ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO

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COLECÇÃO STVDIVM TE MAS FILOSÓFICOS, JURÍDICOS E SOCIAIS Prof. WOLFGANG KA YSER ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DA OBRA LITERÁRIA (INTRODUÇÃO À ClrNCIA DA LITERATURA) * 3." EDIÇ,\O PORTUGU1~SA TOTALi\IEN'l'E REVISTA PIU,A 4.' ALR1\L\ POR PAULO QUINTELA VOL. I ARMÉNIO AMADO, EDITOR, SUCESSOR-COIMBRA 1963

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COLECÇÃO STVDIVMTE MAS FILOSÓFICOS, JURÍDICOS E SOCIAIS

Prof. WOLFGANG KA YSER

ANÁLISE E INTERPRETAÇÃODA OBRA LITERÁRIA

(INTRODUÇÃO À ClrNCIA DA LITERATURA)

*3." EDIÇ,\O PORTUGU1~SA TOTALi\IEN'l'E REVISTA

PIU,A 4.' ALR1\L\POR

PAULO QUINTELA

VOL. I

ARMÉNIO AMADO, EDITOR, SUCESSOR-COIMBRA

1 9 6 3

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,INDICE

PREFÁCIO à 3." Edição Portuguesa. in memotiem deW. Kayser. . . . . . . V

NOTA PRÉVIA00 TRADUTOR. . . IXPREFÁCIOà 1.. Edição Portuguesa XIPREFÁCIOà 2.' Edição Portuguesa xvPREFÁCIOà L" Edição Alemã . . XV11

INTRODUÇÃO

1. Entusiasmo e Estudo. . . . . . . . 32. O objecto da Ciência da Literatura . . . 53. Conceito e História da Ciência da Literatura. 14

PREPARAÇÃO

CAPÍTULO I

PRESSUPOSTOS FILO LóGICOS . 29

1. Edição critica de um texto . 292. Determinação do autor . • i 1

Excurso : Determinação do autor por meio do texto 503. Determinação da data. 55i. Meios auxiliares. 60

PRIMEIRA PARTE

CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANALISE LITE-RARIA • . • . . . . . . . . . . . . .• 69

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CAPÍTULO 11

CONCEITOS FUNDAMENTAIS QUANTO AO CON-TEÚDO. 73

1. O assunto .. 732. O motivo " • 80

Excutso , O motivo da noite em quatro poemaslíricos . . . . . . . . 89

3. «Leítrnotív», Topos, Emblemas 1004. A fábula . . . . . . . . 109

CAPÍTULO IJI

CONCEITOS FUNDAMENTAIS DO VERSO. 117

I. Sistemas de verso . . . . . . 1182. Espécies de pés mais importantes. 1223. O verso. . . . 1244. A estrofe . . . 1295. Formas de poesia 1346. A rima. . . . 1427. Métrica e história do verso. 1468. Análise do som . . . . . 149

CAPÍTULO IV

AS FORMAS LINGUíSTICAS. .. .... 151

I. A sonoridade. . . 1532. O estrato da palavra 1593. Figuras retóricas 167

Excurso . Imagem, Comparação, Metáfora, Sínes-tesia. . . . . . . . . 183

4. A ordem «usual» das palavras. 196Excurso: Sintaxe e Verso 202

5. Formas sintácticas. . . . . 209

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íNDICE

Págs.6. Formas superiores à Frase. . . . . . . . . 229

Excurso: Formas superiores à frase estudadas atra-vés da análise de um texto em prosa 231

7. Modos e formas do discurso . . . . . . .. 234

CAPÍTULO V

A CONSTRUÇÃO. . . . . . .. .... 237

1. Problemas de construção da Lírica 238(B) Um exemplo. . . . . . 238(b) Construção externa e interna 249(c) A construção do ciclo. . . 257

2. Problemas de construção do Drama . 260(B) Cena e acto . . . . . . . 260(b) Construção da acção. . . . 268

3. Problemas de construção na arte narrativa (Épica) ,272(a) Formas exteriores de construção2n(b) O processo épico . . . 276( c) Formas basílares da Épica . . 282

PARTE INTERMÉDIA

CAPÍTULO VI

FORMAS DE APRESENTAÇÃO. . . . . . . . . 291

1. Problemas de apresentação do género líríco (técnicaLírica] . • . . . . . • . . . • • ., 295

2. Problemas de apresentação do Drama (técnica doDrama). . . . . . . . . • . • . . . 301

3. Problemas de apresentação da Épica (técnica daArte Narrativa). . . . • . • . • . • . 310

Excurso: A posição do narrador no «Brás Cubas»de Machado de Assis. . • • . • . • • . 329

Excurso: A configuração do diálogo na narrativa. 337

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WOLFGANG KAYSER·;·2.3. 1. 1960

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PREFACIO A TERCEIRA EDIÇÃO

In Memoriam de W oIfgang Kayser.

Eis a terceira edição deste livro em língua portuguesa- deste livro que nasceu em Portugal e em portuguêsapareceu originàriamente.

Ao entregá-Ia ao público, sinto necessidade deescrever algumas poucas palavras in mernoriam do seuAutor, de quem tive a fortuna de ser amigo durantemuitos anos.

Pertencentes à mesma geração - apenas um anoexacto nos separava em idade, com desvantagem paramim -, é muito possível, embora nenhum de nós dissotivesse lembrança, que juntos tivéssemos seguido aslições e seminários dos nossos mestres comuns emBetlim - J. Petersen, A. Hiibner, M. Hertmenn ... -Fomos depois colegas no ensino universitário em Por-tugal, ele em Lisboa, eu já em Coimbra. Aprendemosa estimar-nos - e eu aprendi a admirar-lhe o excepcio-nal talento pedagógico, a vastidão da informação lite-rária (não só no campo que nos era comum), a clareza,sobriedade sem secura, precisão e elegância da exposição,a enorme capacidade de realização na investigaçãocientífica e no ensino. Este conjunto de qualidades,aliadas à lhaneza e humaníssima afabilidade do trato,à capacidade inata de reconhecimento da valia alheia,ao seu amor e prática das artes - W. Kayser era umbom pianista e gostava de pintar, e grande mágoa eutenho de não possuir uma das suas belas aguarelas

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da Serra da Lousãl-, faziam dele um amigo preciosoe um colega com quem era bom colaborar.

Nascido em Berlim, a 24 de Dezembro de 1906,frequentou o Fríedríchs-Realqymnasíum e depois, namesma cidade, na então Universidade de FredericoGuilherme, seguiu estudos de Germenistice, AngUstica,História e Filosofia, e lá se doutorou em 1930. Foilogo a seguir, por indicação de J. Petetsen, leitor delíngua e literatura alemãs na Universidade de Amsterdãoaté 1933, e depois em Aarhus (Dinamarca), até inqres-sar como assistente fora do quadro da secçêo modernade Germenistice na Universidade de Berlim, em 1935,onde adquiriu a venia legendi. Três anos mais tardeé já docente em Lipsie, onde vai conviver comH. A. Korft. Th. Frings e A. [olles. Daí vem, em 1941,tomar conta da regência de Literatura Alemã naFaculdade de Letras de Lisboa, contrato que se mantématé 1946. Permanece em Portugal, subsidiado peloInstituto de Alta Cultura, até 1950, e é nesse períodoque leva a cabo, entre outros trabalhos, a redacçãodo presente livro, simultêneemente em português e

alemão. É então chamado à cátedra de Filologia Alemãem Gotinga onde, durante dez anos, prestiqie a escolacom um labor pedagógico e de investigação intensissimo,interrompido por frequentes convites para reger cursose fazer conferências em Cambridge, Menchester,Herverd, Chicago, Zeqreb e noutras universidades daSuíça, Itália, Jugoslávia, Holanda, Inglaterra, Escen-dinávia, Finlândia e Estados Unidos da América.Preparava~se para uma viagem ao Japão quando, a 23de Janeiro de 1963, com apenas 53 anos de idade, umcolapso cardíaco pôs termo à SUa vida tão curta, mastão intensa e multiplamente vivida.

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A carreira científica e humana de W. Kayser éimpensável sem o decênio passado em Portugal. fi aquique os seus horizontes ganham largueza para uma visãomais vasta do fenômeno literário, abarcando as pro-duções de expressão ibérica, mesmo no continente ame-ricano, principalmente a lírica e a novelística portuguesamoderna, o drama espanhol e o romance brasileiro,que nunca mais deixa de valorizar nos seus trabalhose conferências. fi aqui também que as suas qualidadeshumanas de convívio e compreensão, ao contacto domundo românico, se desdobram e manifestam em todaa sua plenitude. E é isto mesmo que eu hoje, comoPortuguês, quero agradecer comovida e saudosamenteli sua memória.

Nomeamos a seguir, dos seus trabalhos, os maisimportantes:

KLANGMALBREI BEI HARSDORFFER {Dis. de doutora-mento, 1932);

GESCHICHTE DER DEUTSCHEN BALLADE (1936, HABILlTA-

TIONSSCHRIFT, de que preparava nova edição antesde morrer);

DIE IBERISCHE WELT 1M DENKEN J. G. HERDERS (1945;importante para o estudo das literaturas ibéricas e docerécter nacional de Portugueses e Espanhóis naobra de Herderi capítulos especiais sobre Cemões,os Descobrimentos, e o Cid}, .

KLEINE DEUTSCHE VERSSCHULE (1947, 7.4 ed., 1960);DAS SPRACHLICHE KUNSTIVERK (é O presente livro,

aparecido em 1948, que vai já na 7.4 ed, alemã e quefOi traduzido em várias línguas);

ENTSTEHUNG UND KRISE DES MODERNEN ROMANS(1954);

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VIlI

DAS GROTESKE. SEINE GESTALTUNG IN MALEREI UNO

DICHTUNG (1957);DIE VORTRAGSREISE (1958; colectênee de conferências,

entre elas, de especial interesse para o leitor por-tuguês, «A Estrutura do 'Príncipe Constante' de

Celderon», «Posfácio à tradução das MemóriasPóstumas de Brás Cubas' de Machado de Assis»e «A Literautra Portuguesa da Actualidade»);

DIE WAHRHEIT DER DICHTER (1959):KUNST UNO SPIEL. FÜNF GoETHE-STUDIEN (1960).

Ainda depois da partida, o espírito de W. Keuser,graças à diligente dedicação de sua Esposa, con-tinua a visitar-nos, com a publicação das suas liçõessobre História do Verso Alemão (GESCHICHTE OES

OEUTSCHEN VERSES; 1960) e sobre o Fausto de Goethe,(FAUSTKOLLEG, nachgezeichnet von Ursula Kayser,Gotinga, 1962) o último curso por ele regido, interrom-pido definitiva e simbolicamente, ao que leio, com ainterpretação da descida de Fausto ao Reino das Mães.

Também dele - o mago-intérprete - se pode dizer,com o herói de Goethe:

In reícher Spende lâsst er, voll Vertrauen,Was jeder wünscht, das Wunderwürdíqe schauen.

Coimbre, 10 de Fevereiro de 1963.

PAULO QrnNTELA

NOTA. - O texto da tradução foi, evidentemente, revisto maisuma vez, expurgado dos erros e gralhas que se notaram, melho-rado aqui e acolá com uma nova versão ou com algumas formu-lações que nos pareceram preferíveis às da edição anterior.

A fotografia de W. Kayser que publicamos foi tirada enquantoele pronunciava, em 11 de Novembro de 1959, o seu discurso naUniversidade de Gotinga sobre «Schíller Poeta da Grandeza».

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NOTA PRÉVIA DO TRADUTOR

O texto da versão portuguesa deste livro (que emI.a edição há dez anos apareceu, em 2 volumes, nestamesma colecçêo com o título Fundamentos da Inter-pretação e da Análise Literária) [oi agora subme-tido a meticulosa revisão pelo da e» edição alemã(Das sprachliche Kunstwerk - Eíne Einführung in díeLíteraturwíssenschaft, oierte Auflage, Frencke VerlagBem, 1956). Da extensão e validade - mesmo danecessidade - dessa revisão poderá fàcilmente fazerideia quem queira der-se ao trabalho de confrontar,ao acaso, qualquer pequeno número de páginas. Poderátambém verificar, ocasionalmente, vários ectescentos,alguns substanciais.

Julgámos conveniente, por mais lógica e mais con-forme ao desenvolvimento da matéria e à natureza dométodo, a alteração do título português primitivo.

Não vale a pena falar em eventuais adições biblio-gráficas, uma vez que não houve preocupação - nemhaveria a possibilidade - de ser exaustivo. Houve,sim, a de fixar a terminologia e o vocabulário técnicoda ciência literária, a partir da nomenclatura alemã,indubitàvelmente a mais rigorosa e diferenciada.' Bemsabemos que não fomos além da tentativa e que essa

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x

tarefa não pode ser, em definitivo, obra de um só. Masé preciso que alguém comece ... Aí fica, nesse campo,o nosso contributo que desejaríamos ver discutido, pre-cisamente porque o sabemos discutível.

Coimbre, Fevereiro de 1958.

PAULO QUlNTELA

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PREFACIO À t » EDIÇÃO PORTUGUESA

Como todas as ciências, a da literatura vê-se, devez em quando. forçada a uma revisão das suas con-cepções besileres. Hoje. perece-nos bem evidente o factode ela ter entrado numa nova fase da sua história.Pouco a pouco impôs-se, de novo. a convicção de sernecessário colocar no centro da ectividede científica osproblemas contidos no próprio fenómeno «literário».ofuscados pela investigação dos últimos cinquenta anos.Esta costumava considerar uma obra como manifestaçãode [enômenos extra-literários e eproveiteve-se dela parachegar ao esclarecimento de [ectotes como autor.geração. corrente ideológica. classe social, época. ouainda determinados problemas e ideies. Em oposiçãoa esta tendência implantou-se, cada vez mais. a crençade que a verdadeira missão e mais própria tarefa dainterpretação consiste em estudar a obra literária comotal. em compreender a sua existência autónoma e escla-recer as leis que determinam a sua organização. Osimpulsos que conduziram a essa nova ou. até certoponto. antiga concepção dos estudos literários. têm vindode todos os lados. reunindo-se e organizando-se já háalguns anos. Basta apontar os congressos internacio-nais. realizados pela «Comission Internationale d'Hís-toíre Líttéraire», as novas revistas como eHelícon»,eTrívíum». e outras. as novas «escolas» como a de

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Zurique, etc, Os resultados já alcançados pelos recentesesforços são de tal importância, que a profecia dumainevitável alteração de toda a historiografia literáriaparece justa e prestes a reelizer-se.

Não será, por isso, prematura a tentativa de daruma introdução aos métodos aplicados e nela, ao mesmotempo, uma exposição do estado actual da investigação.O presente livro pretende ser isso mesmo. O seu planofoi determinado pela concepção besiler da obra literáriacomo obra de arte plasmada na língua. Depois dumaexposição analítica, na Primeira Parte, dos [enámenoselementares que dizem respeito ao conteúdo, ao verso,à língua e à composição, cheqe-se, na Segunda Parte,às forças sintéticas correspondentes ou seja: conteúdoideológico, ritmo, estilo e qénero. Passando de umaà outra, observem-se as suas correlações até que, [inel-mente, no último capítulo se revela a sua determinaçãointrínseca pelo verdadeiro centro construtivo. Só a novaconcepção metodológica tem a possibilidade de superartoda a análise inevitável por uma síntese definitiva.Para o leitor não sõmente conhecer os diferentesaspectos pela teoria, mas poder observar os respectivosmétodos no seu trabalho prático, pareceu convenienteincluir várias interpretações, às vezes sob a forma de«excursos», Tirarem-se os exemplos, como acontecetambém com as referências no próprio texto, de prefe~têncie das literaturas românicas e germânicas e, emalguns casos, da grega e da latina, pois o livro se des-tina, em primeiro lugar, a todos aqueles que se dedicamao estudo de uma daquelas literaturas.

Uma bibliografia completará a descrição dos pro-blemas e a exposição do estado actual da investi-

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gação. Bibliografias deste género são sempre precáriase são-no sobretudo hoje em dia, dadas as dificuldadesde obter informações bibliográficas e livros recém--publicados. Contudo, precisamente estas dificuldadesparecem aumentar a utilidade de um apêndice biblio-gráfico, por mais defeituoso que seja.

A versão original do livro [oi escrita em alemão.Na versão portuguesa, muitas vezes não foi fácil a tra-dução de termos bem delimitados e que ocupam posiçãode destaque no texto. O autor tem de pedir indulgência,além disso, se a linguagem deixa transparecer até certoponto a proveniência estrangeira. Muito sinceramenteagradece a todos aqueles que o ajudaram, com tantaamabilidade, na elaboração penosa da versão defi-nitiva, sobretudo às Senhoras D. Maria Osswald eo-» D. Anna Arneud, D. Elvira Monteiro, D. MariaManuela Sousa Marques, D. Maria Salomé Correia,D. Ruth Sen Pago Araújo. A quem o autor deve omaior auxílio é ao seu amigo Doutor Paulo Quintelaque dispensou ao livro as suas grandes capacidadesde estiliste, intérprete e cientista, tomando sobre si, e«sua sponte», o ingrato trabalho de ler todas as provasdurante a composição.

Resta ao autor uma última palavra de reconheci-mento e, na verdade, a mais profunda e mais expressiva.O Instituto para a Alta Cultura dignou-se aprovar oplano do livro, apresentado pelo autor, e conceder-lheuma bolsa de estudo para a sua execução. Só destamaneira se criaram as condições que permitiram ao autorescrever o livro e realizar as suas intenções: ser útilao leitor e, nomeadamente, à juventude académica, nosseus estudos literários.

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Uma versão do livro em língua alemã, a qual divergesobretudo nos exemplos práticos, está a sair sob o títuloDas sprachlíche Kunstwerk.

Lisboa, no mês de Julho de 1948.

WOLPGANG KAYSER

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PREFACIO A z» EDIÇÃO PORTUGUESA

A presente edição difere considerêoelmente da pri-meira. O Doutor Paulo Quintela, que já a esta dedicarao seu auxílio, reviu agora o texto em tal medida quesurgiu uma nova versão e o livro lhe pertence pormetade. E: dever do autor - dever que cumpre eleqre-mente - exprimir o seu agradecimento ao Doutor PauloQuintela, a quem há longos anos o ligam laços deamizade. Toda uma série de alterações do conteúdoexplice-es o facto de, para a nova versão, se ter partidoda 4.a edição de «Das Sprachliche Kunstwerk», entre-tanto eperecide,

Com profunda gratidão recorda o autor o tempo emque lhe foi dado escrever o livro em Portugal, quese lhe tornara segunda pátria. Se o livro se mostrouútil para o estudo da Literatura - a par da versãoalemã existe uma espanhola que está a aparecer emsegunda edição, enquanto se prepara uma tradução parainglês -, é especial motivo de alegria para o seu autoro poder ter contribuído para alargar no estrangeiro oconhecimento da Literatura Portuguesa a que [oi buscartantos exemplos.

Dentro em breve aparecerá a continuação do pre-sente livro.

Gotinqe, Fevereiro de 1958.

WOLFGANG KAYSER

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PREFACIO A l.a EDIÇJl.O ALEMJl.

O presente livro é uma introdução aos métodos detrabalho com cujo auxílio se abre a compreensão dequalquer obra literária como obra de arte. A investi-gação das últimas décadas trabalhou predominantementecom outros objectivos. Punha a obra em relação com[enômenos extre-poéticos e julgava encontrar aí a oer-dedeira vida de que a obra então seria o reflexo.A personalidade de um poeta ou a sua concepção domundo, um movimento literário ou uma geração, umgrupo social ou uma paisagem, o espírito de uma épocaou o carácter de um povo, em suma problemas eideies -, tais eram as potências vitais a que se tentavachegar através da poesia. Por justificados que estesmétodos de trabalho sejam ainda hoje e por grande queseja o seu resultado, põe-se todavia a questão de saberse com eles se não descura a essência da obra de arteliterária e se se não descuida a tarefa principal dainvestigação literária.

Uma obra literária não vive nem deriva como reflexode qualquer outra coisa, mas sim como estrutura lin-guística fechada e completa em si mesma. O empenhomais urgente da investigação deveria pois, nesta con-formidade, ser a determinação das forças linguísticascriadoras, a compreensão da sua cooperação e a ten~tativa de tornar transparente a totalidade da obraisolada.

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Durante o predomínio daqueles métodos de sentidodiferente não faltaram investigadores que continuaramfiéis às tarefas essenciais. Mas só há um decênio éque tais esforços recobraram amplitude e importância,se ligaram e organizaram em revistas, congressos eescolas, de tal sorte que a profecia de então é já hojerealidade: um novo período na história da investigaçãoliterária começou. E parece justificada a esperança deque, a partir do centro reconquistado do trabalho diri-gido para o poético-linguistico, também a história daliteratura alcançará novas normas.

Não parece pois prematuro tentar uma introduçãoaos problemas e métodos da interpretação literária.A construção do livro ordenou-se sem violência: depoisda discussão das questões prévias filológicas, a primeiraparte descreve os [enômenos elementares que se encon-tram dentro dos quatro estratos do Conteúdo, do Verso,da Língua e da Estrutura. Na segunda parte são liber-tados da sua rigidez e isolamento e referidos aos corres-pondentes centros de força sintéticos da Substância, doRitmo, do Estilo e do Gênero. A medida que se avançaoéi-se descobrindo a sua mútua determinação, até quefinalmente, partindo do último capítulo, se tornam visi-veis a cooperação de todas as forças e a unidade cerradada estrutura linguística. Pois ao método de trabalhoaqui tratado torne-se possível superar a dissolução,inevitável a princípio, da obra isolada por meio de umarestauração final da sua totalidade. Pelo movimentocontínuo para este fito é que esta tentativa se dis-tingue talvez dos livros teméticemente afins de Walzel,Winkler, Ermetinqer, Petersen e outros.

Pareceu conveniente mostrar simultêneemente aoleitor o manejo dos instrumentos teóricos. Para este fim

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se acrescentou à discussão uma série de interpretações,por vezes em forma de excurso. Os exemplos, nestescasos, e também para as referências no texto, foramtirados das literaturas germânicas e românicas, e porvezes também da poesia grega e latina. Se nesta empli-tude reside mais outra diferença a distinguir este livrode outras introduções, é devido à convicção de que nãohá ciências nacionais da literatura, de que as forças queconstituem a estrutura linguística da poesia bem comoa sua forma são quase em toda a parte as mesmas,e de que a erudição autêntica e vasta aprofunda a com-preensão da obra isolada. A própria história literárianos ensina a ver cada vez com mais clareza o entrele-çemento e a base comum das literaturas européias.Talvez neste ponto estejamos também no meio de umatransformação fundamental das ideias e dos métodosde trabalho. Ernst R.obert Curtias, no capítulo introdu-tório do seu livro Europãische Literatur und lateinischesMittelalter, combateu a «repartição da literatura euro-peia numas quentes filologias desvinculadas» - e nãosó no que concerne a Idade Média - e exige, em vezdisso, que se dirija «o olhar para o todo». Com a suaobra pôs ele à história literária o marco que a ciênciada literatura possui no livro de Emil Staiger Díe Zeít,aIs Einbildungs.kraft des Díchters, De ambos estespontos de vista parece assim necessário o alargamentoda perspectiva. Criar disposições para isto é um pro-pósito secundário do presente livro.

É o que se pretende também com a bibliografia quedeve ao mesmo tempo completar o panorama da situaçãoactual da investigação. Bibliografias desta natureza sãosempre precárias; sêo-no principalmente na actualidadeque faz das informações bibliográficas seguras e da

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obtenção das novidades um jogo de acaso. Mas execte-mente estas dificuldades faziam por seu lado ver queum apêndice bibliográfico não seria inútil, a despeitodas suas lacunas e da sua insegurança. O autor agra-dece as muitas ajudas que recebeu para minorar asdeficiências.

Para além do seu ceréctee de introdução, o livrodesejaria dar também uma contribuição independentepara vários problemas. Inestimáveis são as sugestõesque o autor recebeu. Ao tentar volver atrás o olharpara se dar conta disto, os pensamentos detém-se prin-cipalmente em duas estações: no tempo de aprendizagemem Berlim sob a direcção de Julius Petersen, e depoisa época de ensino em Lipsie, quando, em reuniões regu-lares com André [olles, muitos novos caminhos foramprojectados em comum.

Deste livro aparece ao mesmo tempo uma ediçãoportuguesa. refundida sobretudo nos exemplos, e emcuja redacção o autor [oi apoiado por um generosqestipêndio do Instituto para a Alta Cultura do Ministérioda Educação Nacional português. pelo que se exprimeaqui sincero agradecimento.

Lisboa, Julho de 1948.

W. K.

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INTRODUÇÃO

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I. Entusiasmo e Estudo

o estudo da literatura pressupõe certos dotes teô-ricos da parte daquele que se lhe dedica. Sem a Iacul-dade de apreender problemas teóricos como tais, decompreender os métodos científicos com os quaís sealcançou a sua solução, e ainda sem a possibilidade depor si próprio os aplicar na resolução de novas ques-tões, fica para sempre vedado o acesso à ciência daliteratura. Exige ainda além disso, como qualquer outraciência, especial vocação para o objecto imediato doestudo. Sem sensibilidade especial para o fenômenopoético seriam vãs e estéreis todas as noções daciência da literatura, e a sua aplicação nunca resultariaconvenientemente. Esta faculdade que nos permitesentirmos o que há de específico na obra poética maní-Iesta-se geralmente por um grande entusiasmo, entu-siasmo esse que, no jovem estudante que se dedicaseriamente ao estudo da literatura, ultrapassa, na maiorparte das vezes, o interesse teórico. E muito Irequen-temente não é só sintoma de receptívidade artística,mas ao mesmo tempo também sinal de força criadoralatente, que espera apenas pelo contacto teórico com aobra poética para ser despertada.

Quanto mais profundo porém é o entusiasmo pelosassuntos literários, tanto maior costuma ser a decepçãono começo do estudo. Pois este, de princípio, não con-tribui para comunicar e aprofundar emoções estéticas,parece mesmo nem se preocupar com elas. Os caminhos

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ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO

seguidos pelo tratamento teórico desviam-se muito daessência da poesia. Em vez de nos deleitarmos com abeleza de um poema, necessário se torna contar sílabase acentos, verificar e aprender esquemas de rimas, ouentão prender-se com palavras isoladas, cuja aparentefacilidade de compreensão é complicada pela investi-gação aturada do seu aparecimento e Irequência de usonoutras obras do mesmo autor ou na dos seus contem-porâneos. Em vez de nos entregarmos sem reserva àforça e violência de um drama, torna-se necessário ana-lisá-lo e dissecá-lo até que, aparentemente, como quetoda a vida se evola dele. É costume então a desilusãotransformar-se em acusação directa às ciências da artepor enfraquecerem a sensibilidade artística ou mesmoa destruirem. Só mais tarde, pela continuação desseestudo, se reconhece como realmente se torna maisprofunda a receptívídade e a compreensão das coisasliterárias. Precisamente como um conhecedor de músicacompreende uma fuga melhor do que um profano, parao qual ela não é mais do que uma série de sons,também o homem com o conhecimento profundo daliteratura entende a obra de um poeta melhor do queaquele para quem esta não passa de atracção passageira.Pois com esta encontramo-nos ainda no domínio dosubjectívo, cada qual lê, como Werther, o «seu Homero»,enquanto que o outro caminho procura penetrar naíndole da própria obra.

Trata-se certamente de uma aproximação. O intér-prete, embora procure ser tão objectívo quanto possível,nunca poderá abstrair da sua individualidade, nem dasua época, nem da sua nacionalidade. A história dasinterpretações da obra de Shakespeare é um dos capí-tulos mais elucidativos da história espiritual da Europa.

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DA OBRA LITERARIA 5

Tudo isto, contudo, não destrói o direito e a necessí-dade de uma apreensão tanto quanto possível objectivados textos literários, nem conseguiu soterrar os impulsospara a atingir. Todo o estudo teórico acerca da obrapoética está inicialmente ao serviço da grande e difícilarte de saber ler. Só quem sabe ler bem uma obra estáem condições de a fazer entender aos outros, isto é,de a interpretar acertadamente. E só quem é capazde ler bem uma obra pode satisfazer as exigênciasinerentes à ciência da obra poética.

2. O Objecto da Ciência da Literatura

Há ciências univocamente adstritas a um determi-nado círculo de objectos. Por exemplo, tudo o quepertence ao mundo dos sons está incluído na ciênciada música. Há porém objectos que caem no campode acção de diversas ciências. Uma floresta, por exem-plo, pode servir de objecto à botânica, à geografia,à economia política, etc.; a unidade de cada ciência éentão constituída por uma perspectiva especial.

A ciência da literatura parece indicar o seu próprioobjecto com a expressão: literatura. Mas o que é quequer dizer «literatura»? De acordo com o significadoda palavra, abrange toda a linguagem fixada pelaescrita. Ora é inegável que há outras ciências quetêm por objecto, no todo ou em grande parte, textos«literários». Todavia um texto jurídico, um dicionário,uma carta comercial, etc., não pertencem, evidente-mente, ao número dos objectos da ciência da literatura.Se aliás esta ciência possui objectos próprios e não é

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6 ANALISE E INTERPRET AÇAO

somente constituída por perspectivas especiais e homo-géneas, têm estes objectos de formar um grupo maisrestrito dentro da «literatura». O século dezoito traçoulimites claros em torno de um tal círculo, que deno-minou «Poesia»: o verso marcava a linha divisória,e quem fazia versos era vate ou poeta. Schiller apelidavaainda o autor de romances de «meio-irmão» do poeta.Contudo no século dezoito amontoavam-se tambémdúvidas sobre dúvidas, se o verso na verdade era umcritério válido, se possuiria a capacidade de distinguira produção poética da não-poética. Para os românticosalemães, contos e romances são os géneros «poéticos»,e um Shelley formula a frase: «The distinction betweenpoets and prose-iotiters is a vulgar ertot», Realmentehoje, para nós, prosadores corno Flaubert, Dickens,Keller, Eça de Qucirós, etc., estão, na essência, nomesmo plano dos poetas de versos. Que um dramaseja escrito em verso ou em prosa, parece-nos, comrazão, indiferente para a sua essência como obra poética.Seria absurdo reconhecer qualidades de obra poéticasó à última versão da Iphiqenie de Goethe, compostaem verso, ou excluir de vez da poesia o Frei Luís deSouse, só porque o seu autor, depois de algumas hesi-tações, se decidiu pela prosa, Ou deveríamos incluirna poesia a parte das comédias de Molíêre escritas emverso, e excluir dela as que são em prosa? Ou rasgara sua Princesse d'Elide, cujo primeiro acto é versífícado,mas os seguintes já não - por falta de tempo, comonota o próprio Molíêre? Ou despedaçar, finalmente,as cenas de Shakespeare conforme este critério? Grandeparte do público de teatro nem sequer repara se umdrama representado é em verso ou em prosa (aliás,

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tanto por culpa de quem escuta como de quem repre-senta). Por outro lado, não podemos considerar poemasautênticos obras versífícadas, dídácticas, no género doDe netute de Lucrécio, as crônicas rimadas da Idade--Média ou ensaios em verso. Desde o Romantismo,os termos Poesia (Dichtunq] e Poeta (Dichter] têmsofrido grande evolução no seu significado intrínseco,processo esse que roi muito mais rápido nas línguasgermânicas do que nas românicas.

Mas embora as obras poéticas em prosa se apro-ximem estreitamente das escritas em verso, para a nossamaneira de ver afastam-se completamente de um textojurídico ou científico. Para demarcação da linha divi-sória não basta serem umas obras produto da fantasiado autor e as outras não. Foi neste sentido que algunsromânticos ingleses quiseram ver na fantasia um Ienó-meno constitutivo da poesia. Mas também o cientistaprecisa de fantasia; e quem ousará decidir se a fantasiade um historiador é na verdade inferior à de um poetaque escreveu um romance histórico ou trabalhou denovo um assunto literário já muitas vezes tratado?

Por este caminho, pois, é impossível formular umcritério que permita a delimitação de um círculo maisestritamente «literário». Para o conseguirmos, temosde partir do seguinte princípio: todo o texto «literário»(no sentido mais lato da palavra) é um conjunto estru-turado de frases fixado por símbolos. As frases, ali-nhadas umas às outras, no texto de exercícios de umagramática, para estudo de qualquer regra, não são umconjunto estruturado, não são, pois, um texto literário.

O conjunto estruturado de frases é portador dumconjunto estrutura do ":e significados. O facto de pala-vras e frases «significarem» alguma coisa reside na

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própria essência da língua. Com isto chegámos porémao ponto em que a particularidade do texto literário--poético se revela.

«Passou o outono já, já torna o frio» - estas duasfrases, por exemplo, poderíamos imaginá-Ias como partede uma conversa banal, entre duas pessoas que falamda época do ano e do tempo. Os significados referem-seneste caso a realidades existentes independentementede quem fala. (Realidade, aqui, não abrange sóobjectos perceptíveis sensorialmente, mas também noçõesabstractas, também objectos ideais da linguagem mate-mática, como ponto, linha; triângulo, etc .. ) No nossoexemplo, trata-se de factos absolutamente reais: agora,no ano que corre, o outono passou, e o frio, o frioautêntico do inverno, aproxima-se. Se, porém, lermosesta linha no ponto em que está inserta, isto é, comoprimeiro verso de um soneto de Camilo Pessanha,deveremos interpretá-Ia por forma totalmente diversa,sob pena de lhe falsearmos o sentido. Aqui os signi-ficados das palavras já não se referem a factos reais.Pelo contrário, os factos aqui adquirem qualquer coisade estranhamente irreal, pelo menos uma existênciapeculiar, absolutamente diversa da realidade. Os factosou, como também diremos, a objectualidade (que, éclaro, abrange também seres humanos, sentimentos,acontecimentos) existem somente como realidade evo-cada por estas frases poéticas. As frases do poematêm a capacidade de provocar a sua própria objectua-lidade. Acerca da realidade do outono do ano de tale tal é-nos lícito fazer observações inúmeras. A objec-tualidade naquele verso é constituída pelas frases quea produzem e a ligação neste caso é tão estreita, queo mundo do poema seria totalmente diverso se alte-

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rássemos a mínima coisa na linguagem, por exemplo,as inversões (quer dizer, a colocação do verbo antesdo sujeito), a repetição do «já», a pausa, o ritmo, osom, o comprimento do verso.

Ganhamos assim dois critérios para distinguirmosdentro da «literatura», na sua acepção mais lata, umcírculo mais estreito. São eles: a capacidade especialque a língua literária tem de provocar uma objectualí-dade «sui generis», e o carácter estruturado do conjuntopelo qual o efeito «provocado» se torna uma unidade.Todo o mais que naquela poesia de Camilo Pessanhavenha a surgir ainda, fica dentro do horizonte traçadopelo primeiro verso.

O círculo assim delimitado pode designar-se poruma expressão, já de há muito usada: chamamos-lhe«Belas Letras» {Belles Lettres}, Em certos casos serádifícil traçar a linha divisória. Mas, reconhecendo fran-camente esta dificuldade e admitindo também a incursãofácil de uma zona para a outra (quantas vezes nãosubstituimos a nossa imagem de uma paisagem, de umacidade, à imagem suqerida pela obra? e quem não leujá uma poesia como se fora escrita, propositadamente,para a sua situação do momento?), isto não quer, porém,dizer que seja ilícito falar das Belas Letras como de umcírculo especial. E ao verso, que há pouco teve de serdestronado como critério exterior, de novo se restituitoda a sua dignidade. A inegável afinidade do versocom as Belas Letras - 'e em tal grau que ele bastanormalmente já para conferir o carácter poético -explica-se por energias peculiares do verso que ajudama provocar uma objectualidade especial. No primeiroverso do poema de Camilo Pessanha reconhecemoscomo a pausa, o ritmo, o comprimento, a cadência

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colaboram na construção e caracterização do mundopoético.

É pois legítimo afirmar que as Belas Letras são oobjecto especial da ciência da literatura, e que, em facedos outros textos, se apresenta como algo de suficiente-mente diferenciado.

Contra esta maneira de ver algumas objecções setêm erguido. O defensor mais apaixonado de umadelimitação mais restrita do objecto é o filósofo italianoBenedetto Croce, que com máxima clareza nos expôsas suas ideias na obra La Poesia. lntroduzione altaCritica e Storia delta Poesia e delta Lettereiure, Crocesepara rigorosamente a poesia da literatura. A «espres-sione lettererie» é um fenómeno da civilização e dasociedade, tal como a cortesia. Consiste na har-monização das «espressioni non poetiche» (como «lepessioneli, prosestiche e oratorie o eccitanti») com a«espressione poetica». A literatura não possui poissubstância própria; é, sim, o belo vestuário do senti-mental-subjectívo, do díscursívo. do recreativo e doinstrutivo: as quatro classes de literatura admitidas porCroce. Poderíamos aceitar esta classificação. Ficamos,porém, surpreendidos quando vemos tudo o que, segundoCroce, não pertence à Poesia e dela está separado porum abismo. No número dos excluídos não figuramsomente oradores, cientistas, especialmente historiadores;aparecem também Horácio, Fíeldínq, Scott, Manzoni,Víctor H ugo, Schiller com o seu Guilherme TeU,Os Lusiedes, Byron, Musset, Molíêre. Em nenhumdeles se manifesta pois o Ienómeno poético (ou só semanifesta parcialmente) e são portanto excluídos daCritica e Storia della Poesia.

Prova-se assim que as determinações, segundo Croce,

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de literatura por um lado e de poesia (Dichtung) pelooutro (identidade de conteúdo e forma; expressão dacompleta «humanitas»; apreensão do particular no uni-versa I e více-versa: submissão à beleza una e indivisível)não são suficientes para determinar univocamente a queclasse pertence urna obra. Em Croce parece ser a suareceptívídade especial para o lirismo a determinantedos seus juizos. Assim, todos os passos de urna obraque sejam pontos basilares de estrutura, incorrem comoque a priori lia suspeita de serem apoéticos, (Ao passoque para nós a estrutura é uma qualidade essencialdas Belas Letras.)

Seja como for, não nos parece legítimo excluir donúmero dos objectos da ciência da poesia Moliêre,05 Lusiedes, Fieldinq, Horácio, etc. Para afastarmos,porém, as produções escritas de historiadores, cientistase oradores, basta o já mencionado critério: que as BelasLetras criam a sua própria objectualidade.

É vasto o âmbito das Belas Letras. Evita-se assima situação a que chegou Croce, devido à sua atitude.Pode-se dizer que depois de escritos os livros sobreDante, Arrosto, Goethe, a Poesia espanhola, etc., chegouao seu termo a Critica e Storia delle Poesia e temde esperar pelo aparecimento de novos poetas. Poroutro lado, atribuir (como fizemos) um tão vastoâmbito às Belas Letras, não implica que toda a matériaabrangida pertença à mesma categoria. Persiste umadiferença entre Poesia e Literatura, e a orientação deCroce e a sua classificação da literatura parece-nosexcelente como base para urna mais rigorosa diferen-ciação.

Se, mais acima, verificámos já não serem os termosde Poesia e Poeta delimitados no seu significado pelo

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«verso», temos agora de acrescentar como conclusãopositiva que a sua nova significação é determinada pelonível da sua categoria. Poeta e Poesia tornaram-senoções valorativas. É indiscutível que, na Poesia, surgena sua mais intrínseca pureza a essência poética. Não épossível porém marcar com nitidez as linhas que separamPoesia e Belas Letras, e não podemos indicar nenhumaparticularidade ontológica que nos permita delimitar aPoesia como área isolada.

Algumas histórias da literatura parecem, por outrolado, estar em contradição com a nossa determinaçãodo objecto da ciência da literatura. Assim encontramosna Histoire de Ia littéreture [rençeise de Lanson capí-tulos sobre filósofos, oradores, historiadores. O motivodesta inclusão reside na qualidade estílística dostextos tratados, que os aproximava das «belas» letras.Vai ainda mais longe a Cambridge Historq of EnglishLitereture. Abrange conscientemente «the literetute ofscience and philosophu, and that of politics and econo-mies ... the newspaper and magazine ... domestic lettersand street songs: accounts of travei and records ofsport», Se os autores admitiram a noção «Literatura»no seu sentido mais lato, ou se, penetrados da con-vicção de que as Belas Letras são um fenómeno sociale histórico, nos quiseram também dar apontamentossobre a terra onde têm as suas raizes, é esta umaquestão que deixaremos em suspenso. Trata-se, comose vê, em primeiro lugar, do problema de como sedeve escrever a história da literatura, problema esteque podemos reservar para outra conjuntura. Aliás, acontradição na determinação do objecto é só aparente,pois esses autores não tocam na área particular dasBelas Letras e não porão em dúvida ser esta o objecto

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próprio da ciência da literatura. Nós, contudo, reconhe,cemos que, além do objecto propriamente dito da ciênciada literatura, existem certos problemas histórico-literá-rios que levam necessàríamente à inclusão de outrosobjectos ainda.

a mais importante destes objectos é a figura doPoeta. Devemos sublinhar em princípio que o Poetanão é imanente ao texto literário, que não é ímprescín-divel para compreender a obra conhecer-se bem o autor.a Poeta não está incluso no próprio objecto da ciênciada literatura. Esta não precisa de desistir do seu tra-balho, nem a história da literatura de abandonar a pena,quando se haja de tratar de contos, canções popularese outras obras de origem anônima ou colectiva. Deve-mos acentuar esta separação com toda a nitidez, con-trapondo-nos a uma teoria já obsoleta que unia poetae texto por forma inaceitável. Houve mesmo casosextremos em que, esquecendo o texto como verdadeiroobjecto da ciência da literatura, se pôs de lado aobra realizada linguisticamente, para apreciar «a obrana alma do autor»; era esta que o leitor devia repro-duzir em si e que a crítica literária devia reconstituirna sua máxima pureza. Esta teoria, espalhada pelosfins do último século, encontra ainda adeptos em tra-balhos de data mais recente. Por exemplo, na suaobra La Biographie de l'ceuvre littéreire, Esquisse d'uneméthode critique, Píerre Audiat díz-nos : «Elle (Tceuvre]reptésente une période dans Ia oie de [' écrivein, périodequ' on pourreit à Ia tiqueur chronométrer L'ceuvre estessentiellement un sete de Ia oie meniele » (p, 39 seg.).

Foi a Fenomenologia que também para este pro-blema nos trouxe a libertação desta interpretação psí-cologística. Dos dois trabalhos mais importantes dos

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últimos tempos para a determinação do objecto daciência da literatura e esclarecimento da essência detextos literários, um deles é da autoria do investigadorpolaco Roman lngarden, discípulo do filósofo Husserl:Das literetische Kunstwerk (A obra de arte literária);o outro é de Günther Müller: Über die Seinsweise vonDichtunq (Sobre o modo de ser da Poesia). (Outrostrabalhos recentes estão indicados na Bibliografia nofim do livro.)

Se a obra poética, como tal, constitui o objectocentral da ciência da literatura, não podemos contudodeixar de admitir numa zona mais vasta em torno dessecentro as questões referentes à origem, às fontes, àgénese, à actuação, à influência, ao seu significadoperante correntes, épocas, etc.: sobretudo as questõesrelativas ao poeta e que deste se ocupam. Aproxi-mámo-nos, desta forma, da concepção da ciência daliteratura e suas ramificações.

3. Conceito e História da Ciência da Literatura

O presente livro tem como objectivo ser uma inicia-ciação ao conjunto de problemas postos por uma obraliterária como tal. Não se propõe estudar ou apresentaruma obra determinada ou um determinado poeta ou umaépoca ou um género literário nas suas particularidades.Embora não falte exemphfícação prática, os exemplosservem somente para ilustrar uma forma de trabalhoou noções básicas, gerais. É o conjunto das questõesteóricas, ou, se nos é dado recorrer a palavra de maiorresponsabilidade, o seu sistema que constitui a ciênciada literatura. Como ciência viva, o seu sistema não

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conhece balizas; precisamente nos últimos decênios,quantas modificações tem sofrido! Aliás, toda a obrarecente de importância traz consigo uma modificaçãoqualquer. Quem queira penetrar na ciência da lite-ratura não pode esperar ser levado pela mão de umguia seguro, por caminhos solidamente construídos queo conduzam a metas fixas. Logo que penetre maisprofundamente no estudo e na investigação, será con-vidado, sem cessar, a tomar posição própria e a decidir;não raras vezes se verá assaltado por dúvidas acercada viabilidade dos caminhos até então trilhados e nãosaberá ao certo se eles avançam suficientemente longee na devida dírecção.

Uma parte muito importante das questões teóricasé a que se refere à essência da obra poética. Enquanto,como observamos, a Poesia é caracterizada como potên-cia especial da linguagem, a sua investigação e estudoconstituem uma parte da ciência da língua. Ciência dalitetratura e ciência linguística estão intimamente ligadas.Na prática, deu-se realmente uma separação, e a espe-cialização continua a acentuar mais a unilateralidade.Esta evolução, porém, não está de acordo com as coisase prejudica a eficiência do trabalho. O historiador daliteratura tem de possuir sólida cultura linguística, atéquando se dedica só ao estudo de obras na línguamaterna, e o linguista só pode lucrar com a investigaçãoda linguagem onde ela atinge a vida mais intensa, isto é,na Poesia.

As tentativas de determinação da essência da obrapoética não são características do pensamento moderno.A Poética de Aristóteles é um dos primeiros grandesmonumentos representativos dos resultados da reflexãosobre a essência poética. Só a conhecemos em fragmento:

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exerceu todavia grande influência sobre muitas outrastentativas posteriores. Quem se ocupar com a essênciada tragédia, ainda hoje será obrigado a haver-se comArístóteles. "Seguindo pois o seu exemplo, chamaremosPoética àquela parte da ciência da literatura que tentacaptar a essência da Poesia e das obras de arte poéticas.Mais tarde se observará como ela pode dividir-se emdeterminadas zonas de problemas. Em todo o caso,representa o círculo mais interior da ciência da lite-ratura.

Citámos a Poética de Aristóteles como um dosprimeiros monumentos da ciência da literatura. Da épocaromana avulta sobretudo a obra de Horácio Epístolaad Pisones que, desde Ouíntílíano, se conhece sob otítulo de De arte pcetice, A par destas duas obrasvêm colocar-se outras como Cretor, Partitíones, Topicede Cícero, a lnstitutio Oratoría de Quintiliano, etc.Foram precisamente estes escritos que influenciaramos esforços teóricos da Idade-Média, que se fixaramnas duas disciplinas da Retórica e da Gramática.Influência decisiva exerceu então a poética antiga nosesforços teóricos dos humanistas e mais tarde dos pen-sadores dos séculos XVII e XVIII. Devido ao espíritoespecial predominante nestes séculos, todos os esforçosadentro da poética foram sempre feitos com a ídeiade encontrar leis fixas, segundo as quais a Poesia seoriente e deva orientar. Eram normativas as poéticasdesta época e exigiam da prática a submissão às suasnormas.

Quem queira ocupar-se pois da Poesia desses tempos,para sua completa compreensão terá de adquirir O

conhecimento destas poéticas, que são simultâneamentemarcos na história da ciência da literatura. Designamos

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algumas das mais importantes, precedendo-as de algunstrabalhos sobre a poética da Idade-Média:

E. Faral, Les Arts poétiques du 12e et 13e siêcle.Paris, 1923;

H. Brinkmann, Zu Wesen u, Form mitellslterlicherDichtunq, Halle, 1928;

C. H. Haskíns, Studies in Medieval Culture, Oxford,1929;

O. Baccí, La Critica Lettererie (dalI' Antichità eles-sica ai Rinascimento) , Milão;

H. Glunz, Die Literereesthetik des Mittelelters.Bochum, 1937;

E. R. Curtíus, Zur Litersreesthetik des Mittelelters,Zeitschr. f. romano Phtlol. 1938;

id., Dichtung U. Rhetorik im Mittelelter. DeutscheVierteljahrsschr. f. Geistesgesch. U. Literatur-wiss. 1938;

íd., Europêische Litetetur und lateinisches Mittel~elter. Berna, 1954;

August Buck. Italienische Dichtunqslehren, Teil I:Vom Mittelelter bis zum Ausgang der Renaís-sance. Dissertação Ktel, 1942;

J. W. H. Atkins, English Litererq Criticism: TheMedieval Phase, Cambridge, 1943.

Poéticas do Humanismo:

Híeronímus Vida (1520, resp, 1527);Trissino (1529, resp. 1563);Ant. Víperanus (1558, 1579):Ant. Ríccobonus (1587);J. Pontanus (1594);

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G. J. Vossius (1647);a mais importante é a de Julius Caesar Scaliger:

Poetices libri septem (1561).Obras expositivas da poética humanística:K. Borinski, Dte Poetik der Renaissance, 1886;J. E. Spingarn, A Historsj o] Litererq Criticism in

the Renaissance, Nova Iorque, 1925.C. Trabalsa, La Critica Letteraria nel Rinascimento

(Storia dei generi letterari). Milão.

Poéticas italianas:

Minturno, Arte poetice (1563);Castelvetro, Comentário a Aristóteles (1570);Tasso, Discorsi dell'Arte (1587);Muratori, Perfetta Poesia (1705/06);Giovan Víncenzo Gravina, Ragión poética (1708).Obras expositivas K. Vossler, Poetische Theorien in

der itelien, Friihreneissence, 1900; C. Trabalza,v. sup.

Poéticas francesas:

Ou Bellay, Déjense et Illustration (1549);Jules de Ia Mesnardíêre (1640);Os autores que tomaram parte na «Querelle du Cid»

e na «Querelle des enciens et modernes»:Boíleau, Art poétique (1674);P. André, Essei sur le Beau (1711);De Ia Motte, Discouts sur Ia tragédie (1723);Voltaire, Essai sur ia poésie épique (1726/29);Batteux, Les Beeux-Arts réduits à un même prín-

cipe (1746);Díderot, Sur le Beeu (1751);

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Oras expositivas: René Bray, La [ormetion de Iadoctrine clessique en Frence, 2.a ed., Paris, 1931;Georges Lote, La poétique clessique au XVIII"siêcle.

Poéticas espanholas:

López Pínciano, Filosofia antigua poética (1596);Lope de Vega, Arte nuevo de hecer comedias ( 1609) ;F rancísco Cascales, Toblas poéticas (1617);Graclán, Agudeza y Arte de lnqenio (1648);Luzán, Poética (1737);Arteaga, De Ia belleze ideal (1788);Obra exposítiva: Menéndez y Pelayo, Historia de tas

ldeas Estéticas en Espana, 5 vols., Madríd, 1940.

Poéticas alemãs:

Opítz, Buch von der deutschen Poeterei (1624);Georg. Ph. Harsdoerffer, Poetischer Trichter (1653);Gottsched, K ritische Dichtkunst (1730);Breitinger, Critische Dichtkunst (1740);Baumgarten, Aesthetik (1750/58);Lessing, Laokoon (1766);íd., Hemburqische Dramaturgie (1767/69);Sulzer, Allgemeine Theorie der schõnen Künste

(1771/74) ;Obra expositiva: B. Markwardt, Geschichte der

Poetik I. Halle, 1937. 11, 1956.

Poéticas inglesas:

G. Puttenham, Art of English Poesy (1589);Dryden, Essay on Dremetic Poesy (1688);

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Pope, Essay on Criticism (1711);Hogarth, Analysis of Beauty (1753);Burke, The Sublime and Beautiful (1756);Lord Kames, The Elements of Criticism (1762);Hugh B1air, Lectures on Rhetoric and Belles-Lettres

(1783) ;Obras expositivas: Saíntsbury, Historq of Ctiticism,

1902; segs.; J. W. H. Atkíns, English LitererqCriticism : The Renescence, London, 1947; 17thand 18th centuries, ib., 1951.

Poéticas portuguesas:

Luís António Verney, Verdadeiro Método de Estu-dar (1746/47);

Francisco José Freíre, Arte poética (1748);Francisco de Pína de Sá e de Meio, Arte poética

(1765);Soares Barbosa, Poética de Horécio (1791);Obra expositiva: Hernâni Cidade, O conceito da

Poesia como expressão da cultura, Coímbra, 1945;2.a ed., 1957.

Uma característica das Poéticas citadas (e das mui-tas não mencionadas) era a sua posição normativa.O «crítico» julgava possuir nelas os estalões para com-preender e julgar toda a obra literária como tal. Normasidênticas poderiam servir para aquilatar do valor detodas as obras de todos os tempos e povos, pois, segundoo pensamento ilumínista, só havia uma estética poéticae um único «gosto». Chegaram até nós esquemas prá-ticos de avaliação, pelos quais se investigava do méritode cada poeta segundo determinadas categorias (como

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inuentio, versiiicetio. constructio, etc.). e lhe eram con-cedidos de O a 20 valores. A Homero é adjudicadasempre a nota mais alta.

O século XVIII, porém, devia simultâneamente darinício a outra forma teórica do estudo da Poesia. Seaté aí se reconhecera, no encalce de Horácio, que «pro-desse et delectete» eram as verdadeiras funções da artede poeta r e também as suas qualidades constitutivas,agora sentia-se que na própria vívência artística outrasfacetas da alma eram impressionadas, além das do deleiteestético e da compreensão intelectual. (Uma exposição,orçada em 4 volumes, da crítica literária desde meadosdo século XVIII até à actualídade é agora apresentadapor R. Wellek: History af Modern Criticism, vols. I e li,

Vale Univ. Press, 1955.)Para melhor se compreender a nova maneira de

sentir, pode servir-nos um exemplo que muitos dos lei-tores, certamente, conhecem por experiência: chega-sea uma cidade desconhecida e vaqueía-se pelas ruas.De súbido, encontramo-nos diante de uma construção,uma igreja, talvez, aparição surpreendente pelas suasnobres proporções, pela harmonia de todas as partes,pela sua beleza. Reconhecemos, digamos, um monu-mento gótico, mas gostaríamos de saber mais algumacoisa... E sabemos depois tratar-se de uma construçãodo século XIX! Apodera-se de nós um sentimento devergonha; o chão parece querer Iuqir-nos debaixo dospés. Quebrou-se, de repente, o contacto íntimo coma obra. Sem dúvida, persiste a impressão artística; nemuma só pedra se deslocou; porém a emoção estéticapara o observador moderno constituiu aparentementesó uma parte da impressão geral. Pensava ouvir uma

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mensagem transmitida pela obra, e afinal ouve apenasuma mentira. Julgara ter na sua frente a realizaçãoplástica dum desejo de expressão e sua realização neces-sária e única, e depara com uma confissão de impotênciaartística. Não observou a obra somente como menu-mento estético, mas, numa palavra, como documento.

Ou um exemplo inverso. Ouve-se uma poesia. Poucaimpressão nos faz, pouco nos diz. Sabe-se depois serde um poeta por nós altamente apreciado. Lê-se denovo, e como que nos parece outra a poesia, emboranenhuma palavra nela fosse alterada. Parece-nos agorasignificativa, cheia de rico conteúdo. Surge-nos agora,neste horizonte mais vasto, c orno documento, comoexpressão de um criador. A vivência da obra comodocumento é uma vivência do individual, do históricoportanto. Não discutimos aqui se esta vivência repre-senta enriquecimento ou empobrecimento da emoçãoestética pura; limitamo-nos a verificar que esta evoluçãofundamental na emoção provoca da pelas obras de artesó se realizou no século XVIII. A nova atitude, porém,atesta simultânea mente traços essenciais do objectoagente e dos impulsos que o produziram. Deu-se assimuma modificação na maneira de interpretar a Poesiae na concepção do artista. O século XVJII criou as noçõesadequadas ao novo estado de coisas e formulou as novasquestões que ele implicava.

Os primeiros desta nova orientação foram sobretudopensadores ingleses e alemães. Vamos enumerar alqu-mas das novas ideias da «Ciência da Literatura»:

1) A toda a obra de arte são inerentes um «siqnifi-cado» próprio (Sinn) e uma «essência» (Gehalt).

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2) A obra é «a expressão» (Ausdruck) de umcriador.

3) O poeta é o protótipo do espírito criador.

'4) Ao lado do poeta reconheceu o século XVIII indi-vidualidades criadoras no «espírito da época»[Zeitqeist ) e no «espírito do povo» (Volksgeist).

5) A obra poética é um documento «histórico».Estreitamente ligada à nova concepção da his-tória, desenvolvida no século XVIII, resultou comoexigência para a compreensão absoluta de umaobra a necessidade de lhe conhecer as premissashistóricas. No seu artigo sobre Shekespeere,Herder forneceu-nos um exemplo de como oconhecimento da história da Grécia, ou daInglaterra, pode ser útil para a compreensão dodrama grego, ou isabelino.

Com isto novos caminhos se abriram e, em parte,foram seguidos. Ao lado da avaliação estética da Poesiasurgiu a interpretação histórica e descritiva; junto da«poética» aparece-nos uma verdadeira «História daLiteratura». Os ramos da história da literatura gerale nacional foram constituídos pelo Romantismo comodisciplinas científicas. Enquanto homens como Young,Hume, Wínckelmann, Herder e outros se tornavamos propulsores das novas ídeías, M?" de Staêl (Del'Allemagne) e August Wilhelm Schlegel (Vorlesungeniiber dramatische Kunst und Literetur} punham em prá-tica a nova maneira de pensar. Se não eram os primeirosnem os melhores intérpretes, eram os que maiores efeitossabiam obter. Em todas as universidades, a pouco epouco, iam sendo criadas cadeiras de literatura; torna-

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rarn-se centros de estudo teórico da literatura, emboraprecisamente neste ramo seja a contribuição de críticos,dramaturgos ou simples amadores de maior importânciado que em quase todas as outras ciências. E sobretudohá que nomear os próprios poetas, que em França, atéaos tempos mais recentes, disputam o campo aos cien-tistas «de ofício».

O centro de gravidade do trabalho recaiu, noséculo XIX, a princípio, na história da literatura, enquantoque a poética, desacreditada e comprometida pelastendências normativas do século XVIII, só por poucospensadores era cultivada. Durante algum tempo, ciênciada literatura e história da literatura parecem confun-dir-se. Dentro da história da literatura, revelou-se comomais fecunda a noção do poeta criador. Basta consultara maioria das histórias das literaturas ainda hoje repre-sentativas, para verificar que, no fundo, não são maisdo que um encadeamento de monografias sobre poetas.

O chamado Positivismo limitava o trabalho práticosobretudo a três sectores: edição crítica dos textos,investigação das fontes e génese das obras e, finalmente,estudo minucioso e tanto quanto possível completo dascircunstâncias da vida do poeta. E nestas três zonasde investigação conseguiu a história da literatura doséculo XIX resultados realmente extraordinários. Poréma superação filosófica doPositivismo logrou dilatar asbases e princípios teóricos, e assim abrir novos hori-zontes às diversas modalidades de trabalho. Desde osfins do século passado se anunciaram e puseram à provanumerosos métodos novos, de tal forma que o entre-choque das opiniões foi designado como crise da históriada literatura. Além da filosofia, a psicologia, a ciênciada arte, a sociologia, a biologia e outras ciências têm

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sobre ela exercido uma influência mais ou menosdecisiva.

A discussão pode transformar-se em cooperaçãoutilíssima e produtiva, logo que se imponha e vença acerteza de toda a ciência da poesia possuir nas BelasLetras urna zona nuclear corno objecto próprio, cujainvestigação aturada constitui a sua principal tarefa.Nos últimos decéníos renovou-se efectivamente o ínte-resse pela investigação da essência poética. Com iqual-dade de direitos, a poética surge ao lado da história daliteratura e é-lhe reconhecida a primazia corno áreacentral da ciência da literatura. Com isto surgem novastarefas para a história literária, e Emil Staiger inter-pretou bem o sinal dos tempos ao dizer, na introduçãodo seu livro Die Zeit ais Einbildungskraft des Dichters,em 1939, que a história da literatura «está hoje muitoprecisada de urna renovação, que está já saturada como que fez até agora e que, para perdurar, tem corno querecomeçar do princípio».

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PREPARAÇÃO

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CAPITULO I

PRESSUPOSTOS FILOLÓGICOS

Antes de se poder dar início ao estudo científico deum texto literário, urge satisfazer certas condições pré-vias, designadas como pressupostos filológicos, comunsa todas as ciências que usam textos como base detrabalho.

I. Edição Crítica de um Texto

Seja como for que um texto haja de ser investigadoa primeira condição preliminar é a sua autentici-

dade. Tratando-se de um livro de aparição recente,estas exigências não são visíveis. O romance novo,comprado na livraria, foi composto pelo tipógrafo,segundo o manuscrito do autor. Durante a leitura dasprovas, o próprio autor corrigiu todos os erros (como auxílio da tipografia e da casa editora) e introduziutodas as modificações que lhe pareceram necessárias.Tal qual agora aparece, todas as palavras e a pontuaçãodo romance concordam com a vontade do autor, e,portanto, são autênticas. Pode definir-se como textode confiança aquele que representa a vontade do autor.

Surgem, contudo, dificuldades, quando se trata detextos cujos autores já morreram, e que continuam a

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30 ANALISE E INTERPRET AÇAO

ser impressos. Quem vai à livraria comprar uma ediçãobarata d'Os Lusiedes, pensa ter nas mãos o texto ver-dadeiro. Após uns momentos de reflexão, inevitável-mente acabará por concluir que entre o leitor e o poetavárias pessoas se têm intrometido. Primeiramente, háque contar com o homem que modernizou a ortografia,quando da última impressão. Ora, para a verdadeiracompreensão da obra, bem como para a investigaçãoteórica, é geralmente de pouca importância a ortografiaem que esta se nos apresenta. Já é porém mais impor-tante o caso da pontuação. Uma vírgula, substituídapor um ponto, e outras modificações análogas, íntro-duzidas pelo último editor, com o fim de facilitar aleitura, podem alterar o significado de uma frase. Podeainda ir mais longe o compreensível desejo de um editorao tentar facilitar a leitura de uma obra e conservá-Iaviva, e talvez esse desejo o leve a substituir por formase palavras correntes formas antiquadas, palavras que opúblico de hoje não entende à primeira vista. Podeacontecer também que, no trabalho de composição,alguma palavra fosse substituída, por equívoco, pondoo tipógrafo, por exemplo, em vez de ePhebe», palavrapara ele desconhecida, o termo «Phebo», o deus do sol,seu conhecido, ou, em vez de «filho de Maia», o «filhode Maria». Estas alterações já vamos encontrá-Ias nasegunda impressão d'Os Lusíadas; é fácil imaginar oque acontece quando, mais tarde, um outro impressortoma como base uma tal edição, introduzindo aindaoutros novos equívocos, mal-entendidos e alterações.A falta de entendimento e a abundância de ideias(mal empregada) contribuem igualmente para a cor-rupção dos textos. No caso d'Os Lusiedes, foram taisas avarias causadas que, no ano de 1921, se verificou

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que «quase não há estância que tenha escapado a qual-quer alteração».

O único meio de salvação parece ser o regresso àprimeira edição, mais próxima da vontade do poeta.Porém, nem todo aquele que deseja ler o texto autênticodos Lusiedes está em condições de comprar a primeiraedição. Bastará ler uma nova edição que ofereça otexto «autêntico». Uma tal edição chama-se «ediçãocritice».

É certo que, no caso d'Os Lusiades, como no dequase todas as obras antigas, logo surgem novas inter-rogações. Será autêntica a primeira impressão? Emséculos passados, os poetas, geralmente, não reviam asprovas. Depois de entregue o manuscrito para publi-cação, o seu destino furtava-se, por assim dizer, à pro-tecção do autor. Em todo o caso, temos de contar commodificações, feitas pelo impressor, ou por negligênciae descuido, ou propositadamente. Acrescem ainda asmodificações exigidas pelas instituições de censura. Nãoera o poeta, mas sim o impressor que tinha de tratarcom elas. Assim sucede que a edição crítica, nos textosmais antigos, só aproximadamente nos deixa ver aintenção do poeta.

N'Os Lusíadas aparecem, ainda, dificuldades deordem particular. Há duas edições, conservadas aténossos dias, com a indicação da data de 1572. Emmuitos pontos divergem sensivelmente. Foi necessá-ria a mais cuidadosa investigação para reconhecer a«autêntica» e desmascarar a chamada edição «E» comoefraude comercial», posterior.

Pelos motivos acima indicados, o organizador deuma edição crítica não pode contentar-se meramentecom a reedíção fiel da primeira edição. Uma tal repe-

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tição, ainda que seja sob a forma de [ec-simile, isto é,fiel à letra e a à forma, não é um texto crítico. Poroutro lado, porém, o organizador crítico terá de indicarno chamado «Aparato Crítico» todas as modificaçõespor ele efectuadas, mesmo quando se trate da correcçãode um erro gráfico evidente, fundamentando essasalterações e fornecendo assim ao leitor a possibilidadede investigar e decidir por si próprio. Se, além daprimeira impressão, existisse o manuscrito do poeta- o que, infelizmente, não acontece com Os Lusíadas-,deveria o organizador reproduzir no aparato todos ospassos que, no manuscrito, são divergentes.

Criou raizes o hábito de designar as versões ímpres-sas com maiúsculas latinas (A, B, C, etc.) e as versõesmanuscritas com minúsculas (a, b, c, etc.).

No princípio do aparato crítico encontra-se sempreuma lista das siglas e abreviaturas usadas, e umaexposição dos princípios segundo os quais a edição foiorganizada. Quem dela se servir, deverá estudar asduas, e estudá-Ias detidamente, antes de começar otrabalho. Para alcançar maior uniformidade nas ediçõesportuguesas sugeriu Manuel de Paiva Bolêo, na suaIntrodução ao estudo da Filologia portuguesa, Lisboa,1946, pág. 70: «que um pequeno grupo de historiadorese [iloloqos, de comum acordo... elaborasse as normaspara a edição de textos portugueses».

A situação complica-se ainda mais quando há díver-sas edições «autênticas», isto é, admitidas pelo poeta.Nos últimos séculos, tornou-se quase regra apareceremdiversas edições da obra, já em vida do poeta, e apro-veitar este a ocasião para efectuar modificações. maisou menos extensas. Qual a edição que deve servir

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de base para quem publica um texto crítico? Só duasedições podem entrar em linha de conta: a última vistapelo próprio autor, a chamada «edição da última mão»ou «definitiva», a que representa a sua última vontade,e a primeira, a «editio princeps», Pois editada a obra,ela separou-se do seu autor e começa a sua própria vidae a sua actuação. Em geral dá-se preferência à ediçãode última mão para servir de base ao «texto crítico».É o resultado daquele conceito «filosófico» de «Poeta»,que para o século XIX valia mais do que o da obra.Seja qual for, porém, a edição escolhida para base dotexto - ao encarregado de a publicar cabe o deverde indicar no aparato crítico todas as variantes dasedições cuidadas pelo autor e dos manuscritos acasoexistentes. Reconhece-se assim qual o papel de umaparato crítico: - é o reposítórío da génese de umaobra e revela algo dos segredos da evolução crítica doseu criador.

a suíço Conrad Ferdinand Meyer nunca se cansavade corrigir as suas obras. Há muitas poesias suas deque existem 4, 5, 6 versões diferentes. Nelas possuímosrico material para investigar a evolução íntima desteartista e, simultânearnente, observar a potência e a forçaprodutiva de motivos líricos.

