treva que me queriam mor-�der, dos braços da treva que me queriam agarrar.O som de uma vitrola coava-se nos meus ouvidos, aca-riciava-me, e eu diminuía, embalado nos lençóis, que setransformavam numa rede. Minha mãe me embalavacantando aquela cantiga sem palavras. A cantiga mor-ria e se avivava. Uma criancinha dorm?ndo um sonocurto, cheio de estremecimentos. Em alguns minutos acriancinha crescia, ganhava cabelos brancos e rugas.Nâo era minha mâe a cantar: era uma vitrola distante,218tão distante que eu tinha a ilusão de que sobre o discopasseavam pernas de aranha. Um disco a rodar seminterrupção a noite inteira. Não. Estávamos na segun-da parede, e eu subia a parede, acompanhava a réstiacomo uma lagartixa. Marasmo de muitas horas, solu-ção de continuidade que se ia repetir. Cairia da pa-rede, como uma lagartixa desprecatada, ficaria no chão,mofdo da queda. Quem teria entrado no quarto durante.a inconsciência prolongada? Moisés e Pimentel teriamvindo? Seu Ivo teria vindo? Lembrava-me de figurascurvadas sobre a cama. Não eram os meus amigos.Eram tipos de caras esquisitas, todos iguais, de bocasnegras, línguas enormes, grossas e escuras. Quantosdias ali no colchão áspero, como um defunto? Um ho-mem sem rosto, sentado na cadeira onde tinha ficadoo paletó, falava muito. Que dizia ele? Esforçava-me por

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entendê-lo, mas tinha a impressão que o visitante usavalíngua estrangeira. Era como se me achasse num ci-nema. Apenas compreendia de longe em longe algumaspalavras. Cansava-me e desejava que o homem se fosseembora. Não percebia que me importunava, que meobrigava a esforços enormes para entender uma lfnguaestranha? O desconhecido continuava a falar. Eu subiaa parede novamente e corria atrás da réstia. Cairia notijolo outra vez, achatar-me-ia ouvindo o monólogo in-compreensível. Receava que o homem sem rosto me jul-gasse estúpido. Queria dormir, arregalava os olhos eabria os ouvidos. Certamente dizia coisas sem nexo, e odesconhecido me chamava imbecil, com palavras in-gl.esas. Um buraco ao pé de uma cerca. Eu tombavano buraco, ia descendo lentamente. E, enquanto descia,encontrava no caminho muitas flores que desciam tam-bém, sem peso, como flocos de algodão. Subia, eracomo se o meu corpo se transformasse em nevoeiro.�Tornava a descer, tornava a subir, as flores caíam sem-pre numa chuva silenciasa. As flores não me davam#nenhum prazer. Desejava livrar-me delas, interromperaquelas viagens para cima e para baixo, andar na terra.Escancarava os olhos. O homem sem rosto havia desa-parecido, e eu tinha agora um livro aberto sobre o col-chão. Não sabia quem me trouxera o livro, se ele surgira antes ou depois da visita. As letras saíam dos luga.219res, deixavam espaços em branco, espalhavam-se numachuva silenciosa. Apertando as pálpebras, esfregando-as,aproximando e afastando o papel, conseguia conter adispersão. Impossível adivinhar o sentido de uma pala-vra. Língua estrangeira, tão estrangeira como o soli-lóquio monótono. Sem memória, um idiota. Chorava.batia com a cabeça no ferro da cama, puxava os ca-belos. Olhava as mãos. As unhas crescidas e sujas,a escoriação da palma secando e cicatrizando, os dedos' compridos, escuros, com uns nós muito grossos. Sem° memória. Que teria acontecido antes? A confusão sedissipava, a réstia avançava no tfjolo, trepava na ca-

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deira onde o homem se tinha sentado, ganhava o pa-letó estendido no encosto. O paletó me espiava com umolho amarelo que mudava de lugar. A calça continuavadobrada sobre a mala coberta de poeira. A sentinelacochilava no portão do palácio, encostada ao fuziÏ; An-dré Laerte andava como um gato; Amaro vaqueiro,aboiando, laçava a novilha careta; cabo José da Luz' caminhava para a cadeia pública, todo pachola; Da-goberto punha na minha cama a cesta de ossos e ocompêndio de anatomia. Eu negava o livro que estavaaberto em cima do colchão. Tinham deixado ali aquele�volume inútil. Lia-o pensando em ossos. Provavelmentefora Moisés que o trouxera para me distrair. As pala-vras iam-se tornando claras, mas não se reuniam. Bomcamarada, Moisés. Dera-me um livro para me distrair.A réstia descia a cadeira, atravessava os tijolos e ga-nhava w parede. O cego dos bilhetes de loteria apregoavao número, batendo com o cajado no chão do café; amulher da Rua da Lama cruzava os dedos magros nosjoelhos; Lobisomem parecia um velho decrépito. Essasfiguras vinham sem nitidez, confundiam-se. Antôniaarrastava os chinelos, mostrava as pernas cobertas demarcas de feridas e cantava uma cantiga vagabunda.Mas a cantiga se transformava: "Assentei praça. Napolfcia eu vivo..." E Antônia era o cabo José da Luz.Em pé, defronte da prensa de farinha, oferecia-me umaxfcara de café. Antônia, cabo José da Luz, Rosenda- uma pessoa só. As vezes apareciam três corpos juntoscom rostos iguais, outras vezes era um corpo com trêscabeças. Afinal surgia um vfvente que tinha três nomes.220' Agarrava-me ao livro, compreendia vagamente o que,estava escrito, mas ficava-me a certeza de que havia alivários trabalhos, feitos por muitos indivíduos. Chineses.Uns chineses brigões, revoltados. Lembrava-me dos chi-neses que lavam roupa, fabricam ventarolas, vendem' bagatelas, juntam-se às caboclas. Muitos livros arruma-dos, formando um livro incompreensivel. Fernando In-guitaf andava pela Rua do Comércio, o braço carregado

