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O texto pela imagem: análise das capas de O Cortiço no século XXI. Luciana LUCIANI Centro de Comunicação e Letras, Universidade Presbiteriana Mackenzie São Paulo, São Paulo, 01241-001, Brasil e Alexandre GUIMARÃES Centro de Comunicação e Letras, Universidade Presbiteriana Mackenzie São Paulo, São Paulo, 01241-001, Brasil RESUMO O presente projeto consiste em analisar os sentidos construídos nas imagens de capas utilizadas no mercado editorial brasileiro, entre os anos de 2010 e 2014, para a obra O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo (1857-1913), a fim de estabelecer relações entre o texto verbal e o não verbal. Este trabalho, por meio dos estudos imagéticos, oferece, assim, outra possibilidade metodológica de compreensão dessa importante obra de Aluísio Azevedo, que, no meio literário atual, figura ainda com grande expressividade, uma vez que se trata de um clássico da literatura amplamente adotado na Educação Básica; leitura obrigatória desde 2010 pela FUVEST e UNICAMP (vestibulares mais concorridos no Brasil) e texto livre para uso comercial (domínio público). Recorre-se para tal estudo, portanto, aos fundamentos teóricos da escola Gestalt que fornece meios concretos para que se proceda a leitura visual. Recorre-se, ainda, aos pressupostos da tradução intersemiótica que possibilita compreender como ocorre o processo de transformação de uma linguagem construída através de um sistema semiótico em outra linguagem. Também é necessário, para este estudo, entender de que forma a capa, enquanto paratexto textual, e, portanto um hipotexto, estabelece conexões com o hipertexto e pode (ou não) despertar no leitor a decisão pela leitura. Palavras-Chave: O Cortiço; Capa; Gestalt; Paratexto; Intersemiótica. 1. INTRODUÇÃO Considerado o melhor romance naturalista da Literatura brasileira e obra-prima de Aluísio Azevedo, um autor “expoente de nossa ficção urbana nos moldes do tempo” (BOSI, 2012, p. 200), é natural que O Cortiço tenha sido publicado por diversas editoras ao longo dos anos e continue, ainda no século XXI, apresentando um grande número de publicações. O grande número de publicações acarretou uma variedade de capas para apresentar esse livro, inclusive, no universo de uma mesma editora. Em uma pesquisa de campo, realizada no primeiro semestre de 2014, em livrarias e bibliotecas, foi levantado um total de oitenta e uma diferentes capas, utilizadas para traduzir imageticamente a obra O Cortiço, entre os anos de 1948 a 2014. Essa variedade de capas gera, portanto, um amplo corpus para análise em diversas perspectivas, sendo que uma delas pode ocorrer com o objetivo de estabelecer relações entre o texto literário e o imagético, isto é, entre o signo verbal e o signo não verbal. A relação entre forma e conteúdo presente na imagem imputa o estudo da estrutura por meio de índices para compreensão e justificativa da percepção total, sendo que a base desse estudo pode ser obtida por meio dos pressupostos teóricos da escola Gestalt. Os fundamentos gestaltistas, que surgiram em oposição ao subjetivismo, apoiam-se na fisiologia do sistema nervoso, tendo como propósito estudar a percepção da forma, organizando-a em todos coerentes e unificados. E, com o objetivo de perceber e estabelecer relações entre o texto literário e as imagens das capas de O Cortiço, apresenta-se este projeto que selecionou treze, das oitenta e uma capas pesquisadas, para serem analisadas, no período de um ano, com base nos fundamentos gestaltistas. O critério adotado para a escolha das treze capas, ordenadas cronologicamente como segue abaixo, contemplou os seguintes pontos: 1) capas utilizadas a partir do ano de 2010 para ilustrar a obra; 2) capas do mercado editorial brasileiro; 3) capas cuja ilustração remete ao meio ou ao homem. Figura 1 Núcleo, 2010. Figura 2 Scipione, 2010. Figura 3 Ática, 2011. Figura 4 Expressão Popular, 2011. Figura 5 FTD, 2011. Figura 6 Melhoramentos, 2011.

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O texto pela imagem: análise das capas de O Cortiço no século XXI.