K. Wais compilou um volume utilíssimo de Líricafrancesa: Doppelfassungen [renzõsischer Lurik vonMarot bis Valéry (Versões duplas de lírica francesa,desde Marot até Valéry ) (Romanische Qbungstexte,Halle, 1936).

Muitos romancistas introduziram também modifica-ções' nas obras já impressas. Sobretudo no que diz res-peito aos romances mais célebres do século XIX impõe-sea escolha de uma edição de confiança. Manzoni, por

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exemplo, alterou profundamente a linguagem do seucélebre livro I Promessi Sposi. As edições fundamentaissão a de S. Caramella (Scrittori d'Italia) e a do segundovolume da edição completa (Le opere di AlessandroManzoni. Edizione dei Centenario 1827-1927, Soe. Ed.Dante Alighieri). Tão descontente ficou mais tardeGottfried Keller com a primeira versão do seu livroDer grüne H einrich que amaldiçoou a mão que nova-mente lhe desse publicidade. A investigação posteriornão fez caso disso e, apresentando ao público a reim-pressão da primeira edição, desaparecida do mercadolivreiro, não salvou somente uma obra literária consi-derada por muitos conhecedores de mais valor do quea segunda versão, mas proporcionou também materialde comparação que nos permite fazer deduções impor-tantes sobre a evolução espiritual e artístia de Keller.

Na França, Flaubert foi um dos trabalhadores maiscuidadosos de que há conhecimento. Já antes de seremimpressas, quase todas as suas obras sofreram múltipla!modificações. A primeira versão da Éducetion Senti-meniele, que aliás em pouco coincide com o romance,só em 1912 foi publicada, e só há pouco nos foi dadoconhecer os trabalhos preparatórios e graus de evolução,até à forma definitiva, de Madame Bovary. A ediçãode G. Leleu: Madame Booerq, ébeuches et lragment~inédits, 2 vols., Paris, 1936, permite-nos penetrar nomais íntimo da oficina do grande artista.

Na história do romance, dentro da literatura portu-guesa, é interessante o caso dos textos do Eurico.Segundo parece, o manuscrito perdeu-se. Na «RevistaUniversal Lísbonense» (1842) e no «Panorama:. (1843)apareceram, porém, alguns trechos, antes de a obra

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ser publicada por inteiro, e esses trechos apresentamdiferenças por vezes importantes. Em vida do autorapareceram sete edições, com modificações mais oumenos extensas. A mais recente edição crítica, deVitorino Nemésío, toma como base do texto a últimaedição vista por Alexandre Herculano, e indica, noaparato crítico, quais as divergências contidas nas ante-riores. Como exemplo, citamos uma frase da ediçãode Vitorino Nemêsío (págs. 111~112) com as respectivasvariantes:

«Pelo boqueirão enorme aberto no centro da hastegoda precipitem-se as ondas dos cavaleiros maometanos,e, após eles, a turba dos Berberes, com (34) um bramidobárbaro ... »

(34) com um clamor selvagem e infernal, anúnciode matança e ruína, RUL, N? 4; com clamor selvageme infernal, I.IJ

, 116, 19; com um bramido selvagem, 2.-,115, 19.

Numa advertência (pág. XLI) explica-nos VitorínoNemésio a ortografia e pontuação usadas, bem comoas abreviaturas e números usados:

«Pan. = PanoramaRUL = Revista Universal Lisbonense,Os algarismos que figuram no texto das notes de

rode-pé representam sucessivamente a edição, a páginae é! linha ... :.

Desta maneira o leitor estará em condições deentender e interpretar as modificações realizadas nasdiversas edições. No exemplo dado reconhece-se semgrande dificuldade que Herculano condenou a primeiraforma da indicação do ruído como prolixa e talvez tam-bém como pouco satisfatória quanto ao ritmo. Assim.cortou a aposíção na primeira edição completa. O passo.

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porém, ainda lhe não agradava. Razões de sonoridadee, decerto, também de ritmo levaram-no a substituir«clamor» por «bramido», na segunda edição. Comjustificada ânsia de aperfeiçoamento compreendeu comoa fórmula dupla - selvagem e infernal - era menosexpressiva do que o simples adjectivo. E cortou assim«e infernal». Se, na terceira edição, mudou «selvagem»para «bárbaro», deve ter obedecido em primeiro lugara motivos de sonoridade - por fim, o passo pareceu-lheestar em ordem, pois a edição crítica não regista maisnenhuma variante. Quanto às interpretações explicativasdas diversas modificações (por causa da prolixidade,sonoridade, do ritmo, etc.) é necessário declararmossob o aspecto metodológico: nestas interpretaçõestrata-se primeiramente de suposições. A tarefa consis-tiria em observar todas as modificações, nas suas etapas,para desta forma obter categorias firmes que determinemo trabalho do autor. Em cada etapa espelha-se o grauevolutivo do autor.

A todo aquele que pretenda examinar a históriado texto de uma obra para colher informações sobrea evolução do artista, recomenda-se o seguinte processode trabalho: o exame faz-se de camada para camada,isto é, primeiramente são examinadas todas as modifi-cações da primeira para a segunda, e depois todas asmodificações da segunda para a terceira versão, etc.Toma-se nota de todas as modificações, ipsls oerbis,num verbete especial, e indica-se em cima, no cantodireito, por exemplo, a categoria que parece ser aquelacom mais probabilidades de ter provocado a alteração(concentração, ritmo, sonoridade, variação, maior visi-bilidade, etc.): Desta forma classificam-se em poucosgrupos os últimos exemplos de cada série. (Pode muito

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bem ser que o mesmo exemplo apareça em diversosgrupos; muitas vezes actuam conjuntamente razões desonoridade e de ritmo).

Em seguida começa o exame de cada grupo, poisnão basta verificar ser causa da modificação o sentidode sonoridade; é necessário determinar mais exacta-mente a maneira como o autor reage ao som, aoritmo, etc. Tanto quanto possível, tentar-se-à deduzirdos diversos grupos a unidade da atitude a todos comum,que se encontra por detrás deles. Adquire-se assima base que nos permitirá seguir a evolução do autor.Não deve ser causa de preocupação haver em cadagrau casos que se opõem à integração em grupos, ouaté em contradição aberta com as categorias obtidas.O investigador deve renunciar a ínteqrá-Ios à força emqualquer das categorias. Exigem-se, de todo aqueleque deseja ser bom intérprete, qualidades para sentiras mais pequenas subtilezas. Poderemos quase dizer:quanto maior for o número dos exemplos isolados ouaté contraditórios, tanto melhor; porque então pode tera certeza de ter trabalhado de forma adequada. Poisafinal de contas todas as remodelações feitas pelo artistaà sua obra não constituem nunca um processo mecânico,sujeito a um cálculo exacto. Alcança-se a finalidadesempre que se consegue descobrir a atitude uniformepor detrás das modificações em cada grau.

Se a edição crítica de um texto moderno nos permiteconhecer a sua génese até à última edição revista peloautor, é diferente o que acontece com as edições dostextos medievais. Só em casos excepcionais é quepossuímos a edição «autêntica», isto é, cuidada peloautor. Em geral, só chegaram até nós cópias posteriores,mais ou menos modificadas e alteradas. O organizador

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agora tem de retroceder através das cópias até ir aoencontro da suposta versão do autor. Precisa examinar,comparar e sopesar criticamente as diversas versõesconservadas.

Por vezes, os manuscritos existentes de obras daIdade-Média estão à distância de séculos da época emque o original foi escrito. Por princípio, forçoso setorna admitir terem sofrido muitas alterações, já pormotivos Iinguísticos. Acresce a isto o facto de umcopista da Idade-Média não estar possuído do mesmorespeito pela palavra do poeta que o editor críticomoderno. Torna-se, pois, a edição crítica dos textosantigos empreendimento difícil que exige do editorconhecimentos minuciosos do estado da língua na épocaem que foram escritos os originais, bem como os manus-critos existentes.

A lírica dos trovadores portugueses foi-nos conser-vada somente em colectãneas manuscritas posteriores.Muitos investigadores se têm ocupado com a formapresumivelmente mais acertada. Até certo ponto, é defi-nitiva, no caso das Cantigas de Amigo, a edição emtrês volumes de JOSé J. Nunes (Coimbra, 1926/28).Lemos, por exemplo, no nono verso da cantiga 144:

por outra a quen amava.

Neste passo foram necessárias «conjecturas» decerto peso, isto é, substituições de palavras do manus-crito. No manuscrito do Vaticano e no Cancioneiro deColoccí-Brancutí lê-se, respecativamente, neste passo:

por outra c qrro nana..por outra e êjrro bína,

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Estas duas versões não oferecem sentido e assentamem erros ou «conjecturas» dos próprios copístas, quenão tinham o original diante dos olhos, mas sim ummanuscrito já falseado. Cabia pois o direito e até odever ao crítico moderno de emendar, recorrendo àconjectura, o passo corrupto. Nas Cantigas de Amigoainda o caso não é tão difícil, por só existirem doismanuscritos em que os textos nos foram conservados.Da epopeia alemã dos Nibelunqos, porém, existemII manuscritos completos e mais de 20 fragmentos,todos mais ou menos diferentes uns dos outros.

Não são menores os problemas de texto com quetemos de nos haver na Chanson de Roland. Geraçõesde Iílóloqos esforçaram-se por alcançar o esclarecimentodeste e de outros textos. Lutou-se apaixonadamentepara apreciar bem os manuscritos, definir os princípiosda recomposição dos textos e ainda em torno de con-jecturas particulares. Na generalidade, o estudioso dehoje pode colher os frutos deste trabalho e, pelo menospara as obras mais importantes, encontra edições críticasem que pode confiar suficientemente.

Os textos portugueses medievais só tarde começarama ser apresentados ao público em edições críticas.Faltam ainda textos de absoluta confiança para muitosdocumentos da literatura; em outros casos, surgiramdúvidas quanto à fidedignidade das recomposições publi;cadas. As Anotações críticas ao texto da Demandado Gteel publicadas por [oseph M. Piei, no volume XXI

de Biblos (1946) vieram abalar um pouco a confiançadepositada na edição publicada pelo P." Augusto Magne(Publicação do Instituto Nacional do Livro, vols. r-m,Rio de Janeiro, 1944).

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Pomos termo à série de exemplos com o problemamais célebre até hoje conhecido em toda a história daliteratura: o problema dos dramas de Shakespeare.Gerações inteiras de investigadores devotaram toda asua argúcia ao estudo crítico e reconstituição destesdramas, mas sempre caíram por terra as soluções «defi-nitivas». A dificuldade reside, primeiramente, em nãopoder considerar-se «autêntica» nenhuma das versõesexistentes. As versões pertencem, sobretudo, a doisgrupos: as aparecidas desde 1594, denominadas«in-querto» (<<Quartos») devido ao seu formato, e osin-iolio (<<Folios»), aparecidos desde 1623. Aumentamas dificuldades, pois as respectivas fontes eram livrosde ponto, cadernos de que se serviam os aetores, ecópias feitas durante a representação: como se vê,fontes que de forma alguma podem inspirar confiança.Finalmente, torna ainda mais difícil a recomposição deum texto definitivo o facto de se tratar de textos dedramas concebidos por um autor que vivia no mundodo teatro, escrevia para determinadas representações,sem se importar com um texto definitivo destinado ater existência própria dentro da literatura. Na suaépoca, foi considerada obra-prima na técnica das edí-ções críticas The Cembridqe Shekespeere publicadoem 1863~1866 por W. G. Clark e W. Aldis Wright.Mais recentemente foram postos em dúvida os princípiosbásicos, segundo os quais esta edição foi feita; oideos trabalhos de J. M. Robertson (The ShekespeereCanon, London, 1922~1932) e de [ohn Dever Wilson(The menuscript of Shekespeere's Hamlet and the pro~blems af its trensmission, An essay in criticel biblio-graphy, 2 voIs., Cambridge, 1934). Hoje vem ombrearcom ela a nova edição The Warks. Ed. by Si: Arthur

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Quiller Couch and [ohn Dover Wilson, Cambridge,1921 e seqs., conhecida também como The New Cem-bridge Shekespeere, ainda em publicação.

2. Determinação do Autor

Após a reconstituição do texto crítico surge, comosegunda condição preliminar, a determinação do autor.Na maioria dos casos, sobretudo tratando-se de lite-ratura moderna, não há problema, pois o nome do autorfigura junto do título do livro. Em outros casos, fra-cassará toda a tentativa que se proponha determinara autor de uma obra. :B inútil indagar o nome do autorde canções populares, contos populares, lendas, e, muitasvezes também, de dramas da Idade-Média. Tais obrasforam por tal forma criadas por uma comunidade e parauma comunidade, que é da sua mesma essência seremanónimas.

Ultimamente, para além desta certeza, assentou-seneste princípio: cada obra de arte é um todo completoe só pode ser entendida através da sua própria essência.O conhecimento de um autor não pode oferecer auxílioalgum para a interpretação adequada da obra. Comojá se disse, o ideal seria escrever uma história daliteratura «sem nomes». Depararemos ainda várias vezescom estas mesmas teses, tão dignas de ponderação,posto que em contradição viva com uma boa parte dosmétodos hoje usados. Constituem, evidentemente, umareacção contra a tendência do século XIX para consideraras obras de arte «histõricamente», isto é, tratando-ascomo documentos, como expressão de «qualquer coisa

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de diferente», destacando-se como uma das mais impor-tantes a categoria da individualidade do artista criador.Não é apenas pura curiosidade que nos leva a per-guntar pelo autor de uma obra. O nosso mundo seriaindizivelmente mais vazio e mais pobre se, além doHamlet e do Rei Leer, d'Os Lusiedes, do Werther e doFausto não distinguíssemos as figuras luminosas deShakespeare, Camões e Goethe. Com que íntima e pro-funda satisfação sabemos que, para a moderna investi-gação, Homero viveu e pode continuar a viver para nós,pelos tempos fora! Os defensores das teses enunciadasresponder-nos-ão acharem justa, bela e necessária atentativa de investigar e ressuscitar os poetas, mas quetudo isso pertence a um ramo de uma ciência especial.talvez da Antropologia, em que se poderão estudar,também, os grandes músicos, pintores e outros grandescriadores, mas que, com este conhecimento, em nadase vem beneficiar a obra de arte e a sua compreensão.

No decurso deste livro muitas vezes depararemoscom o problema da autonomia da obra de arte e suasrelações com a realidade, sobretudo com o autor. Aqui,basta indicarmos como a verdadeira compreensão deuma obra muitas vezes depende do conhecimento dequem a escreveu. Como breve exemplo poderá serviraquele caso que, desde 1908, tem suscitado as mais vivasdiscussões em Portugal.

Até essa altura, Cristal, a célebre écloga do séc. XVI,

era considerada obra indiscutível de Cristóvão Falcão.Apareceu então um livro que reputava lendária estaautoria. Dever-se-ia eliminar este nome da históriada literatura, e, em troca, mais cresceria o vulto deBernardim Ribeiro, o suposto poeta de Cristal. DelfimGuimarães, autor desse livro, no ano seguinte, 1909,

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procurou reforçar a sua tese com um segundo volumeque provocou a mais violenta discussão pró e contra.Não se trata aqui de expor os argumentos. (É fácilencontrar esclarecimento sobre o assunto na Históriada Literatura Portuguesa, publicada por A. Forjaz deSampaio, vol. 11, pág. 221 segs., - Capo escrito porManuel da Silva Gaio, - ou no prefácio da ediçãodo Crisfal, de Rodrigues Lapa.) Só nos interessa veri-ficar como a interpretação do Crisfal e da célebre«Carta» depende da decisão que se tomar. DelfimGuimarães exige, naturalmente, uma interpretação ale-górica da «grade» e do casamento secreto, que tãogrande papel desempenham na «Carta», pois Bernardimnão esteve preso durante cinco anos. Da mesma maneira,o Crisfal tem de ser lido em atitude diversa, conformese acredite nas revelações autobiográficas ou não. Aspalavras revestem-se de outra importância, se, na ver-dade, são escritas por um autor que esteve na cadeiapor causa dos seus amores, que, realmente, se viuseparado da amada e para quem o convento de Lorvãose torna sua estadia forçada. Ora, certamente não éargumento a favor da autoria de Falcão o facto denos parecer mais interessante e de mais peso um textode conteúdo autobiográfico. Em princípio, têm razãoas correntes metodológicas modernas que vêem algumacoisa de perigoso e suspeito na maneira como, na obrade arte, se procura descobrir por toda a parte afinidadesbiográficas e simples cópias de modelos. Por tal pro-cesso mais se prejudica do que se favorece a inter-pretação adequada da obra de arte.

No caso especial do Crisfal, porém, um facto his-tórico-literário se vem antepor a estas questões de

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ANALISE E INTERPRETAÇÃO

principio. Esse estranho caso, altamente surpreendente,ainda não foi esclarecido em absoluto: em todos ostempos e em todos os lugares a poesia bucólica contémreferências claras à situação da época e do autor.Já as Écloqes de Virgílio estão cheias de tais alusões.Durante a Renascença ainda mais se intensificou estehábito. Aquele que no Aminto, de Tasso, não com-preende a homenagem ao Duque de Ferrara e as alusõesa pessoas e acontecimentos da Corte, por muito grandeque seja o seu entusiasmo pela obra, não chegará à suaperfeita compreensão.

Ora todo um grupo de romances europeus vemtransformar em traço essencial do género esta caracte-rística da poesia bucólica - a sua relação com a rea-lidade: - nos chamados «romances de chave» o leitordeverá descobrir os «personneqes déquisés», Já Petrarcafizera acompanhar o seu Carmen bucolicum de expli-cações, dizendo: «A natureza deste género literário étal que o seu sentido oculto talvez possa ser adivinhado,mas, se o autor não der as suas explicações próprias,nunca será possível vir a ser entendido». É verdadeque na obra de Petrarca, como nos poemas alegóricosda Idade-Média e também nas Écloqas latinas deBoccaccío. se trata de transcendência moral, e não deuma realidade disfarçada. Não se pode afirmar que asÉcloqas e dramas pastoris do Renascimento e da épocaseguinte possam ser incluídos no número dos poemasde chave ou que o seu efeito tenha dependido das suasrelações com a realidade. O facto de o Cristal contertais relações faz parte da essência de tal género literário.Mas talvez elas não fossem tão notórias e insistentescomo, por vezes, se pensa. E seria falso supor que a

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composiçao teve a sua origem no desejo de uma con-fissão (expressão espontânea de angústias de alma)ou que, por isso, o seu aparecimento tenha despertadotão grande entusiasmo. O seu efeito e o seu valordependem da sua categoria como obra de arte e nãodo revestimento de acontecimentos biográficos.

Ainda outro exemplo frisante de quanto a relaçãode uma obra com o autor influi na maneira de aentender, apresenta-nos a poesia trovadoresca. No anode 1849, Francisco Adolfo Varnhagen publicou o Can-cioneiro da Ajuda. Era de opinião, como antes deleChrístian Bellermann já mencionara, serem todas ascanções de um só poeta - o Conde de Barcelos. Esteprimeiro engano foi origem de um segundo, de formaalguma isolado, mas que se repetiu em muitos paísesao fazer a interpretação da lírica trovadoresca, por setratar de uma época em que a leitura se fazia do pontode vista autobiográfico: Varnhagen viu no Cancioneiroo eco poético de uma história de amor autêntica, deque fora protagonista o pretenso autor.

Também noutros países muitas disputas célebressurgiram sobre questões de autoria. Quase sempre,simultâneamente, é afectada a interpretação da própriaobra. A disputa mais célebre da história da litera-tura é a travada em torno da autoria das obras deShakespeare. Embora, para os investigadores sérios, sepossa considerar terminada a luta, díletantes peque-ninos tentam ainda provar a autoria de Lord Baconou de Lord Rutford, ou de qualquer outro contem-porâneo. Por outro lado, o drama ísabelíno oferece-nosainda muitos outros problemas. A despeito de todo otrabalho realizado, continuam a ser desconhecidos osautores de muitas tragédias e comédias. Na História

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da Litereutre Inglesa de Legouis e Cazamian lê-se, arespeito do drama isabelino: «The unknown remeinsoester than the knoum», E a Cambridge History afEnglish Litereture dedica todo um capítulo às «Playsof Uncertain Authorship Attributed to Shekespeere .•.Se conseguíssemos responder a todas as questões aindaem aberto, bem diverso seria o quadro dessa época asurgir aos nossos olhos.

Também na história da literatura espanhola há aindaproblemas de autoria célebres. A Celestine, que tantoêxito obteve em toda a Europa, na primeira ediçãode 1499 abrangia 16 actos, bem como na impressãode 1501, feita em Sevilha. Na edição sevilhana do anoseguinte ela compunha-se de 21 actos. Nos versos queservem de prefácio, Fernando de Rojas é designadocomo autor dos últimos 20 actos, enquanto que o pri-meiro, mais extenso, é atribuído a Juan de Mena oua Rodrigo de Cota. Já na época imediata começarama surgir dúvidas acerca destas indicações. Depois,Menéndez y Pelayo fundamentou amplamente a teseda autoria única, para toda a obra, de Fernando deRojas. Na sua obra Estudios y Discursos de críticahistórica y litererie (edição de 1941, vol, D, 243 e segs.).entre outros argumentos, lemos: «Seria el más extreordi-netio de ias milagres litererios, y aun psicológicos, elque un continuedor lleqese a penetrar de tal modo en 14concepciôn ajena y a identijicerse de tal suerte con elespiritu dei primitivo autor y con Ias tipos humanos queél hebie creedo», Como se vê, nos problemas de autoriavão integrar-se as questões estéticas e psicológicas maís

profundas. Aliás, a tese de Menéndez y Pelayo nãoconseguiu impor-se, e eis aí o milagre. Observações

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sintáticas, cuidadosamente feitas, levaram de novo àconvicção de que houve um autor para o primeiro actoe outro diferente para os seguintes. Resultou aindamaior o milagre da concordância, desde que se averi-guou terem sido escritos os actos 17 a 21, presurnivel-mente, por um terceiro autor. (Vide a obra deE. Eberwein Zur Deutung mittelelterlichet Existenz,Bona e Colónia, 1933.)

Menos concordante ainda é a opinião dos inves-tigadores acerca de um dos romances mais célebres daliteratura mundial, o Lezerillo de Tormes, As trêsedições diferentes de 1554 apareceram anónimas. Sóem 1605 é que se designou, pela primeira vez, um autor:o geral da ordem de São [erónímo, Juan de Ortega.Dois anos depois, a autoria era atribuída a um outro,Don Diego Hurtado de Mendoza. Esta atribuição con-solidou-se, até que, nos fins do século XIX, foi provadaa sua inconsistência. Desde então surgiram muitospretendentes, entre os quais encontrou o maior númerode adeptos Sebastián de Horozco. Mais uma vez ainterpretação da obra está dependente do autor emquestão e das referências «autobiográficas». De novose invocam últimos princípios como argumentos deci-sivos. Investigadores como A. Morel-Fano (Btudes surI'Espagne) e F. de Haase (An Outline of the Historçof the Novela Picaresca in Spain) defendem O prin-cípio de que o autor deveria ter sido o protagonistados acontecimentos que descreve. Varnhagen acreditavaser a Lírica trovadoresca a história vivida pelo autor- eis a mesma ídeía no romance picaresco. Há muitosdestes exemplos. (Leiam-se, na obra de Fídelíno deFigueiredo Aristarchos, 2.- edição, Rio de Janeiro, 1941,pág. 131 e segs., outros exemplos das discussões sobre

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autorias, não provadas, das literaturas portuguesa eespanhola) .

Em todos os países pululam os enigmas no que serefere aos séculos XVI e XVII. Nos últimos tempos sur-giram dúvidas quanto à autoria do romance francêsmais célebre do século XVII, Le princesse de Clêoes.Antes era considerada como obra de Madame de LaFayette. Não o tinha, é certo, publicado com o seunome, mas parecia indiscutível a atribuição. Mais oumenos, parecia estar resolvida a questão da colaboraçãode Segrais e do Duque de Rochefoucauld - devendo-senegar a do primeiro e aceitar a do segundo. Apareceuentão, no Metcure de France, a 15 de Fevereirode 1939, um artigo de Marcel Langlais, com o ernocío-nante título: Que! est l'euteut de La Princesse deCléves? Como presumível autor indicava-se Fontenelle,tese apoiada por um sábio como Baldensperger.(Baldensperger: Complacency and Criticism : La Prin-cesse de Cléoes. The American Bookman, fali 1944).Porém, esta mesma tese não encontrou grande apoioentre outros críticos.

Na Alemanha, descobriu-se, há pouco, outro escritora quem foi atribuída, pelo descobridor, categoria nãoinferior à do mais importante romancista daqueleséculo XVIII, Grimmelshausen. (R. Alewyn, Johann Beer,Leipzig, 1932). Os romances do «novo» autor eramquase todos conhecidos cada um por si. Revestem-seagora de carácter documental muito mais importante,e aparecem como que sob um novo aspecto. Como foipossível ficar o autor por tanto tempo oculto? B quese serviu de diversos pseudônimos, prática vulgaríssimanessa época. Também Grimmelshausen só desde oséculo XIX é conhecido como figura literária. Até em

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tempos modernos existe um pseudónimo célebre, queninguém ainda conseguiu desvendar, por forma irre-Iutável. Um dos romances mais interessantes do Roman-tismo alemão apareceu com o título de Nachtwachen.Von Bonaventura. Bonaventura é, claramente, um pseu-dónimo. As nossas ideias acerca de Brentano, Schelling,E. T. A. Hoffmann, Caroline Schleqel muito se modí-ficariam se tivessem razão as hipóteses que pretendemver num deles o autor do romance. É certo, porém,ter mais consistência a tese de Franz Schultz que atribuio romance a um insignificante escrevinhador, chamadoWetzel, que, por sorte, teria conseguido uma vez realizaralguma coisa de grande.

Podemos distinguir três técnicas diversas no usode pseudônimos:

1) O uso de um nome absolutamente diferente dopróprio, por ex.: Fllínto Elísio, em vez de FranciscoManuel do Nascimento. Muitos nomes célebres daliteratura são pseudónimos: Moliêre (Jean-BaptistePoquelín}, Voltaire (Françoís Maríe Arouet), GeorgeEliot (Mary Ann Evans}, Novalis (Fríedrích vonHardenberg), Jeremias Gotthelf (Albert Bitzíus ) , etc.

2) O anagrama: o novo nome é formado por umanova combinação de letras do verdadeiro nome. O nomeda Natonio, que aparece no Cristal, segundo a maneirade ver de Delfim Guimarães, é anagrama de Antónioe parece-lhe conter alusão a Sã de Míranda, que usavaeste nome. Um anagrama engenhoso foi o usado pelopoeta alemão do século XVII, Kaspar Stíeler, que, comas letras do seu nome, compôs o de Peilkarastres.Anagrama é também o nome de Voltaire em vez deArouet I (e) i(eune}.

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3) O críptónímo: as primeiras letras do nome ver-dadeiro compõem um outro nome, com o qual o autorse encobre e, parcialmente, se revela. Crísfal é umdesses críptónímos, formado de Cristóvão Falcão.

Em quase todos os países se encontram compiladosem grandes dicionários os resultados das pesquisas paraa identificação das obras publicadas anonimamente ousob pseudónimo.

Excurso: Determinação do Autorpor meio do Texto

Tarefa de exame muito frequente nas Universidadesde vários países é ter de determinar um autor só pormeio do texto de uma obra. É certo não ter esta tarefaa finalidade última da interpretação adequada da obrade arte como tal, mas sim utilizar o texto para um fimespecial, isto é, a identificação do autor. Porém,enquanto não for reconhecida como ideal a história daliteratura sem nomes, continuará o conceito da perso-nalidade do autor a ser um dos fundamentais na históriada literatura. Assim, esta tarefa resulta de justificadae significativa importância. Simultâneamente fornecedados elucidatívos sobre o investigador, pois terá oca-sião de provar o seu tacto literário, a sua erudição, oseu conhecimento dos instrumentos da profissão e asua habilidade em manejá-los, Compreende-se que sereconheça o valor de tal tarefa, não só para prova deexame, mas também para entretenimento útil e sugestivoem pequenas tertúlias literárias.

Embora até agora não travássemos conhecimento

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com os utensílios do historiador da literatura e seumanejo, talvez o fim da identificação do autor justifiquea apresentação dum breve exemplo. Sirva de textouma poesia:

BARCA BELA

Pescador da barca bela,Onde vás pescar com ela,Que é tão bela.

,O pescador?

Não vês que a última estrelaNo céu nublado se vela?Colhe a vela.

Ó pescador I

Deita o lanço com cautela.Que a sereia canta bela ...Mas cautela.

Ó pescador!

Não se enrede a rede nela.Que perdido é remo e velaSó de vê-Ia.

Ó pescador I

Pescador da barca bela.Inda é tempo. foge de ela.Foge de ela.

Ó pescador I

Podem ordenar-se esquemàticamente em quatrogrupos os indícios oferecidos por um texto para adeterminação do autor:

1) Materiais ou de conteúdo: isto é, alusões aacontecimentos e vultos históricos, a nomeação de

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objectos ligados a determinadas épocas, como automóvel,comboio, iluminação eléctríca, etc.;

2) Formais: a escolha de certas formas de versoe poesia, a narrativa na primeira pessoa, o caráctergenérico como balada, epopéia, são já muitas vezesdeterminativas de quem as empregou;

3) Linguísticos e estilístícos: Formas, palavras econstruções arcaicas ajudam a determinar a época, aténo caso de se reconhecerem como intencionais. Muitasvezes bastam observações estilísticas do vocabulário, douso das metáforas, da adjectívação, da construção dafrase, do ritmo, da atitude narrativa, etc., para iden-tificar épocas, correntes e até mesmo o autor;

'4) Relativos à essência espiritual e às ideias:desde pensamentos isolados até ao significado íntimode toda a obra, ao conteúdo filosófico nela encerrado,será fácil recolher material para resolver a tarefa.

Aplicando os quatro grupos ao citado poema, veri-ficamos que o primeiro grupo não fornece material deespécie alguma. Pescador, barca, vela são objectos efiguras que não podem ser integrados em época especial.Reparemos porém na forma.

Logo de princípio as quadras fazem-nos pensar nacanção popular; é esta a primeira impressão causadapela tonalidade geral. Ajudam a intensificar estaimpressão as irregularidades da rima (vela - vê-Ia, etc.)e a repetição da mesma palavra final: bela/bela: ela/ela.Mas já a severa bípartição das estrofes, a introduçãodo estribilho na estrofe são indicativas da poesiaartística. :É também notável na forma o aparecimentoalternado, regular, de sílabas acentuadas e não acen-

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tuadas e a ligeira cesura, nos heptassílabos, depois daterceira e, por vezes, da quarta sílaba. Em ambos oscasos, só a segunda estância forma excepção, Dosindícios formais podemos depreender que se trata deuma poesia artística, escrita por um conhecedor dacanção popular. Como o interesse pela canção populardesperta no Romantismo, disporíamos já de um indícioquanto à época. Símultãneamente, o autor revela-secomo severo cultivador da forma; é evidente o seu prazerem dominar as dificuldades formais.

A observação dos dados linguístico-estilísticos, aprincípio leva-nos a descobrir traços característicos dacanção popular. Pertencem a este número, por ex., asformas arcaizantes (onde vás), as frases simples, asrepetições, o paralelismo (deita ... que; não se enrede ...que) e também os adjectivos, no seu uso económicoe cingido a fórmulas, bem como o discurso dírectocontínuo, característico da poesia monologada. Temosde tomar, aparentemente, aquele que fala como especta-dor impressionado pela situação. A sua emoção tornatoda a poesia numa expressão de advertência. O impe-rativo é a forma dominante na poesia e como tal denun-ciadora da «forma interna». Ao mesmo tempo, porém,surgem outros traços que revelam a sua origem artística.Para além das alíterações de duas palavras vizinhas(barca bela, etc.}, as diversas estrofes estão subordi-nadas ao domínio de determinados sons (com cautela,que a sereia canta bela, mas cautela; enrede, rede,remo, etc.}, A segunda estrofe é especialmente suges-tiva; a sua posição particular sob os aspectos da forma,do ritmo e do estilo (ad jectivação) leva-nos quase acrer não ter nascido do mesmo impulso que as outras.

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Se a «forma interna» da poesia foi definida comoadvertência, o leitor pode ainda duvidar se ela serácumprida ou não, isto é, se o pescador fugirá e se serápossível a sua fuga. As forças antagónicas, como asereia, foram tão sugestivamente evocadas que o leitorvive com as figuras numa tensão temporal e cativante:na situação reside alguma coisa de dramático.

Chegamos com isto já à essência espiritual da poesia.Realmente, o quarto grupo é o mais expressivo.Já o motivo da sereia, tomada a sério, indica a poesiaromântica. A sereia é um ser concreto no mundo dapoesia, mas é também a concretização dos perigos queesperam o pescador no mar. Da terceira estrofe emdiante ela domina toda a rima e, desta maneira, apoesia; o homem é-lhe inferior e só lhe resta a sal-vação da fuga. Poderá ele fugir? A persistente repe-tição no fim: foge de ela, foge de ela - indica medocrescente.

E há ainda mais alguma coisa latente no pequenodrama. Não se trata de qualquer pescador, mas dopescador da barca bela. Duas coisas, no mundo destapoesia, são designadas com o termo de bela: a barcae a canção da sereia. Estabelece-se assim entre as duasíntima correlação, secreta atracção, Não é só no marque os perigos espreitam; a única coisa que o pescadorpossui, o meio de que se serve para ganhar a vidae protegê-lá, a sua barca, ela própria, está imbuídade fatalidade. Por ser bela, está ligada aos perigos domundo, a sua beleza é uma «Hybris» provocadorade males. Sobre toda a situação dramática paira algode fatal.

Todos os indícios nos levam cada vez mais Hrme-

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mente à conclusão de estarmos em presença duma obrade arte romântica. A alegria de vencer as dificuldadesno domínio da forma estreita mais o círculo dos aspí-rantes a autor; talvez este indício induza um ou outroleitor a ver em Garrett o presumível poeta, com o queestaria de acordo o secreto dramatismo da cena. Naverdade, a poesia é de Garrett.

Temos, porém, aqui de fazer uma restrição de prin-cípios. Sendo esta poesia indiscutivelmente romântica,nada exclui a possibilidade de não ter vindo à luzdentro do Romantismo, tomada esta palavra no sentidoduma determinada época da história da literatura.Um autor posterior poderia ter escrito esta poesia, querpor íntimas afinidades, quer por simples prazer lúdíco.:É curiosamente característico o facto de, ao ser apoesia apresentada num círculo de pessoas de culturaliterária, terem sido sugeridos os nomes de diversospoetas modernos, como por exemplo Eugénio de Castro.

Não será preciso desenvolver mais largamente, aqui,o problema das relações entre obra e autor, entre obrae época histórica. Basta fazer a advertência de que asconclusões tiradas de um texto desconhecido sobre oseu autor nunca podem ser enunciadas com a infalí-bilidade duma demonstração matemática.

3. Determinação da Data

Para todo o trabalho hístóríco-literário é da maiorimportância saber-se qual o ano do aparecimento ouda elaboração duma obra literária. O estabelecimentode dependências, de coincidências e evoluções depende

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em grande medida da fixação da data. Compreende-sefàcilmente que, vendo-se a história da literatura daIdade-Média obrigada a trabalhar com cópias geral-mente sem data e feitas depois de passado um espaçode tempo mais ou menos longo, ela tenha de vencerdificuldades maiores do que a história da literaturamais recente, pois esta trabalha, na maior parte doscasos, com livros a que é raro faltar a indicação doano em que viram a luz. A investigação da Idade-

I

-Média, mesmo relativamente às obras mais conhe-cidas, fundamenta-se ainda em hipóteses. Muitas vezesvemos cair pela base uma construção penosamenteerguida por causa duma fixação de data mais con-sistente.

Por vezes, os investigadores têm de lutar não sócontra as condições pouco propícias do material, mastambém contra enganos deliberados e indicações erró-neas. Na literatura portuguesa é bem conhecida aquestão em torno das chamadas «Relíquias da poesiaportuguesa». A princípio foram tomadas como textosautênticos do século VIII ao século XI até que J. PedroRibeiro provou serem falsificações do século XVII.

Mas mesmo assim ainda apareceram sábios que asquiseram salvar pelo menos para a Idade-Média. Fal-sificações desta ordem, produto, por vezes, de patrio-tismo exagerado, não raramente vieram a revestir-sede grande e fértil significado para a vida espiritual.Lembramos, apenas, o caso do Ossian de Macphersonque chegou mesmo a tornar-se padrão de toda umacorrente da época.

Trágicas foram as conseqüências ao descobrir-se afalsificação, relativamente ao caso de Thomas Chatter-tono Apresentara este ao público alguns escritos que

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dizia ter descoberto na Igreja de Brístol, oríqináríosdo século xv. O jovem autor, que aos 18 anos cometeusuicídio, devido, em parte, à descoberta da falsifi-cação, tem servido de inspiração a várias composiçõesliterárias.

Uma das questões mais interessantes na fixação dedatas, que há séculos ocupa os investigadores, é a quese refere à época do aparecimento de um género poéticocompleto, a balada. A questão é tanto mais imperiosaquanto é certo desempenhar a balada papel prepon-derante na história da literatura de muitos povos. NaInglaterra e na Alemanha, os seus entusiásticos des-cobridores no século XVIII atribuíram a balada aépocas longínquas e viram nela a expressão da lite-ratura popular primitiva. Também os românticos jul-garam possuir nela documentos primitivos da literaturanacional. A questão complicou-se devido às correlaçõesevidentes com o género épico, interpretando-se as bala-das como graus preliminares desse mesmo género. Hojequase predomina uma interpretação contrária. É gerala opinião de que as baladas, conservadas até hoje,derivaram das epopeias. Todavia as condições literá-rias não são iguais em todos os países. Assim diz-seque as baladas alemãs receberam o seu cunho especialna Idade-Média devido às influências da velha cançãoheróica. Prova concludente, realmente, é terem apare-cido no fim da Idade-Média, como baladas, as velhascanções heróicas de Hildebrand e Ermenreích. Osvelhos romances espanhóis raramente ascendem alémdo século XIV. Hoje as opiniões são quase unânimesem Iazê-Ios derivar de epopeias e sobretudo das cró-nicas. As baladas escandinavas, tão numerosas, sãohoje consideradas como oriundas da época da cavalaria,

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enquanto que, segundo o estado actual da investigação,apenas poucas baladas inglesas (como por exemplo acélebre Chevy Chase) remontam ao século xv.

Em questões de determinação de datas, para casosda literatura post-medieval, surge novamente a obrade Shakespeare como objecto do mais intensivo tra-balho de investigação. Tal como na recomposição dotexto, foi preciso estudar também aqui cada drama emseparado e, muitas vezes, sobrevieram novas e sur-preendentes questões. Por exemplo a peça The Tempestera considerada como sendo o último drama, escritodepois de 1610. Essa suposição, que parecia írrefu-tável, vacilou uns momentos ao descobrir-se. entre osdramas de [akob Ayrer de Nuremberga, um dramaDie Schõne Sidee, com data de 1595. Ora, essapeça aproveita-se de uma fábula, semelhante à deThe Tempest, Como se verificou que, desde 1593, oschamados «comediantes ingleses» (grupos de come-diantes ingleses com repertório inglês) vieram tambéma Nuremberga, e como o drama e o teatro de Ayrerhaviam sido influenciados por estes, logo se apresentoua hipótese de The Tempest datar de época mais antigado que se julgava. Hoje, porém, é mantida a cronologiaanterior da peça e admitem-se as duas possibilidades:ou Shakespeare ouviu falar do assunto do drama deAyrer no regresso dos comediantes ingleses, ou ambosforam procurar inspiração à mesma fonte. De resto,há uma novela espanhola de António de Eslava na suacolecção Noches de lnoiemo, publicada em 1609, quetrata do mesmo assunto. A investigação também aqui,afinal, se vê forçada a reverter mais uma vez à nove-lístíca italiana.

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Em épocas recentes raramente aparecerão problemasespeciais sobre dramas, romances e narrativas. Em geral,a publicação segue-se imediatamente à composição.Além disso, cartas, diários e outros documentos, oudo autor ou dos seus amigos, permitem-nos, não raro,determinar a época da sua génese com segurançaabsoluta. E: mais difícil a determinação quando se tratade poesias líricas, pois nem sempre o poeta obedeceà ambição de publicar em jornal ou revista a poesiaque acaba de compor. Há muitos exemplos de que atéa cronologia das colectãneas publicadas pode não cor-responder à cronologia das várias poesias. Não sãoraros os casos em que um poeta inclui uma poesia, nãona colecção a publicar, mas noutra muito posterior.Interpretações estílístícas, da essência espiritual e rela-tivas à biografia dependem essencialmente da determi-nação exacta das datas.

Como exemplo sirva o seguinte caso, tão interes-sante, não só por se tratar dum erro de investigação,mas também em virtude dos aspectos metodológicos.- Em Maio de 1773, Goethe mandou a Kaestner,o noivo de Lotte Buff, em Wetzlar, a poesia DerWanderer (O Viadante) acompanhada destas palavras:«Reconhecerás na alegoria Lotte e a mim e a tudo oque junto dela mais de cem mil vezes senti». Foi assimque a poesia começou a ser lida e interpretada comoprimeiro reflexo das emoções vividas junto de Lotte,emoções dum Werther «lírico», sem conflitos trágicos.Tal maneira de interpretá-Ia parecia a única admissivele por isso tida como válida. Sobretudo para o método«biográfico» tudo parecia explicado pela forma maisconcludente: a essência dos pensamentos e sentimentos,a correlação das pessoas com modelos reais, a origem

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provocada por um acontecimento concreto, biográfico.O poema vinha, precisamente, apoiar a tese da vivênciacomo incentivo, do carácter confessional e biográficoda poesia. Com grande surpresa para todos, provou-se,depois, que Goethe escrevera e declamara aquela poesiaantes de ir para Wetzlar e ter encontrado Lotte!Conhecido este facto, forçoso se tornou modificar ainterpretação do poema. Simultâneamente, nova luz caíasobre o problema eterno da ciência da literatura:a relação entre a fantasia poética e a realidade.

N este exemplo se vê como é duvidosa essa cómodaideia de que a obra poética se baseia em acontecimentosbiográficos ou até de que seja tanto maior o seu valorquanto mais reais as suas bases.

Para todo aquele que traz a público um texto«crítico», é lei imperiosa determinar o momento em quefoi concebida, elaborada e publica da a obra, e, noprefácio ou no aparato crítico, terá de apresentar todoo material correspondente. Da lírica portuguesa dostempos modernos, por exemplo, a figura, ainda envoltaem mistério, de Fernando Pessoa, só ganhará relevoquando for possível estabelecer as bases de um estudocientífico acerca da sua personalidade por meio de umaedição crítica com indicações precisas das datas.

4. Meios auxiliares

Quem aborda o estudo de uma obra ou de umproblema literário, encontrará na maioria dos casos járesolvidas as questões filológicas preliminares, tais comoa elaboração de um texto crítico, a identificação doautor e a fixação da data. Aproveitará o trabalho de

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várias gerações de investigadores, enfíleírando destemodo na tradição da ciência. Pois a finalidade doensino universitário não está, na verdade, apenas emtransmitir o que outros conseguiram descobrir, massim em preparar gente capaz de promover o progressoda ciência. Pertence, pois, ao estudo académico ainiciação do futuro investigador; por isso a dissertaçãoou tese deve fornecer a prova da capacidade de quema elabora.

Muitas vezes as teses denunciam, já pela linguagem,que o autor não atingiu este alvo e segue senda errada.Um trabalho empolado, cheio de classificações subjectí-vas como «obra imortal», «imorredoura», « maqní-fica », etc., denuncia, já pelo estilo, uma maneira depensar inadequada. O forum da ciência não se deveconfundir com um salão ou as colunas de um jornal.Independentemente dos matizes individuais, a linguagemcientífica tem características próprias. Cada ciênciapossui uma terminologia especial, uma linguagemtécnica. Pode até dizer-se que uma ciência só existena medida em que possui uma terminologia própria.Só assim são transmissíveis problemas e conhecimentos,só assim se cria uma tradição cíentífic.a Um leigopouco entende de um artigo sobre qualquer especia-lidade; quem não tiver conhecimenos jurídicos nãosaberá o que significa um «dolus eventuelis», nem pre-cisa de o saber. Porém, para o técnico, basta porvezes só esse termo para ele imediatamente estar aopar dos factos.

Nos termos técnicos encontram-se condensadosdeterminados resultados da investigação e do pensa-mento, que se transmitem de geração em geração.O facto de que as ciências não existem por si próprias

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e de que elas, ao entrar em contacto com círculos maisvastos, não podem deixar de afrouxar o rigor da sualinguagem técnica, não afecta em nada a severidadecom que toda a ciência deve compor e usar a suaterminologia própria.

Ao princípio, a aprendizagem desta linguagemtécnica não deixa de ser difícil e incómoda para oestudante. Por muito fina que seja a sensibilidadepedagógica do professor, ser-lhe-à impossível afastartodas as dificuldades. E no entanto é absolutamenteindispensável que, logo desde o início, o aluno seesforce por familiarizar-se com a significação dos termostécnicos e com as realidades que estes envolvem.Ser-lhe-ão de grande ajuda, em muitos casos, os dicio-nários, tanto da própria língua como das estrangeiras,assim como as grandes enciclopédias.

No que toca à ciência da literatura, poderá socor-rer-se de determinadas obras mais especializadas. Noano de 1933, Jean Hankiss começou a coligir materiaispara um Dictionneire des notions d'histoire littéreireque registe e explique todas as expressões técnicasusadas em francês, alemão, inglês, espanhol e italiano.Tomar-se-ão em consideração também todos os termostécnicos das outras línguas que não tenham correspon-dência numa daquelas citadas. Presentemente, não sesabe se e quando poderá ser levado a cabo esteempreendimento tão útil e importante. Não faltam,porém, meios auxiliares já disponíveis quanto à expli-cação dos termos técnicos da ciência da literatura.(Encontram-se alguns dos mais importantes na biblio-grafia que vem no fim do livro).

Qualquer trabalho científico deve enfileirar na tra-dição da ciência. Para isso é preciso que o autor, antes

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de iniciar o trabalho, tenha conhecimento do estado dainvestigação em relação ao seu problema, que mais nãoseja para evitar um duplo trabalho inútil. Não sãoraros os trabalhos «novos» que «descobrem» coisas hámuito conhecidas de todos, menos do autor, e a oriqi-nalidade na ciência não se prova por não ligar impor-tância à investigação já feita. Aquele que empreendeum trabalho deve começar por juntar e ler todas aspublicações que possam relacionar-se com o seu tema.É dever de gratidão e de honestidade indicar no finaldo trabalho, em bibliografia à parte, ou nas notas, asobras consultadas. Para facilitar o exame posterior,as indicações devem ser o mais completas possível,isto é, deverá vir indicado o apelido do autor, acom-panhado do prenome quando aquele possa dar lugara confusões, o título exacto e completo da obra, o lugaronde apareceu e o ano da publicação. No caso de setratar de publicações em série, será bom indicar o títuloda colecção e o número do tomo. Em artigos derevistas (ou de publicações comemorativas) é índíspen-sável indicar, além do título do artigo, o da revista,o ano da publicação, e, se for possível, o número dovolume.

Se nos referirmos a um passo determinado, comocostuma acontecer nas anotações, deve indicar-se apágina respectiva do trabalho citado. Um «seg.» depoisdo número da página significa: a página indicada e aseguinte; um «segs.» ou «ss.» a indicada e as seguintes.Se, nas anotações, nos referirmos mais de uma vez aomesmo trabalho, não será preciso repetir todas asindicações bibliográficas. Basta uma referência curta,exacta, por exemplo o nome do autor, acrescentado deum loco cito (loco citato) e do número da página. Nas

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citações de textos literários é necessário indicar exacta-mente a edição donde se cita. Em trabalhos científicosrecorre-se exclusivamente a edições críticas.

Dada a abundãncia de trabalhos científicos exis-tentes, é difícil organizar uma bibliografia tão completacomo seria de desejar. Habitualmente, as grandesobras de história da literatura trazem largas indicaçõesbibliográficas. Embora insuficientes, os trabalhos nelasindicados sempre ajudarão, todavia, a dar um passoadiante, pois cada um contém bibliografia própria quejá é mais especializada. Nunca, porém, se deve partirdo princípio de que um autor, que anteriormente tratoudo assunto, possuía um conhecimento completo dasespécies bibliográficas respectivas. Por um lado, algumtempo terá decorrido entre a publicação do último estudosobre determinado assunto e a realização do nosso;por outro, este sempre apresentará aspectos diversosdaquele, que exijam uma exploração bibliográfica tam-bém em terrenos totalmente diferentes.

O caminho mais seguro, embora complicado e querequereria grande dispêndio de tempo, seria compulsaros catálogos nacionais respectivos, onde vem apontadaa totalidade dos livros publicados. Em todos os paísesde tradições científicas e com um comércio livreiroorganizado aparecem tais catálogos, geralmente sema-nais. É também frequente publicarem-se índices bíblio-gráficos que abrangem seis meses ou um determinadonúmero de anos.

É certo que, na maior parte dos casos, será apenasnecessário, mas inevitável, recorrer aos últimos anosdestas bibliografias nacionais, porque em quase todosos países aparecem, periodicamente ou numa visão de

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conjunto, bibliografias especializadas referentes aosestudos críticos da literatura. Como é natural, estaslistas encontram-se sempre atrasadas quanto à produção;o volume que arquiva, num determinado país, os tra-balhos críticos do ano de 1930, não pode evidente-mente sair do prelo neste mesmo ano ou mesmo noano seguinte. Trata-se, pois, de recorrer aos catálogosnacionais para preencher a lacuna existente entre aúltima bibliografia técnica e a data da redacção donosso trabalho.

A compilação da bibliografia científica é muitofacilitada pelas bibliografias que vêm nas revistas cien-tíficas e que muitas vezes tomam também em conta asproduções do estrangeiro. Temos de partir do princípiode que, para qualquer problema duma literatura nacio-nal, a investigação estrangeira contribuiu com estudosmais ou menos importantes. São ainda da maior utili-dade algumas bibliografias técnicas publicadas todosos anos ou no intervalo de vários anos por revistasou instituições científicas. Estas bibliografias abrangemtoda a produção internacional, incluindo as revistas,e, geralmente, não se dedicam sómente a uma deter-minada literatura nacional, mas ao conjunto das litera-turas românicas ou ainda à totalidade das literaturasmodernas.

Grupo à parte formam determinadas publicaçõesorientadas não só em sentido bibliográfico, mas tambémbiográfico. Encontram-se aqui a indicação de todasas obras de um escritor, muitas vezes com todas asedições preparadas ainda por ele, as edições críticas,uma pequena biografia, e, finalmente, os trabalhos crí-ticos que se ocupam do poeta em causa ou dumdeterminado aspecto das suas obras. Para períodos

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extensos, digamos, da literatura alemã ou francesa,obras como o «Grundtiss» de Goedeke e o «Manuelbiblioqrephique» de Lanson são auxiliares indispen-sáveis.

A isto vêm juntar-se os dicionários de escritorese os dicionários biográficos gerais. O seu valor nãoconsiste pràpriamente no que nos dizem sobre o escritorque é objecto do nosso trabalho, visto que a este respeitodispomos já de material mais rico tirado de monografiasespeciais. Mas acontecerá muitas vezes, durante o tra-balho, toparmos qualquer poeta, escritor, filósofo, teó-logo, etc., por nós menos conhecido, e num caso destesum dicionário biográfico mínistrar-nos-á todos os ele-mentos de que carecemos.

Cabe aqui indicar, para a literatura alemã, a obra deWilhelm Kosch, Deutsches Litereturlexikon, cuja publi-cação, em quatro volumes, está já concluída (A. FrankeA G- V erlag, Berna, 1949-1958).

Resta dizer ainda uma palavra sobre as revistascientíficas. No decurso dos tempos, têm-se revestidode importância cada vez maior, de forma a poderdizer-se, hoje, que pulsa nelas, da maneira mais intensa,toda a vida da ciência. Com as suas contribuiçõesconstantes fazem progredir a investigação nos sectoresmais diversos. Além disso, trazem-nos notícias pes-soais e objectivas relativas ao mundo científico (necro-lógios, nomeações, relatórios sobre o trabalho das aca-demias e sociedades científicas, anúncios de grandesplanos de trabalho, etc.}, Além das bibliografias, inse-rem ainda críticas de livros recém-publicados. Nosúltimos tempos generalizou-se o uso de publicar, emforma de artigo, relatórios gerais sobre o estado dasinvestigações sobre determinados problemas ou deter-

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minadas figuras da literatura. O conhecimento e a lei-tura seguida das revistas tornam-se, pois, indispensáveispara quem pretende dedicar-se conscienciosamente àciência da literatura.

Há revistas para uma determinada literatura nacio-nal, para uma época definida, p. ex. a Idade-Média,para a história das idéias ou outro aspecto metodoló-gico, para a literatura comparada, para o conjunto dasliteraturas românicas ou das literaturas germânicas e,finalmente, para as literaturas modernas em geral. Nasbibliografias técnicas encontrar-se-ão índices mais oumenos completos das revistas científicas. O principiantefaz bem em fixar as mais importantes abreviaturasindicadas, que são, geralmente, de uso internacional eindispensáveis para a compreensão e redacção de notasbibliográficas.

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PRIMEIRA PARTE

CONCEITOS FUNDAMENTAISDA ANÁLISE LITERÁRIA

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Cada obra literária, em si, apresenta ao estudioso atarefa da sua exacta compreensão. Para tal, é necessárioo conhecimento de algumas noções elementares. Ostermos técnicos que as designam referem-se a factosinerentes à obra como obra literária. Esta parte donosso trabalho tem, pois, como finalidade explicar osignificado de tais conceitos elementares e, ao mesmotempo, ensinar o seu manejo. Como se trata de con-ceitos elementares, isolados, cada um dos quais abrangesomente aspectos especiais da obra mas não a obracomo um todo, podemos desíqná-Ios como noções Iun-damentais da análise. Nas outras partes, mais tarde,aparecer-nos-ão de novo, quando se trate de discutirformas sintéticas de trabalho. A maioria das designa-ções para os conceitos elementares não pertencemapenas à linguagem técnica da ciência da literatura,mas sim à linguagem de todos os dias. Ora aqui, pre~cisamente, reside para o principiante uma dificuldade,pois, na qualidade de expressão científica, o seu síqní-ficado muitas vezes difere sensivelmente da acepçãovulgar.

Enquanto se não abranger a obra sinteticamente,como um todo, podem-se distinguir nela, provisôrta-mente, dois aspectos principais: forma e conteúdo. Osconceitos fundamentais dividem-se assim em dois gran~des grupos: conceitos fundamentais quanto ao conteúdo,e conceitos fundamentais quanto à forma.

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CAPíTULO II

CONCEITOS FUNDAMENTAISQUANTO AO CONTEÚDO

I. O Assunto

Quem ler o Frei Luís de Sousa, de Garrett, ouassistir à representação do drama, em breve notará nãoser invenção do autor tudo o que se vai desenrolando.No fundo, já o título nos prepara nesse sentido. Bastacultura mediana para se compreender que o autor serefere a alguma coisa que existe independentementeda sua obra. Em diversas ocasiões, o próprio Garrettindicou ter ido buscar a crônicas e a obras literáriasa maior parte do conteúdo da sua obra; a investigaçãoveio depois indicar mais fontes por ele não enunciadas.Não é indício de falta de originalidade não ter oautor inventado o assunto da sua obra, mas sim tê-loadaptado. : Tratando-se de drama, verificar-se-á cons-tituir excepção rara o facto de o poeta inventar oassunto. Quase todos os dramas gregos dramatizammitos que eram familiares a toda a gente; o dramagrego pressupunha precisamente a existência de taisconhecimentos para poder ser bem entendido. Entreos dramas de Shakespeare, não são unicamente oshistóricos onde se encontra o conteúdo vivo fora daobra, mas também em quase todos os outros dramas

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seus. Pelo menos neste caso trata-se de fontes «líte-rárias», A novela italiana foi para Shakespeare umadas fontes mais importantes. Quanto aos dramasespanhóis, a investigação de fontes continua ainda econstantemente se descobrem novas dependências erelações no que diz respeito ao conteúdo. Este trabalhopode considerar-se quase findo quanto aos clássicosfranceses, e levou à conclusão de que quase todos osdramas dramatizam assuntos já existentes. Acontecealguma coisa de semelhante com os dramas de Goethee de Schiller. Quando se trata de epopeias, parece,até, não se adaptar bem à sua maneira de ser a faltade referência a qualquer coisa existente fora da obra.Pelo contrário o romance requer, ao que parece, queo conteúdo seja mais produto da fantasia do autor:todavia, muitas obras há, como, por exemplo, romanceshistóricos (e narrativas), que, sob este aspecto, vãocontra a regra. Na literatura narrativa do século XIX,

mais nitidamente no Romantismo francês, verifica-se,com surpresa, que o autor deseja dar a impressão deuma adaptação, até nos casos em que ele próprioinventou o assunto. Tudo isto é indicativo de como éde somenos importância o conteúdo narrativo para amaneira de ser poética e para a categoria artística deuma obra. (No início da literatura da Humanidade estáuma obra, encontrada nos escombros de Babílónía, queé uma lamentação de que todos os temas poéticos jáestão gastos!) Surge, pois, a exigência de não acentuardemasiado o conteúdo de uma obra, sempre que setrate de formação literária. Se, no ensino escolar, sedá valor aos resumos do conteúdo, justifica-se o factopor certas razões pedagógicas: porém, para uma culturaliterária, isto é ainda muito pouco.

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o que vive em tradição própria, alheio à obra lite-rária, e vai influenciar o conteúdo dela, chama-seassunto. O assunto está sempre ligado a determinadasfiguras, contém um decurso no tempo. Está, pois, maisou menos fixado no tempo e no espaço. Até a expressão«Era uma vez ... » dos contos populares é uma fixaçãono tempo.

Segundo esta definição do termo literário «assunto»,pode dizer-se que só têm assunto as obras em que serealizam acontecimentos e aparecem figuras, isto é, dra-mas, epopeias, romances, narrativas, etc. Nete sentido,uma poesia lírica não tem assunto.

O «assunto» pode existir da maneira mais variada,isto é, há as mais diversas fontes de assunto.

Até ao século XVIII, predominam na literatura asfontes literárias. No drama encontramos muitos assun-tos que só vivem na forma dramática. A Iphiqenie deGoethe ascende à de Racine e Eurípides e veio influen-ciar Gerhart Hauptmann, para só enumerar algunsdos autores que trabalharam este assunto. O assuntodo Anfitrião seduziu muitos dramaturgos depois dePlauto, de Camões e de Molíêre, Quando Shakespearesaqueava a novelística italiana, utilizava igualmentefon tes literárias.

No exemplo de Garrett provou-se que as cronicaspodem fornecer assuntos. Esta fonte corre com espe-cial riqueza no século XIX. Porém, em épocas maisremotas, os poetas deixaram-se influenciar também,indo buscar às crónicas inspiração, ou para toda aobra ou unicamente para parte dela. As relações entreOs Lusiedes e os cronistas dos descobrimentos susci-taram, e justífícadamente, as atenções dos investiga-dores. Ao lado das crónicas, enfileiram obras históricas

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de toda a espécie, diários, biografias, autobiografias, etc.Alexandre Herculano cultivou profundamente os estu-dos de história para os seus romances históricos, e omesmo se dá com a maioria dos autores de romancese narrativas históricas. Não é rara a união pessoal entreo investigador histórico e o romancista; na história daliteratura alemã há um capítulo especial «Romances deprofessores», a cujo número pertencem os professoresda universidade romancistas, como Felíx Dahn, GeorgEbers, Wilhelm Heinrích Ríehl e outros.

Os jornais constituem uma fonte importante paraos autores dos séculos XIX e XX. Zacharias Werner,que criou o drama de destino com a sua obra 24 deFevereiro, tirou o seu assunto de uma notícia de jornal.Gottfried Keller, para a sua obra Romeu e JuZieta naAldeia (Romeo und [ulie auf dem Dorfe). Flaubert, paraa Madame Booerq, e Strindberg para Frêulein Julie.colheram na mesma fonte as primeiras sugestões.

Vão perder-se na escuridão insondável dos temposos casos em que narrativas e comunicações orais for-necem o assunto. Quantas vezes as narrativas de paisou avós vão gravar no coração de um jovem poetafiguras e acontecimentos inolvidáveis! Neste sentido,a mãe e a avó merecem um lugar de honra na históriada literatura. Todos nós conservamos na lembrançaas narrativas em que, pela primeira vez, nos surgiu ofenómeno de um destino humano alheio. É quase obrade acaso virmos a saber de uma tal procedência, comoem duas obras-primas do século XIX, Adam Bede deGeorge Eliot e Die Weber (Os tecelões) de GerhartHauptmann. Também para a obra de Theodor Stormfoi da maior importância Lena Wíes, que lhe contarahistórias na sua infância.

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Mais difíceis ainda de apreender, mas de maiorencanto, são os casos em que a própria observaçãoe a vivência pessoal forneceram o assunto ao poeta.Neste campo a investigação recebe um novo e especialimpulso daquele principio basilar da correlação da obracom o autor. Precisamente para os maiores poetas foipossível juntar, assim, um material de infinita riquezacom que se pretende provar a dependência da obrapoética, quanto ao assunto, da vida do autor.

A falta de originalidade, tão frequente, dos autoresna invenção do assunto só pode enganar um leigo ouum homem sem sensibilidade artística. Quando PaulAlbrecht dedicou a sua vida à tarefa de descobrirtodas as influências que tinham actuado sobre Lessing(ao lado das relativas ao assunto, também as referentesa ídeias e linguagem) o caso, em si, era meritório e útil.Mas Iazê-Io com o fim de desacreditar a capacidadecriadora de Lessing e de reduzi-Io a um simples pla-giador, serve apenas para condenar o próprio autor,mas não o objecto do seu trabalho. Albrecht deu otítulo de Plágios de Lessing (Lessings Plagiate) à suaobra em seis volumes. Se toda a adaptação de umassunto fosse considerada plágio, não haveria quaseum único poeta inocente de tal crime. E se, como fezAlbrecht, se tomassem em linha de conta todos osempréstimos de ideias e linguagem, todos nós seríamosconstantes plagiadores. Certamente, não é sempre fácildefinir onde se ultrapassa o limite permitido dos ernprés-timos e adaptações e começa o terreno vedado. Talveza história da música trabalhe neste caso em terrenoainda mais difícil. Quando, de súbito, Beethoven seserve de um motivo tirado do Messias de Haendel,parece tratar-se de um plágio comprovado. Todavia,

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ninguém considera ínfracção condenável tal caso nempensará ter Beethoven, num dia improdutivo, queridoajudar o voo da fantasia com penas alheias. Precisa-mente o facto de ser tão fácil de reconhecer, em taiscasos, o plágio, leva-nos a interpretá-lo como home-nagem voluntária. Na história da literatura é assazfrequente o facto dum plágio. Porém, é preciso lem-brar que a noção da propriedade espiritual e dos seusdireitos é muito recente; nos tempos passados pen-sava-se e julqava-se de forma diferente sobre esteassunto. A despeito da severidade das nossas opiniões,não existe decerto grande êxito artístico que não chamea campo uma onda de imitadores, espertos no negócio,que muitas vezes ultrapassam os limites do que é per-mitido. Mas também os grandes, eles próprios, sãomuitas vezes alvo de acusações; processos desta ordemcostumam pôr em estado de tensão, de tempos a tempos,o mundo literário.

Nos últimos tempos caiu em certo descrédito ainvestigação das dependências quanto ao assunto, achamada investigação de fontes. Não porque tivesseconduzido à lastimosa conclusão de a riqueza deinvenção dos poetas ser inferior ao que se pensa habí-tualmente. (Aliás, é precisamente nos tempos mais remo-tos, que de forma alguma sofreram de superproduçãoliterária, que se descobre uma maior limitação de temas.)O que acarretou o odioso sobre a investigação de fontesfoi o facto de se declarar satisfeita com a mera averi-guação das dependências quanto ao assunto. Realmente,com isto nada se fez, nem a favor da compreensãoartística nem da história da literatura. Agora é quedeveria começar o verdadeiro trabalho. Por que motivoescolheu o poeta este assunto? O que foi que o seduziu?

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Como, e para que fim, o desenvolveu? Por vezes, écostume falar com menosprezo da «matéria prima» queo poeta encontrou e a que insuflou vida. E não se dáconta de que, excepção feita aos casos em que o autorse serviu das suas próprias observações e vivências,se trata afinal de assuntos já elaborados. Qualquerrelato de jornal pode ser, em si, tão bem estruturadocomo uma obra de arte que o aproveita como fonte.As modificações serão tanto mais expressivas para asnovas energias produtoras, devotadas à obra. A cui-dadosa análise da maneira como a fonte é aproveitada,no todo ou nos pormenores, a observação demoradae interpretação de todas as modificações, prometem porum lado reconhecimentos profundos da obra e, maisainda, da essência poética, e, por outro lado, favorecemo conhecimenito do poeta, da corrente, da época. O des-prezo pela investigação das fontes, hoje muito usual,explica-se como reacção à prática de antigos tempos,tão falha de espírito. Surge porém como injustiça eestreiteza de vistas em face das ricas possibilidadesque podem resultar do terreno seguro da investigação-to assunto. A simples observação de que Garrett,no seu Frei Luís de Souse, só atribui uma filha aMadalena, em desacordo com as fontes onde se inspirou,ajuda-nos a penetrar no âmago do seu drama. A quemagníficos resultados pode levar a enérgica ínter-pretação de algumas modificações apenas, feitas porCamões aos cronistas, mostra-nos a conferência deAntónio Salgado Júnior: Os Lusíadas e a Viagem doGama (Porto, 1939). Trata-se de interpretações, íqual-mente indicativas do génio de Camões como da essênciada epopeia.