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de voltas de contas, o cigarro babado no beiço que searregaçava, descobrindo os dentes enormes num sorrisoparado. O som da vitrola ia quase desaparecendo, a la-gartixa subia a parede. Amaro vaqueiro, agitando o laço,mastigava o cigarro de palha e mostrava os dentespretos num sorriso parado. A cadeira suja de poeira,a mala suja de poeira. A roupa havia desaparecido.Seria bom levantar-me, procurar qualquer coisa para¡ me vestir. Pouco tempo antes a roupa estava ali, no! encosto da cadeira e em cima da mala. De repente umsumiço. Quem me tinha dito aquele nome estranho?#; Fernando Inguitai, a lagartixa, a réstia, Amaro va-queiro. A vitrola cantava baixinho: - "Fernando In-guitai." Tentava sentar-me. Se isto me fosse poss.ível,procuraria roupa. Virava-me com dificuldade. Porquenâo entrava logo a pessoa que estava na sala? - "Obri-gado, Vitória. Não quero comer. Traga um copo deágua." Vitória afastava-se arrastando os pés, levando abandeja com a comida que me dava engulhos. Minutosdepois, lá vinha, chap, chap, resmungando, a cara fe-chada, e entreava-me o copo. Eu bebia, molhando as�cobertas. - "Obrigado, Rosenda." Ficava suando e ar-quejando, a vista escurecia, estirava-me na prensa defarinha, junto ao muro. O barulho do descaroçadorde algodâo nâo me deixava dormir, os passos de Vitóriamorriam no corredor. Meu pai estava deitado, muitocomprido, envolto num pano que se dobrava entre aspernas e tinha no lugar da cara uma nódoa vermelhacheia de moscas. As moscas não se mexiam, mas faziamum zumbido horrivel de carapanã.s. O olho de vidro depadre Iná.cio estava parado, suspenso no ar, forado corpo. A batina de padre Inácio, o capote do velho' Acrfsio, a farda de cabo José da Luz e o vestido ver-f¡ melho de Rosenda estavam parados, suspensos no ar,221sem corpos. As carapanâs zumbiam. Os pés de CamiloPereira da Silva, escuros, ossudos, safam por uma daspontas do marquesão, medonhos Eu atravessava o cor-

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redor, ia à sala, voltava a deitar-me na prensa, abriao livro que tinha chineses revolta,rlns. Mas as pálpebras�a cerravam-se, as carapanãs e o descaroçador enchiam-mea cabeça. Que motivo tinha Fernando Inguitai pararir-se? Empurrava os travesseiros e tentava abrir osolhos. Se pudesse levantar-me, tudo aquilo desapare-ceria. Iria conversar com o homem que me esperavana sala. - "Não há chinês chamado Fernando." Onde' tinha ouvido aquele nome de Inguftaf? Se Vitória me�trouxesse um copo de água. .. Ali com sede, morrendo,sem um diabo que me desse uma xicara de café, umcopo de água! Embalava-me com isto: - "Sozinho,sozinho, morrendo à mingua, com sede." Era bom quetodos estivessem longe. O continuo da repartição, tãomagro, tão velho, tão triste, movia-se trôpego. D. Ad-�lia dançara como carrapeta, e agora era aquilo que sevfa, mole, acabada, uma lástima. Albertina de tal, par-teira diplomada. Quando eu entrava na repartição,apressado e fora da hora, o contínuo velho tinha um�sorriso doce e alguma informação útil. Os meus olhosabriam-se, fechavam-se, tornavam a abrir-se. Os caibrosengrossavam, torciam-se, alvacentos e repugnantes comocobras descascadas. "Greve no caso de reação." Alguns�letreiros estavam raspados, outros desapareciam sob asmanchas que as águas da chuva tinham produzido. Mashavia letreiros novos. As crianças das escolas olhavam�ara eles. O homem cabeludo que vendia aguardentepó cuidava da sua vida. Albertina de tal, parteira diplo-mada. Onde estava a minha roupa? Queria vestir-me,sair pela rua, ler os jornais. Que diziam os jornais?Subir o morro do Farol, entrar nas bodegas, beber ca-chaça. Seu Ivo me visitara, acocorara-se junto à parede.- "Leve a roupa, seu Ivo." Seu Ivo tinha vestido acalça rasgada e o paletó sujo. Talvez nâo tivesse ves-tido aquela imundfcie, talvez fosse tudo um sonho. Umhomem na sala esperava com paciência que me restabe-lecesse. Sair, entrar no café, viajar nos bondes. Ondeestava a minha roupa? A cadeira perto da cama, o livrofechado sobre a palha. - "Leve isso daf, seu Ivo.222