Luciana LUCIANI Centro de Comunicação e Letras, Universidade Presbiteriana Mackenzie

São Paulo, São Paulo, 01241-001, Brasil e

Alexandre GUIMARÃES Centro de Comunicação e Letras, Universidade Presbiteriana Mackenzie

São Paulo, São Paulo, 01241-001, Brasil

RESUMO

O presente projeto consiste em analisar os sentidos construídos nas imagens de capas utilizadas no mercado editorial brasileiro, entre os anos de 2010 e 2014, para a obra O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo (1857-1913), a fim de estabelecer relações entre o texto verbal e o não verbal. Este trabalho, por meio dos estudos imagéticos, oferece, assim, outra possibilidade metodológica de compreensão dessa importante obra de Aluísio Azevedo, que, no meio literário atual, figura ainda com grande expressividade, uma vez que se trata de um clássico da literatura amplamente adotado na Educação Básica; leitura obrigatória desde 2010 pela FUVEST e UNICAMP (vestibulares mais concorridos no Brasil) e texto livre para uso comercial (domínio público). Recorre-se para tal estudo, portanto, aos fundamentos teóricos da escola Gestalt que fornece meios concretos para que se proceda a leitura visual. Recorre-se, ainda, aos pressupostos da tradução intersemiótica que possibilita compreender como ocorre o processo de transformação de uma linguagem construída através de um sistema semiótico em outra linguagem. Também é necessário, para este estudo, entender de que forma a capa, enquanto paratexto textual, e, portanto um hipotexto, estabelece conexões com o hipertexto e pode (ou não) despertar no leitor a decisão pela leitura. Palavras-Chave: O Cortiço; Capa; Gestalt; Paratexto; Intersemiótica.

1. INTRODUÇÃO Considerado o melhor romance naturalista da Literatura brasileira e obra-prima de Aluísio Azevedo, um autor “expoente de nossa ficção urbana nos moldes do tempo” (BOSI, 2012, p. 200), é natural que O Cortiço tenha sido publicado por diversas editoras ao longo dos anos e continue, ainda no século XXI, apresentando um grande número de publicações. O grande número de publicações acarretou uma variedade de capas para apresentar esse livro, inclusive, no universo de uma mesma editora. Em uma pesquisa de campo, realizada no primeiro semestre de 2014, em livrarias e bibliotecas, foi levantado um total de oitenta e uma diferentes capas, utilizadas para traduzir imageticamente a obra O Cortiço, entre os anos de 1948 a 2014. Essa variedade de capas gera, portanto, um amplo corpus para análise em diversas perspectivas, sendo que uma delas pode ocorrer com o objetivo de estabelecer relações entre o texto

literário e o imagético, isto é, entre o signo verbal e o signo não verbal. A relação entre forma e conteúdo presente na imagem imputa o estudo da estrutura por meio de índices para compreensão e justificativa da percepção total, sendo que a base desse estudo pode ser obtida por meio dos pressupostos teóricos da escola Gestalt. Os fundamentos gestaltistas, que surgiram em oposição ao subjetivismo, apoiam-se na fisiologia do sistema nervoso, tendo como propósito estudar a percepção da forma, organizando-a em todos coerentes e unificados. E, com o objetivo de perceber e estabelecer relações entre o texto literário e as imagens das capas de O Cortiço, apresenta-se este projeto que selecionou treze, das oitenta e uma capas pesquisadas, para serem analisadas, no período de um ano, com base nos fundamentos gestaltistas. O critério adotado para a escolha das treze capas, ordenadas cronologicamente como segue abaixo, contemplou os seguintes pontos: 1) capas utilizadas a partir do ano de 2010 para ilustrar a obra; 2) capas do mercado editorial brasileiro; 3) capas cuja ilustração remete ao meio ou ao homem.

Figura 1

Núcleo, 2010.

Figura 2

Scipione, 2010.

Figura 3

Ática, 2011.

Figura 4

Expressão Popular, 2011.

Figura 5

FTD, 2011.

Figura 6

Melhoramentos, 2011.

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Figura 7

Scipione, 2011.

Figura 8

Ateliê Editorial, 2012.

Figura 9

DCL, 2012.

Figura 10

Lafonte, 2012.

Figura 11

Martin Claret, 2012. Figura 12

Bestbolso, 2013.

Figura 13

L&PM Pocket, 2014.

