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ANÁLISE DO DISCURSO

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ANÁLISE DO DISCURSO

ALESSANDRA APARECIDA DE CASTRO CLARO VIVIANE DINÊS DE OLIVEIRA RIBEIRO BARTHO

ANÁLISE DO DISCURSO

1ª Edição

Editora da Universidade de Taubaté

EDUNITAU

2017

Copyright©2017.Universidade de Taubaté.

Todos os direitos dessa edição reservados à Universidade de Taubaté. Nenhuma parte desta publicação pode ser

reproduzida por qualquer meio, sem a prévia autorização desta Universidade.

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Revisão ortográfica-textual

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Autor

Profa. Ma. Ely Soares do Nascimento

Profa. Ma. Márcia Regina de Oliveira Profa. Ma. Márcia Regina de Oliveira

Profa. Ma. Isabel Rosângela dos Santos Ferreira

Me.Benedito Fulvio Manfredini Bruna Paula de Oliveira Silva

Alessandra Aparecida de Castro Claro Viviane Dinês de Oliveira Riberio Bartho

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Ficha catalográfica elaborada pelo SIBi

Sistema Integrado de Bibliotecas / UNITAU

B286a Bartho, Viviane Dinês de Oliveira Ribeiro Análise do discurso: concepções teóricas para a prática docente./ Viviane Dinês de Oliveira Ribeiro Bartho; Alessandra Aparecida de Castro Claro. Taubaté: UNITAU, 2016.

132f.: il.

ISBN: 978-85-66128-94-9 Bibliografia

1. Ideias linguísticas. 2. Análise do discurso. 3. Prática docente. I. Claro, Alessandra Aparecida de Castro II. Universidade de Taubaté. III. Título

1

PALAVRA DO REITOR

Palavra do Reitor

Toda forma de estudo, para que possa dar

certo, carece de relações saudáveis, tanto de

ordem afetiva quanto produtiva. Também, de

estímulos e valorização. Por essa razão,

devemos tirar o máximo proveito das práticas

educativas, visto se apresentarem como

máxima referência frente às mais

diversificadas atividades humanas. Afinal, a

obtenção de conhecimentos é o nosso

diferencial de conquista frente a universo tão

competitivo.

Pensando nisso, idealizamos o presente livro-

texto, que aborda conteúdo significativo e

coerente à sua formação acadêmica e ao seu

desenvolvimento social. Cuidadosamente

redigido e ilustrado, sob a supervisão de

doutores e mestres, o resultado aqui

apresentado visa, essencialmente, a

orientações de ordem prático-formativa.

Cientes de que pretendemos construir

conhecimentos que se intercalem na tríade

Graduação, Pesquisa e Extensão, sempre de

forma responsável, porque planejados com

seriedade e pautados no respeito, temos a

certeza de que o presente estudo lhe será de

grande valia.

Portanto, desejamos a você, aluno, proveitosa

leitura.

Bons estudos!

Prof. Dr. José Rui Camargo

Reitor

2

3

Prefácio

Atentando-nos à situação de sala de aula, convivemos há muitos anos com precários

resultados de nossas crianças quando avaliadas em relação às habilidades de leitura.

Percebemos que muitos alunos não sabem ler com proficiência; leem apenas no nível da

decodificação, sem compreender o que está escrito; não têm estratégias de leitura e não

sabem dialogar de forma crítica com o texto. Diante dessa problemática, muitos

professores não conseguem alcançar grandes resultados: ainda há o ensino da

nomenclatura gramatical como principal objetivo das aulas de Português; ainda há a

leitura do texto como pretexto para se ensinar gramática normativa; ainda há a prática

de leitura como decodificação e como apontamento de informações no texto.

Nesse sentido, a Análise do Discurso propõe uma leitura para além das palavras, para

além dos aspectos formais... Propõe uma investigação do campo discursivo, o que não

exclui a observação das formas linguísticas, porém não as considera como fim em si

mesmas.

A Análise do Discurso, hoje, embasa muitas pesquisas por considerar o discurso como

foco principal de uma análise. E estudar o discurso é estudar também todos os seus

aspectos constituintes, tais como: o sujeito, a ideologia, o contexto sócio-histórico, o

contexto de enunciação, os jogos de poder, enfim, muitos fatores que interferem e

influenciam a produção de sentidos e que podem ser investigados por um aparato

teórico proposto pela Análise do Discurso.

Não pretendemos que os professores incluam em seus programas de ensino da Educação

Básica o estudo da Análise do Discurso. O que sugerimos é que o professor, na

graduação e em seus estudos de formação continuada, aprofunde-se nesse campo

teórico, para ampliar suas concepções de língua/linguagem, sujeito, contextos, etc., e,

assim, possa desenvolver com seus alunos de Ensino Fundamental e Médio uma leitura

mais crítica e menos ingênua de diferentes textos. Acreditamos que a constituição

teórica do professor influencia sua prática em sala de aula.

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Os pesquisadores da Análise do Discurso, muitas vezes, são criticados por não

proporem especificamente uma metodologia de ensino. No entanto, se a Análise do

Discurso se restringisse a isso, em uma tentativa de solucionar e extinguir problemas

pedagógicos, beirando à proposta de uma “receita” a ser aplicada, perderia sua essência

maior, a saber, a de refletir sobre os discursos, que são, ao mesmo tempo, repetições

sócio-históricas e inovações/deslocamentos e que devem, portanto, ser pensados em

cada situação, de modo macro e micro, amplo e específico.

Embora não seja nossa pretensão lhe oferecer um roteiro metodológico de aplicação

prática, sabemos que, por vezes, o professor demanda orientações para a transposição

didática de muitos conteúdos. Dessa forma, um dos nossos objetivos é relacionar a

teoria da Análise do Discurso com atividades práticas que possam lhe inspirar na

elaboração de suas aulas.

Esperamos que este livro consiga, principalmente, suscitar em você, futuro professor,

muitas inquietações teóricas. Não pretendemos apaziguar, acomodar, solucionar

questões. Ao contrário, gostaríamos que você observasse a língua em muitas dimensões,

o que pode provocar uma angústia acadêmica produtiva, que o impulsionará para

inovações na escola.

Entre o homem e a realidade social, há linguagem; logo, investigar a linguagem é

investigar o homem e sua relação com a realidade circundante. Para que ensinar a ler?

Para formarmos pessoas mais críticas, capazes de ler os discursos, os jogos de poder, os

movimentos sociais, ou seja, o mundo.

Bons estudos e sucesso!

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Sobre o autor

ALESSANDRA APARECIDA DE CASTRO CLARO: Graduada em Letras pela

Universidade de Taubaté (UNITAU) e em Pedagogia pela Faculdade Politécnica de

Sumaré. Fez especialização em Leitura e Produção de Gêneros Discursivos também

pela Universidade de Taubaté. Lecionou como professora Polivalente do Ensino

Fundamental I (1º ao 5º ano) na rede municipal durante 10 anos, período em que teve

oportunidade de ter contato com alunos da zona rural de vários municípios. Atuou,

também, na rede particular, como professora e corretora de redação do Ensino

Fundamental II (6º ao 9º ano) e Ensino Médio. Teve participação em cursinhos

populares que visavam à preparação de jovens de escolas públicas para o ingresso na

Universidade. Trabalhou, ainda, no Ensino Superior como professora de Português

Instrumental na UNITAU. Atualmente, leciona como professora efetiva de Língua

Portuguesa na rede municipal (Ensino Fundamental II) e na rede Estadual (Ensino

Médio). Essa vivência com públicos distintos possibilitou que a pesquisadora

desenvolvesse um olhar sensível em relação à aprendizagem dos alunos, principalmente

ao que se refere à leitura e à escrita.

VIVIANE DINÊS DE OLIVEIRA RIBEIRO BARTHO: Graduada em Letras pela

Universidade de Taubaté (UNITAU); Mestra em Linguística Aplicada pela mesma

universidade e Doutoranda em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Lecionou

como professora de Português para o Ensino Fundamental II e Médio em escolas

particulares e públicas. Como professora da Rede Municipal de Ensino de Taubaté e da

Rede Estadual de São Paulo, desenvolveu muitos projetos de leitura e escrita com seus

alunos, o que a fez realmente entender a importância social de sua profissão e sua

grande paixão pela sala de aula. Atuou, também, no Ensino Superior em instituições

particulares e públicas, podendo exercer, ainda, o cargo de coordenadora do curso

presencial de Letras da UNITAU. Todas essas oportunidades de trabalho

proporcionaram à pesquisadora uma visão ampla e concreta da realidade da Educação,

relacionando, sempre, teoria e prática. Atualmente, é professora efetiva do Instituto

Federal de São Paulo (IFSP), onde leciona no Ensino Médio e Superior.

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Caros(as) alunos(as),

O Programa de Educação a Distância (EAD) da Universidade de Taubaté apresenta-se

como espaço acadêmico de encontros virtuais e presenciais direcionados aos mais

diversos saberes. Além de avançada tecnologia de informação e comunicação, conta

com profissionais capacitados e se apoia em base sólida, que advém da grande

experiência adquirida no campo acadêmico, tanto na graduação como na pós-graduação,

ao longo de mais de 35 anos de História e Tradição.

Nossa proposta se pauta na fusão do ensino a distância e do contato humano-presencial.

Para tanto, apresenta-se em três momentos de formação: presenciais, livros-texto e Web

interativa. Conduzem esta proposta professores/orientadores qualificados em educação a

distância, apoiados por livros-texto produzidos por uma equipe de profissionais

preparada especificamente para este fim, e por conteúdo presente em salas virtuais.

A estrutura interna dos livros-texto é formada por unidades que desenvolvem os temas e

subtemas definidos nas ementas disciplinares aprovadas para os diversos cursos. Como

subsídio ao aluno, durante todo o processo ensino-aprendizagem, além de textos e

atividades aplicadas, cada livro-texto apresenta sínteses das Unidades, dicas de leituras

e indicação de filmes, programas televisivos e sites, todos complementares ao conteúdo

estudado.

Os momentos virtuais ocorrem sob a orientação de professores específicos da Web. Para

a resolução dos exercícios, como para as comunicações diversas, os alunos dispõem

deblog, fórum, diários e outras ferramentas tecnológicas. Em curso, poderão ser criados

ainda outros recursos que facilitem a comunicação e a aprendizagem.

Esperamos, caros alunos, que o presente material e outros recursos colocados à sua

disposição possam conduzi-los a novos conhecimentos, porque vocês são os principais

atores desta formação.

Para todos, os nossos desejos de sucesso!

Equipe EAD-UNITAU

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Sumário

Palavra do Reitor .............................................................................................................. 1

Prefácio ............................................................................................................................. 3

Sobre o autor ..................................................................................................................... 5

Ementa ............................................................................................................................ 11

Objetivos ......................................................................................................................... 13

Unidade 1 As Ideias Linguísticas: o que é e como se formou a Análise do

Discurso? ....................................................................................................................... 19

1.1 Breve histórico das ideias linguísticas ...................................................................... 19

1.2 O início da Análise do Discurso ............................................................................... 35

1.3 Mas, afinal, que Análise do Discurso estudaremos? ................................................ 40

1.4 Síntese da Unidade ................................................................................................... 41

1.5 Para saber mais ......................................................................................................... 42

1.6 Atividades ................................................................................................................. 44

Unidade 2 Análise do Discurso Francesa ................................................................... 45

2.1 As fases da análise do discurso francesa .................................................................. 45

2.2 Sujeito e discurso ...................................................................................................... 48

2.3 Interdiscurso, heterogeneidade e contradição ........................................................... 51

2.4 Estrutura e acontecimento ........................................................................................ 55

2.5 Subjetividade e identidade ........................................................................................ 57

2.6 Síntese da Unidade ................................................................................................... 67

2.7 Para saber mais ......................................................................................................... 67

2.8 Atividades ................................................................................................................. 69

10

Unidade 3 Análise Dialógica do Discurso ................................................................... 77

3.1 Bakhtin: vida e obra .................................................................................................. 77

3.2 Bakhtin e a Análise Dialógica do Discurso .............................................................. 79

3.3 Síntese da Unidade ................................................................................................... 89

3.4 Para saber mais ......................................................................................................... 89

3.5 Atividades ................................................................................................................. 91

Unidade 4 A Análise do Discurso e a Prática Docente .............................................. 95

4.1 Concepções de linguagem e prática do professor de língua ..................................... 96

4.2 A leitura na sala de aula ............................................................................................ 98

4.3 A Análise do Discurso na sala de aula ................................................................... 101

4.4 Síntese da Unidade ................................................................................................. 112

4.5 Para saber mais ....................................................................................................... 113

4.6 Atividades ............................................................................................................... 114

Referências ..................................................................................................................121

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ORGANIZE-SE!!!

Você deverá usar de

3a 4 horas para

realizar cada

Unidade.

ANÁLISE DO DISCURSO

Ementa

EMENTA

Histórico e vertentes da Análise do Discurso. Conceitos da Análise

do Discurso a partir de Pêcheux: sujeito, discurso, memória

discursiva, formações discursivas e ideológicas, contextos sócio-

históricos, interdiscurso, heterogeneidade discursiva. Processos de

subjetivação e identidade. As principais ideias do Círculo de

Bakhtin para uma vertente dialógica da Análise do Discurso.

Determinações da Produção do Discurso. Práticas de sala de aula.

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Objetivo Geral

Compreender as bases teóricas que embasam e caracterizam a Análise do

Discurso.

Objetivos

Objetivos Específicos

• Compreender os movimentos históricos e teóricos de formação da

Análise do Discurso;

• Diferenciar as principais vertentes da Análise do Discurso, observando

os pontos de distanciamento e de interface, para uma melhor escolha

teórica e análise de corpus;

• Compreender os principais conceitos da Análise do Discurso pelo viés

de Pêcheux e de Bakhtin;

• Desenvolver atividades teórico-práticas, com base na Análise do

Discurso, a fim de aperfeiçoar o trabalho didático-pedagógico em sala

de aula.

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Introdução

Problematizar as maneiras de ler, levar o sujeito falante ou o leitor

a colocarem questões sobre o que produzem e o que ouvem nas

diferentes manifestações da linguagem. Perceber que não podemos

não estar sujeitos à linguagem, a seus equívocos, sua opacidade.

Saber que não há neutralidade nem mesmo no uso mais aparente

cotidiano dos signos. A entrada no simbólico é irremediável e

permanente: estamos comprometidos com os sentidos e o político.

Não temos como não interpretar (ORLANDI, 2012, p. 9).

No excerto acima, Orlandi (2012) sintetiza a importância de termos uma relação “menos

ingênua com a linguagem”. E partimos da premissa de que é exatamente isso que,

muitas vezes, estamos deixando de trabalhar nas nossas aulas de Língua Portuguesa.

Ficamos presos, quase sempre, à estrutura dos gêneros discursivos e nos esquecemos do

principal: a sua função social, a intenção de comunicação, os discursos em diálogo, os

sentidos ideológicos refletidos e refratados, além de seu uso prático.

A perspectiva apenas formal do texto (estrutura, aspectos linguísticos, entre outros

elementos), além de ser desmotivadora, pois o aluno não vê sentido no que está

aprendendo, torna-se perigosa, porque diminui, consideravelmente, as chances de a

criança/jovem se tornar um adulto crítico e atuante na sociedade.

Vale ressaltar que não estamos negando a relevância de se trabalhar aspectos formais e

estruturais dos gêneros discursivos. Todavia, o nosso objetivo, a partir deste livro, é o

de contribuir com alguns subsídios para que você, professor, reflita sobre os discursos e

ajude seus alunos a desenvolverem a habilidade de enxergar além do texto, de ler o que

nem sempre está escrito.

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Dessa forma, este livro-texto está organizado em quatro Unidades que o ajudarão a

compreender, além de aspectos referentes ao surgimento da Análise do Discurso, os

principais conceitos que embasam essa linha de estudo e pesquisa, bem como o

ajudarão com exemplos práticos de análises de diversos gêneros pelo viés dessa

concepção teórica.

Na Unidade I, “As ideias linguísticas: o que é e como se formou a Análise do

Discurso”, buscamos apresentar a você uma síntese da trajetória das ideias linguísticas

até o surgimento da Análise do Discurso e de suas vertentes. Você terá contato com uma

síntese da teoria de pesquisadores como Saussure e Chomsky; conhecerá algumas

ramificações linguísticas que surgiram a partir das ideias desses estudiosos e poderá

entender as condições de formação da Análise do Discurso. As discussões apresentadas

nesta Unidade estão embasadas em autores como Marcuschi (2009), Faraco (2004), Ilari

(2004), Pietroforte (2006), Benveniste (1976), Fiorin (2003), Calvet (2002), Bagno

(2006 e 2007), Bechara (2002), Pêcheux (1988), Brait (2006), Althusser (1985), entre

outros.

Na Unidade II, “Análise do Discurso Francesa”, apresentamos ideias embasadas em

autores como Pêcheux (1983), Foucault (1996 e 2005), Fernandes (2008), Authier-

Revuz (2004), Orlandi (2005). Procuramos desenvolver um esboço das bases da Análise

do Discurso Francesa e explorar alguns conceitos que sustentam essa vertente, a saber:

sujeito, discurso, ideologia, interdiscurso, heterogeneidade, memória, entre outros.

Na Unidade III, “Análise Dialógica do Discurso”, discutimos conceitos que norteiam a

Análise do Discurso ancorada em concepções teóricas bakhtinianas. Dentre esses

conceitos, há o de dialogia, polifonia e gêneros. Além disso, você encontrará uma

síntese da vida e obra do pesquisador e filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin,

estudioso de tais conceitos.

Finalmente, na Unidade IV, nosso olhar se direciona à análise de diversos gêneros pelo

viés da Análise do Discurso. Não consideramos apropriada a sugestão de um passo a

passo a ser trilhado pelo professor em sala de aula; mas entendemos que, por diversas

vezes, surge uma espécie de desorientação diante dos problemas didáticos que afligem o

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profissional da educação. Assim, pensando em contribuir com sua formação, você

encontrará, nesta Unidade, reflexões acerca da prática docente, com exposição de

exemplos de análises e comentários que, longe de serem receitas, podem lhe servir de

inspiração para seu trabalho em sala de aula.

Dessa forma, nas Unidades I, II e III, são abordados conceitos que servirão para que

você perceba a importância de termos um “olhar menos ingênuo em relação à

linguagem”. E, na Unidade IV, são apresentados exemplos práticos de leitura realizada

pelo viés discursivo, os quais evidenciam que é possível realizarmos uma leitura mais

crítica, considerando as vozes sociais, os discursos sócio-históricos presentes nos mais

diversos gêneros.

Bons estudos!

18

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Unidade 1

UnidadeAs Ideias Linguísticas: o que é e como se formou a Análise do Discurso?

Antes de trilharmos as veredas dos estudos em Análise do Discurso, é válido e

importante que você saiba acerca da trajetória das ideias linguísticas, que não se deu de

forma linear, mas sim de modo dialético, questionador, com contradições e influências

de estudiosos de diversos lugares do mundo. Saber, ao menos em linhas gerais, os

caminhos de desenvolvimento das ideias linguísticas pode esclarecer a você as bases

teóricas da Análise do Discurso e ajudá-lo a entender o objeto linguístico dessa área de

pesquisa e investigação. Sendo assim, primeiramente, vamos apresentar o início dos

estudos da Linguística e como nasceu essa ciência; depois, quais foram os avanços dela,

até, enfim, a culminância da formação da Análise do Discurso.

1.1 Breve histórico das ideias linguísticas

O início da Linguística deu-se com Panini, na Índia, há mais de 2.500 anos. Tinha

caráter religioso e não científico, voltado à análise morfossintática refinada na relação

com a fonologia. Platão e Aristóteles, na tradição greco-romana, introduziram a ideia de

“arbitrariedade” do signo e de seu caráter representacional, levantando os pilares da

semântica e da sintaxe (MARCUSCHI, 2009).

Até o século XIX, desenvolveram-se estudos na linha filológica, histórica e

comparatista, com estudos dos neogramáticos e dos comparatistas que buscavam leis

que organizassem todas as línguas. Esses estudos prepararam Saussure, conhecido como

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“pai da Linguística”, legando-lhe algumas posições teóricas que foram por ele

incorporadas e reformuladas. Em outras palavras, as considerações saussurianas foram

preparadas com base em estudos anteriores, subsidiadas por processos teóricos

abordados já nos séculos XVIII e XIX. Nesse sentido, segundo Faraco (2004), por um

lado, Saussure rompeu com paradigmas anteriores; por outro, ele estava preparado para

abordar a língua a partir de ideias discutidas anteriormente, logo, suas proposições

podem ser vistas como continuidade.

A ideia de sentido imanente da língua e de estudos linguísticos independentes de outras

áreas era fomentada por autores como Bopp, Schleicher e Whitney, cujas investigações

prepararam Saussure para a concretização da Linguística como ciência autônoma,

independente de estudos históricos, psicológicos, filológicos, literários, aos quais a

língua era até então atrelada. A linguística científica foi iniciada por Saussure, com seus

cursos ministrados na Universidade de Genebra, cujo conteúdo foi posteriormente

organizado e publicado por seus alunos no livro “Curso de Linguística Geral” (1916).

Ficaram determinados o rompimento com o comparativismo e historicismo, o estudo da

língua a partir de um recorte

sincrônico, a defesa da semântica

imanente da língua e a consideração

da língua como um sistema abstrato de

signos arbitrários e convencionais,

devendo ser estudada em seus níveis

de fonemas, morfemas e lexemas

(MARCUSCHI, 2009). Ficaram

excluídos dos estudos saussurianos: a realização da língua na fala, o funcionamento dela

em textos; o sujeito; a sociedade; a história; a cognição; o funcionamento discursivo da

língua; a pragmática etc. (MARCUSCHI, 2009).

As ideias saussurianas (ou estruturalistas, como também eram chamadas) deixaram

heranças a escolas, vertentes e autores que se dedicaram aos estudos linguísticos

posteriores ao pai da Linguística. Na Europa, uma dessas heranças foi a “Escola de

Praga”, que tinha como representantes Troubetzkoy, Roman Jakobson e Mathesius.

SENTIDO IMANENTE: entendia-se que as

palavras, por elas mesmas, carregavam os

sentidos, independentemente dos contextos em

que eram empregadas. Como em uma caixa de

surpresa, era como se o falante “abrisse” a

palavra e “pegasse” o sentido.

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Outra foi o grupo da “Glossemática”, cujos representantes mais notórios foram Luis

Hjelmslev e Viggo Bröndal, da Universidade de Copenhague. Ainda na Europa, surgiu

a escola nomeada de “Funcionalismo”, com André Martinet como maior representante,

além de participações de estudos de Jakobson (ILARI, 2004).

Além do Estruturalismo Europeu, houve o Estruturalismo Americano, entre as décadas

de 1920 e 1950. Um dos interesses dessa vertente na América era descrever

exaustivamente as línguas indígenas do continente. Os linguistas americanos recusaram

relação com Saussure e buscaram referência em Leonard Bloomfield. Na mesma linha,

um dos pesquisadores mais notórios foi Zellig Harris (ILARI, 2004).

Como toda evolução científica, no fim dos anos 1960, o Estruturalismo começou a ser

questionado; limites dessa teoria surgiram e alguns autores apontaram fragilidades da

visão da língua como sistema abstrato (ILARI, 2004). Um deles foi Chomsky, que

apresentou novas ideias que divergiam do pensamento estruturalista. Comandou uma

revolução na linguística americana anteriormente solidificada por Bloomfield e Harris.

Chomsky, antigo aluno de Harris, propôs um novo objeto de estudo: a competência

linguística, entendida como a capacidade inata de falar. Tratava-se de um objeto mental

(ILARI, 2004).