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iI#A calça está rasgada. Cosa o rasgão com uma corda."Albertina de tal, parteira diplomada. Escuridão. Umestremecimento, uma queda. Ia cair da cama, o chãose abriria, eu rolaria pelos séculos dos séculos foradisto. O espfrito de Deus boiava sobre as águas. Livra-�va-me do susto, pouco a pouco ia resvalando no entor-pecimento. Os caibros faziam voltas, as telhas se equf-libravam por milagre. Algumas dobras daquelas coisasbrancas e moles desciam, aproximavam-se da minha�boca, davarrx-me náuseas. A vitrola dizia: - "FernandoInguitai." Os reisados cantavam defronte da casa de seuBatista. Os mateus gritavam: - "Abra a porta, ioiô."E as figuras todas: "Aqui estou na vossa porta comoum feixinho de lenha." Seu Batista não abria: espe-rava a cantiga que fazia as janelas se escancararem.E as figuras, o embaixador, o rei, a burrinha, os ma-teus, ficavam na calçada como um feixinho de lenha,fedendo a suor, gemendo os versos, até que seu Batista,importante, abria a sala, surgia vistoso, baixinho, ves-tido em rcbe-de-chambre. O feixinho de lenha entravae cantava, seu Batista recolhia os capacetes dos ma-teus, a coroa do rei, a espada do errbaixador, os lenços�das figuras, punha uns níqueis em tudo isso. O zumbidodas carapanãs era insuportável. - "Um copo de âgua,Vitória." Vitória não ouvia, e a leseira recomeçava. Nãohavia escuridão, a réstia subia a parede. - "Leve aroupa, seu Ivo." Seu Ivo se acocorara a um canto,silencioso, babando-se. Pimentel não aparecia. Devia teraparecido, mas nâo me lembrava dele. Com certeza vie-ra num momento em que a febre era muito forte. Quedoidices teria eu dito na presença de Pimentel? Um,dois, um, dois. Marchava - e não podia levantar-meda cama. Quatro paredes. As quatro paredes da re-partiçâo esmagavam-me. Algumas horas depois da fun-ção, o feixinho de lenha, composto de mateus, figuras,burrinha, rei, embaixador, suaria arrastando a enxadano eito. - "Parem essa vitrola." Fernando Inguitai,

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o braço carregado de voltas de contas, andava pela Ruado Comércio, fumando, sorrindo. Haveria alguém nestemundo que se chamasse Inguitai? As cascavéis e asjararacas tomavam banho com a gente no poço daPedra. Uma delas se enroscara no pescoço de meu avô.�223Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva saparteava no chão de terra batida, uma alpercata salta-va-lhe do pé. Instituto Iistórico e C+eográfico do Espí-�rito Santo, Instituto I4istórico e Cleográfico do RioGfrande do Sul. Ria-me como um idiota. Provavelmentehavia institutos históricos e geográficos por esses lu-gares. Certas pessoas empurravam outras nas escadase diziam: - "Desculpe:' O cego dos bilhetes de loteriacantava o número, batendo cam o cajado no cimentodo café. Virava-me para o espelho. Por detrás das letrasbrancas, rostos medonhos arreganhavam os dentes episcavam os olhos. As letra,s torciam-se, os caibros tor-ciam-se, baixavam, brancos, moles, como cobras descas-cadas, 1e.384. O cajado batendo no cimento, avançando, para mim, ameaçando-me com uma tira de papel, que? engrossava e queria morder-me. Moisés aproximava-se,' comprava a tira de papel, que se enrolava nos dedoadele, e lia em voz alta uma infinidade de vezes: -"16.384." Eu ia fugir, mas Fernando Inguitai estava nacalçada, esperando-me para vender uma volta de contas.- "Vai-te embora, Moisés." Não queria voltas de con-tas nem queria ouvir a leitura daquele número. Nãoera número: eram palavras incompreensiveis, históriasda China. Moisés virava a página, que ficava mexen-do-se. A cadeira mexia-se. Afastava-me, com medo dacadeira. No dia seguinte, quando viesse varrer o quarto,, Vitória a poria no lugar do costume, junto à mala, mas#durante uma noite inteira o móvel caprichoso não medeixaria descansar. Eu tremia e receava que Moisés selosse embora. Voltaria o silêncio, a cadeira se chegaramais à cama. - "Continue, Moisés. E isso mesmo." Nãoo entendia, mas aprovava-o com a cabeça e com pala-vras assim. A voz rolava, lenta e monótona, o dedo