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E que novos aspectos se podem descobrir no pró-prio Goethe mostraram-no, para surpresa dos próprioshistoriadores da literatura, as aturadas investigaçõesde E. Beutler: lembremos apenas os seus estudos DieKindesmôtderin e Das etttunkene Mãdchen (Essays umGoethe) .

Nas edições críticas encontra-se, no prefácio ou noaparato crítico, a indicação das fontes da obra quantoao assunto. Durante algum tempo foram apreciados-tarbalhos sobre a «história» de um assunto na litera-tura com a indicação das suas múltiplas adaptações.Todavia, dado o pequeno significado que o assuntotem na obra poética, são muito duvidosos tanto osentido como o direito de existir de tais livros. Se,realmente, o centro de gravidade reside nas modifi-cações por que tem passado o assunto em si, talvezseja possível surgir alguma coisa corno a sua «história».Mas o interesse é então absorvido por alguma coisa deextra-literário, e cada obra não pode surgir aos nossosolhos como obra de arte, corno um todo fechado. Se,porém, tentarmos isto em primeira linha, mostrar-se-àsem consistência o fio material e o livro seccíona-seem capítulos separados. Como colectãneas de materiais,os trabalhos orientados por estas duas dírectrizes con-servam no entanto o seu valor.

2. O Motivo

A palavra motivo pertence ao vocabulário de usoquotidiano e tem os mais variados significados. Pormotivo de uma acção entende-se o impulso para rea-lizar essa acção. Outra acepção se dá à palavra quando

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se fala de um motivo no campo da fotografia. A qua-lidade formal implícita nesta noção surge ainda commais relevo quando um músico fala de um motivo.Pretende ele designar uma sequência característica desons que aponta imediatamente a conjuntos mais ele-vados e vastos, como tema ou melodia.

Na linguagem da ciência da literatura encontra-sea palavra com extraordinária Irequência. Tornou-semesmo noção central da investigação de contos populares(Marchen). Com efeito, a observação mostrou que,quanto melhor se estudam as lendas e contos dosdiversos povos, mais semelhanças se descobrem, não sóem pequenos traços comuns, como até por surgiremas mesmas situações, figuras ou esquemas. Trata-se.portanto, de unidades, que aparecem nas mais diversascombinações. Chegou-se mesmo a interpretar os contose lendas como composições caleidoscópicas de taisunidades independentes susceptíveis de revestimentodiferente.

Damos alguns exemplos de tais unidades. Alguémregressa à terra natal, após longos anos de ausência.Ninguém o reconhece. Mas logo mostra metade deum anel que, no momento da despedida, fora quebradoao meio, e eis que a sua metade se adapta exactamenteà outra, conservada por quem ficara. Assim é reconhe-cido e identificado sem sombra de dúvida. Noutroexemplo procura-se alguém de quem se possui unica-mente um sapato. Não serve a pessoa alguma, pormais tentativas que se façam, até que, por fim, seajusta ao pé de uma rapariga de quem nada de especialesperavam os que com ela viviam. É então reconhecidae ídentifícada como sendo aquela em busca de quemse andava. Ou, para dar um terceiro exemplo: Um

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homem vê-se colocado perante uma tarefa impossívelde executar; um ser sobrenatural vem ter com ele eentrega-lhe um ou diversos objectos mágicos, com cujoauxílio ele consegue então executar a tarefa.

Estas unidades desiqnam-se com o nome de motivos.Seja onde for que os encontremos, numa lenda ou emqualquer obra literária, sempre se nos apresentamde maneira mais ou menos ricamente concretizada.Trata-se então de determinado cavaleiro que partiupara a Terra Santa, e de sua mulher, com determinadonome; o anel, que tinham partido ao meio no momentoda despedida, é também especificado. Mas reconhece-setambém o motivo se se tratar já de outras persona-gens, localidades e circunstâncias. Um assunto é, comovimos, fixo quanto ao local, ao tempo e às figuras.O assunto de Romeu e Julieta é a história deste man-cebo, chamado Romeu, e desta rapariga, chamada[ulíeta, filhos de tais pais, que vivem em tal cidadeitaliana e têm este ou aquele destino. O motivo, comoreconhecemos por outro lado, não está, precisamente,fixo nem concretizado. Só o apreendemos, quandoabstraímos de qualquer fixação individual. O queresta depois como motivo é de notável firmeza estru-tural. É uma situação típica, que se pode repetir índe-Hnídamente. Um assunto pode incluir, e de facto inclui,muitos motivos. Assim no assunto de Romeu e [ulieta,um motivo é o amor entre descendentes de duasfamílias inimigas. Encontramo-lo em inúmeras obrasliterárias e nas mais diversas relações individuais.Constitui também um motivo o mal-entendido da morteaparente, que topamos na literatura desde Píramoe Tisbe.

Concretizações típicas do motivo respectivo tomam

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a designação de «traço». A investigação dos contospopulares tem observado que tais traços andam muitasvezes tipicamente ligados ao motivo. Assim sucedecom o traço do nosso primeiro exemplo: o reconheci-mento por meio do anel dá-se justamente no dia docasamento da esposa que ele deixara. No motivo domal-entendido da morte aparente, surge muitas vezeso traço de ser um dos amantes que interpreta Falsa-mente a morte aparente, tentada ainda como meio desalvação.

O motivo é uma situação típica, que se repete, e,portanto, cheia de significado humano. Neste carácterde situação reside a capacidade dos motivos de apontarum «antes» e um «depois». A situação surgiu, e a suatensão exige uma solução. Os motivos são dotadosde força motriz, o que justifica afinal a sua designaçãode «motivo» (derivado de «mooere»},

Acontece, às vezes, que a tensão actuante inerenteao motivo não se liberta na obra e a acção toma outrorumo. Fala-se então de um «motivo cego». Aparece--nos, não raro, no início de dramas e filmes, paradespertar o interesse ou, propositadamente, para induzira conclusões falsas. No Frei Luís de Sousa encon-tra~se um motivo cego no final do primeiro acto:Manuel de Sousa põe fogo à sua própria casa. Comose acentua nitidamente, trata-se dum Ianal, dum desafioaos governadores. Estamos como espectadores à esperadas consequências do desafio, mas as expectativas quedesse acto derivam não chegam a realizar-se. Desapa-rece em absoluto o aspecto político; nem mais umareferência a tal facto. Não se quer dizer com istoque seja infundado e que um motivo cego não possadesempenhar funções importantes para o todo (aliás

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não as decisivas). Aqui basta a indicação do seuefeito altamente teatral e dramático. Reconhecemosassim uma qualidade especial do motivo: além da suaunidade estrutural, como situação típica e significativa,além da sua concretízação, além do seu carácter trans-cendente a si próprio, pertence-lhe uma essência espe-cial, que favorece o seu uso em determinados géneros.O reconhecimento por meio do sapato que serve só aum determinado pé, assim o sentimos, é o motivo típicodos contos populares. Somos transportados ao verda-deiro ambiente de tais contos, que não faz caso dofacto de inúmeras raparigas poderem ter o pé do mesmotamanho. No conto popular o sapato só serve a umae essa é quem se procura.

O motivo do príncipe apaixonado, disfarçado deservo, exige considerável e vasto espaço para poderdesenvolver-se adequadamente. Adapta-se mais à nar-rativa do que ao drama. Encontramo-lo na Comédiado Viúvo, de Gil Vícente: a investigação das fontes,realmente, pôde provar como a sua origem vem doromance. Ao contrário, é infinitamente mais dramáticoo motivo, a este aliado, de um amor simultâneo porduas irmãs. Também o motivo dos irmãos inimigosé de tão ardente intensidade e concentração que secompreende bem o seu uso tão frequente no drama.Serviu-se dele, com preferência, o drama do períododo Sturm und Drang. O mesmo gosto da época levouao enlace com outros motivos semelhantes e ao usodos mesmos traços, de maneira que o leitor de hoje,por vezes, pensa em plágios.

Não é lícito esperar que cada motivo em si própriocontenha carácter genérico claro. Mas a investigaçãoprofunda, neste sentido, promete-nos ainda conheci-

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mentos de maior importância. O aspecto genérico,contido no fenômeno do motivo, foi claramente reconhe-cido pela primeira vez por Goethe e Scbíller. Quandotentavam interpretar a essência da epopeia e do drama,encontraram motivos épicos e dramáticos que são típicos(comp. a publicação, feita em comum: Sobre a literaturaépica e dramática - Über epische und dremetischeDichtung).

Se investigarmos os motivos numa obra literária,quanto ao decorrer da acção, em breve se verificaráque têm diferente importância. Por exemplo, o motivodos dois irmãos inimigos, nos dramas do Sturm undDrenq, é muitas vezes o motivo primacial de toda aobra. No Frei Luís de Sousa - sempre sob o pontode vista do decorrer da acção - é central o motivodo regresso daquele que se julgava morto, ao passoque o reconhecimento por meio de um retrato ou o fogodeitado à casa (mesmo que este tivesse seguimento)são de importância secundária. Portanto, na análisede uma obra, pode-se fazer a diferenciação entremotivos centrais e motivos subordinados. Não rara-mente estes podem ainda dívídir-se em motivos copula-dos com o motivo central (como o do retrato em FreiLuís de Sousa) e os outros, que não passam de motivosexpletivos (como o do incêndio). Na Comédia doViúvo, o motivo do viúvo, que nos aparece logo noprincípio, é um motivo expletivo (sempre sob o pontode vista do decorrer da acção] , enquanto que vaicopular-se com o outro do amante disfarçado eo do amor pelas duas irmãs, o motivo da busca doirmão.

Até agora, só consíderámos os motivos sob o pontode vista da acção. Há porém, evidentemente, outros

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aspectos sob que têm de ser contemplados. Na Comédiado Viúvo como que se sente que o motivo do viúvoé mais importante para a totalidade da obra do que,por exemplo, o da busca do irmão, mais importante,certamente, para o mero decurso da acção. Chegamosmais depressa a estes outros aspectos dos motivos senos dirigirmos aos motivos líricos, pois enquanto con-siderávamos a transcendência do motivo sõmente sobo aspecto da acção, ficávamos forçosamente nas zonasdo drama e da narrativa como géneros pragmáticos,isto é, géneros para os quais é característico o desen-rolar de acontecimentos.

Na verdade, na lírica Fala-se também de motivos.Como tais desiqnam-se, por exemplo, a corrente do rio,o túmulo, a noite, o erguer do sol, a despedida, etc.Para que, na realidade, sejam motivos autênticos, têmque ser entendidos como situações significativas. A suatranscendência não consiste, neste caso, no desenvolvi-mento da situação de acordo com uma acção, mas simem se tornarem vívência para uma alma humana, emse prolongarem interiormente na sua íntima vibração.Quando, numa poesia, se diz:

Já vinha a pálida auroraAnunciando a manhã fria ...

esboça-se, apenas, urna imagem escassa da manhã quevai rompendo. É bem diferente o início duma poesiade Antero de Ouental intitulada Hino à manhã:

Tu casta e alegre luz da madrugada,Sobe, cresce no céu, pura e vibrante,E enche de força o coração triunfanteDos que ainda esperam, luz imaculada!

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Mas a mim pões-me tu tristeza imensaNo desolado coração. Mais queroA noite negra, irmã do desespero,A noite solitária, imóvel, densa,

O vácuo mudo, onde astro não palpita,Nem ave canta, nem sussurra o vento,E adormece o próprio pensamento,Do que a luz matinal... a luz bendita!. ..

Também aqui, a principio, surge a manhã comoimagem, em oposição à imagem da noite. Mas logo aprimeira palavra, a invocação pessoal e, a seguir, osimperativos, provam que a imagem não está destinadasó a ser imagem. :g sentida por um eu que, nessaíntima vivência, sente imediatamente a luz desta madru-gada singular como a luz matinal em geral. A imagemtransforma-se assim em motivo. Podemos porém ouvirmais alguma coisa. Evidentemente, o poeta pouco seimporta com a visibilidade da imagem como tal. Asexpressões por ele escolhidas: casta, alegre, pura, subir,crescer, etc., contêm pouco carácter descritivo, pelocontrário interpretam a luz como mediador de deter-minadas qualidades, como expressão de determinadasenergias. Podemos dizer: essa manhã não é conce-bida, apenas, como manhã típica, mas o aparecimentoda luz é simultâneamente tomado num sentido simbólico.Dá-se porém muito mais: na poesia de Antero, omotivo da manhã não é só motivo central; para alémdisso, torna-se a concretização de um problema. A ínter-rogação: - «Porque nasce mais um dia?» - estavivência pessoal, ao mesmo tempo emocional e pensada,encontra o seu desfecho: «símbolo da Mentira uni-versal... símbolo da ilusão... símbolo da existência, sêmaldito ls

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Assim, pois, os motivos têm diferentes aspectos ediferente peso. A investigação dos motivos apresenta-secomo vasto e produtivo campo de trabalho da históriada literatura.

Em obras com o mesmo assunto, por exemplo nasmuitas dramatizações do assunto de Inês de Castro,valerá a pena investigar como determinados motivosforam postos em segundo lugar ou empurrados parao primeiro plano pelos respectivos autores. Há, poroutro lado, motivos que surgem com Irequêncía tãoespecial em determinadas épocas, que se tornam bemsignificativos do espírito então reinante. No Pré-Roman-tismo encontra-se frequentemente o motivo: a pessoaamada que morreu aparece ao companheiro sobrevivente.Surge sobretudo na balada. Enunciamos somente asbaladas inglesas Feir Margaret and Sweet Williame William's Ghost, publicadas na colecção de Percy,e Adelstan und Hõschen de Hõlry, bem como Lenorede Bürger (comp. ainda Les constantes amours d' Alixet d'Alexis de Moncrif; Marianne de Gleim; Der untreueK nebe de Goethe, etc.}. O motivo desenvolve-se, sem-pre, no mesmo sentido; o sobrevivente morre também,enquanto que é diversa a «motivação» do motivo:o aparecimento do espectro ou é vingança por ínfíde-lidade, ou é forçado pelos lamentos excessivos dosobrevivente, ou é a promessa da fidelidade, feita pelomorto, que arranca este à campa.

Na literatura religiosa, o motivo da Barca da Sal-vação é frequente e foi investigado por Paulo Quintela(e Píerre David) a propósito da sua edição da obrade Gil Vicente: «Auto de Moralidade da Embarcaçãodo Inferno».

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Excurso : O Motivo da Noite em quatroPoemas Líricos

Como exemplo evidente do aparecimento do mesmomotivo, apresentamos quatro poesias de literaturas eépocas diversas: trata-se do motivo da noite.

Addison : HYMN

The spacious firmament on high,Wíth ali the blue ethereal sky,And spangled heavens, a shining Frame,Their great Original proclaim.Th'unwearíed Sun from day to dayDoes his Creator's power dísplay:And publíshes to every landThe work of an Almighty hand.

Soon as the evening shades prevaíl,The Moon takes up the wondrous tale;And nightly to the listening EarthRepeats the story of her bírth:Whilst ali the stars that round her burn,And alI the planets in their turn,Confirm the tidings as they roll,And spread the truth from pole to pole.

What though in solemn sílence aliMove round the dark terrestrial ball;What though nor real voice nor soundAmidst their radiant orbs be Iound?In Reason's ear they al1 rejoiceAnd utter forth a gloriOus voice;For ever singing as they shíne,«The Hand that made us ís divlne».

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[HINO

o espaçoso firmamento lá em cima,Com todo o etéreo céu azulE os espaços estrelados, um templo cintilante,A sua grande origem proclamam.O sol incansável, dia após dia,Revela o poder do Criador,E anuncia a toda a terraA obra de uma Mão omnipotente.

Logo que as sombras da noite prevalecem.Retoma a lua o conto maravilhoso,E todas as noites à terra que escutaRepete a história do seu nascimento:Enquanto todas as estrelas, à sua volta a arder,E todos os planetas, um a um,Confirmam a mensagem, no seu giro,E divulgam a verdade, de pólo a pólo.

Que importa que no solene silêncioEm torno do escuro globo terrestre girem;Que importa que nenhuma voz nem som realEntre os orbes radiantes se ergam?Aos ouvidos da Razão ecoam [ubílosos,E lançam uma voz gloriosa,Cantando sem cessar enquanto brilham:«É divina a Mão que nos criou».)

Marquesa de Alorna (poetisa portuguesa [1750~-1839], que deu a conhecer aos seus compatriotas opré-romantismo inglês e alemão, tornando-se assimprecursora do romantismo português):

Como está sereno o Céu,Como sobe mansamenteA lua resplandecenteE esclarece este jardim!

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DA OBRA LITERARIA

Os ventos adormeceram;das frescas águas do riointerrompe o murmuriode longe o som de um clarim.

Acordam minhas ídeiasque abrangem a Natureza.e esta nocturna belezavem meu estro incendiar.

Mas se à lira lanço a mão.apagadas esperançasme apontam cruéis lembranças,e choro em vez de cantar.

Joseph von Eíchendorff . MONDNACHT

Es war, ais hãtt' der HírnrnelDíe Erde stíll gekiisst,Dass sie ím BlütenschimmerVon ihrn nun trãumen müsst'.

Díe Luft ging durch die Felder,Díe Ãhren wogten sacht,Es rauschten leis die Wãlder,So sternklar war díe Nacht.

Und meine Seele spannteWeít íhre Flügel aus,Flog durch díe stíllen Lande,Ais Hõqe sie nach Haus.

[NOITE DE LUAR

Foi como se o céu beijaraToda a terra, devagar,E que ela, em halo de flores,Ficasse co'ele a sonhar.

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o ar passou pelos campos,Espigas a baloiçar,Bosques sussurraram manso,Tão clara a noite ao luar.

E a mính'alrna abriu as asasLargas - e pôs-se a voar;E voou por sobre as terrasCorno p'ra casa a voar.]

(Trad. de Paulo Quialcla ).

Baudelaire: RECUEILLEMENT

Sois sage, ô ma Douleur, et tíens-toi plus tranquille.Tu réclarnaís le Soír: íl descend: Ie voici:Une atrnosphêre obscure enveloppe Ia vílle,Aux uns portant Ia paix, aux autres le souei.

Pendant que des mortels Ia multitude vlle,Sous le fouet du Plaísír, ce bourreau sans mercí,Va cueillir des rernords dans Ia Iête servíle,Ma Douleur, donne-moí Ia main; viens par ici,

Loín d'eux. Vois se pencher les défuntes Années,Sur les balcons du cíel, en robes surannées:Surgir du fond des eaux le Regret souriant;

Le Soleíl moríbond s'endormír sous une arche,Et, comme un long Iínceul trainant à l'Oríent,Entenda, ma chêre, entends Ia douce Nuit qui marche (

Quatro representações do mesmo motivo; todaviaas diferenças saltam aos olhos. Residem, primeiramente,naquilo que se poderia designar como desenvolvimentoconcreto do motivo. Em Addison são sobretudo osastros que se tornam visíveis: lua, estrelas, planetas,

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DA OBRA LITERÁRIA 93

- surpreende-nos não valorizar ele ainda o sistema deCopérnico; em outras literaturas mostra-se o mesmoatraso de séculos.

O movimento dos astros, além disso o seu brilhoe sobretudo a sua fala, destacam-se como dírectrizesda acção. Já o movimento, em seguida o «de polo apolo» indicam que se não trata de dar forma a umadeterminada vivêncía, antes, sim, são ultrapassados oslimites da experiência sensorial, e o pensamento ajudaa alargar a imagem. Em contraste com esta, as outrastrês poesias desenvolvem a objectualídade, a partir dedeterminado ponto de vista de um eu que sente. EmAddison falta caracteristicamente este eu, o ponto deencontro é a Reeson,

Na Marquesa de Alorna, a vivência dá-se com aobjectualidade do céu claro, da lua resplandecente, dacalmaria, do murmúrio das águas, do som de um clarim.Na poesia de Eíchendorff há igualmente sensaçõestácteis, acústicas e ópticas que, na segunda estrofe,tomam parte na vivência da noite; na estrofe do prin-cípio, contudo, a vivência dá-se com outras camadasde alma: à objectualidade desta poesia pertencem maisdo que uma série de elementos da natureza vividossensorialmente. Na medida em que aparecem, díferen-cíam-se menos, os limites tornam-se mais vagos do quena poesia portuguesa, ao mesmo tempo que a paisagemse alarga e se amplia.

Finalmente em Baudelaire sobrepõem-se diversascamadas de vivências. ,A cena é, primeiramente. acidade; deixamo-Ia depois e encontramo-nos numa vastapaisagem, sobre a qual se arqueia o céu. Por todaa parte acontece alguma coisa; a poesia é a mais ricaem movimento, entre as três mais modernas. (Addison.

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neste sentido, não é na verdade atingido.) Na Mar-quesa de Alorna surge logo de entrada a estática:«Como está sereno o céu»; em Eíchendorff, no fimda segunda estrofe tudo se combina para uma situação:«50 stetnkler war die Nacht» (Tão clara, tão estre-lada estava a noite). Em Baudelaíre os objectosencontram-se em movimento pelo espaço, tal comoefectuam um movimento no espaço os protagonistas:do «descendre» da tarde, passa para «pencher», «surgir»,«s' endormir», «treiner, até ao «mercher» da noite. Osobjectos são, porém, de espécie bem diversa da dosobjectos da natureza na Marquesa de Alorna e tambémem Eichendorff. Na medida em que surgem ao nossoolhar, são apenas uma determinação do local paraseres de espécie singular: o carrasco «Pleisit», os anosmortos, o pesar.

A questão da objectualídade leva-nos forçosamentea uma outra: - a de saber qual é, na realidade, o con-teúdo da vivência.

Em Addison todas as vezes se fundem em umamensagem que é anunciada e que o ouvido da «Reason»recebe: a mensagem em louvor do Criador divino. Ascoisas que existem na noite não são vividas na suapeculiaridade (essa não existe no mundo desta poesia).Não existe também nenhuma aura. à volta das coisas,que seja especificamente nocturna. A noite, aqui, nãoestá em antítese com o dia, como se sente tão nítida-mente nas outras três poesias. Aqui, ser noite equivaleantes a dizer que existem coisas especiais como lua,estrelas, planetas, anunciadoras agora do louvor doCriador, louvor entoado de dia pelo céu azul epelo sol. No fundo, assim temos de dizer, a noite aquinão é vivida como motivo uno, como fenómeno de

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essência própria. É a cena pela qual passa o coro dosactores.

Dá-se totalmente o contrário na Marquesa deAlorna. Aqui, tudo se funde na noite como «estanocturna beleza». Seria demasiado pouco dizer que,nesta poesia, se vive uma unidade, por forma puramenteestética, pois, antes, a existência da noite é sentidacomo «existência da natureza». Com isto, porém, aestática, a princípio tão marcada, recebe feição dinâmica.Ser natureza, no mundo desta poesia, equivale a dizerestar cheio de movimento e assim, na vívêncía, asforças da natureza influem sobre o eu e acordam neleo entusiasmo criador. Porém entre o homem e a natu-reza cava-se um abismo. O homem não pode vibrarno mesmo ritmo, não pode entregar-se por completo.Está carregado de história, de recordações e experiên-cias, que, de súbito, irrompem e se revelam muito maispoderosas do que a vivência da noite. A oposiçãovivência da noite - vivência do eu é o que pràpriamenteinteressa a quem fala.

Tinha-se visto que as experiências sensoriais, emEíchendorff, possuíam muito menos relevo do que naMarquesa de Alorna. As coisas, elas mesmas, são maisindefinidas; o «50» (tão) na 11,1, não deve ser, deforma alguma, tomado na acepção vulgar como conse-quência lógica, mas sim como exprimindo uma relaçãoindefinida. Há ainda mais uma diferença entre as duaspoesias; aqui, não é só no decurso da poesia que sechega à vivência unitária da noite, mas sim esta vivênciaantecipa-se; na verdade, já está indicada no título.A primeira estrofe, porém, revela igualmente não setratar aqui de uma vivência estética da natureza ouda paisagem. Sentimos o processo mítico de um beijo

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de noivado entre o céu e a terra, de forma que éimanente a relação com o céu em todas as vivênciasisoladas da segunda estrofe. A este acontecimentomítíco, à singularidade desta noite clara, estrelada,entrega-se em absoluto o eu vivente. Aqui já nãoimpera a separação entre natureza e homem. E hánele camadas que respondem activamente ao chama-mento do céu, a Fazer-se ouvir: a alma do homem quesente segue o chamamento, O homem sente-se arreba-tado da terra, sente um «êxtase», tomando a palavrana sua acepção primacia!. É como se esta alma voassepara casa {enecb Haus») . Ora, a casa da alma é apátria celestial. Assim, a vivêncía da noite não é sóum vivência da natureza, como na Marquesa de Alorna,mas sim fundamentalmente uma vivência religiosa. Comoem Addison, devemos dizer; a profunda diferença reside,porém, em que esta vivência religiosa só vem a dar-seporque os objectos da natureza e os processos nocturnossão vividos na sua particularidade.

Ao passo que, nas duas últimas poesias, só no fimnos apercebemos do eu vivente, em Baudelaire ele vemao nosso encontro logo no princípio. Aparece-nos atéem estranho dualismo: como o eu que exorta, apontae guia, e como a «Douleur», coordenada ao eu, mas,ao mesmo tempo, duma existência própria. O espaçonesta poesia é de estranha grandeza nas dimensões,espaço mítico através do qual caminham, quase comodeuses antigos, os fenómenos da natureza do «Soir»,do «Soleil», da «Nuit», e ainda os conteúdos anímicosgrandiosamente arquitectados, como «Douleut», «défun~tes Années», «Regret», e também poderes vitais comoo «Plaisir». A noite é um ser mítico: dela nada maisse diz directamente, enquanto que a Marquesa de Alorna

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e Eíchendorff exprimem mais exactamente o seu ser.Mas em Baudelaire é-nos dado ainda mais; se nãoatravés de palavras, contudo através da configuração.Tudo o que antecede, tudo o que está no espaço destapoesia, actua só como uma preparação para a chegadada noite: sente-se uma graduação (para que contribuimaravilhosamente a forma do soneto): a noite aparecequase como dominadora, superior a todos os outrosseres. Não exerce nenhuma violência; mas os seusatributos (douce, long linceul} prometem refúgio, segu-rança, recueillement,

A actuação da noite, tão perceptível aos sentidosnas duas outras poesias, e que nesta não parece estarexpressa, no fundo está presente e viva pela confi-guração da poesia. De novo o título se revela altamentesignificativo; dá nome, precisamente, ao centro secretoda poesia. Por outro lado, no decurso da poesia rea-liza-se uma nítida evolução nas relações entre o eue a sua dor. No princípio, esta é inquieta, exigente:o poeta exorta-a. Depois chega a pegar-lhe confian-temente na mão e, enfim, passa a chamar-lhe «ma chêre»,A aproximação da noite acalmou a dor, reconciliou o eue a dor, fundiu-os em íntima comunidade.

Em Addison, a noite era a cena onde alguma coisase tornava vivência, e vivência para a Reason; algoque não era a noite. Na Marquesa de Alorna a vivênciada noite, por muito particular e forte que fosse, nãoconseguiu bem atrair a si o homem. Em Eíchendorff,este entregava-se em absoluto; mas, precisamente pelaintensidade da vívência nocturna, tornava-se visívelalguma coisa existente para além da noite e actuanteatravés dela: a pátria celestíal da alma. Em Baudelairenão existe nada para além da noite; tudo se passa aqui

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mesmo e sob a noite; no penúltimo verso o olhar éforçado a percorrer os limites deste espaço. E, emborao mundo seja mais multiforme e mais díspar do queem qualquer das outras poesias, tudo obedece ao sorti-légio da «douce nuit» que se aproxima.

Nada seria mais errado do que pretender genera-lizar as diversidades observadas na maneira de trataro motivo, fazendo delas diversidades nacionais deconcepção. Tão pouco a análise pode pretender terexplicado alguma coisa de seguro acerca das épocasem que as poesias foram concebidas: o classicismo(Addíson }, o prê-romantismo (Marquesa de Alorna}, oromantismo (Eichendorff), e o simbolismo (Baudelaíre] ,E nem sequer pode pretender ter verificado algumacoisa acerca de cada um dos poetas. A comparaçãoficou totalmente na zona das poesias e só serviu paraa sua melhor interpretação. No fundo, a comparaçãodos motivos só alcançou algumas das suas camadas,mas não o todo.

Contudo, hemos de concordar que este processode trabalho pode ser rendoso, sempre que haja materialsuficientemente abundante para se prosseguir na tarefa.O filósofo Dílthey, a quem tantos incentivos devea ciência da literatura, via na investigação dos motivoso método mais prometedor, mais lucrativo, da históriacomparada das literaturas. Por este caminho tem-sechegado a importantes resultados, também quanto àpersonalidade do poeta. Verificou-se que se repetiamdeterminados motivos na totalidade da obra de algunsdeles. Tentou-se, por exemplo, interpretar os motivosde Wilhelm Raabe como expressão da sua con-cepção do mundo; este caminho devia parecer espe-cialmente aliciante num poeta como Shakespeare, em

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que só através da obra é possível ir ao encontro dasua personalidade.

Mas a investigação de motivos pode também pre-venir um salto precipitado das zonas poéticas para aspessoais. Pois os motivos de Shakespeare não perten-cem, em primeiro lugar, à personalidade e concepçãodo mundo de William Shakespeare, mas sim as motivosdo drama isabelino. E Petriconi mostrou, no estudodo motivo central da tragédia de Margarida deGoethe, que ele pertence em primeiro lugar igualmentea uma tradição literária e que a sua derivaçãoexclusiva de vivências pessoais é mais que duvidosa.Chegamos já aqui a verificações de princípio: o poetarnão se passa num espaço vazio nem é determinadoapenas pela personalidade e pela concepção do mundodo poeta, mas realiza-se, pelo contrário, num espaçocheio. Depois dos «grandes» assuntos, que mostrarama sua vitalidade no campo do drama, apresenta-se nosmotivos mais uma camada de formas poéticas capazesde agir continuamente. É verdade que também é possí-vel, a partir daqui, chegar à história: Petriconi mostraque o motivo da inocência seduzida só se podia trans-formar em verdadeiro motivo central de grandesobras num clima espiritual muito especial que só oséculo XVIII criou. O germanista holandês HermanMeyer, na sua lição inaugural de Amsterdão DeLeoensevod ais Literairmotief (1947), pôs, no mesmosentido, a questão de saber se o motivo do «entardecerda vida» não deveria ser visto como característicaespiritual do «realismo poético». O estudo de Petriconiparece confirmar a opinião com que Herman Meyerconcluiu: «A investigação do motivo literário pode,quando levada a cabo com a devida precaução, con-

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tribuir grandemente para a resolução destes problemase de outros correspondentes, que são em última instânciaproblemas de morfologia da cultura».

3. « Leitmotiv », Topos, Emblemas

Pareceria evidente designar como Leitmotioe [motí-vos condutores) os motivos centrais que se repetemnuma obra, ou na totalidade da obra, de um poeta.A noção Leitmotio pertence, realmente, à linguagemtécnica da ciência da literatura; a própria palavrapassou da língua alemã, quer como estrangeirismo, quercomo empréstimo, para as outras línguas. Tambémpara o leigo é familiar como designação duma deter-minada técnica nas óperas de Ríchard Wagner e dosWagnerianos. Ao ser adoptada pela linguagem técnicaliterária, o seu conteúdo alterou-se, Na verdade,alguns investigadores tomam-na ainda no sentido queseria lícito supor. Mas também muitas vezes seencontra como designação de Ienómenos muito maisrestritos.

Conhece-se, de romances e contos, o aparecimentorepetido de um determinado objecto em lugar siqni-Iicatívo. Na novela de José Régio Davam grandespasseios aos domingos aparece repetidas vezes umretrato, ou antes a lembrança de um retrato, com alegenda: davam grandes passeios... No romance deProust À Ia recherche du temps petdu surge em diversospontos sempre o mesmo pequeno tema musical.Com arte insuperável adornou Goethe o seu romanceDie Wahlverwandtschaften (Afinidades de Eleição)com tais repetições. Aqui reconhece-se nitidamente a sua

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função de ligação; são meios técnicos da construçãoe composição. Sirva de exemplo o copo com as ini-ciais E e O.

Este fenómeno é ainda mais vulgar no romancecómico. Aqui, serve não tanto para a construção comopara dar a rigidez da figura cómica. Em Sterne,Díckens, etc., determinadas personagens aparecem, comojá se disse, como que providas de cartões de visitaque exibem todas as vezes que se apresentam. Podetratar-se apenas de determinadas maneiras de dizerinvariáveis, como o eterno estribilho de Mrs. Micawber:«I neuer will desert Mr. Micawber», ou então ir aoponto de se darem pequenas ocorrências que se repetem,como quando Mr. Dorrit recebe «pequenos presenteshonorifícos», ou o ralhar eterno de Miss Trotwoodcom os burros. Para este Ienórneno tem-se usadoo nome de leitmotiv. Ora aqui nem sequer se tratade verdadeiros motivos, pois, precisamente na rigidez.na limitação, no facto de que estes se não integramna coesão do todo. mas sim a interrompem, residema sua essência e o seu efeito cómico. Deste abusoterminológico deriva uma obrigação, tanto mais forte,de determinar com exactidão as expressões moti~oe leitmotiv, ao usá-Ias.

No campo da investigação dos motivos desenvol-veu-se um método especial que foi organizado peloromanista Ernst Robert Curtius. Curtius chama-lhe«investigação de topos» (Toposforschung). Topos são«clichés fixos ou esquemas do pensar e da expressão);provenientes da literatura antiga e que, através daliteratura do latim medieval, penetraram nas literaturasdas línguas vernáculas da Idade-Média e, mais tarde.no Renascimento e no período barroco. Nestas épocas.

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a corrente da tradição aumenta poderosamente devolume, alimentada pelas contribuições vindas do ime-dia to e intenso estudo da literatura antiga.

O material até agora conhecido - e muito encon-tra-se já nos comentários e anotações feitas no século XIX

a obras medievais - é verdadeiramente surpreendente.Ou antes, é surpreendente apenas para uma concepçãoromântica de poeta e poesia que em toda a obra líte-rária vê o produto espontâneo de vivências sentidaspela alma individual. Devido à investigação da artetrovadoresca e da poesia barroca, já nos últimos decêniosesta concepção estava fundamentalmente rectífícada.A investigação dos «topos» traz-nos ainda, como con-tribuição acessória, uma confirmação eficaz. Existeum tesouro de imagens poéticas, fórmulas fixas emaneiras técnicas de expor, que se aprendem e queaté o maior poeta não despreza. Quem não conheçaa origem antiga e a transmissão retórica deste materialpoético praticará graves erros de interpretação, e quemnão souber integrar-se em tal prática da vida literárianunca encontrará o verdadeiro acesso a largas épocasda história da literatura.

Aliás, a investigação dos topos, que trata portantoda tradição literária, não desíndividualíza nem nivelade forma alguma as obras e os autores. Com razãodiz Maria Rosa Lida, investigadora que se destacouneste campo: «En cambio, Ias motivos que penetrem enias letras modernas con ei Renascimiento no puedenmenos de dejer-se impregnar de Ia exaltación del indivi-duo, propia de ese momento histórico: de la vo/untad deiindividuo y no dei hábito escolar depende Ia elecciônde un tema o de una forma tradicional: individual es Iaeleboreciôn dei texto a que se ajusta, por ejemplo, un

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simil herededo, o el nuevo sentido con que se llena unmolde transmitido; individual y no menos reoeledore,Ia reducciôn o Ia complicecián de un motivo, su reeli-zecion más alta o su forma malograda; y cada una deesas expresiones individuales no só[o reflejan ai poetaque Ias pensá, sino tembién retreten en conjunto elsector de Ia historia cultural a que pertenecen»,

Pode-se, pois, até dizer que só o conhecimentoda «tredicionelided litererie» cria a possibilidade deapreender a particularidade dos poetas anteriores aoséculo XVIII. A noção da «tradicionalidad litersrie» foicriada por Menéndez Pidal, e não se faz injustiçaalguma a Curtius se afirmarmos que foi ele quem deuforma de método definitivo a processos de trabalhoaplicados, já muitas vezes, pelos investigadores dapoesia medieval, por um lado, e depois, em especial.pela investigação alemã da época barroca nos últimostrinta anos.

A investigação dos «topos» tem dois aspectos.Investiga, primeiramente, a tradição literária de certasimagens fixas e concretas, de motivos ou de fórmulasestereotipadas, e, por outro lado, persegue a tradiçãode certas maneiras técnicas de expressão. Do segundoaspecto mais tarde nos ocuparemos. Quanto ao primeiro,apresentamos apenas alguns exemplos.

Assim, a investigação da fórmula «puer senex»,por Curtíus, permitiu que se tirassem interessantesconclusões acerca da concepção das idades da vida;simultâneamente, o paradoxo da fórmula tornou-sesignificativo quanto ao clima estilístico em que a fórmulaera utilizada.

Outra investigação de Curtius incidiu no topo«Neture meter generationis» em que eram sobretudo

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interessantes as remodelações feitas pelos pensadorescristãos. Para a história da literatura foi ainda maisimportante a tradição da «paisagem amena». Umapaisagem completa é transmitida através dos séculos,acompanhada sempre de determinados cenários: os pra-dos, o ribeirinho, as brisas suaves, o canto das aves, etc.Sem o conhecimento da tradição deste topo, que, porvezes, se torna motivo autêntico, especialmente na líricado século XVII, todas as investigações se perdem novácuo, quando queiram determinar o sentimento danatureza do respectivo poeta a partir destas cenas.

Para a poesia espanhola e portuguesa são impor-tantes dois estudos que Maria Rosa Lida apresentou:a tradição do Ruisenor e a do Cieroo herido y IaFuente. Em ambos os casos é particularmente interes-sante acompanhar a alteração e o revestimento cristãodestas imagens, a princípio carregadas de mitologiae ética antigas.

Na lírica espanhola do Siqlo de Oro, o topo doveado ferido, junto da fonte, serve sempre de novopara exteriorização das penas da alma cristã solitária.O exemplo mais recente que nos dá a autora são osversos de S.or Juana Inés de Ia Cruz:

Si ves el cíervo heridoque baja por el monte acelerado,buscando, dolorido,alivio aI mal en un arroyo helado,y sediento al cristal se precipita,no en el alivio. en el dolor me imita.

Pode esperar-se, com razão, que o grande tesourotradicional de fórmulas de pensamento, imagens emotivos não represente já nenhum papel para a poesia

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desde o século XVIII. Todavia, não terá desaparecidopor completo. É como se em alguns topos fosse tãorico o significado, tão grande, completo, tão impregnadode emoção, que nunca mais podem perder-se. Não éa tradição retórica que lhes sustenta a vida, e talveznem sempre a cultura literária do poeta moderno.Raramente se poderá marcar quais os caminhos queo conduziram à tradição. Mas as fórmulas conser-varn-se: e damos só um pequeno exemplo, uma poesiade C. F. Meyer, como prova da continuidade da tra-dição daquela imagem do veado ferido junto da fonte.

1M WALDE

Es f1immert in den Ãsten,Der Bírke Stamm erblinkt,Nun weiss ich, dass irn WestenDíe Sonne purpurn sinkt.

Dort muss ein Meer von GlutenDer Abendhimmel seín,Híer rinnt ein stilles BlutenUm mich auf Moos und Stein.

[NO BOSQUE

Hâ cíntílações nos ramos,Da bétula o tronco fulgura;Agora sei que o ocidenteO sol que morre purpura.

Deve ser todo ele um marDe brasas o céu da tarde,Que em musgo e pedras deitadoVejo correr sangue que arde.)

(Trad. de P. Quintela I

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Pode dizer-se que esta poesia não é compreensívelse a não virmos como tendo por fundo aquela tradição.O poeta sentiu-o decerto e modificou por duas vezesainda a poesia. Damos a versão definitiva.

ABENDROT 1M W ALDE

In den Wald bin ich geflüchtet.Ein zu Tod qehetztes wuaDa die letzte Glut der SonneLânqs den glatten Stâmmen quillt.

Keuchend líeq' ich. Mie zu SeítenBlutend síehe, Moas und Stein.Strôrnt das Blut aus meinen Wunden?Oder ísts der Abendschein?

[ENT ARDECER NO BOSQUE

A este bosque me acolhi.Bicho que à morte fugia,Quando o braseiro do solP'los lisos troncos corria.

Sangram a meu lado o musgoE a pedra em que jazo, ofegante.É sangue das minhas F'rídas?Ou é luz do sol distante?)

(Trad. de P. Quintela I

o leitor sabe agora tratar-se de um animal, acossadode morte, e que se esvai junto da fonte, na floresta.Mas há ainda muita coisa obscura, sobretudo o impulsoque levou a modelar o motivo: somente pela históriado topo é que se descobre o núcleo íntimo da poesia,isto é, a secreta referência ao martírio de um eusolitário.

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De todas partes e de todas as literaturas têm che-gado, nos últimos tempos, subsídios para a investigaçãode topos, que E. R. Curtius soube canalizar para overdadeiro caminho. É de esperar que assim sejafinalmente tratada sistemàtícarnente uma área que foidescurada com prejuízo da história da literatura dohumanismo e do cultismo: a emblemétice,

Por emblema entende-se um sinal a que está ine-rente um determinado sentido; é, portanto, uma espéciede alegoria. Para a poesia foi de incalculável impor-tância a colecção de Emblemeta. publicada pelo huma-nista italiano Alciatus, pela primeira vez, em Milão,no ano de 1522. Não é demasiado chamar-lhe umlivro-base da poesia européia entre a Renascença e oPré-romantísmo. Esta obra foi muitas vezes publi-cada - do século XVI conhecem-se hoje quase cemedições diferentes - e foi imitada continuamente. DaAlemanha nomeemos as colecções de Gabriel Rol-lenhagen, Nucleus Emblematum select .• Colônia, 1611--1613. e [oachím Camerarius, Symbolorum et Emble-matum IV Partes. Nuremberga, 1590-1604; da Espanhaos Emblemas Moreles que [uán de Orozco editouem 1589 e seu irmão Sebastián em 1610. As colecçõesdo inglês Francis Quarles e do holandês [acob Cats,ambas do séc, XVII, transformaram-se em livros decabeceira da burguesia.

Alciatus apresenta dúzias de imagens, grosseira-mente gravadas, a que junta um texto latino, em verso,explicando o significado de cada uma. Nas anotaçõeslatinas seguintes, em prosa, são-nos apresentadas, comcopiosa erudição. inúmeras citações de escritores clás-sicos - precioso trabalho preparatório para a investi-gação de topos!

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Encontramos lá, por exemplo, um animal estranho.Pelos versos que o acompanham compreende-se niti-damente tratar-se dum camaleão; o sentido porém encon-tra-se já no título: in adulatores (contra os lisonjeiros).O cama leão é pois o símbolo da lisonja. Ou encon-tra-se a imagem de um homem, de pé, no meio daágua, a olhar para cima, para os ramos de uma árvorecarregados de frutos. É Tántalo, que aparece aqui comosímbolo da eueritie e, em seguida, fazem-se citaçõesde Petrónio Árbitro, Horácio, Cornélío Galo, AquilesEstácío, etc. Desta maneira foram moralizados emble-màticamente inúmeros mitos antigos, e também pará-bolas da Bíblia.

Esta emblernátíca era intimamente familiar aospoetas da época do Barroco e ao público culto. Com-preendía-se logo numa poesia qualquer referência alu-siva, e a literatura estava cheia delas. Damos apenasdois exemplos de época mais adiantada. O poetaalemão Christian Günther diz numa poesia à suaamada:

Eín grünes FeldDíent meinem SchíldeZum Wappenbílde,Bei dern ein Palrnenbaum zweí Anker hãlt.

(Um campo verdeServe ao meu escudoDe brasão.Nele. uma palmeira sustém duas âncoras).

Na poesia O Ciúme, de Barbosa du Bocage, asegunda estrofe começa com os versos:

Alterosas, frutíferas Palmeiras.Vós. que na glória equivaleis aos Louros.

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Vós, que sois dos Heróis mais cobiçadasQue áureos Diadernas, que reais Tesouros,Escutai meus tormentos, meus queixumes ...

o leitor moderno não percebe bem porque é queGünther quer a todo o risco pôr no seu brasão umapalmeira, árvore que, na Alemanha, é bastante rara;nem por que será ainda que Bocage considera as pal-meiras as árvores mais desejáveis e por que exalaráo poeta o seu queixume precisamente junto delas.A emblemática dá-nos a resposta. Em Alciatus encon-tra-se a imagem de uma palmeira. Os versos que aacompanham terminam com o «Gnome, quee complec-titur totius Emblemetis sententiem :

...... mentisqui constantis erít, preemia digna Feret.

A palmeira é o símbolo da constentie, da fidelidade.Por isso Günther a escolhe para símbolo do seu brasão;os leitores de então compreendiam o fino significadoda poesia de Bocage e porque este escolhia precisa-mente as palmeiras para se lamentar da infidelidadeda amada. Muitas subtilezas nas obras poéticas, aindaaté em épocas mais adiantadas, só se tornam compreen-síveis quando a emblemática nos é familiar.

4. A Fábula

o termo fábula serve, primeiro, para designar asnarrativas de animais, com sentido didáctíco, de queEsopo é considerado o mítico antepassado A ciênciada literatura usa-o ainda noutra acepção.

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Quando se reproduz o «conteúdo» de uma obrados géneros pragmáticos, quer dum drama, quer dumromance, quer duma balada, etc., a reprodução é sempremais curta do que a obra. O resumo do conteúdoatende unilateralmente ao decorrer dos acontecimentos,e de todas as partes da obra, das descrições, conversas,reflexões, etc., extrai somente, e sob forma de relato,o que é importante para a estrutura da acção, (Naobrigação de concentração e unilateralidade reside ovalor pedagógico das narrativas do conteúdo, tão usuaisna escola, enquanto que, para a educação artística, comojá se viu, o seu valor é reduzido.)

Se se tenta limitar o decurso da acção à extremasimplicidade, ao esquema puro, obtém-se precisamenteaquilo que a ciência da literatura costuma designarcomo a «fábula» de uma obra. Na prática, quando nosvetamos a este trabalho, reconhece-se muitas vezesque é necessário inverter a ordem do «conteúdo».A obra começa, talvez, no meio do decurso da acçãoe, mais tarde, por circunstâncias que então são dignasde discussão, volta ao princípio. A maneira de trabalhara fábula pertence às questões técnicas que cada autortem de resolver. Além disso, ao tentar determinar afábula, descobre-se não terem validade alguma para oesquema da acção toda a concretização e toda a fixaçãoindividual no espaço e no tempo. Repete-se agora, nocampo mais vasto de toda a obra, a mesma coisa quese deu ao extrair O motivo.

Tentemos, por exemplo, apreender a fábula doFrei Luís de Souse, e resulta: - Uma mulher, a quemfoi anunciada a morte do marido, no estrangeiro, casa-sede novo. Do casamento resulta uma filha. Anos vol-vidos, regressa aquele que todos supunham morto.

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DA OBRA LITERÃRIA 111

A criança, já de si sempre enfermíça, reconhece asituação como não tendo solução possível, e morre,enquanto os pais renunciam ao mundo.

A «fábula», neste sentido, é uma das noções maisantigas da ciência da literatura. Aristóteles designava-acomo «Mito» (Mythos), Horácio como «Forma». Aindahoje podemos aceitar a explicação dada por SoaresBarbosa em 179 I, no seu comentário à «Ars poetice»de Horácio. Diz-nos ele: «A fábula, chamada em gregoMythos e por Horácio forma, é, segundo Aristóteles.Poetica, capo VI, a «composição das coisas», i. é, aorganização, estrutura e plano geral de todas as partesduma acção em ordem a formar dela um todo beloe perfeito». A esta definição pode talvez acrescentar-se,do ponto de vista moderno, que, na fábula, já se tornamvisíveis os motivos centrais do decurso da acção.No caso de Frei Luís de Souse, por exemplo, o motivodo regresso ou o da renúncia ao mundo.

Não faltam os testemunhos dos próprios escritoresquanto à importância da fábula para a realizaçãodas suas obras. Assim, Balzac conta, no prefácio daPhysiologie du Mariage, que as emoções recebidas coma palavra «Adultere» do Código Civil, só tinham podidotransformar-se em energia criadora quando se lhe impôsa fábula de um casal que, após dez anos de vidaconjugal, se sentem pela primeira vez apaixonados umpelo outro. Aqui, a fábula surge de uma intuiçãorepentina e, muitas vezes, assim acontecerá.

Goethe conta-nos alguma coisa de semelhante acercada maneira como surgiu a obra Werthers Leiden,Já há muito tempo diante da sua imaginação pairavaum herói que, dotado da mais fina sensibilidade, porassim dizer vivia a vida do mais profundo da alma.

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A própria vivência de Goethe ante a natureza e a artee a sua experiência amorosa, principalmente nas suasrelações com Lotte Buff, forneceram algum material.Mas a obra não nascia; faltava ainda o esquema dodecurso da acção. Então, Goethe ouviu falar do suicídiodo jovem Jerusalem por orgulho ferido e amor infeliz,e, de novo em rápida intuição, eis a fábula concebidae o romance assegurado. O próprio Goethe formuloua fábula: « ... em que eu apresento um jovem que,dotado de profunda e pura sensibilidade e verdadeirapenetração, se perde em sonhos e devaneios e se vaiminando com especulações, até que, por fim, destro-çado por paixões infelizes, especialmente por um amorinfinito, mete uma bala na cabeça». As expressões:«perde-se», «se vai minando», «até que por fim» teste-munham nitidamente do carácter de composição dafábula. Sírnultãneamente, a fábula mostra, e ninguéma podia formular melhor do que o poeta o fez, que seeleve ler o romance como a história dum homem desensibilidade rica, e não como romance de um amorinfeliz. O amor por uma mulher já comprometida éum motivo copulado, mas não o motivo central, e muitomenos o tema.

Com a palavra «tema» apresenta-se uma noção novaque, igualmente, aparece nas poéticas antigas. SoaresBarbosa, em vez de tema, diz «assunto» e define:«Sujeito ou assunto é a ideia sumária da acção.O assunto, por exemplo, dos Lusíadas, é o descobri-mento da navegação do ocidente para o oriente».O assunto do Frei Luís de Sousa é a ruína de umafamília; o tema da novela de José Régio Davam grandespasseios... é a rapariga pobre, bonita, e os homens.Storm separa, muito nitidamente, na sua carta ao editor

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Westermann (6.x.1876) as noções: «o título danovela, cujo tema trago há muito na cabeça, podiana verdade indicar-lho - podia também esboçar-lhea fábula - chamar-se-à, em todo o caso, CarstenCurator ... »

Como a lírica não tem conteúdo de acontecimentos,nela não pode haver fábula. Existe, porém, forçosa-mente em todas as formas pragmáticas, portanto nasformas dramáticas e épicas. A sua importância é, noentanto, variável. Como é fácil de ver, é no dramaque ela é maior. Quase não haverá um verdadeirodramaturgo que não tenha esboçado claramente afábula do drama antes de sentar-se a escrevê-lo. Osdramaturgos da época do Stutm und Drang tentaram,eventualmente, escrever sem fábula, lançando ao papelcenas isoladas que se impunham à sua fantasia. Tive-ram porém de pagar esta falta de cuidado, pois aosseus dramas falta, às vezes, a travação verdadeiramentedramática, que exige a fábula segura como pressuposto.Mais tarde também muitos poetas chegaram a escreverdramas, levados apenas pelo entusiasmo por uma figura,um herói dramático. Mas a história do drama confirmarealmente a justeza daquela opinião enunciada porArístóteles há já milhares de anos: o «mito» (ou sejaa fábula) no drama é mais importante do que oscaracteres: é de importância primordial para a com-posição de uma tragédia.

Dentro das formas da arte narrativa, a novela pre-cisa de uma fábula claramente delineada. É da essênciadesta forma que tudo nela se relacione com o pro-gredir de uma acção, Já assim não acontece com aepopeia, que dá margem a episódios que não contri-buem imediatamente para a continuidade da acção.

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A este respeito, o romance mostra-se ambíguo. Háromances que mantêm o leitor em constante tensão pelacuriosidade de conhecer o seguimento. Os romanceshistóricos de Walter Scott e dos seus discípulos,ou ainda os romances policiais, tendem claramentepara esse fim. Em tais «romances de acontecimento»o autor deve ter, de antemão, traçado uma fábula pre-cisa. (Assim terá acontecido também com H. Walpole,embora ele escrevesse a 9 de Março de 1765 a W. Coleque começara a escrever o seu Castle of Otranto soba impressão imediata de um sonho, «without knowingin the least what I intended to say ar relate».) Asacções e episódios secundários talvez só surjamenquanto se vai escrevendo. Em contraste com o dramae a novela, a relação entre a obra e a fábula é noromance lassa bastante para poder permitir sem danotais alargamentos - antes pelo contrário, com vantagempara a obra.

Em diferentes países surgiu no século XIX o desejode apresentar no romance, não um acontecer que sevai desenrolando no tempo, mas uma simultaneidade,uma situação como, por exemplo, o estado da «Socíe-dade» em determinada época. O «romance de socie-dade», ou o «romance de época» (abrangendo aindamais do que o sector da sociedade) é, realmente, umnovo tipo do romance do século XIX. Thackeray, Zola,Fontane, Eça de Queirós são os seus representantesmais conhecidos.

Para poder chegar a um fim, o romancista precisatambém aqui de algo semelhante a uma fábula. A suaimportância, porém, é muito reduzida, pois, com odecorrer do tempo, vai contra a verdadeira intençãoorientada no sentido de um estado. Aqui, ela é antes

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um mal necessario, Não admira que o autor, tendoconcebido claramente o tema geral, comece O romancesem saber o prosseguimento da história, sem ter umafábula. Assim fez, por exemplo, Thackeray com a suaobra-prima Vanity Fair. Deitou mãos ao trabalhosem ter um caminho traçado, e sem se preocupar ondeiria por fim parar. Theodor Fontane escolheu comofábula, para a sua obra Frau Jenny Treibel. umasimples história de amor que em verdade só põe emmovimento algumas figuras acessórias, mas lhe tor-nou possível realizar o seu verdadeiro propósito, adescrição da vida da sociedade em Berlim no últimoquartel do século XIX. Eça de Queirós foi mais cuí-dadoso na elaboração das fábulas. Mostrou-nos istocom toda a clareza António José Saraiva no pri-meiro capítulo do seu livro sobre As Ideias de Eça deQueirós. É só para Os Maias e A Capital queA. J. Saraiva chega à conclusão de que, aqui, a «estru-tura se esconde sob a massa do material observado».Mas, é claro, também estes romances têm uma fábula;no caso de Os Maias, Eça foi buscá-Ia ao drama dedestino. Contudo, apesar de toda a relativa firmeza dafábula nos romances de Eça, é-nos lícito perguntar sea sua função se pode comparar com a que a fábulatem em romances «de acção», p. ex. em Kennilworthde W. Scott.

A compreensão da fábula contribui para tornar umaobra transparente e apreensível. Além disso, torna-seimportante para os problemas da criação poética, datécnica literária, assim como, finalmente, dos génerosliterários.

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CAPíTULO III

CONCEITOS FUNDAMENTAIS DO VERSO

Mais estritos do que os conceitos relativos ao con-teúdo são, na sua maioria, os conceitos relativos àsqualidades formais das obras literárias. Os própriosIenómenos, em grande parte, são mais claramente deli-mitados, mais palpáveis. Por. isso, a análise incorreFàcílmente no perigo de se contentar só com a veri-ficação das qualidades formais e julgar ter assim obtidoalguma coisa de essencial. A censura à dissecação,tantas vezes formulada contra a crítica científica dasobras poéticas, tem a sua origem no uso rígido, sóanalítico, i. é, dissolvente dos conceitos elementaresformais.

Como introdução ao trabalho teórico, é indispen-sável o conhecimento destes conceitos elementaresformais. Referem-se eles a certos estratos da obra e,por isso, podem ser reunidos em vários grupos. Antes,porém, é preciso insistir em que se trata de uma pre-paração para o verdadeiro trabalho, e que estes con-ceitos só podem vir a ser significativos e férteis quando,mais tarde. forem subordinados a um ponto de vistasintético.

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I. Sistemas de Verso

Por mais que recuemos na história da literaturado nosso povo ou de um estrangeiro, depara-se-nossempre uma forma de linguagem estranhamente deli-mitada, tradicionalmente designada como verso. O queé na realidade o verso, como é constituído, quaís sãoas suas origens (derivação da dança ou de um caminharfestivo em actos de culto), como se realiza, como, emcada caso, um sistema de verso se relaciona com alíngua, são problemas que fazem da ciência do versoum ramo particular da ciência da literatura. Em partesão muito complicados, e levam-nos para fora da zonapuramente línquístíco-líteráría. Algumas dificuldadesse tornam logo visíveis quando se cotejam, por exemplo,versos portugueses com versos ingleses, por um lado,e versos gregos, por outro lado. As observações válidaspara uns não se ajustam aos outros; defrontam-sesistemas diferentes de verso.

Como definição geral de verso, podemos dizer:O verso faz de um grupo de unidades menores articula-tórias (as sílabas) uma unidade ordenada. Esta unidadetranscende-se a si mesma, i. é, exige uma continuaçãocorrespondente.

Como já sugerimos, a ordem na unidade do versorealiza-se de diferentes maneiras. Um leitor portuguêsestá habituado a que a ordem consista numa conta-gem fixa de sílabas, e na fixação de alguns acentos.De maneira semelhante se costuma estrutura r o versotambém nas outras línguas românicas.

Nas línguas clássicas, pelo contrário, a ordenaçãorealiza-se como uma série regulada de unidades de

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tempo, longas e breves. Primeiramente são medidasas sílabas e incluídas nas duas categorias de brevesou longas. Um verso contém em si diferentes unidadesmenores, compostas, de cada vez por forma determinada,por longas e breves. O hexãmetro contém, como onome nos diz, seis metros (Metra), formados, cada um,por uma longa e duas breves, no que ainda é deimportância basilar serem duas breves de valor igualao de uma longa, e no verso poderem ser realizadoslinquisticamente por meio de uma sílaba «longa».O verso germânico é, por sua vez, de género bemdiverso. Aqui, as sílabas são «pesadas», i. é, segundoo grau tônico, incluem-se nas duas categorias dassílabas tónicas e átonas. O verso apresenta-se como umasérie ordenada de sílabas acentuadas e não acentuadas.Dentro do verso surger assim pequenas unidades quesão designdas como pés ou compassos (Takte). Estespés, porém, não precisam de ser iguais e não se tornamaudíveis, como tais. Só existem numa projecção esque-mática do verso sobre o papel. O verso é definido pelonúmero das sílabas acentuadas [ársis ou Hebunqen},O que é átono chama-se tésis (Senkung).

Para melhor entendimento dos três sistemas, podemservir três breves exemplos.

1. Alma minha gentil, que te partisteTão cedo desta vida, descontente.Repousa lá no Céu eternamenteE viva eu cá na terra sempre triste.

A característica do verso reside no número igualdas sílabas, usadas em cada linha. Neste caso trata-sede decassílabos, porque, nas línguas românicas, só écostume contar as sílabas até ao último acento. Além

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120 ANALISE E INTERPRETAÇÃO

disso, a característica do verso reside na fixação de doisacentos dentro de cada verso: a sexta e a décima sílabastêm acento. Naturalmente, há mais acentos em cadaverso, mas a sua posição varia.

2. Arma vírurnque cano Trojee qui primus ab oris

o esquema deste verso da Eneida de Virgílio é,sendo - o sinal de uma longa, '-' o de uma breve:

- VV-\JU -\....JV-V\.J -vv - V

Como se vê, repete-se seis vezes o metron - vv.

Em dois casos, no verso citado, as duas breves sãosubstituídas por uma longa (Tro -, qui). Uma longanão é atribuída somente às sílabas com vogal longa,mas também às de vogal breve que terminam comconsoante dupla.

3. Your háwk's blúde was néver ~ae réd

o esquema deste verso da balada inglesa Edicerd,,

sendo x o sinal de sílaba tônica e x o de sílaba átona,seria:

I I I Ixxxxxxxx

Sobre o papel pode-se pôr um traço, indicativo depé, ou antes, ou depois de cada acento. Mas seriauma arbitrariedade. Reconhece-se imediatamente queos pés são totalmente diversos, As tésis variamentre O, 1 e duas sílabas. O que é decisivo é que osversos desta poesia, que «correspondem» ao citado,

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têm sempre quatro acentos. Além disso é importanteharmonizarem uns com os outros, mais ou menos, estesacentos: na declamação não só se reconhece nitida-mente quais são as sílabas tônicas e quais as átonas,mas também os acentos em si são, aproximadamente,de força igual. Não existem no verso as diferençasde grau, como se podem ouvir na prosa, onde, aliás,também se distinguem sílabas acentuadas e não acen-tuadas.

Para o verso em geral é decisivo que as partesvocais de maior relevo (as longas ou as acentuadas)voltem em intervalos mais ou menos regulares, isto é,após a passagem de quase um segundo, como verificoua investigação experimental. Nesta regularidade dosintervalos reside a diferença decisiva entre poesia eprosa.

A diferença e, simultãneamente, a analogia entreo sistema de verso «antigo» e o «germânico» é nítida;as funções, exercídas ali pelas longas e breves, são-noaqui pelas ársis e tésis, Ao sistema antigo da quanti-dade opõe-se o sistema germânico da qualidade. A ana-logia fez parecer possível a reprodução do verso antigonas línguas germânicas: as longas substituíam-se pelastônicas, as breves pelas átonas, quando se não tinhamesmo a ambição de reproduzir ao mesmo tempolongas e breves. Por outro lado a diferença exigia umaremodelação: ali longas, aqui acentos. Na verdade, oencontro com a métrica antiga foi de fatídico signi-ficado para a métrica germânica. Enquanto que aantiga métrica germânica suportava as maiores liber-dades no preenchimento das tésis, o conhecimento damétrica antiga levou à restrição desta liberdade e,também no verso germânico, à construção com pés

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iguais (o caminho histórico seguiu através dos carminarhythmica da hímnica dos princípios da Idade-Média).Em princípio, a imitação dos metros antigos é tambémpossível nas línguas românicas; então seriam fixos,a priori, todos os acentos.

2. Espécies de pés mais importantes

A métrica antiga designa com o nome de jamboou iembo o pé constituído por uma unidade de tempobreve e outra longa. Nas línguas germânicas o iamboaparece como uma sequêncía de uma sílaba átona e deuma tónica:

Beüehl du deine WegeI

xx X xx xx

To be or not to be that is the questionI i;

xxx xxxxxx xx

Na antiga métrica, o troqueu consiste na uniao deuma unidade de tempo longa e de uma breve. Naslínguas germânicas aparece como pé de verso de umasílaba tónica e uma átona:

Rückwãrts, rükwãrts, Don RodrigoI

X xI

X XI I

X X X X

Go and catch a falling starI I I

xx X xxx x

Encontra-se um exemplo português para o troqueuna Barca Bela de Garrett onde, exceptuando a segunda

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DA OBRA LITERARIA 123

estrofe, todos os versos são constituídos por troqueus.No português trata-se de caso pouco vulgar; a alter-nância regular (seja iâmbica, seja trocaica) na maioriadas vezes é considerada como algo de rígido, ou, pelomenos, estranho. Os troqueus de Garrett permitem apergunta se o poeta não estaria sob a influência ger-mânica aquando da concepção da poesia.

Com o nome de dáctilo designa-se o pé formadopor uma longa e duas breves, i. e, uma sílaba acentuadae duas não acentuadas:

Hab ich den Markt und die StrassenI

X X XI

X X X

,.x x

Thís ís the forest primeval. The murrnurinqI I

X X X x x x x xI

X X X X

Um anapesto liga duas breves e uma longa, i. é,duas sílabas átonas e uma tónica:

Obers [ahr, übers [ahrI

X X X X X X

Whíle the sound whírls around

x x xI

X X X

A métrica grega conhece ainda outros metre: o crê-tico (-.v.-), o baqueu (v.- -), o coriembo (-uu-),o jónico (vu- -). O mais funesto para a métrica alemãfoi o espondeu (- -). Na antiguidade aparece ele, porexemplo quando nos dáctilos do hexãmetro a tésis deduas sílabas era substituída por uma longa (-LH)).

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3. O Verso

Para medir um verso nas línguas romarucas, con-tam-se as sílabas até ao último acento. Para os versosmais vulgares foram adaptados nomes fixos.

Em português chama-se ao verso de cinco sílabasredondilha menor, ao de seis heróico quebrado, ao desete redondilha maior, ao de dez verso heróico. Umverso de 12 sílabas chama-se alexandrino, quando,depois da sexta sílaba, se introduz uma pausa nítida;chamam-se cesutes as pausas fixas no verso. O alexan-drino é pois formado por dois meios versos ou hemís-tíquios. O nome explica-se como tendo vindo dasepopeias sobre Alexandra Magno, franco-medievais, emque era usado. Este verso é muito cultivado nas lite-raturas românicas, especialmente na francesa. Tal qualcomo na duodécima sílaba, um acento cai também sobrea sexta sílaba, que está antes da cesura.

Si ton coeur, gêmissant du poids de notre vie,Se traíne et se débat comme un aigle blessé ...

Como em português, também nas outras línguasromânicas se dá a elisão, i. é, quando uma palavracomeça por vogal não se pronuncia a vogal do finalda palavra antecedente, de maneira a não se contara sílaba em que se encontra: treine-et são pois duassílabas. Nas línguas germânicas, a elisão tem de setornar visível pela omissão da vogal final.

Sah ein Knab ein Rõsleín stehn.

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DA OBRA LITERA.RIA 125

Se, em vez de Knab, estivesse Knebe, o «e» seriapronunciado e seria contada mais uma sílaba. À colisãode uma vogal final com a vogal inicial (Knabe eínen )chama-se hiato, e, geralmente, é considerada dura essacolisão.

Nas línguas germânicas um verso é determinadopelo número de acentos (Hebungen) e pela indicaçãodo género do pé:

To bé or nót to bé that ís the quéstion

é um verso com cinco acentos, constituído só por iambos;é por isso um pentâmetro iâmbico, Sendo usado semrima, dá-se-lhe o nome de verso branco (blenk verse,Blenkvers}, No drama inglês e alemão é o verso maisusado.

Ao lado do verso de cinco acentos há versos íãmbícosde quatro, três e dois acentos, até de um são possíveis,bem como por outro lado os há de seis, sete, oito e nove.Em todas as línguas é regra assente: quanto maislongo for o verso, tanto menor será a sua eficáciacomo unidade. Na declamação tornam-se, então, neces-sárias pausas, de maneira que à expansão do verso seopõem barreiras naturais.