As críticas às fragilidades do Estruturalismo não cessaram com Chomsky. Também

Benveniste, com o início da teoria da Enunciação; Austin e Ducrot, com a Pragmática;

Pêcheux e Dubois, com a Análise do Discurso de perspectiva francesa; além de estudos

da Linguística Textual, da Sociolinguística e de outras vertentes teóricas que buscavam

avanços aos limites estabelecidos pelos postulados de Saussure. Pouco a pouco, os

estudos dos fonemas, dos morfemas e da sintaxe passaram ao nível do texto. Somadas a

isso, vinham as reflexões sobre os contextos de uso, sobre os interlocutores; enfim,

novos fatores imbricados à língua ganharam espaço nas pesquisas, dada a noção de que

a língua não poderia mais ser estudada apenas como um sistema abstrato de signos

arbitrários e convencionais. Na língua, estão os sujeitos e está a história. A ideia não era

negar as descobertas e definições de Saussure, mas sim desenvolver novos horizontes de

pesquisa e ampliar conhecimentos. Veremos rapidamente as ideias gerais das principais

linhas teóricas; antes, porém, apresentaremos a você, em quadros a seguir, mais detalhes

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de Saussure e de Chomsky, cujos estudos marcaram o nascimento e a concretização da

Linguística como ciência.

Mais detalhes sobre Saussure e Chomsky para você:

SAUSSURE

Saussure, linguista e filósofo suíço, nasceu em Genebra em 1857. Ficou conhecido como o

pai da Linguística por ter dado a ela estatuto de ciência, com a delimitação de um objeto de

estudo: a língua. Conforme elucida Marcuschi (2009), Saussure concretizou algumas

considerações que nortearam os estudos linguísticos no século XX:

a) A língua é uma instituição social, e não um organismo natural: antes se considerava a

língua como um organismo que nasce, vive e morre;

b) A língua é um sistema autônomo de significação;

c) A língua pode ser estudada por si mesma, e não por meio da literatura ou da psicologia:

passa a ser objeto de estudo;

Figura 1.1: Ferdinand de Saussure

Fonte:

tpi.wikipedia.org/wiki/Ferdinand_de_Saussure.

Acesso em: 24 nov. 2016.

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d) A língua é um sistema de signos arbitrários;

e) A língua é uma realidade com história.

Com essas ideias, surge a Linguística como ciência autônoma, independente de estudos

históricos, psicológicos, filológicos, literários, aos quais a língua era atrelada até então. A

Linguística Científica foi iniciada por Saussure com o “Curso de Linguística Geral” (1916),

publicado por seus alunos. A partir de então, ficaram determinados:

a) O rompimento com o comparativismo e historicismo;

b) O estudo da língua a partir de um recorte sincrônico;

c) Uma visão formalista da linguagem: a língua, embora fenômeno social, deveria ser

analisada como um sistema de signos arbitrário;

d) Visão homogênea da língua, a qual tem sentido imanente;

e) Estudo do sistema em níveis: fonemas, morfemas e lexemas;

f) O sujeito é “assujeitado” ao sistema, ou seja, não considerado.

Ficaram de fora dos estudos saussurianos: a realização da língua na fala, o funcionamento

dela em textos; o sujeito; a sociedade; a história; a cognição; o funcionamento discursivo da

língua; a pragmática; a semântica etc. (MARCUSCHI, 2009).

A teoria saussuriana, basicamente, fez-se em torno de dicotomias. Pietroforte (2006) as

apresenta:

1) SINCRONIA E DIACRONIA: a linguística anterior a Saussure dedicava-se às mudanças

históricas que ocorriam nas línguas; buscava-se comparar as línguas, organizá-las em grupo

e reconstruir todas as línguas de um grupo originado de uma outra língua comum. Esses

eram estudos diacrônicos. Já o ponto de vista sincrônico considera a língua num

determinado estado, isolada de duas mudanças através do tempo. “Saussure, ao definir a

língua como sistema e ao pensar a sincronia como o estudo de um sistema num dado

momento do tempo, abre caminho para a redefinição também do conceito de diacronia, que

vai ser entendida como a sucessão de diferentes sistemas ao longo do tempo”

(PIETROFORTE, 2006, p. 81).

24

2) LÍNGUA E FALA: a língua é um sistema organizado de elementos linguísticos que se

definem uns em relação aos outros; um elemento é o que o outro não é e, quando entra em

um sistema, todo esse sistema deverá se reorganizar. Considera-se aqui a ideia de sistema

atrelada à de VALOR, porque a oposição de um elemento o define atribuindo-lhe um

VALOR no sistema. Um traço distintivo de um signo que provoque mudança de significado

é pertinente e tem valor. Assim, Saussure explica língua e sistema em oposição à fala: “as

pessoas que falam a mesma língua conseguem comunicar-se porque, apesar das diferentes

falas, há o uso da mesma língua” (PIETROFORTE, 2006, p. 81). Ficaram assim definidas:

LÍNGUA FALA

Coletiva Particular

Social Individual

Sistemática Assistemática

Homogênea Heterogênea

Abstrata Concreta

Estável Variável

Conservadora Inovadora

3) SIGNIFICANTE E SIGNIFICADO: o signo linguístico é o resultado da associação entre

um significante, imagem acústica (impressão psíquica de uma sequência de sons), e um

significado, conceito relacionado a essa imagem (PIETROFORTE, 2006). Essa associação

é arbitrária, não existe motivação que una significante a significado e não há relação direta

entre as coisas do mundo e os signos, como se estes nomeassem aquelas. “Saussure

demonstra que a relação não é esta, entre palavras e coisas, mas sim entre uma imagem

acústica e um conceito, ou seja, entre um significante e um significado. Isso implica que a

língua não é uma nomenclatura, mas um princípio da classificação” (PIETROFORTE,

2006, p. 85). Essas considerações trazem a significação para dentro da língua e de sua

estrutura, uma vez que os signos significam uns com os outros, e não a relação entre

palavras e coisas do mundo.

25

Figura 2.2: Noam Chomsky

Fonte:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Noam_Cho

msky. Acesso em: 24 nov. 2016.

CHOMSKY

Chomsky é um grande linguista, filósofo e cientista político norte-americano. Em seu texto

“A Linguagem e a Mente”, estabeleceu a distinção entre pressupostos empiristas e

racionalistas. Aqueles embasavam a concepção de que a língua era adquirida a partir do

meio externo, da experiência e dos fatores ambientais. Já estes embasavam a concepção de

que a língua é inata, universal e organizada e que a sua aquisição passa por maturação em

interação com o meio. É esta última visão em que se edificava a tese chomskyana, que,

embora começasse um trabalho com a realização da língua, não feito por Saussure, tomava

como parâmetro um falante e condições de realização ideais, e não reais. Alguns conceitos

básicos da teoria de Chomsky são:

a) GRAMÁTICA GERATIVA E INATISMO: a gramática gerativa é aquela a partir da

qual geramos infinitos enunciados de uma língua. Essa gramática é inata, toda criança tem a

faculdade de linguagem e parte de um mesmo estado inicial que vai sendo modificado pelo

meio da interação social. Ela é capaz de derivar regularidades estruturais de uma língua

materna a partir da fala de seus pais e das pessoas com quem tem contato, fazendo uso

dessas mesmas regularidades na construção de expressões orais nunca antes ouvidas. Quem

nunca se deparou com uma criança que, de repente, começa a pronunciar frases nunca antes

ouvidas por ela? Isso significa que, a partir de amostras, a criança gera novos enunciados.

26

1.1.1 Ideias gerais da Enunciação

Émile Benveniste, linguista francês, foi um dos pesquisadores responsáveis pela

expansão da teoria saussuriana. Criticou o fato de o Estruturalismo ter desconsiderado o

“sujeito”, que desempenhava, a seu ver, papel fundamental na língua. Benveniste (1976)

defendia que os tempos verbais e o sistema de pronomes e de advérbios de tempo e de

lugar só ganham sentido quando estão em referência o falante e seu papel assumido na

interlocução. Para o linguista, havia grande diferença entre a concepção da língua como

sistema de signos e como exercício pelo indivíduo, num determinado contexto. Assim,

Benveniste ficou conhecido como o introdutor de uma visão que passa a considerar a

subjetividade na linguagem e o contexto, visão esta que entrava em conflito com a de

semântica imanente postulada por Saussure. O eu(ego), aqui(hic) e agora(nunc) foram

consideradas categorias de pessoa, espaço e tempo que não existem, segundo

Benveniste, apenas na língua, mas sim são constitutivas do ato de produção do

enunciado, logo, da Enunciação (FIORIN, 2003).

É preciso esclarecer alguns conceitos tratados por Benveniste, como o de “enunciação”,

que é o pressuposto do enunciado, é a situação de produção; e “enunciado”, que é o

b) ESTRUTURA PROFUNDA E SUPERFICIAL: a estrutura profunda é abstrata e

subjacente à língua, está na base das informações. Já a superficial é responsável pela

determinação fonética, relaciona-se com a forma física da realização concreta. A estrutura

superficial pode ser a mesma, mas pode ser gerada de estruturas profundas diferentes.

Aplicam-se regras transformacionais à estrutura profunda e o resultado é uma sequência

linear de morfemas, nomeada como estrutura de superfície da frase, que, depois de

aplicação de regras fonológicas, fornece a frase realizada.

c) COMPETÊNCIA E PERFORMANCE: os conhecimentos de uma língua correspondem

à nossa competência, e nossa habilidade no uso concreto desses conhecimentos corresponde

à performance. Todos os falantes têm a mesma competência, que é inata, mas não as

mesmas habilidades, que influenciam a performance (NEGRÃO, SCHER, VIOTTI, 2006).

27

resultado concreto da enunciação. A partir desses dois conceitos, surge o de

“enunciação enunciada”, que é a marca identificada no enunciado, que remete às

condições de enunciação; diferentemente do “enunciado”, que é a sequência enunciada

desprovida de marca de enunciação. Por exemplo, em “está chovendo”, temos um

enunciado; já em “eu digo que está chovendo”, temos a enunciação enunciada, pois se

enuncia no enunciado o ato enunciativo.

Fiorin (2003) explica as três categorias sob as quais o discurso é organizado: pessoa,

tempo e espaço.

a) PESSOA: a 1ª e a 2ª pessoas (eu/tu) sempre são participantes da comunicação,

ou seja, são pessoas enunciativas. São reversíveis: eu dirige a palavra a um tu, que pode

ser eu quando tomar a palavra; assim, o eu de antes passa a ser tu. Já a 3ª pessoa é

considerada, na verdade, como “não pessoa”, é aquele ou aquilo de quem eu e tu falam.

É pessoa enunciva, que pertence apenas ao domínio do enunciado, não aceita

reversibilidade. É a situação de enunciação que especifica o que é pessoa e o que não é.

As demais categorias estão na dependência do eu. Toda pessoa enuncia em um

determinado momento e lugar. Logo, as referências de tempo e espaço organizam-se em

relação ao sujeito que enuncia. O agora é o momento da enunciação, e o aqui, o lugar

de onde ela ocorre. Dito isso, passemos às outras categorias.

b) TEMPO: existem o tempo cronológico e o linguístico. O primeiro não pode

refazer o passado, enquanto o segundo, ligado ao exercício da fala, pode.

“O agora gerado pelo ato de linguagem constitui um eixo que

ordena a categoria da concomitância vs. não concomitância. A não

concomitância, por sua vez, articula-se em anterioridade vs.

posterioridade. Assim todos os tempos estão intrinsecamente

relacionados à enunciação” (FIORIN, 2003, p. 166).

O presente é o agora e coincide com o momento da enunciação, já o momento passado e

futuro precisam ser marcados no enunciado; desse modo, temos: ME, momento da

enunciação; MR, momento de referência (presente, passado ou futuro) e MA, momento

do acontecimento (concomitante, posterior ou anterior à enunciação). Portanto, há dois

28

sistemas temporais: 1) sistema enunciativo, relacionado ao momento de referência

presente, que é o momento da enunciação (MR=ME) e 2) sistema enuncivo, relacionado

aos momentos de referência instalados (marcados) no enunciado (MR não é o ME).

c) ESPAÇO: da mesma forma em que não se pode discursivizar sem tempo, não se

pode fazê-lo sem indicar os seres do mundo (FIORIN, 2003). A partir do aqui, todos os

objetos são situados, sem importância para o real lugar físico deles. Os pronomes

demonstrativos com função dêitica e os advérbios de lugar são próprios para situar as

coisas no espaço; diz-se que têm função dêitica: “este” refere-se a algo perto do

enunciador (eu), “esse” refere-se a algo perto do enunciatário (tu) e “aquele”, a algo

longe dos dois. Por exemplo, em “este livro é meu; esse, na sua bolsa, é seu”,

percebemos que este designa o objeto que, espacialmente, localiza-se com o enunciador;

já o pronome demonstrativo esse designa o objeto próximo ao enunciatário. Se o

enunciador enunciasse: “aquele livro no armário dos professores será doado”,

perceberíamos que aquele é um objeto que se localiza longe do enunciador e do

enunciatário, ou seja, fora da organização espacial da enunciação. Veja a figura a seguir:

Figura 3.3: Emprego dos pronomes demonstrativos com função dêitica

Fonte:https://amigopai.wordpress.com/2015/11/09/pronomes-demonstrativos/.

Acesso em: 06 dez. 2016.

29

Na figura anterior, podemos compreender que isto se refere à escada perto do locutor

(falante ou enunciador); isso se refere à escada que está próxima ao interlocutor

(ouvinte ou enunciatário); e aquilo se refere à escada que está afastada de ambos.

Observe outra imagem, uma tirinha da personagem Calvin:

Na tirinha acima, percebemos que Calvin empregou o pronome aquela para indicar

espacialmente um objeto que não estava nem com ele, o enunciador, nem com o Tigre,

seu enunciatário. Depois, Calvin usa isto, referindo-se ao objeto que, agora, está em

suas mãos, ou seja, está com o enunciador. Por fim, no último quadrinho, o Tigre,

personagem que toma a palavra, passando de enunciatário para enunciador, emprega o

demonstrativo isso, que se refere ao objeto que está nas mãos de Calvin, enunciatário do

Tigre, ou, ainda, que se refere a toda a situação narrada anteriormente por Calvin,

praticando uma referenciação anafórica, remissão a algo já dito, como veremos em

exemplos adiante.

Os dêiticos, além de empregados para situar espacialmente os objetos, também têm

função de anáfora e catáfora, estabelecendo coesão ao texto. Nesse caso, “esse, essa,

isso” referem-se a termos ou expressões já citadas no texto, fazendo referência

anafórica; já “este, esta e isto” referem-se a termos que ainda serão citados à frente,

fazendo referência catafórica. Veja os exemplos:

Figura 4.4: Tirinha com emprego de pronomes demonstrativos com função dêitica.

Fonte: http://slideplayer.com.br/slide/1857143/. Acesso em: 06 dez. 2016.

30

DÊITICOS ANAFÓRICOS (remissão para trás, a algo que já foi dito):

I. Todos nós estamos preocupados com a prova. Isso vem nos tirando o

sono há dias.

O pronome isso se refere à informação citada anteriormente, a de que

todos estão preocupados.

II. Joana comprou caneta, lápis de cor, folhas especiais e tinta para a aula de

desenho. Esses materiais foram solicitados pelo professor.

O pronome esses se refere aos elementos caneta, lápis de cor, folhas

especiais e tinta, que foram citados anteriormente. Essa forma de

referenciação é chamada de anafórica.

DÊITICOS CATAFÓRICOS (remissão para frente, a algo que ainda será dito):

III. Só lhe dou este aviso: ninguém poderá reclamar por falta de exercícios

resolvidos em sala.

O pronome este se refere a uma informação que ainda será descrita ou

citada adiante no texto.

IV. Leia esta frase a seguir, “proibido fumar”.

O pronome esta se refere à frase que ainda será indicada. Essa forma de

referenciação é chamada de catafórica.

Os demonstrativos podem, ainda, marcar o tempo, como em “esta semana...”, referindo-

se à semana que se vivencia no momento da enunciação.

1.1.2 Ideias gerais da Pragmática

Muitos pesquisadores consideram a Enunciação como uma área de estudo do campo da

Pragmática, visto que, por Pragmática, podemos entender o uso concreto da linguagem

nos mais diversos contextos. Dessa forma, as investigações vão além dos níveis

semânticos e sintáticos dos enunciados e debruçam-se sobre os aspectos culturais e

31

sociais implicados nos atos de fala. No nosso caso, procuramos separar Pragmática de

Enunciação apenas por uma questão didática, buscando destacar os pontos principais de

contribuição de alguns autores.

A Pragmática visa, basicamente, compreender os efeitos de sentido provocados pela

língua colocada em prática, ou seja, interessa-se pela língua em funcionamento e,

consequentemente, pelos implícitos, pelas inferências e por todos os aspectos

extralinguísticos. Quando um falante reflete sobre que efeitos possivelmente seu ato de

fala provocará, ele está mobilizando conhecimentos pragmáticos. Assim, ao preferir

“Sorria, você está sendo filmado”, em vez de “Não roube”, o falante foi capaz de

perceber que a primeira opção tem melhores efeitos que a segunda, a qual poderia

ofender o ouvinte e suscitar nele uma resposta talvez agressiva. Em outras palavras, a

segunda frase não é adequada para o contexto de uma loja em que se recebem clientes

de diversos tipos, que, certamente, não gostariam de inferir que o estabelecimento os

considera possíveis ladrões.

Outro exemplo de uso pragmático da língua seria a frase: “Nossa, está frio aqui dentro”,

com a intenção de que alguém feche as janelas. O falante pode ter escolhido essa fala

para parecer gentil, mas, na verdade, está solicitando – ou mandando, dependendo dos

falantes envolvidos na situação e do contexto como um todo – que as janelas sejam

fechadas.

Um dos expoentes da Pragmática foi Austin, com o estudo dos atos de fala. Para o

autor, os enunciados podem ser: 1) constativos (ou declarativos), que descrevem ou

relatam o estado das coisas e podem passar por critério de verdadeiro ou falso, como

“Eu jogo futebol”, “A Terra gira em torno do sol”; ou 2) performativos, que não

descrevem nem relatam ou constatam, logo, não passam por critério de verificabilidade;

os enunciados performativos são atos de fala, ou seja, quando proferidos na primeira

pessoa do singular do presente do indicativo, na forma afirmativa e na voz ativa,

realizam uma ação (daí o termo performativo: o verbo inglês to perform significa

realizar). Eis alguns exemplos: “Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito

Santo”, “Eu te condeno a dez meses de trabalho comunitário”, “Declaro aberta a

sessão”, “Eu te perdoo”. Tais enunciados, no exato momento em que são proferidos,

32

realizam a ação denotada pelo verbo; não servem para descrever nada, mas sim para

executar atos (ato de batizar, condenar, abrir uma sessão, perdoar, etc.). Nesse sentido,

dizer algo é realmente fazer algo (AUSTIN, 1998).

O performativo precisa ser emitido numa situação que, em todos os pontos, seja

apropriado ao ato em questão: a) o simples fato de proferir um enunciado performativo

não garante a sua realização; b) se o autor não está em condições exigidas para agir,

então seu enunciado será infeliz (por exemplo, se “eu te batizo” não for proferido por

alguém habilitado a batizar as pessoas, o ato de batismo não se efetua); c) também é

infeliz quando é formulado sem sinceridade (por exemplo: se digo “eu prometo...”, sem

ter a menor intenção de realizar esta ação prometida, ela não se efetua). Outras

considerações são feitas ao longo da teoria de Austin, até que o autor prevê os limites

dos critérios para a classificação dos enunciados e admite que, na verdade, todos eles,

constativos e performativos, são, de alguma forma, ações, isto é, são atos de fala.

Veja que os estudos de Saussure não deram conta de aspectos trazidos pela Enunciação

e pela Pragmática por não considerarem o sujeito e os fatores contextuais reais de

realização da linguagem. Ao ampliar o olhar para a língua real, concretizada por

falantes reais e em contextos sociais diversos, tornam-se necessários avanços dos

estudos linguísticos, os quais também estão sujeitos a novas críticas e a novos avanços.

1.1.3 Ideias gerais da Sociolinguística

Embora Saussure tenha caracterizado a língua como um fato social, os estudos

linguísticos voltavam-se à língua em si mesma, como um fenômeno fora dos sujeitos,

possível de ser objeto científico de uma Linguística Formal de caráter estruturalista.

Essa questão começou a ser reformulada por Meillet, tido por muitos como um

discípulo de Saussure, mas que realmente propõe a noção de fato social. Assim,

enquanto Saussure buscou separar estrutura de história, Meillet buscou não só a forma

da língua, mas, sobretudo, sua história e suas funções sociais. Enquanto Saussure

privilegia a abstração do sistema linguístico, procurando entender as relações internas à

língua; Meillet aborda o sistema, fazendo articulações entre aspectos internos e

externos, ou seja, ao contexto sócio-histórico (CALVET, 2002).

33

A partir de uma nova perspectiva de compreensão da língua, nasceu a Sociolinguística,

área científica que tem como objetivo central estudar as relações entre língua e

sociedade. Nos termos de Bagno (2007), importante sociolinguista brasileiro, o objetivo

central é relacionar a heterogeneidade linguística com a heterogeneidade social; isso

porque toda língua é constituída de variações, em todos os níveis: fonético-fonológico,

morfológico, sintático, semântico, lexical, estilístico-pragmático. A heterogeneidade da

língua – que significa riqueza linguística – ocorre na medida em que “Língua e

Sociedade estão indissoluvelmente entrelaçadas, entremeadas, uma influenciando a

outra, uma constituindo a outra” (BAGNO, 2007, p. 38). Consequentemente, com as

transformações e variedades sociais, a língua passa a também ser afetada e transforma-

se, apresenta variedades.

A língua portuguesa, bem como todas as outras línguas existentes, é um conjunto de

variedades (ou variações) linguísticas; variedades estas que são influenciadas por fatores

como: região geográfica, gênero (masculino e feminino), faixa etária (idade), classe

socioeconômica, época e escolaridade. Isso significa que, por exemplo, um homem de

20 anos de idade, de classe social média, com ensino superior, no nordeste brasileiro,

poderá falar de forma diferente de uma mulher de 60 anos, de classe social

desprivilegiada, sem escolaridade, no sul do país.

No entanto, assim como determinados âmbitos e classes sociais têm mais prestígio

político-econômico, algumas variedades são rotuladas de melhores ou corretas, levando

as pessoas ao equívoco de achar que existe mesmo uma maneira certa de falar e muitas

maneiras erradas. O modo rotulado correto é denominado Português Padrão (PP),

variedade de maior prestígio social, mas não o mais correto. Seu prestígio advém apenas

do fato de que quem o emprega detém poder (econômico, político, social...). Já as

variedades do Português considerado não padrão (PNP), ou não culto, por serem

empregadas por pessoas de classes sociais desprestigiadas, marginalizadas, oprimidas

pelas injustiças sociais, são vítimas dos mesmos preconceitos que pesam sobre essas

pessoas. O PNP é considerado feio, deficiente, pobre, errado, rude, mas é tão válido

para a comunicação quanto o PP. Os fenômenos linguísticos que acontecem no PNP

têm explicações lógicas e linguísticas e não são fruto de uma incapacidade mental ou de

34

uma deficiência linguística do falante. O preconceito linguístico é, na verdade, um

preconceito social: a língua vale o que valem seus falantes (BAGNO, 2006).