2. JUSTIFICATIVA Aluísio Azevedo, após desistir de se dedicar ao desenho – sua grande e declarada paixão, aos 21 anos inicia na Literatura, fortemente influenciado pelas obras de Émile Zola e Eça de Queirós. Incentivado pela repercussão e pelo dinheiro obtido com a venda de dois mil exemplares do seu segundo romance, O mulato (1881), o autor volta-se integralmente à Literatura, firmando-se como escritor e tornando-se o mais importante representante do Naturalismo no Brasil. E, reconhecendo nas palavras de seu biógrafo, Jean-Yves Mérian (2013, p. 17), “em finais do século XIX, Aluísio Azevedo foi o escritor mais lido no Brasil”. Foi o primeiro autor brasileiro a viver do seu ofício, mas nem por isso dedicou-se a ele por toda sua vida. Apesar de reconhecido pela comunidade literária, não tinha segurança material ao depender da escrita naquele tempo, então decide ingressar no serviço público em 1896, abandonando a literatura. Antes, porém, de partir para carreira diplomática, Aluísio Azevedo publica em 1890 aquele que é considerado o melhor romance naturalista da Literatura brasileira e sua obra-prima: O Cortiço. Como exprime Alfredo Bosi [1]:

[...] O Cortiço foi um passo adiante na história da nossa prosa. O léxico é concreto, o corte do período e da frase sempre nítido, e a sintaxe, correta, tem ressaibos lusitanizantes que, embora se possam explicar pela origem luso-maranhense

de Aluísio, quadram bem ao clima de purismo que marcaria a língua culta brasileira até o advento dos modernistas.

Sobre a importância dessa obra naturalista, têm-se, também, as considerações de Antonio Candido [2]:

Em nenhum outro romance do Brasil tinha aparecido semelhante coexistência de todos os nossos tipos raciais, justificada na medida em que assim eram os cortiços e assim era o nosso povo, é claro que visto numa perspectiva pessimista, como a dos naturalistas em geral e a de Aluísio em particular. [...] E como solução literária foi excelente, porque graças a ele o coletivo exprime a generalidade do social.

Embora exista uma ampla literatura que trata das obras de Aluísio Azevedo e, em especial, d’O Cortiço, pela relevância do autor e desse romance para o contexto literário brasileiro, este trabalho propõe um estudo focado no texto não verbal, comumente menos analisado que o verbal, mas igualmente importante quando se intenciona contribuir com o universo da Letras.

3. OBJETIVOS Com enfoque teórico nos fundamentos da escola Gestalt, o objetivo geral deste projeto é analisar a produção de sentidos presentes nos textos imagéticos das capas de O Cortiço, e neste artigo em particular, a capa produzida pela da Editora Ática, publicada em 2011 (Figura 3). Como pontos específicos deste artigo, destacam-se os itens abaixo:

a. Examinar se os sentidos produzidos na capa retratam a estética naturalista e o momento sócio histórico do romance;

b. Compreender as correspondências semânticas entre o não verbal e o verbal, ou seja, entre a capa e o texto literário;

c. Observar o livro como produto mercadológico e de que forma a identidade construída na capa pode influenciar na decisão de compra do leitor-consumidor.

4. FORMA DE ANÁLISE DOS RESULTADOS

Gerárd Genette, em seus estudos, denomina de paratextos todos os outros elementos (capas, anexos, página de rosto, títulos, dedicatórias, prefácios, etc.) necessários para que um texto se torne livro e se proponha como tal aos seus leitores. Para o teórico francês, o paratexto e, portanto, a capa, “compõe-se, pois, empiricamente, de um conjunto heteróclito de práticas e de discursos de todos os tipos e de todas as idades [...]” [3]. A capa de um livro é, ainda, “uma promessa feita pela editora, em nome do autor, para o leitor” [4], cujas funções englobam proteção, apelo comercial e identidade. Assim como qualquer produto, o livro precisa de uma embalagem que o proteja; e aproveitar o espaço dessa embalagem para promover um apelo comercial é uma oportunidade para as editoras estimularem a compra de suas publicações. No entanto, em um nível mais complexo, está a função que concerne à identidade, ou seja, o

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conceito do livro que a editora pretende transmitir ao seu público leitor. De acordo com essas concepções, pode-se, então, considerar que ao criar uma identidade para a capa, o designer (ou capista) carrega o texto de discursos que influenciarão na concepção axiológica por parte do público-leitor, uma vez que:

Não se pode construir uma enunciação sem modalidade apreciativa. Toda enunciação compreende antes de mais nada uma orientação apreciativa. É por isso que, na enunciação viva, cada elemento contém ao mesmo tempo um sentido e uma apreciação [5]

O fato de haver múltiplas capas para uma mesma obra implica a construção de diversos sentidos e apreciações. Segundo Dondis [6], “captamos a informação visual de muitas maneiras”. Dessa forma, ao examinar as capas criam-se possibilidades para compreender os diferentes discursos presentes em consonância ou não com o texto literário e seus efeitos.