Na literatura germânica, o alexandrino aparece, namaioria das vezes, como um iambo de seis ársís, comcesura fixa após a sexta sílaba. Tornou-se usual nas Iíte-raturas inglesa e alemã, especialmente nos séculos XVII

e XVIII, em que mais forte se tornou a influência Iran-cesa. Como, porém, nas línguas germânicas são fixosnão só dois acentos, mas todos os acentos, o versotorna-se incomparàvelmente mais hirto, mais rígido doque nas literaturas românicas. Um exemplo evidenciará

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bem esta rigidez: é tirado de uma poesia de AndreasGryphius, do século XVII:

Was frag ich nach der WeltI Síe wird in Flammen stehn:Was acht ích reíche Pracht? Der Tod reisst alies hin!Was hilft die Wíssenschaft, der rnehr denn Falsche Dunst?Der Liebe Zauberwerk ist tolle Phantasíe:Díe Wollust ist Iürwahr nichts ais ein schneller Traum;Díe Schonheít ist wie Schnee: dies Leben ist der Tod.

Dos versos trocaicos, o mais usado nas línguasgermânicas é o troqueu de quatro acentos; exemplosencontram-se nos dois versos já citados:

Rückwãrts rückwãrts, Don Rodrigo!Go and catch a falling star.

Tornou-se especialmente frequente quando, noRomantismo, acordou o interesse pela literatura espa-nhola. Os românticos julgavam até que o troqueu dequatro acentos correspondia exactamente ao versoespanhol de oito sílabas. Não reparavam, contudo, queno troqueu, na literatura germânica, todos os acentosestão fixos no verso, enquanto que, na espanhola, sendolíngua românica, são variáveis.

Damos alguns exemplos de versos dactílicos eanapésticos:

1) Wíndet zum Kránze díe góldenen Âehren2) Trávelling páinfuIIy ôver the rúgged road3) übers [áhr, übers [áhr, wenn der Frúehling dann kómmet4) In the mórning of !ife, when its cáres are unknówn.

No primeiro e no segundo exemplo, trata-se dedáctílos de quatro acentos; no terceiro e no quarto deanapestosde quatro acentos.

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No primeiro exemplo falta uma sílaba no fim; o metro

exige, como terminação: ; x x: a realização, porém, noverso, só se dá por meio de duas sílabas. Versosincompletamente preenchidos, chamam-se catalécticos.

Nas línguas germânicas, o poeta pode permitir-se taisliberdades no final dos versos. Nos versos íâmbícos,que têm de terminar por sílaba acentuada, de acordo

com o esquema x ;, não é raro encontrar-se uma sílabaa mais, não acentuada:

To bé ar nót to bé, that is the quéstionHeráus in éure Schátten, rége Wípfel, ..

Um verso que termina em sílaba acentuada chama-semasculino, um verso que termina em sílaba não acen-tuada chama-se feminino.

Mas ao lado dos versos formados só por pés iguaisencontram-se nas literaturas germânicas, também, versoscom pés desiguais, i. é, não se fixou previamente se,na tésis, há uma, duas ou até mais sílabas, ou se atésis não falta por completo, de forma a seguirem-seduas ársis. Nestes versos é lícito reconhecer a herançaviva da métrica germânica. É certo não serem tãograndes as irregularidades do preenchimento como naépoca germânica; na maioria das vezes limitam-se àalternância entre a tésis de uma e duas sílabas. Estesversos com preenchimento livre são especialmentecaracterísticos da literatura popular. São deste géneroa maior parte das canções populares das literaturasgermânicas e, depois, uma boa parte da lírica artísticapopular, criada no século XIX, sob a influência dascanções populares descobertas de novo. O verso iso-lado é então determinado pelo número dos acentos, a

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128 ANALISE E INTERPRETAÇÃO

que se alia ainda a verificação: com tésis irregular(ou com tésis de uma ou duas sílabas).

Como primeiro exemplo damos os primeiros versosde três estrofes diferentes da balada de Edward:

a) Why does your brand sae drop wí' bludeb) Your hawk's blude was never sae redc) And what will ye do wi' your tow'rs and your ha',

Em a) encontra-se um verso iâmbico regular. Pelocontrário, em b), após a primeira ársis, falta a tésis,ao passo que, após a terceira ársis, se encontra umatésis de duas sílabas. Em c) toda as tésis são preen-chidas com duas sílabas. Se medíssemos os versos cita-dos, tínhamos de dizer: trata-se de versos com quatroacentos com tésis lives, de O até 2 sílabas. Os versossão masculinos e começam com sílaba não acentuada{enecruse, Auftakt). (Fala-se de enecruse quandoexistem uma ou mais sílabas não acentuadas antes doprimeiro acento. Em versos de pés iguais responde-seà pergunta quanto à anacruse, por meio da indicaçãodo género do pé).

Como segundo exemplo, sirva a primeiro estrofede uma poesia, nascida do conhecimento da métricada canção popular:,

Es war ein Kõnig in Thule,Gar treu bis an das Grab,Dern sterbend seine BuhleEínen goldnen Becher gabo

Os versos são relativamente «regulares»; trata-se,em quase todos, de iambos de três acentos, em quesão femininos os versos 1 e 3, e masculinos os ver-sos 2 e 4. Há porém algumas irregularidades epopu-

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DA OBRA LITERARIA 129

lares»: depara-se-nos assim no primeiro verso uma tésisde duas sílabas (nig in) e na quarta uma anacruse deduas sílabas [einen ),

Na adaptação às línguas germânicas, também osversos antigos receberam um preenchimento irregular.O hexâmetro antigo forneceu a possibilidade de substi-tuir, na tésis, duas sílabas breves por uma longa. Naslínguas germânicas aparecem na tésis ora uma, oraduas sílabas não acentuadas. O hexâmetro é, por isso,classificado como um verso de seis acentos com tésis deuma ou duas sílabas (depois do quinto acento é normao dissílabo}, sem anacruse, mas com final feminino.Desde o Messias de Klopstock, é este o verso épicopreferido na literatura alemã; na literatura inglesanão ocupa situação tão dominante. Quando falta atésis atrás do terceiro e do sexto acento, o hexâmetrotransforma-se no pentâmetro. Os dois acentos quecolidem são separados por uma cesura.

4. A Estrofe

Ao definir o verso, aludiu-se à necessidade de umacontinuação correspondente. Um verso isolado acordaem nós, por certo, uma vivência rítmica. como aliás jáo conseguem muitos títulos (Paradise Lost, Buch derBilder, Pôr do Sol, etc.); mas. segundo a nossa maneirade ver. para o verdadeiro carácter do verso algumacoisa lhes falta. O que falta é a continuidade demovimento. a repetição. Com efeito, «versas», primí-tívamente, significava o par de sulcos. o movimentode ir e vir executado pelo lavrador ao arar o campo.

A continuidade pode dar-se quando o mesmo tipo

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130 ANALISE E INTERPRETAÇAO

de verso se repete sempre de novo. -a o que acontecena epopeia em hexâmetros ou no drama em versobranco. O poeta deve evitar, precisamente aqui, oisolamento demasiado rígido de cada verso. A repe-tição regular de unidades idênticas acaba por cansare, com o tempo, tem efeito monótono. Uma lei ele-mentar de estética exige em tudo o que se vaiordenando no tempo a variação nos elementos da arti-culação. O meio mais simples é o «verso corrido» (1)[Eniembement, Zeilensptunq, tun-on fines): o sentidosalta de um verso para o seguinte e atenua assim arigidez do verso.

A questão assume outro aspecto se o verso se integracomo parte de uma estrutura superior. O caso maissimples é a ligação de dois versos em um grupo.Esta ligação é a usual, por exemplo, nos antigosversos germânicos. As literaturas modernas, que todasadoptaram a rima, utilizam-na frequentemente comomeio de ligação para dois versos consecutivos; comogrupo mais simples, temos assim os versos empare-lhados.

Ainda é mais nítida a fusão do verso numa unidadesuperior dentro da estrofe que, como tal, é reconhecíveljá pela disposição tipográfica.

Nas literaturas românicas e germânicas é frequentea estrofe de quatro versos, especialmente na literaturapopular, em que sempre se correspondem dois versos.Nas literaturas germânicas é muito vulgar a alternânciade versos de três e quatro acentos. A quadra assim

(') O tradutor propõe e defende esta designação. muito maissugestiva do que o «encavalgamento» que outros uS<lm, adaptandoa palavra espanhola «encabalgamiento».

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DA OBRA LITERARIA

formada chama-se estrofe da canção popular (Volks-liedstrophe}, Se todos os versos têm número igual deacentos, são diferenciados, pelo menos, pelo final decada um. Já encontrámos um exemplo na poesia deGoethe Der Künig in Thule,

Es war ein Kõnig in ThuleGar treu bis an das Grab,Dern sterbend seine BuhleEinen goldnen Becher gabo

Na «estrofe de Chevu-Chese» alternam versos dequatro e três acentos; no entanto o final é sempremasculino. O nome da estrofe provém do duma célebrebalada popular inglesa. Conquistou também a baladaartística. Sirva como exemplo a primeira estrofe dabalada de Chevy-Chase:

God prosper long our noble king.Our Iives and safeties alI;A woeful hunting once there didln Chevy-Chasa befall.

à maior parte das formas estrófícas tradicionais sãode origem românica. No terceto italiano, adoptado porDante na Divina Comedia, o carácter da estrofe nãoé fortemente acentuado devido à ligação da rima degrupo para grupo. O esquema da rima é: a b a, b c b,cdc ... yzyz.

Uma das mais célebres formas de estrofe é a oitavarima (it. ottava rima, al. Stanze). Nas literaturas romã,nicas tornou-se a forma favorita para a epopéia(Ariosto, Camões, Tasso). Penetrou também nas lite-raturas germânicas em que o verso italiano de onzesílabas é reproduzido na maior parte das vezes pelo

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iambo de cinco acentos, mas podendo ter, livremente,a terminação do verso masculina ou feminina, Eminglês, também se implantou uma outra forma, a chamadaestância spenseriena [Spenserien Stenza, do nome dopoeta Edmund Spenser}. A oito versos com o esquemade rima a b a b b c b c, seque-se um nono com a rima c,mas este com seis acentos, em contraste com os cincoacentos dos anteriores, marcando assim fortemente ofinal. Na oitava autêntica, o final já é acentuado peladistribuição da rima: a b a b a b c c.

Na literatura inglesa, desde o humanismo (grupodo Areópago), e na alemã, especialmente desde oséculo XVIII, usaram-se com verdadeiro afã as medidasdas odes gregas, mas essa transferência teve de seadaptar sempre de novo a outro sistema de verso.As sílabas longas e breves, antigas, foram substituídaspor sílabas acentuadas ou não acentuadas. Damos osesquemas para a ode elcaice, asclepiádica e sáfica, comum exemplo de cada.

Ode alcaica:

v-v-v-vv-v-

v-v-v-vv-v-

v-v-v- v -v

-vv-vv-v-v

o míqhty-rnouth'd inventor of harmonies,O skíll'd to sing of Time or Etemity.God-qífted orqan-voice of England.Milton. a na me to resound for ages.

(T1!NNYSON)

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Ode esclepiédics :

-V-vv- -vv-v-

-v-vu_ -vv-u-

-u-vu-v

-u-vu-v __

Wenn der sílberne Mond durch die Gestrãuche blicktUnd sein schimmerndes Lícht über den Rasen geusstUnd die Nachtigal flõtet,Wandl' ích traurig von Busch zu Busch.

(HÕLTY)

Ode sáfica:

-v-v-vv_v_V

-v-v-vv-v-v

-v-v-vv-v-v

-vv-v

So the qoddess fled Irorn her place, with awfulSound of feet and thunder of wings around her:While behínd a clarnour of singing women

Severed the twilight.(SWINBURNB)

A adaptação da métrica antiga das odes tambémfoi tentada nas línguas românicas, ocasionalmente atécom a aceitação do sistema quantitativo, i. é, reprodu-zindo as breves antigas por sílabas breves e as longasantigas por sílabas longas. Porém, tal qual como nasliteraturas germânicas, onde se tentou a mesma coisa,não pôde dar resultado esta tentativa. Nas românicas,

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134 ANALISE E INTERPRET AÇAO

foram infrutíferas, no fundo, todas as diligências parautilizar as medidas antigas por meio de uma imitaçãofiel dos acentos. À maneira românica de sentir o versorepugna tal fixação de todas as ársis e têsís. Na Itália,a discussão estende-se pelos séculos fora: Leon BattistaAlberti, Ariosto, Trissino, Chiabrera e Carducci sãoos mais conhecidos entre os que na discussão têmtomado parte actlva. Em Portugal. as tentativas limi-taram-se quase que unicamente à «Arcádia» (AntônioCorreia Garção, António Dinis da Cruz e Silva entreoutros) e a Castilho.

5. Formas de Poesia

Há poucos sistemas estrófícos de forma fixa pelosquais antecipadamente se estabeleça a construção detoda a poesia. Na sua maioria, derivam mais uma vezdas literaturas românicas.

O ttioleto compõe-se de oito versos. O primeiroverso (eventualmente com pequenas modificações) voltana quarta e na sétima, o segundo na oitava linha.Só podem usar-se duas rimas que se distribuem daseguinte maneira: a b a a a b a b, Como exemplo, eis oTriolet de W. E. Henley:

Easy is the Triolet,If you really learn to make it!Once a neat refrain you \]et.Easy is the Triolet.As you see! - I pay my debtWith another rhyme. Deuce take ít,Easy is the Tríoler,If you really learn to make itl

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DA OBRA LlTERARIA 135

[Fácil é o Tnoleto,Se bem se aprende a fazerlCom um bom refrão completo.Pãcil é o Tríoleto.Como vêeml - C'um selectoNovo rimar~'Stão a ver?-,Fácil é o Tríoleto,Se bem se aprende a Iazerl]

I Trad. de P. Quintela)

Como o trioleto, também o rondeeu é oriundo deFrança. Consta de treze versos e duas partes: no finalde cada parte repetem-se as palavras do princípio doprimeiro verso como estribilho. Também aqui só podemusar-se duas rimas.

Parente próximo deste é o rondei, também criadopelos franceses. Na maior parte dos casos compõe-sede 14 versos, usa só duas rimas e repete os dois pri-meiros versos (eventualmente apenas o primeiro) nomeio e no fim. Como exemplo, sirva o conhecido Rondeide I'edieu de Edmond Haracourt:

Partir, c'est mourir un peu,C'est mourir à ce qu'on aime:On laisse un peu de soí-mêmeEn toute heure et dans tout líeu.

C'est toujours le deuil d'un vau,Le derníer vers d'un poêrne:Partir, c'est mourir un peu,

Et l'on part, et c'est un leu,Et [usqu'à I'adieu suprêmeC'est son ãme que l'on sêrne,Que I'on sêrne à chaque adieu:Partir, c' est mourir un peu,

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Encontramos o rondei em diversos simbolistas fran-ceses, por ex. em Mallarmé. .Em Portugal. Eugêniode Castro pretende ter sido o primeiro a usar estaforma estrófica (Prefácio de Oaristos). Tal como ele,na Inglaterra estava Swinburne sob a influência dosimbolismo francês. :É certo que Swinburne desen-volveu o rondei na forma por ele chamada «Roundel»,Aqui, o estribilho está depois do terceiro verso e donono, como final, e de maneira a rimar com o segundoverso. O esquema é pois a b a (b) b a b a b a (b).Arthur Symons, também dependente do simbolismofrancês, aceitou a nova forma com entusiasmo. Trans-formação ainda mais forte foi a introduzida porGeorg Trakl; os versos por ele intitulados «Rondel»movem-se numa estrofe ordenada como que em imagemde espelho:

VerfIossen ist das Gold der Tage,Des Abends braun und blaue Farben:Des Hírten sanfte Flõten starben,Des Abends blau und braune Farben;VerfIossen íst das Gold der Tage.

[Eis o ouro dos dias já passado,As cores pardas e azuis do entardecer:As flautas do pastor acabam de morrer,As cores azuis e pardas do entardecer:Eis o ouro dos dias já passado.]

É oriundo da Itália o medriqel, que penetrou noestrangeiro sobretudo com as operetas. É um grupode 3 até cerca de 20 versos, sendo estes de tamanhodiverso e construção diferente. Na posição da rimareina também liberdade completa; era costume incluirversos sem rima, enquanto que, no final, era usada,

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DA OBRA LITERARIA 137

na maioria das vezes, uma parelha, Mais tarde, nasliteraturas germânicas, passou-se a igualar, não o tama-nho, mas sim a construção dos versos, usando habitual-mente só versos íâmbícos, Nesta forma já não existiadiferença alguma dos «vers libres» dos franceses, Noexemplo seguinte, de Miguel Ângelo, misturam-se írre-gularmente apenas versos de seis e dez sílabas, comoera de uso nos madrigais românicos:

Chondocto da rnolt'anni ali' ultirn' ore,Tardí conosco, o mondo, i tuo dílectí.La pace, che non ai, altruí promectiEt quel riposo c'anzí aI nascer muore,La uergognia e 'I timoreDeqlí anni, c'or prescriueli ciel, non mi rinnuouaChe 'I uecchío e dolce errore,NeI qual chí tropo uiueL'anírn' ancide e nulla aI corpo qíoua,li dico e 50 per pruouaDi me, che 'n cíel queI solo a miqlíor sorteCh'ebbe aI suo parto piu pressa Ia morte,

o gazel (aI. Ghasel) tem a sua origem no árabe,e foi utilizado durante algum tempo por poetas alemães,que o conheciam através do persa, O ghasel (<<teia»)consta de 3 a 1O pares de versos, Depois da primeirarima emparelhada repete-se a mesma rima em todosos versos pares; de preferência usam-se rimas ricas.O exemplo seguinte é do conde de Platen:

Der Strom, der neben rnír verrauschte, wo ist er nun?Der Voqel, dessen Lied ich lauschte, wo íst er nun?Wo ist die Rose, díe díe Freundin am Herzen truq,Und jener Kuss, der rnich berauschte, wo ist er nun?Und [ener Mensch, der ich qewesen, und den ích lãnqstMit elnern andem Ich vertauschte, wo ist er nun?

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[O rio, que a meu lado murmurava, onde está agora?A ave, cujo canto eu escutava, onde está agora?E a rosa, que a amada punha ao peito,E o beijo, que assim me inebriava, onde está agora?E aquele homem que eu fui, e que eu há muitoPor outro Eu trocava, onde está agora?)

A sextine, invenção do provençal Amaut Danfel,compõe-se de seis estrofes de seis versos. As palavrasfinais dos seis versos da primeira estrofe repetem-seno final de todas as outras, e, habitualmente, na sérieseguinte: 6 I 5 2 i 3, A palavra final do sexto versode uma estrofe é, pois, sempre a palavra final do pri-meiro verso da estrofe seguinte; a do primeiro versonaquela, é a palavra final do segundo verso nesta, etc.Às seis estrofes segue-se uma estrofe de três versos;cada verso desta contém duas das palavras, sendo aordem do seu seguimento a da primeira estrofe, Estaordem sofreu variações. Esta forma, reconhecida comoa mais difícil, encontra-se frequentemente na poesiarenascentista, por ex. em Petrarca, Gaspara Stampa,Camões, Bernardim Ribeiro, Diogo Bernardes, etc.;mas ainda depois foi usada algumas vezes por líricoscom o deleite da forma. Como exemplo, sirva umasextina de Camões:

Foge-me pouco a pouco a curta vida,Vai-se-me o breve tempo de ante os olhos,E do viver me vai levando o gosto;Choro pelo passado, mas os diasNão se detêm por isso do seu curso,Passa-se, enfim, a idade e fica a pena.

Que maneira tão áspera de penaQue nunca um passo deu tão longa vidaFora de trabalho e triste cursol

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Se no processo meu estendo os olhos,Tão cheio de trabalhos vejo os diasQue já não gosto nem do mesmo gosto,

Os prazeres, o canto, o riso e o gosto,A continuação da grave penaMos levou, que não ponho culpa aos dias;A culpa é o destino, porque a vidaSempre celebrará os belos olhos,Por mais que do viver se alongue o curso.

Sigam os céus o seu natural cursoA toda gente dêrn tristeza ou gosto;Façam, enfim, mudanças; que meus olhosNunca verão no mundo senão pena.Nem descanso terei já nesta vidaPara poder em paz passar os dias.

Vão sucedendo uns dias a outros dias;Não perde o tempo nada do seu curso,Perde sõmente a curta e breve vida.Foge-lhe como sombra a idade e o gosto;Vai-se-lhe acrescentando mágoa e pena,De que são testemunhas os meus olhos.

Mas nunca da minha alma, claros olhos,Vos poderão tirar os longos dias,Cresça quanto quiser trabalho e pena;Que, pois para de trás não toma o cursoDos anos, isto só terei por gosto,Para poder passar o mais da vida.

Canção, já tive vida, já meus olhosMe deram algum gosto; mas os dias,Com seu ligeiro curso, mágoa e pena.

A glosa consta de um mote, na maioria das vezesde quatro versos, que em quatro estrofes de dez versosé glosado por forma que, sucessivamente, um verso

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do mote apareça como verso final duma estrofe. Jána Espanha, o país originário da glosa, varia a distri-buição original da rima a b a b a c d c c d.

Sirva de exemplo uma glosa de Gregório Silvestre,cujo mote foi glosado por outros poetas comoJorge de Montemor, Cristóbal de Castillejo e Hurtadode Mendoza:

La bella mal maridadade Ias más lindas que vi,si hebéis de tomar amores,vida, no dejéis á mio

L Qué desventura ha venidopor Ia triste de Ia bella,que como en Ias dei partidohacen ya todos en eIlatemendo propio marido?No hacen sino arrojaruna y otra badajada:i como quien no dice nadase ponen luego á glosarIa belle mal maridada!

Luego va Ia glosa perratal que no vale tres híqos,dando en Ia bella y no en tíerracomo un atabal de guerrapuesto en real de enemigos:veréis disparar allíIas trece de Ia herrnandad,y el que más mira por siarroja una necedadde Ias más lindas que vi.

L Pues no es de tener querellaque en sirviendo á una casadaaunque no 10 sea ella,

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DA OBRA LITERARIA 141

á Ia segunda embajadava Ia glosa de Ia bella7Pregúntoos, decid, sefiores:L no tomará qran fatigacon tan maios trovadoresIa que fuere vuestra amiga,si hebéis de tomar amores?

i Oh bella mal marídada,á que manos has venido!Mal casada y mal glosada,de los poetas tratadapeor que de tu marido:si ello va por más errary a' vos os agrada así,ventaja hago yo aqui;así que por mal glosar,vida no dejéis á mio

É oriunda do italiano a forma de poesia que deviavir a ser a mais importante entre todas: o soneto.É composto de duas quadras e dois tercetos, entreos quais se interpõe um corte nítido. A forma maissevera só permite duas rimas para as quadras e outrasduas para os tercetos:

abba abba cdc dcd

Na verdade, para os tercetos impuseram-se outrasdísposções de rima (c d c c d c; c d d c d c, etc.);impuseram-se até três rimas (cd e cd e), enquanto queo uso de quatro rimas nas quadras quase só se encontraem poetas franceses e alemães. A forma, tão apreciadana Inglaterra, do chamado soneto de Shakespearerepresenta uma alteração do tipo italiano. Nela o

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soneto é formado por três quadras, das quaís cadauma tem rimas próprias, enquanto o final é formado pordois versos emparelhados (a b a b e d e d e f e f 9 g).Spenser empregou ainda outra disposição da rima(abab bebe eded ee).

Pode-se ainda aproximar das formas fixas de poesiaa ode, sobretudo a chamada Ode pindérice, Nestaforma favorita do Renascimento e do Barroco, opõe-sea uma estrofe uma outra, composta por forma idên-tica (antístrofe), e, finalmente, como cúpula, junta-se--lhes uma terceira, composta por forma diversa- a epístrofe ou epodo. A chamada Pindarie odeda lírica inglesa, introduzida por Cowley e usada, nãoraras vezes, pelo Classicismo, pouco tem de comumcom aquela; aqui reina a liberdade na construção dasestrofes, no comprimento e carácter dos versos e nadistribuição da rima.

6. A Rima

A rima não pertence essencialmente ao verso. Naprosa podem surgir rimas; por outro lado, há poesiassem rima. A rima é desconhecida de toda a literaturaantiga, bem como da literatura germânica primitiva.Não obstante, ela é mais do que um mero ornamentosonoro. Já vimos, nos versos emparelhados, comoreforça a ligação e a correspondência dos versos.

a) Rima final. Quando se fala de rima, sem mais,entende-se a rima final. Depara-se-nos uma rima (final)quando, em duas ou mais palavras, a última vogalacentuada, com tudo o que se lhe segue, tem idênticasonoridade. Pode pois abranger uma, duas ou três

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DA OBRA LITERARIA li3

sílabas: eloor/emor: fundo/mundo; remédio/tédio, outry/ sky; weather/ feather; Unberührbaren/Verführbaren.Se for idêntico o som a partir da penúltima vogalacentuada, Fala-se então de rima rica. A concordânciatambém das consoantes anteriores à vogal na sílabatônica, não é considerada, nas línguas românicas, comoínfracção. Os franceses falam, neste caso, até de umarima completa (entendu/tendu, /éclatantes/tentes/flot-tentes: delírio/lírio). Em tais casos, nas línguas germâ-nícas, fala-se de «identical rime», «riihrender Reim»;o seu efeito é hoje desagradável e é considerada comofalta grave.

A rima final penetrou nas literaturas européias pro-cedente da hímnica latina dos princípios da Idade--Médía. A luta, tão violentamente travada contra arima no século XVIII, em que se evocava sobretudo oexemplo dos antigos, não deu resultado. Mas a formade ritmo livre, criada nessa altura pelo poeta alemãoKlopstock, manteve-se como forma legítima, e, nosúltimos tempos, encontrou certo acolhimento nas lite-raturas românicas. (O ritmo livre é caracterizado pelafalta de todos os preceitos métricos: não há rima, nemestrofes fixas, nem versos fixos, nem um número fixodas sílabas não acentuadas. O que o distingue daprosa é unicamente a repetição dos acentos a intervalosaproximadamente iguais.) Porém, no fundo, manteve-seinabalável na Lírica a soberania da rima.

Conforme a posição da rima, Fala-se de1) rima emparelhada, quando rimam dois versos

seguidos (a a b b c c d d ... ):2) rima cruzada, quando, num grupo de quatro

versos, o primeiro rima com o terceiro e o segundo como quarto (a b a b) ;

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144 ANALISE E INTERPRET AÇAO

3) rima entreleçede, quando, num grupo de quatroversos, o primeiro rima com o quarto e o segundo como terceiro (a b b a);

4) rima interpolede, quando, num grupo de seisversos, o terceiro rima com o sexto, enquanto que o prí-meiro e o segundo, bem como o quarto e quinto versos,rimam dois a dois (a a b c c b) .

Fala-se de rima interior, se uma (ou ambas) daspalavras em que a rima se exerce está no interiordo verso:

Não te amo, quero-te: o amor vem da almaE eu na alma - tenho a calma ...

Na poesia de Fernando Pessoa Saudade dada existetal acumulação de rimas interiores que mais parecede quem pretende brincar; a sua terceira estrofe rezaassim:

E há nevoentos desencantosDos encantos dos pensamentosNos santos lentos dos recantosDos bentos cantos dos conventos ...Prantos de Intentos, lentos, tantosQue encantam os atentos ventos.

b) Aliteração. Sob O nome de aliteração entende-sea identidade de som inicial de duas ou mais palavras:

Deita o lanço com cautelaQue a sereia canta bela ...

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DA OBRA LITERÁRIA 145

É ainda mais elucídativo, como exemplo acabadode aliteração, o seguinte passo de Oaristos de Eugéniode Castro:

II s estrelas em seus IialosBrilham com brilhos sinistros ...Cornamusas e crotalos,C i tolas, e il aras, sistros,Soam suaves, sonolentos,Sonolcn tos e suaves,

Em suaves,Suaves, lentos lamentos

De acentosGraves,

Suaves ...

Nestes versos, liga-se ao efeito da aliteração o darima interior, o da acumulação da mesma vogal(p. ex. i nos versos 2 e 4) e ainda o da chamadaennonimetio, i. é, o emprego de palavras que derivamda mesma raiz (p. ex. verso 2).

A aliteração era o princípio do verso germânicoe ligava três dos quatro acentos de um verso. Desdea introdução da rima final possui apenas funções desonoridade.

c) Assonância. Sob o nome de assonância com-preende-se a coincidência só das vogais, a partir doúltimo acento. Aparece com muita frequência noscomeços das literaturas portuguesa, espanhola e fran-cesa. Fracassaram as tentativas para a aclimatar naslínguas germânicas, tentativas feitas sobretudo pelosromânticos, atentos às assonâncias espanholas. Tãopouco surtiu êxito duradouro a tentativa de Ch, Guérinpara substituir, na moderna lírica francesa, a rima pelaassonância (Sang des crépuscules, 1895).

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116 ANALISE E INTERPRET AÇAO

Exemplos de assonância oferecem-no-lo os romancespopulares e as duas estrofes seguintes de D. Dinis:

Ai, flores, ai flores do verde pino,se sabedes novas do meu amigo?

ai, Deus, e u é?

Ai, flores, ai, flores do verde ramo,se sabedes novas do meu amado?

ai, Deus, e u é?

7. Métrica e História do Verso

Os conceitos fundamentais até agora tratados per-tencem à métrica. O esquema métrico de uma poesiaexiste independentemente da realização pela palavra.Por forma mais ou menos completa, indica o númerodas sílabas para cada verso, o número e o género dospés, a posição das cesuras, a construção da estrofe, aposição da rima, eventualmente a forma da poesia.O esquema da ode sáfica dado atrás, p. ex., é o metrumdessa ode. O carácter do esquema indica que se podemrepetir os mesmos fenómenos métricos em muitaspoesias. Há inúmeras poesias em redondilha menor,em pentâmetros íâmbícos, em estrofes de quatro versoscom rima cruzada, em oitava rima, sonetos, etc.

O carácter do esquema indica, simultâneamente, quepara a interpretação da respectiva obra individual muitopouco se diz se se indica só a métrica. Em troca, ageneralidade dos fenômenos métricos chama a atençãoda obra isolada para a pluralidade das obras com asmesmas características. Em analogia com o dualismode ciência da líteratura-hístóría da literatura, surge nocampo mais restrito do verso o dualismo de ciênciado verso-história do verso.

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DA OBRA LITERARIA 147

A história do verso pertencem, por exemplo, asinvestigações sobre a construção do alexandrino emduas obras diversas, investigações essas que podemdesenvolver-se até constituírem uma história do ale-xandrino numa dada literatura. Poderiam fazer-se ten-tativas correspondentes acerca do hexâmetro e, enfim,de qualquer outro tipo de verso. Pertencem ainda àhistória do verso observações sobre rima e técnica darima em diversas obras, poetas, etc, Na técnica darima integra-se, por exemplo, a tendência para novasligações de rima, extravagantes, pouco conhecidas, comoas procurou, p. ex., o Simbolismo. Na poesia portu-guesa, por certo não haverá predecessores para muitasrimas de Mário de Sá-Cameíro: comece/Kermesse;café/é; fosforeira/ligeira; ou para muitas do brasileiroAugusto dos Anjos (aliás nascido no mesmo ano queSá-Carneíro}: algarismos/ silogismos/ esoterismos; üme-ros/números, etc. Temos, porém, de acrescentar que,nas letras europeias, já a corrente do chamado Exotismo,na primeira metade do século XIX, tinha cultivado asrimas extravagantes por meio de nomes e palavrasestrangeiras; basta indicar os nomes de Byron, VíctorHugo e Freiligrath.

Acerca destas questões os poetas do Simbo-lismo exprimiram-se também teoricamente (Eugénio deCastro) . Por outro lado, dirige-se precisamente contraa técnica da rima a sátira que Manuel Bandeira fezaos parnasianos, na sua poesia Os Sapos:

O sapo-tanoeiro,Pamasiano aguado,Diz: - «Meu cancioneiro!e bem martelado.

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148 ANALISE E INTERPRETAÇÃO

Vede como primoEm comer os hiatos!Que arte! E nunca rimoOs termos cognatos.

O meu verso é bomFromento sem joio.Faço rimas comConsoantes de apoio.

É de especial interesse em quase todas as litera-turas modernas a observação e estudo da rima nosprincípios da Idade-Média. Em parte, a sua entrada napoesia efectua-se à nossa vista, e em qualquer delas temde sustentar luta com outros meios de sonoridade (alite-ração, assonância) até que, por fim, impera na poesia,como rima pura. As investigações acerca da rima inte-ressam, geralmente, no mais alto grau, também à lín-guística. Por muito que os copistas da Idade-Médiatenham alterado a ortografia, as formas, até o voca-bulário dentro dos versos, - as rimas, essas, raras vezesas alteraram. .É através delas, mesmo em cópias exe-cutadas séculos depois, que nos fala o original. Para afilologia medieval, as rimas constituem um dos meiosmais importantes para determinar a data, a proveniênciaregional e o autor de um texto. Dá-se a mesma coisacom as poesias anônimas. trazidas até nós pela tradiçãooral. Quando, na Alemanha, nas colectâneas de cançõespopulares, compostas no século XIX, era arquivadoum texto (Die Hesel}, em que se encontram as rimas:Haselírr/Máqdeieln: bin/Wein, - só com estes elemen-tos reconhecemos provirem de uma época em queo «i» longo não fora ainda transformado no ditongo«ei», mas era pronunciado wín.vlín.

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De especial interesse são também as investigaçõesacerca da construção estrófica de um poeta, dumaépoca, ou acerca da história de uma determinadaestrofe. No exemplo dado da Barca Bela de Garrett,podiam-se, pela métrica, obter diversos indícios para adata e fixação. A construção estrófica da Lírica tro-vadoresca, a adaptação dos esquemas das odes antigas,o relaxamento da estrofe pelo romantismo, a tendênciapara dissolver as estruturas rígidas da estrofe na Líricamoderna, - tudo isto são temas cujo desenvolvimento,sob muitos aspectos, tem sido frutífero, ou antes,promete êxito. Enfim, uma história do soneto reflectí-ria, precisamente em Pcrtugal, a marcha evolutivada lírica em geral. Quase sempre os trabalhos rela-cionados com problemas históricos do verso forçama fixar o olhar no estrangeiro, pois precisamenteneste campo, desde o princípio, têm sido grandes apermuta e influência recíprocas, uma vez que na métricaantiga e medieval existem fontes comuns de influência.A observação minuciosa sobre a forma como taisinfluências se exerceram e tiveram de haver-se como sentimento autóctone do verso, promete valiosasdeduções sobre as forças que actuam na literatura decada país.

8. J\niJise do Som

o Iílóloqo Eduard Sievers desenvolveu a análisedo som (Schellnnelusc} como um ramo especial daciência. O seu campo de observação é o «som» detoda a linguagem falada, portanto, para além do ritmo,também a melodia, a articulação, etc. Não se limitaa textos «literários». A análise do som parte do prín-

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cipio de que a um texto só pode dar-se a forma«sonante» de uma única maneira e de que as indicaçõescorrespondentes residem nele mesmo. Já antes deSievers se verificara que cada poeta, cada músico,até cada homem pertencia a determinado «tipo de voz»(Stimmtypus) e que era limitado e relativamente pequenoo número dos tipos de voz. O tipo de voz é poisuma constante pessoal em todas as manifestações vocaisde um homem e pode servir, de certo modo, de indíciopara identificação de um texto. Síevers ampliou aindaa análise do som tentando fixar a tensão articulatóriacom que um texto deve ser pronunciado. Fê-lo como auxílio de determinadas curvas (Taktfüllkurven).A análise do som prometia vir a ser de importânciapara a filologia, pois se esperava poder descobrirdiscordâncias em textos trazidos até nós pela tradição,ínterpolações de mão estranha, lacunas, etc. Se, emboradotado de uma extraordinária e invulgar sensibilidadea todo o som, Síevers não conseguiu desenvolver comométodo científico o seu processo de trabalho, métodoque pudesse ser adoptado por qualquer outro, osseus esforços contribuíram para chamar a atençãopara o som vivo da língua e da poesia. Precisamenteos ouvidos, um tanto embotados, dos historiadoresda literatura e dos cientistas do verso, habituadosem demasia a receberem impressões visuais, esses ouvi-dos tornaram-se aptos a distinguir particularidadese valores da poesia viva, falada. Também está emconexão com a análise do som certo impulso novo dadoà fonética antiga, um tanto rígida, pela modernafonologia.

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sivamente de uma parte das obras literárias ou sejada chamada poesia. Neste capítulo vai tratar-se deformas que são inerentes a qualquer texto literárioe, além disso, a todas as manifestações da língua: asformas linguísticas.

Não é objectivo da ciência literária apurar todasestas formas empregadas num texto literário. Elasnão são, fundamentalmente, diferentes das que seempregam em outras manifestações linguísticas. :B aum ramo especial da linguística que cabe a realizaçãodesta tarefa: à gramática. Alvo da crítica literária é,em primeiro lugar, entender e interpretar uma obra.Não examina, pois, cada forma como tal, mas sim namedida em que contribui para a constituição da obraliterária em questão. :B a pergunta acerca das funçõesdas formas linguísticas que orienta todo o trabalho dacrítica literária. Esta orientação faz-se na intençãode tornar compreensível e transparente a totalidade daobra. A crítica aspira assim sempre à síntese. O con-ceito sintético que abrange a totalidade das formasmétricas realizadas é o ritmo. O conceito sintético queabrange a totalidade das formas linguísticas de umaobra é o estilo. Dedícar-lhe-emos, por isso, um capítulo

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especial na parte que trata dos conceitos sintéticos.Aqui, o nosso fim terá de limitar-se a enumerar eexplicar as formas linguísticas em si, com as quais tra-balha depois a investigação do estilo. (Esta separaçãojustifica-se, talvez, por motivos pedagógicos.) No fundo,trata-se, neste capítulo, duma gramática orientada parafin s estilísticos.

Temos de salientar logo de início uma diferençafundamental na atitude que tomam, perante os Ienó-menos linguísticos, a linguística e a estílistíca. A lín-guística interessar-se-á, também e principalmente, pelasformas raras e únicas que um texto acaso apresente.Um fenómeno que surja só uma vez num texto, cha-mará sobre si toda a atenção dos linguistas.É próprioda estilística, pelo contrário, interessar-se justamentepelos fenómenos linguísticos que, devido à sua Ire-quêncía, são característicos para a obra total. «É acontinuidade que faz o estilo», disse Flaubert Essasformas típicas chamam-se traços estilisticos, Os traçosestilísticos são geralmente tanto mais fáceis de reconhe-cer, tanto mais expressivos, quanto mais se tratar deformas diferentes da linguagem «vulgar». Quandonuma poesia, por exemplo, falta muitas vezes o artigo,em ponto onde o esperávamos, trata-se de um traçoestilístíco fácil de observar e muito expressivo, cujainterpretação é muito prometedora.

A determinação do estilo individual duma obra,dentro da sua época, só será possível quando o obser-vador saiba dar conta do que é «vulgar» e «normal».Só quem conhece a língua do século XVI e, sobretudo,as camadas linguísticas correspondentes, poderá deter-minar exactamente o estilo de um soneto de Camões.Só quem conhece bem os contemporâneos pode pensar

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em executar um trabalho sobre o estilo de Camões:da mesma forma só pode entender o estilo do Renas-cimento quem se tiver familiarizado com a linguageme correntes de outros tempos. Enfim, só se pode tra-balhar sobre o estilo de uma língua quando se conhece,a fundo, outras línguas.

No entanto, é lícito pensar num método de obser-vação que, delíberadamente, não toma em linha de contaas relações históricas de uma obra, nem com outrascorrespondentes, nem com o autor, nem com a época.Em vez de relacionar e comparar a obra em causacom fenómenos que existem fora dela, este métodolimita-se a contemplar a obra como expressão lin-guística. Não precisamos, aqui, de discutir os doismétodos designados por método «histórico-comparativo»e método «fenomenológico» (aliás um dualismo demétodos que se manifesta em todas as ciências doespírito). Basta, neste ponto, Iocar o facto de quetambém o segundo método, pelo carácter linguístico doseu material, inclui o aspecto temporal. Sempre épreciso, como base, um conhecimento da estrutura darespectiva língua e ainda do estado em que ela seencontra.

Como campos de observação a percorrer sucessiva-mente apresentam-se-nos o da sonoridade, o da palavra,o das figuras (retóricas) e o da sintaxe.

1. A Sonoridade

Entre as formas da sonoridade já se falou da rima,da aliteração e da assonância.

O som impressiona de modo especial o ouvido naschamadas onomatopeias. Entende-se por onomatopeias

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as formações linguísticas que imitam um determinadosom natural: sussurrar, murmurar, etc. As línguasgermânicas são incomparàvelmente mais ricas do queas românicas em palavras onomatopaicas; assim osseguintes versos de uma poesia de Annette vonDroste-Hülshoff apresentarão obstáculos insuperáveis àtradução para uma língua românica:

Der schwankende Wacholder flüstert,Die Bínse rauscht, die Heíde knistettUnd stãubt Phalãnen um díe Meute.Sie [eppen, klaffen nach der Beute ...Díe Meute, mit geschwollnen KehlenIhm nach, wie rasselnd Winterlaub.Man hõret ihre Kíefern knscken,Wenn [letschend in die Luft sie hscken ...Was bricht dort irn Gestrüppe am Revier?1m holprichten Gallopp stampft es den Grund;Ha, btiillend Herdenviehl varan der Stíer,Und ihnen nach klafft ein versprenqter Hund.Schwerfãllíq poltern síe das Feld entlanq,Nun endlích stehn síe, mutren noch zurück,Das Díckícht messend mit verglastem Blíck,Dano sinkt das Haupt, und unter ihrem ZahneSín leíses Rupfen knitrt im Thymiane ...

:E; preciso, no entanto, não perder de vista que aspalavras onamotopaicas nunca reproduzem exactamenteos ruídos do exterior. Numa língua desconhecida nin-guém distingue e compreende as onomatopeias. :B dare>que as línguas nem sequer aspiram à identidade.pois não aproveitam em absoluto as possibilidadesdos seus fonemas, antes se contentam com indicaçõesvagas.

Repetições de determinados sons produzem tambémefeitos onomatopaicos, como, por exemplo. quando.

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através de sons duros e de consoantes acumuladas, sepretende reproduzir o fragor de uma tempestade oude uma batalha. Nos versos seguintes pinta Camõeso surdo bramido do mar por meio da acumulação dossons o e u e, sobretudo, pelas ressonâncias onde e und:

Cavernas altas, onde o mar se esconde,Lá donde as ondas saem furibundasQuando às iras do vento o mar responde,Neptuno mora e moram as jucundas ...

Nestes versos pode fàcilmente observar-se como aquicomeçam a ressoar palavras que, habitualmente, sãoconhecidas só como mero significado (p. ex., quando).

Às vezes, pode-se ficar em dúvida sobre se, real-mente, se pretende reproduzir um determinado som doexterior, ou se o som e a articulação tensa ou suavenão quererão «significar» um movimento, uma impressãovisual ou qualquer outra impressão do exterior. Emtais casos, fala-se de simbolismo dos sons (Lautsym~bolik). Já Platão aludia à sua influência na formaçãoda língua, quando relacionou a diferença dos sons«mikros» e «makros» com a diferença dos seus síqní-ficados: correlacíona-se o «i» com o pequeno, delicado,e o «a» com o grande, poderoso. Muitas vezes se temtentado dar interpretações simbólicas aos sons, sobre-tudo às vogais. Foram ainda mais longe os esforçosdos teóricos e poetas românticos e post-romãntícos,querendo atribuir às vogais certas qualidades de cor.J:; bem conhecido o soneto Voyelles, de Rimbaud, quecomeça:

A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu, voyelles,Je dirai quelque jour vos naissances latentes.

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Não carecemos de aludir à disputa sobre até queponto Rimbaud pensava a sério no que enunciava.É facto que as subordinações de vogais a cores, feitasaté agora, divergem fundamentalmente (o que não excluiuma correlação constante para o próprio autor).

Também não reina unanimidade quanto à inter-pretação simbólica dos sons. Até o adepto mais fer-voroso duma tal possibilidade tem de confessar quenão nota, em cada momento da fala ou da audição,relações tonais simbólicas. Enfim, não é de esperaruma subordinação fixa, pois que a letra a, por exemplo,tem inúmeras gradações de som, e não só dentro damesma língua, mas até na mesma palavra. Só quandoum som se torna notado pela acumulação ou posiçãoespecial, pode então exercer efeitos simbólicos. Aindamais claramente do que no caso das onomatopeias,são apenas os significados que, no caso do simbo-lismo dos sons, nos dão a conhecer os objectos por elessimbolizados.

Assim, Goethe simboliza a sedução exercida pelo«rei dos álamos» com o seu convite, através de umaag lomeração dos «i»:

Du líebes Kínd, kornm, spiel mit mir!Gar schône Spíele spiel ich mit dír ...

Também os poetas do Renascimento e do Barrocosimbolizavam o doce movimento dos ribeiros e o suaveencanto de uma paisagem «amena» por meio da acumu-lação de líquidas e nasais. No exemplo seguinte, alémdisso, pode ainda ver-se, na acumulação dos «p» no

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quinto e sexto verso. a simbolização do saltitar alegredo ribeirinho. ou mesmo onomatopeia:

Águas de cristalQue na loura areiaFabricais espelhoEm que o Sol se veja;Que, cortando o prado.Is polindo as pedras, ..

Muitas vezes. no entanto. se ficará em dúvida. atéque ponto o som se relaciona realmente com deter-minados fenómenos do exterior. ou ele é simplesmenteum valor próprio. isto é. cria a atmosfera sentimentalem que devem ser recebidos os significados. Tão pouconítido como o limite entre onomatopeia e simbólicatonal é o limite que separa a simbólica tonal damusicalidade dos sons isenta de todas as relaçõescom determinados fenómenos naturais. Nos versosseguintes de Mário de Sá-Carneíro Impõe-se umefeito sónico : a ligação de duas vogais. das quais aprimeira transporta o som. enquanto que a segundaquase se dilui:

E só me resta hoje uma alegria:É que, de tão iguais e tão vazios.Os instantes me esvoam dia a diaCada vez mais velozes, mais esguios ...

Nesta forma sornca predominante pode e devever-se uma simbolização da rápida passagem dos dias;aqui. o som ajuda fortemente a transmitir o verdadeirosentido da poesia. Pelo contrário. na acumulação dos

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sons «I» e «v», do exemplo seguinte, mal se pode des-cortínar uma referência determinada ao exterior:

Antes que o Sol se levanteVai Vílante a ver o gado,Mas não vê sol levantadoQuem vê primeiro a Vílante ...

Também, nos versos seguintes, o «a» predominanteé decerto expressivo mas, realmente, não traduz Ienô-menos objectivos:

Barbaramente destronadas,As grandes árvores magoadasChoram hirtas, despenteadas ...Estalam no chão suas raizes,Cortam-lhe a alma sete espadas ...

No cultismo e, aliás, também em poetas com gostopela música, encontra-se muitas vezes uma harmoniade sons sem relação nenhuma de tipo simbolista.

Demos como último exemplo estes versos de Shelley,do Prometheus Llnbound, em que é impossível isolarqualquer simbólica de sons; aqui o som age apenascomo tal.

Here, oh, here;We bear the bíer

Of the Father of many a cancelled yearlSceptres weOf the dead Hours be,

We bear Time to hís tomb in eternity.

Nestes versos, o som é tão intenso e expressivoque, comparativamente, se torna pálido o significadodas palavras e frases. A intensidade do som provém

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sobretudo da rima tríplíce, seguíndo-se a espaços curtosihere, bier, year ... ). o que é ainda intensificado pelarima interior no primeiro verso; as fortes aliteraçõesligam, sobretudo, os acentos dos versos (here - heretbeer - biet: time - tomb - etemity). Actua aindafortemente a série contínua ascendente das vogais acen-tuadas no terceiro verso: fa - many - can - year.a que se opõe a série descendente no sexto verso:Time - tomb - tem, um obscurecimento, preparado por«hours» que vêm antes, enquanto que, até aí, as vogaiseram claras.

2. O Estrato da Palavra

A gramática determina as categorias gramaticaiscomo formas Iiguísticas fundamentais. Não pode cons-tituir o fim do trabalho Iiterârio-estílístíco inventariaras categorias gramaticais numa obra. Também naanálise da sonoridade se não importa com cada vogale com cada consoante. Ponto de partida para trabalhoulterior só podem ser os casos importantes para apecualiaridade de uma determinada obra e que, portanto,representam traços estilísticos.

Enunciamos a seguir alguns traços estilísticos que,num texto literário, podem ser originados pelo usoespecial das categorias gramaticais.

Comecemos pelo artigo. Nos seguintes versos deTeixeira de Pascoais distingue-se como traço estilisticoa omissão do artigo:

Sou como a chuva e o ventoE como a bruma e a luz!Lira que a mais suaveAragem faz vibrar ...

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Agua que ao luar brandoEm nuvens se traduz ...Fruto que amadurece,A luz dum só olhar! ...Pedra que um beijo fundeE místico vaporQue um hálito condensaEm clara gota de água ...Sou neblina, sou ave,Estrela, céu sem fim...

o traço estilistíco da ormssao do artigo encontra-senum esquema ou, como podemos dizer, num «topos»predílecto de todo o simbolismo: a enunciação do pró-prio «Eu» (eu sou ... ).

Semelhantemente, pode resultar um traço estilísticodo uso do artigo definido, em vez do indefinido, quese poderia esperar, e více-versa, Assim é característicado tom de Rílke apresentar os objectos como já conhe-cidos, e isto pelo emprego do artigo definido; limi-tamo-nos às primeiras palavras de algumas poesias(traduzidas por P. Quintela}:

O santo ergueu a fronte, e a oração caiu-lhe ...(O LICORNE)

Assim como o rei, andando à caça ...(DESTINO DE MULHER)

O verão zumbe. A tarde faz cansaço ...(EXERCÍCIO AO PIANO)

o mesmo traço estílístico (embora nem sempre coma mesma função) observa-se em muitas obras; baste

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aqui a referência a Ossien, obra inglesa de tão largasrepercussões nas letras europeias:

«The thistle is there on its rock and shakes its beerdto the wínd. The flower hangs its heavy heed, ioeoing,at times, to the gale. «Why dost thou awake me,O gale!... To-morroio shall the treoeller come; he thatsaw me in my beauty shall come» ... »

No que diz respeito ao adjectivo, há textos que oprocuram obviamente, e outros que o evitam, porforma também clara. A classificação tradicional doadjectivo indica já efeitos diversos; Fala-se do adjectivocaracterístico ou objectívo (a vertente íngreme, a mesaredonda). do adjectivo afectivo ou «otnens» (as pala-vras aladas, o pobre rapaz) e do que se usa comofórmula (o vale profundo, a verde floresta).

Nas línguas românicas, já muitas vezes a posiçaodo adjectivo indica as diversas funções por ele exer-cidas: neste caso, à posição diferente está ligada umadiferenciação de significado. Nas línguas germânicaso adjectivo vai, por princípio, antes do substantivo.Contudo, por vezes, o adjectivo encontra-se depois dosubstantivo, e, então, fica invariável. Esta formaçãoencontra-se na canção popular e na lírica epopulari-zante»: Rosleín rot, Magdleín jung, Wíese gtÜn;a garden qreen, my father deer, a herness good. Estaposposíção do adjectivo encontra-se exactamente noverso, o que constitui um sintoma da maior liberdadesintáctica da obra poética.

Entretanto é preciso ter cuidado com o adjectivo,Como com quase todos os traços estilísticos ainda atratar. Nas categorias gramaticais (e em outras formas

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linguísticas), não se deve esquecer que se trata deabstracções da gramática. Qualquer categoria exercemais do que uma só função, e uma determinada funçãonão está nitidamente ligada a uma categoria gramatical,para poder realízar-se. Para todos os trabalhos estí-lísticos é lei fundamental que todas as formas linguisticaspodem ter mais de um significado, e que a mesmafunção pode ser levada a efeito por meio de formasdiversas. Charles Bally formulou assim esta verdadena sua obra Le 1angage et la oie (pág. 121): «On ssitque dans toutes les langues, un même signe a notme-lement plusieurs oeleurs, et que cheque osleur estexprimée par plusieuts signes». Mostra Bally como Iun-ciona diferentemente, conforme os respectivos casos,por exemplo o adjectivo substantivado. Dámaso Alonsocita versos de San J uán de Ia Cruz (La poesia deSan Juán de Ia Cruz, Madrid, 1942, pág. 183):

I Oh noche que guiaste,Oh noehe, amable más que Ia alborada:Oh noehe que juntasteAmado eon amada,Amada eu el Amado transfonnadal

e nota: «Aqui Ias verbos introducidos por relativopueden inducimos a erros. En reelided, eses secionesverbetes tienen sólo una [unciôn adjetiva (10 mismoque amable), y el esquema es el siguiente: oh nocheguiadora, emeble, unidore, transformadoral Pura excle-maeión sin verbo». Em vez de «función adjetiva» diría-mos nós, de preferência, «[unciôn etributioe», paradistinguir, por uma terminologia rigorosa, os diferentespontos de vista da morfologia e da sintaxe.

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Mostra-se também no substantivo a força de subor-dinar, de certa forma, outras categorias gramaticais.Tem-se chamado a um estilo caracterizado por talpredomínio do substantivo «estilo nominal», e opõe-se--lhe o tipo do «estilo verbal». (Mais tarde se falaráde tais classes de tipos.) A linguagem da ciência, porexemplo, é apresentada como tipicamente verbal.

A linguagem do velho Goethe evidencia manifestatendência para substantivar o adjectivo:

Alles Verqãnqlíche1st nur ein Gleichnis;Das Llnzulãnqlíche,Hier wirds Ereignis;Das Llnbeschreibliche,Híer íst es getan;Das Ervtq-WetblícheZíeht uns hínan,

( Coro final de Fausl 11)

[Tudo O que morre e passaÉ símbolo somente:O que se não atinge.Aqui temos presente;O mesmo indescritívelSe realiza aqui;O feminino eternoAtrai-nos para si.]

(Tr.d. de A,ostinho d'Orne llas j

Em muitas obras das línguas germamcas revela-seuma tendência para substantívar o infinito, fenómenoque, em regra, soa com dureza a ouvidos portugueses.Contudo, este traço estilístico encontra-se também emobras portuguesas: ao folhear a lírica de Antero,

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depara-se-nos; O pulsar, o remoinhar, ao rolar, ao correr,o viver (frequentemente), com rir, o fulgir, do saber,meu pensar, um bramir, no ruir, etc.

Às vezes maneiras especiais da formação das pala-vras podem chamar-nos a atenção como traço esti-lístico, Assim, acumulam-se nos textos teóricos ossubstantivos terminados em -ão (resp. -on, -son, -tion,-ione, -ung, -ty).

Novas e expressivas combinações (de substantivose adjectivos) formavam um dos traços estilísticosmais evidentes na nova linguagem poética criada porKlopstock no século XVIII. Apontamos, apenas, algunsversos do seu discípulo Hõlty:

Wann, Friedensbote, der du das ParadíesDern müden Erdenpilger entschlíessest, Tod,

Wann führst du mich mit deinem goldnenStabe gen Hímmel, zu rneiner Heimat?

O Wasserblase, Leben, zerfleug nur baldlDu gabest wenig lãchelnde Stunden mir

Und viel Trãnen, QualenmutterWarest du mír, seít der Kindheít Knospe

Zur Blume wurde, Pflücke sie weg, o Tod,Díe dunkle Blumel Sínke, du Steubqebein,

Zur Erde, deiner Mutter, sinkeZu den verschwisterten Erdgewürmen!

[Quando, ó Anjo da paz, que abres o paraísoAo cansado peregrino da terra, ó Morte,

Quando é que me levas c'o teu bastãoDe ouro 'pra o céu, minha pátria?

Ó bolha de água, Vida, desfaz-te breve IEscassas horas rídentes tu me deste

E muitas lágrimas; mãe d08 martíriosFoste para mim, desde que o botão

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Da juventude se fez: flor. Colhe-a, ó Morte,A flor escura! Tomba e regressa, carcaça de pó,

A terra, tua mãe, aos vermesTerrenos, teus irmãos!]

(Tr ad. de 1'. Qulutela)

Contribuíram para o florescimento deste meio estí-lístico na linguagem poética alemã daquele tempo asrelações então mais estreitas com a poesia inglesa. Ascélebres combinações, por exemplo, das baladas inqle-sas publicadas por Percy (lilly-white hends, liue-lonqiointer-niqht] encontram exacta reprodução nas baladasalemãs de Hõlty, Bürger, Stolberg, etc.

Em todas as línguas os diminutivos são fáceis dereconhecer e fáceis de interpretar. Neste ponto, pareceexistir, finalmente, uma forma com um único significado.Mas na verdade as coisas não são tão simples comoa designação indica. Na maior parte das vezes, dímí-nutivos não querem designar a pequenez do objecto,mas sim exprimir, em primeira linha. a afeição do quefala; pertencem menos à perspectiva óptica do que àemocional. Na lírica popular, bem como na literaturainfantil e ainda na literatura mística, são recursos estí-lísticos frequentemente empregados.

No Simbolismo. encontra-se muita vez a concretí-zação de abstractos: «Die Schele des Schteckens zer-bricht»; « ... les plis [eunes de Ia pensée», Aparecem,frequentemente. casos semelhantes na linguagem extra--literária: «com pavor crescente». «a honra manchada»:«um êxito formidável». etc. De novo se verifica comocom o simples apurar de factos se ganhou ainda pouco.

A concretízação pode intensificar-se até à personí-Hcação. Para a linguagem de Antero são típicas as

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ebstracções personificadas, como Forma, Ilusão, Cons-ciência, etc.

A personificação de coisas é aliás meio estilísticofrequente; na linguagem diária existe muita coisalatente que é actualizada pelos poetas. Para a lia-guagem infantil a personificação é simplesmente caracte-rística.

Com os verbos, como com os substantivos e adjec-tivos, a acumulação, peso e posição predominantepodem impor o cunho a um texto. Fala-se então deestilo verbal:

Vê-se o vapor do InfernoNos ares negrejar;Ali rebentam, crescemMil plantas venenosas,Mil serpes tortuosasOuvem-se ali silvar;Rochedos escabrososAs nuvens ameaçam:Raios por eles passam,Medrosos de os tocar ...

(8ocAGE)

Por vezes distingue-se um determinado grupo deverbos (p. ex., os de movimento) de forma predorní-nante.

Dentro do estrato da palavra, é, ainda e finalmente,de importância o vocabulário. Em geral, denunciam-sejá pelo vocabulário obras do cultismo, do romantismo,da mística, etc. Como a ciência da estílistíca, tambéma ciência linguística se interessa por estas observações.Para ambas são material importante os glossários dumadeterminada obra ou da obra total de um escritor. Paraos poetas máximos já se solucionou a tarefa, mais ou

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menos fidedignamente (Dante, Shakespeare, Corneille,Racine, Lessing, Goethe, entre outros mais).

No seu trabalho sobre Le lenque poética de Gônqore,Dámaso Alonso prestou especial atenção ao vocabu-lário cultista do poeta. Ajudaram~no nisso as críticascontemporâneas e posteriores da linguagem cultista.Na Alemanha em 1750 houve uma situação semelhante:no livro de Schoenaích, Neologisches Worterbuch. eracitado todo o vocabulário que, nas obras poéticas deKlopstock e da geração moderna, parecia censurávela este iluminista. Muito daquilo que impressionavae surpreendia no vocabulário do simbolismo francêsencontra-se na obra de Jacques Plowert: Petit Glosseitepour servir à I'intelliqence des euteurs décedents etsymbolistes (Vanier, 1888).

Com as «palavras preferidas» de um poeta ou deuma época não é forçoso tratar-se sempre de neolo-gismos. Com razão, recentes investigações estílisticascostumam dedicar de novo toda a atenção a este com-plexo de perguntas. Cheqou-se já a valiosos resultados,desde que o objectivo se não limitou ao reg isto eestatística, mas se encetou caminho a partir daqui.A investigação é então depressa conduzida à verificaçãode determinadas áreas objectívas que se repetem comIrequência, por forma notável. numa obra ou num autor.Daí se procurou tirar conclusões ulteriores acerca dapersonalidade do artista.

3. Figuras Retóricas

Quando das formas linguísticas no estrato daspalavras se sobe às formas linguísticas no estrato dosgrupos de palavras, entra-se numa zona carregada de

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tradições. Já a antiguidade se esforçou, neste ponto,por alcançar compreensão possivelmente completa, enão sob o ponto de vista gramatical, mas sim estilistíco.Nas antigas teorias e regras sobre a arte da eloquênciaencontra-se a discussão pormenorizada de todas estasfiguras. Estes esforços eram inspirados pela finalidadeprática de reunir meios linguísticos que são ornatosdo discurso, ou que o desfiguram. Esses meios eramdesignados como «[iquree rhetoriceles», e também, devez em quando, como «flores rhetoriceles», A teoriadas figuras, especialmente na forma que Quintílianolhe deu, tornou-se tradição fixa; encontra-se quase semmodificação alguma nas retóricas e Artes dicendi daIdade-Média, do Humanismo e do Barroco. Variavaa ordem e a formação de grupos; na maioria das vezes,porém, sequíam-se, também neste ponto, os antigos,que, por exemplo, já tinham diferenciado os dois grandesgrupos das figuras de palavras (figur& verborum]e das figuras de pensamento (figur& sententierum}ou tropas.

Às «flores rhetoriceles» foi buscar o nome o «estiloflorido» da Idade-Médíe: mas ainda as investigaçõesestilisticas do século XIX costumam fazer as suasobservações segundo a lista das figuras. É verdadecontentarem-se com a mera verificação das formas lín-guísticas que apareciam, no melhor dos casos com umaestatística, ou consideravam-se essas formas, comotinham ensinado os séculos remotos, como enfeitepoético, embora já há muito tivesse sido posta de partea ídeia da poesia como discurso enfeitado. O romãn-tico Coleridge via no uso consciente das figuras comoornato um perigo para toda a poesia pura: «Figuresand metephors ... conoerted into mere artifices of con-

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nection and ornament constitute the cherectetistic [el-sity in the poetic style of the tnoderns», Exprimiaassim a opinião de todos os românticos, e até jádos pré-românticos: Herder falara, a este respeito, da«estátua morta do estilo, que se ergue sem falha esem beleza verdadeiramente própria, sem vida e semcarácter».

Para a investigação mais recente, as figuras nãopossuem posição de preferência. No melhor dos casos,estão no mesmo plano que os traços estilísticos atéagora tratados e outros ainda a tratar. (Algumasfiguras, como a rima [Homoioteleuton] ou a personi-ficação [Personificatio] já foram exptícadas}, Em quemedida contribuem para a constituição de uma obrapoética resta ainda observar em cada caso isolado; coma sua interpretação como «ornato» em geral pouco sediz e, na maior parte das vezes, o que se diz é errado.Mas se as figuras são postas também em outras rela-ções, isto é, se já não são explicadas ao orador e aopoeta no sentido de como deviam ser por estes usadasconscientemente para melhoramento do seu «discurso»- mas se, interpretadas como fenómenos basílareslinguísticos, interessam ao linguista e investigador doestilo, então surge também aqui um sentimento degratidão para com os antgos, que tão magníficas basessouberam criar. E finalmente o seu conhecimento e odas designações tradicionais são indispensáveis para ohistoriador da literatura que tem de investigar obraspoéticas mais antigas, concebidas e apreciadas na atmos-fera das flores rhetoriceles.

A ordem a seguir escolhida obedece só a fins prá-ticos; contentamo-nos além disso com um Florilégiodas flores.

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Por paronomásia (annominatio) entende-se o apare-cimento de palavras de som parecido. Pertencem aesta figura, por exemplo, os casos do complemento«interno» (to lioe a life, einen Gang qehen, oioir unavida, ai volver que volvió). Pertencem-lhe também oscasos em que se agrupam palavras de som semelhante,mas de significado diverso. Neste caso a paronomásíacruza-se com o trocadilho ou jogo de palavras. Nosversos seguintes:

Quer que a pinte a cores,quer que a cante a coros ...Meti-me em debuxosE caí com tonos.Quem me fora Apeles]Quem me fora ApoIo!

resultam efeitos especiais da semelhança tonal de corese coros, ou Apeles e Apoio. Por trccelhido, no sentidomais restrito, entende-se o aproveitamento do sentidoduplo de uma palavra. Como forma específica do jogode palavras, o calembur serve-se da semelhança dosom em duas palavras diversas ou em dois grupos depalavras. Grande parte das anedotas (bon mot, Witz,scherzo, joke, etc. - é estranho, mas não há uníformí-dade de designação nas diversas línguas) baseia-se nosefeitos «resolutivos» do jogo de palavras.

Como figura especial citam por vezes os retóricoso polypdoton (frequentemente tratado juntamente coma paronornásia}, que consiste na repetição da mesmapalavra em diferentes Ilexões. Encontra-se em toda apoesia. :B traço de estilo frequente em R. M. Rílke:no exemplo seguinte (dos Sonette an Orpheus, n, 13)

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anda ligado a outras figuras, como vulgarmente acon-tece:

Sei allern Abschied voran, aIs wâre er hínterdír, wie der Winter, der eben geht.Denn unter Wíntern Ist einer so endIos Wínter,dass, überwinternd, deín Herz überhaupt übersteht.

[Adianta-te a toda a despedida, como se ela ficasseJá pra trás, como o inverno que está mesmo a acabar-se.Pois entre os invernos há-de haver um que os sobrepasse,Tão infindo inverno que, sobre-ínvernando, o coração sinta sobre-

tudo superar-se.](Tentativa de trnd. inédi ra de Paulo Quiotela.)

As figuras até agora tratadas baseiam-se precisa-mente na firmeza com que se casa a forma externa lín-guística com o seu significado. Na alusão (Anspielung)é necessário que o ouvinte junte alguma coisa para queo sentido se torne plenamente compreensível. Na leiturade textos antigos, o leitor carece, por ex., de conside-ráveis conhecimentos da mitologia antiga para podercompreender bem todas as alusões. (Informações ini-ciais sobre a mitologia antiga encontram-se no NovoDicionário da Fábula, Porto, 1945; entre os maisrecentes e seguros deve nomear-se o de Píerre Grímal,Dictionneire de Ia Mythologie Grecque et Romaine,Presses Univ. de France, Paris, 1951.)

Camões pressupõe tais conhecimentos, quando, porexemplo, conclui assim um soneto:

Fugi das fontes: lembre-vos Narciso.