A ideia de “certo” e “errado” deveria ser afastada por completo, pois não cabe essa

avaliação a falantes nativos de uma língua – como falar que alguém que tenha nascido

no Brasil, que tenha como língua materna o Português, não sabe falar Português? A

persistência dessa ideia contribui para o fortalecimento do preconceito linguístico e

social.

No entanto, não estamos defendendo que não se deve ensinar o Português Padrão na

escola; pelo contrário: devido à grande importância do PP, ele deve ser ensinado nas

escolas e nas faculdades, para que alunos de qualquer classe social e de qualquer região

possam adquirir um poderoso recurso na luta contra a desigualdade social (BECHARA,

2002). Ao conhecer o PP, o falante amplia suas possibilidades de uso, podendo adequar

sua linguagem às diversas situações, e é isso que caracteriza um falante realmente culto:

aquele que é capaz de empregar a variedade adequada ao contexto, ou seja, em uma

situação muito formal, deve-se usar uma variedade formal que se aproxima ao máximo

do PP (diz-se “aproxima”, porque, para muitos linguistas, o PP é ideal, isto é,

dificilmente concretizado em um contexto real), ou, como se costuma dizer, deve-se

usar o PP; já em uma situação informal, deve-se utilizar o PNP.

Para elucidar melhor essas ideias, pensemos na metáfora proposta por Bagno (2006), a

da língua como um guarda-roupa: em cada ocasião, vestimos um tipo de roupa mais

adequado – se vamos à praia, colocamos biquíni, sunga, roupas de banho em geral; mas,

se vamos a um baile de formatura, escolhemos vestidos longos, ternos, roupas sociais e

formais. Para uma comunicação eficiente, precisamos desta habilidade: empregar a

variação informal ou a variação formal após se avaliar o contexto do qual se participa.

Ao empregar adequadamente a variedade da língua, o falante demonstra competência

comunicativa.

35

1.2 O início da Análise do Discurso

Enfim, chegamos ao ponto de tratarmos da Análise do Discurso. No percurso de

questionamentos ao estruturalismo saussuriano, um autor importante foi o francês

Pêcheux, que inaugurou, junto a Dubois, uma nova área de estudos linguísticos que

passou a considerar o contexto, ignorado por Saussure e considerado por perspectivas

que lhe sucederam apenas como um contexto situacional. O contexto a que Pêcheux e

Dubois se referiam era sócio-histórico e ideológico. Também se passou a considerar o

sujeito, mas não o sujeito benvenisteano e, como tal, origem da elocução, mas o sujeito

determinado pelo contexto sócio-histórico e ideológico. O discurso, por conseguinte,

passa a ser definido como objeto específico de investigação, perpassado pela ideologia e

pelo inconsciente. Essa área ficou conhecida como Análise do Discurso.

A nomenclatura Análise do Discurso surgiu da pretensão de um método para se

analisarem discursos, sobretudo, de cunho político. A ideia de Pêcheux inicialmente,

como veremos com mais detalhes na próxima Unidade, era elaborar um programa

computacional que pudesse analisar os discursos e, consequentemente, os

posicionamentos ideológicos dos sujeitos. Podemos perceber que houve avanços em

relação ao estruturalismo linguístico, ao se passar a dar atenção aos aspectos contextuais

para além de contextos imediatamente situados e descritos materialmente, isto é,

contextuais no sentido histórico e ideológico que incidem na formação dos discursos de

uma dada época, em um dado lugar, em uma dada interação entre sujeitos.

Apesar desses avanços, que colocaram a língua imbricada com a sociedade e vice-versa,

nos primeiros estudos em Análise do Discurso por Pêcheux, ainda é possível observar

uma tentativa homogeneizante de se trabalhar com os discursos. Esse limite teórico foi

sendo questionado pelo próprio autor, que mais tarde passou a considerar a

heterogeneidade discursiva, inevitável nas produções de linguagem e na constituição

dos sujeitos. Em outras palavras, o autor concluiu que somos sempre constituídos por

discursos que se filiam a ideologias diferentes, o que nos torna heterogêneos e

contraditórios. A primeira ideia de que, por exemplo, um comunista nunca falaria como

36

um conservador passa a ser questionada. O próprio Pêcheux descartou a ideia de uma

análise automática dos discursos e passou a trabalhar com uma visão não imanentista e

não formal da linguagem, ou seja, considerou uma visão de que os sentidos não estão na

materialidade linguística e não são capturáveis de forma previsível, o que nos leva a

perceber que o autor privilegiou as condições sócio-históricas dos discursos e os

contextos de recepção deles, para, enfim, observarem-se os efeitos de sentidos que são

produzidos.

Essa Análise do Discurso a que nos referimos até o momento é denominada Análise do

Discurso Francesa (doravante ADF), corrente desenvolvida majoritariamente na

França, cujo principal autor foi Pêcheux, buscando relações com o pensamento marxista

de Althusser, psicanalítico de Lacan e linguístico de Saussure. Nessa vertente de

estudos discursivos, encontramos influências das produções de Foucault, Authier-

Révuz, Courtine, entre outros pesquisadores que tomam como pilares o marxismo, a

psicanálise freudo-lacaniana e a linguística. No Brasil, Eni Orlandi é a pesquisadora

mais notável da ADF, juntamente a Rosário Gregolin, Cleudemar Fernandes e muitos

outros que mantêm grupos de estudos e de pesquisa, participações em eventos

acadêmicos e relevantes publicações, levando as pesquisas brasileiras ao

reconhecimento mundial nessa área de investigação.

No entanto, devemos prepará-lo, caro leitor, para o fato de que poderá encontrar muitos

textos, artigos, trabalhos acadêmicos, que se dizem ancorados na Análise do Discurso,

mas que não buscam exatamente princípios teóricos postulados pela ADF. Isso acontece

porque muitos outros autores delimitaram também como objeto de estudo o discurso e

buscam uma forma de entendê-lo, de analisá-lo. Nesse sentido, eles também propõem

uma Análise do Discurso, mas o que entendem por discurso, por sujeito, por contexto,

entre outros conceitos, difere do modo como Pêcheux e os autores da ADF entendem.

Não cabe o critério de certo ou errado, nem de melhor ou pior. São olhares diferentes

para um objeto de estudo. Toda ciência é assim: delimita-se o objeto de estudo e o olha

sob um prisma, uma perspectiva. Ao mudar esse prisma, muda-se o modo de entender o

objeto. Por isso que não se pode, por exemplo, acusar Saussure de ingênuo e

ultrapassado, como muitos fazem para justificar que ele não precisa mais ser estudado.

37

Pelo contrário: Saussure foi coerente com o que propôs – desenvolveu seus estudos a

partir do recorte de seu objeto de estudo. Ele deve, sim, ser estudado ainda hoje, para

que possamos compreender de que ponto partiram as outras teorias e como ocorrem os

movimentos dialéticos e contraditórios das ciências.

Esclarecidas essas questões, vamos apresentar três vertentes de Análise do Discurso

muito presentes em trabalhos acadêmicos atuais, a saber: Análise Crítica do Discurso

(doravante ACD), Análise do Discurso Francesa (ADF) e Análise Dialógica do

Discurso (doravante ADD).

1.2.1 Análise Crítica do Discurso

A ACD denomina-se dessa forma porque pretende colocar a prática de análise sempre

como uma prática de transformação da sociedade. Os analistas dessa vertente buscam

verificar como as práticas linguístico-discursivas estão imbricadas com as estruturas

políticas, de poder e de dominação. Sendo assim, aumentar a consciência dos sujeitos

seria o primeiro passo para a emancipação, tendo como principal ideia a de que a

mudança discursiva pode acarretar a mudança de prática social e vice-versa.

Com forte influência de estudos norte-americanos, a ACD apoia-se

epistemologicamente na Linguística Sistêmico-funcional de Halliday, também nas

teorias neomarxistas como as de Gramsci e em estudos da Escola de Frankfurt (MELO,

2009). Nomes como Van Dijk, Gunter Kress e Norman Fairclough são notáveis nessa

vertente, a qual é muito produtiva para a compreensão dos discursos, mas que, ao nosso

ver, ao tomar os sujeitos como conscientes e, consequentemente, “senhores de si”, não

dá conta de explicar a repetição discursiva e a permanência de práticas sociais mesmo

após a “conscientização” dos sujeitos. Por exemplo: como explicar uma pessoa ter

conhecimentos e boa formação acadêmica, entender racionalmente o equívoco e

absurdo do preconceito racial e, mesmo assim, apresentar comportamentos racistas?

Como explicar a constituição desse sujeito? A conscientização discursiva pode não ser

garantia para a mudança de práticas sociais.

Além disso, a tendência sociocognitivista dos estudos em ACD e o destaque dado à

38

análise funcional das sentenças privilegiam a superfície linguística (a textualidade) e os

contextos situacionais (imediatos da interação), não dando conta da compreensão dos

efeitos de sentido produzidos pelo funcionamento discursivo. Como explicamos

anteriormente, a ACD faz um recorte para seus estudos diferentemente de como o fazem

as outras vertentes, isso não é nenhum demérito. Dependendo da trajetória que o

pesquisador deseja trilhar, ele poderá escolher uma ou outra linha.

1.2.2 Análise do Discurso Francesa

No fim da década de 60 e nos anos 70, Michel Pêcheux e Jean Dubois, embora

estivessem preocupados com estudos diferentes, estavam unidos por um aspecto em

comum: o interesse por questões relativas ao marxismo e à política, compartilhando

ideias acerca de luta de classes. Um olhar histórico permite observar que, apesar de

pesquisarem independentemente um do outro, esses dois estudiosos fundaram a Análise

do Discurso de perspectiva francesa (MALDIDIER, 1994).

Pêcheux e Dubois viam forte ligação entre o marxismo (sua preocupação em comum)

com a linguística; para eles, a linguística poderia oferecer novas formas de se abordar a

política; daí terem se dedicado à análise do discurso político. Embora ambos

reconhecessem a relação entre a língua e o exterior, Dubois tinha como objetivo

relacionar um modelo linguístico a um modelo sociológico e psicológico, enquanto

Pêcheux buscava problematizar o discurso em suas articulações com o sujeito e a

ideologia. Segundo Maldidier (1994), a Análise do Discurso de Dubois deu lugar à

enunciação, aliada a estudos de Benveniste, e a de Pêcheux se fortaleceu com a ideia de

uma análise automática do discurso, em 1969, e evoluiu até a ADF com a qual temos

contato hoje.

A ADF baseia-se, a partir de Althusser (1985), no materialismo histórico, segundo o

qual a ideologia tem uma existência material, uma vez que é realizada em Aparelho

(repressivo) de Estado, que compreende o governo, a polícia, as prisões, enfim,

organizações que funcionam principalmente por meio da violência (muitas vezes física);

e Aparelhos Ideológicos de Estado, que compreendem instituições como a Igreja, a

Escola, a Família, a Política (os partidos políticos), o Sindicato, a Imprensa, entre outras

39

que funcionam principalmente por meio da ideologia. São esses Aparelhos, tanto os

repressivos quanto os ideológicos, que asseguram as relações de produção e a ideologia

da classe dominante. Desse modo, os Aparelhos Ideológicos de Estado, cuja ação é

garantida pelo Aparelho (repressivo) de Estado, regulamentam as práticas, os atos, dos

rituais do cotidiano, das situações, como, por exemplo, uma missa, uma aula, uma

audiência jurídica, nas quais se materializa a ideologia, daí sua dimensão material.

Adotando a leitura althusseriana do Marxismo, Pêcheux (1988) afirma que é por meio

da ideologia que os sentidos são determinados, isto é: “a ideologia que fornece as

evidências pelas quais ‘todo mundo sabe’ o que é um soldado, um operário, um patrão,

uma fábrica, uma greve, etc., evidências que fazem com que uma palavra ou um

enunciado ‘queiram dizer o que realmente dizem’” (PÊCHEUX, 1988, p. 160).

Nesse sentido, Pêcheux foi acusado de tratar o sujeito apenas como “assujeitado” à

ideologia; no entanto, mais tarde, ele avançou com a ideia de estrutura e acontecimento

(PÊCHEUX, 1990), o velho e o novo – o velho é o pré-construído que se repete, que é

retomado pelo sujeito por meio da memória discursiva; e o novo seriam as condições de

produção dos discursos, que são sempre inéditas e irrepetíveis, tornando cada discurso

como um deslocamento de outros. Portanto, analisar os discursos seria resgatar a

historicidade e os cruzamentos ideológicos que permitiram o seu surgimento em dado

momento, por dado sujeito.

O que fica por enquanto é a ideia de que as noções de língua, discurso, sujeito e

ideologia estão estritamente relacionadas e cada uma delas será mais bem detalhada

adiante, para que você possa adentrar nos vieses dessa vertente discursiva.

1.2.3 Análise Dialógica do Discurso

A vertente discursiva que, a partir de agora, comentamos ancora-se nos estudos de M.

Bakhtin, autor que não propôs exatamente um método analítico formal, até porque isso

reduziria os estudos que ele e seus companheiros – do Círculo de Bakhtin –

desenvolveram, mas que deixou heranças bastante recorrentes e importantes para os

estudos do discurso.

40

Na teoria de Bakhtin, dois fatores são essenciais: todo signo é ideológico e os discursos

são dialógicos. Em relação ao primeiro fator, entende-se que a ideologia é expressa por

todo material semiótico (signos, símbolos, palavras, imagens...); isso significa que não

há como empregar a linguagem sem expressar algum valor ideológico. Dessa forma,

estudar a língua é inevitavelmente estudar a história e a ideologia, afirmação muito

próxima ao que postulou Pêcheux. Em relação ao segundo fator, entende-se que todo

enunciado é a resposta a um anteriormente produzido e suscita a produção de novos

enunciados, compondo uma corrente dialógica, em que um discurso dialoga com outro

(FIORIN, 2006). Esse diálogo nem sempre é de convergência, mas também de

divergências, embates. Consequência disso é que, em todo discurso, é possível observar

outros que estão em dialogia, em interação.

O que fica evidente para nós, até o momento, é que Bakhtin tomava o discurso e os

sujeitos como produtos históricos, frutos de movimentos ideológicos e que, portanto,

estudar a língua é levar em consideração questões nem sempre visíveis na materialidade

linguística, mas que, a partir dela, podem ser refletidas.

Segundo Brait (2006), importante pesquisadora das ideias de Bakhtin no Brasil, o que

deve ser buscado são as contribuições bakhtinianas para uma teoria/análise dialógica do

discurso, ou, ainda, buscar uma postura dialógica diante de uma análise do discurso.

1.3 Mas, afinal, que Análise do Discurso estudaremos?

Optamos por apresentar a você, de forma um pouco mais detalhada, os estudos da ADF

e os estudos do Círculo de Bakhtin para uma ADD, respeitando o princípio bakhtiniano

de tratar os discursos de modo aberto, sem traçá-los pelos caminhos de uma análise

formal, mas a partir de uma postura dialógica, como sugere Brait (2006).

A nossa escolha se deu por dois motivos: 1) é possível, embora sejam de teorias

diferentes, estabelecer interfaces entre as ideias de Pêcheux e Bakhtin, o que pode torná-

41

las muito relevantes para uma compreensão mais global da Análise do Discurso; 2) um

número notável de pesquisas acadêmicas é pautado no construto teórico da ADF e a

maioria dos materiais didáticos de hoje se apoia teoricamente nos postulados de

Bakhtin, principalmente no que diz respeito aos gêneros discursivos, que serão

discutidos à frente. Soma-se a esses motivos, o fato de que, em um único livro, como o

aqui presente, não é possível abarcar com profundidade muitas teorias; logo, alguma

delimitação sempre ocorrerá. Entretanto, procuramos apontar meios de enriquecimento

de seus estudos na seção “Para saber mais”, caso você queira conhecer melhor itens

abordados por nós nesta Unidade.

Para organização do que exporemos, a unidade 2 tratará da ADF; e a 3, das ideias de

Bakhtin para a ADD.

1.4 Síntese da Unidade

Nesta Unidade, você pôde conhecer um pouco dos caminhos trilhados pelos estudos

linguísticos, da teoria de Saussure, considerado pai da Linguística, e de Chomsky,

grande linguista, filósofo e cientista político norte-americano, bem como conhecer, em

linhas gerais, ramificações linguísticas que se desenvolveram em perspectivas teóricas

importantes e que até hoje constituem construtos basilares para as pesquisas em

Linguística e em Linguística Aplicada.

Em seguida, apresentamos a você o início da Análise do Discurso e os tipos de estudos

discursivos. A partir disso, delimitamos para as próximas Unidades, a ADF e a ADD

para um desenvolvimento mais detalhado.

42

1.5 Para saber mais

Vídeo

• José Luiz Fiorin, importante linguista brasileiro, professor livre-docente da

Universidade de São Paulo (USP), apresenta, de forma muito elucidativa, as

categorias da Enunciação (de tempo, espaço e pessoa), com exemplos e

exercícios, para que você possa aperfeiçoar seus conhecimentos e as ideias

apresentadas em 1.1.1 As ideias gerais da Enunciação. Confira na página

indicada. É muito interessante!

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RQzJaFYiqhc

Acesso em 04 dez. 2016.

Livros

Você sabia que muitos alunos abandonam a escola porque sofrem preconceito

linguístico dos colegas e até mesmo dos professores? Pois é... justo a escola, que

deveria ser um espaço democrático, muitas vezes reforça as diferenças sociais a partir

das diferenças da língua. Para um aluno que tenha uma variedade linguística caipira, por

exemplo, a língua culta (ou o português padrão) é praticamente uma língua estrangeira,

com vocabulário e construções sintáticas distantes da realidade dele. Cabe ao professor

fazer a ponte entre a variedade do aluno e a variedade considerada culta, por meio de

exercícios, textos variados (com uma grande diversidade de linguagem), enfim,

estabelecendo vínculos para que o aluno amplie seus conhecimentos linguísticos. Não

se deve negar a história do aluno, mas sim possibilitar que ele a amplie e acesse muitas

esferas de interação social, nas quais as variedades linguísticas cultas e coloquiais

(formais e informais) aparecem. Sobre esse tema, indicamos os seguintes livros do

sociolinguista Marcos Bagno. Vale a pena!

43

• BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz?. São Paulo:

Loyola, 2000.

• BAGNO, Marcos. A língua de Eulália: novela sociolinguística. São Paulo:

Contexto, 2006.

O livro “O que é Linguística”, da autora Eni Orlandi, coleção Primeiros Passos, é

excelente para você compreender a constituição da Linguística e das principais ideias

que a embasaram. A obra é simples e com uma linguagem muito esclarecedora.

• ORLANDI, E. P. O que é Linguística. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2013.

Indicamos, também, o texto de Norman Fairclough, Análise Crítica do Discurso como

método em pesquisa social científica, que integra a obra Methods of critical

discourse analysis, organizada por Wodak e Meyer, 2.ed. Londres: Sage, 2005. p. 121-

138. Esse texto o ajudará a entender melhor a ACD e está disponível on-line em:

• www.revistas.usp.br/linhadagua/article/download/47728/51460

Acesso em 25 nov. 2016.

Sites

• http://www.labeurb.unicamp.br/portal/pages/home/lerArtigo.lab?id=48&cedu=1

O site do Laboratório de Estudos Urbanos (LABEURB) – da UNICAMP – traz

informações sobre Michel Pêcheux, textos do autor e textos de outros autores da

Análise do Discurso Francesa. É muito interessante visitar o site e passear por ele,

aproveitando para conhecer pesquisas e seus resultados. Veja lá!

44

1.6 Atividades

1) Elabore um quadro resumidor em que você possa colocar as teorias linguísticas

apresentadas nesta Unidade. Atenção: destaque, de alguma forma, o ponto relevante que

diferenciou cada uma delas.

2) Qual(is) a(s) diferença(s) entre as vertentes de Análise do Discurso?

3) Você acredita que o ensino da Língua Portuguesa possa se beneficiar com os estudos

da Análise do Discurso? Como? Esta questão pretende levar você a começar a

relacionar as ideias das próximas Unidades com o seu trabalho de futuro professor.

Para refletir...

Já pensou sobre isto? Você já observou que as embalagens de alimentos mais modernas

apresentam a superfície em Braile, o sistema de leitura para cegos? Então, é o discurso

de inclusão que está na “ordem do discurso” atual materializado nas caixinhas. Esse tipo

de discurso só foi possível devido a mudanças sociais e ideológicas. Veja que

antigamente não havia essa preocupação. Refletir sobre isso pode ajudá-lo a

compreender a Análise do Discurso tanto a partir de Pêcheux quanto de Bakhtin, que se

debruçaram sobre o funcionamento discursivo e, consequentemente, sócio-histórico e

ideológico dele.

Figura 5.5: Embalagem de remédio com superfície em Braile.

Fonte:http://www.acessibilidadenapratica.com.br/textos/consumidores-

com-deficiencia-visual-e-os-rotulos-em-braille/.

Acesso em: 25 nov. 2016.

45

Unidade 2

Unidade 2.Análise do Discurso Francesa

Na Unidade anterior, passamos por um breve histórico das ideias linguísticas para

entendermos as origens da Análise do Discurso. Vimos, ainda, que Análise do Discurso

é uma nomenclatura que se refere a muitas perspectivas teóricas que, embora diferentes,

têm como objeto de estudo o discurso, o qual, por ser analisado segundo óticas distintas,

também é conceituado de várias formas.

Nesta Unidade, iremos expor a formação da Análise do Discurso Francesa (ADF) e

alguns conceitos importantes que constituem suas bases fundamentais, como: sujeito,

discurso, ideologia, interdiscurso, heterogeneidade.

2.1 As fases da análise do discurso francesa

A ADF passou, segundo síntese do próprio Pêcheux, por três fases de desenvolvimento,

pelas quais conceitos e modos de compreensão dos discursos e dos processos

discursivos foram aperfeiçoados.

A primeira fase iniciou-se na década de 60 e, em 1969, influenciado pelas inovações da

computação, mas ainda muito preso ao Estruturalismo e às leituras de Althusser,

Pêcheux propôs a existência de uma maquinaria discursivo-estrutural que geraria os

discursos. Assim, a fim de analisá-los, propôs-se à construção de um analisador

sintático para se proceder a uma análise automática dos discursos (chamada AAD-69);

seria uma análise não subjetiva que descreveria os discursos de modo automático e

informatizado. Nesse momento, observa-se a ideia de sujeito assujeitado. As produções

46

discursivas seriam pré-determinadas por uma máquina fechada em si mesma; logo, os

sujeitos, sob a ilusão de autonomia, de domínio de seu dizer, repetiriam discursos

anteriores (PÊCHEUX, 1983). Além da ideia de assujeitamento do sujeito, o discurso

era considerado como produto de condições de produção estáveis e homogêneas, por

isso a maquinaria discursiva fechada em si.

O surgimento do conceito de formação discursiva, discutido primeiramente por

Foucault em Arqueologia do Saber (2005), provocou novas reflexões de Pêcheux acerca

da natureza dos sujeitos e dos discursos, o que inaugura uma segunda fase da ADF.

Pêcheux (1983) explica que a ideia de formação discursiva começa a desconstruir a

crença em uma maquinaria discursiva passível de ser analisada automaticamente, uma

vez que uma formação discursiva não poderia ser fechada em si mesma, por ser

constantemente perpassada por discursos de outras formações discursivas – são os

chamados discursos transversos ou interdiscursos. Os sujeitos continuariam

assujeitados, mas havia a problemática de se delimitarem as fronteiras das formações

discursivas.

