Projeto VãoProjeto Vão

Ano I - Número 0

Apresentação

O Projeto Vão surgiu da necessidade de retratar a incompletude de situações diárias dos trens de São Paulo e da vontade de singularizar

a vivência nos trilhos. São fragmentos do cotidiano apressado no cenário urbano, dados

por meio de (micro)narrativas, fashes e imagens captadas do instante.

Vão é o perigo entre o trem e a plataforma. É o espaço que falta para se conhecer uma

história. É o abismo (in)desejável. É o respeito ao caos. É a dúvida do desconhecido. É o

esconderijo do eu. É a ação sem volta.

Apresentação

Era uma vez, e tantas outras vezes, o alarme do despertador que corta os ouvidos dos trabalhadores de segunda à sexta-feira, às cinco e meia da manhã. Era uma vez e, mais quantas vezes serão?, uma princesa que divide o quarto com mais três irmãos, lençol furado, pé descalço, cobertor remendado. Era uma vez, e mais outra vez, um príncipe que fazia do uniforme da firma sua armadura e do trem lotado do final do expediente seu cavalo branco. Eram muitas vezes, então, nossos heróis do cotidiano que matam dragão no dente e que fazem mágica com as contas no final do mês.

BOM DIAsucrilhos toc toc toc toc toc toc cigarro guarda bom dia troco trilho rato TRILHO TRILHO TRILHo TRILho TRilho Trilho trilho trilh o ao desembarcar cuidado com o vão entre o trem e a plataforma barra funda empurra-empurra-na-escadarolante-vou-de-escada-mesmo cigarro subida trombadinha adeus-fone-de-ouvido atrasada cigarro patrão pão cigarro tak tak tak tak tak tak tak tak tak tak tak tak tak tak tak tak tak tak tak até amanhã trilho próxima estação lapa ninguém-me-ligou-hoje pedir esmolas e o comércio ambulante são práticas ilegais não incentive essas ações cigarro ronco sucrilhos salto rato lapa vagão adeus morro solidão

A passagem é três reaise a vida não vale nada

Era quarta. Meio da semana. Já se carregava o cansaço de segunda e terça e a expectativa pra sexta só aumentava.

Só mais dois diazinhos…

Mas, também, pra quê?! Sábado ainda é dia útil pra muita gente. Varejo é assim: folga, só uma vez por semana. Esse é o tipo de pensamento que geralmente passa pela cabeça da Julia todos os dias a caminho da loja.

Mas não nesse dia.

Não depois da semana passada. Não, depois de um namoro de dois anos jogado às traças. Se aquilo não era um relacionamento definitivamente acabado, com certeza estava caminhando para o fim. Decidiu fazer a viagem de metrô, lamentando a situação.

Ele não te merece, fala mal de você,Larga logo esse cara, manda ele ir se foder.

Oi? Será que era isso mesmo que ela tinha acabado de ouvir? Quem teria dito uma coisa dessas? Tinha vezes que Julia costumava falar seus pensamentos em voz alta, mas tinha certeza que não havia pronunciado um som sequer dessa vez.

Tá certo que não se falavam muito durante a semana. Desde que começou a trabalhar na loja, as coisas esfriaram um pouquinho entre eles.

Larga logo esse cara que ele não te satisfaz mais – ela ouviu novamente, bem baixinho.

Quem teria dito isso?! Quem?

Na verdade, era exatamente isso. Julia queria crescer. Não

Precisava de alguém que a entendesse, alguém com quem sonhar junto. Alguém…

Talvez fosse aquele ali, parado ao lado da porta, ao lado do cara de camisa verde.

Bonitinho. A barba por fazer, camisa preta e tênis colorido. Tinha certeza que o viu olhando e, assim que virou, desviou o olhar por vergonha. Agora, segurava-se para não atender a vontade de olhá-la fixamente.

há nada de errado nisso, certo? Digo, ser ambicioso na vida. As pessoas quase sempre levam a ambição para um lado negativo. Mas querer ganhar um pouco mais de dinheiro, conseguir pagar a faculdade e as contas de água e luz antes do mês acabar não é cr ime.

Afinal, ela tinha vindo para a cidade grande pra isso: crescer. A culpa não era dela se as perspectivas mudaram e ele não entendia isso. Casar nessa idade? Mas ela tinha tanta coisa pela frente! Tanto a conquistar, tanto para se decepcionar. Tanto pra se apaixonar. Ela queria saber do que gostava, queria ter coragem de sonhar e correr atrás de seus sonhos. Seus próprios sonhos. Ela queria ser ela.

Não a esposa dele.

E olhava para os lados a procura daquela voz masculina, suave e interessante que adivinhava seus pensamentos…

Eu não sei por que você fica se enganando assim – ouviu e virou rapidamente para ver quem era.

Era isso mesmo! Ela estava se enganando o tempo todo. Esse namoro não poderia durar por muito mais tempo.

Pensava em ir até ele. Poderia falar um “oi” ou perguntar seu nome. Não, pensava que deveria ser mais ousada. Moço de cidade grande gosta de atitude.

Talvez, soltar o cabelo, ir em sua direção e convidar para um café?

Isso! Mas, será?

Afinal tinha acabado de sair de um relacionamento…

Vê se para e repara que você nasceu pra mim! – no flagra!

Era ele mesmo, e era só isso que precisava ouvir para preparar a “investida”.

Vibrou por estar vestida com sua blusa decotada favorita e ter lavado o cabelo naquela manhã. Soltou as madeixas, endireitou a postura e desfilou.

Olá – disse sorrindo.

O moço, distraído, tirou os fones de ouvido.

Sim?

Foi como um balde de água fria. Não, álcool na ferida. Pior! Uma facada no peito.

E agora?

Er… que estação é essa? – rebateu de imediato.

Consolação – respondeu.

Ok, muito obrigada.

Esperou a porta abrir e não pensou duas vezes.

Desceu.

Até a Estação Brigadeiro não demorava muito. Decidiu ir andando mesmo.

* Este texto contém trechos da música “Sou o Cara Pra Você”, interpretada pelo cantor Thiaguinho.

Projeto Vão

Criação e idealização de Camilla Dábliu Vê, Caroline Alls e Cynthia Navarro

www.projetovao.comcontato.projetovao@gmail.com

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