Por forma idêntica, os conhecimentos bíblicos doleitor moderno em geral não bastam para entendertodas as alusões nas obras poéticas (para nem de longealudir às dependências inconscientes da Bíblia, querna linguagem, quer nos pensamentos!). Para dar um

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exemplo, citamos os primeiros versos do soneto deMilton On his Blindness:

When I consíder how my light is spent,E're half my days, ín thís dark world and wide,And that one Talent which is death to híde,Lodq'd with me useless, though my Soul more bent

To serve therewith my Maker, and presentMy true accouot, least he returniog chide ...

As expressões «Telent», «present my true account»bem como os pensamentos: «which is deeth to hide»,«least he teturninq chide» só são totalmente compreen-síveis para aquele que se lembre da parábola do senhore os seus servos, relatada no capítulo 25 de S. Mateus.

Ao estrangeiro na maior parte das vezes escapam.por certo, alusões a provérbios e modismos locais,Quanto mais se contar com um público, sobretudo comum público homoqéneo, - tanto mais vasto será opapel da alusão num texto literário. :É um dos meiosestilísticos excelentes para determinar a atmosfera socialem torno de uma obra.

Na perífrase (Umschreibung) o verdadeiro objectoou estado de coisas não são expressos directamente, mastêm de ser deduzidos por via indirecta: Quando ela oviu, sentiu a mão de Cupído, - isto é, foi atingidapela seta. que a mão de Cupído disparara - isto é,sentiu-se invadida pelo amor.

Litotes é o nome da primeira figura da linguagem«imprópria» (figurada): nela dá-se a perceber algumacoisa de diverso do que quer dizer em si a forma lín-guística, Com a litotes exprime-se uma afirmativa pelanegação do contrário: Não nos rimos pouco.

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Com a ironia pretende-se sugerir o contrário do quese diz com as palavras. Na linguagem quotidiana,expressões como: «Que linda história!» «Que beloamigo!» - são logo entendidas, a despeito da maneirade formular, actuando por forma decisiva a entoaçãocom que as palavras são pronunciadas. Por isso a poesiausa com mais reserva a ironia, ou então prepara de outraforma o seu verdadeiro funcionamento.

Chama-se eufemismo à designação por forma amávelde qualquer coisa desagradável, horrível ou penosa.São bem conhecidos os eufemismos geográficos: PontoEuxino, Cabo da Boa Esperança.

A hipétbole pertence às figuras mais frequentes dalinguagem familiar: «Já te disse milhares de vezes»- «Andas como uma lesma» - «Num relâmpago».Muitas das expressões novas, formadas por combinaçõesde várias palavras, aceitam-se pelo seu impressionantehiperbolismo {Blitzkrieq - querra-relâmpaqo] .

Entre sinédoque e metonímia não é costume estabe-lecer hoje grande diferença. Em ambos os casos setrata de um desvio, tomando a parte pelo todo (Lar,em vez de casa e família), a matéria pelo produto(uva por vinho), um indício somático pelo indivíduoou grupo de indivíduos (cabelo branco por velhice),o autor pela obra (ler Homero), a causa ou meio peloefeito (língua em vez de idioma, letra em vez de cali-grafia), etc., etc. Pode dar-se também o caso contrário,e termos, então, de partir da generalidade para o casoespecial (mortais em vez de homens).

Como a figura mais poética do discurso «impróprio»(figurado) é considerada desde sempre a metáfora,isto é, a transferência de significado de uma zona paraoutra, que lhe é estranha desde o início. Em virtude

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da importância desta figura e das discussões travadasquanto à sua essência, dedicamos-lhe um excurso emque é tratada mais a fundo, juntamente com outrasfiguras análogas.

Da metáfora passa-se fàcilmente para a cetecrese,nome com que se designa o emprego impróprio de umaexpressão. Este uso pode ser até errado (bebeu a sopa,colheu batatas); mas pode também servir propósitosespeciais, e aproxima-se então da metáfora: lágrimaseloquentes, luz emurchecida.

O oximoron é uma intensificação da catacrese, econsiste na ligação de duas imagens que, na realidade,se excluem. Na lírica dos séculos XVI e XVII, mastambém já na poesia «florida» da Idade-Média, depa-ram-se-nos sempre de novo expressões como: a amargadoçura (do amor) ,a sua doce amargura, a morte viva,a vida morta, o sol sombrio. Em Camões encontram-setambém oximora sem-fim:

Então, falo melhor quando emudeço ...que de matar-me vivo ...

Encontram-se aglomerados no soneto:

Amor ê fogo que arde sem se ver;~ ferida que dói e não se sente;É um contentamento descontente;:e: dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;É solitário andar por entre a gente;É um não contentar-se de contente;É cuidar que se ganha em se perder ...

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Não são raras_ estas figuras em Shakespeare onde,muitas vezes, funcionam por outra forma: beautifultyrant, fiend angelica I (Romeo and Juliet ), ou ainda:

Hís hurnble ambítion, proud hurnilíty.Hís jarring concord, and hís discord dulcer,His faith, his sweet dísaster ...

(AII's wsn th at E"ds usu,

Seguiu-se este meio estilístico através da poesiamedieval até à Disciplina Cleticalis de Petrus Alphonsus(Exemplum lI: Ex hac est michi mors et in hac estmichi vita).

Também na linguagem mística se nos deparam Ire-quentemente expressões como: o nada infinito, a vaziaplenitude, etc, Citemos San J uán de Ia Cruz:

que muero porque no muero ...vivo sín vivir en mi...y abatíme tanto, tanto,que fui tan alto, tan alto".

Também para esta tradição mística se supuseraminfluências árabes.

O oxímoron representa uma intensificação especialda antítese, do contraste. No verso seguinte vemosduas a duas noções usadas por forma antitética:

Glória do Mínho, horror de Salva terra.

Estão também cheios de antítese os versos seguintesda época do cultismo.

Este baixei, nas praias derrotado,Foi nas ondas Narciso presumido.Esse farol, nos céus escurecido,Foi do monte líbré, gala do prado.

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Esse nácar, em cinzas desatado,Foi vistoso pavão de Abril florido:Esse estio, em Vesúvios encendído,Foi Zéfíro suave, em doce agrado.

o bom acolhimento dispensado à antítese, precisa-mente no Humanísmo, ascende dírectamente ao modeloda retórica greco~latina [Vide a obra de E. Norden:Die sntike Kunstprosa oom 6. Jahrhundert v. Chr, bisin die Zeit der Reinassance).

A prosa e a poesia francesa cultivaram, sobretudo,a antítese, provando-se ser o alexandrino a medidado verso que para tal magnificamente se apropriava.São de Vítor Hugo os exemplos seguintes:

Le sentíer qui fuit ou Ie chemín cornmence ...La beauté sur ton front et l'amour dans ton coeur...raurais été soldar, si je n'étais poête ...Et je sais doü [e víens, si j'igoore ou [e vais ...

De certo modo, o contrário da antítese é o reforço deuma palavra por meio de uma segunda com significadoidêntico. Palavras com o mesmo sentido chamam-sestnorumos. (Dever-se-ia falar com mais exactidão depalavras com significado análogo, pois, numa língua,não existe a absoluta paridade de significado. Entrementira, peta, embuste, falsidade, impostura, patranhae mais 51 expressões, enumeradas por Manuel JoséPereira no seu Dicionário de Sinônimos da LínguaPortuguesa, sob a rubrica «Mentira», não se encontramduas designações absolutamente idênticas.)

A linguagem familiar já apresenta fórmulas duplassinonímicas: sem eira nem beira, à tort et à treoers,pêle mêle: mit Leib und Leben, Haus und Ho]: heert and

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hand: flesh and [ell, etc. Como se vê, na maioria doscasos há mesmo ligação sonora. Embora na sua origem,e, sobretudo, quando se trata de fórmulas jurídicas,fossem tomadas como duas expressões separadas, hojefuncionam como unidade.

Nas poéticas da Renascença, a fórmula dupla desinónimos é apresentada como enfeite especial. Naverdade. aparece muito frequentemente nas obras poé-ticas da época. Citem-se alguns versos de uma éclogade Camões:

Formosa manhã clara e deleitosa,Que. como fresca rosa na verdura,Te mostras bela e pura. marchetandoAs nuvens, espelhando teus cabelosNos verdes montes belos; tu só fazes.Quando a sombra desfazes triste e escura.Formosa a espessura e a clara fonte,Formoso o alto monte e o rochedo,Formoso o arvoredo e deleitoso ...

Sempre de novo se nos deparam fórmulas duplas,especialmente na adjectivação: claro e manifesto, firmee forte, doces e claras águas, de suave e angélica pre-sença; a mais conhecida é a forma inicial: Meninae moça... De novo, o carácter de ornato não é suficientepara determinar a função. Em cada caso isoladodever-se-ia perguntar primeiramente em que medida setrata de mera duplicidade da expressão, e em que pro-porção se trata de sinonímia consciente. Ainda assimficaria para averiguar até que ponto cada membroconserva a sua independência, ou até que ponto se dáa fusão. :É desnecessário indicar como se encontra napoesia. fora do Humanismo, a colocação de sinónímos,uns ao lado dos outros. Notem-se estas maneiras de

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dizer de uma poesia de Guerra Junqueiro: Neste íma-culado límpido arrebol; dessa inocência, desse paraíso;tudo é cinza e pó; tão ditosa e bela; alvoradas rôseas,virginais; num vertiginoso, angustioso horror; onde ventae neva; quem os guia e leva, etc.

Quando se ligam mais de dois membros do mesmogênero, resulta a serieçêo. Se cada membro conservaa sua independência, trata-se de enumeração, vulgarna linguagem quotidiana: maçãs, peras, pêssegos eameixas... Nos versos, indicados a seguir, de Guerra[unqueíro, do mesmo poema, depara-se-nos mais do queuma simples enumeração:

Branca e pequenina, Iigeirinha e leve,Corta por abismos, plagas sem faróis,Stepes ínfíndáveís que ninguém descreve,Lúgubres desertos de mudez e neve,Bátegas de brasas, turbilhões de sóis I

Cada membro enumerado perde a sua independênciae erque-se somente como onda isolada num grandemovimento transbordante. Aqui Fala-se de aglomeração.Em Junqueiro dá-se nela uma intensificação: porém,muitas vezes, resulta um grande torvelinho linguísticoque tudo arrasta consigo. Tornaram-se célebres os tur-bulentos amontoados de palavras de Rabelais, exaqe-rados ainda pelo seu tradutor alemão Físchart, doséculo XVI. Fala-se de seriação assindética quando osmembros isolados ficam sem ligação linguística (comono último exemplo de Guerra [unqueíro}, e de seriaçãosindétice se são unidos por «e», «ou», bem como porqualquer outro termo copulatívo. Os aglomerados tur-bulentos são na maioria das vezes asslndétícos,

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Uma intensificação que se efectua em graus símê-tricos, iguais, chama-se climex : - Onde o bom exemplocalando avisa. avisando emenda e emendando afeiçoa.Também pode ser considerado climax o célebre «veni,vidi, vici». Tem sido muitas vezes imitado o princípiode um célebre soneto de Petrarca:

Benedetto sia 'I giorno e 'l rnese e l'anno ...

Um soneto de Camões começa com o clímax:

O tempo acaba o ano, o mês e a hora, ..

o caso mais simples de uma aglomeração é a repe-tição da mesma palavra: «sempre, sempre»; «meu Deus,meu Deus»... Mas também a construção pode repe-tír-se: uma tal clara e igual ordenação de partes dafrase, ou de frases inteiras, chama-se paralelismo. Sãoexemplos de partes de frases ordenadas paralelamenteas seguintes: «com estrelas na alma, com visões namente»; «bátegas de brasas, turbilhões de sóis». Seriamfrases paralelas estas: «El cabello es oro endurecido,el lebio es un rubi no poseido, Ias dientes son de perlepura». Para encontrar exemplos nas letras portuguesas,basta ver qualquer sermão do Padre António Vieira:«Ondeia~lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasqa-lhe osolhos, aííla-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe asfaces, torneía-lhe o pescoço, estende-lhe os braços,espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe osvestidos». O efeito é tanto maior por as frases seremquase todas da mesma cadência; é o «cursos planus»que se repete em toda esta construção.

A construção paralela torna-se mais intensa quandoé sublinhada pela repetição de palavras dominantes

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sintàtícamente. Este fenómeno chama-se anãfora. É deGuerra [unqueiro, de novo, o seguinte exemplo:

Como não sentir um entranhado afecto,Como não amá-lo com veneração,Se lhe dera a trave que sustenta o tecto,Se lhe dera o berço onde repousa o neto,Se lhe dera a tulha onde arrecada o pão!

o paralelismo com anáforas da mais larga extensãoé, como se sabe, uma característica das cantigas deamigo:

Ai, flores, ai, flores do verde pino,Se sabedes novas do meu amigo?

Ai, Deus, e u é?

Ai, flores, ai, flores do verde ramo,Se sabedes novas do meu amado?

Ai, Deus, e u é?

Não é raro ser a construção de uma poesia inteiradeterminada por intensificações anafórícas, como, porexemplo, o seguinte soneto de Bocage:

Se é doce no recente, ameno EstioVer toucar-se a manhã de etéreas flores,E, lambendo as areias, e os verdores,Mole, e queixoso, deslizar-se o rio:

Se é doce no inocente desafioOuvirem-se os voláteis AmadoresSeus versos modulando, e seus ardoresDe entre os aromas de pomar sombrio:

Se é doce mares, céus aniladosPela Quadra gentil, de Amor querida,Que esperta os corações, floreia os prados:

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Mais doce é ver-te, de meus ais vencida,Dar-me em teus brandos olhos desmaiadosMorte, morte de amor, melhor que a vida.

À anáfora corresponde a epífora: nela repete-se amesma palavra no fim de grupos de palavras, frasesou períodos. Sirva de exemplo o passo seguinte deFrei Heitor Pinto: «gestos largos, esperanças do mundolargas, vaidades largas, consciências largas, com apertos,e estreitezas se hão-de castigar.» A repetição de umapalavra ou de um grupo de palavras no começo dafrase chama-se epenelepse: «Aqui, aqui é que está adificuldade» .

Quando duas partes de frase ou frases completas,que contêm uma anáfora, não são construídas parale-lamente, mas em oposição, como imagem e reflexo,fala-se então do quiasmo. O nome é uma derivação dadesignação da letra grega X, que, só por si, dá umquadro gráfico da construção:

O castelo melhor, o melhor forte ...Na terra as crianças cantavam, cantavam as aves no alto.

Enfim, por zeugma entende-se uma construção emque um verbo domina diversos objectos ou frases, massó se adapta a uma. Na antiguidade, esta figura eraconsiderada como erro. Porém, os efeitos surpreen-dentes que por meio dela se podem alcançar, tor-nam-na um meio muito usado na literatura cómica.Por exemplo, Sterne diz: «Ergueu os olhos e umaperna para o céu» ... No D. Quixote lê-se: «dejé Ia casay Ia paciencia».

Não é preciso formular a pergunta acerca do graude consciência com que são usadas as figuras indica das.

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Pode-se ter como certo que, nos tempos em que asfiguras constituíam um objecto de estudo para o poeta,e a qualidade de uma obra era determinada segundoo uso artístico das figuras de enfeite (e a exclusãodas condenáveis), o seu uso poético era muito cons-ciente. Como exemplo, que ao mesmo tempo deve servirmais uma vez de registo das figuras, sejam indicadasas duas quadras do soneto A morte do Conde de CasteloMelhor, presumivelmente de Jerónimo Baía:

o Castelo melhor, o melhor forte,Glória do Mínho, horror de Salvaterra,Quando subiu ao Céu, caiu à terra;Caiu, ai triste caso I ai dura sorte I

Da rnalor fortaleza de MavorteUm [aspe s6 toda a ruína encerra.O tempo fez o que não fez a guerra;O que não pôde Marte, pôde a Morte.

o primeiro verso contém sinónimos, em ordemquiasmática; o segundo verso junta duas novas deter-minações, desta vez em construção paralela, mas deessência antitética. O terceiro verso repete a cons-trução paralela com conteúdo antitético nos verbos.O quarto começa com repetição incisiva e termina comduas exclamações sinônimas anafóricas. «Dura» deveter o propósito de actuar como metáfora activa e assimdeve ter sido apreciado, ao passo que as palavras «caiu.e «caso» incluem uma paronomásia. Os versos cincoe seis contêm uma antítese. O termo «jaspe», com osignificado invulgar de «pedra tumular», forma umametonímia surpreendente, mas transparentemente clara,enquanto que fortaleza e ruína são metáforas designandoo Conde. O sétimo verso é de novo antítétíco, com

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construção quiasmática, ao passo que o oitavo éantitêtico, com construção anafõrica; como especialenfeite, contém ainda um trocadilho de que, nessa altura,na realidade, já se tinha abusado um pouco. Parecenão haver nestes versos nenhuma palavra nem nenhumaconstrução que não tenham sido usadas com extremaconsciência.

É supérfluo continuar o exame das figuras nos doistercetos: são do mesmo género:

Fosso lhe deu, serviu-lhe de estacadaPio o Galego, o Castelhano exangue,Com cadáveres um, outro com sangue,

E fora extinta e fora aniquilada,A ter mais duração ou mais estrela,Deste Castelo sõ toda Castela.

Como conclusão do estudo das «figuras», e antesde passarmos ao das formas síntácticas, tem aqui o seulugar o excurso sobre a metáfora e fenômenos afins.

Excurso: Imagem, Comparação, Metáfora,Sinestesia

Das formas linguísticas impróprias, a metáfora é amais importante. Vamos separá-Ia primeiramente dosfenômenos com que está relacionada.

Em contraste com a linguagem teórica, caracteriza-sea poética pela plasticidade ou seja a especial capacidadeevocadora. Não apresenta opiniões e discussões deproblemas, mas sugere um mundo na plenitude dassuas coisas. Não se referindo, como toda a outra lin-guagem, a uma objectividade existente fora da língua,

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mas antes criando-a ela própria primeiramente, apro-veitará todos os meios linguísticos que lhe possam servirde ajuda. Até na prosa literária, num romance, porexemplo, o autor evitará a indicação seca, a não serque se deixe influenciar contràriamente por fins espe-ciais. Em vez de dizer: às 8 e 50 partiu ele no rápido ...fará primeiramente erguer-se diante da nossa imagi-nação a manhã (talvez uma manhã sombria, chuvosa)e a gare da estação, com o fervilhar da multidão.A formação de tais imagens, porém, é mais do queevocação duma simples objectualidade.

Quando, na linguagem quotidiana, se verifica queuma manhã está sombria e chuvosa, esta observação émotivada pelas atitudes que esse facto nos levará atomar, por exemplo, quanto ao nosso vestuário. Naobra poética os adjectivos perdem esta referência prá-tica; mas, em troca, ganham um fundo emocional, alémda sua capacidade de evocar alguma coisa como exis-tente no mundo poético; o seu significado abrangemais do que a mera coisa ou qualidade significada.Contudo, ficam ainda dentro da linguagem poética geralque aspira, sobretudo, à plenitude de significado.Para surgirem aqueles Fenômenos a que chamamos,com um termo técnico, «imagens», é preciso muito mais.Observemos textos vivos.

N os versos seguintes:

Já vinha a pálida auroraAnunciando a manhã friaE eu falava e eu ouviaO que .

trata-se certamente só de uma ligeira formação deimagens. Contudo revela-se alguma coisa de típico: em

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vez da indicação adverbial do tempo, ou em vez deuma frase temporal subordinada, como se encontrariana prosa, encontramos uma frase principal coordenada.É um sintoma da tendência para o arredondamento,para o carácter fechado e completo, essenciais paraa formação de imagens. Nos seguintes versos deEugénio de Castro;

Pelas desertas avenidasLongas, trístíssímas, profundas,As altas árvores doridasSão como santas moribundas ...

a determinação, em si adverbial, quanto ao lugar,apresenta nítida tendência a tornar-se independente;após «profundas» há uma longa pausa e, na verdade,começa uma nova frase. Naturalmente, as imagenspodem ter maior amplitude e ser mais fechadas; encon-trá-las-emos ainda na narrativa como unidades de formasuperiores à frase; na lírica não é raro encontrar todauma poesia só com uma «imagem».

Os dois exemplos citados mais uma vez nos mos-tram que os poetas não aproveitam as poucas palavras,por eles dedícadas ao esboço, só exclusivamente parapintarem os objectos, mas, ao mesmo tempo, têm porobjectivo despertar emoções. À palavra «aurora» jáé inerente um fundo emocional bastante forte, emboranão seja fácil de formular. Em «pálida» reside aindamuita expressão e, através de «anunciar», a auroraganha pouco em visibilidade, mas muito em «signifi-cado». Dos quatro adjectivos, com que foram caracte-rizadas as «avenidas», um deles contribui escassa-

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mente para a visibilidade (tristíssimas), mas é nesteque, precisamente, recai um dos dois acentos principaisda frase.

Investigações profundas e da mais alta impor-tância que de novo levantaram o velho problema deLessing quanto aos limites entre poesia e pintura,chegaram ao resultado de que, na apreensão até dostextos mais descritivos, aquele que lê ou ouve nãovê surgir verdadeiras «imagens» (Th. Meyer, DasStilgesetz der Poesie, 1901). A posição em relação àlíngua é fundamentalmente diversa da posição para coma pintura. Na realidade, resultaria um caos de imagens,como o não conseguiria produzir um filme passadocom a máxima velocídade, se o leitor ou ouvinte con-cretizasse todas as imagens e respectivas referênciaslinguísticas. Demais a mais, elas surgem constantementenas zonas mais heterogéneas. Isto não significa quenão surta efeito nem tenha sentido o linguagem ricade imagens. Por certo, o leitor sente a qualidade espe-cial e a validade da linguagem que aspira à «vísua-lídade». Mas esta é apenas uma potencialidade. O ver-dadeiro significado das imagens poéticas - e é este oresultado que mais longe nos leva - não reside na suavisualidade, mas sim no seu conteúdo emocional esugestivo. A imagem das solitárias e longas alamedas,sugerida por Eugénio de Castro, é apreendida por nóscomo gesto duma profunda tristeza. Até quando senão trate de personificação tão avançada, é sempre umfundo emocional, uma referência íntima, humana, quedeterminam a imagem e seu efeito. Daí se explica oque observámos anteriormente: que, precisamente daimagem lírica, é fácil a ascensão até ao motivo, e que,onde à essência emocional se junta ainda a clareza

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espiritual, se trata, então, do motivo que contém oproblema central.

Contudo, as imagens aparecem na poesia nãosomente como arredondamento da respectiva objecti-vidade. Muitas vezes usamos a designação de «lingua-gem rica de imagens» fora das belas letras, a propó-sito duma conferência, dum discurso, dum artigo dejornal. Uma conferência é muitas vezes o estudoteórico de um problema teórico. Como tal, não possuinenhuma objectividade própria, concreta. As imagensque caracterizam a sua linguagem, como queríamosaceitar, realmente penetram indirectamente: como com-parações. A comparação, porém, pode tornar-se umtraço estilístico importante da linguagem poética. Encon-trámos há pouco um exemplo:

As altas árvores doridasSão como santas moribundas ...

Sobre a imagem das altas árvores uma outra sesitua. Mostra-se de novo como lá existe uma visua-lidade latente. Conhecemos dos quadros a atitude desantas moribundas (o simbolismo daqueles decêniosinspirou-se de preferência em quadros dos pintoresepré-rafaelitas»}. Entretanto é duvidoso em que medidaesta evocação nos ajuda a tornar mais visível a imagemdas árvores. Quase se poderia dizer: antes nos afastadessa visibilidade. O poeta interessa-se menos pela ima-gem das santas moribundas do que pelo fundo sugestivo.Daí ficarem, pois, as árvores embebidas em essênciaemocional. Como as alamedas, também as árvores sãoum gesto expressivo, o gesto de uma aceitação da morte,envolta em elevação (santas!).

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Neste ponto não é preciso levar mais longe a inves-tigação dos efeitos da comparação. Em todo o casotraz duas objectividades plásticas diferentes até àintersecção parcial. A parte comum é o «tertium com-parationis» .

Comparações podem referir-se a qualidades isola-das, de estado (grande como urna torre, pesado comochumbo). podem referir-se a acontecimentos (corriacomo uma lebre, combatia corno um leão), mas podemtambém pôr em relação situações completas e decursos.Nas chamadas comparações épicas, trata-se de com-parações pormenorizadas, na maior parte das vezes deacontecimentos. Que a epopéia é terreno propício paraa comparação, vê-se em Homero e confirma-se nosoutros poemas épicos. O seguinte exemplo de Camõesparece comparar somente dois movimentos; na realidadeestabelece-se grande cópia de relações:

Assim como em selvática alago a•.As rãs. no tempo antigo Lícia gente.Se sentem porventura vir pessoa,Estando fora da água incautamente,Daqui e dali saltando (o charco soa),Por fugir do perigo que se sente,E, acolhendo-se ao couto que conhecem,Só as cabeças na água lhe aparecem:

Assim fogem os mouros ...

Fala-se de parábolas quando todos os elementos deuma acção, exposta ao leitor, se referem, ao mesmotempo, a urna outra série de objectos e processos.A clara compreensão da acção do primeiro plano elucida,por comparação, sobre a maneira de ser da outra.

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DA OBRA LITERARIA 189

A rigidez na construção duma parábola provém daintenção dídáctíca, Os exemplos mais conhecidos sãoas parábolas da Bíblia (<<O reino dos céus é como umsemeador» ... ). Como «parábola», num sentido maisrestrito, entende-se uma forma literária que, no cedo,contém uma comparação. No fundo, a fábula é umaforma especial da parábola.

Partindo da comparação, procurou-se entender aessência da metáfora. Metáfora quer dizer trans-posição: o significado de uma palavra é usado numsentido que lhe não pertence inicialmente. Na expressão«o mar da vida», não devemos pensar no elementoaquoso, salgado. Ora, aceitou-se ser a metáfora oresultado de uma comparação antecedente que surge,por assim dizer, em resumo: as formas gramaticais dacomparação (como, como se, etc.) teriam sido supri-midas. No caso citado, à ideia «vida» viera justapor-sea comparação «mar», representando então o movi-mento, o perigo e a incomensurabilidade o «tertiumcompetetionis», Uma tal interpretação, que ainda hojese pode encontrar em livros dídáctícos de Estilística,ascende a Quintiliano, que dizia da metáfora: breviorest similitudo.

Na verdade, muitas metáforas são o resultadode comparações claras. Quando na poesia barrocaencontramos expressões como água de cristal, mar davida, etc., podemos reconstítuir precisamente as linhasde pensamento que conduziram o autor a estas metá-foras; as duas séries de ídeías conservam a sua índe-pendência assaz nitidamente. Tal como com o voca-bulário e com a comparação, também com a metáforase ganharam deduções por meio da investigação síste-mática das zonas objectuais. Os poetas do Barroco

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tiram as suas metáforas dum círculo relativamenteestreito; flores, pedras preciosas, astros, em especial tudoo que brilha, também tudo o que de poderoso e elevadoexiste, indicam o terreno palaciano, aristocrático, emque se desenvolveu tal poesia, que tanto se compraziacom os enfeites.

Contudo, investigações mais recentes tornaram duví-doso se corresponderá à verdade ser a metáfora umacomparação abreviada. :g certo continuar a ser válidoter por base uma dualidade e que a metáfora significaalgo de diferente daquilo que diz Iinguisticamente.(Pertence às «figures de pensée» e não às «figures lin-guistiques».) Há porém metáforas, sobretudo na poesiamoderna, onde dificilmente se podem aceitar actividadesprecedentes comparativas, e nas quais cessa em absolutoessa relativa autonomia das duas zonas. Quando umapoesia de Antero começa assim:

Um dilúvio de luz cai da montanha ...

reconhece-se imediatamente que, neste caso, não hádois objectos que se sobrepõem, e que o autor não tevetempo para distanciar-se do objecto friamente, rela-cíonando-se então com outros. A metáfora resulta aquida impressão em face de uma súbita ocorrência eestende-se a mais do que dois objectos e diferente-mente. Aos versos de Eugénio de Castro, já citados,das alamedas e das árvores, seguem-se estes:

Árvores negras, cuja vozMe enche de espinhos o coração ...

Aqui amontoam-se as maneiras de falar eímprô-prias». Uma voz enche o coração, e enche-o de espí-

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nhos. S impossível diferenciar ainda as zonas clara-mente. Enquanto que, nos poetas do Barroco, por meioda razão dois elementos independentes eram unidosnuma mistura - no rígido sentido físico da palavra-,nos últimos exemplos resulta na torrente ardorosa dosentimento uma ligação que dissolve a autonomia doselementos e deles faz algo de novo, autónomo.

Nesta espécie de metafórica sente-se como na metá-fora, que é o género mais importante da linguagem«imprópria», a língua começa a escorregar e perde asua firmeza. Não se trata de acaso, quando se evitatal metafórica díssolvente, sempre que se procura Iír-meza, forma, consistência plástica. Assim, Goethe, nasua época clássica, declarou-se contra a metáfora e,realmente, nas suas obras evitou-a, como tantos poetas«clássicos». Na juventude e na velhice, pelo contrário,defendia-a e usava-a. Por outro lado, românticos. e sim-bolistas procuraram a metáfora dissolvente por duasrazões primaciais: por extrema desconfiança acerca dafidedignidade da fixação conceptual-línquístíca, e porextrema desconfiança quanto à sua legitimidade. DisseVerlaine na sua Art poétique:

11faut aussi que tu n' ailIes pointChoisír tes rnots sans quelque méprise:Ríen de plus cher que Ia chanson griseOu J'Indécis au Précis se [oínt. ..

Para estes poetas todo o existente estava ligadomisteriosamente, de forma a não existirem fronteirasfirmes entre as coisas, e tudo seguia um curso perma-nente, em transformação constante.

Nesta altura cabem algumas observações basilaresacerca da língua. Assenta em bases muito fracas a

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crença na segurança da fixação conceptual-linquístícae na possibilidade de uma linguagem verdadeiramente«própria» ou «adequada». Na nossa maneira de falarquotidiana não raramente as designações «próprias» serevelam como «transpostas»; acontece o mesmo até nalinguagem científica, que está sob a lei estilística damáxima exactídão. Na linguagem quotidiana um estran-geiro habitualmente repara nas designações metafóricasmais depressa do que quem a elas se habituou desde ajuventude. (Exemplos do português: céu da boca, matara sede, romper do dia, manter, etc.). Como exemploda metafórica encoberta da linguagem científica, escolhe-mos uma frase qualquer: «Bluteau, uma vez dominadaa língua portuguesa, mantém viva até à morte, em 1731,a sua actividade intelectual».

Como, ao lermos, reparamos no sentido da frase,a princípio não observamos que, a cada passo, se deramtransposições de toda a espécie. Olhando mais de pertorevela-se-nos, então, alguma coisa, por exemplo: domi-nada, viva, mantém. Mas, quanto mais minuciosamenteobservamos, mais se dissolve a firmeza das designaçõese se vai diluindo: intelectual, língua, vez, por fim atéo «em» da data - todos estes significados, aparen-temente proprietários das habitações em que nasceram,revelam-se como hóspedes pensionistas vindos de longee que, bastantes vezes, expulsaram os verdadeiros donos.Os poetas porém, os eternos íntranquilcs, excitáveis,procurando e criando relações, animam com prazer, efrequentemente, estes movimentos, de que já está tãocheio o mundo da linguagem.

A metáfora é um dos meios mais eficazes para aampliação do âmbito de significado e para pôr em movi-mento aquele que entra nele. Ao mesmo tempo, é

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precisamente pela metáfora que se torna claro nãopossuírem as palavras só o seu respectivo significado,mas ainda energias sugestivas, valores «sociais», ídeíassecundárias de todo o género, etc, Temos de agradecer,por exemplo, às ídeías secundárias, que a palavra «mar»,como metáfora, possa sugerir a ideia de vida.

Em maior ou menor grau, cada palavra da línguacontém, ao lado do seu significado, ainda outras «cama-das» activas. Basta indicar os sinónimos que, certa-mente, comportam ligeiras diferenças de significado.mas que são sobretudo diversas pelo fundo emocional,as ídeias acessórias e os valores «sociais». E as mesmaspalavras, usadas em combinações diferentes, não sãointeiramente as mesmas. Também a nota lá ressoadiversamente, conforme é tocada no piano, no violinoou no órgão, embora seja sempre o mesmo tom de435 vibrações. O órgão, só por si, pode Iazê-lo ressoarda maneira mais diversa. Portanto, com a simplesverificação de que estamos em presença de uma metá-fora diz-se muito pouco. A interpretação estilística temde analisar para onde é que o poeta nos quer conduziratravés da metáfora e que funções ela exerce em cadacaso, e tem ainda de estudar a conexão, a actuaçãoem conjunto das diferentes metáforas.

Para terminar, coloquemos ao lado uma da outraduas poesias metafóricas em que podem ser observadasas diferenças na actuação das metáforas.

Francisco de Vasconcelos:A FRAGILIDADE DA VIDA HUMANA

Baixei de confusão em mares de ânsia.Edifício caduco em vil terreno.Rosa murchada já no campo ameno,Berço trocado em tumba desd'a infância;

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Fraqueza sustentada em arrogânciaNéctar suave em campo de veneno,Escura noite em lúcido sereno,Sereia alegre em triste consonância;

Viração lisonjeira em vento forte,Riqueza falsa em venturosa mina,Estrela errante em fementido norte;

Verdade que o engano contamina,Triunfo do temor, troféu da morteÉ nossa vida vã, nossa ruína.

Baudeleire,

LA CLOCHE FÊLÉE

11est amer et doux, pendant les nuíts d'híver,D'écouter, prês du feu qui palpite et qui fume,Les souvenírs loíntains lentement s'éleverAu bruit des caríllons qui chantent dans Ia brume.

Bíenheureuse Ia cloche au gosier vigoureuxQui, malgré sa víeillesse, alerte et bien portante,Jette fídêlernent SOB cri religieux,Ainsi qu'un vieux soldat quí veille sous Ia tente!

Moi, mon âme est íêlée, et Iorqu'en ses ennuisEJle veut de ses chants peupler l'aír froid des nuits,11arríve souvent que sa voix affaiblie

Semble le râle épais d'un blessé qu'on oublíeAu bord d'un lac de sanq, sous un grand tas de morts,Et qui meurt, sans bouger, dans d'lmmenses eHorts!

Da metáfora passa-se fàcilmente à chamadasinestesie. Compreende-se por este termo a fusão de

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diversas impressões sensoriais na expressão linguística.Quando o romântico Brentano nos diz:

Durch die Nacht, die mich umfangen,Blickt zu mir der Tóne Licht. ..

[Através da noite que me envolveuA luz dos sons me contempla ... ]

encontram-se aqui fundidas numa só vivência as sen ••sações do tacto (envolveu). do ouvido (sons), e davisão (contempla, luz).

Também neste fenómeno a linguagem corrente pre ••para o caminho para o poeta; falamos de tons clarose escuros, de cores quentes e frias, etc, Como traçoestilístico a sinestesia encontra-se, sobretudo, na poesiaromântica e simbolista.

As observações sobre a metáfora deixaram reconhe-cer dois conceitos linguísticos antagónicos. O primeiroaspira à maneira de falar «própria». Procura a palavraadequada, evita quanto possível metáforas e sinestesias,antes usa as palavras com relativa firmeza e nitidezde separação. Como Flaubert, muitos autores confes ••saram ter-Ihes custado noites de insónia «Ia recherchedu mot propre».

A outra atitude é aquela em que os traços estí-lísticos da linguagem «imprópria» predominam. Aqui.as palavras aparecem sem firmeza e movediças. :s certodever lembrar-se que nem todos os fenómenos línquís-ticos se subordinam uniformemente a uma vontadede expressão. Os mesmos traços linguísticos podemrealizar diferentes tarefas. Assim, o uso da metáfora,nos poetas do Barroco, não autoriza sem mais a tiraruma conclusão imediata acerca da mesma posição para

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com a língua e o mundo, como é característica deromânticos e simbolistas. Como enfeite linguístico cons-ciente e voluntário funciona, naqueles, por formadiferente do que na linguagem romântica.

4. A ordem « usual» das palavras

A sintaxe é a parte da gramática que trata dosmodos de significação num conjunto significativo e dasua disposição. Os modos de significação (funções)que distinguimos teõrícamente foram apreendidos pri-meiramente pelos gramáticas gregos e modificados peloslatinos. De uma maneira. geral, provaram tambémserem suficientes para a determinação dos modos designificação nas línguas indogermânicas mais novas.Sujeito, predicado, complemento dírecto, atributo são,por exemplo, alguns modos de significação estudadosjá pelos antigos. As gramáticas das línguas modernassó ocasionalmente tiveram de determinar de novonoções sintácticas, ou diferenciá-Ias mais nitidamente,como, por exemplo, as categorias dos «modos de acção»ou dos «abstractos verbais» nas línguas germânicas.Pelo contrário, as línguas divergem consideràve!mentena ordenação das estruturas de significado, entre asquais a frase é a mais importante. Distinguem-se aindana capacidade de variação, na admissão de diversaspossibilidades.

A história da língua pôde observar, a este respeito,grandes modificações dentro da mesma língua nodecurso da sua história. É certo que a história dasintaxe foi durante muito tempo a enteada da ciênciada linguagem; as histórias da língua usualmente diri-gem a sua atenção principal para a fonologia e para

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DA OBRA LITERÁRIA 197

a morfologia. Entre as línguas românicas, a francesalimitou, nos séculos XVI e XVII, a sua antiga maleabí-lidade em favor de uma ordem rígida, de forma a serco.isíderada, hoje, a língua românica de construçãosintáctica mais severa. É pois compreensível que, detodas as línguas, a história da sintaxe francesa sejaa que mais intensamente tenha sido investigada e dife-rentes vezes tem sido alvo de pormenorizada exposição.Compreende-se, também, que tenham sido feitas, pre-cisamente para a língua francesa, as tentativas exe-cutadas para apreender, a partir da totalidade dasformas linguísticas, o «espírito de uma língua», e darassim conteúdo fidedigno a esta noção, tão queridado século XVlII.

Não é obra de acaso serem muitas vezes os estran-geiros que interpretam, quanto ao estilo, uma línguanacional. Se a interpretação recai sobre a próprialíngua, citam-se ainda largamente outras línguas, comose observa, por exemplo, nas notas do livro deA. Dauzat Génie de Ia langue [rençeise. Na compa-ração, que se impõe sempre ao estrangeiro, destacam-semais nitidamente as particularidades de uma língua,e essas permitem as deduções mais rápidas acerca doespírito reinante numa língua. Mas, enfim, o «espírito»exprime-se também nas formas que, vistas de um espaçolinguístico maior, são «vulgares».

A interpretação estilística de toda uma línguadiferença-se, primeiramente, da interpretação estilísticade uma obra, já pela maior extensão do material deobservação. Também aí, os primeiros a apresenta-rem-se à análise são os traços estilísticos sintácticosque não são «vulgares»: além disso, todas as cons-truções síntáctícas, típicas para a obra, exigem a análise

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das suas funções, inclusivamente nos pontos em quese não desviam do usual. Quando; por exemplo, encon-tramos os versos de ""ióngora:

paga en admiración Ias que te ofreceel huerto frutas y el [ardin olores ...

surpreende-nos uma separação do artigo do substantivo,não vulgar, e isto exige explicação, tanto mais queé traço estilístico verdadeiro, isto é, repete-se semprede novo.

Quando, pelo contrário, encontramos:

de sucesión real, si no divina' ...

uma tal construção nada tem de surpreendente, vistado espaço linguístico mais amplo da língua espanhola.Porém, a atenção especial do investigador do estiloacorda no momento em que, como realmente acontece,prova ser uma forma línguística típica de Gónqora.(Os exemplos foram tirados do livro já citado deDámaso Alonso.)

Neste momento torna-se clara e nítida uma difi-culdade de todo o trabalho sintáctico. O que é poiso «usual»? Atendendo à fonologia e à morfologia- e também ao vocabulário - pode decidir-se comalguma segurança o que é usual. de forma a qualquerdesvio ser depressa reconhecível. Na sintaxe as coisassão mais difíceis. Uma frase exprime uma relaçãoobjectiva. .É isto a sua essência. Ora já toda aobservação da maneira de falar quotidiana mostra queo mesmo facto pode ser apresentado pelas formas maisdiversas. «Um homem saiu de repente da casa» - este

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simples facto podia aparecer nesta construção: «Derepente saiu um homem da casa»: ou: «Da casa, saiude repente um homem»; ou: «Saiu, de repente, umhomem da casa». Tudo isto são possíveis posições depalavras. Não se pode dizer ser uma habitual e asoutras darem nas vistas como desvios. Qual a cons-trução usada no momento de falar, depende das cír-cunstâncias desse momento, da situação, do auditório,do contexto, etc, Na generalidade podemos dizer:depende da perspectiva em que o facto é apresentadoem palavras.

Em exposições antigas pode ler-se que a clareza,o equilíbrio e a emoção são as dominantes da colo-cação das palavras. Mas isto, é claro, não chega paracompreender as formas usuais da construção da frase.Além disso, por exemplo, o equilíbrio é uma quali-dade à qual só aspiram certas maneiras de ver, possí-velmente a «clássíca», enquanto que outras talvez aevitem. Neste ponto investigações mais recentes ten-taram avançar alguma coisa. Entre elas interessaráao investigad r do estilo, sobretudo, o trabalho deE. Lerch, sobre Tipos de colocação das palavras (Typender W ortstellung).

Lerch diferença sete tipos: a colocação lógica depalavras, a colocação segundo a «contacto» [Kontekt-stellung), a ordenação segundo a concretização, arítmica, a impulsiva, a que se subordina ao ouvinte,e a impressionista. Como é óbvio, o fim de Lerchconsiste não só em determinar tipos de construçãoexterior da frase, mas em vê-los, simultâneamente,como reflexo de forças impulsivas interiores, o queequivale a dizer: de tendências estilísticas. O resul-tado é, afinal, um cartão de amostras um tanto varie-

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gadas em que a separação parece por vezes algo arti-tifícíal. Por outro lado a lista não poder ter a aspi-ração de ser completa. Dámaso Alonso acrescentouainda outro tipo: o da tendência arcaizante. Diz ele(Góngora, pág. 180): «Creo que esta lista (de Lerch)se poderia todavia prolongar bastante. Letch ha olvi-dado que, por Ia que se refiere a Ia lengua litererie,hag otros motivos que pueden producir nuevos ordenes,ante todo Ia intención erceizente»,

Damos ainda um outro exemplo, em que há dúvi-das se poderá ser abrangido pelos tipos de Lerch.Num soneto barroco português encontra-se a seguinteestrofe:

Mais dura. mais cruel, mais rigorosaSais, Lísí. que o cometa, rocha ou muro,Mais rigoroso, mais cruel, mais duroQue o céu vê, cerca o mar, a Terra goza.

Um exemplo alemão correspondente encontra-se noseguinte epigrama de Opitz:

Díe Sonn, der Pfeil, der Wínd, verbrennt, verwundt, weht hín,Mit Feuer, Schãrfe, Sturm, mein Auge, Herze, Sinn,

[O sol. a seta, o vento, queima, fere, espalhacom fogo, gume, sopro, meus olhos, coração, razão).

Quer-nos parecer que estas construções, que nãosão raras no período a que pertencem, se não subor-dinam a nenhum dos tipos enunciados por Lerch.(Esta enumeração encaixada é propriamente origináriatambém da Antiguidade; a expressão técnica paradesignar estes versos é versus repporteti.] Aquiactuam forças que não vêm da perspectiva para ofacto. Lerch tem também um tal tipo: o rítmico,

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Mas também esse não basta aqui. Esta construçãonão se criou por causa do ritmo. Poder-se-ia cair natentação de anunciar um novo tipo, o «estético», emque a colocação das palavras obedeceria a tendênciasestéticas. Assim designa também Dámaso Alonso(Góngora, pág. 211) as separações do substantivo,dos artigos, pronomes ou adjectívos, tão notáveis emGóngora, como «instrumento expressivo de valor esté-tico». Porém a designação de «estética» seria tão vagaque quase não chegaria a dizer nada. E o intérpreteda sintaxe de Góngora permite-se esta designaçãosó porque antes (pág. 190) diferenciou nitidamente:o hípérbaton (a transposição ou inversão) era, nas mãosde Góngora, «un instrumento apto que, em muchasocasiones, situe para dar [lexibilided y soltura a Ialenque, permite el aéreo encadenamiento de un período,aqui facilita un dona ire o una momentánea elusiôn,allí un efecto imitativo, a oeces hece reselter el valoreufónico o coloriste de una pelebre, permitiendo sucolocación en un punto donde el ritmo tiene su cima deintensided, otres hece surgir nítido, de punta en blenco,un esplêndido verso».

Mas não é ainda suficiente esta validade múltiplada mesma figura sintáctica. Dámaso Alonso chega aesta verificação (pág. 211): «Peco Gônqore se aficionaen especial a algunos (tipos dei hipérbaton) que, repe-tidos una vez y otre, llegan a caracterizar su estilopoético y a conoertir-se en fórmulas oecies de valorexpresioo. Es este un caso particular de una ley generalen poesia gongorina: tendencie a Ia repeticiôn de Iasmismas fórmulas».

No terreno sintáctico estamos assim perante omesmo estado de coisas como nos casos anteriores: a

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investigação do estilo não pode contar, a priori, comuma função unilateral e para sempre fixa das formaslinguísticas. Observa-se com pesar que, no campo dasintaxe, e especialmente no da disposição das pala-vras, os gramáticos ainda não prepararam devidamenteo terreno, como o fizeram em outros sectores da gra~mática.

Outro problema, que surge em conexão com este,exige, em virtude da sua importância primacial, tra-tamento um pouco mais desenvolvido. Por isso íntro-duzimos sobre ele um excurso que podemos íntítularde «sintaxe e verso».

Excurso: Sintaxe e Verso

Verifícámos que a fixação da noção de «usual» criadificuldades na sintaxe. Cada qual pode fazer a expe-riência de que, como se serve de vocabulário diferente,assim também usa construções sintácticas diversas, con-forme fala com os parentes mais próximos, com amigos,com desconhecidos, etc, E a variedade apenas serámenor ao exprimir-se por escrito. Aqui, não se tratade enumerar os tipos de «estratos» linguísticos. .Emtodas as línguas existe, de maneira mais ou menossensível, uma diferença profunda, por exemplo, entrea linguagem escrita e a falada, para escolher dois tiposgrosseiros. Assim, em português, o gerúndio sabesempre a tinta. Em alemão; na linguagem quotidiana,o genitivo quase desapareceu de todo e isto já háséculos, enquanto que, na linguagem escrita, continuavivo e forte. Acontece em inglês o mesmo com ogenitivo saxónico. No latim era especialmente marca da

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DA OBRA LITERARIA 203

a diferença entre os dois estratos. A partir da sintaxeda literatura latina, não se via ponte que conduzissesobre o abismo até à sintaxe das línguas neo-latínas.Foi do latim falado, do chamado latim vulgar, que aspontes conduziram até ao outro lado.

O terreno porém que, em todas as línguas, peranteos outros estratos, ocupa posição especial, precisamentena sintaxe (como também no vocabulário). é a lin-guagem do verso. Deveria ser um estranho livro umahistória da sintaxe escrita só sobre textos em verso.(A falta de suficientes monumentos em prosa nas épocasmais remotas contribui, decerto, para que a sintaxehistórica esteja em tão mau estado. O facto de a lín-gua francesa, neste caso, ter uma certa vantagem reside,em parte, em a prosa literária ter começado aqui maiscedo do que nas outras literaturas.)

Só em verso são imagináveis os exemplos de cons-truções bizarras, tiradas de Góngora e do Cultismoportuguês. Aliás, até aí são algo invulgar. Seja, porém,qual for o lado para que nos viremos na poesia, portoda a parte encontramos o invulgar, se o cotejarmoscom a prosa. Vejamos este exemplo de Bocage:

Gemer o Deus da Guerra os céus ouviramPela Filha do Mar, Mãe dos Amores;Namorado Neptuno as ondas viram,

E ao selvático Pan os seus Pastores;Ardeu também por Acis Galateia:Quem te resiste, Amor? Só Dínopeía,

Assim soltas, as construções por certo são estranhas.Lidas, porém, integradas no seu contexto, chamammuito menos a nossa atenção. Na maioria dos casos

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204 ANALISE E INTERPRETAÇÃO

não temos consciência do que há de «não usual» nasintaxe da poesia. Aceitamos naturalmente a maiorparte das construções, mais livres, da linguagem poé-tica. As mesmas construções que nos surpreenderiam,em extremo, na prosa, e pelas quaís começaríamos a«construir» para compreender bem o conjunto da frase(basta somente pensar nas construções de Bocage comoconstruções em prosa), despertam em verso muitomenos a nossa atenção. Trata-se de um difícil problema,ainda não suficientemente esclarecido.

Sentimo-nos talvez levados a formular a seguinteresposta: as construções, mais livres, da linguagem doversão estão ao serviço da rima e da métrica. Uma talresposta, porém, não pode satisfazer, pois em todosos casos em que uma disposição invulgar das palavrasse explique pelas exigências da rima ou da métrica,esta explicação inclui uma crítica violenta e, no fundo,destrutiva dos respectivos versos: são, então, de qua-lidade inferior. E o facto é que, nas poesias não rimadasou nas de métrica livre (isto é, em poesias em quenão há exigências provenientes da rima e da métrica),a disposição das palavras não é mais regular do quenas outras, antes pelo contrário.

Deu-se uma outra resposta para explicar as cons-truções mais livres da linguagem poética; que estãoao serviço de um ritmo forte. No entanto, surgemimediatamente novas questões. Por sua vez, como podeo ritmo conseguir que não dispensemos a máximaatenção às construções, e que estas, todavia, funcionem?Como pode ele, o ritmo, exigir precisamente as cons-truções mais livres, desviar delas a atenção e, ao mesmotempo, tornar fácil a sua compreensão?

Não será contestável actuarem as construções «mais

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livres», muitas vezes, como criadoras de ritmo. Porém,na solução do problema, não devemos atender somenteao ritmo. Nos exemplos, acima apresentados, deGóngora e do Cultismo português, reconhece-se comoas construções bizarras não foram escolhidas, em pri-meiro lugar, por causa das suas qualidades rítmicas.Se, como tentativa, indicarmos pelo menos a dírecçãoem que nos parece encontrar-se a solução do problemaque diz respeito à sintaxe especial da língua poética,partimos também de um caso que não pode compreen-der-se, primàriamente, pelas suas funções rítmicas.Trata-se, e nós só escolhemos isto como ponto departida, da tendência, observada na poesia de muitaslínguas, de colocar um genitivo diante do substantivode que depende. Na prosa, especialmente na prosaextra-literária, nestas lnguas, é «uso» colocar o geni-tivo em segundo lugar. Apresentemos alguns exem-plos:

Do espanhol:

... de tus profetas santosIa voz no suena ya? ..que olvídan de Ia risa el movímíento...

Em inglês temos o fenômeno do genitivo saxónico:

Spirit of a wínrer's night ...A partner in your sorrow's mysteries ...

Mas não faltam os genitivos formados com «of .•e colocados antes do seu substantivo:

Of Nelson and the NorthSing the glorious day's renown ...

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206 ANALISE E INTERPRETAÇA.O

Em alemão. em verso. é muito frequente esta cons-trução:

... seheich der Sonne líebes Líchr ...Des Morgens erste Strahlen ...

Em francês. alguns exemplos tirados de Baudelaire:

... d'un destin trop durÉpouvantable et clair emblêrne ...De l'horízon embrassant tout le cercle ...

Em italiano:

Tu de l'ínutíl vitaEstrerno unico fior ...Di giganti un esercito ...

Em português encontram-se muitos exemplos nalírica cultista:

De Flora o campo cheio de harmonias ...Quando de Abril a Aurora é mais serena ...

De época posterior. indicamos exemplos de Bocage:

Mas teme que dos Deuses a vingançaVenha punir ...

Demoremo-nos no último exemplo.Se compararmos a construção com a da prosa: que

a vingança dos deuses venha punir ...• logo notamosque esta é dita duma maneira mais rápida, ou antes,aquela é dita mais lentamente. Assim torna-se maisintenso o efeito do genitivo anteposto: o significado

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«dos deuses» torna-se agora incomparàvelmente maispenetrante, mais autónomo, do que se estivesse colocadona construção mais vulgar da prosa, onde, por assimdizer, fica dentro da esfera de acção e na sombra de«vingança». Da anteposição resulta um aumento designificado, que fica fora da continuidade da frase.Observada a preceito, surge até uma pequena modifi-cação de significado. Colocada depois, a preposiçãodo genitivo indica a relação entre os dois substan-tivos. Colocada antes, indica simultâneamente a pro-veniência no espaço. Ajuda a criar uma objectívidadeplástica, enquanto que, colocada depois, só funcionalõgicamente.

Para ir mais longe, tentemos indicar ao de leve O

que resulta da qualidade rítmica da versão poética.Não nos satisfaz a vaga constatação: por causa doritmo cria-se uma impressão agradável, estética. Temosde escutar e observar mais profundamente. O ritmomarca uma pausa perceptível atrás de «vingança», poisesta fica no fim do verso. Assim, esta palavra ganhaintensificação de significado, semelhante à que cabe a«Deuses» provocada pela colocação em primeiro lugar.Através do ritmo, acontece algo de semelhante à palavralogo a seguir à pausa, «venha». Se se reler a construçãoda prosa, ao lado da construção poética, observa-se que,por meio da anteposição do genitivo e do ritmo, sedissolve a construção fechada, estreita e lisa da prosa.Em vez de uma única elevação surgem agora diversoscumes: Dos Deuses / a vingança / venha / punir.

Se reproduzirmos o efeito da significação, devere-mos dizer: do espaço em torno dos Deuses, aproxima-sealguma coisa - é a vingança divina; e ela acorre ehá-de castigar.

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A frase em prosa reproduz uma relação objectiva.Graças à construção linguística corrente, entendemosimediatamente o facto como tal. Se imaginarmos afrase pronunciada numa conversa banal, o interpeladocomportar-se-ia de qualquer forma, baseando-se nacompreensão do facto; procuraria desviar o perigo, etc.No verso, o facto não é apresentado com tanta sim-plicidade. Mas também não é verdade ajudar o ritmoa tornar mais transparente a construção linguística.Ajuda, como vimos, a tornar a construção maislivre, menos ligada. Deste modo, a nossa perguntaacima, seguia, até, uma pista errada; como pode oritmo provocar construções mais livres e, ao mesmotempo, facilitar a sua compreensão? - Ele não facilitanada. Por meio da construção especial (colocação dogenitivo em primeiro lugar) e do ritmo, certos membrosisolados da frase recebem um excesso de significado,e daí resultam imagens, na verdade não plásticas,mas pelo menos esquemáticas e sugestivas, imagens deum espaço povoado de deuses, uma vingança, a suavinda, o castigo. Inverteu-se a relação; os componentesda frase já não funcionam agora só como partes deuma frase, isto é, de um facto, mas sim a ligação dafrase torna possível que as partes da frase ocasionemefeitos especiais. Uma frase de um verso é, por assimdizer, menos «frase» do que em prosa, porque nosimporta menos a mera relação objectíva que elareproduz.

A resposta à pergunta; porque é a construção sín-táctica do verso tão diversa da usual em prosa, e, naverdade, muito mais livre?, não pode ser, ou não éem última instância; porque assim se cria o ritmo.Não obstante os efeitos intrínsecos, que certamente

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provoca, o ritmo é meio para um fim. Ajuda a criaressas imagens expressivas, essa intensificação dossignificados, que é a realização essencial da linguagemdo verso. Tão importante como a existência de umcontexto de significação é, para a linguagem do verso,o acorde, o registo unitário dos objectos portadoresde emoção - no nosso exemplo o conjunto de: teme-do espaço dos deuses - vingança - vir - punir.

s. Formas sintácticas

Depois de ter chamado a atenção para as parti-cularidades contidas no problema «sintaxe e verso»,apresentamos algumas formas sintácticas, na parte queainda não foi exposta nas «figuras».

Assim como a investigação estilística no estrato dapalavra pôde ter o seu início nas categorias gramaticais,o mesmo pode acontecer na sintaxe a partir dos modosde significação determinados pela gramática, comosujeito, predícado, complemento directo, complementocircunstancial de modo, etc.

No predicado observou-se, por exemplo, que deter-minados poetas evitam, muitas vezes, o verbo Iíníto e,em troca, usam a cópula «ser» com um nome predí-cativo. Para a sua construção de frase é típica a formada «proposição de juizo» da lógica. Esta observaçãofoi o ponto de partida para a verificação - precisa-mente no sector da sintaxe - de traços estllisticostípicos do classicismo e finalmente de um «classicismopré-barroco» (R. Alewyn).

Encontra-se, pelo contrário, uma construção verbal

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estranha no seguinte verso de Mário de Sá-Carneíro,a mais forte vocação dentro do simbolismo português:

Nada me expira já, nada me vive ...

Encontramos também, como traço notável, estatransitivação de verbos, em si intransitivos, na linguagemde Klopstock, do jovem Goethe e dos poetas da épocado «Sturm und Drang»:

Gedanken Gottes, welche der Ewíqe,Der Weise itzt denket!

[Pensamentos de Deus que pensaAgora o Eterno, o Sábío l]

Wenn er Gedanken wínkt l[Quando ele acena pensamentos I]

StammeIt dein hohes Lob!. ..[Balbucia o teu alto louvor ... ]

o conjuntivo é um terreno difícil para a investigação.Escapa, em todas as línguas, a uma última determí-nação gramatical e são consideráveis as discrepânciasentre o que é fixado pelos gramáticos e o uso nosdiversos sectores da vida linguística. É preciso um per-feito conhecimento da língua e, muitas vezes, um finotacto, para compreender claramente a particularidadede um autor no uso do conjuntivo e os efeitos espe-ciais por ele assim obtidos. Ora, para a estilístíca, oconjuntivo é precisamente de múltiplo interesse, poisé o modo em que se desvenda a posição pessoal peranteos factos e, assim, a perspectiva. Basta modificaralguns dos conjuntivos que, por exemplo, nos chamam

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a atenção em Rílke, para sentir a força funcionaldeste modo:

Erde, du líebe, ich wíll, O glaub, es bediiriteNicht deíner Frühlinge rnehr...

Ê característico de Rilke evitar a forma «usual»condicional em favor do conjuntivo:

Und wíssend, wie sie seine Trauer triiqen ...

Ist doch von ihrern Weíss und íhrer RôteNícht rnehr gegeben, aIs dír eíner bote,Wenn er von seíner Freundín sagt ...

A investigação dos tempos será de importância esti-lística especialmente na arte narrativa. Na narração,as línguas germânicas usam o imperfeito, e as línguasromânicas o imperfeito e o pretérito perfeito [passédéiini}. De novo, só pelo mais exacto conhecimentodos estratos da língua se pode determinar a partícula-rídade no uso dos tempos e a sua função na construçãoda obra. Em tais investigações mostra-se, tal como noconjuntivo, que não existem fronteiras entre ciência dalíngua e ciência do estilo.

Pelo contrário, dístínque-se com facilidade aqueletraço estilístico que, na narrativa, resulta do saltopara o presente. Chama-se a este presente «presentehistórico».

Fora da arte de narrar, tem-se também mostradoa importância das observações feitas sobre os tempos.Por exemplo, nos dramas de Calderón, chama-nos aatenção a tendência para usar o pretérito perfeito emvez do presente, como era de esperar. É certo que

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semelhante tendência se observa muitas vezes emespanhol.

Quanto à Lírica basta-nos um curto exemplo emque, neste momento, só deve ser sentida a importânciaconstitutiva dos tempos; só mais tarde será possíveldesenvolver o assunto. Trata-se de alguns versos deApparition de Mallarmé:

rerrais donc, reei! rivé sur le pavé víeíllí,Quand avec du soleiI aux cheveux, dans Ia rueEt dans le soir, tu rn'es en riant apparueEt j'aí cru voir Ia fée au ehapeau de clartéQui jadís sur mes beaux sommeils d'enfant gãtéPassait, laissant toujours ...

Esta sobreposição de tempos actua quase como umprenúncio de Proust, em quem a estratíficação temporalé ainda muito mais confusa:

«ll y a bien longtemps aussi que mon pére a cessé depouvoir dire à maman: «Va avec le petit», La possibilitéde telles heures ne reneitte jamais pour moi. Mais depuispeu de temps, je recommence à três bien percevoir, si jeprête roreille, les sanglots que reus Ia force de contenirdeoent mon pêre et qui n'écletêrent que quand je meretrouvai seul avec memen, En réelité ils n' ont jamaiscessé: et c' est seulement perce que Ia vie se teitmaintenant ... »

Um traço estilístico tão conspícuo tem que impor-secomo ponto de partida a todo aquele que queiraocupar-se do estilo de Proust; a expressão «en réelité»da nossa citação indica logo que, apesar da emaranhadaprofusão de emprego de tempos, no mundo que se nosdescreve não falta uma ordenada.

Tais observações sobre os tempos do verbo con-

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duzem-nos a um círculo de perguntas que a ciência daslínguas tem formulado precisamente nos últimos tempos:o dos modos de acção (teoria dos aspectos). Os verbosdas línguas indogermânicas incluem numa ordem tem-poral um determinado facto por meio de formas espe-ciais, ordem essa que tem como que o seu centro nopresente de quem fala. O que, a partir dele, fica paratrás é o passado, o que fica para diante é o futuro.O modo de acção abrange num evento simultãneamentea fase na ordem temporal do evento, se ele é p. ex. umevento que começa, que dura ou que termina. Muitasvezes o modo de acção é já dado na significação deum verbo: «florir» (em alemão «blühen»), p. ex., indicajá um estado de duração, quer o evento se coloque nopassado, no presente ou no futuro. Igualmente «ir»(a!. «gehen») parece, pela significação, ser um durativo.Mas nota-se imediatamente que em alemão se podemindicar com ele vários modos de acção. Esta peculia-ridade do alemão nota-se principalmente em confrontocom outras línguas, na tradução portanto. «Er geht»(<<ele vaí» ) pode significar três coisas: 1. modo deacção durativo {eer geht durcli die Stedt» - «ele vai[anda] pela cidade»); 2. intoativo (no sentido de: elepõe-se em movimento); 3. perfectívo (p. ex. na con-versa: «Komm' doch heut Abend mit ins Theater! Fritzsagt, es soll glanzend sein. Er geht.» - «Vem hojeconnosco ao teatro! O Fritz diz que deve ser esplên-dido. Ele vai.») É claro que a identidade é apenasaparente; pelo contexto, pela entoação, pela acen-tuação, etc., todo o alemão percebe claramente o quese quer dizer, embora faltem elementos formais semân-ticos especiais (ou melhor: embora faltem na fixaçãoescrita). As outras línguas empregam esses elementos

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formais semânticos ou mesmo outros verbos (para omodo de acção incoativo, p. ex., francês «partir», inglês«to leeue»}, É verdade que o alemão possui nos pre-fixos um meio com que dá aspecto temporal à acçãodesignada por um verbo. «Bliihen», como verbo simples,designa duração (florescer); se empregarmos «erblãhen»,o prefixo «er-» indica o começo da acção (incoativo)(começar a florescer, a abrir-se}, se for «oetbliihen»,o prefixo «ver~» indica o fim da acção (murchar)(perfectivo). Damos um exemplo para ilustrar a impor-tância estilistica dos modos de acção. Trata-se dumapoesia de Goethe:

TROST IN TRÃNEN

Wie kommts, dass du 50 traurig bíst,Da alies froh erscheint?Man síeht dír's an den Augen an,Gewiss, du hast geweint.

«Und hab ich einsam auch geweint,50 ists mein eigner Schmerz,Und Trãnen fliessen gar 50 süss,Erleichtern mir das Herz.»

Díe frohen Freunde laden dích:O komm an unsre Brust IUnd was du auch verloren hast,Vertraue den Verlust.

«Ihr Iârrnt und rauscht und ahnet nicht,Was mich, den Armen, quâlt ...Ach nein, verloren hab ichs nícht,50 sehr es mir auch fehlt,»

50 raffe denn dich eilig auf IDu bíst eín junges Blut,In deinen [ahren hat man KraftUnd zum Erwerben Mut.

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«Ach nein, erwerben kann íchs nicht,Es steht mir gar zu fem,Es weílt so hoch, es blinkt 50 schõn,Wie droben [ener Stern.»

Díe Sterne, die begehrt man nícht,Man freut sich íhrer Pracht,Und mit Entzücken blickt man aufIn jeder heitren Nacht.

«Und rnít Entzücken blick ich aufSo manchen lieben Tag;Verweinen lasst die Nachte mích,Solang ich weinen maq.s

Pode dizer-se que toda a poesia é composta, exte-riormente, pelo contraste de duas vozes; interiormentepelo contraste de dois modos de acção. De um ladoaparecem os incoativos com o prefixo er- [erscheint,erleichtem, erioerben} e ent- {entziicken}, aos quais seligam as composições com auf- (aufraffen, aufblicken):do outro, as composições perfectivas com o prefixover- [vertreuen, oerlieren, oerioeinen}, Só devido aocontraste mantido através de toda a poesia, actua porforma tão expressiva o termo «oettoeinen»: é a con-clusão, de certo modo o centro, [Slmultâneamente,mostra-nos o final que os verbos incoativos estão rela-cionados com o dia, os perfectivos com a noite; trata-sede uma maravilhosa concentração plástica de umacosmologização de todo o contraste feita de um modoverdadeiramente goethiano,)

Tem dado motivo a vivas discussões uma formaestranha no emprego dos tempos verbais, frequentenos romances espanhóis: trata-se da mistura dos tempos,que pode ir até às seguintes ligações: «altos son

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y relucien: «todas comen a una mesa, todas comían deun pan». Como exemplo de um tal conjunto, citamoso principio do romance de D. Rodrigo El reino perdido:

Las huestes de don Rodrigodesmayaban y huíancuando en Ia octava bataUasus enemigos vencían.Rodrigo deja sus tíendasy del real Se salía;solo va el desventuradosin ninguna compafiia;el cabaUo de cansadoya moverse no podia,camina por donde quieresin que él le estorbe Ia via.EI rey va tan desmayadoque sentido no tenía ...

[Também no romanceiro português não faltamexemplos desta mescla de tempos. Lembremos oromance dos anjos remadores da Segunda Barca deGil Vicente: «Remando váo remadores / Barca degrande alegria; / O patrão que a guiava / Filho de Deusse dizia ... »]

Na concordância entre sujeito e predicado há casosem que as línguas vacilam entre a concordância gra-mático-formal e a lógica. Assim, em francês, encon-tra-se «c'est eux», ao lado de «ce sont eux», Encon-tra-se também na maioria das línguas, a par da forma«uma grande multidão de homens veio... » a possibi-lidade: «uma grande multidão de homens vieram... ».