O abandono por completo da ideia de um analisador sintático e de uma maquinaria

discursiva faz parte da terceira fase da ADF proposta por Pêcheux, quando aponta a

investigação da noção de sujeito interpelado pela ideologia e constituído de diversos

discursos, o que revela sua natureza heterogênea, a partir das pesquisas de Authir-Revuz

(2004). Além disso, reconhece-se que as condições de produção dos discursos não se

repetem; assim, embora discursos anteriores sejam repetidos, retomados, como um pré-

construído, o sujeito não se torna inteiramente assujeitado, por enunciar sob novas –

logo, não estáveis e previsíveis – condições sócio-históricas e ideológicas, que

contribuem para a construção de novas relações entre discursos – o interdiscurso – e de

novos sentidos que podem, além disso, sofrer interferências de equívocos (PÊCHEUX,

1988).

Somando-se à questão da heterogeneidade constitutiva do sujeito e das condições de

produção dos discursos, Pêcheux (1983) reconhece ainda pontos que revelam a

impossibilidade de um analisador automático, tais como a irrupção (não controlada) do

inconsciente na enunciação, a emergência de posições-sujeito, e aponta interrogações

47

que poderiam ser exploradas a partir do trabalho de análise de um discursivista, mas não

por uma máquina automática cujas funções são fechadas e previsíveis, o que o leva a se

perguntar:

O que faz com que textos e sequências orais venham, em tal

momento preciso, entrecruzar-se, reunir-se ou dissociar-se? Como

construir, através desses entrecruzamentos, conjunções e

dissociações, o espaço de memória de um corpo sócio-histórico de

traços discursivos, atravessado de divisões heterogêneas, de

rupturas e de contradições? Como tal corpo discursivo de traços se

inscreve através de uma língua, isto é, não somente por ela mas

também nela? (PÊCHEUX, 1983, p. 317).

Na terceira época da ADF, portanto, a metodologia de análise dos discursos rompe

totalmente com a ideia de possível estabilidade e homogeneidade das condições de

produção, bem como se reconheceu a não neutralidade da sintaxe, isto é, a inevitável

impregnação ideológica dos signos linguísticos e de sua organização sintática nos

enunciados, o que fortaleceu a pressuposto de que elementos sócio-históricos e

ideológicos podem ser observados por meio de discursos, que, por sua vez,

materializam-se nos signos,

linguísticos ou de outra natureza.

Mesmo após a morte de Pêcheux, em

1983, a ADF passa por avanços,

deslocamentos, reformulações, com

estudos de analistas do discurso.

Iniciada na França em 1960, apenas

na década de 80 ressoou no Brasil,

isso porque, segundo Fernandes

(2008), a natureza política das bases

da ADF incita que os estudiosos

olhem, não só as palavras, mas o que

elas denunciam e o que silenciam –

Figura 2.1: Michel Pêcheux (1938-1983),

filósofo francês, fundador da Análise do

Discurso de linha francesa. Propôs novo âmbito

de estudos para a Linguística: a investigação da

produção de sentidos, ou seja, a semântica dos

discursos.

Fonte:http://www.labeurb.unicamp.br/portal/pa

ges/home/lerArtigo.lab?id=48&cedu=1.

Acesso em: 29 nov. 2016.

48

por trás das palavras, outras são enunciadas e muitas outras, apagadas. Dessa forma, o

autor explica que eram necessárias condições históricas favoráveis à implementação da

ADF que, no Brasil, só surgiram com o fim da ditadura militar.

2.2 Sujeito e discurso

A noção de “sujeito” na ADF, a partir das ideias de Pêcheux, está indissociável da

noção de “discurso”, uma vez que se funda no pressuposto de que não existe discurso

sem sujeito. E, como o discurso é o objeto de estudo da ADF, faz-se necessário discutir

a relação entre essas noções básicas.

Para Pêcheux (1988), a subjetivação é o processo pelo qual o indivíduo torna-se sujeito

ao ser interpelado pela ideologia. As ideologias materializam-se em práticas e

manifestam-se nos discursos que, por sua vez, constituem os sujeitos à medida que estes

assumem posições sócio-históricas (posição-professor, posição-polícia, posição-patrão

etc.) na sociedade. Os sujeitos assumem posições sob a impressão de o fazerem por um

processo natural, de livre vontade, quando são, na verdade, conduzidos a tal, assim que

começam a participar do funcionamento do sistema social, que é ideológico, passando a

representar, de forma imaginária, suas condições de existência, alienando-se delas. Essa

alienação, que se faz pelo imaginário, é tal que se reproduz a distorção de: em lugar de

as instituições servirem aos sujeitos, são eles que servem a elas (CASTORIADIS, 1995,

apud UYENO, 2012).

A partir disso, o sujeito passa a ser constituído por discursos que estão em circulação no

momento histórico, ou seja, que estão na “ordem do discurso”, legitimados socialmente

numa dada época (FOUCAULT, 1996). Discurso pode ser entendido como o efeito de

sentido entre os interlocutores; encontra-se no social; é exterior à língua, porém dela

precisa para se manifestar, ou seja, o discurso diz respeito a aspectos sociais e

ideológicos que se impregnam nas palavras e nas práticas dos sujeitos para se

materializar (PÊCHEUX, 1988).

49

O discurso de inclusão, por exemplo, está materializado nas leis de educação que

extinguem escolas especiais e determinam a aceitação de alunos com necessidades

especiais em salas de aula regulares; nos novos currículos de licenciatura, que preveem

o ensino de Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS); nas placas que indicam vagas para

deficientes em estacionamentos; nas calçadas com pisos especiais para cegos; em

práticas como proferir uma palestra com um intérprete, enfim, o discurso de inclusão

está materializado em muitas formas verbais, nos signos linguísticos, e não verbais; e

esse discurso se filia a um posicionamento ideológico, a uma maneira de entender o

mundo e de organizá-lo.

A “ordem do discurso” de que fala Foucault (1996) é a possibilidade de um discurso ser

legitimado ou não em determinada época, em determinado lugar, por determinadas

pessoas. Voltando ao exemplo do discurso de inclusão, ele é um discurso possível hoje,

mas, se fizermos uma retrospectiva histórica, veremos que ninguém pensava em

inclusão; pelo contrário, ter um filho deficiente era, segundo a religião, um castigo

divino. Na escola, não havia espaço para crianças com necessidades física, mental,

intelectual. O mercado não explorava formas de atingir essas pessoas, uma vez que não

eram consideradas consumidoras. Muitas famílias, sobretudo as de alto poder

econômico e de alta classe social, tradicionais, escondiam filhos com algum

“problema”, porque eram considerados uma vergonha. Veja, se antes as condições

sócio-históricas e ideológicas permitiam essas ações e as legitimavam, hoje vemos que

elas não estão na ordem do discurso. Uma pessoa que esconda o filho com deficiência

auditiva, por exemplo, não será bem vista pela sociedade e terá sua atitude condenada.

Novas condições de produção discursiva colocam em ordem novos discursos, e isso

pode ser observado em relação a outros discursos. Repare à sua volta.

Discutir essas questões com os alunos é importante na medida em que os leva a

compreender que os fatos, as atitudes, as práticas, os modos de pensar não são naturais,

resultados de um movimento natural, sem interferência humana. Pelo contrário: nós

vemos o mundo e materializamos discursos que estão estritamente ligados à sociedade,

aos jogos de poder, ao capital, à religião, enfim, à história e à ideologia.

Sobre isso, continuamos a discutir o que seria discurso. Os discursos remetem a

50

formações ideológicas, conjunto de ideologias, que se manifestam em formações

discursivas, conceituadas como aquilo que “determina o que pode e deve ser dito

(articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma

exposição, de um programa, etc.)” (PÊCHEUX, 1988, p. 160). Além disso, são as

formações discursivas que determinam os sentidos das palavras, textos, posições.

Compreender o signo “mulher”, por exemplo, em um dado contexto, pode produzir

diferentes sentidos conforme a formação discursiva à qual o sujeito se filia, revelando

ideologias machistas, feministas, religiosas e outras tantas. O emprego das palavras, as

escolhas lexicais, a forma como se constroem as frases, os destaques dados a uma ou a

outra informação ou imagem produzem efeitos de sentidos diferentes nos sujeitos, isso

porque eles estão em formações discursivas e ideológicas diferentes.

Para exemplificar a questão dos efeitos de sentido, podemos tomar o fato de que, no dia

31 de agosto de 2016, ocorreu o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, no Brasil.

Nós empregamos a palavra impeachment, aqui, seguindo o modo como o fato histórico

foi registrado nos documentos oficiais. No entanto, poderíamos ter empregado a palavra

“golpe”, sinalizando que talvez não concordemos com o fato e o encaremos como uma

“tomada de poder” que ocorreu mascarada na forma da lei. Em ambos os casos, há

argumentos que o sustentem. Quem acompanhou o processo verificou a quantidade de

parlamentares que se pronunciaram contra Dilma Rousseff e a favor dela. O que

queremos apontar neste livro é que, ao empregar a palavra impeachment, o escrevente

denuncia uma forma de compreender o fato que, por sua vez, relaciona-se com um

posicionamento ideológico. Ao empregar “golpe”, o posicionamento é outro.

O mesmo ocorreu no exemplo da pergunta do jornalista da Globo News, em 31 de

agosto, à noite, a um repórter que estava nas ruas fazendo a cobertura das manifestações

após a votação que destituiu Dilma Rousseff da presidência: A polícia já conteve os

baderneiros? Ao chamar os manifestantes de “baderneiros”, o jornalista revela como

compreendeu os fatos e essa compreensão tem a ver com sua filiação ideológica. Ele

poderia, como tantos outros, ter usado a palavra “manifestantes”, “revoltosos”, o que

nos levaria a interpretá-lo de forma diferente.

São inúmeros exemplos que podemos analisar. Nas atividades, poderemos observar

51

alguns casos. O que deve ficar claro a você é que a língua e qualquer tipo de linguagem

(necessário para a interação humana) não são inocentes e neutros, mas sim carregados

de valores, de ideologia, de vozes que, ao se mostrarem, silenciam outras.

2.3 Interdiscurso, heterogeneidade e contradição

O processo de produção de sentidos é realizado por meio de dois tipos de

esquecimentos pelos quais os sujeitos são afetados para se constituírem como tais e para

enunciarem (PÊCHEUX, 1988): o esquecimento denominado número 1, que está

relacionado às escolhas particulares do sujeito para produzir enunciados com a ilusão de

controle da produção dos sentidos sobre aquilo que enuncia, isto é, o sujeito emprega as

palavras, constrói frases, textos, enfim, usa a língua com a ilusão de que pode controlar

os sentidos, ou de que os sentidos só poderão se formar de uma única forma – a forma

como o interlocutor os concebeu; e o esquecimento de número 2, que é aquele que leva

o sujeito a enunciar sob a ilusão de ser a fonte dos dizeres, a origem dos discursos, isto

é, o sujeito tem a ilusão de que os sentidos nasceram dele, mas, na verdade, são

construções sócio-históricas e ideológicas que já existiam antes mesmo de o sujeito

nascer – quando convive em sociedade, participa do funcionamento social, assume

posições ou funções sociais, incorpora discursos e os efeitos de sentido; logo, o que o

sujeito entende por “escola”, “avaliação”, “casamento”, por exemplo, não é inédito e

original, mas sim um resgate de sentidos que se cruzam e se atualizam.

Os discursos são retomados conforme as regras das formações discursivas a que

pertencem e são relacionados, em uma espécie de rede ou emaranhado, por meio de

Os discursos não são propriamente textos ou falas, mas sim efeitos de sentido

materializados em palavras, textos, ou seja, os discursos são exteriores à

língua, relacionam-se a aspectos sócio-histórico-ideológicos, embora

precisem da língua para se manifestar.

52

processos denominados interdiscursos. Em outras palavras, o interdiscurso é a

retomada, sob efeitos do esquecimento n. 2, de discursos já produzidos, já existentes

anteriormente, o que permite a conclusão de que todo discurso é constituído de outros

discursos, e, por conseguinte, todo dizer é constituído de outros dizeres (PÊCHEUX,

1988).

Pêcheux (1988) explica, ainda, que o interdiscurso (ou discurso-transverso) sofre uma

linearização, sob efeitos do esquecimento n. 1, no eixo do intradiscurso, que é “o

funcionamento do discurso com relação a si mesmo (o que eu digo agora, com relação

ao que eu disse antes e ao que eu direi depois; portanto, o conjunto dos fenômenos de

“co-referência” que garantem aquilo que se pode chamar o “fio do discurso”, enquanto

discurso de um sujeito)” (PÊCHEUX, 1988, p. 166). E ainda, o intradiscurso só é

entendido, quando se compreende sua relação com o interdiscurso, ou seja, uma

produção discursiva materializada em enunciados linguísticos ganha sentido quando os

sujeitos entendem o interdiscurso formado (ou a retomada de discursos que entram em

diálogo – nem sempre de modo pacífico e convergente – ou, ainda, os discursos-

transversos que ali estão).

O sujeito retoma discursos passados, sob a ilusão de autonomia devido ao esquecimento

n. 2, ao mesmo tempo em que é afetado pela ressonância de vozes de uma memória

discursiva. Paradoxalmente, os processos de esquecimento e de memória agem

inconscientemente sobre os sujeitos para que possam enunciar e constituírem-se como

tais (COURTINE, 1999, apud GREGOLIN, 2001; UYENO, 2011).

Assim, entendemos que o “sujeito” é constituído de diferentes discursos, originados de

diferentes formações ideológicas, o que faz dele um sujeito heterogêneo. Authier-Revuz

(2004) define dois tipos de heterogeneidade: a constitutiva e a mostrada. A primeira diz

respeito à natureza de todo sujeito, já que todo sujeito é heterogêneo, dada a forma

como ocorre sua constituição, perpassada por discursos harmoniosos e conflitantes. A

segunda é a heterogeneidade explícita nos textos produzidos, ao se fazer referência a

ideias de outros sujeitos, ao se sinalizarem pensamentos alheios com aspas ou com outra

marca formal.

53

Sendo o sujeito heterogêneo, constituído, por conseguinte, de variados discursos, seu

discurso torna-se contraditório. Foucault (2005) explica que a história está repleta de

contradições, mas que, na verdade, existe uma lei da coerência que busca mascarar as

contradições. Essa lei é uma espécie de

obrigação de procedimento, quase uma coação moral da pesquisa:

não multiplicar inutilmente as contradições; não se deixar prender

às pequenas diferenças; não atribuir peso demasiado às

transformações, aos arrependimentos, aos retornos ao passado, às

polêmicas; não supor que o discurso dos homens esteja

continuamente minado, a partir do interior, pela contradição dos

seus desejos [...]. (FOUCAULT, 2005, p. 168).

O filósofo elucida que essa coerência que “apaga” as contradições é necessária, porque

“é o resultado da pesquisa: ela define as unidades

terminais que arrematam a análise: descobre a

organização interna de um texto [...] ou o ponto de

encontro de discursos diferentes” (FOUCAULT, 2005,

p. 168 e 169).

A contradição faz parte da natureza do sujeito; existe

entre a consciência e o inconsciente; é na tentativa de

superar as contradições que o sujeito fala, dialoga

(FOUCAULT, 2005). Como não há discurso sem

sujeito, o discurso revela a contradição do sujeito; mas,

ao contrário da necessidade de livrar o discurso de

contradição, é ela que “constitui a própria lei de sua

existência” (FOUCAULT, 2005, p. 170). Dito de outra

maneira, é justamente para superar as contradições, que

os sujeitos produzem discursos, que, por sua vez, entram

em processo de interdiscurso e revelam novas

contradições inerentes à constituição heterogênea dos

sujeitos.

Figura 2.2: Michel Foucault

(1926-1984) foi importante

filósofo francês que estudou,

entre outras questões, a

relação entre o poder e seus

dispositivos de vigilância, a

produção de saber, as

instituições e o controle social.

Fonte:http://www.klepsidra.n

et/klepsidra12/foucault.html.

Acesso em: 29 nov. 2016.

54

Para saber mais sobre interdiscurso

O termo “interdiscurso” é empregado na ADF, como atravessamento discursivo, ou seja,

retomada de discursos anteriores que são atualizados pela memória discursiva, como em

“casamento é para a vida toda”, que é atravessado por um discurso religioso judaico-

cristão de que “o que Deus une não pode ser separado pelo homem”. Veja que esse

sentido não surge no sujeito que profere a frase, mas é retomado sócio-historicamente

por ele, de modo inconsciente. Em Bakhtin, “interdiscurso” é o movimento dialógico

entre os discursos, que entram numa espécie de rede de diálogos em que um serve de

resposta a outros e também produz respostas (você conhecerá sobre isso mais a fundo na

próxima unidade).

Não se pode confundir “interdiscursividade” com “intertextualidade”. “Intertextualidade

é, segundo Fiorin, o termo “reservado apenas para os casos em que a relação discursiva

é materializada em textos” (FIORIN, 2010, p. 181), o que significa que, quando se

observa a interdiscursividade materialmente nos textos (por meio de citações marcadas

por aspas, itálico ou por meio de uma citação indireta), estamos diante da

intertextualidade. A linguagem, por ser de natureza dialógica, sempre possibilitará a

interdiscursividade, mas nem sempre a intertextualidade, que é visível, marcada direta

ou indiretamente, em textos. Veja o exemplo:

Figura 2.3: Tirinha com intertextualidade.

Fonte: Estúdio Maurício de Sousa. Bidu Especial. São Paulo: Abril, 1973.

55

2.4 Estrutura e acontecimento

Com o exposto até então, é possível inferir que o sujeito está à mercê de

assujeitamentos, como se defendia no início dos estudos em ADF. Esse assujeitamento

ocorre de forma inconsciente, porque os sujeitos retomam discursos pré-construídos,

como se fossem estruturas pré-definidas, e produzem sentidos conforme regras de uma

dada formação discursiva; logo, são sujeitos assujeitados.

Entretanto, Pêcheux (1990), na contínua evolução de seus estudos na construção da

ADF, postula que as produções enunciativas, embora revelem discursos anteriores,

filiações ideológicas pré-existentes, configurando-se, em certa medida, repetições, são,

também, acontecimentos, inovações, por serem realizados em outras condições nunca

antes ocorridas e que não poderão ser repetidas em todas as circunstâncias. Assim, por

mais constituído de passado que um enunciado esteja, ele é produzido sempre em

condições distintas, o que faz dele algo novo – um acontecimento, passível de produzir

novos sentidos. Pelas palavras de Pêcheux (1990), esse fenômeno é explicado:

todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro,

diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido

para derivar para um outro (a não ser que a proibição da

interpretação própria ao logicamente estável se exerça sobre ele

explicitamente). Todo enunciado, toda sequência de enunciados é,

Você deve ter reconhecido na tirinha o poema “Canção do exílio” (Minha terra tem

palmeiras,/ Onde canta o Sabiá;/ As aves que aqui gorjeiam,/ Não gorjeiam como lá. /

[...]), de Gonçalves Dias, não é? Então, o que ocorreu nesse texto foi um caso de

intertextualidade, diálogo entre textos. Foi uma citação indireta, pressupondo que o leitor

soubesse sobre o texto retomado, o que torna a leitura um pouco mais complexa. Comece a

perceber que isso ocorre em muitos textos. Você verá que, quanto mais ler, mais perceberá

a intertextualidade e mais rica ficará sua leitura.

56

pois, linguisticamente descritível como uma série (léxico-

sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis,

oferecendo lugar à interpretação. É nesse espaço que pretende

trabalhar a análise de discurso (PÊCHEUX, 1990, p. 53).

Por mais que o fenômeno de interdiscurso, retomada e articulação de discursos

passados, determine a natureza heterogênea dos sujeitos e lhes permita atualizar

filiações ideológicas nos discursos materializados nos enunciados que produzem, essas

produções não serão apenas repetições, uma vez que ocorrem em novas condições de

produção, em novos contextos, o que faz de uma produção discursiva um

acontecimento, que não tem sentidos fechados e previsíveis, mas que passam por

interpretações, as quais, embora considerem os efeitos de discursos passados resgatados

pela memória discursiva, não ficam por eles engessados.

Não se trata de pretender aqui que todo discurso seria como um

aerólito miraculoso, independente das redes de memória e dos

trajetos sociais nos quais ele irrompe, mas de sublinhar que, só por

sua existência, todo discurso marca a possibilidade de uma

desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos: todo

discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-

históricas de identificação, na medida em que ele constitui ao

mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho (mais ou

menos consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo

modo atravessado pelas determinações inconscientes) de

deslocamento no seu espaço: não há identificação plenamente bem-

sucedida (PÊCHEUX, 1990, p. 56).

As condições de produção dão sustentação ao surgimento e à disseminação dos

discursos. Dividem-se em dimensão macro e micro (ORLANDI, 2005). As condições

em dimensão macro dizem respeito ao âmbito sócio-histórico e ideológico (discursos

produzidos anteriormente, memória discursiva que se formou, interdiscurso que

determina os sentidos, ordem dos discursos). Já as condições de dimensão micro são de

âmbito imediato de produção (quem são os sujeitos em interação, quais são as posições

ocupadas – professor e aluno; pais e filhos; policial e testemunha; padre ou pastor e

57

fiel etc. –, quais são suas características, em que situação enunciam, onde enunciam – na

escola, em casa, em uma festa, na igreja, na delegacia, no hospital – etc.).

2.5 Subjetividade e identidade

Foucault teceu um olhar, de modo geral, sobre a formação da subjetividade (ou dos

sujeitos). Para ele, a constituição do sujeito precisa ser compreendida ao longo da

História, a qual afeta, sob uma visão discursiva, a identidade do sujeito. Essa questão

também está nos estudos de Pêcheux e de Althusser ao relacionarem discurso e sujeito,

ideologia e sujeito, língua e sujeito.

Deve-se ficar claro que muitos autores de outras áreas do conhecimento debruçaram-se

sobre a mesma questão: Henri Wallon, por exemplo, autor muito estudado em

Sobre as dimensões macro, consultar a dissertação de mestrado de uma das autoras deste

material, Profa. Ma. Viviane Dinês de O. R. Bartho, que foi desenvolvida em uma

instituição de acolhimento de menores abandonados, um orfanato. O corpus de análise

discursiva foi composto por diários pessoais escritos pelos adolescentes, que buscavam uma

forma de subjetivação pela escrita. Para analisar os recortes dos discursos materializados

nos textos, a pesquisadora precisou resgatar a memória discursiva sobre abandono de

crianças e orfanato. No entanto, para compreender o interdiscurso presente nos enunciados

dos jovens, ela também precisou resgatar discursos de uma dimensão macro, relacionados a

prisões, menores infratores, mendicância; isso porque alguns adolescentes se posicionavam

como prisioneiros que haviam cometido delitos ou que eram perigosos. Estudando os

discursos em sua historicidade, podem-se compreender melhor as relações interdiscursivas

e a memória discursiva que constituem os sujeitos. Referência completa da dissertação:

BARTHO, V. D. de O. R. Do amor do Outro ao novo amor: efeitos da escrita de diários

pessoais de adolescentes em situação de acolhimento. 2013. 124f. Dissertação (Mestrado

em Linguística Aplicada) – Universidade de Taubaté, Taubaté, SP, 2013.

58

Psicologia da Educação, também direcionou a atenção de suas pesquisas aos processos

de constituição dos sujeitos; porém, esse olhar faz um recorte diferente e desenvolve-se

a partir de uma teoria da Psicologia. Para a ADF, são importantes processos de natureza

sócio-histórica e ideológica na formação dos sujeitos, buscando, muitas vezes, diálogos

com a Psicanálise para a compreensão mais profunda dessas questões.

Sobre os processos de subjetivação, Uyeno (2011a), baseando-se na divisão1 geral feita

por Revel (2005) da obra foucaultiana, divide-os em “Modos de objetivação” e “Modos

de subjetivação”, conforme uma visão retrospectiva dos estudos empreendidos por

Foucault, ao longo de suas fases teóricas.