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comprido virava a página e gesticulava diante da minha cara. Passavam chineses armados. E o dedo enro,la,va-se, dava um nó. A leitura era um zumbido, unenxae de carapanãs lia o livro dificil. Estava a ba�lançar-se numa rede, ia acima e vinha abaixo. E quan-do subia, abria os olhos, via o dedo perto das minhasventas; quando descia, ouvia o arranhar da vitrola. Osratos do armário dos livros roiam o disco da vitrola,e a vitrola dizia baixinho: - "Fernando Inguitai."224iA réstia sumia-se, Moisés levantava-se, puxa.va a cor�rentinha da lâmpada, tornava a sentar-se. - "Obrigardo, Moisés." Ali perdendo tempo, lendo para me distrair.Excelente camarada. - ·'E preciso que dr. Ciouveia man·de limpar estas paredes." Cafa em mim, arrepen-dia-me de ter falado. Certamente as paredes necessita·vam limpeza, zangar-me-fa se alguém me dissesse quenão, mas a necessidade exigia explicação, e não mepoderia fazer compreender. Ao mesmo tempo temia queo judeu mangasse de mim por eu haver interrompido aleitura com uma frase besta tamos discutir. fteceava�encolerizar-me e ser grosseiro com um visitante. Se eleconcordasse comigo, seria por eu estar doente. Não meconformava com isto. Preciso da condescendência dosoutros? Sou alguma criança? Porque tinha ele suspen-dido a leitura e esbugalhava para mim aqueles olhosde mal-assombrado? Seria melhor destampar logo e declarar francamente que as paredes não necessitavamlimpeza. De qualquer modo seria fácil um rompimentoentre nós. Cada qual para o seu lado, cada qual comas suas idéias. Moisés levantava-se, despedia-se. Eu es-condia as mãos nas cobertas, enrolava o pano debaixodo queixo e tremia, pedia-lhe com os olhos que nãome deixasse só entre aquelas paredes horrfveis. AgoraMoisés me havia abandonado, e eu batia os dentes comoum caititu. As paredes cobriam-se de letreiros incendiá-rios, de lágrimas pretas de piche. As letras moviam-sedeixavam espaços que eram preenchidos. Estava ali umtipógrafo emendando composição. E o piche corria, der-

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ramava-se no tijolo. Ameaças de greves, pedaços daInternacional. Um, dois... Impossivel contar a,s legen-das subversivas. Havia umas enormes, que iam de umao outro lado do quarto; uma,z pequeninas, que se tor-ciam como cobras, arregadavam os olhinhos de cobrasmostravam a lingua e chocalhavam a cauda. As letrastinham cara de gente e arregaçavam os beiços com fero-cidade. A mulher que lava garrafas e o homem queenche dornas agitavam-se na parede como borboletasespetadas e formavam letreiros com outras pessoas quelavavam garrafas, enchiam dornas e faziam coisas dife-rentes. A datilógrafa dos olhos agateados tossia, asfilhas de Lobisomem encolhiam-se por detrás das ou-225tras letras, AntBnia arrastava as pernas grossas cobertas de marcas de feridas, a mulher da Rua da Lama''' cruzava as mãos sobre o joelho magro e curvava-separa esconder as pelancas da barriga escura. Um chorolongo subia e descia: - "Que será de mim? Valha-meNossa Senhora." Um moleque morria devagar, mutila.do, porque havia arrancado os tampos da filha dopatrão. Fazia um gorgolejo medonho e vertia piche daschagas. 16.384. O cego dos bilhetes batia com o cajado, na parede. - "Afastem esta cadeira." Seu Ivo estava de#cócoras, misturado às outras letras. A calça rasgada' e o paletó sujo eram cor de piche. Cirilo de Engrácia,carregado de cartucheiras e punhais, encostava-se a umaárvore, amarrado, os cabelos cobrindo o rosto, os péscom os dedos para baixo. A sentinela cochilava no por-tão do palácio. Um ventre enorme crescia na parede,uma criatura mal vestida passava arrastando a filha,; pequena, um brilho de ódio no olho único. Sinha Tertagemia: - "Minha santa Margarida.. " O dono da bo-dega, triste, fincava os cotovelos no. balcão engordu-rado. As crianças faziam voltas em redor da barca deterra e varas. A rapariga pintada de vermelho espalhavaum cheiro esquisito. O engraxate escutava histórias decapueiras. O homem acaboclado cruzava os braços, moa-�

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trando bfceps enormes. O mendigo estirava a pernaentrapada e ensangüentada. As mosc:.s dormiam, e o�mendigo, com a muleta esquecida, bebia cachaça e ria.Passos na calçada. Quem ia entrar? Quem tinha negó-cio comigo àquela hora? Necessário Vitória fechar asportas e despedir o hóspede incômodo que não se arre-dava da sala. Mas Vitória contava moedas, na parede,resmungava a entrada e a saída dos navios. A placa azulde d. Albertina escondia-se a um canto, suja de piche.Todo aquele pessoal entendia-se perfeitamente. O ho-mem cabeludo que só cuidava da sua vida, a mulherque trazia uma garrafa pendurada ao dedo por umcordão, Rosenda, cabo José da Luz, Amaro vaqueiro,as figuras do reisado, um vagabundo que dormia nosbancos dos jardins, outro vagabundo que dormia de-baixo das árvores, tudo estava na parede, fazendo umzumbido de carapanãs, um burburinho que ia crescendoe se transformava em grande clamor. José Baía acenar226varme de longe, sorrindo, mostrando as gengivas ba �guelas e agitando os cabelos brancos. - "José Bafa,meu irmão, estás também aí?" José Baía, tr8pego, rompia a archa. Um, dois, um, dois. . A multidão que�fervilhava na parede acompanhava José Baía e vinhadeitar se na minha cama. Quitéria, sfnha Terta, o cegodos bilhetes, o contínuo da repartição, os cangaceirose os vagabundos, vinham deitar-se na minha c,ama.Cfrilo de Engrácia, esticado, amarrado, marchando naspontas dos pés mortos que não tocavam o châo, vinhadeitar-se na minha cama. Fernando Inguitai, com obraço carregado de voltas de contas, vinha deitar se naminha cama. As riscas de piche cruzavam-se, forma-vam grades. - "José Baia, meu irmão, há que tempo!"As crianças corriam em torno da barca. - "José Baía,,meu irmão, estamos tão velhos! " Acomodavam-se todos.16.384. Um colchâo de paina. Milhares de figurinhasinsignificantes. Eu era uma figurinha insignificante emexia-me com cuidado gara não molestar as outras.16.384. famos descansar. Um colchão de pain&. s