Mais chama a atenção aquele caso em que tanto arelação lógica como a formal são postas de lado, emfavor de uma mais emotiva que, naturalmente, interessa

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a estilística de modo especial. É um caso que mostraclaramente o múltiplo sentido de uma figura estilístíca,pois, para designar o mesmo fenómeno, usam-se expres-sões que se excluem reciprocamente: «plural majestatis»e «plural tnodestiee», Das duas vezes se trata da substi-tuição do singular, lógica e formalmente esperado, peloplural. Mas às duas funções antagónicas junta-se umaterceira, ainda possível. O «nós» com que o narradorencobre o seu eu (nós informámos que ... ) reforça aligação com o auditório que o narrador coloca juntode si e a que, assim, atribui uma parte da responsabi-lidade do que foi narrado.

O uso frequente do atributo será sempre um notáveltraço estilístico. Entretanto é preciso tomar em linhade conta as diferentes formas como o atributo é empre-gado, pois este pode aparecer, como já vimos, comoadjectívo, substantivo, oração relativa, etc.

Na colocação das palavras, já os antigos tinhamestudado uma «figura»: o hipérbeton, Entende-se poreste conceito a colocação de palavras diferente da«usual». Por um lado, torna-se, porém, difícil fixaro que é ou não o «usual». Por outro, esta noção dehipérbaton vai prender-se com tantos fenómenos, quese torna pouco prático para a investigação esti-lística. Já conhecemos alguns casos em que aparece O

hipérbaton: a colocação do genitivo em primeiro lugar,a separação do substantivo do artigo respectivo, pro-nome, ou adjectivo, características do Cultismo deGónqora. No Cultismo português encontrámos as cons-truções paralelas sobrepostas.

Um dos traços estilístícos sintácticos mais fáceis dereconhecer, e que é costume apresentar também sob adesignação de hípêrbaton, é a inversão, isto é, a posição

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invertida do sujeito e predicado. Todas as línguasadmitem várias possibilidades no uso desta inversão,de forma que numa obra pode surgir daqui um traçoinvulgar que, noutra literatura, seria considerado usual.Não corresponde, porém, à realidade dos factos odeclarar A. Dauzat não existir, no português, esta possí-bilidade. Citamos os exemplos seguintes tirados de umasó página do romance A cidade e as serras, de Eça :«Vêm aí os bichos»; «era o corregedor homem digno»;«e não tardaram a aparecer no córrego, para nos leva-rem a Tormes, uma égua ruça, um jumento com albarda,um rapaz e um podengo»; «com que brilho e inspiraçãocopiosa a compusera o divino Artista»; «para os valesdesciam bandos de arvoredos», etc., etc.

Na poesia Nocturno, de Eugénio de Castro, a quejá fomos buscar alguns exemplos, a inversão é um traçoestilístico nítido:

Cortam-lhe a alma sete espadas ...Ergue-se a lua ...Calou-se o vento ...

Na novela de Cervantes, La Gitanilla, as inversõesmereceram investigação sistemática e interessante inter-pretação.

Na ligação das frases distinguem-se dois tipos basi-lares; parataxe e hipotaxe. Para taxe é a colocação dasfrases no mesmo nível, a hipotaxe a subordinação. Emtodas as línguas, caracteriza-se a poesia folclórica pelopredomínio da parataxe.

Um exemplo de uma Cantiga de Amigo:

Foi-se o namorado,madre, e non o vejoe vivo eu coitado,

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e moiro con desejo.Torto mí ten orao meu namorado ...

De uma balada inglesa:

There were twa sisters sat in a bour;There cam a knight to be their wooer.

He courted the eldest with glove and ring,But he lo'ed the youngest abune a'thínq,

The eldest she was vexêd sair,And sair envíêd her sister fair.

Upon a morning fair and cIear,She cried upon her sister dear:

«O síster, síster, tak' my hand,And let's go down to the ríver-strand.»

She's ta'en her by her Iily hand,And led her down to the ríver-strand,

The yaungest stood upon a stane,The eldest cam' and push'd her in ...

As coisas não são, porém, tão simples que a para taxepossa ser sempre considerada sinal de estilo popular.E seria absolutamente errôneo considerá-Ia sintoma deprimitividade espiritual e de falta de poder de orde-nação e coordenação, embora assim possa funcionar.Contudo, a inteligência de César não era decertoinferior à de Títo Lívío. Acontece o mesmo com ahipotaxe. Por vezes pode bem ser prova de energiaespiritual e poder de compreensão que, numa relaçãoobiectíva, sabe distinguir claramente as coisas prín.,

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cipais e acessórias e o modo de referência entre elasexistente. Assim se pode explicar o predomínio dahipotaxe nas obras científicas. Há, também, casosidênticos nas Belas Letras. L. Spitzer interpreta assima construção de frases de Góngora: «O enovelamentosintáctico (de várias frases subordinadas, aposíções,parêntesis) é, portanto, simbólico para a confusão deum mundo sobre o qual vem a imperar a poesia:o drama da criação poética, este acto de dominar e orde-nar o mundo, reflecte-se na forma como o poeta seperde no labirinto das suas frases, para encontrardepois uma saída ... ele mantém firmemente nas suasmãos a suprema dlrecção». Dámaso Alonso concordacom esta interpretação.

Podem, porém, obedecer a outros impulsos e fun-cionar de modo bem diverso construções aglomeradasde frases volumosas. Assim, as frases complicadas dodramaturgo Heinrich von Kleist foram interpretadascomo característica de uma linguagem ainda desorde-nada, sujeita só ao momento. Esta opinião encontrou-secorroborada pelo próprio Kleíst, no seu trabalho sobreDie allmêhliche Verfertigung der Gedenken beim Reden(O gradual desenvolvimento dos pensamentos durantea fala). Damos um exemplo de uma tal hípotaxe,tirado do drama de Kleist Penthesilea:

Ein neuer Anfall, heíss, wie Wetterstrahl,Schmolz, díeser wuterfüIlten Mavorst6chter,Rínqs der Aetolier wackre Reihen hin,Auf uns, wíe Wassersturz, herníeder síe,Die unbesíeqten Myrmidonier, giessend.

É do mesmo género a seguinte construção de frases,no final de Minuit de J. Green: «11 lui sembleit, au

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contreite, que le sol, les buissons sauvages et les gran-des raches que déchireient Ia brume, tout monteit oerselle, d'une seu/e poussée, avec une oitesse etroce etun veste belencement de droite à gauche, comme si Iaterre éteit iore»,

,É muito elucidativo o facto de, na investigaçãomais demorada das hipotaxes de Proust, se ter chegadoa encontrar duas tendências diferentes de expressão,uma ao lado da outra. Uma parte das hípotaxesindicava, pela sua construção, «a calma do filósofo,que vê o mundo lá de cima» [Spitzer}, e uma outradenunciava precisamente um nervosismo que duranteo discurso procura ainda, ou, até mesmo, se perde e,por este caminho, chega também às hipotaxes. Comoexemplo deste segundo género serve o seguinte, tiradodo romance Du côté de chez Swann: «Mais, quandd'un pessé ancien rien ne subsiste, eprês Ia mott desêtres, eptés Ia destruction des choses, seules, plus [rêlesmais plus oiveces, plus immetérielles, plus persistentes,plus [idéies, todeur et Ia seoeur restent encore loqtemps,comme des êmes, à se reppeler, à attendre, à espérer,sur Ia ruine de tout le reste, à porier sans [lêchir, surleur goutelette presque impelpeble, l' édijice immensedu souvenit»,

Precisamente nesta fala «mais momentânea», tale qual como se viesse de distância menor, não é raroencontrar duas figuras sintácticas. A primeira é oenecoluto, No meio de uma frase, os pensamentostomam outra dírecção, de forma que a construção come-çada não pode continuar consequentemente. Nos diá-logos de PIa tão observou-se este Ienómeno, como meiode insuflar uma nova vida, e isto encontra-se comIrequência no drama, como é óbvio, sempre que se fala

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com excitação, com paixão. Basta um exemplo de FreiLuís de Sousa (n. 1):

«Mas agora, depois que lhe vi fazer aquela ecçêo,que ° vi, com aquela alma de português velho, deitaras mãos às toches, e lançar ele mesmo ° fogo à suaprópria casa: queimar e destruir numa hora tanto doseu haver, tanta coisa do seu gosto, para dar umexemplo de liberdade, uma lição tremenda a estes nossostiranos ... Oh, minha querida filha, aquilo é um homem!»

O conjunto de frases introduzido pela oração tem-poral não é levado ao fim, consequentemente, por meioda oração principal. mas sim o conteúdo desta rebentanuma exclamação que quebra a construção.

A outra figura sintáctica que surge, sobretudo, nalinguagem dependente do momento, é a elipse. Vistaexteriormente, falta uma parte da frase: «lima lindahistória!» em vez de «Esta história é linda!». Os Iílô-sofos da língua, porém, acentuaram não haver elípsesno verdadeiro sentido da palavra, afirmando que nãoera preciso completar uma frase em que, no fundo,nada fora omitido. Pelo contrário, as coisas apresen-tam-se por tal forma que as outras partes da frasedesempenham também a função do que, na aparência,falta. Neste ponto revela-se uma discrepância entrea gramática escolar, demasiado rígida, e a linguagemviva. As célebres frases de uma só palavra, do tipo«Fogo!», «Socorro l» têm desempenhado grande papelnas discussões Iínquístíco-Hlosófícas dos últimos tempos.Encontram-se exemplos de «elipses» com frequência,quando, na literatura se reproduz o discurso directo,a linguagem quotidiana. No drama, como é natural.encontra-se isto muitas vezes. Quando, no princípioda nona cena do terceiro acto do Frei Luís de Souse,

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Madalena diz: «Ouve, espera; uma só, uma só pala-vra, Manuel de Sousa!», o autor torna bem claro, pormeio da pontuação, que não deseja ver interpretadasas palavras «uma só palavra» como complementodirecto dos verbos que as precedem, mas sim comofrase própria.

Nos diversos tipos de frases, a ciência linguísticatem estudado todas as formas e funções possíveis.A investigação estilística dos tipos de frase é, emdeterminadas circunstâncias, o caminho para centros deforça mais profundos, verdadeiramente sintéticos darespectiva obra. Assim, quis-se observar que a poesiada época do Iluminismo se serve de orações causaise finais com tanta frequência que forma contrasteflagrante com o seu aparecimento nas outras épocas.E ainda mais: em canções o emprego daquele tipo defrases veio destruir a substância, senão lírica, pelomenos «de canção». Apresentam-se, neste ponto, possí-bílídades de estudar as relações entre estilo e géneroliterário. Fez-se ainda a tentativa de interpretar aconstrução da oração disjuntiva e antítétíca, nos tra-balhos em prosa de muitos dramaturgos, como sintomadum basilar ponto de vista dramático. Foi sobretudoEmíl Staiger que iniciou investigações sobre estes pro-blemas. Limitando-nos a uma só obra, podemos lembrarque, na poesia Barca Bela de Garrett, se nos revelou,no predomínio dos imperativos, algo da sua forma«interna» como exortação. De modo idêntico, a oraçãocomo forma literária usa, no ponto decisivo da sua cons-trução, o imperativo, enquanto que a narrativa preferea frase enunciativa.

Investigações destas, que, até agora, na verdade,aparecem em número relativamente restrito, levam

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pois, às mais diversas dírecções : à forma interna daobra, ao estilo da personalidade, à questão do estilodas épocas ou à do género, etc. A história das línguasvirá a interessar-se vivamente por estes temas; à nossavista, desenvolvem-se diversos tipos de frase, no tempohistórico. Por exemplo, em quase todas as línguasas conjunções que introduzem orações subordinadascausais denunciam a sua proveniência de outros domí-nios, na maioria das vezes temporais {puisque, comme,como, uieil, since, etc.).

Uma forma Iinguística, que só na prosa modernasurge como traço estilístico predominante, tem dadocausa a vivas discussões entre os linguistas doséculo xx, discussões por que se interessa também aestilística. Trata-se do chamado «discurso indirectovivo». Ch. Bally não o inclui nas «figures linqulstiques»,mas sim nas «figures de pensée», pelas quais se tem deentender alguma coisa diferente do que indica a formaem si. É certo ter suscitado objecções a interpretaçãodo Fenômeno linguístico por ele apresentada.

O discurso indirecto vivo encontra-se precisamenteno meio entre o discurso dírecto e o indirecto. «Devoeu ir esta noite ao teatro?» - assim um narrador podiareproduzir directamente o pensamento de uma dassuas figuras e pôr figura e leitor em estreito contacto.Na reprodução indirecta conservaria as rédeas na mãoe serviria de medianeiro entre o leitor e a figura: «Elereflectia, se deveria ir à noite ao teatro». O discursoindirecto vivo fica no meio: «Deveria ele ir esta noiteao teatro?» O narrador, aqui, é menos visível do queno discurso indirecto; o foco da perspectiva quasepassa para a alma da própria personagem, o leitor comoque toma imediatamente parte na sua vida interior.

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Até aqui poder-se-à estabelecer o valor expressivo dodiscurso indírecto vivo. Também se vê que esta formasintáctica se adapta à expressão de pensamentos nãoformulados claramente, a pedaços de pensamentos,pequenas emoções da vida interior. Percebe-se a situaçãode destaque a que pôde elevar-se, pelo interesse porprocessos «psicológicos» que caracteriza a arte narrativados últimos decéníos, Em si, a sua existência foi pro-vada pela história linguística já na literatura medievale até mesmo na latina. A sua remodelação parecedever-se especialmente a Jane Austen. Porém o impulsodecisivo só ao Naturalismo se deve.

Em Adam Mensch de Hermann Conradí e noApostei de Gerhart Hauptmann encontra-se ele em largamedida. (Ao mesmo tempo vai-se experimentandotambém o monólogo interior como forma de apresen-tação em que o narrador mergulha totalmente nostream of consciousness. À afirmação de que foramDorothy Richardson e James Joyce que fizeram surgiresta forma de apresentação, pode-se opor o factode que já A. Schnitzler escreveu narrativas inteirasem monólogo interior (p. ex. Leutnant Gustl, de 1900).:f: verdade que ainda sem aquele extremo revolvi-mento da linguagem que notamos naqueles outrosautores - d. p. ex. o último capítulo de Ulysses deJ. Joyce -, e é sem dúvida exacto que na predílecçãopor este meio na arte narrativa moderna só J. Joyceé que foi decisivo.)

O discurso índirecto vivo é apenas um pequenosintoma da inquietação que, em proporções mais fracasou mais fortes, incidiu sobre a sintaxe, desde oséculo XIX, pelo menos sobre a sintaxe «literária».A luta contra as regras de gramática e a tradição

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terminou, enfim, no Expressíonísmo, num despedaçarde todas as ligações linguísticas e num balbuciar quejá não era língua. O Dadaísmo não foi perigoso paraa evolução da língua pela sua falta de importância.Mais importante e de mais vastas consequêncías foi atendência, muitas vezes inconsciente, do Simbolismoprecedente para libertar a linguagem poética do domíniode uma sintaxe demasiado lógica. É característico queaté na França se foi relaxando a severa disciplina nasintaxe, predominante desde o Classicismo. Conten-temo-nos com alguns exemplos e alusões para tornarbem visível como a sintaxe se relaxou no Simbolismoportuguês. Aqui seriam necessárias pormenorizadasinvestigações em cada caso.

O primeiro exemplo Fornece-o Mário de Sa-Car-neíro :

Ó minhas cartas nunca escritas,E os meus retratos que rasguei. ..As orações que não rezei. ..Madeixas falsas, flores e fitas ...

o «petít-bleu» que não chegou ...As horas vagas do jardim ...O anel de beijos e marfimQue os seus dedos nunca anelou ...

Convalescença afectuosaNum hospital branco de paz ...A dor magoada e duvidosaDe um outro tempo mais lilás ...

Aqui fala-se por modo diverso daquele a que estamoshabituados, até na poesia. Para o entendimento esti-lístico pouco se ganharia com a verificação de que sealinharam elipses. (Há poesias de Mário de Sá-Carneíro

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em que quase se não encontra um verbo e que, contudo,têm dinâmica.) Também a observação de que aquipredominam as construções nominais só significa umponto de partida. Aliás, também provou adaptar-se àinvestigação da moderna sintaxe francesa e inglesa.

O segundo exemplo é tirado, mais uma vez, dapoesia Nocturno de Eugênio de Castro:

Como esbeltas ImperatrizesBàrbaramente destronadas.As grandes árvores magoadasChoram hirtas. despenteadas ...Estalam no chão suas raizes,Cortam-lhe a alma sete espadas ...- Pobres Rainhas que o vento humilha.Rainhas de golpeado peito,De qual de vós há-de ser feitoO berço estreito da minha filha?

Seja-nos fornecido por Camilo Pessanha um terceiroexemplo do relaxamento sintáctico iniciado pelo Sim-bolismo;

Só. incessante, um som de flauta chora.Viúva, qrácil, na escuridão tranquila.- Perdida voz que de entre as mais se exila.- Festões de som dissimulando a hora.

Na orgia. ao longe. que em clarões cintilaE os lábios. branca. do carmim desflora ...Só, incessante. um som de flauta chora.Viúva, qrácil, na escuridão tranquila ...

Aquele que, com as noções vulgares de gramática,interpretasse, por exemplo, «perdida voz» como apo-síção, teria obstruído o caminho que conduz à verda-

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deira compreensão desta sintaxe. Em todos os tresexemplos não se pode deixar de observar que as noçõeshabituais da gramática são apenas susceptíveis de seremusadas duma maneira aproximada, e que as subdivi-sões habituais em oração principal, suboedínada, etc.,só exteriormente se podem efectuar. Aqui começa avacilar mesmo a noção de frase. Essas frases são decerto modo menos incisivas e menos independentes doque na linguagem que nos é habitual e, simultâneamente,a sua sequêncía e íntima ligação não são bem clarase transparentes. Quase não existem meios linguísticosexteriores de ligação; assim como desapareceram assubordinações, faltam também as partículas adversativas,coordenativas, ou de outras relações.

Somos, com isto, forçados a voltar atrás, ao excursoque serviu de introdução a esta parte do trabalho.Aqui, sobretudo por meio da sintaxe, desenvolve-seessa força da linguagem poética, evocadora de ima-gens. Pelas obsevações que se podem fazer no campoda sintaxe, revela-se o Simbolismo como poderosomovimento artístico que trabalha com novos meiospoéticos. E precisamente a investigação destes meiossintácticos promete valiosas deduções sobre a suaessência.

Como se pode reconhecer de novo em qualquerdos três exemplos, a particularidade da sintaxereflecte-se já na pontuação. Valeria a pena estudara pontuação do Simbolismo português e interpretá-Iaestillsticamente. É claro que isto só podia acontecertomando em linha de conta o Simbolismo estrangeiro,sobretudo o francês. Nesse, os significados tradi-cionais dos sinais da pontuação já oscilam considerà-velmente. Quando Mallarmé, por exemplo, renuncia,

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as vezes, em absoluto aos sinais da pontuação, usandosomente o ponto final, isto é, também, indício darevolução neste sector, Encontrou, aliás, sucessoresno estrangeiro, como no poeta alemão Stefan George.

6. Formas superiores à Frase

o período e o parágrafo estão acima da oraçãoe da frase. A linguística, bem como a estílístíca, poucose têm ocupado até agora com estas construções paraalém da frase. Todo aquele que alguma vez traduziuum texto seguido de uma língua românica para umaoutra germânica - e vice-versa -, terá notado comosão diversas as formas de que as línguas se servempara ligar as frases. São necessárias modificações dosujeito, é preciso juntar partículas que liguem asorações, ou fazer omissões, para que a tradução sejafluente.

Nas escolas alemãs dava-se aos alunos que iamfazer composições livres em francês a regra de que,dentro dum parágrafo, sempre que fosse possível, deveriapôr-se o mesmo sujeito em todas as frases. Era umaregra muito sumária. É verdade imperar em francêsuma certa tendência para tais construções, como sepode observar no seguinte parágrafo de Anatole France(La oie littéreire, I, Paris, 1921):

« ... La critique est Ia demiêre en date de toutes lesformes littéreires: elle finira peut-être par les ebsotbertoutes. Elle conoient edmireblement à une société trêscioilisée dont les souvenits sont riches et les traditionsdéjà longues. Elle est perticuliêrement eppropriée àune humenité curieuse, savante et polie. Pour prospérer,

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elle suppose plus de culture que n'en demendent leseutres formes littéreires. Elle eut pour créeteurs Mon-teigne, Seint-Eoremond, Bayle et Montesquieu. Elleprocede à la fois de ia philosophie et de l'histoire. 11lui a fallu, pour se déoelopper, une époque d'ebsolueliberté intellectuelle. Elle templece ia théoiogie et, sil'on cherche le docteur universel, le saint Thomasd'Aquin du XIX' siécle, n'est-ce pas à Seinte-Beuoequ' il faut songer?»

Talvez não haja outra língua em que, conser-vando-se de igual forma o mesmo sujeito, se possatraduzir este parágrafo produzindo efeito semelhantetão sugestivo. O parágrafo pareceria Iàcilmente secoe monótono e as teses, contidas nele, ainda mais dis-cutíveis. Mas, é claro, com isto pouco se adianta nacompreensão das tendências próprias do francês paraalinhar as frases e menos ainda quanto às tendênciasde outras línguas e, sobretudo, dos respectivos escri-tores e obras.

No entanto, surgem aqui os problemas mais urgen-tes. Pois facto é que toda a linguagem - falada ouescrita - não se realiza por meios de frases isoladasou alinhadas, mas sempre por meio de «discursos». Naverdade, a análise aturada de parágrafos vai encontrarnão só determinadas formas de ligação de frases, mastambém construções que apresentam unidades do dis-curso relativamente fechadas. Designam-se estas uni-dades in Ieriores do discurso como «formas do discurso»(Redeformen). Têm o poder de ligar e subordinar asdiversas formas da linguagem (e não só as sintácticas).As formas do discurso representam, por isso, o limiteimposto a este capítulo sobre as noções elementaresanalíticas, e formam a ponte que vai conduzir mais

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tarde às explicações acerca das noções elementares sín-táctícas. Para tornar visíveis as ligações de frases numtexto seguido, e, simultânearnente, para conhecer umaforma constitutiva do discurso, forma que faz de todasas frases uma unidade e determina a fluência dasfrases, analisemos um parágrafo em prosa. Trata-sedo primeiro parágrafo da segunda parte da narrativade Alexandre Herculano denominada A Abóbada.

Excurso : Formas superiores à frase estudadasatravés da análise de um texto em prosa.

«Uma das inumeráveis questões que, em nosso enten,der, eternamente ficarão por decidir, é a que versasobre qual dos dois ditados - voz do povo é voz deDeus - ou voz do povo é voz do diabo - seja o queexprime a verdade. É indubitável que o povo tem umaespécie de presciência inata, de instinto dívínatórío.Quantas vezes, sem que se saiba como ou porquê, correvoz entre o povo que tal navio saído do porto, tãorico de mercadorias como de esperanças, se perdeu emtal dia e a tal hora em praias estranhas. Passa otempo, e a voz popular realiza-se com exacção espan-tosa. Assim de batalhas; assim de mil factos. Quemdá estas notícias? Quem as trouxe? Como se derra-maram? Mistério é esse que ainda ninguém soubeexplicar. Foi um anjo? Foi o demônio? Foi algumfeiticeiro? Mistério. Não há, nem haverá, talvez, nunca,filósofo que o explique; salvo se tal Ienómeno é umadas maravilhas do magnetismo animal. Esse meioininteligível de dar solução a tudo o que se não entendeé acaso a única via de resolver a dúvida. Se o é, os

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sábios explicarão o que nesse momento ocorria na igrejade Santa Maria da Vitória.»

A ligação da segunda frase com a primeira dá-seantitêticamente: depois da incerteza inicial. exprime-seaqui alguma coisa que não admite dúvida. Para alémdisto. existe uma ligação mais íntima: após a decla-ração sobre as interpretações seque-se a declaração dopróprio facto a interpretar. a existência da «voz dopovo». As duas frases seguintes estão estreitamenteligadas uma à outra. e à segunda anterior: oferecemum exemplo concreto para a observação. a princípioabstracta. da existência da «voz». A palavra «voz».enunciada de novo. descreve até um arco, voltando àprimeira frase; destaca-se claramente como noção direc-tiva. E, com o fim de dar maior realce à voz popular,começa a quarta frase com uma inversão: «Passa otempo, e ... », Se começasse correctamente: O tempopassa .... a «voz», que vem a seguir, perderia muitoda sua força actíva, em favor de «tempo». As duasfrases seguintes, que começam pela palavra «assim»,exteriormente elípticas, estão em absoluto sob o domíniode «voz»; pois em «assim» subentende-se: da mesmamaneira se manifesta a voz... As duas frases estãopor tal maneira ligadas ao que as precede, que só setornam compreensíveis no seu conjunto. Simultânea-mente. conduzem o nosso olhar para além do caso con-creto do naufrágio do navio, a vastidões mais distantes,a mil factos indefinidos.

A concordância paralela das duas frases-«assim»-sequem-se três frases interrogativas, sendo as duasprimeiras construídas também paralelamente (12/13).Estão ainda ligadas ao precedente pelo pronomedemonstrativo «estas». Ao mesmo tempo. porém, refe-

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rem-se à pergunta inicial, à pergunta acerca da origemda voz. A resposta é: «Mistério», em que, de novo,«esse» envolve em si a noção directiva da «voz».Seguem-se, de novo, três perguntas, agora construídas,em absoluto, paralelamente ou, com maior rigor, trêsrespostas duvidosas. Ao mesmo tempo, o «anjo» rela-cíona-se com «Deus» da primeira frase, e «demónio»com o «diabo». Estamos no espaço onde imperampoderes sobre-humanos, sobrenaturais. A noção directiva«voz» enlaça-se com outra noção dírectiva que a princípioa cobre: o «mistério». A posição de realce desta palavratinha-nos sido indicada já pela forma como tinha pri-meiramente aparecido. Sem artigo, e embora seja nomepredicativo, deparamos com ela à frente da frase.E ressoa, outra vez, como resposta às três possibilidadesconcretas. Tão grande é o seu poder que forma umafrase. A frase seguinte (<<Não há» ... ) é menos tensa,embora esteja ainda no domínio do «mistério» que nelapenetra sob a forma de pronome. Ao mesmo tempo,o narrador surge mais energicamente, em pessoa,(<<talvez», «salvo se» ... ). Quanto ao conteúdo, pre-para-se nova interpretação, depois do mistério. Mastambém esta conserva o reflexo do misterioso (<<mara-vilha», «meio iníntelíqível»}. E, embora o autor se nãoexprima com extrema precisão (<<acaso», «Se o é»), decerta maneira dá-se uma resposta a todo o problemaapresentado. E agora, numa observação retrospectiva,reconhece-se: todo o parágrafo forma uma unidade, quepodemos designar como «discussão». Possui estruturafirme; após a apresentação do problema, é dado o factoobjectivo e problemático; a seguir discutem-se possí-veis respostas e, finalmente, encontra-se uma solução.O objecto é a voz do povo; através das respostas

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sopesadas e a definitiva, é-lhe conferida a profundidadede algo de misterioso, de incompreensível. Cria-se assimcondição preliminar para o que se segue; pois a últimafrase do parágrafo leva-nos, formando nitidamente umaponte, até ao acontecimento a desenrolar no primeiroplano. Não é só a solenidade imperante do mistérioque dá tonalidade ao que se segue, mas também umcerto receio: o exemplo concreto dado adentro dadiscussão acerca da voz do povo era uma desgraça.e assim projecta-se uma sombra sobre o acontecimentoa contar.

Há ainda uma observação a fazer acerca do exem-plo. observação a que, posteriormente, nos referiremos.A «discussão» é uma forma homogénea que conhecemos.sobretudo, através dos escritos científicos. O facto de.num romance, não a considerarmos imprópria. comoquebra de estilo, é devido, por um lado, às respostasdiscutidas e dadas, respostas que nos conduzem paraalém do racional. Mas é devido também à maneirasubtil como o narrador sabe impor-se, sempre de novo.como verdadeiro narrador. Começa na primeira frasecom a observação pessoal de que nunca haverá soluçãoclara para o problema, e assim continua nas já cita-das opiniões pessoais, com que acompanha a soluçãodefinitiva.

7. Modos e formas do discurso

Voltemos, mais uma vez, ao parágrafo da narrativade Alexandre Herculano. Entre os tipos de frasesusadas destacam-se como determinantes as frases inter-rogativas. que depois encontram resposta. e as con-

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dicionais. São características, podemos dízê-Io, dadiscussão. Toda a discussão se realiza, de preferência,sob a forma de pergunta e resposta (que se prolongam),e em condições preliminares de deduções que, linquis-ricamente, nos aparecem como condições e juizos.A frase conclusiva, que contém, na nossa discussão, ojuizo, é: «Esse meio ... é a única via ... » O acto de dís-cutir realiza-se, pois, em formas sintácticas definidas.A estas actividades chamamos «modos do discurso».Outros modos são «o descrever», «o relatar», «o orde-nar», «o apreciar», etc. Ao descrever, bem como aorelatar, estão subordinadas, como formas sintácticasconvenientes, as frases afirmativas; às ordens, as frasesimperativas; às apreciações, as frases exclamativas(<<Que belo tempo está hoje!»).

Aos modos do discurso estão correlacionadas asformas do discurso. Pressupõem estas os modos, ou sejaa execução de um determinado falar. Assim constituemo sentido, a finalidade central do discurso. Mas sãomais: são formas; arredondam o discurso em questão,de maneira a ir do seu princípio até ao fim. Dão uni-dade a um trecho seguido de linguagem: elas são«figura» (Gestalt). O acto de descrever arredonda-sena descrição ou na imagem, o de discutir na discussão,o de ordenar na ordem, ou, então, no pedido ou naoração, o acto de relatar na relação, etc.

Na vida quotidiana encontramos em toda a parteas formas do discurso como unidades plásticas dosentido. Assim, um jornal contém, nas suas diversassecções, quase todas as formas do discurso: O relato,a descrição, a discussão, a apreciação, e, na últimapágina, os reclamos das firmas contêm a forma doincitamento ou seja do imperativo. Por outro lado, na

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linguagem falada corrente, cheqa-se por certo à activi-dade, isto é, aos múltiplos modos do discurso, mas,muitas vezes, já não se alcança a «figura» uniforme.Assim, conversas perdem-se na areia, ou têm, comoúnica ligação, as associações encadeadas umas nasoutras. Uma palavra puxa a outra, mas não há umafigura que determine a seqüência e a direcção daspalavras. Em contraste com a conversa séria, em que,na verdade, se discute alguma coisa, encontram-se emtodas as línguas sinónimos em que se exprime, commaior ou menor nitidez, o carácter amorfo da fala:conversar, cavaquear, palrar, etc. Em oposição a isto,o falar literário é falar significativo e realiza-se emformas. As formas do discurso desenvolvem assim todaa sua energia vital precisamente na literatura. Tal equal como a absorção destas formas do discurso porunidades mais elevadas, tudo isso pertence a estudoposterior em que se ultrapassa o círculo das formasIinguísticas, campo de observação marcado a estecapítulo.

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CAPíTULO V

A CONSTRUÇÃO

o problema da construção torna-se urgente noâmbito da linguagem sempre que uma unidade dequalquer espécie surja como resultado do discurso.Uma conversa solta, em que uma palavra puxa outra,não aspira a nenhuma unidade. O caso é já diferentecom uma carta. f: certo escrever-se em muitas cartassó aquilo que vem à cabeça a quem escreve; só exter-namente formam unidade, pela limitação às quatropáginas. Mas há também casos em que a pessoa queescreve sente como unidade o fenómeno «carta».tomando consciência da responsabilidade que sobre elapesa. Desde a antiguidade, a carta tem sido suces-sivamente considerada forma literária. Constituíramexactamente moda européia as «Heróides», isto é, car-tas de amor fictícias de heróis conhecidos. Abelardoe Heloísa, Enéias e Dido, Hero e Leandro e outrospares de amorosos célebres foram obrigados desde oséculo XVI até ao xvm a trocar cartas, com espantosafrequência. Mas também o autor de um relato ouartigo, de uma investigação ou conferência, tem enfimde se preocupar com a construção. Na maioria doscasos, haverá directrizes com origem nas próprias coisas.Porém na literatura, que cria as suas próprias coisas,o seu mundo, são produto da criação pessoal a sequênciados factos, a sua conexão, a sobreposíção e subordi-nação, a contextura linguística que aspira de um

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princípio a um fim, - numa palavra: toda a construçãoé produto da criação pessoal. Em obras volumosascomo um drama, uma epopeia. etc., deve ser consi-derável a parte consciente. Mas também têm «cons-trução» as poesias que aparentemente foram compostas«de per si».

I. Problemas de construção da Lírica

(a) Um exemplo.

Como introdução, em que apresentaremos os pro-blemas de construção, sirva de exemplo uma poesiade Verlaíne. Começamos a tratar o nosso assuntolamentando que os fins pedagógicos nos forcem pri-meiramente a decompor a poesia. Deve, porém, ficar-secom a esperança de que, depois de as investigaçõesserem bastante profundas, a poesia se tornará a unire a observação apreenderá a sua unidade. É tambémlícito esperar que, à medida que o estudioso seja capazde fazer a interpretação da construção, outras obras jánada perderão da sua unidade e da sua vida ao seremobservadas. Pelo contrário, é permitido alimentar aconvicção de que as poesias, só quando se saiba apreen-der a sua construção, revelem a vida misteriosa quenelas pulsa.

A poesia, tirada do ciclo La bonne chenson, é doseguinte teor:

La lune blancheLuit dans les bois;De chaqus branchePart une voixSous Ia rarnée ...

o bien-aimée,

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L'étanq reflete,Profond rníroír,

La silhouetteDu saule noirOu le vent pleure ...

Rêvons, c'est l'heure,

Un vaste et tendreApaisementSernble descendreOu firmamentQue l'astre írise ...

C'esr l'heure exquise.

Nesta, como em todas as poesias, a observaçãochega a distinguir vários estratos que têm a mesmaconstrução. Vamos observar, antes de mais, essesestratos isoladamente.

O mais fácil de entender é a «construção exterior».A poesia é formada por três estrofes, Cada estrofe éconstituída por seis versos. Devido à rima, os seis versossão por tal forma articulados que, a quatro versosligados por uma rima cruzada, se segue uma rimaemparelhada como final. Esta evidente bípartíção dasestrofes é ainda diferenciada. A maneira como estáimpressa separa o último verso que deve pois sertomado como mais importante e deve funcionar comounidade própria. Os versos são iguais, e, além disso,curtos: são versos de quatro sílabas, de que o segundoe quarto têm terminação masculina e os outros Femí-nina.

Esta talagarça métrica medimo-ia nós com os olhos.Podia servir de fundo a inúmeras poesias. Mas, quandoouvimos como é preenchida por Verlaíne, com estapoesia única, não escutamos a métrica, mas alguma

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coisa a ela ligada, contudo também única e individual:o ritmo. Viremo-nos, pois, em segundo lugar, para aconstrução do estrato do ritmo. Na verdade, é umadiferenciação artificial com que temos de nos ocupar,pois o ritmo vive só com as palavras. Para chegarmosao nosso fim, temos de abstrair, primeiramente, de todosos significados das palavras. Pomo-nos, por isso, nolugar de um ouvinte que não compreende francês, poispara ele esta separação já está feita. Porém, um talouvinte ouve ainda a melodia, escuta a sonoridade.Temos de tentar afastar isto também, para apreendersó a construção do ritmo.

Em três grandes ondas, o ritmo vai correndo noleito das três estrofes. Cada estrofe é realmente umafirme unidade rítmica. A .dívísão exterior da estrofeé, porém, modificada pelo ritmo. Aí, os dois pri-meiros versos formam uma unidade, atrás da qual ficauma pausa sensível, actuando, ao mesmo tempo, oprimeiro verso como «crescendo» e o segundo como«decrescendo». Depois, os três versos seguintes for-mam uma unidade, constituída por três pequenas ondas,ou seja os versos, em movimento ísodínãmíco. Comonos indicam a maneira como estão impressos e a pon-tuação, vem a seguir uma longa pausa, maior do quea existente depois do segundo verso. O verso finaldecorre num tempo sensivelmente mais calmo, equili-brando assim todos os precedentes. Se quiséssemosesquematizar gràficamente o quadro rítmico, resultariao seguinte:

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Mas, não sucede serem absolutamente iguais as trêsgrandes ondas rítmicas, delimitadas exteriormente pelasestrofes. Na terceira estrofe, cada verso precipita-se,impacientemente, para a frente, as pequenas incisões,depois dos versos I, 3 e 4, são ainda mais pequenas;também diminui a pausa, até aí tão sensível, depoisdo verso 2 (que, aliás, já era mais pequena na segundaestrofe do que na primeira). Só, de novo, se prolongamuito a pausa a seguir ao verso 5. O último versoé ainda mais arrastado do que nas estrofes anteriorese significa assim um fim sensível de todo o movimentorítmico.

Depois do estrato do ritmo, façamos a tentativa deinvestigar o da sonoridade quanto à sua construção.Na realidade esta tentativa pode-se levar a cabo: o somé aqui uma estrutura com construção própria. A poesiacomeça brandamente. São em número superior as con-soantes sonoras; aumentam-lhes o efeito as alíterações{lune-luit: blenche, brenche, bois). Nas vogais nãoobservamos a mesma homogeneidade. É certo seremos sons abertos os principais; porém, ao lado, cintilamas mais diversas tonalidades, quase todas de vogaisbreves. Poderia quase dizer-se: aqui, a írísação do luartransforma-se em sonoridade, torna-se apreensível aosnossos sentidos através dos sons, até que, pela primeiravez, a rima emparelhada nos oferece descanso e calmanuma vogal longa.

De novo começa o jogo cintilante dos sons, mas'agora tudo é mais sombrio, obscuro. Determinam aessência dos sons as nasais pesadas (ang, ond, ent, ons).Também a paragem sobre o -eure longo actua de formamais quebrada do que a que se dá no -ée claro da pri-meira estrofe. Daqui em diante, a poesia envolve-se

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toda no véu das nasais brandas até que, depois do leveclarear «du [irimement}», a surpreendente rima, abso--lutamente nova, em i longo tudo ilumina no seu darãocomo foguete cintilante na sua subida.

Também a sonoridade tem. pois. a sua construção.dividida em três partes em que as vogais longas darima emparelhada marcam sempre fortemente o final.E. como no ritmo. também entre as três partes nãoimpera uniformidade total. mas sim dá-de uma inten-sificação até à última. A autonomia sónica e a forçaexpressiva da última parte é talvez ainda maior doque a rítmica. Nem sempre numa poesia o estrato dasonoridade é composto com tanta firmeza e indepen-dência. Não se deve, porém. deixar de notar como.também neste caso. a independência é apenas aparente.Não é por simples acaso que, na investigação da sono--ridade, se nos impõem indicações quanto ao estratodos significados: na realidade, sem a representaçãodos sentidos de lune, luit, etc., não se tornaria tãoactiva a expressão sonora da primeira estrofe, por nósdesignada como refulgente. Em todas as línguas temhavido entusiastas de determinadas palavras, que encon-travam já tudo expresso pelo som. Porém. quandoDante exaltava a palavra «amor» e Lutero a palavra«Liebe», dizendo bastar a sonoridade para revelar osignificado, ambos eram vítimas de um engano fácil.Só pela ligação, essencial à língua, do som das pala-vras com os respectivos significados (v. Ch. Bally, Lelangage et Ia vie, Paris, 1926, pág. 117: «C' est que- on ta déjà dit - les effets phoniques ne se meni-festent que s'ils sont favorisés par les facteurs sémen-tiques».)

Finalmente, isto é também O resultado daquelas

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tentativas feitas na continuação lógica das tendênciasromânticas: formar poesias só de grupos de sons, abso-lutamente desprovidas de sentido. E até nas lenga--lengas infantis, quase propositadamente sem sentido,se verifica que não são unicamente a sonoridade e oritmo que actuam por forma construtiva, mas que sãoacrescentadas, pelo ouvinte, pelo menos sombras designificados:

Um, dó, li, tá,era dí-rnendá,picareta, Florêta,um dó, li, tá.

t cn. por J. R. dos Santosj r., Lensa-LlmA"Os e JogosI ••(""tis, Porto, 193~. p. 2 •. )

Naturalmente, na poesia é diferente a relação entrea actuação do som e a actuação dos significados. Nonosso caso, a actuação do som é intensa e, em certospassos, o sentido das palavras tem carácter um poucovago. A sonoridade quase lhe tirou energia.

Em quarto lugar resta-nos observar o estrato dospróprios significados. Pois, se estes só fracamente setornam activos aqui e ali, existe contudo uma cons-trução uniforme de significado: não se trata, comonesses versos de crianças, de um relampejar esporádicode significados soltos. Se se disse da Lírica que elanão conhece um acontecer objectívo, em decurso, nãosignifica isto naturalmente que cada poesia se nãodesenvolva pouco a pouco e se não vá consequentementeedífícando. O que é que assim se constrói, sem seracontecer em decurso, ínvestiqar-se-á mais tarde.

Na poesia citada deixa-se reconhecer logo a forma

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de desenvolvimento. Realiza-se em três fases. Estastrês fases não são resultado de uma modificação doponto de vista do poeta, - do lugar donde ele fala-,ou devido a impressões de um novo género, ou aodecorrer temporal de factos (o que, certamente, tambémpode dar-se na Lírica), ou a novas verificações alcan-çadas pela reflexão sobre os objectos. Antes pelo con-trário, dá-se aqui uma intensificação da emoção vivida.O princípio geral da construção é o da intensificação.

Estudando-a, porém, mais detidamente, observamosque a evolução da poesia não é simples. Efectua-seem dois planos: no do mundo exterior, objectivo, e nodo mundo interior, emocional, em que tomam parte doisseres, o poeta e a amada. Por certo, as duas sériesnão ficam isoladas. O segundo processo, que decorrenos três versos finais das estrofes, recebe a suasubstância dos acontecimentos da natureza e é comoque a tradução para a sensibilidade humana do queacontece lá fora. As ligações são de extrema delí-cadeza. :B como se as «ooix» da natureza, e só elas,desprendessem ao homem a língua para o apelo, numsuspiro, à amada. Na segunda estrofe serve mais umavez um processo auditivo na natureza, o epleurer» dovento, de medianeiro do ambiente dos homens que vivemos fenómenos da natureza como «a sua hora». Naterceira estrofe tornou-se quase absoluta a fusão dasduas séries, a natureza humanizada e os homens diluídosna natureza mais vasta. O verbo final exprime essafusão, que se ia já preparando nas personificações:tendre, epeisement, descendre, e o emprego transitivode «irise», que converte o astro em sujeito activo. Cadaum dos dois planos paralelos, o objectivo e o emotivo,realiza-se em três fases.

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o «eu» que fala vive, primeiramente, a parteobjectiva do mundo, a sua situação, com os olhos e osouvidos. O olhar abaixa-se, na segunda estrofe, e aper-cebe-se também dos objectos mais próximos. Símul-tãneamente, o ouvido, que, a princípio, só ouvia uma«voix» por toda a parte, distingue agora o «pleurer»do vento. Na terceira estrofe efectua-se, de novo,uma ascensão. Mas agora já não são determinadosobjectos que se apresentam ao olhar ou ao ouvido:é o «epeisement» que se sente dominar tudo (signifi-cado este que, no mundo desta poesia, nada tem deabstracto, pois é «tendre, «descend»). No «apaisement»todos os objectos perdem os seus limites e se diluem(v. por exemplo «estre» que, sendo mais vago, vemsubstituir «lune», que fica mais sensorial e limitado).

Do lado humano, o sentimento vivo dessa situaçãotransformou-se, a princípio, numa disposição geral deternura. Na segunda estrofe isto Intensifica-se: o deva-neio aparece como disposição intimamente coordenada,e, ao mesmo tempo, sente-se a invulgaridade, a peculía-ridade deste momento. Na terceira estrofe, chega-seà sensação da «heure exquise», Assim, todo o desen-volvimento que há pelo lado dos objectos, trans-Forma-se, pelo lado subjectívo, na sensação cada vezmais intensa da essência de um «ser». Se acolá pre-dominam os verbos, aqui predomina o «c'est», peloqual se exprime uma verificação, um conhecimento.O conteúdo do conhecimento é uma especial tempera-lidade: «heure exquise», O facto de se chegar a umatal definição conscientemente feita, mostra não sercompleta a fusão dos dois planos: por assim dizer:o homem conserva uma certa autonomia. (Neste pontopodiam começar investigações de poesias com motivos

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iguais, visando a personalidade poética de Verlaine oua particularidade do Simbolismo, ou mesmo qualidadesnacionais. )

O que é na verdade a «heure exquise» e no queconsiste a «exquisité», não está realmente exposto porforma a compreender-se. Ficamos dentro duma dis-posição emocional, mas não nos afastamos para umcampo racional. A vivência da «heure exquise», destaparticularidade de um momento vivido adentro de umacontecimento da natureza, é o verdadeiro centro dapoesia, misteriosamente oculto, a que, todavia, tudo serefere desde a primeira palavra, centro de que seaproxima constantemente a poesia na sua construçãotrifásíca e que, no final, nós entendemos só com osestratos irracionais da alma, mas não com a inteligência.Com esta verificação de um centro e do conhecimentode como a construção lhe é subordinada, a análise daestrutura no estrato dos significados chega ao seu termo.Ir mais além, seria tarefa de uma interpretação completaque, na verdade, pela análise da construção já avançoubastante.

Uma interpretação completa deveria determinar demais perto o papel desempenhado pela outra pessoaassociada, que se invoca mas não se vê; pois, evidente-mente, a sua presença faz parte do aspecto interiorde toda a poesia. Ela deveria determinar, além disso,mais nitidamente a concepção do tempo. consolidadaespecialmente no centro. Naturalmente a interpretaçãocompleta da poesia só poderia ser levada a cabo dentrode todo o ciclo de La bonne chenson, em que o poemaocupa o seu lugar fixo e tem sentido completo. (Coma interpretação feita e, sobretudo, quanto à sua con-cepção do tempo, estaria achado um caminho impor-

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tante para a compreensão do Simbolismo, pois se disseque «a consciência do que há de misterioso no decorrerdo tempo é condição prévia para a emoção lírica doSimbolismo» (Leo Spitzer, Stilstudien, voI. Il, p. 73).No seu livro sobre La poésie de Mellermé, Thíbaudetdedica um capítulo inteiro ao «sentiment de Ia dutée»,Quando, aí, se fala da «durée idéele», a que convidatambém a nossa poesia, estabelecem-se finalmente rela-ções entre a poesia e a filosofia de Bergson, aliás poste-rior, em que a noção de «durée» se torna uma dasideias centrais. (Alguns exemplos para indicar aimportância da «heute exquise» na poesia simbolista:Baudelaire {Le ctépuscule du metin}: «C'est l'heure ...c'est l'heute» (semelhantemente no Crépuscule du soir):Charles Guérin (ll a plu}: «C'est l'heure choisie entretoutes ... »: G. Rodenbach (Vieux Quais): «ll est uneheute exquise à l'epproche des soirs ... »}

A tentativa de contemplar conjuntamente os quatroestratos, que estudámos em separado quanto à suaconstrução, não é um acrescento mas sim a consequêncianatural das investigações, pois já vimos que nenhumdesses estratos está em isolamento absoluto; o ritmotinha a construção externa como base indispensávele aliou-se à sonoridade que, por sua vez, carecia dosignificado das palavras para o seu completo desenvol-vimento. Os quatro estratos condícionam-se e susten-tam-se mutuamente, devendo entretanto notar-se que,no nosso caso, fica quase totalmente subordinado aosoutros o estrato da construção externa. Quase nãoproduz efeitos próprios, mas serve de ajuda aos outrospara um completo desenvolvimento. {É lícito supornão ter sido concebido independentemente, mas simresultar dos outros estratos. A ordem dos estratos na

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análise não reflecte o processo da criação.) Só numponto tem efeito próprio. A bipartição da estrofe(quatro versos de rima cruzada e dois emparelhados)torna-se sensível em si através da rima. Sobrepõe-se--lhe o ritmo mais forte, que marca uma pausa depoisdo segundo verso, e elimina a pausa a seguir ao quartoverso. A leve discrepância entre os dois estratos nãoorigina contrastes perturbadores, mas, pelo contrário,uma oscilação que convém à poesia e se torna precisa-mente um novo meio para a sua constituição.

Também no final observámos uma leve discrepânciaentre os estratos do som e do ritmo, por um lado, e,pelo outro, o das significações. Estas não acompanhambem o voo do ritmo, e, sobretudo, o do som: por muitomaravilhoso que actue como som, como significação«exquise» é um tanto amaneirado, um tanto conscientepara quem espere uma fusão total, uma canção fechadae redonda.

Aliás, apesar de toda a força própria dos estratos,observamos uma notável coordenação dos efeitos e daconstrução. De novo, isto não pode qeneralízar-se dequalquer modo; se, já antes, surgiam dúvidas quantoa possuírem todas as poesias uma construção sonoratão firme, tem de ficar aqui absolutamente em suspensoa questão de saber se uma tal coordenação das camadasse pode observar sempre numa poesia lírica.

Há uma coisa porém que se pode dizer com todaa certeza e também se pode generalizar: que o estratodas significações não representa a verdadeira substânciada poesia e não é ele o único a ter construção. Nesta«chenson», os outros estratos são essencialmente com-participantes, se não os principais condutores na evo-cação e construção do mundo poético. Na linguagem

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da ciência da literatura chama-se «processo lírico» àsubstância da poesia lírica, resultante da actuação emconjunto e desenvolvendo-se pouco a pouco. A inves-tigação mais profunda da essência do processo líricoconduziria a outras zonas e levar-nos-ia aos problemasdos géneros ou antes da «chanson». Basta verificarneste ponto que para isso a investigação da construçãocriou processos apropriados. Uma parte daquilo queresultou - p. ex.: a existência de um centro secreto, opredomínio dos meios Iinguísticos irracionais como some ritmo, a difusão das significações e a metamorfose dasenergias do sentido das palavras, a ligação íntima e afusão das esferas objectiva e subjectíva, - tudo istoindica já a essência da lírica, ou antes, de um génerolírico. Símultãneamente, é lícito verificar ainda que ainterpretação completa de uma poesia é essencialmentefavoreci da pela compreensão exacta da sua construção.

(b) Construção externa e interna

Um outro pequeno exemplo pretende mostrar como,dadas certas condições, a construção externa pode serpouco determinante para a estrutura interna de umapoesia. Sirva de exemplo a poesia de Garrett:

ROSA SEM ESPINHOS

Para todos tens carinhos,A ninguém mostras rigor IQue rosa és tu sem espinhos?Ai. que não te entendo, flor I

Se a borboleta vaidosaA desdém te vai beijar.O mais que lhe fazes, rosa.e sorrir e é corar.

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E quando a sonsa da abelhaTão modesta em seu zumbirTe diz: - Ó rosa vermelha,Bem me podes acudir,

Deixa do cálíx divinoUma gota só Iibar ...Deixa, é néctar peregrino,Mel que eu não sei fabricar ...

Se da lástima rendida,De maldita compaixão,Tu à súplica atrevidaSabes tu dizer que não?

Tanta lástima e carinhos,Tanto dó, nenhum rigor!És rosa e não tens espinhos!Ai I que não te entendo, flor.

A construção externa é fácil de determinar: seisquadras seguidas. Mas, evidentemente, isto não cor-responde bem à construção interna. A primeira estrofesepara-se das outras, formando como que uma intro-dução. Segue-se um grupo de três estrofes, em que seexpõem acontecimentos vistos relativamente de perto.Na verdade, a quinta estrofe já não apresenta nada deum acontecimento, mas pertence toda à parte central,como parece de princípio. A última volta à posiçãoinicial. A distância a que fica o poeta do seu objectoé agora, de novo, muito grande - para além, repe-tem-se palavras e versos inteiros da primeira estrofe.Deu-se na construção um arredondamento; designa-secom o nome de «forma de rondô» o contorno de taispoesias, em que o final conduz de novo ao princípio.(Também apresentam forma de rondá muitas outraspoesias de Garrett.)

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Certamente, não se trata de um regresso exactoao ponto de partida e de uma simples repetição. Ligamtambém a quinta e sexta estrofe repetições de palavrase de pensamentos e, da parte central, precisamente daexplosão sentimental da quinta estrofe, brota muitoda essência da última em que cada palavra, cada frase,se torna de infinito peso. A própria quinta estrofetem alguma coisa de ambíguo. É mais tempestuosa aexplosão sentimental do que seria justificável pelosacontecimentos objectivos em si. As metáforas mos-tram claramente ao leitor (com uma rudeza de efeitospouco artísticos) como toda a parte objectiva exprimetranscendentemente algo de diferente. Mas daí recebetambém a moldura um sentido duplo. As relaçõesentre o eu e o objecto, nela reveladas, deixam sentira alocução feita a um «tu» como verdadeiro sentidoda poesia.

A relação entre construção externa e interna é dife-rente nas duas poesias estudadas. Em Verlaíne, a formaexterna, isto é, a construção e número das estrofes,representa uma base mais adequada ao todo da poesiado que em Garrett. Contudo, também neste a cons-trução externa não se opõe ao decorrer íntimo da poesia,oposição essa que bastantes vezes podemos observarna Lírica. Em Mário de Sá-Carneíro, por exemplo,são muitas vezes escolhidas estrofes que, depois, sedissipam. Quando à construção interna falta a requla-ridade do movimento e este decorre, por assim dizer,aos empurrões, podem evitar-se todas as discrepânciasentre construções externa e interna, desde que se renun-cie a estrofes fixas. Este caminho foi o seguido porKlopstock e pelos poetas do Stutm und Drang ou pelospoetas da «ode pindárica» em Inglaterra. No século xx,

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é evidente existir também uma tendência contra asestrofes rigorosas.

Poesias cuja construção é, de qualquer maneira,fixa, como trioleto, rondeau, rondeI, sextina, etc., sãoactualmente consideradas simples brincadeira e poucomodernas. Pode-se observar esta mudança do gostotambém na forma clara e vigorosa que tem sido pre-ferida nas literaturas românicas: o soneto.

Nos sonetos de Camões pode-se estudar como umaclara orientação construtiva atribui a cada parte assuas funções relativamente ao todo. A ciência da artetem falado da nova sensação do espaço, viva precísa-mente no Renascimento italiano. Cheqa-se quase àtentação de relacionar as duas artes entre si e ver nosoneto, oriundo da Itália e celebrando a sua marchavitoriosa com o Renascimento, uma nítida formaetectónica», que exige para sua justa realização umavontade construtiva também tectónica. Já oCultismose não importa sempre com as exigências provenientesda forma. O citado soneto da Fragilidade da vidahumana desfaz a estrutura pelo alinhamento lasso deunidades de valor sempre igual, ou seja os versos.Neste caso, o alinhamento é o princípio da construção.Na primeira estrofe (v. págs. 193~194) pode ver-seainda uma unidade, formada pelo conjunto final dasrespectivas objectividades. Mas quase se não nota. Sócom a imagem dupla e a noção da morte é que openúltimo verso de todo o poema imprime à série planauma modificação, de forma que o último verso pode,então, actuar como conclusão firme da poesia. Poroutro lado, a estrutura do soneto em Bocage, comotambém no século XIX, mostra-se realizada com admí-rável pureza. Os sonetos de Antero são, muito Irequen-

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temente, magníficos na sua construção e interessantesna técnica construtiva. A sua forma é respeitada atépor António Nobre e poetas mais modernos. Pelocontrário, Mário de Sã-Carneiro e outros revelam umaorientação construtiva pouco adequada ao soneto.Facto idêntico se dá ao mesmo tempo nas outras lite-raturas.

Na generalidade, talvez se possa dizer que, naLírica das últimas gerações, a construção externa per-deu importância em relação à interna. Não só nosoneto do século XVI, mas em geral na Lírica maisantiga, pode observar-se o contrário: a construçãointerna é fracamente marcada, cabendo à métrica opeso decisivo. :É sintomático que, na transmissão, porexemplo, do canto trovadoresco alemão [Minnesenq},muitas vezes as poesias se tenham fracturado: sinalda relativa independência das estrofes e da fraquezada construção total. A situação privilegiada da formaexterna revela-se com extrema clareza nas cantigasde amigo, caracterizadas como tipo próprio pela ténicada construção: cada estrofe par transforma na pre-cedente só o final toante do verso, enquanto quecada «nova» estrofe ímpar começa com o segundoverso da estrofe ímpar anterior. Segundo uma hipó-tese muito aceitável, pode pensar-se em dois coros,um dos quais tem a direcção das vozes. Neste caso,a técnica da construção tornar-se-ia importante para adeterminação da origem das cantigas de amigo, ou,pelo menos, de influências nelas exercídas. À primeiravista, reconhecem-se pontos de contacto com processoslitúrgicos.

Com referência à ode, já os poetas dos séculos XVII

e xvm falavam de um «beau désordre» como princípio

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determinante da construção. São célebres os versosde Boileau:

Son style írnpétueux souvent marche au hasard,chez elIe un beau désordre est un effet de J'art.

É, pois, tarefa aliciante investigar como realizaramtal finalidade os poetas daquele tempo que procura-vam seguir as regras da teoria. Além disso interessaainda comparar a construção das suas odes com ausada pelos poetas mais modernos. É certo ter deacrescentar-se que a ode em plena prosperidade nosséculos XVII e XVIII, no círculo mágico de Horácío, era,nessa altura, um tipo muito próprio dentro da lírica,enquanto que hoje os seus limites, por assim dizer,flutuam, por os poetas não saberem o que é, no fundo,uma ode, não reconhecendo, ao mesmo tempo, autori-dades e modelos.

A desconfiança reinante na moderna lírica contratodas as formas que surgem com exigências próprias,nítidas, estende-se também ao refrão. No fundo, estedetermina a construção externa de formas como trioleto,rondeau, rondei, etc. Como refrão entende-se a repe-tição regular de um verso em determinado ponto daestrofe. Esta palavra vem do provençal: «refraingre»;é o quebrar constante das ondas na praia. Mas comisto, naturalmente, não se pode dizer que o fenômenoem si seja oriundo da poesia provençal. Encontra-sena antiguidade como na poesia eclesiástica latina. Estáainda em discussão até que ponto o frequente apare-cimento do refrão nas canções populares das naçõeseuropeias possa ter recebido daí influências ou se, pelocontrário, é completamente autóctone.

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Quando se repete textualmente o verso respectivo(ou versos), trata-se de estribilho «fixo». Acontece, àsvezes, que o estribilho não tem relação com o con-teúdo da estrofe, e portanto já não exerce funções deespécie alguma que contribuam para a construção.Compreende-se então só pelo carácter da poesia comocanção musicada, ou, talvez, canção de dança. Assimse explica, por exemplo, que muitas das baladas dina-marquesas tenham sido cantadas com estribilho (I rorvel ud: Men Linden hun I ~oes] se encontre em diversasbaladas. ,É precisamente um critério para determinaruma canção «nova», quando estrofe e estribilho estãointimamente relacionados, e o estribilho, para este fim,ainda é levemente variado. (A questão do estribilhodesempenha papel importante nas discussões sobre asorigens do género da balada.)

Dadas leves modificações, fala-se de estribilho«fluido». Assim, modificou Goethe (na Balada de«O Conde proscrito que regressa», traduzida porEugênio de Castro) o estribilho: «para crianças é umgozo o ouvi-lo» em algumas estrofes, conforme a situa-ção, em: «para as crianças é um desgosto o ouoi-lo»(die Kinder, sie hõren's nicht geme).

O estribilho marca uma pausa sensível após cadaestrofe e concentra a essência da sua disposição interna.Foi por este motivo que Goethe não incluiu esta poesiaentre as baladas, como devia ser, mas a colocou comoprimeira no grupo Lqtisches. Fê-lo decerto em atençãoà forma da balada românica, puramente lírica, providade estribilho, a qual, aliás, nada tem que ver com a«balada» dos povos germânicos.

É intuitivo poder ser o estribilho de importânciaessencial para a construção de uma poesia. A perfeição

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da estrutura das poesias de Olavo Bilac reside, emgrande parte, na boa aplicação do refrão. Bilac empre-gou~o das maneiras mais diversas, tirando assim osmais variados efeitos. Uma poesia como p. ex. Surdinaapresenta-se como um tecido no qual voltam, semprede novo, os mesmos padrões, ora em lugares fixos, oraentrelaçados; ora pelas mesmas palavras, ora líqeíra-mente diferenciadas. À estrutura tectónica nas poesiasdeste parnasiano brasileiro liga-se, assim, um lirismoverdadeiramente musical. Na Alemanha, foi também omaior músico da língua, Clemens Brentano, quem soubetirar do refrão todos os efeitos possíveis.

O estribilho, com o seu regresso regular, é um factorimportante na construção de um poema. Quandoaparece no fim da estrofe, tende então para o arre-dondamento da estrofe isolada, e aí reside a razão doseu raro aparecimento na lírica do séc. xx, inimiga daestrofe. Não desapareceu pois totalmente, antes setransformou, dando lugar a um princípio de construçãoque parece ser uma característica da lírica moderna.Encontrámos na poesia de Verlaine uma construçãoem dois planos. Depara-se-nos o mesmo tipo do planoduplo em muitas poesias dos últimos decénios. Naliteratura portuguesa destaca-se, neste sentido, AntónioNobre, que ora por parêntesis dentro do contexto(p. ex. na poesia Adeus I), ora por versos especiaisintercalados (p. ex. na poesia António). nos dá a conhe-cer o outro ponto de vista. Poderia pensar-se aqui naadaptação dum processo típico do drama: no célebre«falar àparte» surge-nos, de facto, a mesma maneira dedizer. Parece-nos, porém, mais óbvio relacionar aquelaconstrução da lírica moderna com o refrão que, noaspecto «fluído», se desenvolveu e levou a todo um

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segundo plano. É prova disto, talvez, a maneira como,muitas vezes, é elaborado o segundo plano. Assim incluiEdmond Rostand em todas as estâncias da sua poesiaLe Souvenir vague ou les Perenthêses um verso emparêntesis e sempre de construção anafórica:

(Un chêne qui n'étaít peut-être qu'un tilleul.)(Un bouvreuíl qui n'étaít peut-être qu'un línot.)

(Une ãme que n'était peu-être qu'un regard.)

Também na seguinte poesia de García Lorca (quecultiva em toda a sua lírica a poesia de «dois planos»e que é, com Brentano, Rossetti e Olavo Bílac, um dosmestres do refrão) se reconhece que o segundo planoprovém do estribilho «fluido»:

ECO

Ya se ha abiertoLa flor de Ia aurora.

(l Recuerdasel fondo de Ia tarde?)

EI nardo de Ia Iunaderrama su olor frio.

( t RecuerdasIa mirada de agosto?)

(c) A construção do ciclo

o estudo da construção é ainda de especial impor-tância na seriação de poesias, i. é no ciclo.

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Aqui, a relação entre estrofe e poesia repete-se,em escala maior, como a relação entre poesia e ciclo.Através da coordenação tendente a um todo resulta ummais em comparação com uma simples adição. Asmenos estruturadas são as séries que só contêm comu-nidades exteriores. Assim, por exemplo, as partesem que se articula a colectãnea de António Nobre Só,na maior parte das vezes estão reunidas de maneiramuito lassa: Entre Douro-Ii-tâtnbo: Sonetos; Ete-gias, etc. Nas Fleurs du Mal algumas partes sãomais tensas (La Mott, Révolte, Le Vin, etc.}, O mesmoacontece com os grupos Liebe, Gôtter, Frech undFromm, etc., da colectãnea de poemas de C. F. Meyer.Nestes casos, contudo, não se pode falar ainda deautênticos ciclos, pois falta o arredondamento e a estru-tura fechada.

Pode resultar um todo fechado e com ele um autên-tico ciclo, quando a série da poesia corresponde a umasérie temporal, que vai dar a um termo. Como Iàcíl-mente se compreende, com um tal decorrer de acçãono tempo entra na Lírica um elemento épico. Destegénero são, por exemplo, os Müllerlieder (canções domoleiro), tão conhecidas através da música de Schubert.Também nos Sonnets [tom the Portuguese de ElizabethBrowning se encontra uma construção dependente docarácter de ciclo como uma história de amor. É certohaver ainda neste ciclo outras forças mais vigorosasque determinam a construção. No âmbito da Líricapura ficam os ciclos que grativam em torno de umponto central. E pode tratar-se de um tema deterrní-nado, exposto de diversos lados (do que pode resultarainda um aprofundamento), ou de um objecto vistopelos lados mais diversos, ou de um centro secreto

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indizível. dum motivo a prioti. Então as poesias dociclo são quase o espectro multicolor que, como reflexo,deixa adivinhar a fonte de luz uniforme.

Na moderna lírica portuguesa encontra-se um exem-plo de construção mais artística no ciclo de FernandoPessoa, que tem por título o motivo central misteriosode Mensagem. Aqui estão reunidas, tectônicamente,várias partes, que, de novo, se subarticulam entre si.A esta estática clara de tectónica firme juntam-se aindafinas ligações entre as poesias. Em oposição, um cicloverdadeiramente romântico como, por exemplo, o deNovalis, Hymnen an die Nacht (Hinos à Noite). é nasua construção, logo de início, mais atectónico, maismusical. Investigações feitas quanto à construção dosSonetos de Shakespeare, das Elegias de Duino de Rílke,dos ciclos dos românticos e simbolistas, etc., pertencemàs tarefas mais aliciantes e mais frutuosas do trabalhohistórico-literário.

Lançando um olhar às diversas épocas, observar-se-àque modernamente se tem acentuado a tendência parao ciclo, sendo em nossos dias uma característica da pro-dução lírica. O lírico de hoje parece concentrar a suaambição especial em dar à sua obra o «carácter delivro». Mas, evidentemente, este Iactor literário-socio-lógico não basta ainda para a explicação do fenómeno.

Para além do ciclo, pode valer a pena investigar aconstrução, sempre que um lírico tenha ele mesmocoordenado toda a sua obra. Por exemplo, W. Brechtpôde obter resultados de surpreendente riqueza aoinvestigar a construção da colectânea lírica do poetasuíço C. F. Meyer. O trabalho de Brecht tem o caracte-rístico título: C. F. Meyer e a obra de arte da suacolectânea de poesias (C. F. Meyer und das Kunsttoerk

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sciner Gedichtsammlung. 1918). Deu ricos resultadostambém o estudo das colectãneas de Stefan George(1. M. M. Aler 1m Spiegel der Fotm, 1917).