2.5.1 Modos de objetivação

A partir da divisão de Uyeno (2011a), faremos, primeiramente, uma discussão dos

modos de objetivação que formam o sujeito. Para tanto, introduziremos o conceito de

imaginário discursivo derivado das postulações de Althusser (1985) acerca das

condições alienadas em que vivem os homens.

Althusser (1985), baseando-se em Marx, explica que os homens se compreendem como

tais a partir de representações de suas condições de existência e, como essas condições

são alienadas, uma vez que as condições de trabalho e de produção são alienadas, os

homens vivem alienados, ou seja, a relação que mantêm com a realidade é ilusória. As

relações sociais são, portanto, ideológicas, pois se realizam sob representações

imaginárias produzidas pelos homens.

O indivíduo ocupa um lugar no sistema de produção, uma função, sendo designado

“sujeito”, ou seja, o sistema de trabalho é ideológico, e é a ideologia que transforma os

indivíduos em sujeitos, uma vez que ela faz com que os sujeitos reconheçam eles

próprios seus lugares sociais e os ocupem. Em outras palavras, os indivíduos são

interpelados pela ideologia em sujeitos sociais (PÊCHEUX, 1988).

1A divisão da obra de Foucault a que este trabalho se refere distingue-se da divisão clássica da obra do

autor, segundo a qual se compreendem os estudos foucaultianos em três fases: genealogia, arqueologia e

hermenêutica.

59

Toda relação entre os sujeitos, por conseguinte, ocorre sob um imaginário discursivo:

um sujeito denominado “A” enuncia sob a imagem que faz de seu interlocutor “B”, de si

mesmo, de seu referente. São inúmeros os desdobramentos imaginários descritos por

Pêcheux (1969), ainda na primeira fase da ADF, quando se consideravam estáveis as

condições de produção dos discursos: a imagem do lugar de A para o sujeito colocado

em A (quem sou eu para lhe falar assim?); a imagem do lugar de B para o sujeito

colocado em A (quem é ele para que eu lhe fale assim?); a imagem do lugar de B para o

sujeito colocado em B (quem sou eu para que ele me fale assim?); a imagem do lugar

de A para o sujeito colocado em B (quem é ele para que me fale assim?); e assim por

diante.

Essas imagens são determinadas por Aparelhos Ideológicos de Estado (ALTHUSSER,

1985), por uma memória discursiva (COURTINE e HAROCHE, 1988) e por rituais

cotidianos que parecem naturalizados (CASTORIADIS, 1995); e o imaginário

discursivo afeta as identidades assumidas (ou impostas) pelas relações institucionais.

Assim, a identidade é afetada por processos de subjetivação foucaultiana atrelados às

relações de poder (UYENO, 2011a). Em outros termos, à medida que os sujeitos vão se

tornando sujeitos, participantes sociais, eles assumem identidades (de pai, mãe,

professor, aluno, médico, operário, padre, etc.); processos estes associados aos jogos de

poder.

Foucault investigou os efeitos do poder desencadeados por modos de objetivação, no

engendramento dos sujeitos. Esses modos constituíam formas de adestramento para a

produção de corpos dóceis. Em Vigiar e Punir, Foucault (1987) resgata os espetáculos

de suplícios: enforcamentos, esquartejamentos e todo tipo de tortura e punição física

que causava o horror e o medo nos espectadores, a fim de se evitar que houvesse novos

delitos.

Segundo o autor, no fim do século XVIII e começo do século XIX, esses tipos de

controle da população e do sujeito delituoso vão sendo extintos, dadas as percepções de

que as execuções públicas não surtiam o efeito de castigo exemplar como sempre se

pensou que fizessem. Dessa forma, o corpo deixou de ser alvo das punições dando lugar

à alma: “[À] à expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue,

60

profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições” (FOUCAULT,

1987, p. 18). Surge, então, o controle do indivíduo por meio da vigilância, a fim de

neutralizar sua periculosidade e produzir um corpo dócil, obediente às leis e à ideologia

dominante. É essa a relação entre poder e dominação sobre o corpo; o que passou a

interessar ao poder foi a produção de um corpo obediente, adestrado, dócil, e não mais a

eliminação do sujeito: é mais produtivo (en)formá-lo do que eliminá-lo.

Métodos para o controle do corpo, para sujeitá-lo à docilidade-utilidade, foram

designados “disciplinas”.

Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho

sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de

seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa

maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o

recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente

uma “mecânica de poder”, está nascendo; ela define como se pode

ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que

façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as

técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A

disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos

“dóceis”. A disciplina aumenta forças do corpo (em termos

econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em

termos políticos de obediência) (FOUCAULT, 1987, p. 119).

Uma nova organização do espaço foi planejada e disseminada às instituições e meios de

interação humana: escolas, hospitais, locais públicos e, claro, prisões. As técnicas de

vigilância espalharam-se por todo o tecido social, de forma não só macro, como também

micro, com finalidades de controlar e transformar os indivíduos:

Toda uma problemática se desenvolve então: a de uma arquitetura

que não é mais feita simplesmente para ser vista (fausto dos

palácios), ou para vigiar o espaço exterior (geometria das

fortalezas), mas para permitir um controle interior, articulado e

detalhado – para tornar visíveis os que nela se encontram; mais

geralmente, a de uma arquitetura que seria um operador para a

61

transformação dos indivíduos: agir sobre aquele que abriga, dar

domínio sobre seu comportamento, reconduzir até eles os efeitos

do poder, oferecê-los a um conhecimento, modificá-los.

(FOUCAULT, 1987, p. 144).

O resgate dessa transformação do poder sobre a morte para o poder sobre o corpo vivo

levou Foucault (1987) a postular que os efeitos do poder disciplinador não são apenas

negativos (para o sistema), porque o poder possibilita ao corpo tornar-se útil (para o

sistema), ajusta habilidades, conduz o sujeito a ações produtivas, modela seu

comportamento. Além disso, poder produz saber. É preciso, segundo o filósofo,

renunciar a uma tradição que induz pensar que só pode haver saber onde não há relações

de poder, pois as técnicas de poder fazem dos corpos humanos objetos de saber. Foi por

meio das ações de poder que se teve acesso a um saber clínico em relação, por exemplo,

à loucura: ao agrupar as pessoas por categorias e separar os considerados loucos, surgiu

um saber científico sobre a loucura.

Outro polo por meio do qual se desenvolveu a organização de poder sobre o sujeito

foram as técnicas de controle do sexo (FOUCAULT, 1988). Os governos se depararam,

no século XVIII, com problemas da população de ordem político-econômica:

natalidade, morbidade, expectativa de vida, alimentação, fecundidade, etc. Diante disso,

foi preciso encontrar uma forma de se analisarem idade do casamento, nascimentos

legítimos e ilegítimos, precocidade e frequência de relações sexuais, práticas

contraceptivas, meios e efeitos de interdição do sexo, possibilidade de envolvimentos

sexuais entre consanguíneos, enfim, foi preciso conhecer os modos pelos quais o sexo

se fazia presente nas relações sociais, já que era o cerne dos problemas que deveriam ser

enfrentados para o desenvolvimento da população.

Para tanto, impôs-se a tarefa de se dizer a si e a outrem tudo o que se relacionava ao

sexo: sensações, pensamentos, práticas; tudo deveria ser transmitido pela palavra, sob a

forma de confissão, o que reforçou esse ritual colocado, desde a Idade Média, entre os

mais importantes para a produção de verdade. A confissão passou, pois, a ser um modo

de objetivação dos sujeitos.

Aumentaram os discursos sobre a sexualidade e aumentou, consequentemente, o

62

controle do sexo: proibições de alianças consanguíneas, condenação de adultério,

vigilância sobre a sexualidade das crianças. As confissões eram modos a partir dos

quais o poder intervinha nas relações humanas, controlando os sujeitos e sua

sexualidade, como nos casos de incestos: forçava-se a confissão, a fim de se evitar o

incesto. Nesse sentido, a produção e o controle de discursos sobre o sexo produziram

também conhecimentos de medicina e de psiquiatria em torno desse tema – é o poder

que produz saber.

Em suma, dentre os processos de subjetivação (de formação dos sujeitos), foram

descritos, nesta seção, os modos de objetivação segundo os quais as relações de poder

afetam as relações imaginárias que, por sua vez, determinam os discursos dos sujeitos e

suas identidades: como enunciam, como produzem sentidos. Na próxima seção,

passaremos aos modos de subjetivação.

2.5.2 Modos de subjetivação

Foucault, em sua análise sobre a subjetividade, reconhece ser insuficiente que se

estabeleçam dispositivos de disciplinamento e regulação de corpos dóceis e existir, para

além da resistência, uma capacidade de produção da subjetividade por parte do próprio

sujeito. O filósofo aponta, em suas últimas obras, o trabalho ético, os regimes de

autorregulação, as tecnologias do eu, as práticas de cuidado de si e a reflexão como

formas pelas quais o sujeito constitui-se, subjetiva-se, engendrando, assim, sua

identidade. Essas formas foram assumidas por Uyeno (2011a), a partir da divisão

proposta por Revel, como modos de subjetivação.

Para o início de nossa discussão acerca dos modos de subjetivação, observamos a

confissão como uma prática que servia tanto para a objetivação, utilizada nas relações

de poder para extrair a verdade, como também para a subjetivação, uma vez que

causava efeito de constituição do sujeito em relação a si mesmo.

A confissão, instituída nos mosteiros, com o Cristianismo, era uma prática cujo objetivo

único era o de ascese, ou seja, purificar-se para a elevação espiritual. Com a formação

dos burgos, a confissão tornou-se dispositivo de controle por meio do qual se poderia ter

63

acesso às formas pelas quais os homens se relacionavam entre si, podendo-se, assim,

intervir, pela determinação de leis e punições, em situações que evidenciavam

problemas para a sociedade ou para a religião. Mais tarde, a confissão passou a ser

estimulada não só como prática cristã, mas também como técnica pela qual as

instituições extraíam a verdade; a confissão pôde ser vista, portanto, como exames que

permitiam vigiar, qualificar e, se necessário, punir. Cada instituição delimitou tipos de

exames por meio dos quais tinham acesso a conhecimentos sobre os sujeitos: exames

médicos, exames (avaliações) escolares, que constituíam modos de objetivação do

sujeito (FOUCAULT, 1987; 1988).

Em seus últimos estudos, entretanto, Foucault (2006) apresentou outra face da

confissão. Ela era uma forma não só de poder-saber ou um modo de objetivação, mas

também possibilitava ao sujeito acesso a si mesmo, permitindo que se constituísse,

subjetivasse. É nesse sentido que se indicava, sob um viés religioso, a escrita como um

instrumento no combate espiritual: o ato de escrever sobre si, sobre os próprios

pensamentos e ações, obrigava o sujeito ao autoadestramento, suscitando a vergonha e,

consequentemente, evitando-se pecar, pois se protegia de pensamentos impuros

(FOUCAULT, 2006).

Por um lado, percebe-se, portanto, que a confissão, vista como dispositivo de poder e de

controle, configurava-se como modo de objetivação, uma vez que permitia o poder-

saber; permitia ao confessor o acesso ao saber sobre o confessando. Por outro lado, ao

se confessar, o sujeito acabava por ter acesso a aspectos que se escondiam a ele próprio,

logo, a confissão pode configurar-se também como modo de subjetivação pelo qual o

confessando tem acesso à verdade sobre si mesmo, subjetivando-se.

Foucault debruçou-se, em várias de suas obras, sobre a investigação de processos de

engendramento dos sujeitos e encontrou na prática do ato de escrever um dispositivo de

subjetivação. O autor, com base em Sêneca, explica que a escrita se associa ao

pensamento por meio de duas formas: linear, que vai da meditação à escrita e desta à

autodisciplina na realidade; ou circular, que vai da meditação à escrita, seguida de

releitura que revigora a meditação. De qualquer maneira, a escrita exerce uma função

ethopoiética, ou seja, tem uma função ética, que, de maneira geral, pode ser entendida

64

como “caráter moral”.

Uma escrita ethopoiética pode ocorrer sob a forma de hupomnêmata ou em

correspondências, conforme corroboram trabalhos de Godoy (2006), Uyeno (2007) e

Bartho (2008), que podem ser consultados por você para ampliar seus conhecimentos

acerca dos efeitos da escrita na subjetividade.

Os primeiros, hupomnêmata, eram livros de contabilidade, registros públicos,

cadernetas individuais que tinham a função de lembrete. Podiam também ser utilizados

como livro de vida ou guia de conduta nos quais constassem citações, exemplos, fatos

testemunhados, reflexões etc. Escrevia-se nos hupomnêmata tudo o que se tinha lido,

ouvido ou pensado, e eles serviam de material que poderia ser, frequentemente, lido,

relido e meditado, a fim de se “conversar consigo mesmo e com outros” (FOUCAULT,

2006, p. 148). O autor ressalta, ainda, que, embora os hupomnêmata tivessem caráter

pessoal, não deveriam ser igualados aos diários pessoais ou às narrativas espirituais e

religiosas sobre tentações, lutas, vitórias, muito frequentes na cultura cristã. Essa

diferença estabelece-se pelo fato de os hupomnêmata não serem narrativas de si, o que

os aproximaria da confissão, cujo efeito é a purificação, mas, ao contrário, neles se

buscava não aquilo que não foi ou não pôde ser dito, e sim justamente aquilo que foi

lido ou ouvido e que contribui para a constituição de si, para a fixação de

conhecimentos adquiridos e reelaboração de si.

É nesse sentido que os hupomnêmata são modos de subjetivação, pois se unificam

fragmentos heterogêneos criando uma identidade própria. Pode-se estabelecer uma

analogia, de maneira superficial, entre os hupomnêmata e as anotações de aula, por

exemplo, as quais deveriam ser incentivadas pelos professores, devido à possibilidade

de subjetivação: o aluno escuta, lê e escreve fragmentos com suas palavras, tentando

unificar, dar coerência aos fragmentos.

A segunda forma de materialização da escrita com função ethopoiética são as

correspondências, cartas pessoais redigidas pelos mestres a amigos ou a discípulos,

como faziam Sêneca a Lucilius, Marco Aurélio a Fronton e, às vezes, também Plínio a

amigos (FOUCAULT, 2006). Sêneca explicava que as correspondências tinham uma

65

dupla ação: agiam sobre quem as escrevia, pelo próprio ato de escrever e meditar, e

sobre quem as recebia, pela leitura e releitura.

Para além de conselhos e advertências, as cartas constituíam formas de se direcionar um

olhar sobre si mesmo, como um autoexame, um movimento introspectivo e vigilante

sobre a alma. Assim, realizavam-se dois princípios constantemente invocados por

Sêneca: “o de que é necessário adestrar-se

durante toda a vida, e o de que sempre se

precisa da ajuda de outro na elaboração da

alma sobre si mesma” (FOUCAULT, 2006, p.

154).

Na escola, o trabalho escrito do professor

direcionado ao aluno pode ser colocado em

analogia às correspondências. Um exemplo

desse tipo de escrita seriam os comentários

escritos sobre redação dos alunos, nos quais o

professor de Português pode explicar os

problemas da produção de texto e apontar

sugestões de melhora na escrita. Esse

processo é semelhante ao estabelecido pelas

correspondências e pode contribuir para o

processo de formação subjetiva do aluno2.

2 Consultar o artigo:

RIBEIRO, V. D. de O. Parrhesía foucaultiana: uma análise discursiva de correspondência sobre correção

de texto. In. UYENO, E. Y. Avaliar, Corrigir e Comentar Redações: subsídios para formação

continuada. Taubaté, SP: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2010.

Nesta referência, você poderá compreender como ocorreu a análise dos efeitos dos comentários de

redação redigidos aos alunos e, ainda, a análise de correspondências entre professor e aluno sobre a

aprendizagem ou não por meio desses comentários.

Figura 2.4: Imagem de correção de redação

comentada pelo professor.

Fonte:

http://artistasgauchos.com.br/gene/redcorrig

idas/TemaEscreverBemNota75.jpeg.

Acesso em: 18 jan. 2017.

66

Conclui-se, portanto, que a confissão, na medida em que possibilita o falar de si e o

olhar para si, e a escrita, em formatos como hupomnêmata e correspondências, bem

como em formatos semelhantes (que podem ocorrer na escola), podem configurar-se

como técnicas para o saber sobre si e, consequentemente, técnicas de subjetivação. É

um modo de formação do sujeito não por meio da submissão ao poder e a seus efeitos,

mas sim a partir de processos segundo os quais os sujeitos tecem sua subjetividade e sua

singularidade. Com os modos de subjetivação, não apenas interessa o que o poder faz

dos sujeitos, quais identidades os leva a assumirem, mas sim o que interessa é como os

sujeitos fazem com o que o poder faz deles, ou seja, como se singularizam, como

buscam uma subjetividade para além da fôrma que a sociedade lhes impõe.

Nesse sentido, a escola deveria configurar-se como um lugar de possibilidades para a

produção subjetiva. O currículo engessado e homogeneizado; a disposição de carteiras,

mesas, salas, refeitório; os horários determinantes de tempo, enfim, todos os

dispositivos disciplinadores e de vigilância e controle para a produção de corpos dóceis

não consideram as singularidades, as necessidades pessoais de tempo de aprendizagem,

de ambiente favorável a cada aluno. Os materiais didáticos e as metodologias de ensino,

muitas vezes, também não permitem que se explorem modos de aprendizagem que

melhor atendam às individualidades. Claro que, para se atender a uma grande

quantidade de alunos, uma tendência homogeneizante inevitavelmente ocorrerá – não

haverá um professor para cada aluno, um tipo de material para cada aluno. No entanto, o

que se propõe aqui é que os professores e a escola como um todo reflitam sobre

possibilidades de exploração dos modos de subjetivação. Atividades que envolvam a

escrita, de diferentes formas, sobretudo as formas criativas (relacionadas a criações

várias, à literatura, à leitura prazerosa e lúdica, não apenas à produção de redações

enquadradas para o treino a vestibulares e ENEM), podem constituir um caminho a se

pensar.

67

2.6 Síntese da Unidade

Nesta Unidade, foi possível você conhecer um pouco das bases teóricas da Análise do

Discurso de linha francesa, iniciada por Pêcheux, na década de 1960.

Alguns conceitos importantes, como os de: sujeito, discurso, ideologia, memória

discursiva, interdiscurso, heterogeneidade discursiva e outros, foram elucidados e

relacionados, para que, em aulas de leitura, de escrita e em qualquer abordagem da

língua em aulas de Português, você possa compreender a opacidade discursiva e

considerar as condições de produção sócio-histórica e ideológica dos discursos, uma vez

que esses são itens fundamentais para os efeitos de sentido entre os interlocutores.

Ademais, questões sobre processos de subjetivação e identidade foram abordadas, a fim

de que você possa compreender seus alunos de forma mais ampla.

Entretanto, a complexidade dos conceitos da ADF exige leituras mais aprofundadas, que

serão sugeridas a seguir.

2.7 Para saber mais

Vídeo

• https://www.youtube.com/watch?v=EUwmCxB1Tp4

No vídeo Introdução aos estudos do discurso e à obra de Michel Foucault, a

pesquisadora Profa. Dra. Rosário Gregolin, da UNESP de Araraquara, elucida, de modo

claro e prático, o conceito de “discurso” e as ideias básicas iniciais da obra de Foucault.

68

Livros

Dois livros são muito indicados para pesquisadores iniciantes em ADF: Análise do

Discurso: reflexões introdutórias, de Cleudemar Alves Fernandes, e Análise de

Discurso: princípios e procedimentos, de Eni Orlandi. Essas duas referências

apresentam linguagem clara e apropriada para quem está começando a se adentrar nas

redes dos estudos do discurso.

• FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do Discurso: reflexões introdutórias.

São Carlos, SP: Claraluz, 2008.

• ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 6.

ed. Campinas, SP: Pontes, 2005.

Sites

• http://www.foucault.ileel.ufu.br/

O site do Laboratório de Estudos Discursivos Foucaultianos – LEDIF, do grupo de

pesquisas do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia,

cadastrado no diretório de grupos do CNPq, sob coordenação do Prof. Dr. Cleudemar

Alves Fernandes, oferece publicações acadêmicas, textos que podem ser baixados e

indicações de leitura sobre ADF e Foucault. As linhas de pesquisa do grupo são: 1)

Estudos teóricos sobre o discurso e o sujeito a partir da arquegenealogia e da ética e da

estética da existência foucaultianas; 2) Discurso, história, memória e constituição de

sujeitos na produção artístico-literária; 3) Estudos sobre sujeito discursivo,

subjetividade e construções identitárias. Vale a pena passear pelo site e lançar-se nas

leituras acerca do discurso e em outras questões tratadas por Foucault!

69

2.8 Atividades

Algumas palavras antes dos exercícios...

Para resolver as atividades propostas, gostaríamos que você, futuro professor, tivesse

sempre em mente que, diferentemente do que propunha Saussure, a língua não é

somente um código formado por significantes com significados que são transpostos do

locutor (ou autor) para o interlocutor (ou leitor) de maneira clara e inequívoca, sem

problemas de interpretação ou de contradição, como se os sentidos fossem transparentes

e pudessem ser capturados na materialidade linguística por qualquer um do mesmo

modo.

É claro que um código comum entre as pessoas em interação é imprescindível para a

comunicação, mas a produção de sentido está relacionada a muitos fatores, tais como:

contexto de produção e recepção, ordem discursiva, filiações ideológicas e discursivas

dos sujeitos, posições sociais, relações de poder, etc.

Assim, não devemos ter a ilusão de que nosso aluno irá compreender um único sentido

por trás das palavras, que deve ser descoberto e respondido ao professor. As palavras, os

textos podem suscitar sentidos diversos e incontroláveis nos alunos, que poderão fazer

muitas interpretações, porque enxergam o mundo de modo diferente do modo como

enxergam o professor e outros alunos.

Não queremos dizer, contudo, que a leitura é um jogo de “vale tudo”. O professor

precisa ensinar os alunos a responderem de forma coerente, ou seja, a justificarem suas

respostas; e, para tanto, é preciso observar e apontar pistas linguísticas, marcas formais,

reflexões plausíveis acerca do texto para que, enfim, elabore-se uma resposta que possa

ser considerada como aceitável.

O que queremos enfatizar é a necessidade de o professor possibilitar diálogos entre

alunos e discursos que se cruzam nos textos, auxiliando os educandos a lerem vozes,

para, assim, assumirem sua própria voz na sociedade. Não apenas entender o

70

interdiscurso e submeter-se a ele, mas também entrar no jogo discursivo, sabendo jogar,

investindo em identidades que contribuam para sua formação enquanto sujeito-cidadão.

1) Faça este exercício seguindo o passo a passo de cada questão:

a) Leia atentamente os dois trechos de texto (inicialmente, leia sem atentar-se para quem

são os autores e quais os títulos dos textos) e responda: eles são iguais? De qual assunto

tratam?

TEXTO 1

[...] Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos

muito pretos e compridos pelas espáduas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas

e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam.

[...]

Figura 2.5: Iracema (1881), tela do pintor José Maria de Medeiros inspirada

na personagem de José de Alencar.

Fonte: http://www.soliteratura.com.br/romantismo/romantismo16.php.

Acesso em: 18 jan. 2017.