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22?TVisão de Graciliano RamosoTTo cBux� � �A mestrio singular do romancista Graciliano Ramo,treside no seu estilo. Para salvar esta frase da apreciaçãocomo "lugar-comum" í preciso definir o que é estilo: escolhade palavras, escolha de construções sintáticas, escolha de rit-mos dos fatos, escolha dos próprios fatos, para conseguir umacomposição perfeitamente pessoal: pessoal, no caso, "d ma·neira de Graciliano Ramos". Estilo í escolha entre o quedeve f icar na página escrita e o que deve ser omitido; entreo que deve perecer e o que deve sobrevlver. Vamos ver o queGraciliano Ramos escolhe.B muito meticuloso. Quer eliminar tudo o que não á#essencial, as descrições pitorescas, o lugar-comum das frases-feitas, a eloqüência tendenciosa. Seria capaz de eliminar ain-da páginas lnteiras, capttulos inteiros, eliminar os seus roman-ce inteiros, eliminar o próprio mundo: para guardar apenaJ�aquilo que é essencial, isto í, conforme o conceito de Bene-detto Croce, o elemento "lfrico". O lirismo de GracilianoRamos, porém, í bem estranho. Não tem nada de musical,nada do desejo de dissolver em canto o mundo das coisas;acredito-o incapaz de escrever o última página de MolequeRicardo, de losí Lins do Rógo, talvez a mais comoventepágina de prosa da literatura brasileira. O lirismo de Graci·liano Ramos é amusical, adinâmico; í estático, sóbrio, clbssi-co, classicista, traindo d,i vezes, num oculto passado parna-siano do escritor. Não quer dissolver o mundo agitado, querfixá-lo, estabilizá-lo. Elimina implacavelmente tudo o qusnão se presta a tal obra de escultor, dissolve.o em ridicula-rias, para dar lugar aos seus monumentos de baixeur.Com efeito, o material desse classicista á bem estranho:é o mundo in f erior; às maiJ das vezes, o mundo inf ernal. Lá,231as almas são caçadas por um turbilhão demoníaco de angüs-tias, como as almas no átrio do Inferno de Dante:"Quivi sospiri, pianti ed altl guaiRisonavan per !'aer senza stelle...

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Diverse lingue, orribili /avelleParole di dolore, accenli d'iro...uma fortuna sem fim; o próprio Dante apiedou-sedos que. nor hanno speranzn di morte,�E ta lor creca vita é tanto bo.ssa,Che invidiosi son d'agni altra sorle."São aqueles dos quais o romancista Graciliano RamoJtambém se apieda: pois esse homem aparentemente tão duroestá cheio de misericórdia. Procura-Ihes a "altra sorte", esta-bilizando, classicamente, o turbilhão, eliminarulo tudo o que�não é essencial; erigindo-os em monumentos dt baixeza, comocriaturas petrijicodas dum maligno Demiurgo, restos fósJeiJduma criação malograda, redimidos, enfim, pela criação mor-tífera da arte. Graciliano Ramos é o clássico deste mundoda mortc.E' um clássico. Mas - contradição enigmática - é urnclbssico experimentedor. A estréia excepcionalmente tardia,com mais de quarenta anos de idade, deve ter sido precedidade vagarosos preparativos dum experimentador; e mesmodepois continuou sempre experimentado. O nosso amigo co-mum Aurélio Buarque de Holanda chamou-me a atençãopara a circunstância de representar cada uma das obras deGraciliano Ramos um tipo dijerente de romance. Com ejeito:Caetés é dum Eça brasileiro; São Bernardo tem algo de umBalzac rural; Angústia antecipa o "nouveau roman" e VidasSecas lembra certos contistas russos, Babel por exemplo. Gra-ciliano Ramos faz experimentos com a sua arte; mas como essemestre singular não precisa disso, temos af um indício certode que está buscando a solução dum problema vital.Eu não disse nada para comparar. Comparações sãofáceis e inúteis, produzem apenas apreciações de clichã. Nãochegam a penetrar no coração da criação pessoal; e justamen-te isto é a minha mui modesta ambição. Para tentá-lo, vou232escolher um processo estranho, estranho como o meu assun-to. Vou construir uma teoria para apanhar a minha víüma,vou construí-la de pedaços de outras criações, alheias, comas quai:: Graciliano Ramos não tem nada que ver, vou colheresses pedaços, entregando-me ao jogo livre das associações.