2. Problemas de construção do drama

(a) Cena e acto

Na lírica, graças ao capítulo sobre as noções basí-lares da métrica, pudémos estudar imediatamente aconstrução externa. No drama, teremos ainda de tomarprimeiramente contacto com as noções basílares deconstrução externa. São sobretudo a cena e o ecto.Ambas as coisas eram desconhecidas no drama medieval;são oriundas da teoria e prática do Humanismo que,por sua vez, as foi buscar ao drama latino, sobretudoa Séneca. Segundo o uso predominante, o princípioe fim de uma cena são determinados respectivamentepela entrada e saída de personagens, de maneira que.dentro da mesma cena, fique no palco o mesmo númerode pessoas. Como se vê, a cena assim definida é deter-minada só por indícios exteriores; pode muito bem serque só duas ou mais cenas formem uma verdadeiraunidade dentro da acção dramática.

Realmente, há dramaturgos que interpretam a«cena» duma maneira mais interior, isto é, comofazendo parte da acção dramática, de forma a pode-rem-se dar entradas e saídas dentro de uma cena.Miquel Torga articulou desta maneira o primeiro actode Terra firme em cenas «interiores»; no entanto. dosegundo acto em diante segue a praxe antiga. O factode esta praxe se ter desenvolvivo e conservado.

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baseia~se, em primeiro lugar, na sua conveniência parao encenador: este precisa de uma divisão, conformeo respectivo número de actores que nela tomam parte.Evidentemente, tem ele ainda, como primeiro e maisimportante intérprete de um drama, de entender aconstrução interna da acção dramática. Mas, devidoà necessidade de uma divisão exterior da cena, poucoagradecerá ao dramaturgo se este utilizar a cena sópara a construção interna. Manífestar-se-á ainda porforma mais crítica em face da terceira solução do pro-blema «cena», isto é, em que a cena já nem sequer éutilizada. Na arte dramática moderna portuguesapode observar-se, como exemplo, Té Mar de AIfredoCortês ou o mistério [ecob e o Anjo de José Régio.e claro que na renúncia absoluta à divisão em cenasse anuncia outra vontade construtiva, diferente da dosdramas que se constroem em unidades mais pequenas.Nesses dramas os actos representam as unidades maismarcadas da composição.

Enquanto que a cena, como vimos, serve sobre-tudo de meio de divisão, puramente externo, queencontra a sua justificação na prática da actívídadeteatral, mas sem referência à construção interna dodrama, algo de diferente acontece com o acto. Deve-ríamos dizer mais exactamente: no decurso da evo-lução, este é concebido sempre com mais clareza comoparte da acção dramática. Antigamente deu-se tam-bém ao acto uma interpretação puramente externa:o acto era uma parte do acontecimento dramático quese desenrolava no mesmo lugar. Esta unidade externado lugar já não é considerada como primacial. NoFrei Luís de Souse, na cena décima do último acto,há esta indicação: «Corre o pano de fundo e aparece

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a igreja de S. Paulo». Seque-se imediatamente aquia passagem para um novo cenário. O pano de fundoprovisório que pode ser levantado e que torna possí-vel a mudança tão rápida de local, é vulgar desde oséculo XVIII (embora fosse conhecido antes); desde amesma época é usual a mudança de local dentro doacto - as duas coisas são apenas reflexos duma novae idêntica atitude -, enquanto que o drama «clássico»exigia a unidade de local dentro do acto. De novose mostra como, sem conhecimento da técnica teatralque o autor tinha em vista, não pode haver compreensãoexacta de um drama. Na interpretação do dramaexiste sempre o perigo de os historiadores da lítera-tura e os críticos fazerem filologia livresca e, absorvidospela palavra legível, esquecerem que um drama tempor fim ser representado e só recebe vida completa narepresen tação.

São raros, relativamente, os casos dos chamados«dramas de gabinete» ou «de livro» [Buchdremen,closet-dremes}, isto é, dramas escritos sem a intençãonem o desejo de virem a ser representados. Encon-tram-se sobretudo no Sturm und Drenq, no Roman-tismo e no Expressionismo. Resta investigar em cadacaso até que ponto o autor recusou o palco tradicional,de forma que o seu drama pudesse, mais tarde, reve-lar qualidades verdadeiramente teatrais, ou até queponto, em cada e qualquer representação, não pôdedeixar de ver uma diminuição, redução ou falsificaçãodas suas intenções. Na segunda parte do Fausto deGoethe ou no Prometeu Libertado de Shelley, umarepresentação corre sempre o perigo de ficar muitoaquém do mundo da fantasia de que carecem taisobras, prejudicando assim a sua actuação. Só o leitor,

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\nestes casos, será capaz de construir devidamente essemundo da fantasia. Sobre a tensão que, nos últimoscem anos, existiu entre o drama «poético» e o palco,informa-nos duma maneira notável Ronald Peacock noseu esplêndido livro The Poet in the Theatre. (O titulodá ocasião a uma observação terminológica. Sepa-ram-se, nas línguas germânicas, rigorosamente os doisconceitos «drama» e «teatro», relacionando-se o primeirocom todos os aspectos duma obra como «literária», e osegundo, exclusivamente, com tudo o que faz parteda representação. Os termos respectivamente inglêse alemão «Theetre» e «Theeter», devem, pois, ser tra-duzidos para português por «representação cénica» oumais simplesmente por «palco».)

O uso vulgar de cena e acto é determinado peloHumanismo. Se a Celestine abrange 21 «actos», nãose pode pensar nos actos segundo a concepção maisrecente, mas, talvez, em cenas. Pelo contrário, GilVícente usa uma vez «cena» no sentido dos nossosactos. No frontispício do segundo livro das Comédiasde 1521, fazia-se especial menção do facto de a Comédiade Rubena ser dividida em três «cenas». De igualmodo, o seu contemporâneo alemão Hans Sachs, com-parado com ele tantas vezes duma maneira demasiadoirreflectida, usa só a divisão em actos, hábito tambémvulgar entre os grandes dramaturgos espanhóis comoLope, Tirso. Calderón (jornadas).

Assim como o drama clássico dos espanhóis, tam-bém o drama português e, na verdade, desde o prin-cípio até à actualídade, usa na sua maioria três actos,enquanto que o drama francês, inglês e alemão (trata-seaqui do drama sério) dá a preferência à divisão emcinco actos.

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Na Espanha, Cervantes (na introdução às Comédias)e Vírués (comp. Lope de Vega em Arte nuevo de hacercomedias) atribuíram-se o mérito de terem realizado adivisão em três Jornadas. A história da literaturaprovou como este uso se encontra já em António Díez(Auto de Clerindo. pelo ano de 1535) e Francisco deAvendafio (Comedia Florisee, 1551). Os dois princípiosde divisão podem apoiar-se em autoridades clássicas.O comentado r de Terêncío, Donato, chegou à díví-são em três actos, na construção do drama, partindode um esquema composto por Prótase (Introdução),Epitese (Conflito) e Catástrofe (Desfecho). Em opo-sição, Horácio declarou ser o indicado a divisão emcinco actos, imposta, logo depois, por Séneca nas suastragédias. Também neste ponto se revelam a escolhae a adaptação próprias dos antigos na Península Ibérica,cujo Renascimento especial com tanta violência tem sidodiscutido.

De acordo com as poéticas renascentístas, a divisãoem cinco actos tornou-se lei obrigatória para a tragédiafrancesa. A sua autoridade reforçou na Inglaterrae na Alemanha a tradição própria, oriunda do Huma-nismo. Porém, depois do enfraquecimento da auto-ridade francesa, continuou ainda e, na verdade, comtal preponderância que era considerada pelos teóricosdos três países como fazendo parte integrante da natu-reza do drama. A teoria representativa do século XIX

foi a Técnica do Drama de Gustav Freytag. Freytagfundamentava a divisão em cinco actos na divisão emcinco partes inerente a uma verdadeira acção dramá-tica: Exposição, Intensificação (steigende Hendlunq,rísíng ection}, Auge com «peripécia» (Hôhepunkt,clímax). Declínio (fallende Handlung. falling ection},

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desfecho {Ketestrophe, dénouement}, Segundo a suamaneira de ver, eram estas as partes naturais da estru-tura interna que se iam reflectir na externa. (Comocuriosidade transcrevemos ainda a justificação queCastelvetro deu aos cinco actos: «La divisione maggioreet perfetta non dee passare il numero dei cinque netu-relmente, poichê si vede che Ia natura ci ha fomita Iamano con cinque dita e non con piú, su le queli comein luogo ptoprio della divisione sogliamo allogare edaffidare le parti divise». Ap. Francesco Flora, I Mitidella Perole, Bari, 1942, pág. 135.) Mas no momentoem que a teoria pensava ter dito a palavra decisiva,começou a vacilar o terreno. O drama naturalista deIbsen, Gerhart Hauptmann, etc, usava com igual Ire-quência quatro e três actos. Indo mais longe ainda,há os dramas do Neo-Romantísmo apenas em um actoque floresceram nessa época (Maeterlinck). E, Hnal-mente, surgiram cada vez mais dramaturgos que, sematenderem à divisão em actos, articulavam os dramasem cenas e «quadros», onde os quadros eram determi-nados exteriormente pela unidade do local, mas, quantoao número, totalmente arbitrários. O historiador daliteratura pode completar isto pela observação de como,já no Romantismo, a tradição era bastantes vezesinterrompida na construção externa. Kleist, por exem-pio, desdenhou de qualquer divisão em actos para asua tragédia Penthesilea e para a comédia Der zer-btochene Krug (A bilha quebrada), quando Goetheimpôs a divisão em três actos à comédia, por ocasiãoduma representação cênica, resultado altamente pre-judicial para o efeito da peça. Tão heterogéneas eram avontade construtiva do poeta e a da tradição dramática.Da mesma maneira, grande parte dos «dramas de des-

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tino» foram escritos sem divisão em actos. Ofereceainda interesse aquele caso do Romantismo inglês coma peça de Shelley Prometeu Libertado em que o poeta,bem contra a sua vontade, se viu forçado a juntarum quarto acto. Até em França se revela num dra-maturgo como Vítor Hugo, e outros, a inquietação quese tinha apoderado da dramaturgia no problema dadivisão.

O caso da divisão em actos é problema velho demuitos séculos, precisamente porque, em contrastecom a cena, o acto exerce a sua função na estruturainterna do drama. Todavia, pouco se conseguiu coma verificação de se ter utilizado a divisão em actos,e qual foi essa divisão. Num drama de cinco actos,por exemplo, resta sempre ainda averiguar se os aetossão realmente unidades interiores do todo e se corres-pondem à estrutura formulada por Freytag. Caso talaconteça, fala-se do princípio construtivo etectônico»ou também da forma «fechada», e daí resulta ser diversoo princípio de construção atectónica, isto é, a forma«aberta». "É, certo que nem sempre é sinal de vontadeconstrutiva tectónica a divisão em cinco ou três actos;como é certo também existir a vontade de um estilodivergente, sempre que se evita esta tradição. Nemsempre de forma convincente, tentou-se provar umprincípio musical de construção em Kleist e outrosromânticos e neo-romãnticos. O próprio Kleist susci-tava tal opinião ao dizer uma vez ter encontrado nocontraponto as explicações mais profundas acerca daíndole de toda a poesia. Outros contemporâneos reve-laram a afinidade com a música por meio de títulos ousubtítulos como sinfonia, scherzo, etc. Também a lite-ratura reflecte como foi grande, nessa altura, o ínte-

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resse pela nova forma da sinfonia que se desenvolveuapenas no século xvm. (Sinfonia, até então, equivaliaa «abertura». Quando Eça de Queírós, em 1866,empregou o título Symphonia de abertura, tomou apalavra no seu sentido antiquado, resultando uma tau-tologia. Th. Gautier veio estabelecer ligação do Roman-tismo ao Simbolismo, ao publicar em 1852 a suaSymphonie en blanc majeur. Poucos anos depois,Mallarmé dedicou a primeira parte da sua Symphonielittéreire a Gautier; na poesia Bouquet das suas ProsasProfanas, Rubén Darío rendeu homenagem ao «poetaegregio dei país de Frencie» e «su Sinfonia en BlancoMayor». Ele próprio compôs então uma Sinfona emgris mayor, ao passo que a sua poesia intituladaSonatina faz lembrar as Sonetines d'eutomne de CamilleMauclair, inspirado, por sua parte, pela Sinfonia deGautier. Quase pode dizer-se que Gautier foi o sín-fonista francês de maiores repercussões!)

Quando falámos da tendência para a forma de«rondo» na lírica de Garrett, introduzimos um termomusical na terminologia da ciência da literatura. É pre-ciso, porém, precavermo-nos contra a fácil confusãodas noções formais nas diversas artes. Até nos casosem que se aspira - como última finalidade do estudo -à compreensão de um estilo de época, que se desejariaIocar nas diversas manifestações artísticas da época emquestão, é preciso primeiramente conseguir determinarcom toda a nitidez a construção nas obras de cada zonaartística de per si, e ainda de cada obra em si. A uni-dade do estilo da época, que se procura, é primeira-mente apenas um princípio heurístíco, e não uma reali-da de válida. Identificações precipitadas escurecem aproblemática e desacreditam tais esforços.

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(b) Construção da acção

No drama deveria perguntar-se primeiramente qualé a substância determinante da construção. Dumamaneira geral não se poderia considerar válida aseguinte resposta: «a acção dramática». Estamos aquiperante uma situação análoga à da Lírica ao concluirque a substância duma poesia que se desenvolve como«processo lírico», não é idêntica ao estrato dos simplessignificados das palavras. Poderíamos chamar, anàlo-gamente, «processo dramático» ao desenvolvimento daverdadeira substância de um drama. Como sé vê, aconstrução de um drama é, ultimamente, determinadapor forças mais profundas, que apenas no capítulosobre o problema dos géneros podem ser apreendidas.Mas o facto de a construção só poder encontrar a suaúltima compreensão numa visão total da obra, não nosdispensa, de modo nenhum, da tarefa de levar a caboa análise da construção. Pelo contrário, a própriaanálise é um dos caminhos mais importantes parachegar àquelas profundidades onde se encontram asverdadeiras forças criadoras da obra. Assim, o prin-cipiante tem de se aperfeiçoar no estudo exacto daconstrução de um drama. E, para isso, necessita doconhecimento de mais elementos de construção do quesimplesmente de cena e acto. Ajudá-lo-ão, por exem-plo, aqueles conceitos morfológicos de que se apro-veitou G. Freytag para a sua teoria e que são termostécnicos muito vulgares da investigação. Assim, emcada análise de construção de um drama deve per-guntar-se como o autor fez e coordenou a Exposição:isto é, como dá a conhecer a situação inicial das per-

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sonagens e circunstâncias, em conjunto com a «his-tória prévia» (Vorgeschichte), situação essa em que aacção vai buscar a origem. Logo a seguir devem obser-var-se os «momentos excitantes» [erreqendes Moment,inciting moment) a que se opõem os «momentos deretardamento» {reterdierendes Moment, moment of lestsuspense} que parecem reter ou desviar a catástrofe.Um tal momento de retardamento encontra-se por exem-plo no último acto do Frei Luís de Sousa: o Romeiroordena a Telmo que o declare um embusteiro e expli-que o seu aparecimento como uma intriga armada pelosinimigos de Manuel de Sousa. (A maneira como Garrettse aproveita deste momento é, na verdade, um poucosuperficial; ouve-se demasiado distintamente o ruídodo maquinismo técnico do momento de retardamento.)Mais ainda, é preciso investigar na construção quaisas cenas principais e as secundárias, onde estão e comose preparam os momentos culminantes, e como se arti-culam os actos entre si.

No Frei Luís de Souse o material enriquece-se pelacomparação das diversas versões do drama; reconhece-senitidamente o progresso de Garrett no domínio dosproblemas de construção técnica pela maneira comocorrigiu na edição definitiva o «ponto culminante»,isto é, o final do segundo acto.

Dentro da dramaturgia portuguesa é de especialinteresse, e de interesse europeu, o drama de GilVícente, pois Gil Vicente - neste ponto pode colo-car-se-lhe ao lado, embora mantendo uma certa dis-tância, Hans Sachs - Gil Vicente representa o pontomais alto daquela dramaturgia que, certamente não detodo livre das influências do Humanismo, não deriva,contudo, dele na sua parte essencial. A análise da

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construção é um dos caminhos mais prometedores parapenetrar na essência da arte dramática de Gil Vícente,- quando o investigador saiba libertar-se de todos ospreconceitos. Pois o clima espiritual em que vivemas peças de Gil Vicente e, sobretudo, a sua substãn-cia diferem completamente dos que caracterizam odrama mais recente, por exemplo o drama clássicodos franceses. Quem se propõe investigar a construçãocom a idéia prévia de que será a acção dramática asubstância dramática em que se articula a construção,não chega a quaisquer resultados ou chega a resul-tados falsos. Com a mera verificação da «inexistênciada unidade dramática» em Gil Vicente apenas se dizalguma coisa de negativo, mas nada de positivo. Paraisso é primeiro necessário não nos aproximarmos deGil Vícente com as expectativas e exigências do especta-dor e crítico modernos. Se a unidade da seção paraa dramática vicentina não tem ainda a importânciaque, depois, adquire na tragédia francesa, e se, porisso, a construção não se orienta de acordo com aacção da forma a que se está habituado nos dramasposteriores, nesse caso de pouco valor se reveste aavaliação feita com tais medidas estranhas à obra.Também a observaçâo de que, em Gil Vícente, a ligaçãodas cenas é menos rígida do que é mais tarde, aprincípio não passa de mais uma verificação negativa.Aliás, o mesmo caso dá-se muitas ezes no drama doséculo XVI e até em Shakespeare. Também nele hácenas e partes de cenas que não pertencem à «acção».Não raras vezes se trata então de ostentações retó-ricas, com o que se ganha uma primeira base para ainterpretação e compreensão. Um tal passo de osten-tação retórica, em que Shakespeare evidencia a sua

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mestria numa tarefa tradicional, é, por exemplo, noHamlet, o discurso de despedida de Polónio a Laertes,prestes a partir. Não tem ligação nem com a «acção»nem com as pessoas, e nada seria mais errado do que se,para salvar a ideia (moderna) da unidade de carácter,começássemos a íronizar este discurso, considerando-ocomo verbosidade de um velho decrépito (como sepode ver, muitas vezes, em representações cénícas doHamlet). No Otelo, na cena terceira do terceiro acto,há um elogio do bom nome, prestando-se a duasinterpretações: na boca de lago actua como prepa-ração de longa data para a calúnia seguinte, mas, aomesmo tempo, é um «elogio» desligado das pessoase da acção, no sentido da «Laudatio» retórica (v. sobre«laudatio» p. ex. Cícero, Partitiones Oretotiee, I, § 10).O facto de em Gil Vícente já toda a linguagem pro-vocar menos uma acção, ser menos dinâmica, denun-ela-se no uso de estrofes, típicas também para a dra-mática espanhola. As estrofes favorecem a relativaindependência de cenas e partes de cenas. Assim.muitas peças de Gil Vícente começam com um lamentoisolado (v. Comédia de Rubena, Comédia do Viúvo).Em comparação com o seu carácter de lamento, é Infe-rior o seu papel como parte da exposição. E todaviaseria falso interpretar tais partes como absolutamenteindependentes, por serem assaz independentes da acçãodramática. Elas indicam uma outra substância dramá-tica e um outro clima espiritual. Partindo deste prín-cípío, talvez percam a sua aparente independência e sereúnam uma com as outras e ainda com o todo.

A evolução até à unidade de acção, se é lícito falarde evolução e não simplesmente de diversos tipos deestilo ou, talvez, qéneros, não deve, em todo o caso,

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ser apresentada como ascensão de uma mera insufi-ciência a uma mestria. A negligência para com aunidade de acção e uma construção bem firme, tem deser entendida, através de uma interpretação positivaa partir da essência do drama, quer se trate de GilVicente e Hans Sachs, quer do drama espanhol ou dosrepresentantes do Sturm und Drenq, quer ainda dosromânticos ou dos expressionistas. Reside aqui umdos problemas mais interessantes da história do espí-rito e da literatura ocidentais. É difícil ao críticomoderno manter-se com liberdade suficiente parapoder compreender e apreciar obras mais distantes.Vamos ver, depois, se o problema dos géneros nosajuda a uma mei"hor compreensão e apreciação dosproblemas.

3. Problemas de construçãona arte narrativa (épica)

(a) Formas exteriores de construção

Os meios linguísticos transcendem-se constantementea si próprios e ligam-se uns com os outros. Assim seexplica que já em passos anteriores muita coisa tivessesido enunciada de importância também para a cons-trução na arte de narrar. Mostrou-se, por exemplo,ao tratar de Leitmotio, como lhe podiam caber funçõesde vulto dentro da construção. No capítulo seguinte,ao tratar da «antecipação» e do problema do «tempo»,vamos ainda encontrar Fenômenos que contribuem paraa construção duma narrativa.

Aqui começaremos mais uma vez com os elementosda construção externa. Às estrofes na Lírica e às cenas

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e actos do Drama, correspondem, na Épica, cantos ouaventuras, partes, livros, capítulos e parágrafos demaior ou menor extensão, marcados já pela ordemtipográfica. A razão de estas partes externas seremao mesmo tempo partes de uma construção interna,reside já no facto de, por exemplo, o romance cômicotirar efeitos especiais da perturbação da expectativamuda e calma do leitor, colocando, por exemplo, umlimite de capítulo no meio de uma cena uniforme.Desta maneira, como Iàcilmente se pode reconhecer emSterne, dispersa-se a atenção concentrada sobre o cursodos acontecimentos e quebra-se a ilusão, e isto devidoa o narrador se projectar inesperadamente no primeiroplano. Como narrador, possui em absoluto o direitoe a possibilidade de o fazer.

Em cada caso resta investigar em que proporçãocantos, capítulos, etc. funcionam como verdadeirasunidades. Gottfried Keller, ao remodelar o seu romanceDer Griine Heinrich, dividiu os volumosos capítulosda primeira versão em dois, três e quatro, sem noentanto mudar O conteúdo de forma perceptível.Isto é indício do peso diverso conferido ao Fenó-meno do capítulo em cada época, e duma vontade cons-trutiva diferente do próprio autor. A par da vontadepessoal do autor, há certamente questões de gosto,que representam também um papel na divisão doscapítulos de romances. Actualmente, pelo menos nospovos germânicos, é evidente a simpatia por capítulosmais longos, enquanto que os povos românicos dão apreferência aos mais curtos. (Aliás, nas literaturasgermânicas, nota-se grande inclinação para o romancemais extenso. Como curiosidade deve observar-se queo primeiro romance de Charlotte Bronté The Professor

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foi a princípio recusado principalmente porque sópreenchia um volume, e o público estava habituado aromances formados por mais de um volume. Em 1894apareceram em Inglaterra nada menos de 184 narrativasem três volumes. Se, três anos depois, só apareceramquatro deste gênero, esta brusca descida explica-sepela declaração das grandes bibliotecas inglesas, feitaem 1894, anunciando que, no futuro, não aceitariammais romances compostos de três volumes, - provaconcludente da influência de factores Iíterário-socioló-gicos sobre a produção (d. Levin L. Schücking,Die Soziologie der litererischen Geschmacksbildung(A Sociologia da Formação do Gosto Literário). 2.a ed.,Leipzig, 1931, p. 66. Todavia essa resolução não pôdeabafar com o tempo a preferência pelos romancesvolumosos. )

Uma vontade construtiva tectóníca anunciar-se-à Jana uniformidade ou na simetria do tamanho dos capí-tulos. De novo, o autor de romances cômicos tiraefeitos múltiplos do jogo com a divisão dos capítulos.Assim, encontram-se no livro de Sterne TristremShandy capítulos compostos só de poucas palavras.E os capítulos 18 e 19 do nono livro apresentam-se-nosa princípio somente com folhas em branco; só maistarde é que o seu conteúdo nos é dado. :B por idênticarazão que Sterne coloca no 20.0 capítulo do 3.0 livroThe Author's Preface, dizendo: «AIZ my heroes areofl my hends, - 'tis the first time I heoe had a momentto spare - end FIZ meke use of it, and torite my pre-face». Esta técnica foi repetida e desenvolvida maistarde. O romance de Immermann Münchhausen começacom o capítulo décimo primeiro: após alguns capítulosapresenta uma troca de cartas entre o autor e o típó-

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grafo acerca deste «lapso» e vai buscar então os capí-tulos de 1 a 10. E Machado de Assis chega a dar-nos,no capo LV do seu Brás Cubas, todo um diálogo sempalavras, só por meio de pontos, pontos de interrogaçãoe de exclamação. Também o capo CXXXIXfica em branco,pois «há coisas que melhor se dizem calando», comose afirma no capo CXL. E no fim dum outro diz-se:«Convém intercalar este capítulo entre a primeira oraçãoe segunda do capítulo CXXIX». Vê-se como aqui a artí-culação em capítulos é arbitrária e só serve para efeitoscómicos.

Por outro lado, o emprego de um mote no cabe-çalho de cada capítulo indica como os capítulos foramdestinados a formar partes de considerável autonomia.Em muitos romances e epopeías dos séculos XVI e XVIIindica-se nos motes o «argumento»; neste caso, oscapítulos foram concebidos como unidades, e istosob o ponto de vista do decurso da acção. No romanceburguês do século XIX, em que a autoridade deW. Scott animou esta prática,encontram~se muitasvezes versos líricos como motes, com o intuito de elu-cidar o leitor sobre o tom do capítulo. (É caracterís-tico do «estilo burguês» consistirem os versos, namaior parte dos casos, de citações de obras conhecidas.]Esta disposição lírica não está em desacordo com apossibilidade de, também aqui, os capítulos serem con-siderados unidades sob o ponto de vista da acção.Contudo, aquela prática do mote lírico já é indício deos capítulos conterem mais do que o relato de merosacontecimentos. E, assim, guiam a observação para asmaiores profundidades da narrativa, para o processoépico, pelo qual podem ser compreendidos os verdadeirosproblemas da construção.

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(b) O processo épico

Estamos diante da mesma situação da Lírica e doDrama. Também neste caso, o acontecimento a desen-rolar-se no palco, sensorialmente, não era tudo, e osdramas de Gil Vícente Hzeram-nos reconhecer com todaa nitidez que a construção nem sempre era estritamentedeterminada pelo decurso da acção.

Um dos maiores êxitos no romance dos últimostempos foi o livro do americano John Steinbeck AsVinhas da Ira. Neste romance descreve-se a desgraçaem que se vê envolvida a família de um fazendeiro,expulsa da terra natal e que, cedendo ao apelo de pro-messas tentadoras, no meio de mil dificuldades chegaà Califórnía, para lá encontrar uma desilusão completa.Mas, antes de cada capítulo, que descreve uma novafase na senda dolorosa da família, intercala-se reqular-mente outro capítulo, a desenrolar-se em plano dife-rente, ou antes, que é visto noutra perspectiva maisvasta : Fala-se, em geral, dos fazendeiros expulsos edos proprietários da Califórnia, dos especuladores, dosjogadores da Bolsa, das medidas do governo, da opiniãopública, em resumo: de todas as forças que actuamno espaço que a família tem de percorrer como seuespaço fatídico.

A alternância regular dos dois planos (que noslembra a tendência moderna para «poesias de doisplanos») pode ser interpretada como sinal de uma tenaze clara vontade construtiva, e a severidade com quese desenrola a vasta perspectiva sobre as forças dodestino e a outra mais restrita sobre as criaturas, vítimasdo destino, faz surgir O problema de saber até que

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ponto este romance se aproxima da epopeia. Não édisso, porém, que queremos tratar nesta altura, massim da averiguação, antecipadamente preparada pormeio da análise do moto, de como no género narra-tivo ainda há mais do que o simples «acontecimentodo primeiro plano». Em conformidade com os termosempregados na Lírica e no Drama, chama-se processoépico àquilo que se constrói numa obra narrativa.Reconhece-se à primeira vista que os estratos, porexemplo, da sonoridade e do ritmo, tomam nesta umaparte mais insignificante comparada com a que tomamna Lírica. A prova disto terno-Ia no facto de os roman-ces, ao serem traduzidos, o que forçosamente tem dedestruir o estrato original do som e do ritmo, sofreremrelativamente pouco. O que é que se liga, porém, noprocesso épico de essencial e de especificamente épicoà acção indispensável do primeiro plano? O que é queactua na construção? É evidente ser precisamente oalargamento, a introdução das personagens e aconteci-mentos do primeiro plano num espaço vasto e repleto,"num mundo maior. O narrador dispõe de visãocompleta não só do tempo passado mas também doespaço; tudo o que acontece e vai ser narrado estápermanentemente ligado a um mundo maior e por esterodeado.

Há, evidentemente, diferenças, e as diversas gra~dações ajudam à constituição dos vários géneros narra-tivos. Deixando a discussão destes problemas para ocapítulo sobre os géneros literários, baste-nos aquiverificar que a novela tende à concentração. Como odrama, mostra-se interessada na tensão horizontal e nodecurso, do prin~ípio ao fim, dum acontecimento. Emoposição, a epopéia oferece a plenitude e profundidade

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de um mundo, e o romance também é caracterizadopor abranger um mundo bastante vasto. Nem sempreos acontecimentos do primeiro plano e a visão domundo se encontram tão nitidamente separados e dife-renciados na construção como no citado romance de[ohn Steinbeck. No romance, a fusão é até vulgar.Por isso, é muito mais simples a análise da construçãode uma novela, visto que a construção é claramentedeterminada por uma ocorrência e respectivo decurso.No romance, a construção é determinada pela substânciaépica mais complexa. A análise nem sempre podedeixar-se guiar só pelo fio dos acontecimentos do pri-meiro plano. O que, visto desse lado, é mero episódio,pode ser considerado pelo processo épico precisamenteo ponto mais importante da construção.

Isto torna-se especialmente nítido nas narrativasintercaladas que, na aparência, nada têm que ver comos acontecimentos do romance e as suas personagens.No Werther de Goethe, Werther narra ao seu amigoAlberto a história de uma rapariga por tal formadominada pelo amor que, ao ver-se abandonada peloamado, se sente despedaçada, encontrando no suicídioa única salvação. «Esta história é a de tantos outrosseres», conclui W erther; e quem conhece o romancesabe como Werther, aqui,conta afinal a Sua própriahistória: chegámos agora a um dos pontos principaisdo livro, e depara-se-nos uma integração tipicamenteépica. Mas não é só como integração da história deWerther que se reveste de significado a história darapariga afogada, mas sim também como magnífico meiode composição para colocar a história de Werther nummundo maior e fazer senti-Ia como a história de tantosoutros seres. Nas Afinidades Electioes (Wahlverwandt-

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schaften), Goethe intercalou a novela dos Filhos deVizinhos com uma função semelhante. Este hábitoremonta à antiguidade; encontramos no Burro de Ourode Apuleio um dos exemplos mais célebres da narrativaintercalada, rica de significado e de função. Conta-sea uma noiva raptada a história da separação e doreencontro de Amor e Psyché. De novo, esta história,na aparência totalmente independente e desligada dotodo, (na realidade, ganhou vida como história isolada)é uma integração do motivo principal e, simultânea-mente, uma dilatação do primeiro plano, abrangendoassim um mundo maior.

Vamos dar dois exemplos, embora pequenos, deconstrução diferente, indicando, assim, diferenças pro-fundas no processo épico. O conto de António MadeiraO Barão começa - após a auto-apresentação do narra-dor, que é o «Inspector das escolas de instrução prí-mária» -com as palavras (p. 9): «Vou contar a minhaviagem à Serra do Barroso. Ia fazer uma sindícãnciaà escola primária de V ... » A seguir, diz-se: «Foi noinverno, em Novembro, e tinha chovido muito, o quedera aos montes o ar desolado e triste dessas ocasiões.As pedras lavadas e soltas pelos caminhos, as barreirasdesmoronadas, algumas árvores com os ramos torcidose secos. Fui de comboio ... »

A expressão «dessas ocasiões» como que nos abreuma porta que vai dar a um mundo mais vasto; maso termo «ocasião» (magnificamente escolhido) concen-tra de novo, por assim dizer, a vaga distância numdeterminado ponto. Mas é sobretudo para a função daestação que desejamos chamar a atenção. O Novembrochuvoso serve para aumentar a má disposição do íns-pector, e, sobretudo, ainda para colocar o primeiro

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encontro, logo a seguir, com o Barão, à sua verdadeiraluz, isto é, em semí-obscuridade. Poder-se-ia dizer queo con to na realidade só começa na página 11 com aspalavras: «A pequena porta abriu-se e do vão escurosurgiu um homem de enorme estatura ... » Cada palavraimpõe-se duma maneira admirável. A porta abriu-see, do vão escuro, surgiu um homem de enorme estatura.Consciente e resolutamente, corta-se a possibilidade dedar um alargamento épico através da época do ano.Tudo serve para preparar apenas o verdadeiro prin-cípio e sublinhá-lo. E este princípio é um encontrosurpreendente, ao lusco-Iusco, que encaminha toda aatenção para o decurso de acontecimentos, que tendeao futuro.

Também o Werther de Goethe, que pode servir deexemplo oposto, começa com uma breve auto-apresen-tação do narrador. O verdadeiro princípio encontra-sena segunda carta com a descrição \ da primavera. Decerto modo, também aqui a quadra do ano serve paraencher o primeiro plano e aprofundar a figura deWerther. Porém um exame mais cuidado (como, porexemplo, o que fez H. A. Korff no seu Geist derGoethezeit) mostra que na exposição da primavera estãocontidos outros importantes elementos; surge entãoum mundo imediatamente maior, em que o mundode Werther se insere: o verdadeiro começo da obra é«uma primavera», ou melhor ainda, «a» primavera.A esta primavera segue-se mais tarde um outono, emque, de novo, a situação de W erther se incorpora.A construção não é determinada só pelo decorrer dahistória de Werther, mas sim pelo decurso desse mundoépico, mais vasto. Como exemplo, as duas obrasmostram os diversos princípios de construção de dois

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géneros, de um conto tenso e de um romance. Tambémno romance Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister(Wilhelm Meisters Lehrjehre}, de Goethe, uma análisemais exacta da construção mostra que a estrutura, eainda mais nitidamente do que no Werther, é deter-minado, no fundo, pelo mundo mais vasto, e não pelodecurso de um acontecimento ou de uma evoluçãointerna do protagonista.

É característico que em obras cuja composiçãonoutros tempos tinha sido considerada fraca ou desti-tuída de vigor só se revelaram os últimos segredos dasua estrutura quando a vista abrangeu simultâneamenteo maior acontecimento individual do primeiro planoe esse mundo maior. De certa forma, isto aplica-se àEneida de Virqilío, em que só relativamente tarde serevelou toda a importância da ideia de Roma, tambémno que diz respeito à construção. O mesmo se passoucom os romances de Flaubert, antigamente tantasvezes censurados por causa da sua composição poucovigorosa. O romanista suíço Walther v. Wartburgmostrou num artigo {Fleubert ais Gestelter} que acomposição de Educetion sentimentele é determinadapela justaposição de duas séries de acção: a vida,isto é, especialmente a vida amorosa de Frêdéríc, emque representam o papel decisivo as quatro mulheres,Madame Arnoux, Rosanette, Madame Dambreuse eLuíse, e, em segundo lugar, a história da nação francesanos anos de 1840 a 1852. Von Wartburg chega àseguinte conclusão: «As duas linhas de evolução, aprincípio ligadas de maneira frouxa, correm uma paraa outra cada vez mais decisivamente ... Desde o momentoem que se tocam, ficam unidas; entre os dois momen-tos em que Frêdêríc. bem como a nação, tomam nas

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próprias mãos o destino e depois capitulam de novo,existe a possibilidade do despertar para uma vida livree independente. O segundo momento faz terminar oromance com um desânimo infinito, tanto na vida pes-soal como na pública. A estrutura da Educecion sen-timentele:., é vertical e deixa correr, um ao lado dooutro, os dois grandes temas em determinado ritmo.Mas este caminhar lado a lado, as sobreposições e osencontros criam também para este segundo romancede Flaubert uma estrutura nitidamente reconhecível ebuscada pelo autor».

(c) Formas besileres da Épica

Até agora Ialámos da construção externa em cantos,livros, partes, capítulos, etc., assim como das grandesdivisões do processo épico. Mas há formas épicasespeciais e ao mesmo tempo básicas, de cuja uniãosurge a estrutura de uma obra épica. Estes fenómenoschamaram já a nossa atenção ao estudar a linguagem,quando deparámos com as formas superiores à frasee com as formas do discurso.

Antes de passarmos à exposição teórica, vamosmostrar por um exemplo a natureza e eficácia de taisformas. Sirva-nos a parte I da novela de José RégioDavam grandes passeios aos domingos.

Em seguida a uma frase preliminar de relato, depa-ramos com uma parte fechada em que se reúnem numtodo o discurso dírecto, relato e reflexão: trata-se deuma pequena «cena». Depois, com as palavras «pegandoatrapalhadamente nas suas coisas», segue um trechode relato que, desde as palavras «Rosa Maria fora obri-gada a correr», vai terminar num trecho de reflexões

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(lembranças). Se da primeira cena até esta reflexão,colocado no meio, nos guia um trecho de relato, assim,a partir desta, dirige-se um trecho de descrição(<<acompanhado» até «a tristeza de Rosa Maria») quechega a uma segunda pequena cena, em que impera odiscurso directo. Quatro linhas em que o autor dá aquinta-essência do que aconteceu e portanto se revelabem como narrador, essas quatro linhas terminam aprimeira parte do conto. É de uma estrutura não sóexteriormente clara, mas até simétrica. A primeira qua-lidade parece-nos típica para a novela, a segunda antespara o autor, podendo-se ficar indeciso sobre a questãode saber até que ponto a parte consciente cooperounesta composição simétrica.

Esta primeira parte representa uma unidade quantoao aspecto externo e interno. Levanta-se neste pontoa questão terminológica duma designação adequadaàquela unidade interna que é, como o leitor com faci-lidade reconhecerá, uma forma típica das narrativas,ou seja, uma forma basílar do género épico. De facto,é a forma mais nitidamente determinada pela críticaliterária que tem o costume de lhe chamar «cena».

Quando, em 1921, apareceu, pela primeira vez, olivro lhe Craft of Fiction da autoria de Percy Lubbock- ainda hoje um dos melhores estudos sobre a técnicado romance ----', o autor lamentou a falta de conceitose de termos firmes no que diz respeito à determi-nação das formas basilares narrativas. Ele próprioempregou - e enraizou assim - os termos «scenic»e «penoremic», distinguindo desta maneira dois modosbem diferentes da composição nas narrativas. Numestudo mais recente (1936) sobre o romance, que é,na verdade, a melhor e mais completa obra sobre o

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romance como forma literária que apareceu até hoje,da autoria do investigador finlandês R. Koskimies(com o título T heorie des Romans), faz-se referênciaa vários progressos da crítica literária quanto à deter-minação das formas basilares épicas. O autor cita eaprofunda, neste ponto, sobretudo as investigações deRobert Petsch. Às formas definidas por Petsch - relato[Bericht ), descrição [Beschreibunq}, quadro (Bild) ,cena {Szene} e conversação {Gespriich} - Koskimiesacrescenta ainda aquela outra forma determinada pelacrítica francesa, ou seja, o «tebleeu».

Os investigadores continuam a trabalhar nestecampo; conceitos como quadro e cena demonstram queestas formas não são exclusivamente épicas nem apa-recem só neste campo. Assim é necessário tambémacrescentar àquela série, por exemplo, a discussão comoforma da reflexão, que não poucas vezes se podeencontrar na épica. As observações já atrás feitas aoreferir-nos a problemas que superam a forma linguísticada frase, podemos ampliá-Ias agora com a apresentaçãode algumas formas básicas das narrações de caráctermais complexo.

Quanto à noção de cena há a notar que a igual-dade de nome com a cena do drama não nos deveinduzir em erro sobre a particularidade da cena épica.A coincidência reside no arredondamento (maior nanarrativa do que no drama) , na proximidade doleitor em relação ao acontecimento (por meio do dis-curso dírecto, preferido na cena, o leitor toma contactoquase imediato com a realidade poética) e, finalmente,na clara sequência temporal dentro de uma cena que,por assim dizer, decorre com a mesma velocidade,velocidade essa que se aproxima do tempo «objectivo».

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Porém, nem mesmo o discurso directo predominanteencobre o facto de que a cena épica é sempre obrade um narrador que nela se revela, e que essa cena écontada e não representada. Quem leia em voz altauma cena épica não deve nunca tentar despertar, peladiferenciação dos discursos dírectos, a ilusão de per-sonagens totalmente diversas; por maior que seja adiferenciação das vozes, o narrador tem de permanecersempre audível e consciente. É um problema de estilosaber até que ponto o próprio autor cuidou duma tona-lidade comum dentro dos discursos directos das suaspersonagens.

Como a cena, também o quadro é uma unidade quepode abranger diversas formas do discurso; é certo quea descrição tem sempre a preferência e, muitas vezes,ela, só por si, forma um quadro. O que o distingue é oseu carácter fechado, a plenitude objectiva, vísualídade,isolamento temporal, ou antes, estática, e, por último,uma riqueza especial de significado. Como na Lírica,o quadro Iàcílmente se transforma em símbolo. Porcausa da estática e devido ainda à tendência paraencaminhar o movimento a profundidades insondáveisem vez de o dirigir para a frente, o quadro representana narrativa, geralmente, papel inferior ao que tem,por exemplo, na Lírica. Mas, por outro lado, sempreque surge em todo o seu esplendor, é de um efeitosurpreendente. É em todo o caso de notar quão rarasvezes o quadro é utilizado para o fecho de romances.Em alguns, no entanto, encontramos como fecho oquadro final. Damos como exemplo o final de A cidadee as Serras:

«Em fila começámos a subir para a serra. A tardeadoçava o seu esplendor de estio. Uma aragem trazia,

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como oferta dos, perfumes das flores silvestres. Asramagens moviam, com um aceno de doce acolhimento,as suas folhas vivas e reluzentes. Toda a passarinhadacantava, num alvoroço de alegria e de louvor. Aságuas correntes, saltantes, luzidias, despediam um brilhomais vivo, numa pressa mais animada. Vidraças dís-tantes de casas amáveis flamejavam com um fulgor deouro. A serra toda se ofertava, na sua beleza eternae verdadeira. E sempre da nossa fila, por entre a ver-dura, flutuava no ar a bandeira branca que o ]acintinhonão largava, de dentro do seu cesto, com a haste bemsegura na mão. Era a bandeira do Castelo, afirmava ele».

Não são precisas longas discussões para se saberque aqui se apresenta mais do que a imagem de umabela paisagem. Palavras explicativas e elucidativasrevelam-se até incapazes de abrangerem a essênciamais profunda deste quadro. É um claro exemplo decomo uma unidade da língua, formada, em si, por pala~vras, contém, quanto à essência, mais do que uma merasequência de frases, mais do que uma adição de siqni-ficados de frases. Arrancar isto à linguagem é, porém,propriedade das forças poéticas da língua e faculdadedo poeta.

O exemplo de Eça faz-nos ainda reconhecer maisuma coisa: a significação do quadro final ultrapassatanto a acção do primeiro plano como também o vastomundo desta obra poética. Aqui desvenda-se-nos umestrato de significados e valores humanos eternos. Nãohá nisto nada de especial, nem neste romance em par-ticular, nem na forma do romance em geral, mas simalgo de comum a toda a poesia, ou antes aos «processospoéticos». O romance, já citado, de [ohn Steinbecktermina igualmente com um quadro que, em si, se eleva

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das ocorrências 30 primeiro plano e tem então por fimpenetrar nessas alturas ou profundidades de importânciaduradoira. Mas, na realidade, não o consegue emabsoluto. Por um lado, o quadro em si é tão desaqra-dável à vista que o leitor preferiria não o imaginar empormenor; por outro, sente com demasiada nitidez queaqui se procurou, para final, um símbolo forte, e estepropósito bem marcado impede-o novamente de seentregar totalmente ao quadro e à sua essência. Comocomplemento, deve dizer-se que tais críticas não podemFazer-se com base em traduções; o exemplo de Eçadeixa-nos reconhecer claramente com que força osestratos da sonoridade e do ritmo participam na cons-trução do quadro épico.

A crítica francesa fala do tebleeu e, ao lado da cenae do quadro, possui uma terceira noção que, aliás, já seusa noutras lnguas como tetminus technicus estrangeiro,mas válido. Realmente, o tebleeu pode dístinquir-se,como unidade, a par das formas de cena e quadro;fica talvez no meio de ambas. À cena líqam-no omovimento e o curso de tempo em si; ao quadro umaúltima estática e independência.

Porém, como já antes verlfícámçs, em oposição aoquadro, talvez mais calmo e mais íntimo, o tebleeuquer ser visto por um público. Assim «se apresenta»à vista e, por isso, muitas vezes, assume leve ênfase ouligeira pose. É como que a diferença entre um «retratopintado» e determinados quadros de «grupos», entreum auto-retrato, digamos, do velho Rembrandt, e oquadro de Tíciano «Amor celestiel e amor terreno»(ao passo que a pintura de «genre» e, na maior partedas vezes, os quadros históricos corresponderiam à«cena», da qual escolhem o «momento frutuoso».)

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No tebleeu viu-se um dos meios de composiçaomais importantes do romance realista. e houve quempensasse basear-se a fraqueza da composição de taisromances precisamente no seu interesse pelo tebleeu.Assim Thíbaudet, o conhecido intérprete de Flaubert,disse acerca do seu poeta: «L' effort réel et echevéde le eomposition porte done ehez lui plutôt sur lesperties que sur l'ensemble. La phrese est plus com-posée que le tebleeu, le tebleeu plus composé que lelivre». W. v. Wartburq, no estudo citado. tentou mos-trar. em oposição à tese de Thíbaudet, a estrutura maiorexistente na Educetion sentimentele e Madame Booerq,Deste romance afirma v. Wartburg: «A MadameBovary ergue~se como composição intimamente fechada.harmoniosa. de simetria absoluta». É ainda interessanteobservar que a construção externa em capítulos e partesnão corresponde à construção interna. Igual resultadose obterá na análise de muitos outros romances. e assimse poderá reconhecer que os capítulos e outros meiosexteriores não passam de um recurso provisório. tendoem vista os últimos fins da análise da construção; damesma maneira estâncias e cenas. respectivamente. nãopassam de um recurso provisório na análise da Líricae do Drama.

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PARTE INTERMÉDIA

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CAPíTULO VI

FORMAS DE APRESENTAÇÃO

Este capítulo constitui a transição dos anteriores.em cada um dos quais se examinaram aspectos isoladosdentro de um determinado estrato da obra, para os quemais tarde virão e cujo campo de visão será, de certomodo, a totalidade da obra. Agora trata-se da suaforma de apresentação e, com ela, de um aspecto deconjunto; mas limita-se àqueles fenómenos perante osquais o autor teve de tomar posição mais ou menosconscientemente. Numa obra, por exemplo, que se apre-senta como narrativa, teve o autor que resolver quem éque havia de ser o narrador: se seria ele mesmo a falar;se falaria, pelo contrário, numa espécie de papel; ou seincluiria um narrador especial.

Põem-se com isto questões técnicas da forma deapresentação. E assim o capítulo presente poderiatambém íntítular-se «Noções fundamentais da Técnica».se já atrás se não tivesse vindo falando constan-temente de técnica. O manejo de muitas formasjá tratadas pode ou tem mesmo de ser consciente.Que estranhos produtos apareceriam se um poeta lírico,ao empregar esquemas métricos difíceis, não contasseou não batesse o compasso de sílabas ou acentos, querna escrivaninha, no ar, ou, como o Goethe das ElegiasRomanas. «baixo .... com mão dedilhante», no dorso

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da amada adormecida! A técnica da construção daestrofe, da rima, do Leitmotiv -, são perguntas justi-fica das e cheias de sentido. Os poetas barrocos cons-truíram as suas metáforas muito conscientemente, demaneira que nos é possível examinar-lhes a técnica.E finalmente as correcções a que os poetas procedemnas suas obras são por si testemunho bastante fre-quente de uma clara consciência, e denunciam-nosa sua técnica. O mesmo acontece com os problemasda construção. Que poeta é que não se daria conta desaber onde o melhor limite de um capítulo ou do quehá-de meter no segundo ou no terceiro acto do seudrama?

Este capítulo limita-se, em contrapartida, ao estudodos meios da figuração e representação determinadosa partir da apresentação e na escolha dos quais estáimplícita necessàriamente uma decisão por parte dopoeta. Qual a solução adoptada em cada caso - issodepende de pontos de vista mais vastos, e assim senos abrirão frequentemente perspectivas para o estiloe o género. Nem mesmo se pode afirmar que a soluçãoem cada caso fosse atingida como decisão consciente:pode muito bem acontecer que a «técnica», alcança dapor um poeta nos anos de aprendizagem à custa detrabalho, lhe tenha entrado no sangue de tal maneiraque já não seja preciso, de cada vez, nova reflexãoe meditação.

Uma objecção é aliás fácil de eliminar. O Roman-tismo deu relevo ao inconsciente no processo de criaçãoartística, e assim carregou de certa mácula tudo o quediz respeito à técnica. Ainda hoje não é rara a opi-nião de que o poeta autêntico cria numa espécie detranse e de que uma técnica visível denuncia porisso

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um poeta que cria conscientemente e que é, por issomesmo, não autêntico. Esta ideia anda ligada à outrade que na poesia nada há a aprender e que o poetanasceu já como tal. A isto há muito a opor. Por umlado é incontestável que em toda a época pré-român-tica o papel do consciente na criação artística foiconsiderável; e incontestável é também que, «a-pesar--dísso», grandes obras de arte surgiram. As Poéticasda Idade Média, do Humanismo e da época posteriorsão indubitàvelmente em grande parte manuais detécnica, e muitos poetas terá havido que por elas seexercitaram. Não faltam também testemunhos de poetasromânticos e post-românticas que deixam reconhe-cer com que intensidade e clareza eles pensaram asquestões técnicas; precisamente os maiores poetasleqaram-nos neste ponto um ríquíssímo material.Finalmente podemos concluir das biografias de quasetodos os poetas que eles, pelo menos nos seuscomeços, passaram um período da mais porfiada apren-dizagem, período esse em que estudaram os mes-tres e procuraram entrar na posse dos meios técnicos.(Jean Paul, antes de escrever o seu primeiro romance,tinha lido, como disse no prefácio à Auswahl ausdes Teu[els Papieren, quarenta vezes o TristramShandy de Sterne. Não é preciso tomar o número àletra - o facto é por si claro bastante e é tipicamenteexemplar.)

Parece serem horas de acabar com essas ideias datotal inconsciência da criação poética e da não-neces-sidade de aprendizagem. «La poesia medesima ... noncompie l'opera sua senze eutoqovemo, senza interno[reno, "sibi imperiosa' [per edottere il motto orezieno},senza accogliere e respinqere, senze provare e riprooere,

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operando 'tecito quodem sensu'», diz Benedetto Crocena sua Poesia (pág. 13), e ele, em boa verdade, nãopode ser suspeito de desconhecer a essência da «espres-sione poetice» e da criação poética. Não é tambémmero acaso que exactamente nos últimos tempos eexactamente por poetas tenha sido ressuscitada a velhaideia das «academias de poetas». Mesmo na épocaromântica, Frledrích Schlege1 pôs na boca de um inter-locutor no seu Gesprêcli iiber die Poesie (Diálogo sobrea Poesia) as palavras seguintes: «Entre os antigoshouve também escolas de poesia no sentido mais própriodo termo. E não nego que alimento a esperança deque isso seja ainda agora possível». Há pouco tempoainda (na Nouoelle Revue Frençeise de 1 de Junhode 1921) exigiu Jules Romains a criação de «couts detechnique poétique», exigência essa que os cours poéti-ques de Valéry vieram em parte satisfazer; GeorgesDuhamel, na sua Déjense des Lettres, Biologie de monmétier, exortou os mestres a darem aos jovens conselhospráticos, receitas do ofício. E vozes semelhantes sefazem ouvir também de outras terras.

Quem, como poeta ou como investigador, se ocupade problemas técnicos da literatura, não precisa de ofazer às escondidas, e muito menos precisa de apre-sentar desculpas. Tem pelo contrário toda a razãopara acentuar a necessidade desses estudos, e podecom bom direito afirmar que o desregramento lite-rário, que de resto se pode observar em todos ospaíses, provém em boa parte do desprezo da técnica,do ofício e, por conseguinte, da tradição. A par daquelefalso conceito de poeta e de criação literária, a rejeiçãode toda a sensatez é bastantes vezes produto apenasdo comodismo.

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De acordo com a forma de apresentação, uma obraliterária é lírica, épica ou dramática. E isto nos dá adivisão para as explanações que se seguem.

I. Problemas de apresentaçãodo género lírico (Técnica da Lírica)

A Lírica apresenta-se como expressão monológicade um eu. Por conseguinte, na maneira de apresentara sua poesia o autor tem de decidir se quer fazer doseu discurso lírico a expressão do seu próprio eu oude um «eu» indeterminado, ou se o quer pôr na bocade determinada personagem. As poesias que se apre-sentam como expressão de uma determinada figura,dá-se o nome de «poesias monologadas» ou «poesies-monólogos» (Rollengedichte). Com a escolha da poesiamonologada surge imediatamente o seguinte problematécnico: como é que o leitor poderá perceber o «papel»em vista? Em geral, o poeta dará a indicação necessá-ria já por meio do título: Lied der Toten, The Meid'sLament, Hymn of Pan, Le vin de l'assassin, Le vin desements, Palavras dum certo Morto. etc. Os exemplosapontados pertencem à Lírica moderna; nas produçõeslíricas mais antigas são ainda mais frequentes os casosde poesias monologadas. A ideia de que o lirismo é.na sua essência, a própria expressão da alma do poeta,tem sido motivo de um certo abandono das poesiasmonologadas a partir do Romantismo. Um examedos «papéis» escolhidos, no que diz respeito ao poetaou a uma corrente ou época inteira, levaria precisa-mente, quanto às épocas anteriores, a conclusões valío-sas acerca das relações entre as obras e o público e

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esclareceria os aspectos sociológicos da vida literária.Em grande parte, a história da literatura considerou,outrora, poesias medievais e também ainda posteriorescomo verdadeira expressão do próprio «eu», as quais,em verdade, tinham sido criadas pelo autor e tomadaspelo público como poesias monologadas. Na falsainterpretação de Varnhagen sobre o Cancioneiro daAjuda pudemos conhecer um exemplo eloquente dessesmal-entendidos. Caso mais ou menos semelhante sedeu frequentemente com a lírica petrarquista, a dosanacreônticos, etc.

Quando poetas mais modernos cuidam da necessáriaclareza arranjando um título conveniente, isto põe--nos perante o problema técnico do título em geral.As poesias medievais não possuíam título. Só a partirdo Humanismo se enraizou o hábito de dar nomes àsproduções poéticas, exercendo o título diversas funções.Por um lado deve preparar a nossa disposição mentalpara o que vai acontecer. O que no teatro as «trêspancadas» e o apagar das luzes produzem, isto é, atransformação mágica do espectador que lhe faculta aentrada no domínio da poesia, realiza-se na Lírica muitasvezes só pelo título da obra. Ao mesmo tempo deveele preparar a entrada no mundo especial desta poesia.Antigamente costumava-se usar como epígrafe muitasvezes apenas a forma ou o género da obra, como«canção», «ode», «hino», «soneto», etc. A maneirapensada e retórica do discurso denuncia-se, ocasional-mente, nos títulos que indicam o tema que será discutido:Sobre uma Fonte, a Fragilidade da Vida Humana,Sobre a Eternidade, L'ert, Die Künstler.

Como diálogos encobertos e porisso bastante deli-mitadas apresentam-se as poesias cujo título contém

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uma apóstrofe: An den Mond, An Schwager Kronos,A Nosso Senhor, As Chagas, To Niqht, To Autumn,Au oent, etc. Em tais casos, o título contribui maispara a concordância com o mundo especial da poesiado que pálidas designações como «canção» ou «soneto».Mais significativo ainda é aquele tipo em que se relataa situação do espaço ou do tempo que dá origem àpoesia: Au Septembre, Crépuscule de dimenche d' été,1m Mai, lm Wald, Auf dem See: muitas vezes encon-tra-se isto ligado com a designação do género: Hinoda Manhã, Canção da Noite, Mailied, Chant d'eutomne.

Todos estes modos de intitular as obras são fáceisde compreender; se os títulos não existissem, o próprioleitor sem dificuldade os acrescentaria. Exercem asfunções de uma espécie de introdução à poesia. Mashá ainda a possibilidade de ligar mais nitidamente poesiae título, de fazer do título parte de todo o poema. Emtais casos toma às vezes um aspecto misterioso, impene-trável, que só se deixa alcançar em toda a amplitudedo seu sentido depois de se escutar toda a poesia.Quando Antero denomina os seus poemas: Redenção,Das Llnnennbere, Loqos, - o título forma nestes casosprecisamente o centro misterioso da poesia.

Pelo contrário, observa-se o costume, especialmentea partir do fim do século XIX, de não escolher nenhumtítulo próprio, mas sim de utilizar com este fim aspalavras iniciais. A atitude que a isto levou é, nãoraras vezes, totalmente oposta à atitude retórica.O poeta quer afastar toda a ídeía de que se trata, nasua poesia, dum discurso sobre determinado tema; nãoquer causar a impressão de que se fala num estado dereflexão e a grande distância do conteúdo. A suapoesia deve ser tomada como onda que se ergue quase

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imperceptivelmente e volta a desfazer-se. Pode seruma atitude impressionista que determina aqui atécnica.

A mesma atitude determina também, em muitasdestas poesias, o princípio delas. Uma técnica própriapara iniciar poemas revela-se logo: aqueles princípiosténues com «e» ou quaisquer outras afirmações, queacordam em nós uma certa impressão, como se apoesia continuasse um discurso já há muito iniciado.A poesia Les poêtes de sept ens de Rímbaud começa:«Et le mêre, fermant le livre ... »; a poesia lshmeel dePalmer principia da seguinte forma: «And Ishmeelcrouch'd beside ... »: Adlerstrop de Edward Thomascomeça com o seguinte verso: «Yes. I remembetAdlerstrop»: e a Bellede des êusseren Lebens de Hugovon Hofmannsthal do seguinte modo: «Und Kindetwechsen auf ... »

Por outro lado distinguiu Mallarmé em Le Mystêredens les lettres (Divagations) dois usos convenientesde iniciar uma poesia em que põe a questão sob oponto de vista do princípio «misterioso»: - ou deviaressoar no início uma «Ianfarra estridente», de maneiraque na surpresa por ela provocada a poesia se pudessedesenrolar. Esta técnica encontrou Mallarmé muitasvezes aplicada em Vítor Huqo, mas também o prín-cípio do seu Aprês midi d'un Faune já foi citado comoexemplo:

Ces nymphes. je les veux perpétuer ...

Ou então deviam acumular-se inicialmente pressen-timentos e dúvidas de um modo ainda obscuro, paraserem conduzidos então a um fecho brilhante. Ao exa-

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minar, porém, a própria obra de MaIlarmé, verifica-selogo que não bastam estes dois tipos. Demais o segundotipo mostra já que o princípio da poesia é muitas vezesdeterminado pela construção total desta e só muitocondicionalmente tem técnica própria.

No domínio da balada tem sido mais fácil indicartipos e técnicas rígidas, e vários poetas participaramna discussão de tais problemas. Assim uma baladacheia de acção inicia-se, de preferência, com palavrasdirectas pronunciadas por uma personagem (exemplo a).ou com uma pergunta que fica indeterminada quantoà sua proveniência e à sua direcção (exemplo b):

a: Graf Douqlas, presse den Helm ins Haar(Conde Douglas. põe o elrno na cabeça)

{Strachwf tz , Das Hera ,'0/1 Doug/as)

b: John Maynard. Wer war [ohn Maynard?(John Maynard. Quem foi [ohn Maynard?)

{Foutaue , Jo '", Il1ayJlard)

Pelo contrário, o poeta Bõrríes von Münchhausenrecomenda principiarem-se as baladas mais líricas comum «acorde preparatório» [stimmender Akkord). Com-preende ele por isso uma estrofe ou um grupo de versosque não esteja em conexão com a própria acção, masque faça com que o leitor se ponha em consonânciacom o tom da poesia.

As questões técnicas da lírica tiveram um papelmais importante na poesia das épocas passadas do quenos dois últimos séculos. Havia uma tradição de deter-minadas práticas susceptíveis de serem aprendidas, etanto ao poeta como ao público não parecia, de modonenhum, prejudicada a recepção estética duma boa

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poesia pelo facto de ser possível observar o manejodestes meios pelo poeta; muito pelo contrário, o empregohábil de práticas conhecidas era recebido pelos peritoscom pleno agrado e consentimento.

A investigação dos «topos» Fez-nos reconhecer tam-bém estes dados com toda a clareza e olhar paradentro da oficina dos poetas. Maria Rosa Lida mos-trou no estudo já mencionado, «cómo un esquema lJir~giliano, Ia oposiciôn de séries de ccmpereciones en elcanto emebeo (Bucolicas, VII)>> é aproveitado e tra-balhado no lirismo espanhol do Renascimento. O pró-prio Ernst Robert Curtius esboçou entre outras a hís-tória dum esquema desde os antigos (Tiberianus) atéao século XVII, ao qual dá o nome de «esquema deadição» (Summationsschema): «O característico é aadição final dum número de exemplos simetricamenteapresentado». Curtius dá como primeiro exemplo doRenascimento um soneto do italiano Panfio Sasso (1527);depois mostra-nos exemplos de Calderón, Lope e outrospoetas espanhóis do período áureo. Da literatura Fran-cesa menciona Ronsard e outros. No lirismo portuguêsdaquela época não são raros os casos. Damos apenasum exemplo em que Camões aproveitou o esquema deadição para construção dum soneto (Iê-Io mais vezes) :

De quantas graças tinha, a naturezaFez um belo e riquíssirno tesouro, .E com rubis e rosas, neve e ouro,Formou sublime e angélica beleza.

Pôs na boca os rubis, e na purezaDo belo rosto as rosas, por quem mouro;No cabelo o valor do metal louro;No peito a neve em que a alma tenho acesa.

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Mas nos olhos mostrou quanto podia,E fez deles um sol, onde se apuraA luz mais clara que a do claro dia.

Enfim, Senhora, em vossa composturaEla a apurar chegou quanto sabiaDe ouro, rosas, rubis, neve e luz pura.

Os peritos terão certamente considerado enfeiteespecial o facto de Camões empregar a «adição» noprincípio e no fim, para o que se não encontra exemploem Curtius.

Estes breves exemplos são suficientes para mostrara importância da tradição retórica no lirismo daquelesséculos. A conclusão é imperiosa: quem se dedicar àpoesia da Idade-Média, do Renascimento ou da épocabarroca, deve primeiramente familiarizar-se com asbases retóricas de toda essa poesia,

É verdade que não se deve deduzir disto a opiniãode que a observação das práticas retóricas possa substi-tuir o tratamento de problemas ulteriores; devido pre-cisamente às últimas observações sobre os preceitosconstrutivos da retórica, deve acentuar-se que porissomesmo os problemas da composição poética não poderãoficar esgotados. O capítulo sobre a construção revelou--nos problemas mais profundos.

2. Problemas de apresentação do drama(Técnica do Drama)

Também no drama existe qualquer coisa corres-pondente à poesia monologada no lirismo. Váriosdramaturgos escolheram, por exemplo, a forma dosonho: as primeiras cenas e as últimas passam-se na

Raphael
Realce
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«realidade» poética, ao passo que o drama em si sedesenrola num campo próprio; pode tratar-se do espaçodo passado, do futuro, dum outro presente ou, final-mente, dum espaço fantástico. Gerhart Hauptmann,em Elga, actualizou deste modo o passado. Para oemprego do sonho teve como fonte de inspiração DerTreum ein Leben (O sonho - uma vida) de Grillparzer,o qual faz viver ao herói, que se encontra numa situaçãoconflituosa, como seria o seu futuro se ele seguissea sua inclinação. O próprio Grillparzer escreveu oseu drama sob uma certa influência de La vida essueiio de Caldéron, No célebre Sonho do sueco Strínd-berg, só o título indica o carácter de sonho da peça.Alguns líbretos de óperas aproveitaram também a mesmatécnica de dois planos diferentes, como Palestrina deHans Pfitzner ou Mona Lisa de Max von Schilling.Em Hennelles Himmeljehrt (Ascensão de [oeninhe},Gerhart Hauptmann já experimentara os dois camposdiferentes, sobrepondo o campo das visões ao da«realidade» .

A escolha do sonho enquadrado na obra exige aresolução de outras questões técnicas. O poeta deveescolher o processo apropriado para fazer a passagempara o mundo do sonho duma maneira bastante nítida;deve resolver de que modo e com que processos pre-tende pôr em relevo o carácter de sonho. O Sonhode Strindberg é, sob o ponto de vista técnico, um dosdramas de sonho mais interessantes, influenciando emmuitos respeitos o drama do chamado Expressionismo.O poeta é, especialmente na realização do carácter desonho, ajudado pelo encenador. Na arte moderna deencenação desempenham um grande papel os véus degaze e os efeitos de luz. Parte da técnica dramática

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depende sempre dos meios técnicos empregados no palcoda época. O historiador literário, que ao examinardeterminado drama não conheça o palco respectivo,desvia-se fàcilmente para um caminho errado.

A forma de palco mais frequente na Idade-Médiaera o chamado «palco simultâneo» [Simultenbiihne},Neste encontram-se ao mesmo tempo todos os cenáriosnecessários ao decurso da acção: os setores movem-seduma parte do palco (para que serve muitas vezes apraça das cidades) para a outra. O estilo da maneirade representar torna-se, pelos fins da Idade-Média,cada vez mais realista; interpretaríamos e havíamos decriticar erradamente os textos dela recebidos, se nãotomássemos em conta a sólida objectívídade que lhesservia de complemento.

Palco inteiramente diferente é o que nos mostra oteatro do Humanismo. Ultimamente surgiram dúvidassobre o facto de se poder ainda considerar o chamado«palco de barraca» {Bedezellenbiihne] a forma caracte-rística do teatro humanista, como durante muito tempose fez. Por «palco de barraca» compreende-se um palcodianteiro neutral e sem bastidores que é limitado pelaparte de trás por sucessivas cortinas. Os actores podementrar e sair pelos lados ou pelas cortinas; as barracasrepresentam casas; quando abertas, indicam o interiorduma casa.