71

TEXTO 2

Eram três ou quatro moças

bem moças e bem gentis

Com cabelos mui pretos pelas espáduas

E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas

Que de nós as muito bem olharmos

Não tínhamos nenhuma vergonha

b) Vemos que, embora os textos tenham quase as mesmas palavras, não produzem os

mesmos sentidos. Quais sentidos produzem? Para responder, leia, no boxe abaixo, sobre

os contextos sócio-históricos em que ambos os textos foram produzidos e pesquise a

quem o autor (no primeiro) e eu poético (no segundo) referem-se em cada produção.

O primeiro texto é um trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita na

época da chamada descoberta do Brasil; é um documento datado de Porto

Seguro, no dia 1º de Maio de 1500, tida, ainda, como a certidão de

nascimento do Brasil; teve como objetivo descrever as impressões sobre o

novo continente ao Rei D. Manuel I, de Portugal.

O segundo texto é um poema de título As meninas da gare, de Oswald de

Andrade, escrito na época da primeira geração do Modernismo, cujos

principais ideais eram a valorização da cultura popular brasileira, sob uma

visão crítica e nacionalista; a busca por características da miscigenação

cultural; o uso da língua coloquial; sempre apontando para rupturas com a

cultura colonizadora europeia.

Atenção: “Gare” é um termo francês que significa “estação de trem”; assim,

podemos inferir que “as meninas da gare” eram as prostitutas da estação de trem.

72

Figura 2.6: Imagem representativa do Descobrimento do Brasil.

Fonte: http://www.sohistoria.com.br/ef2/descobrimento/p2.php.

Acesso em: 18 jan. 2017.

Figura 2.7: Imagem de uma Estação Ferroviária (ou antiga gare).

Fonte: http://www.imagesdubeaudumonde.com/album-

2197950.html. Acesso em: 18 jan. 2017.

73

c) Que tom (de contemplação, de desprezo, de saudosismo ou...) apresenta o texto de

Pero Vaz de Caminha e que tom apresenta o texto de Oswald de Andrade? Há crítica em

algum deles?

d) Quais discursos materializam-se em cada texto? O texto 2, ao estabelecer

intertextualidade com o texto 1, também resgata algum discurso, isto é, estabelece

interdiscursividade? Comente sobre isso.

2) Você considera sinônimas as frases dos conjuntos a seguir? Explique sua resposta,

considerando os contextos sócio-históricos que são suscitados em cada uma das frases,

os direcionamentos que são apontados por elas e as suas intenções.

a) Em uma camiseta, aparecem estas frases:

I. Sou 100% Negro

II. Sou 100% Branco

b) Em uma notícia de jornal, são escritas estas frases:

I. Os alunos ocuparam as escolas contra a reorganização do ensino público estadual de

São Paulo que previa fechamento de salas e redistribuição de alunos.

II. Os alunos invadiram as escolas contra a reorganização do ensino público estadual de

São Paulo que previa fechamento de salas e redistribuição de alunos.

3) Você considera o seguinte trecho de reportagem neutro? Explique sua resposta:

“Governo anuncia linhas de crédito camaradas para socorrer as montadoras, mas

medidas semelhantes adotadas no primeiro mandato de Dilma se transformaram num

fracasso completo.”

Revista VEJA. Editora ABRIL, edição 2441 – ano 48 – n. 35, 2 de setembro de 2015.

74

Para refletir...

A propaganda abaixo é de uma festa de Reveillon em Paraty – RJ, de 2011 para 2012.

Observe que, no texto, há a descrição do lugar como “paradisíaco”. Esse discurso de

“paraíso” é frequentemente relacionado a lugares brasileiros, sobretudo em referência às

belezas naturais. Há, inclusive, músicas populares, e bem conhecidas, em que essa ideia

– de país paraíso, lindo, lugar encantado, com belezas naturais incríveis, tropical e

abençoado por Deus – materializa-se e contribui para a construção do imaginário de

sujeitos brasileiros e estrangeiros sobre o Brasil.

Figura 2.8: Imagem da propaganda impressa

Fonte: Arquivo pessoal das autoras.

75

Uma das questões discutidas pela ADF é que os discursos são resgatados e entram na

interdiscursividade, de forma que a linguagem e o sujeito constituem-se

heterogeneamente. Os sentidos não são originais e não nascem nos sujeitos, mas são

resgatados no movimento da História. De onde vem o discurso de que o Brasil é um

paraíso? Desde as descrições de Pero Vaz de Caminha, em sua carta ao rei de Portugal,

em 1.500, já se caracteriza nosso país dessa forma, com certo deslumbramento. Hoje

sabemos, por meio dos fatos históricos, que essas descrições revelavam o interesse

exploratório do colonizador. Veja um trecho da carta:

[...] a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-

Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são

muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela

tudo; por causa das águas que tem!”

Figura 2.9: Imagem da Carta de Pero Vaz de Caminha

Fonte: http://www.historia-

brasil.com/descobrimento/carta-caminha-imagem.htm.

Acesso em: 18 jan. 2017.

76

Figura 2.10: Imagem do Descobrimento: a representação do Brasil como paraíso

natural para exploração.

Fonte: http://quinhentistas.blogspot.com.br/p/quinhentismo.html. Acesso em: 18

jan. 2017.

Figura 2.11: Baía do Sancho, em Fernando de Noronha.

Interessante reparar no nome da página on-line (“... o paraíso

existe”).

Fonte:http://www.viajarpelomundo.com/2008/12/o-paraso-

existe.html.

Acesso em: 18 jan. 2017.

77

Unidade 3

Unidade 2.Análise Dialógica do Discurso

Na Unidade anterior, apresentamos a formação da Análise do Discurso Francesa (ADF)

e alguns dos conceitos que alicerçam essa concepção, como: sujeito, discurso, ideologia,

interdiscurso, heterogeneidade.

Nesta Unidade, conheceremos um pouco da Análise Dialógica do Discurso (ADD) e do

seu principal representante Mikhail Bakhtin. Veremos que a concepção dialógica da

linguagem é o cerne das reflexões do Círculo de Bakhtin, composto pelos estudiosos

russos Volochinov, Medvedev e Bakhtin. Apresentaremos também os conceitos de

dialogismo e de polifonia analisados por eles e que embasam essa concepção.

3.1 Bakhtin: vida e obra

Caro aluno, conforme mencionado na primeira Unidade, o estudioso Mikhail Bakhtin

pertence a uma vertente discursiva denominada Análise Dialógica do Discurso

(doravante ADD). Para compreendermos o pensamento desse autor, precisamos partir

do princípio de que o mundo é permeado por relações dialógicas e que o sujeito se

constitui a partir do encontro com o outro. Em outras palavras, Bakhtin, em seus

estudos, concebia o homem como um ser histórico e social e compreendia a linguagem

sob a perspectiva da situação concreta, considerando a enunciação e o contexto.

Para compreendermos melhor como se deu o desenvolvimento dos estudos desse

importante pesquisador, é necessário que conheçamos um pouco da sua vida.

78

Figura 3.1: Mikhail Bakhtin

Fonte:<http://acervo.novaescola.org.br/fo

rmacao/filosofo-dialogo-487608.shtml>.

Acesso em: 23 dez. 2016.

Mikhail Mikhailovitch Bakhtin nasceu em Orel, ao Sul de Moscou, em 16 de novembro de

1895. Sua relação com a poliglossia (a variedade de línguas) iniciou-se muito cedo, uma

vez que a cidade onde passou a sua infância (Vilna, capital da Lituânia) e onde começou

seus estudos universitários (Odessa) são regiões marcadas pelo plurilinguismo, pelos

diferentes grupos étnicos e pelas diversas classes sociais (FIORIN, 2006). Formou-se em

História e Filologia pela Universidade de São Petersburgo, em 1918.

Entre os anos de 1918 a 1920, em Nevel, constituiu o conhecido Círculo de Bakhtin. Dele,

participaram, entre outros estudiosos, Valentin Nikolaévitch Voloshinov e Pável

Nikolaévitch Medvedev (FIORIN, 2006).

O primeiro ensaio escrito por Bakhtin, intitulado Arte e responsabilidade, foi publicado

depois que ele foi atingido por uma enfermidade óssea que o levou a amputar uma perna e a

mudar-se para Leningrado, onde, no período de 1924 a 1929, publicou quatro importantes

obras: O método formal nos estudos literários, Discurso na vida e discurso na arte,

Freudismo: uma crítica marxista e Marxismo e filosofia da linguagem (FIORIN, 2006).

79

3.2 Bakhtin e a Análise Dialógica do Discurso

Ao longo da apresentação das ideias bakhtinianas, você perceberá que, em meio a um

sistema ditatorial da União Soviética, os textos e os estudos de Bakhtin eram

considerados perigosos, nocivos ao regime. O pesquisador era marxista, o que

aparentemente não provocaria retaliações da política russa, a qual se passava por

essencialmente comunista de base marxista. No entanto, gostaríamos de ressaltar que os

postulados do marxismo foram, em sua maioria, desvinculados ou deformados na

prática da ditadura implementada por Stalin, daí a perseguição contra aqueles que ainda

alimentavam verdadeiramente as ideias de Marx, em qualquer vertente de estudo.

Em toda sua trajetória como pesquisador, Bakhtin não se preocupou com prestígio e

cargos renomados. Sua vida foi simples e não teve grandes destaques. No entanto, isso

não o impediu de hoje ser considerado um dos principais filósofos do século XX e de

sua obra ter influência em diferentes áreas. Nas palavras de Fiorin (2006, p. 11), sua

pesquisa “[...] é fascinante, inovadora, rica, mas ao mesmo tempo, complexa e difícil”.

A complexidade de sua obra deve-se a alguns fatores, como sua maneira de escrever.

Segundo Fiorin (2006, p.12), “Bakhtin não elaborou uma obra didática, pronta para ser

ensinada na escola. Não há nela uma teoria facilmente aplicável nem uma metodologia

acabada para a análise dos fatos linguísticos e literários”. Aliás, muitos dos seus textos

Sem motivo aparente, foi preso e condenado a cinco anos de trabalhos forçados em um

campo de concentração em Solóvki em 1929, onde desempenhou diversas funções como

guarda-livros, professor e redator (FIORIN, 2006).

Embora tivesse finalizado antes, só conseguiu defender sua tese de doutorado após o

término da II Guerra Mundial (1946). Todavia, em função da polêmica que ela gerou, só

conseguiu que sua publicação ocorresse em 1965.

Bakhtin morreu, depois de longa enfermidade, em 1975, na região de Moscou.

80

eram rascunhos que estavam inacabados.

Outro fator que dificulta a compreensão da sua obra diz respeito à maneira como ela foi

publicada na antiga União Soviética e no Ocidente. Isso porque, algumas obras que lhe

são atribuídas foram publicadas em nome de outros autores, uma vez que, por razões

políticas, Bakhtin não pôde publicá-las em seu nome. Além disso, muitas outras

produções foram descobertas tardiamente (FIORIN, 2006). Dentre as suas principais

obras estão O discurso na vida e o discurso na arte (1926); Freudismo: um esboço

crítico (1927) e Marxismo e filosofia da linguagem (1929), assinadas por Voloshinov, e

O método formal nos estudos literários (1928), conferida a Medvedev (FIORIN, 2006).

Atualmente, atribui-se a autoria a ambos os autores.

Ainda em relação à publicação das obras bakhtinianas, destaca-se o fato de elas não

terem sido organizadas na ordem em que foram escritas. Existem textos manuscritos

que ainda estão sendo publicados, o que evidencia que, até hoje, não se conhece toda a

obra do escritor (FIORIN, 2006). Todavia o pouco que se conhece de toda essa

produção é suficiente para validar a importância dos postulados deixados pelo Círculo

Bakhtiniano.

Os estudos bakhtinianos criticavam duas grandes correntes linguísticas contemporâneas:

o objetivismo abstrato (concepção de língua estável, imutável e normativa), cujo

principal defensor era Saussure; e o subjetivismo idealista (concepção de língua como

uma criação individual), representado, principalmente, por Humbold.

Como apontado anteriormente, Bakhtin enxergava a linguagem como um constante

processo de interação mediado pelo diálogo – e não apenas como um sistema autônomo.

Em outras palavras, analisou a linguagem a partir de um processo interativo, sob a ótica

da relação dialética indivíduo/sociedade.

Nas palavras de Faraco (2006, p. 21):

Bakhtin, desde este seu primeiro texto, será um crítico costumaz do

Racionalismo, isto é, de um pensamento em que interessa o

universal e jamais o singular; a lei geral e jamais o evento; o

81

sistema e jamais o individual; um pensamento que contrapõe o

objetivo (entendido como único espaço da racionalidade, da

compreensão lógica) ao subjetivo, ao individual, ao singular

(entendido como o espaço do fortuito, do irredutível à

compreensão lógica). Incomoda-lhe a ideia de sistema em que não

há espaço para o individual, o singular, o irrepetível, e evêntico.

Dentre os principais conceitos estudados por Bakhtin, destacam-se: a dialogia, a

polifonia e os gêneros do discurso, os quais serão detalhados a seguir.

3.2.1 Dialogia (ou Dialogismo)

A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo

discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo.

Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o

discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar

de participar, com ele, de uma interação viva e tensa. Apenas o

Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo

virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia

realmente evitar por completo esta mútua orientação dialógica do

discurso alheio para o objeto. Para o discurso humano, concreto e

histórico, isso não é possível: só em certa medida e

convencionalmente é que pode dela se afastar (BAKHTIN, 1988,

apud FIORIN, 2006, p. 18).

O excerto acima sintetiza um dos principais conceitos cunhados por Bakhtin: a dialogia.

Segundo o teórico, uma das principais propriedades da linguagem é o fato de ela ser

dialógica e esse dialogismo abarca todos os enunciados de comunicação e não apenas

aqueles que são realizados face a face (FIORIN, 2006). De acordo com Bakhtin, todo

enunciado é formado a partir do discurso de outrem que está presente no seu.

A preocupação do Círculo Bakhtiniano em estudar a linguagem deve-se ao fato de

qualquer objeto ser atravessado por ela. Tudo que existe está envolto em discursos que,

por sua vez, não estão voltados para a realidade, mas para os discursos que o circundam

(FIORIN, 2006). Para Bakhtin, a linguagem é um produto vivo da interação social, das

82

condições materiais e históricas de cada tempo, e a propriedade mais marcante da língua

é o fato de ser dialógica.

Vale ressaltar que Bakhtin destacou o dialogismo presente nos enunciados, que são

unidades reais de comunicação. Assim, na concepção do autor, não são as palavras, os

sons e as orações que são dialógicas, mas os enunciados (FIORIN, 2006). Segundo

Bakhtin, enquanto as unidades da língua têm a característica de serem neutras, uma vez

que não têm donos, não são dirigidas a ninguém e, portanto, não geram resposta, os

enunciados são carregados de juízo de valor e constituídos a partir de outros enunciados.

De acordo com Fiorin (2006), o campo de estudo do discurso separa-se, basicamente,

em duas grandes vertentes: 1) aquela que se interessa pela organização linguística dos

discursos ou do texto; 2) aquela que se funda numa análise linguística e, embora parta

das categorias linguísticas, preocupa-se em estudar a historicidade e o uso do discurso.

É nesse sentido que a proposta de Bakhtin era construir uma ciência que fosse além da

linguística, surgindo, assim, o conceito de translinguística com o foco no estudo do

funcionamento real da linguagem.

A partir dessa perspectiva, Bakhtin reforça a diferença entre o enunciado e a réplica de

um diálogo (unidade da língua). Segundo o autor, um enunciado não existe fora das

relações dialógicas; ele é sempre perpassado por outros discursos. Além disso, as

unidades linguísticas não têm autoria e não geram respostas, pois não estão direcionadas

a ninguém; são, portanto, neutras.

Vale salientar ainda que a interação, do ponto de vista bakhtiniano, não é um ato

passivo, mas uma resposta ativa que significa uma tomada de decisão diante do

enunciado. As falas estão sempre constituídas do “eu” e do “outro”. Essa alteridade é

constitutiva da linguagem e da enunciação. Não é só o “eu” que se enuncia. Quando

“ele” se enuncia, já está marcado por um “tu”. E é mais do que uma relação pessoal,

face a face; é uma relação de discursos, que engloba crenças e ideologias de ambas as

partes.

83

Em outras palavras, de acordo com o pesquisador, um discurso se contrapõe a outro

discurso. Assim, ele é perpassado, é ocupado, é atravessado por outros discursos. Isso

acontece, por exemplo, quando são proferidas afirmações como: “os brancos e os negros

têm igual capacidade intelectual”. Essa afirmação, nas palavras de Fiorin, só faz sentido

numa sociedade racista. Isso porque, ela não teria sentido se a sociedade pensasse ou

tivesse certeza absoluta da igualdade entre brancos e negros. Os signos, segundo

Bakhtin (2006), sempre refletem um sentido, uma compreensão da realidade, mas

também refratam outros sentidos (que são silenciados e, muitas vezes, mascarados).

Retomando o exemplo, percebemos que ele se configura como uma resposta a discursos

racistas que circulam socialmente; se esses discursos não existissem, não haveria

necessidade de uma resposta como a referida afirmação. O mesmo ocorre com outros

enunciados: quando vemos campanhas comunitárias ou sociais combatendo a

exploração sexual infantil e a violência contra a mulher, estamos diante de respostas a

discursos que ainda existem, a saber, “crianças são exploradas sexualmente” e

“mulheres são vítimas de práticas violentas machistas”.

Veja a propaganda a seguir:

Figura 3.2: Propaganda

Fonte: www.bahia40graus.com.br/index.php/eunapolis/item/5140-

eun%C3%A1polis-combate-abuso-e-explora%C3%A7%C3%A3o-sexual-de-

crian%C3%A7as-e-adolescentes

Acesso em: 27 dez. 2016.

84

Na campanha, observamos a frase “Quem se omite também é culpado”, que reflete o

discurso de que todos devem se manifestar diante da violência sexual infantil e refrata o

discurso de que ainda há pessoas que se omitem. Se não existissem pessoas omissas

quanto a esse fato, a frase não faria sentido. A própria iniciativa da OAB de produzir

uma campanha dessa temática é uma resposta ao fato ainda presente na sociedade: de

que há muitas crianças sendo exploradas sexualmente. A campanha também produzirá

respostas diversas, entrando na rede dialógica.

Como você pode perceber, pensar na linguagem a partir da ótica do dialogismo é

entender que ela se constrói dentro de relações de interação e que as pessoas, quando

dialogam, recuperam conversas e fatos anteriores e, ao mesmo tempo, pensam em

questões que vão acontecer. Em outras palavras, a linguagem é uma réplica ao já-dito e

também provoca uma réplica a ser dita (já solicitada e prevista) – réplica esta que pode

ser, inclusive, o silêncio.

Isso também se dá quando se pensa em leitura de textos dos mais diferentes gêneros.

Ler criticamente é assumir esse jogo dialógico de forma ativa. Para haver dialogia, o

material linguístico precisa ser observado na esfera do discurso, ou seja, ser

transformado em enunciado concreto, no qual se assume a posição de um sujeito social,

capaz de fazer réplicas ao dito, confrontar posições, concordar com a palavra do outro,

discordar dela, confirmá-la, ampliá-la. Para tanto, o conhecimento por si só da

nomenclatura gramatical não é suficiente para que se compreendam os enunciados em

seu processo dialógico e se assuma uma posição valorativa diante deles. Isso significa

que a leitura de um texto nunca pode ser isolada e pensada em si mesma, conforme

veremos mais adiante ao tratarmos do conceito de gêneros do discurso.

3.2.2 Polifonia

De minha parte, em todas as coisas, ouço as vozes e sua relação

dialógica (BAKHTIN, 1997 – destaque do autor).

Um dos conceitos mais instigantes estudado pelo Círculo de Bakhtin e que influenciou a

Análise do Discurso dos anos 80 é a polifonia. Ela surgiu a partir das análises que

Bakhtin realizou na obra literária do romancista russo Dostoievski. De acordo com o

85

teórico, Dostoievski organizou sua obra distribuindo os diversos pontos de vista sobre o

tema do romance de forma equipolente entre os personagens, o que, segundo o

pesquisador, diferencia-o de outros autores cujos pontos de vista aparecem sempre pela

ótica do narrador. A essa pluralidade de vozes em equilíbrio presente na obra de alguns

autores, Bakhtin denominou polifonia.

Segundo Bakhtin, o diálogo é composto pelo falante, pelo interlocutor e pela relação

que há entre os dois. Nesse caso, a língua funciona como produto da interação entre as

pessoas e engloba ideologias, juízos de valor, etc.

Além desses elementos mencionados anteriormente, Bakhtin afirma que existe um super

destinatário que, geralmente, está situado num momento histórico diferente. Nas

palavras do autor: “Todo diálogo se desenrola como se fosse presenciado por um

terceiro, invisível, dotado de uma compreensão responsiva e que se situa acima de todos

os participantes do diálogo (os parceiros)” (BAKHTIN, 1997, p. 356).

É relevante destacar que as inúmeras vozes sociais que tornam a linguagem heterogênea

consistem na heteroglossia (ou plurilinguismo), conceito que se diferencia da polifonia.

Segundo Faraco (2006, p. 75), “[...] Polifonia não é, para Bakhtin, um universo de

muitas vozes, mas um universo em que todas as vozes são equipolentes”, ou seja, um

universo em que essas vozes estejam em equilíbrio, no mesmo patamar, e não uma

sobressaindo-se à outra. A esse respeito, Bezerra (2007, p. 194 e 195) acrescenta que,

para Bakhtin, “o que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente do

grande coro de vozes que participam do processo dialógico [...]. Essas vozes possuem

independência excepcional na estrutura da obra [...]”.

Para Bakhtin, essas diversas vozes não são neutras, pois refletem ideologias, juízos e

valores. Nas palavras de Faraco (2006, p. 22):

O eu e o outro são, cada um, um universo de valores. O mesmo

mundo, quando correlacionado comigo ou com o outro, recebe

valorações diferentes, é determinado por diferentes quadros

axiológicos. E essas diferenças são arquitetonicamente ativas, no

sentido de que elas são constitutivas dos nossos atos (inclusive de

86

nossos enunciados): é na contraposição de valores que os atos

concretos se realizam; é no plano dessa contraposição axiológica (é

no plano da alteridade, portanto) que cada um orienta seus atos.

Vale ressaltar, ainda, que o seu interesse pelo romance se deve ao fato de esse ser um

gênero de discurso que mostrava com mais evidência a dialogia e a polifonia, isto é, que

demonstrava a contradição discursiva que perpassa a sociedade com as suas variedades

sociais, com seus pontos de vista ideológicos diferentes.

Assim, um cuidado que devemos ter é o de pensar que Bakhtin concentrou suas análises

somente em textos literários. Segundo Bezerra (2007, p.192),

Bakhtin não constrói suas concepções de monologismo, dialogismo

e polifonia como abstrações desprovidas de conteúdo histórico,

social e ideológico. Aplica ao processo de construção do romance

monológico o conceito de reificação, usada por Marx para analisar,

no sistema de produção capitalista, a relação entre a produção da

mercadoria e seu produtor [...].

É partindo dessa premissa que alguns estudiosos afirmam que a polifonia é uma utopia

de Bakhtin, uma vez que, em uma sociedade estratificada (de classes sociais, logo,

desigual), inevitavelmente haveria significações não só diferentes, mas também

desiguais (umas com mais valor que outras) atribuídas ao signo. Talvez em uma

sociedade idealmente igualitária possa existir a polifonia.

É importante salientarmos, no entanto, que o uso do conceito de polifonia, pelo viés da

Análise do Discurso, deixa de lado tanto a concepção literária quanto a utópica. Em

outras palavras, esse conceito serve para analisar a dispersão da subjetividade

enunciativa nos diversos tipos de texto.