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"Gastei meses construindo esta Marina que vive dentro demim, que é di f erente da outra, mas que se con f unde comela." Vou construir o meu Graciliano Ramos."Meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficavadias inteiros manzanzando numa rede armada nos esteios docopiar, cortando palhas de milho para cigarros, lendo o Car-#los Magno, sonhando... ' Logo me lembro do pintor incom-parável da vida estática, imóvel, inconsciente, nos "engenhos"escravocratas da Rússia tzarista, daquele Gontcharov de quemme Iembrei quando já Ii comparações do Brasil escravocratacom a Rússia servil. Os romances de Gontcharov pintamclassicamente um mundo primitivo, amoral, "a-trabalhador",preguiçoso demais para trabalhar, amar, viver. Parecem idí-�lios de pura "art pour 1'art"; são acusações terríveis contrao regime, contra o Estado russo, que quis rnovimentar essemundo imóvel por pretensas reformas econ6micas e sociais.O primeiro romance de Gontcharov chama-se: Uma HistóriaSimples; o último: A Queda.O satírico malicioso dagueles movimentos é outro russoque me ocorre, Saltykov-Chtchedrin, também partidário daimoóifidade conservadora, contra os experimentos liberais dostzares de então, e gue a todos pareceu um revolucionário,menos à censura, d qual e1e sabia enganar pela sua mestriasingular de estilista. Saltykov escreveu uma maravilhosa His-tória da Rússia, romanceada, começando com a chamada,pelo povo russo, dos três irmãos Ruriks, fundadores da dincts-tia, para "sistematizar e codificar a desordem e a violência".À boa maneira das epopéias, os irmãos sonham, na noite ante-rior d coroação, a futura história russa, e o sonho é tão ter-rfvel que dois dos irmãos logo se suicidam. Ao terceiro, po-rém, diz o povo: "Que te Importam as mentiras que os nossosdescendentes vão aprender na escola?" E ele funda o impériorusso, "o maior império da história, maior do que Roma; poisem Roma brilhava o paganismo, e entre nós brilha do mesmomvdo o cristianismo; em Roma raivava a plebe, e entre ru5sraiavam do mesmo modo as autoridades". Assim, tudo ficavabem. Até que, um dia, um tzar teve a idéia desgraçadca de233reformar o Bstado e a civilização. Fundou uma Academia

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de Letras e promulgou uma legislação social, em virtude daqual "foi proibido cozer pão de cimento ou argamassa". Opovo, agradecido, povoou a cidade de monumentos dos seusprfncipes, na esperança de fazer petrificar, parar, assim, asatividades deles. Mas, pelos beneffcios do governo, os homenstransformaram-se em lobos famintos, como numa fábula deSaltykov, O Pobre Lobo, o monstro que não é maligno,mas que não pode viver sem carne e que, por isso, devematar, e invoca a morte salvadora para as vftimas e para simesmo.O monstro lembrcme, por sua vez, o terrfvel Leviatã,�de lulien Green, que vive no coração de inofensivos mestres-escolas, filhas de famflia, rendeiros abastados, para revol-tar-se de súbito, um dia, arremessar-se insaciavelmente, omonstro, por quartos de assassínios, escadas funestas, becosescuros, até descansar, esgotado, à margem do rio noturno,que corre lento, sujo, pela cidade, único resto da paisagemprimitiva que existia antes desse mundo artificial e miserávelde instituições públicas, jornais públicos, mulheres públicas, eque ainda existirá quando tudo isto houver acabado. E omonstro desgraçado curva-se nostalgicamente sobre a águaescura, suja, que Ihe oferece a última possibilidade de salva-ção: o próprio rosto, refletido lá no fundo, é o da moste.Todos os personagens de Graciliano Ramos são taismonstros, revoltedos, caçados, nostálgicos da morte, com osquais o Demiurgo. o "presidente dos imorta.·'s", brinca. A ex-pressão "the president of the immortats" é de Thomas Har-dy, intelectual pequeno-burguês, perdido no "sertão" inglêsde Wessex, a paisagem mais agrária, mais atrasada, mais pri-mitiva da Inglaterra, onde se passam todos os seus romances,t para onde o velho Hardy enfim se retirou, a viver a vidaarcaica e imóvel dos rochedos e pdntanos, abandonando,enfim, o romance para fazer só os seus pequenos poemasendurecidos como monumentos pré-históricos, e cujas rimasjielmente tradicionais anunciam a reconciliação resignada dopoeta com o mundo morto:'Btaek lJ ntght's eope;#But death xrill not appatOne who, past dgubtingJ all.

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Waita !n tmhopr.'O crftico espanhol losé Bergamin gostaria dessas assv-ciações. Confirmam a sua teoria do romance: o leitor perde-se no romance para esquecer o seu mundo, mas reeneontra-seIá, reconhecendo que o seu próprio mundo está chamado adesaparecer: "Perderse para encontrarse, para perderse." Oromance seria um processo de economia mental para apressaro fim do mundo: "Cada novela es la manifestación de ummundo llamado a desaparecer, y que antes de desaparecerquiere aparecer, comparecer: y aparece, comparece em efecto,solicitando, esperando ser juzgado."B a teoria dum espanhol, dum cristão, dum pessimista.A teoria dum espanhol, isto é, dum homem que toma radi-calmente a sério o cristianismo. A teoria dum cristão, istoé, dum homem que sabe que esta vida não presta. ,É umateoria de estética pessimista.Toda literaturcr pessimista eneontra uma resistência faná-tica; Ieitores e críticos não gostam disso. Sentem vagamenteque arte e pessimismo se contradizem. Mas em vez de estu-darem esteticamente a possível contradição, entrincheiram-s �em regires fora da arte, nn filosofia, na ética, para bombar-�dear o romancista com as censuras de "pouca generosidade"ou de nülismo ïnsaudável. Não admito preconceitos. O pes-simismo não é uma moral nem uma filosofia. um estado�de crlma. B preciso esboçar uma psicologia do pessimismo.Penso em Schopenhauer. Não é um sistema filosófico.L um caso psicológico. Pretendeu ser filósofo, ensinar uma�filosofia da salvaão do mundo do sofrimento universal. Mas�a sua personalidade o desmentiu. Ao desprezo filosófico domundo uniu um instinto ardente de propriedade e de prazer.Dinheiro e mulheres signi ficavam-!he al,quma coisa. Quis uti-lizar os homens profundamente desdenhados como meros ins-trumentos dos seus desejos, e quanto mais eles se recusaram,tanto mais os desdenhou. Sofria de hipocondria, de graves ata-ques de pavor noturno, de angústia. Teve uma misericórdiailimitada para consi,go mesmo. Como psicólogo, reconheceuque toda misericórdia para com outros é secreta miscricórdiapara consigo mesmo: e salvou-se moralmente pela ide.ntifica-ão pantefsta do seu eu angustiado com o mundo sof redor,�pela fórmula budista: "Tat twam asi", "Isto, és tu". O seu