Por ser um corpus bastante amplo para análise, há várias possibilidades de estudos disponíveis para entendimento das relações de sentidos construídas no texto não verbal. Uma possibilidade é a Gestalt, cuja fundamentação teórica diz respeito ao campo da percepção visual da forma, e que será o fio condutor deste trabalho. A Gestalt é uma escola da psicologia experimental que surgiu no fim do século XIX, tendo como precursor o filósofo austríaco Christian von Ehrenfels. Entretanto, foi por volta de 1910 com Max Wertheimer, Wolfgang Kohler e Kurt Koffa que o movimento gestaltista teve seu início mais efetivo. Segundo Gomes Filho, em Gestalt do objeto: sistema de leitura visual da forma, a atuação gestaltista ocorre “principalmente no campo da teoria da forma, com contribuição relevante aos estudos da percepção, linguagem, inteligência, aprendizagem, memória, motivação, conduta exploratória e dinâmica de grupos sociais” [7]. Ainda de acordo com o mesmo autor, a Gestalt explica o fenômeno da percepção visual, estabelecendo uma primeira divisão geral entre forças externas e forças internas:

[...] cada imagem percebida é o resultado da interação dessas duas forças. As forças externas sendo os agentes luminosos bombardeando a retina, e as forças internas constituindo a tendência de organizar, de estruturar, da melhor forma possível, esses estímulos. [8]

A ordem, ou força de organização é o que os gestaltistas nomeiam como princípios básicos ou também leis de organização da forma perceptual, as quais explicam porque um receptor vê as coisas de uma maneira determinada. Recorrendo a Rudolf Arnheim [9], em Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora, o pesquisador é categórico ao afirmar, logo à primeira página, que a capacidade de entender pelos olhos, inata ao ser humano, está adormecida e necessita ser despertada, buscando para tanto, na Gestalt, a possibilidade de leitura e compreensão da arte. Essa possibilidade proposta pela Gestalt instrumentaliza a interpretação e leitura visual da forma e, portanto, permite

compreender as relações de sentidos dos textos imagéticos escolhidos como corpus desta pesquisa. Busca-se, por conseguinte, entender o enfoque de uma ou mais características através da qual a identidade foi criada para as capas. Tendo em vista essa constatação e para que se possa compreender a tradução intersemiótica do texto literário em imagens, serão levantados os seguintes problemas, acerca do corpus escolhido, como forma de análise dos resultados:

a. Quais sentidos são transmitidos ao público leitor por meio de cada capa atribuída ao principal romance de Aluísio Azevedo?

b. Os sentidos produzidos retratam o momento sócio histórico e as características literárias presentes em O Cortiço?

5. ÁTICA 2011

A capa publicada pela Editara Ática em 2011 (Figura 3) privilegiou o uso das cores preta, branca e cinza e, traz como tema imagético a somatória de pés descalços que vão perdendo a individualidade no ambiente construído por João Romão:

A pouco e pouco, vai adquirindo terrenos à volta de sua tasca e lá erigindo pocilgas onde abriga e espolia a ralé e os trabalhadores de sua pedreira, situada nos fundos do cortiço. Assim, vão sucedendo os dramas anônimos daquele conglomerado de marginais: Rita Baiana, mulata faceira, Pombinha, menina inocente que se prostitui, Jerônimo, português brioso que cede aos dengues da mulata, Florinda, Leocácia, etc. [10] E o fato é que aquelas três casinhas, tão engenhosamente construídas, foram o ponto de partida do grande cortiço de São Romão. Hoje quatro braças de terra, amanhã seis, depois mais outras, ia o vendeiro conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos da sua bodega; e, à proporção que o conquistava, reproduziam se os quartos e o número de moradores. [11]

Azevedo foi o inaugurador da estética naturalista no Brasil, que se caracteriza como uma radicalização do Realismo em direção à fiel observação da realidade, ao retrato da mediocridade da rotina, à influência do meio social sobre o indivíduo, à hereditariedade, às leis da natureza, ao fatalismo, à linguagem falada, ao sexo tratado de maneira aberta. Na visão de Helena Bonito Pereira [12],

Os naturalistas seguiram os escritores realistas, que haviam desencadeado a reação contra a idealização romântica. Entretanto, o Naturalismo iria mais longe, fazendo sair de cena não só as mocinhas risonhas do Romantismo como também as burguesas enfastiadas do Realismo.