A título de exemplificação, analisemos a frase “Pedro não é inteligente”, apresentada

por Oswald Ducrot (1987), que foi um dos primeiros a se apropriar do conceito de

polifonia. Nessa frase, aparecem duas vozes: a primeira afirma a inteligência de Pedro;

e a segunda nega essa inteligência.

87

3.2.3 Gênero do Discurso

Para falar, utilizamo-nos sempre dos gêneros do discurso, em

outras palavras, todos os nossos enunciados dispõem de uma

forma padrão e relativamente estável de estruturação de um

todo. Possuímos um rico repertório dos gêneros do discurso orais

(e escritos). Na prática, usamo-los com segurança e destreza, mas

podemos ignorar totalmente a sua existência teórica [...]

(BAKHTIN, 1992 – destaque do autor).

Optamos por iniciar esse assunto a partir do excerto anterior, pois ele sintetiza dois

pontos centrais acerca do gênero do discurso na concepção de Bakhtin. A saber: 1) para

o autor, todo discurso é concretizado por meio de gêneros; 2) para Bakhtin, o que

importa é o processo de produção do gênero e não a sua forma.

É importante compreendermos a maneira como Bakhtin concebeu suas pesquisas sobre

os gêneros porque, segundo Fiorin (2006, p. 60), o estudo desse conceito não é recente,

e remonta a Platão e Aristóteles, ainda na Antiguidade. No entanto, essas análises, além

de ficarem restritas à esfera literária, também tinham um caráter normativo. Ainda

segundo Fiorin (2006, p. 60):

Depois que os Parâmetros Curriculares Nacionais estabeleceram

que o ensino de Português fosse feito com base nos gêneros,

apareceram muitos livros didáticos que vêem o gênero como um

conjunto de propriedades formais a que o texto deve obedecer. O

gênero é, assim, um produto, e seu ensino torna-se, então,

normativo.

De acordo com Machado (2007), os estudos bakhtinianos acerca dos gêneros ampliaram

as ideias existentes, uma vez que o autor não ficou preso às classificações sistemáticas.

Conforme afirma Pinheiro (2002, p. 271):

[...] as investigações de Bakhtin não se restringem ao contexto

literário e, ao ampliar as fronteiras, abrangem também a esfera da

interação verbal – interação que se dá por meio de gêneros. Esses

88

gêneros, enquanto formas relativamente estáveis contribuem para

que se compreenda a construção dos textos, conspirando, aí, a

natureza social da linguagem, princípio fundamental da teoria

bakhtiniana.

Segundo Fiorin (2006, p. 61), o ponto de partida dos estudos bakhtinianos “é o vínculo

intrínseco existente entre a utilização da linguagem e as atividades humanas”. Para ele,

os atos de comunicação são os responsáveis por fazer com que os homens se construam

como seres efetivamente humanos.

Enfocando-se os gêneros, Bakhtin (2003) os define como enunciados concretos

constituídos de signos verbais e/ou não verbais, que apresentam algumas características

que os diferenciam uns dos outros: conteúdo temático, organização composicional e

estilo, aspectos condicionados às suas condições de produção e circulação e às

finalidades a que se propõem. Ainda segundo o autor, os gêneros podem ser primários

(cotidianos) ou secundários (mais complexos, empregados em situações de

comunicação mais elaboradas).

Vale ressaltar que, para Bakhtin (2003), as esferas ou campos de atividade humana não

são estáticos ou estanques, mas sim se relacionam entre si e se transformam à medida

que ocorrem mudanças históricas, sociais, culturais. Dessa maneira, os gêneros, embora

sejam formas típicas relativamente estáveis, a fim de permitir a comunicação, sem que

os falantes os reinventem a todo momento, também podem sofrer modificações.

Assim, uma pessoa pode dominar muito bem a língua em relação à gramática e ao

vocabulário, mas pode não saber se comunicar em dada situação, porque talvez não

domine o repertório de gêneros daquela prática social, por isso, unidades de língua não

garantem participação social, objetivo maior de um ensino crítico na escola. Além disso,

unidades de língua não provocam respostas, como as unidades de discurso: o gênero

tem natureza ativamente responsiva, dialógica, por isso, saber lê-lo é dar uma resposta,

é ser ativo na comunicação, é considerar o outro com quem se dialoga.

É nesse sentido que Marcuschi (2008, p. 161) afirma que “os gêneros são atividades

discursivas socialmente estabilizadas que se prestam aos mais variados tipos de controle

89

e até mesmo ao exercício de poder. Pode-se, pois, dizer que os gêneros textuais são

nossa forma de inserção, ação e controle social do dia-a-dia”.

3.3 Síntese da Unidade

Nesta Unidade, vimos que os estudos de Bakhtin têm uma importância central nos

discursos, porque, por meio deles, o conceito de dialogismo nos foi apresentado. Foi ele

que evidenciou o fato de que não há palavra que possa ser considerada a primeira ou a

última. Isso quer dizer que, para Bakhtin, a dialogia engloba passado, presente e futuro,

uma vez que os diálogos nunca estão estabilizados e sempre se renovam.

Pudemos, portanto, compreender que Bakhtin concebe, de um lado, a dialogia como

princípio constitutivo da linguagem e como condição de sentido de todo e qualquer

discurso; de outro lado, a polifonia, como um efeito de sentido decorrente de

procedimentos discursivos ligados ao discurso literário.

Sintetizando, Bakhtin nos mostrou uma dimensão histórica do discurso e essa foi a

grande contribuição dele para os estudos discursivos, ou seja, evidenciar a necessidade

de uma análise histórica da linguagem.

3.4 Para saber mais

Vídeo

• https://vimeo.com/6787146. Acesso em: 18 dez. 2016.

O vídeo “A obra de Mikhail Bakhtin: conceitos-chaves” é o registro de uma

entrevista realizada pela coordenadora Lícia Heine e pelos estudantes do Núcleo

de Pesquisa do Discurso – NUPED, do Instituto de Letras da UFBA. O

90

entrevistado é o pesquisador José Luiz Fiorin, que sintetiza, com muita clareza,

as principais ideias de Mikhail Bakhtin. Confira!

Livros

Como foi apontado nesta Unidade, a obra de Bakhtin é complexa. Assim, dois autores

cujos livros podem auxiliar os pesquisadores que querem aprofundar seus estudos

acerca dos conceitos analisados por Bakhtin são Beth Brait e Fiorin. Veja as indicações

a seguir:

• BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2. ed.

Campinas, SP: Unicamp, 2013.

• BRAIT, Beth. Bakhtin e o Círculo. São Paulo: Contexto, 2009.

• BRAIT, Beth. Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009.

• FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática,

2006.

Indicamos também o texto “Dialogismo e polifonia em Mikhail Bakhtin e o Círculo

(dez obras fundamentais)”, no qual a autora Beth Brait faz uma síntese do conteúdo das

principais obras escritas por Bakhtin e seu Círculo. Vale conferir!

• http://fflch.usp.br/sites/fflch.usp.br/files/Bakhtin.pdf. Acesso em: 18 dez. 2016.

Sites

• https://netlli.wordpress.com/2011/09/08/obras-de-bakhtin-disponiveis-em-pdf-

em-nosso-banco-de-dados/

91

O site do Núcleo de Pesquisa em Estudos Linguísticos e Literários disponibiliza vários

livros de Bakhtin para download. Além disso, apresenta referências de artigos que

tratam da obra desse autor. Confira!

3.5 Atividades

1) A charge a seguir dialoga com um discurso recorrente no segundo semestre de 2016,

quando um novo governo assumiu a presidência da república no Brasil e elaborou uma

medida provisória para reforma do Ensino Médio. Observe a referida charge e reflita

sobre os itens que a seguem:

a) Pesquise acerca da Medida Provisória n. 746/2016, que propõe a reforma do Ensino

Médio, e explique o sentido que a expressão “notório saber” denota no texto oficial.

Figura 3.3: Charge

Fonte: http://grooeland.blogspot.com.br/2016/09/a-reforma-do-

ensino-medio.html.

Acesso em: 23 dez. 2016.

92

b) Com base no item anterior, explique a crítica apresentada na charge.

c) Veja que o humor da charge só foi possível pela dialogia entre discursos. Quais

discursos participam desse movimento dialógico?

d) É possível ainda observar não só o diálogo discursivo, mas também o direcionamento

argumentativo dado pelo autor, ou seja, é possível perceber com qual discurso o autor

concorda e de qual ele discorda. Comente sobre isso.

e) O notório saber, a partir do que sugere a situação ilustrada na charge, parece absurdo

de ser concretizado na vida real. E na situação descrita na Medida Provisória 746? Você

concorda que há desvalorização do trabalho pedagógico no texto da lei? Disserte sobre

isso.

2) No anúncio que você analisará a seguir foi utilizado um recurso denominado por

Koch (2011) como hibridização ou intertextualidade intergêneros. Segundo a autora,

esse termo refere-se “ao fenômeno segundo o qual um gênero pode assumir a forma de

outro gênero tendo em vista o propósito de comunicação” (KOCH, 2011, p. 114).

Considerando a definição dada pela autora, analise o anúncio que segue e responda ao

que se pede. Para melhor visualização, o texto presente no anúncio foi transcrito ao lado

dele:

Figura 3.4: Anúncio publicitário.

Fonte:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=s

ci_arttext&pid=S1518-

76322012000100012

Acesso em: 29 dez. 2016.

Aruba, 20 de fevereiro de 1995

Queridos Ana e Paulo,

Aqui é o seu velho amigo Bernardo, falando

diretamente de Aruba. Estamos nos

divertindo muito. Nos mergulhos, pudemos

conhecer melhor os hábitos dos hippocabus

guttulatus. O santúario ecológico de Bubali

também é extraordinário. E as cavernas com

desenhos indígenas, então? Vocês iriam

adorar. Descobrimos também a fonte da

juventude. E é de água salgada (ah! ah! ah!).

À noite, parecemos dois adolecentes.

Andamos de mãos dadas e namoramos como

nos velhos tempos. Até no cassino! O azul do

mar é incrível e a areia branquinha... A praia

é bonita. Ontem, eu brinquei de castelinhos.

O meu baldinho é verde e o da Elisa é

vermelho Aqui é legau

UM BEIJO

BERNARDO

93

a) É possível observar o processo de hibridização no anúncio acima? Explique.

b) Como você classificaria esse gênero? Explique.

c) Como mencionado anteriormente, um gênero pode ganhar outra forma dependendo

do propósito de comunicação. Qual seria, então, o propósito de comunicação desse

anúncio?

d) Observe a parte verbal do anúncio. Perceba que, ao longo do texto, tanto o

vocabulário quanto a letra de quem escreve vão sofrendo alterações. No entanto, quem

inicia e finaliza o texto é a mesma pessoa, no caso, Bernardo. O que, então, justifica

essa mudança? Com qual finalidade ela foi empregada?

Para refletir...

Retomando o primeiro exercício, veja que a compreensão do humor e da crítica da

charge só foi possível porque temos acesso ao momento sócio-histórico em que o

enunciado foi produzido. Para compreender qualquer texto, portanto, devemos resgatar

o contexto de sua produção, os discursos ideológicos que o circundam, os

posicionamentos sociais e demais aspectos que, embora não visíveis, constituem os

gêneros discursivos (ou textuais) e atuam na produção de sentidos.

94

95

Unidade 4

A Análise do Discurso e a Prática Docente

Na Unidade anterior, foi possível você conhecer, resumidamente, as bases teóricas do

Círculo de Bakhtin e, assim, da ADD.

Nesta Unidade, nosso principal objetivo é relacionar a Análise do Discurso (ADF e

ADD) com a prática docente. Você, futuro professor, encontrará um universo

heterogêneo na sala de aula, em relação aos alunos, aos materiais didáticos, às

metodologias de ensino, enfim, encontrará realidades diversificadas e desafiadoras;

logo, precisará ser capaz de fazer ponderações, escolhas, seleções, articulações... para

que o processo de aprendizagem tenha êxito.

O professor não pode ficar refém do livro didático, preso aos exercícios propostos que,

muitas vezes, são ineficazes e/ou inadequados aos alunos de uma ou outra classe ou

escola. Diante disso, cabe ao professor ter autonomia e conhecimento para avaliar textos

e exercícios que lhe chegam e fazer as melhores escolhas, para que a aula elaborada seja

o resultado de reflexão e opções conscientes do trabalho docente.

Primeiramente, faremos uma reflexão em torno das principais concepções de

linguagem, fazendo relação com as práticas do professor que estão ligadas a essas

concepções. Em seguida, faremos um breve comentário acerca da “leitura”, a fim de que

você possa entender melhor o que seria exatamente esse processo tão importante. Para

finalizar, apresentaremos algumas análises de textos, a partir de como concebemos a

linguagem e a leitura, que poderão servir de apoio a você para a resolução das

atividades propostas.

96

4.1 Concepções de linguagem e prática do professor de língua

O modo como se entende língua/linguagem está diretamente relacionado às práticas do

professor em sala de aula, principalmente do professor de língua portuguesa e

estrangeira, cujas reflexões e ações básicas giram em torno da língua propriamente. Em

outras palavras, como nós agimos nas aulas, a forma como elaboramos as questões, o

modo como avaliamos os alunos, a forma como conduzimos o processo de

aprendizagem são influenciados pela visão de língua e linguagem que incorporamos.

Um dos problemas que são observados, segundo Nóbrega (2013), é a forte presença do

ensino da gramática normativa na escola, o que exalta a norma padrão da língua e

reforça o preconceito linguístico em relação às demais variantes, desconsiderando a

diversidade linguística do idioma, a amplitude de contextos pelos quais os falantes

transitam, as variedades de usos de linguagem.

Um professor que fica preso ao ensino da nomenclatura gramatical parece ter a visão de

língua como um sistema abstrato de signos arbitrários e convencionais, devendo ser

estudada em seus níveis de fonemas, morfemas e lexemas, remontando a uma

concepção saussuriana da língua, a qual já foi ampliada por estudos posteriores. Assim,

o ensino de gramática nas escolas continua um impasse. A questão não é se ela deve ou

não ser ensinada, mas como deve ser tratada nas aulas de português, tanto como língua

materna como língua estrangeira (NÓBREGA, 2013).

Além disso, Nóbrega (2013) aponta como constante um ensino gramatical

descontextualizado, artificial, fora do texto. Em outros termos, as aulas de português,

muitas vezes, resumem-se ao estudo de gramática normativa, impondo aos alunos uma

única maneira de falar e escrever, como se apenas o português padrão fosse correto e

aceito.

Nessa visão de ensino da língua, até mesmo quando os professores utilizam o texto em

suas aulas, ele serve apenas como um pretexto para o ensino da gramática. Apesar de

novas propostas, como o ensino por meio de gêneros, é frequente o fato de eles também

97

serem normatizados, isto é, serem lidos apenas em sua estrutura composicional, como se

fossem formas cristalizadas e estabilizadas, desconsiderando o que tanto prezava

Bakhtin, que é o estudo da língua em uso, na situação de comunicação, a qual é

concretizada por meio de gêneros.

Pontuados nossos comentários acerca do ensino de Língua Portuguesa, passamos a

refletir sobre o trabalho com a leitura, que pressupõe, obviamente, a prática da análise

linguística, a qual, por sua vez, pressupõe o estudo da gramática, mas não de uma

maneira excludente, que “decora” regras para binarizar os usos em certos e errados, mas

sim de forma reflexiva, pensando na adequação das formas linguísticas ao texto e ao seu

contexto de uso.

A GRAMÁTICA NÃO SERVE PARA NADA?

O ensino de gramática é essencial nas aulas de língua, porém é preciso

definir qual gramática ensinar. Se ensinamos só a gramática normativa (ou

prescritiva), que dita regras, vamos cair na antiga prática de obrigar os

alunos a decorarem essas regras que, muitas vezes, nem são aplicáveis aos

contextos reais de uso, e reproduziremos a prática de “certo” e “errado”

porque a gramática “mandou” e acabou. Não estamos dizendo que se deve

abandonar o ensino desse tipo de gramática, pois ela ainda é cobrada em

avaliações para entrada em empregos e universidades, mas ela deve se unir

à gramática descritiva, que observa os diversos usos, e à funcionalista, que

analisa esses usos em cada ocasião. Isso pode tornar o ensino de gramática

mais crítico e útil.

98

4.2 A leitura na sala de aula

Entendemos que o ensino da língua, que essencialmente é o ensino da leitura e da

escrita, deveria dar prioridade ao aspecto discursivo a partir da realidade comunicativa.

Esse aspecto dialoga com o que Faraco (2006) explica sobre o pensamento bakhtiniano:

a análise apenas linguística, embora necessária, é insuficiente. E estudar a gramática por

uma perspectiva discursiva seria levar o aluno a atuar de maneira investigativa em

relação aos fenômenos linguísticos, considerando os efeitos de sentido que provocam, e

não de maneira preconceituosa, conforme a gramática prescritiva impõe.

Observemos, por exemplo, a tirinha abaixo:

Nesse caso, não é raro que se explore esse texto pelo aspecto gramatical (usando o texto

como pretexto), com perguntas como:

1) Encontre os verbos do texto.

2) Aponte o modo (indicativo, subjuntivo ou imperativo) de cada verbo encontrado.

3) No segundo balão, lê-se a frase “Escondam-se embaixo da minha asa!”. Nesse caso,

ocorre próclise, ênclise ou mesóclise?

Figura 4.1: Tirinha.

Fonte: GONSALES, Fernando. Níquel Náusea. 1993.

99

4) Levando em conta a norma culta ou padrão da língua, é correta a forma “cocoricór”?

5) Assinale a alternativa que nomeia o correto gênero do texto lido:

( ) Notícia

( ) Poema

( ) Tirinha

( ) Receita culinária

Essas questões consideram apenas o aspecto linguístico normativo e o gênero como

forma típica estabilizada. Em nenhum momento, o aluno é instigado a refletir sobre o

que leu e sobre as escolhas do autor. Não se observam, portanto, a dialogia e os efeitos

de sentido que dão vida ao texto.

Vale ressaltar que não estamos negando a importância dos conceitos solicitados nas

questões anteriores. No entanto, cabe ao professor ampliar a visão do aluno na leitura, o

que não é possível apenas com a memorização da nomenclatura gramatical e com a

nomeação do gênero. Assim, propomos uma análise sob o viés discursivo, como

sugerido a seguir:

1) Após ler a tirinha, analise o modo dos verbos do texto e explique por que ele se altera

no terceiro quadrinho.

2) Observe a colocação pronominal no segundo balão do primeiro quadrinho.

Considerando o contexto de comunicação presente no texto, analise se esse emprego é

justificável.

3) O emprego do neologismo “cocoricór” constitui um elemento linguístico de uma

variedade não padrão da língua. Explique por que esse emprego é adequado no contexto

da questão.

100

4) Observe que no texto ocorre o fenômeno da hibridização, que é o cruzamento, em um

gênero, de elementos característicos de outros gêneros diferentes. Aponte os gêneros

que se entrecruzam e suas características.

5) Apesar da hibridização, a que gênero o texto pertence? Explique.

6) Quem são o locutor e o interlocutor da fala do último quadrinho?

7) Que discursos podem ser observados no texto3?

Conhecendo o cotidiano da sala de aula, compreendemos que seja difícil levar os alunos

a compreensões e elaborações de respostas mais complexas. Entretanto não podemos

desacreditar da capacidade dos alunos. Ademais, temos que ter em mente que a

aprendizagem é um processo e que, por meio de etapas gradativas de leitura, grandes

avanços podem ser conquistados.

Assim, defendemos que a perspectiva discursiva seria muito produtiva, por levar os

alunos a lerem de modo crítico, a lerem discursos, vozes sociais, empregando a análise

linguística como contribuição na prática leitora. Na direção dessa ideia, a unidade de

ensino deve ser o enunciado concreto, ou seja, o gênero discursivo conceituado por

Bakhtin, que é a unidade de comunicação social, em que se observam os sujeitos e os

discursos em processos dialógicos e observam-se os valores ideológicos que os signos

refletem e refratam.

Somente no enunciado concreto, é possível refletir sobre o que se diz, quando se diz

(momento histórico), para quem, com qual finalidade e quais os modos ou recursos

linguísticos mais adequados ao contexto e às intenções comunicativas (GOLDSTEIN,

2009). Abrem-se, como elucida a autora, possibilidades para exercitar o uso de recursos

gramaticais, bem como para refletir sobre eles. A atenção se volta aos efeitos de sentido

3 A tese de doutorado da Profa. Dra. Roseli Hilsdorf Dias Rodrigues faz uma reflexão crítica muito

interessante acerca do ensino tradicional, uma análise da Proposta Curricular de 1986 aos PCN e uma

análise minuciosa da Nova Proposta Curricular do Estado de São Paulo, datada de 2008. Em meio às

discussões, a pesquisadora reflete sobre o ensino de gramática. Vale a pena conferir! O trabalho está

disponível on-line na Biblioteca Digital da USP, em:

www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8142/tde.../2011_RoseliHilsdorfDiasRodrigues.pdf

Acesso em: 18 jan. 2017.

101

que as escolhas e os recursos da língua imprimem ao texto, e as classificações

metalinguísticas perdem o protagonismo e passam a ser coadjuvantes do processo de

ensino-aprendizagem.

Concluímos, portanto, que, tanto a ADF quanto a ADD, sob pressupostos teóricos de

Pêcheux e de Bakhtin, respectivamente, podem muito contribuir para o enriquecimento

da leitura em sala de aula. Tomando o gênero discursivo como unidade de ensino e a

análise linguística como reflexão auxiliar e necessária, a Análise do Discurso pode

oferecer a possibilidade de pensar a língua como constituição do sujeito e, dessa forma,

língua NÃO seria mais entendida como um instrumento que pode ser “usado”, como um

objeto, descolado do próprio sujeito e da História; mas SIM passaria a ser entendida

como a materialização (sob forma de signos) de discursos, de efeitos de sentido, da

História, das ideologias, enfim, como algo que constitui o próprio sujeito, servindo-lhe

de óculos sociais, com os quais, inevitavelmente, ele compreende o mundo.

4.3 A Análise do Discurso na sala de aula

Nesta seção, gostaríamos de refletir com você sobre alguns textos selecionados que nos

servirão de exemplares de gêneros discursivos a serem lidos sob o viés da Análise do

Discurso.

Primeiramente, observe esta questão encontrada em uma prova de vestibular de uma

faculdade privada de São Paulo:

Considere os seguintes versos retirados do “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de

Andrade: “As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres”. Assinale a opção que

corretamente represente a classificação sintática do termo destacado.

a) Oração subordinada substantiva subjetiva. b) Oração subordinada substantiva objetiva

direta.

c) Oração subordinada adjetiva explicativa. d) Oração subordinada adjetiva restritiva.

102

A questão apresentada é um exemplo típico do uso do texto como pretexto. O poema

nem foi transcrito na íntegra, o que prejudica sua compreensão, já que a leitura eficiente

de um texto envolve conhecimentos dele por completo, uma vez que um elemento

produz sentido em relação a outros que constituem o todo do enunciado concreto.

Além disso, ao lermos as alternativas, observamos que o objetivo do avaliador era

avaliar o conhecimento da metalinguagem gramatical, que exige do leitor apenas a

memorização descontextualizada de regras, sem necessariamente reflexão crítica sobre

elas.

Esse tipo de questão, embora válida dentro de um planejamento pedagógico do

professor, com objetivos específicos para se alcançar outros mais globais, é insuficiente

para se avaliar a capacidade leitora, no caso, do candidato do vestibular. Nós,

professores, precisamos almejar ao desenvolvimento de habilidades de leitura que

possibilitem ao aluno ler o mundo de forma crítica, o que não exclui as regras

gramaticais, mas as torna apenas auxiliares, coadjuvantes, para uma formação mais

sólida.