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supremo egocentrismo chegou até a negar a realidade do mun-do exterior; considerou a vida um sonho, sonho horrfvel doqual existe apencu uma possibilidade de acordar: em outro235conho, na arte. Na arte, o turóilhão angustiado encontra acalma; a estabilidade do estado primitivo antes da criaçãoé restabelecida. (Como as palavras rimarn, enjim.) A arte éuma astúcia do espírito humano, para f raudar o mau Demiur-go das suas vítimas, para ironizar a criação malograda.A ironia é uma arma suprema. "C'est 1'ironie" - dizMax lacob - "qui 1ui fournit chaque jour une c1é pour sor-tir de sa prison". É um método para anular a obra do De-�miurgo. '"Revogam-se as disposições em contrário". E tor-nam-se inúteiJ todas as revoluções. Em comparação cornaguela ironia supra-realista, todas as revoluções, intimamenteligadas a este mundo de maldição por meio dum otimismocrédulo nas transformações exteriores, parecem ridiculamenteineptas, impotentes contra "the ingenious machinery contrivedby the Gods for reducing human possibilities of amelioralionto a minimum". Acredito que Graciliann Ramos pode con-formar-se com esta frase de Thomas Hardy. Suas convicçõessão as de um revolucionário. Graciliano tem o direito e odever de manter suas convicções revolucionárias. Mas es.·arnão seriam transformáveis em arte, o não ser passando pelafase transicional da eloqüência, que Graciliano detesta. Real-mente, para Graciliano não são transformáveis em arte; e istoé significativo. Luís Padilha e o judeu Moisés não são heróisrevolucionárioJ. Cada vez que o romancista cede d tentação#de formular programas de reformas sociais - c profe.ssora�Madalena fala assim - cai logo na armadilha do seu inimigomais detestado: 0 lugc,.r-comum; no caso o lugar-comum hu-manitário, da "generosidade", que o seu crítico mais incom-preensivo lhe aconselhou. Certamente, a alma deste roman-cista seco não é seca; é cheia de misericórdia e de simpatiapara com todas as criaturas, é muito mais vasta do que ummestre-eseola filantrópico pode imaginar: abrange até o mudoassassino Casimiro Lopes, até a cachorrinha Baleia, cuja mor �te me comoveu intensamente: "Tat twan asi". A misericórdiado pessimista para consigo mesrno é tão compreensiva que

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medita todos oJ meios de salvação, para deter-se apena.s naúltima: a destruição deste rnundo, para libertar todas as crio-turas. "Un mundo, llamado a desaparecer." R preciso destruiro mundo exterior para salvar a alma.A realidade, nos romances de Graciliano Ramos, não édeJte mundo. É uma realidade diferente. Apó,r ter lidoAngústia até o fim, é preciso reler as primeiras páginas, paraZ36compreendã"las. B um mundo jechado em si mesmo. Quemundo éT"Ná ncu minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas insigni f icantes. Depois um esquecimento quase com-pleto" - confessa Luú da Silva em Angústia. E depois:"Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto,perturbam a gente. Vamos andando sem nada ver. O mundoé empastado e nevoento." E confessa: "Não sei se com osoutros se dá o mesmo. Comigo í assim." É assim com todosnós outros, quando entramos no mundo empastado e nevoen-to, noturno, onde os romances de Graciliano Ramos se pas-sam: no sonho. Os hiatos rias recordações, a carga de .acon-tecimentos insignificantes com fortes aJetos inexplicáveis, eisa própria "tícnica do sonho", no dizer de Freud. Ilvaro Lins,�no melhor artigo que se escreveu sobre Graciliano Ramos,observa agudamente a abstração do tempo - "Mas no tempo,não havia horas", cita o crítico - e acrescenta: "As outr,r�personagens são projeões da personagern principal. 7ulião�Tavares e Marina só existem para que Luís da Silva se ator �mente e rometa o seu crime. Tudo vem ao encontro da personagem principal - inclusive o instrumento do crime." Esta,tpalavras do crítico constituem a chave da obra do roman-cista: descrevem perfeitamente a nossa situação no sonho, emqut tudo é criação do nosso próprio tspFrito. Explica-se aJ-sim o extremo egofsmo dos heróis de Graciliano Ramos: é oegotsmo daquele que sonha e para o qual, prisioneiro durnmundo irreal, só ele mesmo existe realmente. A mentalidadeinteiramente amoral do sonho exclui, decerto, toda "generosi-dade"; mas a substitui por um sentimento mais vasto de iden-tificação quase mfstica com as criaturas da própria imagina-�Ção, até a cachorrinha Baleia: "Tat twan asl."O extremo egotsmo do sonho engendra o motivo prln-