Os Naturalistas foram influenciados pelo Positivismo, pelo Determinismo e pela teoria Darwinista da Evolução das Espécies. A partir de suas influências, pretendiam uma

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composição objetiva e imparcial, que, para tanto, valia-se mais da descrição detalhada do que da narração dos acontecimentos. A imagem desenvolvida pelo capista confere uma descrição detalhada de uma realidade subumana, em que as condições de higiene e individualidade perdem-se em meio ao cotidiano de modo a, por vezes, suas personagens serem tratadas literariamente por meio da zoormorfização.

A condição subumana também é descrita por Aluísio de Azevedo em O Cortiço, chegando, inclusive a se valer, por diversas vezes da zoormorfização, figura de linguagem que coloca o ser humano em condições animalescas. [13]

A imagem da capa remete a, dentre outras, passagem do amanhecer no cortiço em que há a inteira consonância deste ser humano com o ambiente degradado que habita:

Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saíam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se à luz nova do dia. Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas. [14]

A degradação do homem fica evidente na capa produzida pela editora Ática composta por pés negros sobre fundo branco.

Percebe-se que no processo sintático de composição da imagem os pés estão postados em diferentes direções, fato que direciona o olhar do leitor para pontos diferentes, não concedendo a oportunidade de uma leitura direta, simples e calma. A multidão de pés, mais espaçados nos quatro cantos da imagem, ganha maior volume e menos definição no centro da imagem, traduzindo a questão da ausência de individualidade e da condição subumana de existência. Para Arnheim [15],

perspectiva central continua a interessar o artista em três aspectos. Ela oferece uma imagem rigorosamente realística do espaço físico; proporciona um padrão compositivo rico e aprimorado; e a concepção de um mundo que converge, comunica sua própria expressão característica.

6. CONCLUSÃO A captação da rotina, da agressividade, da violência, da influência do meio sobre o ser humano, dos desvios de comportamento, das anomalias, dos desequilíbrios, da exploração do ser humano, tão constantes no Naturalismo – integrado também por Raul Pompéia (O Ateneu) e Júlio Ribeiro (A Carne) – apresentam-se como um argumento paratextual que traduz semioticamente as questões do momento social, histórico, cultural e literário da obra O Cortiço. Referências [1] A. Bosi. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2012. p. 204. [2] A. Cândido. De cortiço a cortiço. In: A. Azevedo. O cortiço. São Paulo: Expressão Popular, 2011. P.22. [3] G. Genette. Paratextos editoriais. Cotia: Ateliê, 2009. p. 10. [4] A. Haslam. O livro e o designer II: como criar e produzir livros. São Paulo: Rosari, 2010. p. 160. [5] M. Bakhtin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2012. p.140. [6] D. A. Dondis. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 03. [7] J. Gomes Filho. Gestalt do objeto: sistema de leitura visual da forma. São Paulo: Escrituras, 2008. P. 18.

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[8] J. Gomes Filho. Gestalt do objeto: sistema de leitura visual da forma. São Paulo: Escrituras, 2008. P. 25. [9] R. Arnheim. Arte & percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Cengage Learning, 2013. [10] M. Moisés. A literatura brasileira através dos textos. Cultrix: São Paulo, 1986. p. 24. [11] A. Azevedo. O Cortiço. São Paulo: Círculo do Livro, 1987. p. 10. [12] H. B. Pereira. Literatura: toda a literatura portuguesa e brasileira. FTD: São Paulo, 2000. p. 244. [13] A. H. T. Guimarães. Literatura e fotografia: um diálogo pertinente. In: M. L. M. C. Vasconcelos e H. B. C. Pereira. Linguagens na sala de aula do ensino superior. Niterói: Intertexto, São Paulo: Xamã, 2010. [14] A. Azevedo. O Cortiço. São Paulo: Círculo do Livro, 1987. p. 30. [15] R. Arnheim. Arte & percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Cengage Learning, 2013. p. 285.