Propomos uma leitura discursiva e a análise linguística como complementar e

enriquecedora desse processo. Como exemplo da leitura discursiva, apresentamos uma

paródia elaborada por Marcelo Adnet, em seu programa na Rede Globo, nomeado

Adnight, episódio de 01 de dezembro de 2016. A paródia, na verdade, é composta de

fragmentos de outras músicas também parodiadas. Você pode perceber que ela traz

novos discursos que dialogam, de forma divergente, com os trazidos pelas músicas

originais. A ideia é observar esse dialogismo – que, segundo Bakhtin, é intrínseco à

linguagem –, formado na paródia, observando quais vozes respondem a outras, quais

discursos são valorizados, quais são silenciados para que outros sejam escutados.

Axé Politicamente Correto:

Esse é o som do século XXI

Não tem duplo sentido e nem assédio algum

Eu tô falando do axé politicamente correto

Que não trata a mulher feito um objeto

Agora o Adnight mostra pro povão

O axé que na Internet não gera textão

103

Pega no dedinho dela

Se ela deixar claro que ela

Deixa você chegar nela

Senão, vai pro cantinho

Deixa a cabeleira do Zezé

Ele pode ser o que ele quiser: Livre!

Deixa a cabeleira do Zezé

Ele pode ser o que ele quiser: Livre!

Será que ele é gender-fluid

Será que ele é poliamor?

Será que é assexuado?

Ele pode ser o que quiser!

Deixa, o cabelo é dele! (3x)

Um tapinha não dói?

Só se for consentido

Senão é xilindró!

Maria da Penha!

Tira a calça jeans, bota o fio dental

Bota o que você, achar mais legal

Seja saia curta ou camisa e boné

Mulher bota a roupa que ela quiser!

Homem de saia e sarong

De barba ou de batom

Tipo Liniker cantor

Eu sou quem eu sou

Alô lourinha, ô lourinha

Pra não ganhar bebê

Moreninha, moreninha

Nem ter DST

Leva e põe põe põe

Camisinha nesse p... (2x)

O meu gênero é

Aquilo que eu sentir

Cê tem que respeitar

Todas trans e as travestis

O machismo é horroroso

Horroroso demais!

As vantagens são só para o rapaz!

104

É a dança do machismo

É a dança do machismo

Eu não quero vantagem

É só igualdade o que quer o feminismo.

Se se se empoderou! (3x)

Domingo ela não vai ou vai?

Domingo ela só vai se ela quiser!

Segure o tchan

Controle o tchan

Segure o tchan, tchan, tchan, tchan, tchan

Tudo que é perfeito não se pega pelo braço

Trata com carinho, se respeita o combinado

Depois de nove meses, se tiver uma novidade

Ela não fez sozinha, assume a paternidade!

Veja em vídeo uma parte do programa em que a paródia é cantada por Adnet,

Ivete Sangalo, Beto Jamaica e Compadre Washington (do grupo É O Tchan), Fafá

de Belém e outros artistas.

http://gshow.globo.com/programas/adnight/episodio/2016/12/01/ivete-sangalo-

encerra-temporada-do-adnight.html#video-5487692

Figura 4.2: Ivete Sangalo e Marcelo Adnet em programa da Rede Globo.

Fonte:http://gshow.globo.com/tv/noticia/2016/12/ivete-sangalo-canta-axe-

imita-cid-moreira-e-levanta-poeira-no-ultimo-adnight.html.Acesso em: 02

dez. 2016.

105

A paródia criada, Axé politicamente correto, é uma resposta a muitos discursos que

ainda constituem vários sujeitos e materializam-se em muitas práticas de que “mulher é

objeto de prazer”, “homem é superior a mulher e pode dela fazer o que bem entender”.

Observamos que a paródia, ao mesmo tempo em que traz discursos de feminismo,

igualdade de gênero, respeito ao outro, também refrata discursos com os quais ela

dialoga, num jogo de, ao dizer A, é-se atravessado por B, e assim a rede discursiva

nunca termina.

O posicionamento ideológico ao qual os discursos da paródia vinculam é diferente do

posicionamento ideológico das músicas originais e busca, por meio do humor, denegrir,

silenciar, minimizar os primeiros discursos para valorizar os segundos, os que surgiram

posteriormente. Se antes, cantar: Olha a cabeleira do Zezé/ Será que ele é/ Será que ele

é.... BICHA/, estava na ordem do discurso, apontava uma organização social e apontava

valores axiológicos relacionados a uma visão heterossexual e a um posicionamento

cisgênero4 sobre os sujeitos, hoje, em diálogo com a marchinha de carnaval citada,

pode-se cantar: Deixa a cabeleira do Zezé/ Ele pode ser o que ele quiser: Livre!/ Deixa

a cabeleira do Zezé/ Ele pode ser o que ele quiser: Livre!

Ocorreram mudanças sociais e culturais, em direção à liberdade sexual, de modo a

oprimir menos os sujeitos e a enquadrá-los menos em estereótipos sociais que ainda

fazem muitas pessoas sofrerem e que impõem, basicamente, um estilo de organização

familiar patriarcal, segundo o qual o homem se sobrepõe à mulher, as funções

domésticas e trabalhistas são distribuídas de acordo com o sexo biologicamente

identificado etc. Isso tudo possibilitou a produção de novos discursos.

Ao longo da paródia, você ainda pode ler discursos contra práticas culturais segundo as

quais mulher não pode usar roupa curta para não ser estuprada, como se o estupro fosse

algo da natureza masculina, inevitável se a mulher instigar uma espécie de instinto do

homem. Inúmeros casos de estupro e assédio sexual, no trabalho, em ônibus, em metrôs,

foram denunciados pela mídia nos últimos anos. Em depoimentos, os agressores

justificavam-se dizendo que não puderam ter reação diferente, já que a mulher estava

4Termo ainda não dicionarizado. Indica a concepção de que a orientação sexual é definida pelo gênero de

nascença, biológico, não podendo ser alterado. Opõe-se ao conceito de transgênero.

106

com roupa curta (como se pedisse para ser violentada). Na rede dialógica com esses

discursos que se materializam há séculos em práticas machistas, está o seguinte trecho

da paródia: Tira a calça jeans, bota o fio dental/ Bota o que você, achar mais legal/

Seja saia curta ou camisa e boné/ Mulher bota a roupa que ela quiser!

Enfim, a paródia é muito rica: reflete novos discursos, ao mesmo tempo em que refrata

muitos outros. No jogo de poder, em que, dependendo do momento sócio-histórico, uns

discursos entram na “ordem do dia” e silenciam outros, o importante é observarmos

esses diálogos, essas vozes, para concluirmos seus interesses, suas intenções, seus

efeitos de sentido e os impactos sociais que podem causar.

A análise linguística, como comentamos anteriormente, pode auxiliar na leitura pelo

viés discursivo. Observe a análise que fizemos do poema a seguir, de Manuel Bandeira:

TRAGÉDIA BRASILEIRA

Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade, conheceu Maria Elvira na

Lapa, – prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes

em petição de miséria.

Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico,

dentista, manicura... Dava tudo quanto ela queria.

Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.

Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada

disso: mudou de casa.

Viveram três anos assim.

Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.

Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos,

Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp,

outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...

Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência,

matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de

107

organdi azul.

Observe que o gênero em questão é um poema narrativo, estilo típico dos poemas

modernos que buscavam formas inovadoras de expressão. Embora definido como

poema, devido ao seu propósito comunicativo e contexto de produção e recepção, ele

apresenta características do gênero notícia de jornal: na primeira estrofe, são descritas

informações como profissão e idade, de forma objetiva e direta; na última estrofe, foi

apresentado o desfecho, no caso, o assassinato, com certo sensacionalismo, com

vocábulos típicos do jornalismo policial, como privado de sentidos e de inteligência, a

polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal.

Apesar do tom do jornalismo, pode-se observar também o estilo literário em

construções sintáticas como: Misael tirou Maria Elvira da vida... Quando Maria Elvira

se apanhou de boca bonita.... vestida de organdi azul. “Tirar da vida”, “apanhar-se de

boca bonita” são figuras de linguagem que, para o gênero notícia de jornal, não seriam

adequadas, mas que, no poema, enriquecem a linguagem e aproximam o fato a algo da

vida cotidiana, sugerindo que a situação pode ser mais comum do que se pensa.

“Vestida de organdi azul” revela pureza e inocência, mas, ao mesmo tempo, a

transparência do tecido pode sugerir sensualidade, produzindo uma antítese suscitada,

ainda, pelo vermelho do sangue que o leitor imagina com a ocasião dos tiros e pelo azul

do organdi, criando o contrapondo entre carnal X angelical.

A descrição do corpo em decúbito dorsal, ou seja, caída de bruços, sugere crime

passional, sem resistência ou até mesmo premeditado, o que intensifica os sentimentos

de piedade que o leitor possa sentir.

O cruzamento de características de gêneros distintos torna o texto ainda mais complexo

e, para uma leitura cada vez mais crítica, a percepção desses elementos faz-se

necessária.

As primeiras orações do poema têm como sujeito agente a personagem Misael:

Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade, conheceu Maria Elvira na

108

Lapa, – prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes

em petição de miséria.

Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico,

dentista, manicura... Dava tudo quanto ela queria.

Veja que os verbos destacados têm como sujeito Misael, ele é o agente das ações, é o

protagonista do drama, consequentemente, as vontades dele prevalecem. Maria Elvira,

até o momento da narração dos fatos, aparece como um objeto dos verbos, como uma

pessoa cujos objetivos de vida não existem ou não aparecem ou, ainda, não são

importantes. Pela maneira como o eu poético a descreve, percebe-se que Maria Elvira

vivia sob condições marginalizadas. Na nossa sociedade, prostitutas são mal vistas, são

condenadas, são excluídas. Não é de se estranhar, portanto, que Maria Elvira apareça

como objeto dos verbos, como uma pobre mulher que deve apenas agradecer aos

cuidados de um homem que, talvez por milagre, viesse a aceitá-la como esposa.

Outro detalhe interessante é que o tempo verbal que dá dinamicidade aos fatos é o

pretérito perfeito (tirou, instalou, pagou); já a pretérito imperfeito passa a sensação de

rotina, de repetição de ações, como em “dava tudo quanto ela queria”, em que “dava” e

“queria” eram ações constantes.

Na oração ...quanto ela queria, Maria Elvira torna-se sujeito da oração, mas “tudo”

(pronome indefinido) traz a opacidade dos desejos dela: ela queria ou queriam para ela?

Sob um posicionamento ideológico que condena Maria Elvira e sua vida,

desconsiderando possíveis causas de sua situação, provavelmente os desejos dela eram

satisfeitos por Misael. No entanto, sob um posicionamento ideológico que visa

compreender os fatos sociais que contribuem para a existência de tantas Marias Elviras

no mundo, pode-se compreender que Misael lhe tenha dado tudo o que ele e a sociedade

esperavam de uma mulher considerada digna. Note-se a informação de que Misael tinha

63 anos, o que pode sugerir que era um homem já de certa idade e solteiro... Por que

procuraria uma mulher? Por que se uniria a uma prostituta? Seria por amor? Seria por

vaidade? Incapacidade de arranjar namorada, com a facilidade com que Maria Elvira

arranjava?

109

No verso: Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um

namorado, a conjunção subordinativa temporal “quando” e o advérbio “logo”,

juntamente à metonímia “se apanhou de boca bonita”, sugerem que Maria Elvira

aproveitou-se de Misael, esperando o momento certo para deixá-lo. O abandono é

subentendido com o verbo “arranjou”.

Na primeira oração, apesar de Maria Elvira ser sujeito do verbo, classifica-se como

sujeito da voz reflexiva (em que o sujeito faz e recebe a ação). O ato mais efetivo dela

ocorre apenas na segunda estrofe, quando se revela que ela arranjou um namorado,

levando o leitor a pressupor uma traição. Todavia, o matrimônio não aparece de forma

tão clara, tanto que, no verso: Misael não queria escândalo, parece que Misael vivia às

escondidas com Maria Elvira; talvez por medo ou vergonha de assumi-la publicamente.

Nesse caso, sem compromisso claro firmado, pode ser que o ato de Maria Elvira não

tenha sido uma traição.

Mesmo com a ideia da traição, é comum culturalmente, pensando em nossa sociedade,

aceitá-la por parte do homem, mas jamais por parte da mulher. No século XIX, por

exemplo, o marido traído tinha o direito, inclusive legal, de “lavar sua honra com

sangue”, ou seja, matar a esposa, como ocorreu, no fim do poema em questão, aponta a

atualização, pela memória discursiva, de discursos passados.

A enumeração dos nomes das ruas onde o casal, referido como amantes, morou durante

três anos não termina. As reticências ao fim da estrofe mostram que há mais ruas. Essa

enumeração sugere que o casal tentava prosseguir com a relação conjugal, ignorando e

tentando afastar (talvez da vizinhança) os casos amorosos que Maria Elvira tinha com

outros homens. Nesse sentido, podemos inferir que Misael era paciente? Era

perdidamente apaixonado? Ignorava a vontade de término do relacionamento por parte

de Maria Elvira?

Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.

110

Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos,

Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp,

outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...

O crime revela-se, no desfecho do poema narrativo, como passional pela expressão

privado de sentidos e inteligência, conforme nosso conhecimento de mundo acerca

desse tipo de crime delatado pela mídia. Percebe-se, ainda, uma ironia com o emprego

de Rua da Constituição, local em que, pelo nome, a lei deveria prevalecer e nenhum

tipo de crime acontecer, mas onde, após passar por tantas ruas, ironicamente, Maria

Elvira foi assassinada.

É importante que a análise do poema se apoie em elementos linguísticos, mas avance

para além das palavras, buscando compreender os efeitos de sentido que podem ser

produzidos nos diferentes leitores. Para tanto, é necessário observar o interdiscurso

formado por discursos sócio-históricos e contemporâneos, as relações de poder que

afetam posições-sujeitos e identidades, os processos ideológicos que influenciam

concepções de mundo.

É necessário, também, observar o movimento dialógico que o gênero em questão

proporciona, entendendo que o acabamento dele sempre está no outro, nunca em si

mesmo, isto é, o gênero sempre produzirá uma resposta responsiva, mesmo que seja o

silêncio.

Fazendo intertextualidade e interdiscursividade com o poema de Bandeira, segue a letra

de música de Paulo Vanzoli. Leia-a e tente observar a dialogia, o interdiscurso e os

posicionamentos ideológicos propostos:

MARIA QUE NINGUÉM QUERIA

Maria que ninguém queria

eu resolvi reformar.

Levei ao dentista,

111

Paguei ao dentista,

Ensinei a falar

Fiquei satisfeito

Com o que tinha feito:

Serviço perfeito,

Trabalho de artista,

Mas Maria era esperta.

Esqueci a porta aberta

E ela fez a pista.

O tempo passou

Um dia Maria me procurou.

Seu jogo rasgou-me

E já declarou

Que apesar do progresso

Que apesar do sucesso

Que tinha encontrado em seu caminho,

Apesar da riqueza

Conservava uma fraqueza

Pelo meu carinho.

Propôs que eu voltasse

E compartilhasse

Com tudo que tinha.

Jurou-me ser minha, toda, todinha

112

Com uma exceção natural

Eu não levei a mal

Mas no mesmo momento

Já descartei seu oferecimento

Orgulho eu não tenho

Mas sou homem demais

Para cinquenta por cento.

4.4 Síntese da Unidade

Chegamos ao fim do nosso estudo.

Não foi nossa pretensão apontar a você um único caminho para sua prática como

professor ou oferecer-lhe um roteiro fechado a ser seguido em seus estudos em Análise

do Discurso.

Entendemos que um professor deve ter o compromisso ético de fazer as melhores

escolhas pedagógicas para seus alunos. Nesse sentido, procuramos ampliar seus

conhecimentos e apresentar-lhe a Análise do Discurso como uma vertente teórica, com

sua concepção de linguagem, sujeito, discurso, que pode oferecer muitas contribuições

para o ensino de Língua Portuguesa.

Nesta última Unidade, tecemos comentários sobre a prática docente, que é influenciada

pela forma como o professor entende língua/linguagem. Comentamos, também, sobre a

gramática, que ainda prevalece em muitas salas de aula como foco de ensino; e sobre a

leitura, como objetivo maior a ser alcançado no ensino do português. Por fim,

analisamos alguns gêneros, apontando aspectos da análise discursiva e linguística.

113

4.5 Para saber mais

Vídeo

• https://www.youtube.com/watch?v=D3Cu0e_cTz0

O vídeo da UNIVESP TV, “Didática da Língua Portuguesa e da Literatura: linguagem e

dialogismo”, é de duas grandes pesquisadoras, Dra. Beth Brait (USP/PUC) e Dra. Maria

Inês Campos (USP), que apresentam ideias de Bakhtin, tendo em vista a sala de aula, ou

seja, as pesquisadoras buscam compreender as ideias bakhtinianas e sua produtividade

pedagógica.

Livros

Indicamos três grandes obras que podem ser consultadas para ampliar seus

conhecimentos. Na primeira indicação, você poderá compreender melhor como a

concepção de língua influencia a prática do professor. Na segunda, a autora aprofunda o

conceito de hibridização e apresenta muitos exemplos, que podem, inclusive, ser usados

em sala de aula. Por fim, na terceira obra, a autora tece reflexões sobre leitura,

apresentando um passo a passo para desenvolvê-la com seus alunos, e conceitos

importantes para todo professor de língua.

• MARCUSCHI, Luis Antonio. Produção textual, análise de gêneros e

compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.

• KOCH, I.; ELIAS, V.M. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo:

Contexto, 2011.

• TÁPIAS-OLIVEIRA, Eveline Mattos (Org.). Reflexões sobre aulas de leitura,

PCN de Línguas e Prática do Professor. Taubaté, SP: Editora Universitária da

Universidade de Taubaté; Editora e Livraria Cabral Universitária, 2015.

114

Sites

• http://clubedamafalda.blogspot.com.br/search?updated-max=2014-07-

19T17:33:00-03:00&max-results=6#.WGVsd_krLIU

Indicamos o site Clube da Mafalda, que contém diversas tirinhas de Quino, criador da

personagem Mafalda. As tirinhas são, em sua maioria, muito críticas, envolvendo

discursos sócio-históricos interessantes, o que pode auxiliar você, futuro professor, a

trabalhar com a leitura na sala de aula, por uma vertente discursiva, levando seus alunos

ao pensamento crítico.

4.6 Atividades

1) Leia a propaganda a seguir que a Ariel, marca de sabão em pó, lançou no Facebook,

durante a Copa das Confederações, e foi comentada no artigo “Feminismo pra quê?” 5,

de Nádia Lapa, na Revista Carta Capital (18/12/2013). Basicamente, a propaganda fazia

parte de uma série em quadrinhos cujo tema era “a mulher também gosta de futebol”.

5Consultar artigo na íntegra em http://www.cartacapital.com.br/blogs/feminismo-pra-que/a-representacao-

da-mulher-na-midia-e-em-produtos-7011.html (acesso em: 02 dez. 2016), no qual a autora comenta outras

propagandas relacionadas a visões veiculadas sobre a mulher.

Figura 4.3: Propaganda da marca Ariel.

Fonte: http://www.cartacapital.com.br/blogs/feminismo-pra-que/a-representacao-da-

mulher-na-midia-e-em-produtos-7011.html. Acesso em: 02 dez. 2016.

115

Após a leitura atenta da propaganda, comente acerca dos discursos que nela se

materializam e se cruzam. Para auxiliá-lo, reflita sobre as seguintes questões:

I. O que é machismo e o que é feminismo? Qual a ordem do discurso contemporâneo

sobre essas duas tendências ideológicas?

II. Reflita a respeito do contexto sócio-histórico, em dimensão macro e micro, em que a

propaganda foi elaborada.

III. Como a mulher é compreendida pela propaganda? Algumas dessas características

podem ser observadas: fútil, histérica...?

IV. Como podemos compreender a ambiguidade do verbo “torcer”? Essa ambiguidade

instiga que discurso em relação à mulher? Silencia quais discursos?

V. Por que produzir uma propaganda de sabão em pó utilizando a figura da mulher?

VI. Por que produzir uma propaganda relacionando futebol e mulher?

2) Leia o texto a seguir:

Mulheres de Atenas

(Chico Buarque e Augusto Boal)

Mirem-se no exemplo

Daquelas mulheres de Atenas

Vivem pros seus maridos

Orgulho e raça de Atenas

Quando amadas, se perfumam

Se banham com leite, se arrumam

Suas melenas

116

Quando fustigadas não choram

Se ajoelham, pedem imploram

Mais duras penas; cadenas

Mirem-se no exemplo

Daquelas mulheres de Atenas

Sofrem pros seus maridos

Poder e força de Atenas

Quando eles embarcam soldados

Elas tecem longos bordados

Mil quarentenas

E quando eles voltam, sedentos

Querem arrancar, violentos

Carícias plenas, obscenas

Mirem-se no exemplo

Daquelas mulheres de Atenas

Despem-se pros maridos

Bravos guerreiros de Atenas

Quando eles se entopem de vinho

Costumam buscar um carinho

De outras falenas

Mas no fim da noite, aos pedaços

117

Quase sempre voltam pros braços

De suas pequenas, Helenas

Mirem-se no exemplo

Daquelas mulheres de Atenas:

Geram pros seus maridos

Os novos filhos de Atenas

Elas não têm gosto ou vontade

Nem defeito, nem qualidade

Têm medo apenas

Não tem sonhos, só tem presságios

O seu homem, mares, naufrágios

Lindas sirenas, morenas

Mirem-se no exemplo

Daquelas mulheres de Atenas

Temem por seus maridos

Heróis e amantes de Atenas

As jovens viúvas marcadas

E as gestantes abandonadas

Não fazem cenas

Vestem-se de negro, se encolhem

Se conformam e se recolhem

118

Às suas novenas, serenas

Mirem-se no exemplo

Daquelas mulheres de Atenas

Secam por seus maridos

Orgulho e raça de Atenas

a) De que mulheres o texto trata? A qual momento sócio-histórico faz-se referência

nele? Comente sobre essas questões, caracterizando como essas mulheres eram vistas e

como era compreendida a organização social do tempo histórico evocado.

b) Retome a paródia musical Axé politicamente correto, de Marcelo Adnet, apresentada

nesta mesma unidade, e responda: que ideias sobre a mulher são construídas na paródia?

Essas ideias são as mesmas construídas no texto Mulheres de Atenas?

c) Quando o eu poético emprega o verbo “Mirem-se”, pode ser compreendida uma

ambiguidade, ou seja, um duplo sentido, em que “mirar-se” poderia ser “espelhar-se” ou

“olhar-se frente a frente” (um contra o outro). Dependendo de cada sentido, podem-se

construir leituras diferentes do texto. Quais leituras, de modo geral e resumido, seriam

possíveis?

d) Elabore uma sequência didática a partir do texto “Mulheres de Atenas”, considerando

os aspectos linguísticos e discursivos. Na sua elaboração, sugerimos que você se

embase nas análises apresentadas ao longo desta Unidade.

119

Para refletir...

Pensamos que você já pode começar a planejar algum material para suas aulas. Que tal

explorar a tirinha abaixo sob uma perspectiva discursiva de leitura? Exercite!

Figura 4.4: Tirinha da Mafalda.

Fonte: http://fotosdenatureza.blogspot.com.br/2008/05/os-quadrinhos-de-mafalda-e-o-

meio.htmlAcesso em: 29 dez. 2016.

120

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