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cipal do romancista: cobiça de propriedade. Propriedade dettrra, de mulher, em São &rnardo; oqui e em Angústia, aforma extrema de.rta cobiça, o ciúme. Por isso, nos romancesde Graciliano Ramos, esses aftto,r ultrapassam toda rrfedida;sugerem, ao lado doJ afetos análogos na vida real, a impres-são de sentimentos patológicos. E quando o autor coruideraos monstros da sua angústia de sonho, lança o seu gritomais elementar: "Dinheiro e propriedade dão,me Jempre de-sejos violentos de mortandade e outraJ destrulçõe.t." São palo.vras que exprimern, de maneira perfeita, o duplo stntido do837pensamento de Graciliano Ramos: de um lado, seu socialis-mo revolucionário, Iigeiramente tingido de veleidades de anar-quista, das suas convicções sócio-polfticas; por outro lado,esse mesmo anarquismo, sublimado até a capacidade de cons-truir, em cima da terra arrasada, um mundo novo, o da cria-ção artística.Todos os romances de Graciliano Ramos - e este éo sentido do seu experimentar - são tentativas de destrui-#ção: tentativas de "acabar com a minha memória", tentativasde dissolver as recordações pelos "estranhos hiatos" dumsonho angustiadoTrata-se de saber que mundo de recordações se dissolveassim. A resposta é bastante dif fcil. Surge o clichê de queGraciliano teria sido, na mocidade, um f rustrado sertanejoculto": e sugere aos críticos a idéia de que o romancista estáfurioso contra o ambiente selvagem do seu passado. Mas nãoé assim. Nâo é o sertão o culpado; Vidas Secas é o seu ro-mance relativamente mais sereno, relativamente mais otimista.O culpado í - superficialmente visto numa primeira aproxi �maçâo - a cidade. O herói de Graciliano Ramos é o serta �nejo desarraigado, levado do mundo primitivo, imóvel, parco mundo do movimento. E o vagabundo ("um pobre nordesti �no. . . "); e explica-se o seu ódio balzaquiano ao mundo bur �guês, que conseguiu a estabilidade relativa do comércio d �secos e molhartos. Esta vagabundagem é o aspecto sociológico do egofsmo do sonho quando se choca com a realidade. io desejo violento do vagabundo de restaóelecer-se na terra"Como a cidade me afastara de meus avós." Mas é apena

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uma explicação em primeira aproximação: pois Paulo Honóri �consegue o seu fim, e, contudo, é uma vida malograda. Poquê? Porque o seu criador quer mais do que terra, casa, dinheiro, mulher. Quer realmente voltar aos avós. Voltar �imobilidade, à estabilidade do mundo primitivo. E para ctingir este jim, deve antes destruir o mundo da agitação angu �.tiada, na qual está pres.�Os romances de Graciliano Ramos são experimentos paracabar com o sonho de angústia que é esta vida. Uma lendbudista conta dum homem que correu, ao sol do meio-dupara fugir à sua sombra, que o angustiava; correu, corre �sempre perseguido pelo companheiro sinistro, até que encortrou o grande Sábio, que Ihe disse: "Não continues a f ugiAssenta-te sob esta árvore." E como ele parou, a somb �238desapareceu. A sombra sobre o mundo de Graciliano Ra-mos não é a sombra da árvore da salvação, mas do ediffcioda nossa civilização artificial - cultura e analfabetismo le-trados, sociedade, cidade, Estado, todas as autoridades tem-porais e espirituais, que ele convida ironicamente - no come-ço de São Bernardo - a colaborar na sua obra de destruição.Mas eles mostram-se incapazes de cometer o suicídio propos-to. Entrincheiram-se na "dura realidade", imposta a todas ascriaturas do Demiurgo, e que se arroga todos os atributos daeternidade. O romancista, porém, não se conforma. Trans-forma esta vida real em sonho - pois ao sonho, enfim seacorda. Então, as disposições junestas do Demiurgo seriamrevogadas, e o destruidor poderia dizer, com o Gide dasNouvelles Nourritures: "Table rase. I'ai tout balayé. C'en estjait. le me dresse nu sur la terre vièrge, derrière le ciel drepeupler."O fim é o estado primitivo do mundo - o céu repovoa-do. Então, a angústia já não assusta."Black is night's cope;But death will not appalOne who. past doubtings atl,WaitJ in unhape."Foi a última sabedoria poética do romancista Thomastlardy, versos duros populares e clássicos ao mesmo tempo,rimados em sinal da concordância resi,qnada com o mundo

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- teria sido possível gue o romc..ncista Graciliano Ràmos�escrevesse também, um dia, tais versos. duros, populares eclássicos ao mesmo tempo, versos tradicionais, como os dovelho Hardy. Mas não seriam rimados, seriam versos bran-cos. Pois a primeira rima de Graciliano Ramos já anuncica-ria o Fim do Mundo e - quem sabe - a salvação destemundo.239