A luta travada antigamente com tanto ardor quantoà reconstrução do palco de Shakespeare e a devidainterpretação dos desenhos conservados (sobretudo odo holandês de Wítt}, pode considerar-se hoje ter-minada. O palco típico de Shakespeare tinha três divi-sões. O campo principal de acção era uma plataformapouco elevada, para onde o público podia olhar de

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ANALISE E INTERPRET AÇAO

três lados. A ideia mais antiga de que nele não haviacenário, mas sim de que se indicava por meio de cartazeso seu respectivo significado, está hoje posta de parte.Cada ambiente exigido pela cena, quer fosse uma rua,um bosque, uma sala, etc., era marcado distintamentepor cenário. Por trás Iiqava-se a este palco anterior- o chamado «palco de avental» - um palco posteriormais pequeno, separado por uma cortina. A rubrica decena em King Henry VIII de Shakespeare: «Norfolkopens a folding door. The King is discovered sittinq,and reading pensively» - relere-se certamente a estabarreira entre o palco anterior (neste caso: «An Ante~chamber in the Palace») e o palco posterior (neste caso:o gabinete do rei). Por cima estava situado o palcosuperior, em forma duma varanda bastante estreita.Devido às viagens dos «comediantes ingleses» atravésdo continente, o palco shakespeariano tornou-se conhe-cido e de grande influência.

O século XVII estabeleceu as bases da praxe, aindahoje tradicional, das representações cênicas. Construí-rarn-se então em toda a parte casas próprias de espectá-culos, i. é, teatros, e constituiu-se firmemente a classedos actores (a partir do século XVII aparecem asactrizes) . O apetrechamen to do palco alcança um nívelespantoso nos teatros das maiores cidades, especial-mente nos teatros de corte, por meio de bastidores, vistaspintadas, alçapões, máquinas de voar e outros recursostécnicos. Sobretudo no século XVII cria-se a forma aindahoje tradicional do «palco mágico» (Illusions- ouGuckkestenbiihne), em que o público só dum lado podeolhar para as tábuas que representam o mundo. Arquí-tectos e pintores colaboraram com todos os meios paracompletar a ilusão.

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o que no século xx se esperava - que se ope-rasse uma revolução no teatro devido à adaptação denovos recursos técnicos (do filme, da rádio, do alto--falante, etc.) - ainda não se comprovou. As tentativasaté aqui empregadas da introdução de tais processosnovos não obtiveram ainda êxito plausível. Antesparece que o teatro, devido à concorrência do cinema,mostra uma tendência, não para misturar todos osprocessos técnicos possíveis, mas sim para penetrar denovo no que lhe é peculiar, na sua própria essência.Não foi de grande importância o facto de o teatro seaproveitar do telefone; no entanto obteve com ele umnovo meio para romper o espaço limitado e isoladoda cena. Há realmente algumas experiências interes-santes com a introdução do telefone no drama moderno(especialmente de autores franceses), mas não se podeafirmar que seja de profunda influência na sua história.

O problema técnico de como se podem representaracontecimentos simultâneos que se desenrolam fora dopalco é tão antigo como o próprio teatro. Telefone,alto-falante, aparelho de televisão são soluções moder-nas dum problema antigo. Nem sempre será possívelconcretizar por meio de vozes o que fica para lá dopalco, como Calderón e Goethe fizeram ressoar a vozde Deus. Uma outra solução, vinda já dos antigos,deste problema técnico é a chamada «teichoscopia»:um observador, colocado em cima dum muro ou dumatorre, relata aos actores (e ao público) o que se passalá fora. A «teichoscopie» é ainda utilizada muitas vezesno drama actual, quando se trata de batalhas, naufrá-gios e casos semelhantes, sempre difíceis de apresentarcenicamente aos olhos dos espectadores. Além disso,sonhos e visões podem contribuir para levantar os

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limites da cena. também em sentido temporal. actua-lizando o passado ou o futuro. E finalmentefica sempre a possibilidade de dividir o palco eapresentar ao espectador dusa séries de seções aomesmo tempo. possibilidade técnica de que o dramado século xx de novo se tem servido com Irequência.Provém também dos antigos o «relato do mensageiro»,processo técnico para fazer reviver acontecimentos maisrecentes.

Muitas vezes todo o drama se dirige para o passado.i. é. os acontecimentos decisivos já se desenrolaram erevelam-se pouco a pouco ao espectador. enquanto aacção representada no palco apenas mostra os seusúltimos efeitos: o que acontece perante nós não é. porassim dizer. senão o último acto duma acção já há muitotempo em pleno decurso. A este tipo de drama dá-seo nome de drama analítico. O exemplo mais célebreé o Rei Edipo de Sófocles. Modernamente encorpora-seneste tipo o drama romântico de destino; Os Espectrosde Hendrik. Ibsen são a obra mais representativa destaespécie dentro do Naturalismo.

O levantamento dos limites cênicos realiza-se. emcerto sentido. também pela chamada «peça na peça».Os exemplos mais conhecidos são o Hamlet e o Sonhoduma Noite de Verão de Shakespeare, dois dramas emque o mesmo processo técnico serve para fins absoluta-mente diferentes. A «peça na peça» é frequente tambémno drama espanhol (p. ex. Lope de Vega: Lo FingidoVerdadero). Seguindo as pegadas de Shakespeare edos espanhóis. usou Tieck repetidas vezes deste pro-cesso nos seus dramas românticos.

Faz parte da técnica dramática a solução do pro-blema referente à maneira como o dramaturgo quer

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dar a conhecer ao público o ponto, ou antes: a situaçãode partida do drama. Ao conjunto das cenas queservem para este fim dá-se o nome de exposição. O seutermo é geralmente marcado pelo primeiro momentoexcitante com que começam a tensão temporal e odecurso dramático. No Frei Luis de Sousa estende-sea exposição até à quinta cena do primeiro acto. O pri-meiro «momento excitante» é a comunicação de queos governadores escolheram para sua residência opalácio de Manuel de Sousa. (Poder-se-ia perguntarse não será a peste que representa o primeiro momentoexcitante, colocado então ainda dentro da exposição.Contra tal interpretação erque-se, porém, o modo comoé usado. As palavras de Madalena «Mas em Lisboaainda (!) há peste» não anunciam um verdadeiromomento excitante. E nitidamente se reconhece que apeste é só um meio técnico que deve preparar essemomento: por causa da peste mudaram-se os qover-nadores para o campo, escolhendo para residência opalácio de Manuel de Sousa.)

Nos dramas mais antigos há muitas vezes uma per-sonagem especial que, numa espécie de prólogo, fazao público a exposição; Gil Vícente, por exemplo, ser-viu-se deste meio várias vezes. Intimamente relacionadacom isto encontra-se a prática, igualmente muito usadaoutrora, que consiste em as próprias personagens Fala-rem sobre a situação logo que entram em cena. Sentimosque estes processos técnicos deixam de ser dramáticose, de facto, são de carácter tipicamente épico, porhaver neles um narrador medianeiro entre a «realidadepoética» e o público.

Na caracterização das personagens distinguem-se,além da auto-caracterização, a caracterização directa e

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a indirecte. Entende-se por caracterização directa oconjunto das declarações feitas por outras acerca decerta personagem. O espectador fica desta forma escla-recido sobre o carácter dessa personagem. Contudo umescritor hábil dará em tais casos somente uma explicaçãoparcial, para não destruir logo toda a expectativa.E não raras vezes ateia a impaciência do público porcaracterizações dírectas que se contradizem, ou até nosencaminha erradamente por meio duma caracterizaçãopropositadamente inexacta. (Lessing na Emília Galottie Schiller na Maria Stuert serviram-se da descriçãocontraditória da protagonista. Goethe utilizou o pri-meiro acto do Egmont para uma tríplice descrição doherói antes de o introduzir em cena só no segundo.)A caracterização indirecta apresenta-se-nos quando oespectador deve tirar conclusões acerca dum carácter,tomando por ponto de partida as palavras e acções daprópria personagem. Estas duas formas andam namaior parte das vezes ligadas, aparecendo primeiro acaracterização directa; o dramaturgo tirará efeitos espe-ciais da hábil preparação para a entrada do seu herói.Mais importante ainda é a questão da devida prepa-ração quanto ao filme; atendendo ao número natural-mente maior de papéis, devem as figuras principais serdevidamente postas em relevo.

Todos os dramaturgos têm de solucionar os pro-blemas técnicos da exposição, caracterização, entradae saída das personagens, etc. Entretanto a escolha dosprocessos técnicos a adoptar não dependerá exclu-sivamente da situação singular e do efeito produzidoapenas nela. Para a escolha definitiva será antes deter-minante o estilo de toda a obra - a não ser que a faltade conhecimentos técnicos e de prática teatral determine

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OS processos aplicados pelo autor. A técnica relativa-mente homogénea da tragédia francesa e a firmeza dasua tradição são prova do estilo fortemente marcadodesta poesia dramática. Mas naturalmente esta técnicanão deve considerar-se como a solução melhor e defi-nitiva para todos os dramas. Uma força expressivadiferente daquela, i. é, um outro estilo, levará necessà-riamente a uma outra técnica.

Aos problemas técnicos de que as diferentes forçasexpressivas, manifestadas pelas várias épocas e drama-turgos, têm julgado duma maneira totalmente diversa,pertence também a questão do emprego e da confi-guração do monólogo. Devido ao princípio da verosi-mílhança foi, por exemplo, evitado pelo drama doNaturalismo. Conforme as diversas funções que omonólogo exerce, podemos divídi-lo em várias espécies.No plano inferior encontra-se o monólogo «técnico».Serve de expediente para o palco não ficar vazio.A tragédia francesa oferece exemplos. O monólogo«épico» serve para comunicar ao espectador aconteci-mentos anteriores que não foram apresentados no palco.No monólogo «lírico» exprime uma personagem os seussentimentos e emoções, ao passo que no monólogo de«reflexão», como o nome indica, faz reflexões sobrecerta situação ou tema. Finalmente no monólogo«dramático» prôpriamente dito toma-se uma decisãonum conflito, decisão essa importante para o prosse-guimento da acção. As formas enumeradas raras vezesaparecem puras na prática; rro entanto é sempre possívelreconhecer a função principal do monólogo. Muitosdramaturgos seguiram o exemplo de Shakespeare natécnica da configuração do monólogo, sobretudo namaneira como ele se transforma em diálogo do herói

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consigo próprio ou com um «tu» imaginário, ou final-mente ainda com um objecto concreto. Um exemplocélebre para este último caso é o «diálogo» de Hamletcom a caveira; de maneira semelhante se passa o«diálogo» de Joana de Arc com o helmo na Jungfrauvon OrZeans de Schiller.

Garrett, no Frei Luís de Souse, foge um pouco aomonólogo. Além de dois monólogos técnicos (11, 9 e111, 4), há como primeira cena um curto monólogo deexposição, animado pelo «diálogo» com o livro queMadalena está a ler, e um monólogo dramático [dis-farçado) (I, 11), em que Manuel de Sousa decidedeitar fogo à própria casa. :B igualmente muito curto.Para ter conhecimento da técnica dramática de Garrettseria vantajoso observar o monólogo em todos os seusdramas e comparar os resultados com a prática napoesia dramática portuguesa e estrangeira que tinhadiante de si.

3. Problemas de apresentação da ~pica(Técnica da Arte Narrativa)

A técnica da arte narrativa deriva da situação prí-mitiva do «narrar»: há um acontecimento que é narrado,um público a quem se narra, e um narrador que servede intermediário a ambos.

Por meio de um artifício técnico pode concretí-zar-se e intensificar-se esta situação primitiva: o autoroculta-se então atrás de um outro narrador na bocado qual põe a narração. Precisamente a narração, cujonome já indica que nela se revela, o mais vincada-mente possível, a situação primitiva do narrar, tem-se

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servido de preferência deste meio desde sempre. Bemconhecida é esta utilização no Decemerone de Boccaccio,aproveitada em muitas outras obras (Chaucer: Center-burq- T ales; Margarida de Valois: H eptemeron; Gíam-battista Basile: Pentameron; Goethe: Unterhaltungendeutscher Ausqetoenderter, etc.). A partir do princípiodo século XVIII foram notáveis também como fonte deinspiração as Mil e uma Noites que só então foramtraduzidas para francês por iniciativa de Galland, Nãosó, porém, para ciclos, mas também para narrativassoltas se utilizou bastantes vezes tal «moldura». Grandeparte da obra narrativa de Theodor Storm e quasetoda a de C. F. Meyer apresentam esta característica,e ambos os escritores levaram à perfeição a técnica da«narrativa enquadrada» (Rahmenerziihlung).

O autor de uma narrativa enquadrada cria, pormeio do público que apresenta e da figura fixada donarrador, uma perspectiva clara e limites fixos dentrodos quais terá agora que mover-se. Mas a limitaçãodesta técnica proporciona ao mesmo tempo tambémao autor as possibilidades mais fecundas. Quando,por exemplo, Storm no seu Schimmelreiter (Cavaleirodo Cavalo Branco) põe a narrativa na boca dum mestre--escola ilustrado, as coisas mágicas e sobrenaturais,que ele relata abanando a cabeça, recebem uma ênfasee confirmação especiais. (A narrativa enquadrada é ummeio técnico excelente para satisfazer uma exigênciabasilar que o leitor reclama da arte de narrar; isto é,a credibílídade do que se narra. Formam uma excepçãoas «histórias de patranhas» (Lügengeschichten). exis-tentes em todas as literaturas. Mas precisamenteo facto de este tipo de narrativas ser constituídocomo tal pelo seu carácter «mentiroso», mostra que

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em todos os outros casos lnexoràvelmente se impõe acredíbílídade.) C. F. Meyer, na narrativa Die Hochzeitdes Monchs (O casamento do Monge), escolhe Dantepara narrador, dando assim à obra atractivos especiais,visto que o autor sabe muito bem satisfazer todas asexigências impostas por tal escolha. Esta narrativapode simultâneamente servir de solução magistral deoutro problema técnico posto pela narrativa enqua-drada e que se refere à maneira como a «moldura»e a própria narrativa se devem unir: Dante, comonarrador, aproveita-se de figuras e acontecimentos da«moldura» para ilustrar figuras e acontecimentos doconto enquadrado, de maneira que surgem laços estrei-tos que ligam os dois ambientes. No conto intituladoDer Heilige (O Santo). C. F. Meyer põe a falar umsimples bêsteíro. Neste caso, o atractivo do contoreside precisamente no facto de a natureza simples donarrador não ser capaz de abranger as bases dos acon-tecimentos nem a psicologia complexa das persona-gens, de maneira que o leitor é constantemente obrí-gado a completar e a aprofundar o conteúdo essencialda obra.

Com o auditório, que numa tal narrativa o poetanos põe diante dos olhos, consegue ele um meio parainfluenciar os leitores reais. Um tal auditório inte-grante pode servir para, por assim dizer, sentir antesde nós, pode mostrar-nos como é que devemos recebero que está a ser narrado. Assim, por exemplo, o con-vidado do casamento, a quem o velho marujo contaa sua história no Ancient Mariner de Coleridge, foidesignado como o «espectador ideal». Efectivamenteo seu papel pode-se comparar ao do coro antigo que,sob a impressão dos acontecimentos, vai exteriorizando

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o que sente. Mas também nas «narrativas na terceirapessoa» (a que os alemães chamam Er-Erzêhlunqen}não é raro encontrar estes espectadores exemplaresque neste caso são figuras que vão vivendo o que senarra. No Llnheimlicher Gast de E. T. A. Hoffmann,a figura da Obristin não retém as suas dúvidas acercados «lados nocturnos da natureza». Ela é a personífí-cação do bom senso, e o leitor de bom grado se iden-tifica com esta única figura normal no meio de todosos outros supersticiosos. Mas quando ela no fim con-fessa: «Assim tenho que acreditar em coisas contraas quais se revolta o meu ser mais íntimo ... », entãotambém o leitor é obrigado a levar a sério o que foinarrado, ou pelo menos a conceder-lhe certo grau devalidade.

Outras modalidades da narrativa enquadrada são aficção de papéis achados ou a afirmação da descobertade documentos procurados com afã. Assim se nosapresenta Díckens no princípio dos Pickwick Paperscomo cronista que se esforçou com afinco por encon-trar os documentos «autênticos». Quando se escolhea ficção de uma crônica, surgem logo determinadasexigências técnicas no que diz respeito à atitude nar-rativa, à linguagem, etc. O escritor Meínhard, autordum conto intitulado Die Bernsteinhexe (A Bruxa deÂmbar), conseguiu de tal maneira dar-lhe o carácterduma crónica do século XVII que o público, quando elese deu a conhecer como autor, não o acreditou, capací-tado da autenticidade desta suposta crónica.

O Romantismo soube tirar efeitos especiais daficção dum editor. No Keter Murr (O Gato Murr)de E. T. A. Hoffmann, misturam-se constantementepartes da autobiografia do gato com as da biografia

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do maestro Kreísler. Isto justifica-se pela ( fingida)negligência do (fingido) organizador que não tomouem conta que o gato escreveu a sua vida em folhas,no verso das quais estava descrita a vida do maestro.A mudança constante dos ambientes e das perspectivase a maneira abrupta como os dois contos se intercalamtornam possíveis os efeitos mais surpreendentes.

Nas narrativas apresentadas por um narrador fictícioquase sempre o narrador conta os factos como se ostivesse vivido. A esta forma de narrar dá-se o nomede «conto na primeira pessoa» (narração subjectiva:Ich-Erzêhlung ), O seu oposto é o «conto na terceirapessoa» (narração objectiva: Er-Erzêhlunq}, no qualo autor ou qualquer suposto contista fica fora do planodos acontecimentos. Como terceira possibilidade decontar costuma distinguir-se a forma epistoler, em que,por assim dizer, várias pessoas desempenham o papelde contistas. (Há casos como o do Werther de Goetheem que todas as cartas são da autoria da mesma pessoa.)Como se vê, trata-se no fundo duma modificação doconto na primeira pessoa.

Mas as alterações são tão importantes que se jus-tifica considerar este terceiro tipo como especial: nosdois outros, os acontecimentos são relatados, geral-mente, como uma coisa já passada. Na forma epistolaro ponto de vista do respectivo narrador está aindadentro do decurso da acção. Ele próprio vive na tensãotemporal, de maneira que se atribui aos contos destetipo, e com razão, um certo cunho dramático, comoaliás já Goethe notou.

A narrativa epistolar e, em geral, a narrativa naprimeira pessoa apresentam de novo, e devido à fixaçãonítida do ponto de vista, determinadas exigências

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ao autor, proporcionando-lhe, aliás, também certasvantagens. A perspectiva uniforme e bem limitada,em vez da «omnisciência» épica, dá unidade e vivaci-dade à obra, obrigando, porém, ao mesmo tempo, atomar em conta cuidadosamente a verosimilhança.Quando Gottfried Keller transformou a segunda ediçãodo seu romance Der qrãne H einrich, reescrevendo-acompletamente na primeira pessoa, nem sempre con-seguiu vencer todas as dificuldades, visto que entãosó podia ser relatado o que era vivido ou experimentadopelo narrador.

Também à narrativa na primeira pessoa se atribuiucerto carácter dramático, por o leitor entrar nela emcontacto imediato com a realidade poética. Mas, sobre-tudo, a narrativa na primeira pessoa reforça a impressãode autenticidade que a narrativa enquadrada, como jávimos, confere à matéria narrada. Já na antiguidadese procurou dar desta maneira credíbilidade a históriasfantásticas e aventuras de viagens, e as aventuras doembusteiro Barão de Münchhausen ou as estranhasexperiências do protagonista de Erewhon, de SamuelButler, adquirem um carácter cómico especial pelo factode serem apresentadas como vividas pelos própriosnarradores.

A narração na primeira pessoa é extremamenteapreciada também no romance. Encontra-se sempreno .rornance «picaresco», um dos tipos imortais deromance. Na literatura portuguesa da actualidade aobra O Malhadinhas de Aquilino Ribeiro é um exemploeminente. A forma da primeira pessoa encontra-sealém disso frequentes vezes no romance humorístico(em Fielding, Díckens, Machado de Assis, tambémn'A Cidade e as Serras de Eça de Queirós). Predomina

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ainda no romance de formação e de evolução (Keller :Griiner Heinrich: Díckens . David Copperfield: Stifter:N echsommer, etc.}, e a partir do Werther de Goethetem sido usada para apresentação própria de figuraspsicologicamente interessantes (Benjamin Constant:Adolphe; Lamartine: Repheel, etc.) .. Não devemosesquecer, finalmente, as influências provenientes daautobiografia. ,É incalculável a repercussão das Confi~sões de S.to Agostinho na literatura, sempre que se tratada apresentação duma vida invulgar e que passa peloslados mais baixos da existência (p. ex. De Quincey:Confessions of en English Opium Eeter),

Também no romance pode naturalmente a díscre-pância entre a perspectiva limitada do narrador e acomplexidade e profundidade dos acontecimentos nar-rados produzir efeitos especiais, como já vimos noconto de C. F. Meyer intitulado Der Heilige. Assim,por exemplo, em Le Gtend Meaulnes de Alain Fournier,o leitor tem de pôr muito da sua parte, visto aperspectiva do narrador não ser suficiente. As res-tantes faltas de clareza e até enigmas são deliberada-mente postos pelo autor; a narração na primeira pessoa,evidentemente, foi escolhida como processo técnicoadequado, sob todos os pontos de vista, ao estilo detoda a obra.

A escolha dum narrador fictício nas narrativasenquadradas é simplesmente uma intensificação dasituação primitiva de todas as narrativas, isto é,daquela tríade formada por narrador, matéria narradae público. Dá~se em todas as obras narrativas. A rela-ção do narrador com o público e com a matéria(objectividade) denomine-se «atitude narrativa». A suaexacta compreensão é da maior importância para a

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interpretação da obra. A atitude narrativa adoptadapor cada autor está na mais íntima relação com oestilo da obra; surgem ao mesmo tempo determinadasexigências técnicas que de qualquer modo têm de serresolvidas.

Na atitude para com o público, que é um dosaspectos do Ienórneno, são possíveis grandes diferenças.Todo o narrador adopta uma atitude para com o seupúblico, mesmo quando não a dê a reconhecer clara-mente. Ele teria afinal falhado na sua tarefa se nãoconseguisse prender de qualquer modo o seu auditórioe interessá-lo no que tem a contar. Não é semprepreciso empregar meios drásticos como faz o romanceem fascículos que se interrompe na altura de maiorexpectativa e faz esperar a continuação - técnica típicados romances de jornais e revistas.

Consoante a atitude para com o público diferen-ciarn-se já algumas espécies da arte de contar. Podedizer-se que nos romances, contos, novelas, etc., o nar-radar se encontra no mesmo plano que o seu público.Especialmente na arte narrativa burguesa do século XIX

predomina o esforço para manter a mais curta distância,a mais estreita intimidade com o leitor. Conhecem-seas apóstrofes célebres ao «querido leitor», e conhecem-seos processos técnicos para aumentar esta intimidade:as alocuções, as divagações com o leitor durante anarrativa, o diálogo já no prefácio, etc. Camilo fornecebastantes exemplos, ao passo que Alexandre Herculanose mostra mais reservado no emprego de tal método.Mas quando, por exemplo, na penúltima frase doEurico escreve: «Depois, repentinamente, soltou umadestas risadas que fazem eriçar os cabelos ... », as pala-vras «destas risadas» testemunham a proximidade do

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leitor, pode acrescentar-se até: do leitor com igual for-mação. Na mesma dírecção actua a exclusão expressada massa: conta-se apenas para umas poucas almascongeniais. Machado de Assis, na Sua obra-primaMemórias Póstumas de Brás Cubas, conta apenas comdez leitores aos quais, aqui e além, se dirige individual-mente. E o narrador da Chronik der Sperlíngsgasse deRaabe escreve afinal as suas memórias só para si mesmo.

Que os autores dessa época pensam em leitores de umdeterminado ambiente e de uma determinada formação,revela-se também no traço típico das narrativas burgue-sas do século XIX: a predilecção por citações. Em Camiloos títulos indicam já muitas vezes a atitude narrativa,bem como o público a que se destina a obra: O Beme o Mal; A Queda dum Anjo; Voltareis, ó Cristo?; Amorde Perdição; Amor de Salvação; Purgatório e Paraíso;Luta de Gigantes; Agulha em Palheiro; etc. Na Ale-manha, Goethe e Schíller forneceram inúmeros títulospara os romancistas burgueses: Über ellen Gipfeln(Heyse); Problematische Neturen (Spielhagen). etc.:na Inglaterra, Pilgrim's Progress de Bunyan forneceucitações e títulos (Thackeray: Vanity Fair).

Totalmente diferente é a atitude do narrador peranteo público na epopeia. Quando Goethe e Schiller pro-curaram esclarecer as diferenças essenciais entre dramae epopeia [Übet epische und dramatische Dichtunq},determinaram a maneira de expor no drama como sendo«absolutamente presente», e a da epopeia como «abso-lutamente passada». Viam o poeta épico pela imagemdo rapsodo que, como «homem sábio», «alcança coma vista os acontecimentos com calma circunspecção».Não aparece pessoalmente ao público, mas sim recita«por detrás duma cortina». De facto, é típico da maneira

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epica de expor que o narrador se conserve num planosuperior ao público. Ele fala como rapsodo, como vate,como iniciado; é quase a voz das Musas que se dirigea nós através dele. Resulta assim um tom caracteri-zado por certa dignidade e solenidade, uma espécie de«canto». Nas primeiras linhas das epopeias dá-seexpressivo relevo a isto. Estabeleceu~se aqui uma tra-dição firme, em parte formulada pela retórica. Seguiu-sea técnica usada pelos antigos: nos primeiros versosexpunha-se o tema (sinal duma visão que tudo abrange),apresentava-se o narrador {propositio] e ficava deter-minada a elevação do tom:

Menin aeide, Thea ... (HOMERO)

Arma virumque cano ... (VrRGfLlO)

Le donne, i cavalíer, l'arrne, gli arnori,Le cortesie, l'audací impresi io canto... (ARX>STO)

As armas e os barões assinalados ...Cantando espalharei... (CAMÕES)

Of Man's first disobedience ...Sing, Heavenly Muse ... (MILTON)

Sínq, unsterblíche Sede, der sündigen Menschheit Erlõsunq ...(KLOPSTOCK)

o estado de calma reflexão em que o poeta épicoexpõe já parte do segundo aspecto da atitude nar-rativa, quer dizer, da atitude do narrador perante oseu objecto. Como expressão da grande distância comrelação ao assunto narrado e da sua completa visão deconjunto desenvolveu-se precisamente na epopeia umtraço estilístico (poderíamos dizer também: uma técnica)

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que certamente se pode encontrar noutras narrativas,mas então sempre igualmente como sintoma da omnís-ciência épica: a antecipação. Poder-se-ia pensar que,devido à antecipação dos acontecimentos futuros, sedestruía a expectativa tão necessária ao narrador e queele deseja exactamente despertar. De facto, um romancepolicial seria de pouco interesse se logo no princípiose fizesse suspeitar o final, e os romances policiais nãopertencem fundamentalmente à literatura que se podee se quer tornar a ler. Mas o interesse da arte denarrar não é de natureza tão grosseira e material quepossa sofrer com uma indicação sumária do desfecho.Um exame mais minucioso da técnica de antecipaçãomostra ainda que o véu se levanta só um pouco edum só lado, resultando disto antes um aumento daexpectativa no «como» do decurso e nos caminhos quevai seguir. Não raras vezes se estendem as anteci-pações apenas a fins de fases, mas não ao total. demaneira que o leitor é conduzido de capítulo a capí-tulo, e as antecipações contribuem ao mesmo tempopara a concatenação do conjunto. Deve ainda obser-var-se se as antecipações dizem respeito ao decurso daacção, ou à essência ideológica, ou ao lirismo. Nãosão raros os casos em que o narrador apenas dá asdisposições íntimas para o que há-de vir. A funçãomais importante das antecipações é, porém, dar umsentido vivo da unidade e do arredondamento do res-pectivo mundo poético. Na difusa vida quotidiana nãoparticipamos em muitas coisas com a devida intensidadeespiritual e emocional, porque sabemos que não che-garemos a conhecer a continuação e solução das ques-tões que se apresentam aos nossos olhos. Um simplesconhecimento de viagem que nos fala das suas preo-

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cupações, intenções e expectativas, talvez já na estaçãoseguinte vá desaparecer para sempre da nossa vista,e por essa razão concedemos apenas um interesse super-ficial às suas confidências. As antecipações na literaturadão ao leitor a plena certeza de que o mundo de cadaobra não é amado nem difuso e que será recompensadaa plena comparticipação da alma nas figuras e nosacontecimentos. Uma função secundária da antecipaçãoé finalmente a de contribuir também para a credíbilidadedos factos narrados.

O estudo da antecipação numa obra será de grandeimportância para a sua devida compreensão e escla-recimento: simultâneamente surge aqui um problemaque conduz à essência da poesia em geral e é por issoimportante para a ciência da literatura. O investigadorhúngaro Eugen Gerlõteí, que se consagrou a váriostrabalhos gerais e especiais sobre a antecipação, deua um dos seus estudos, denominado Die Vorausdeutungin der Dichtunq (A Antecipação na Poesia: - Heli-con 11) o subtítulo: Keime einer Anschauung vomLeben der Dichtunq (Germes duma Concepção da Vidada Poesia).

Sigamos agora os caminhos que levam da anteci-pação ao complexo de questões relativas ao tratamentodo tempo.

Não só o poeta épico, mas principal e Iundamen-talmente o narrador em geral encara o seu objectocomo algo já passado. Esta opinião foi combatida,por vezes, no que diz respeito ao romance e à nar-rativa, mas não com muita razão. Certamente, hánarrativas que suprimem o pretérito como tempoverbal de narrar e relatam tudo no presente. O leitorpresenceia deste modo uma acção que está a desenro-

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lar-se. Mas é também incontestável que tais livrosnão produzem os efeitos devidos; a sua atitude cons-tantemente «ofensiva» torna-os antes enfadonhos.Nota-se que uma tal mistura de elementos épicos edramáticos não é satisfatória. Por outro lado, a pas-sagem oportuna e ocasional para o chamado presentehistórico produz efeitos vivos e intensos; o granderomancista norueguês Knut Hamsun levou esta técnicaà mestria.

Há ainda outros processos para encurtar a dís-tância com relação ao passado narrado. Assim o narra-dor pode fazer desenrolar o que conta numa sequênciatemporal que corresponde exactamente à temporalídadeobjectiva do mundo real, fazendo coincidir o tempoobjectívo com o da obra literária. O exemplo maisconhecido da actualidade é a obra Ulysses de James[oyce, cuja leitura dura quase o mesmo tempo queos acontecimentos relatados. Facto idêntico foi ten-tado já há mais tempo; indicamos apenas o romanceKonrad der Leutnent de Karl Spítteler e o começo doHelianth de Albrecht Schaeffer. Mas em obras exten-sas essa coincidência torna-se impossível, visto queninguém é capaz de ler durante 24 horas sem ínter-rupção. Cheqar-se-ía finalmente a absurdos se sequisesse rigorosamente levar a cabo o sincronismo econceder talvez ao herói do romance o descanso danoite, supondo que o leitor também ia dormir, paracontinuar, na manhã seguinte, a leitura com o pequenoalmoço de ambos. Só um naturalismo extravagantepode pensar que se lucra com isto alguma coisa e nãoreconhecer que a essência da arte se prejudica gra~vemente com tal processo. Todo o leitor se identifica(e tem de identificar-se] a tal ponto com o mundo

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próprio duma obra artística que já não mede o tempoque a acção dum romance dura pelo decurso objectívodo tempo. (Não tocamos aqui no problema da discre-pância entre o tempo «objectívo» e o tempo sempreesubjectívo» do homem.) Abandonamo-nos complacen-temente à medida de tempo que o autor nos quer impore, quando sabe verdadeiramente do ofício, nos impõede facto. Permitimos-lhe - apesar de Lessing - des-crições de situações que gastam algum tempo: é comose o tempo para nós parasse. Por outro lado, seguimoso autor num voo sobre maiores espaços de tempo,quando os acelera devidamente. O tratamento do tempoe a sua técnica são, com efeito, um campo difícil mascompensador para a investigação literária.

É claro que o narrador não é totalmente soberano.A configuração especial do tempo numa obra con-forma-se com a concepção humana de tempo. Um heróique com os anos se tornasse cada vez mais novo sóseria possível nos contos de fadas, pois estes possuema concepção de tempo mais livre entre todas as formasnarrativas. Mas há casos menos crassos. Na epopeiad'Os Nibelunqos a acção prolonga-se por várias décadas.Apesar disso, nos últimos cantos, o leitor não nota queas personagens tenham envelhecido ao correspondente.Deram-se explicações racionalistas afirmando que aspalavras e feitos de Kríemhíld no fim da epopeia sãotalvez próprios duma mulher já velha mas ainda enér-gica. Noutra personagem isso é impossível, e por issose censurou vivamente o autor: o irmão de Kríemhíld,Gíselher, é durante toda a epopeía «o jovem», eaté nas lutas finais nos aparece tão novo como naaltura em que nos apareceu pela primeira vez. Parecemais importante e correcto examinar em primeiro

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lugar e sistemàticamente a concepção e configuraçãodo tempo n'Os Nibelunqos. Temos de contar com apossibilidade de que a distância a que se conta eobserva é tão grande e se aproxima tanto do pontode vista «sub specie eetemitetis» que a extensão tem-poral da acção se torna quase insignificante e apenasum acidente exterior. A crítica só deveria mover-se,por princípio, dentro da configuração do tempo narespectiva obra; torna-se suspeita quando arranca doconjunto certas particularidades para as medir com amedida do tempo objectívo. Ao mesmo tempo pareceneste ponto desvendar-se qualquer coisa especial dogénero da epopeía. Nós não sentimos também queAquiles, Ulisses, Vasco da Gama envelheçam. A visãosub specie eeternitetis parece ser característica daepopeia.

Por princípio e justamente como consequêncía dasituação primitiva do contar, o narrador tem muitomais possibilidades e liberdade no tratamento dotempo do que o dramaturgo. O maior ou menor usoque o autor faz delas decide muito do estilo dumaobra narrativa. Em oposição ao dramaturgo, o narra-dor não se encontra ligado a uma sequência temporalrígida e não precisa de colocar os acontecimentos sob odomínio do tempo em decurso contínuo e implacável.como o dramaturgo deve fazer. Um exemplo célebrepode elucidar esta diferença. Quando na cena 8 doacto V do Don Carlos de Schiller já é quase meia-noitee assim está iminente o momento combinado em queD. Carlos deve encontrar a rainha, seguindo-se noentanto ainda duas cenas, ambas importantes e demo-radas, até Carlos na cena 11 entrar nos aposentos darainha, considera-se isto um defeito técnico do drama.

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Tanto mais que o próprio poeta chamou a atenção doespectador para o toque do sino, de maneira que elenão pode conformar-se com este atraso. Semelhantedeficiência técnica encontra-se no segundo acto de Elsaber puede danar de Lope de Vega. Em determinadacena há um duelo simulado entre Carlos e um seuamigo, para aquele, deste modo, ter a possibilidade deentrar em casa de Célía. A cena seguinte passa-se nointerior da casa, onde Célia está a conversar durantecerto tempo com várias pessoas, até que se ouve darua o ruído do duelo (já passado na cena anterior)e Carlos entra. Aqui o tempo até volta atrás, líber-da de que Lope retoma também no Alcalde meqor, ondepor duas vezes batem as 10 horas.

Pelo contrário, quando Sterne no seu TristremShandy apresenta uma personagem a bater à porta, sóa deixando entrar alguns capítulos mais tarde, estaliberdade de narrar é-lhe permitida com todo o direito,pois na narrativa há um narrador mais ou menosvisível. Sterne tira deste processo (e é o primeiro afazê-lo na história do romance) os efeitos mais sur-preendentes; e para a sua atitude narrativa nesteromance são, na verdade, característicos os finais decapítulos como os seguintes: «Imagine to yourself; - butthis had better begin a new cheptet» (lI, 8); «whatbusiness Steoinus had in this alta ir. - is the greatestproblem of alI: - It shall be solved, - but not in thenext cheptet» (11, 10). E dentro dos capítulos é típicode Sterne interromper a narrativa ou um discurso directopor meio de reflexões, esclarecimentos, etc., retomando-adaí a pouco precisamente no mesmo ponto. Um exemploda Sentimental Journey:

«Pray. Medeme, seid I, have the goodness to tell

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me which way I must turn to go to the Opera comique.- Most willingly, Monsieur, said she, laying aside hertvork-.

I had given a cast with my eye into half a dozenshops as I came along in seerch of a face not likely tobe disordered by such an intettuption: till, at lest, thishitting my fancy, I had walked in,

She was working a peir of ruffles as she sat in alow cheir on the [er side of the shop facing the door-

- Três oolontiers: most willíngly, said she, lagingher work down upon a cheir next her, and rising up... :t

Numa forma meio humorística Sterne faz repe-tidas reflexões com o leitor sobre a atitude dum nar-rador no que diz respeito ao tempo (p. ex, TristremShandy, lI, 19), o que também outros narradores comoFielding, Díckens ou Thornas Mann fazem. E se orecuar do tempo, para retomar uma outra série de acon-tecimentos, é considerado defeito no drama, na artenarrativa aparecem passo a passo casos em que onarrador, e com todo o direito, colocou o mesmo acon-tecimento em duas ou mais séries temporais [Smollett,Humphrey Clinker: em Henry [ames, Joseph Conrade outros é esta técnice-do-pcmto-de-oiste um traço esti-lístico importantíssimo). De maneira admirável conseguiuTieck, na sua narrativa do Naturfreund, reflectir emcartas, simultâneamente escritas pelas duas principaisfiguras, a marcha dos acontecimentos de vários dias.

A liberdade do narrador exprime-se já, muitasvezes, pela inversão da ordem temporal. Já o romanceantigo trabalhava com o processo de começar no meioduma situação de grande expectativa e só depois focarsucessivamente os caminhos anteriores que tinhamconduzido a essa situação. Nas Etiópicas (ou: T hee-

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genes e Cericlee] de Heliodoro, obra que influenciou ahistória do romance no ocidente como nenhuma outra,esta técnica de intercalar o relato do passado na próprianarrativa já se encontra elaborada duma maneiraadmirável. Só no fim do quinto livro, i. é, no meiodo romance, está esclarecido todo o passado; masmesmo a partir daí a narrativa não segue inínter-ruptamente direita ao fim. Foi [ean Paul que deu oseguinte conselho na sua Vorschule der Asthetik(Escola primária de Estética) entre as «regras e adver-tências para os romancistas»: «Não ponhaís, logo noinício, todos os leitores à volta do berço do vossoherói... Nós queremos ver já o herói com algunspalmos. de altura; só depois podereis fazer referênciaa algumas relíquias da infância, pois não é a relíquiaque faz importante o homem, mas sim este que dá valoràquela».

A máxima inversão do tempo encontra-se noromance de Machado de Assis Memórias Póstumas deBrás Cubas. O primeiro capítulo dá-nos a descriçãodo «Óbito do autor», aliás da pena do «defunto autor»Brás Cubas. O narrador não deixa de comunicar aoleitor os motivos que o levaram a tal inversão da ordemcronológica; o romance começa assim:

«Algum tempo hesitei se devia abrir estas memóriaspelo princípio ou pelo fim, isto é: se poria em primeirolugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto ouso vulgar seja começar pelo nascimento, duas conside-rações me Levaram a adaptar diferente método: a pri-meira é que eu não sou propriamente um autor defunto,mas um defunto autor, para quem a campa [oi outroberço; a segunda é que o escrito ficaria assim maisgalante e mais novo. Moisés, que também contou a

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sua morte. não a pôs no intróito. mas no cabo: diferençaradical entre este livro e o Pentateuco».

A epopeia também faz uso, de preferência, dainversão temporal das acções: não precisamos mais doque pensar na Odisseie ou n'Os Lusiedes. E no entantoas partes anteriores, relatadas só mais tarde, são damesma intensidade e densidade que as outras. Emprincípio isto está vedado ao dramaturgo, pois a suaobra passa-se na expectativa constante do futuro.Excluindo os casos «enquadrados» (do sonho, etc.).em que o passado se torna actualidade no palco, obser-vamos no drama uma mudança na forma de apresen-tação sempre que é despertado o passado: só se podedar-lhe vida por meio de palavras e. na verdade, depalavras épicas.

Entre todas as formas da arte narrativa a novelamanifesta-se mais uma vez como a parente mais pró-xima do drama. A partir de um certo momento, elasegue a linha recta do decurso temporal e não sedemora já com o passado. Na novela de José RégioDavam grandes passeios aos domingos conclui-se napágina 33 o tratamento dos acontecimentos prévios;a partir da frase: «Rosa Maria compreendeu entãoque estava apaixonada» - tudo fica sob o domínio dotempo que corre, renunciando o autor às liberdadesdo narrador no que diz respeito à configuração dotempo. De resto, ele actualizou a apresentação dosacontecimentos prévios - de acordo com os preceitosda verdadeira novela - apresentando a infância daprotagonista sob a forma de recordações dela, provo-cadas pelo presente: a Sua situação actual fá-Ia pensarno passado. Menos bem sucedida é a apresentação dopassado em volta das outras personagens, por não se

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ligar intimamente com o decurso da novela. O autorempregou nisto a técnica do romancista.

A liberdade do narrador quanto ao «tempo» estáem estreitíssima conexão com a sua extensão de visãoe com a sua «omnisciência». A «omnisciência» não é,contudo, uma característica própria de todo o nar-rador. Quando C. F. Meyer nos apresenta um simplesbêsteiro a contar a história, renuncia conscientementeà omnisciência e tira precisamente da limitação da suacapacidade intelectual efeitos especiais.

A narrativa em prosa - em oposição ao que se dána epopeia, no poema ou ainda na novela - concedeao autor a maior liberdade na escolha do ponto devista para o respectivo «narrador». Seria um crimecontra o espírito da narrativa exigir uma atitude nar-rativa estritamente «objectiva», eliminando assim o maispossível o elemento subjectivo do narrador. A narrativaficaria desta maneira privada duma boa parte das suasricas possibilidades e ser-nos-ia fácil mostrar que ovalor artístico e a força vital dos grandes romancesingleses do século XVIII - de um Fielding, umGoldsmith, um Sterne, etc. - reside, em grande parte,na boa escolha e na firme manutenção do ponto devista narrativo. E não será exagero dizer que tambémmuito da mestria de um Machado de Assis reside igual-mente na maneira como ele escolhe e leva a cabo umadeterminada atitude narrativa nos seus romances.

Excurso: A posição do narrador no «Brás Cubas»de Machado de Assis

Para iniciar a determinação do ponto de vista nar-rativo no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas.

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I

citamos, além do período já transcrito, umas curtasfrases ou seja o capítulo CXXIV do livro:

«Vá de intermédio

Que há entre a vida e a morte? Uma curta ponte.Não obstante, se eu não compusesse este capítulo, pede-cerie o leitor um forte abalo, assaz danoso ao efeitodo livro. Saltar de um retrato a um epitáfio, podeser real e comum; o leitor, entretanto, não se refugiano livro, senão para escapar à vida. Não digo que estepensamento seja meu; digo que há nele uma dose deverdade, e que, ao menos, a forma é pitoresca. E repito:não é meu.»

Foi uma ideia muito feliz escolher, como narrador,um «defunto» que compõe as suas memórias «cá nooutro mundo». O leitor, participando desta ficção pelaqual logo entra num mundo poético, fica assim, desdeo início, com a curiosidade de saber o que este nar-rador lhe vai dizer do seu estranho ponto de vista.Machado de Assis não explora muito o lado fantásticodeste ponto de vista (não por falta de fantasia, certa-mente; as grandiosas imagens do capo VII - O delírio-fazem-nos lamentar essa restrição intencional); exploraantes o contraste cómico entre a posição do narradorno outro mundo e a sua atitude terrestre, ao ínteres-sar-se pelas coisas mais pequenas deste mundo. Osdois passos transcritos revelam bem a «subjectividade»da maneira de narrar, e assim é pelo livro todo: tudoganha vida e tonalidade pela perspectiva e a personali-dade do narrador.

Pode ficar em suspenso se provém de uma ou da

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outra ou duma mistura de ambas: o narrador, em todoo caso, gosta de se distanciar, às vezes, da narraçãodos factos e de se dedicar a reflexões. «Que háentre a vida e a morte?» A resposta é uma banalidade:«Uma curta ponte». Mas o que na boca de qualqueroutro seria mera banalidade, toma na boca de umdefunto, que deve saber disto mais do que nós outros,um aspecto mais rico. O leitor sente-se assaltado porvárias dúvidas: Esconde-se acaso um sentido maisprofundo nestas palavras? Ou não poderemos sabermais acerca destas coisas quando estivermos no outromundo? Ou será que o narrador está tão preso ehirto na sua individualidade que não sabe aproveitaras possibilidades que a sua situação no outro mundolhe proporciona?

Não é de desconhecer uma certa estreiteza, umacerta teimosia e até mesquinhez no carácter dele.Manifesta-se, por exemplo, na repetição tão acentuada:«não é meu», repetição que nos revela, ao mesmo tempo,a sua modéstia. Não quer que se lhe atribua a autoriadesta ideia do «refúgio no livro», e nós não podemosdeixar de sorrir perante tal perseverança de qualidadese interesses terrestres.

~ cômica, sobretudo, a teimosia do narrador noque diz respeito aos problemas de ordem literária,estendendo-se até às questões mais minuciosas datécnica. Este interesse é bem flagrante nos dois passostranscritos, e poderíamos transcrever muitos outros.São estas, então, as preocupações mais urgentes de umdefunto? E com um certo prazer o leitor vê-se bur-lado pelo narrador, tendo tomado um momento pormeditação profunda (uma curta ponte) o que resultaser, finalmente, apenas realização dum «spleen» lite-

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rario do narrador, que faz palavras para evitar um«forte abalo» ao (fingido) leitor. Obedecendo a umasuposta lei estética, o narrador só quer construir umaponte de palavras entre a vida da pessoa, descrita nocapítulo anterior, e a morte dela, conteúdo do capítuloque segue. Há, nos dois textos citados, ainda outrostraços que, construindo a personalidade do narrador,são ao mesmo tempo características da maneira denarrar. Apontamos só a importância que Brás Cubasdá aos elementos duma cultura espiritual (o Penta-teuco}: também aqui resulta da posição daquele quefala um efeito cómico latente que, muitas vezes, éactualizado.

Porém, a atitude narrativa, como já vimos, é deter-minada ainda pela atitude para com o leitor. Nesterespeito, é o tom pessoal, é uma afeição nítida peloleitor que caracterizam a maneira de contar. BrásCubas tem sempre presente os leitores aos quais contaas suas memórias. São poucos; no prefácio confessao narrador que só conta, «quando muito», com dezleitores. Foi feliz também esta ideia de fixar bem opúblico, pois resulta daí a intimidade e a familiaridadetão eficaz do livro. Às vezes, Brás Cubas dirige-se aum determinado leitor entre os dez; o capítulo XXXIV

dedica-se à «alma sensível», o capítulo CXXXVlIl ao«meu caro crítico».

Mas, é claro, nós, leitores reais, não somos os lei-tores fingidos para os quais Brás Cubas está a falar.Assistimos com deleite a este jogo entre o nar-rador e o seu suposto público. Abre-se-nos o hori-zonte também num outro ponto: só uma parte daironia em todo o livro provém do dom irónico dopróprio narrador. Sempre que ele mesmo se torna o

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objecto da comicidade, ergue-se atrás dele o «verda-deiro» autor que soube arranjar tudo isto. E ainda efinalmente, também no terceiro ponto do triânguloépico (determinado por narrador, público e objectoépico) abrem-se as fronteiras: por mais profunda everbosa que seja, por exemplo, a descrição da eborbo-leta preta» por Brás Cubas (cap. XXXI), sentimos niti-damente que este objecto tem um significado ulterior.O mundo narrado por ele tem uma essência que trans-cende as interpretações que ele é capaz de nos dar.Revela-se toda a mestria de Machado de Assis namaneira como consegue envolver o triângulo do prí-meiro plano (Brás Cubas, as ocorrências da sua vida,os dez leitores) num triângulo mais vasto, mas tam-bém bem fechado e que se determina pelo «verda-deiro» autor, a «verdadeíra» essência do mundo poéticoe os «verdadeiros» leitores. A perspectiva a partir doponto de vista do defunto narrador fica dentro dumaperspectiva que abrange mais, sem ser, por isso, menosbem traçada.

Chegamos assim a um problema que tem atraídocada vez mais os investigadores nos últimos anos:o problema da perspectiva na arte narrativa. (De resto,no drama também há «perspectiva». Por um lado, jáno sentido exterior: a perspectiva do espectador medíe-val, que anda à volta do palco «simultâneo», é dífe-rente da do moderno, que é determinada pelo seulugar sentado fixo. Mas há também perspectiva numsentido mais profundo, de novo como manifestaçãodas forças expressivas estilísticas. Da perspectivaadaptada dependem as cenas que um dramaturgoescolhe do seu enredo para serem apresentadas. Racine,

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por exemplo, apresenta sobretudo o mundo interiorda alma das suas personagens, os seus conflitos, situa-ções e lutas internas; Corneílle, pelo contrário, prefereas cenas cheias de decisões e seções que levam ao palcoum número maior de figuras do que nos dramas deRacine. Revela-se assim uma diferença capital naperspectiva das respectivas obras. Em dramas quetenham o mesmo assunto poderemos Iàcilmente descobrirtais diferenças.]

Pareceu, em certo momento, que se tinha achado,em analogia com as unidades dramáticas de acção, tempoe lugar, uma unidade épica na unidade de perspectiva.A palavra «perspectiva» provém da pintura. Se opintor misturasse várias perspectivas, isso, duma maneirageral, havia de nos perturbar. Não se quer com istodizer que um quadro deva seguir a perspectiva «mate-mática»; pode ter a sua própria, como também a vistahumana tem a sua: uma pessoa a cinquenta metrosde distância parece-nos maior do que é «de facto»,quer dizer na perspectiva «objectiva» , (Um caso célebree muito discutido constitui a paisagem de Rubens comduas sombras ou seja com duas fontes luminosas dífe-rentes. Numa conversa com Eckermann, de 18.lV.1827,Goethe exprimiu, partindo deste quadro, ídeias elucida-tivas sobre a essência da arte.)

Anàlogamente à perspectiva una na pintura dosúltimos séculos, formou-se a opinião de que umanarrativa deve igualmente ter uma perspectiva una eser contada a partir sempre do mesmo ponto de vista.Desvios demasiadamente acentuados deviam ser con-siderados defeitos técnicos. Tal opinião é, porém,apenas resultado duma construção no abstracto. A artede narrar viva, e precisamente nas suas obras-primas,

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comporta-se de maneira totalmente diferente. Os exa-mes feitos a Dickens, Tolstói, Dostoiéwski e outros,mostraram imediatamente que os autores de modonenhum conservam o ponto de vista uma vez adoptadocomo talvez o da «omnisciência», o ponto de vistado «de fora», o ponto de vista posto no interior dasfiguras ou qualquer outro possível. Pode bem serque uma forma de perspectiva predomine, mas nofundo podem adoptar-se vários pontos de vista numanarrativa na «terceira pessoa». Só surge um defeitotécnico quando dentro duma frase ou parágrafo comperspectiva fixa se dá uma mudança não justífícada.Podemos tomar o seguinte exemplo: o narrador escolheo seu ponto de vista num grupo de pessoas que obser-vam ao longe um cavaleiro: «Elas viam como elevolvia o cavalo para um camponês que andava a lavrara terra. Tímido e em voz baixa perquntou-lhe se podiaencontrar na sua casa abrigo por alguns dias. O lavra-dor pareceu dar uma resposta negativa, pois o cavaleirovoltou o cavalo e continuou o seu caminho». Quandoo observador escolhe um ponto de vista exterior eainda bastante afastado, então é um erro de perspec-tiva o facto de o narrador ter conhecimento do con-teúdo e do tom de palavras pronunciadas em vozbaixa, dando assim, bruscamente, um salto para maisperto e voltando com igual rapidez para o antigo pontode observação.

Falta ainda um número suficiente de investigaçõesfundamentais sobre a perspectiva, quer numa obra,quer num poeta, quer num gênero literário. Pareceque o ponto de vista da «omnisciência» está em con-formidade com a epopeia, como já a invocação daMusa inspiradora faz supor. A novela, por outro lado,

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tem preferência pelo ponto de vista do observadorcolocado «de fora»; a sua perspectiva é mais uniformee mais claramente estruturada que no romance. Estepode atingir os mais expressivos efeitos por meioduma exploração inteligente da mudança das perspec-tivas. Assim, é um artifício preferido pelos narra-dores modernos (que de resto os novelistas tambémutilizam), dar um cunho especial a determinadas per-sonagens por observá-Ias só do ponto de vista exteriore talvez ainda indistintamente, ao passo que as outrasfiguras são apresentadas a partir da perspectiva da«omnisciência». Por isso revestem-se aquelas persona-gens isoladas de algo de misterioso e irracional, que,ao mesmo tempo, mantém o leitor em constante inquíe-ração, visto que ele próprio tem de penetrar nas pro-fundidades da alma. Um exemplo é a figura femininaprincipal da Forsyte~Saga de Galsworthy: Irene. Elatorna-se visível, pelo menos na primeira parte, quasesó através dos olhos das outras figuras, de maneiraque se nos apresenta enigmática e um pouco demoníaca,porque as observações e opiniões das outras figurasdiferem largamente. Irene aparece assim como um serestranho no mundo dos Forsyte que, por seu lado, sãocompletamente transparentes.

O autor manejou conscientemente a técnica dasdiferentes perspectivas, o que se deduz duma frase doprefácio: «A figura de Irene que se pode imaginar,como o leitor terá notado, quase exclusivamente atravésdos sentimentos de outras personagens, é uma encar-nação da beleza perturbadora, que actua num mundode bens e haveres». Técnica semelhante empregou-aLudwig Tügel para a «jovem senhora» da sua narrativaDie See mit ihren langen Armen.

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Em 1m Sonnenschein de Storm topamos um outroprocesso: aqui todas as figuras são vistas de fora. Istoleva às locuções tanto do gosto de Storm: «es schienais ob ... », «mit dem Ausdruck des ... » (<<parecia comose ... »; «com a expressão de ... »). Só o jovem netoé que nos é apresentado também por dentro. Ele éno entanto apenas espectador, de forma que artística-mente nada se ganha com esta excepção. Ela é antesum sinal de que o neto se identifica com o narrador(e com o autor) : nas suas memórias de infância relatouStorm os sucessos que formam a matéria da narração.O facto de se haver apresentado «a si mesmo comoterceira pessoa», deu-se «por ele sentir a necessí-dade de encher com a sua fantasia as lacunas darealidade», como Storm confessou noutra ocasião (Eingrunes Blatt).

A observação da técnica conduz de novo aos últimosproblemas do estilo; não parece infundada a esperançade que, por meio da investigação da perspectiva, sepossa chegar a conclusões da maior importância no quediz respeito à linguagem e aos géneros épicos.

Excurso: A configuração do diálogona narrativa

Para exemplificar alguns aspectos da técnica na artenarrativa servem dois textos em que se encontra omesmo fenómeno: o discurso directo em forma de díá-logo. Embora aparentemente se trate dum fenómenotípico da apresentação dramática, mal haverá epopéia,conto ou romance, etc., em que não haja tambémdiálogo; no século xvm chegaram até a compor-seromances completamente dialogados.

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É de facto uma pergunta da maior importância einteresse a que surge neste ponto: Porque é que asnarrativas utilizam o discurso directo? Porque é queo narrador renuncia à sua posição dominadora comointermediário entre o público e o mundo poético, pondoum em contacto imediato com o outro? Porque é queo narrador abandona algumas das suas liberdades,submetendo-se, ao mesmo tempo, a determinadas regrasalheias à sua vontade? Basta apontar para isto só ofacto de que, durante o discurso directo, o narradorjá não tem o privilégio de impor o seu «tempo», masé obrigado a seguir uma ordem temporal mais objectiva.O que ganha em troca?

Vê-se logo que o discurso dírecto dá mais viva-cidade e tensão à narrativa. No encurtamento daperspectiva que vai, no discurso dírecto, até à suacompleta anulação, reside uma variedade que agradae que impede toda a monotonia. O público gosta tam-bém de ouvir, ocasionalmente, a voz de uma outrapersonagem diferente da do narrador. Para tudo istoé, porém, indispensável que o autor faça uso bemponderado do discurso dírecto. Um excesso de palavrasdirectas destrói os efeitos da variedade, pois, afinal,é desejo do leitor ser conduzido pelo narrador e ficar,por princípio, a uma certa distância da realidadepoética. Por isso os romances dialogados do século XVIII

infringiram exigências inerentes à arte narrativa edesempenham o papel de experiências técnicas de resul-tado negativo.

Mas o discurso dírecto exerce ainda outras funçõesalém das da variedade. Já na vida quotidiana se observaque, por mais pormenorizados que sejam os relatos dosnossos melhores amigos sobre determinada pessoa, nos

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vale mais um encontro pessoal com ela para chegar auma ideia clara sobre o seu carácter. O mesmo se dána narrativa, quando determinada personagem nos faladírectamente a nós, leitores, proporcionando-nos assim apossibilidade de a conhecer, aparentemente, melhordo que pelas descrições das outras personagens e donarrador.

Mas ainda não está esgotada a função do discursodirecto na narrativa. Já apontámos algures aquelasituação estranha da narrativa: que o leitor, apesar detodo o conhecimento que tem do carácter fictício dela,ainda exige a credíbilídade do que lhe é contado.O discurso directo é um meio que satisfaz excelente-mente tais exigências. Pois, se há palavras que nãosão do narrador, mas sim de um outro, então não hádúvida que estoutro de facto existe e que está confír-mado na sua existência ...

Depois destas observações gerais sobre a função dodiscurso directo na narrativa, vamos observar dois passossob o aspecto da técnica. Incluímos nisto a perguntacomo os discursos dírectos se incorporam no conjunto daobra, quer dizer: quais as formas superiores em que têmo seu lugar. Muitas vezes acontecerá que os discursosque se seguem formam por si uma parte especial dentroda estrutura da obra. Temos então a forma a que cha-mamas «conversa». Mas pode bem ser que os discursosfaçam parte duma outra forma, o que acontecerá nosdois textos escolhidos. O primeiro exemplo foi tiradodo conto Aquela casa triste ... , de Camilo Castelo Branco.

«Quem sabe aí dizer o que Deus quer de nós?O degredado. na volta da pátria, ali morreu naquele

naufrágio. depois que ajudou a salvar as crianças, as

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mulheres e os encieos, despedindo-se de todos comaquele sereno adeus que dissera à filha do Africano.

E Deolinde, quando soube que ele era um dos vintee cinco cadáveres escalavrados na costa de Cabo Verde,chorou poucas lágrimas, e parecia querer romper no seiouma represa delas, que lhe deliem os estemes da vida.

- Estamos pobres I - exclamou o pai.- Temos de mais para o que hevemos de viver,

- respondia ela com uma alegre serenidade.- Porque hás-de tu morrer, minha filha? - volvia

ele já conformado com a desgraça.- Porque senti há pouco um estalo no coração, e

cuidei que morria abafada. Passou esta ânsia, mas seique hei-de morrer disto. Parece que vejo a sepulturaaberta, e que o frio do cadáver me trespassa.

O pai econcheqou-e do seio, como quem aquece umacriança enregelada, e soluçou:

- Ó meu Deus! levei-me minha filha quando eume queixar da vossa vontade que me reduziu a estapobrezel»

o segundo exemplo é tirado do conto intituladoO Barão, da autoria de António Madeira.

«Estava o sol já alto quando cheqémos ao solar.O criado que veio abrir o portêo, ao oer-me, exclamoucom surpresa: - Ah! ... V. Ex.a! ... Ainda bem ...

- Ainda bem, o quê? ..- Quer dizer Peço desculpa ... Estávamos com

medo que também como o Senhor Barão ...- Já veio?- Está livre de perigo.- De perigo?.. Que perigo?

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- Então V. Ex" não sabe?... Teve um desastre ...- Um desastre?!- Sim, Senhor. Então V. Ex.a não andava com

ele? ..- Andava... Mas... Sim... E como foi?- Eu não sei mais nada. Mas quem pode explicar

é a Senhora Idalina ... »

Ao comparar estes dois textos, a primeira impressãoé que os autores tomaram decisões precisamente opostasquanto à redacção das palavras «directas»: Camilopõe na boca das suas figuras uma linguagem escrita,literária e elevada, ao passo que António Madeiraemprega a linguagem falada, quotidiana. De facto acada autor dum discurso directo se apresenta o pro-blema: Deixo as personagens falar como realmente falamna vida quotidiana, ou não? O segundo escritor res-pondeu declaradamente de maneira afirmativa, e assimserviu-se do vocabulário corrente, empregando nodiscurso dírecto frases, perguntas, respostas, exclama-ções bastante curtas, de harmonia com tais situaçõesna realidade, servindo-se ao mesmo tempo das formastípicas da linguagem falada como: elípses, anacolutos,repetições, etc, O diálogo produz, portanto, um efeitoaproximadamen te «realista».

Camilo seguiu orientação diferente. Se bem que assuas personagens se encontrem numa situação críticae também empreguem exclamações, cada frase é con-duzida até ao fim, e, às vezes, numa construçãobastante complicada. Construções como «quando eume queixar», «hás-de tu morrer», etc. fazem parte dalinguagem escrita, assim como também expressõescomo «estalo no coração», «ânsia»; «reduziu»; etc. e

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locuções como «vejo a sepultura aberta», «o frio docadáver me trespassa», etc. (Seria um caminho atraentee seguro ver até que ponto as palavras do discursodírecto contribuem para a constituição das figurascomo tais.)

A verificação de que as personagens na obra deCamilo não falam como nós falamos na vida, usandosim uma linguagem que se encontra bastante afastadada «real», é apenas uma verificação e nada mais. Istoé de acentuar contra a atitude vulgar das pessoas

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dotadas de pouca sensibilidade artística que julgamque naquela observação já está incluído um critérionegativo de apreciação. A arte não tem a missão deimitar a realidade o mais fielmente possível. Camilosabia tão bem como o leitor moderno que na vida realnão se fala como as suas figuras o fazem. Temos deinvestigar os nexos superiores em que os discursos têmo seu lugar e função e pelos quais foram, de seu lado,determinados no seu exterior.

Continuando para tal fim a comparação, surge umanova diferença na configuração do diálogo. AntónioMadeira conduziu o leitor até à soleira da porta edeixou-o então sõzínho com as figuras. Estas falam asua própria linguagem e movem-se perante o leitor semque o narrador explicasse quem estava a falar, comque gestos, em que tom, etc. A tendência para dar ailusão da realidade, que determinava as palavras dodiscurso como tais, determina também a sua introdução,ou melhor - a falta de qualquer introdução: o narradordesaparece completamente por algum tempo.

Um outro processo técnico «funciona» ainda admi-ràvelmente em conjunto com os outros: a forma deconto na primeira pessoa. Nela reside sempre um

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cunho «real» e com ela se encurta sempre a distânciaentre o público e o que vai ser contado.

Com Camilo tudo se passa de maneira totalmentediferente. Ele não se retira, deixando as figuras sós,mas sim mantém a sua posição entre as personagense o leitor. Ele explica a disposição espiritual delas(<<com uma alegre serenidade», «já conformado», etc.},descreve os respectivos gestos (<<aconchegou~a»), Iaz--nos lembrar experiências humanas gerais [ecomo quemaquece uma criança ... ») e revela desta maneira coas-tantemente que é ele o narrador ainda das palavrasaparentemente directas. Para isto convém que se tratedum conto na terceira pessoa. O narrador assim temmais liberdade, é mais independente e autónomo.

Finalmente uma última observação aos dois textospara reconhecermos o seu modo de funcionar em nexossuperiores e a actuação em conjunto dos processostécnicos.

Se perguntarmos pela forma superior em que aspalavras do discurso directo têm o seu lugar, chegamosà conclusão de que em ambos 05 casos essa forma nãoé a «conversa». A conversa como unidade fechada emsi, como parte relativamente independente do con-junto, aparece sobretudo no romance de sociedade dosséculos XIX e XX. Serve então para concretizar e rea-lizar uma determinada camada social ou grupo depessoas, e assim é um processo adequado ao fim doromance de sociedade. Para a motivação de tais con-versas os romancistas aproveitaram-se daqueles Ienó-menos típicos da vida social: serões, passeios, recepções,chás entre senhoras, jantares festivos, etc,

Não é em conversas destas que os diálogos nosnossos textos têm o seu lugar e função. Da obra de

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António Madeira podemos apenas dizer, sem o poder-mos mostrar mais de perto, que pertencem à últimafase da acção. O autor escolheu o processo técnico dodiálogo entre duas personagens que, cada uma, sabealguma coisa do que aconteceu, para esclarecer ao lei-tor o desenlace da acção. O momento de maiorsurpresa que o diálogo oferece em oposição ao relatodirecto, está de harmonia com o carácter novelescodo todo.

Em Camilo pudémos transcrever todo o parágrafomarcado como tal pelo autor. As palavras do discursodirecto eram apenas uma pequena parte nele. O pará-grafo tem a seguinte conclusão: o pai, que pensa nasua pobreza, abraça a filha cuja felicidade está des-truída e que pensa somente na morte. O conjunto éum quadro ou, como melhor lhe poderemos chamartalvez, um «tebleeu», Pois no «tableau» há aindamovimento (de facto, há decurso no parágrafo, quecorre para o abraço) e há a qualidade da «exibição»,quer dizer, toda a linguagem tem um cunho mais de«publicidade» do que de «intimidade». E esta quali-dade apresenta-se de uma maneira bastante nítida naspalavras pronunciadas com certo tom patético como,por exemplo: «vejo a sepultura aberta», «como quemaquece uma criança enregelada».

A configuração técnica do «tableau» leva-nos aindaa uma observação importante que se relaciona com O

problema do processo épico. Camilo introduz o «tableau»com uma frase que não se refere ao que há de concretonele, nem à situação nem às personagens: «Quem sabeaí dizer o que Deus quer de nós?»

Mas, evidentemente, esta frase faz parte integrantedo parágrafo. Ela deixa ver um fundo ideológico,

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perante o qual os acontecimentos do primeiro planose desenrolam e que o leitor deve ter bem presentese quiser compreender o conjunto da obra. As pala-vras finais do parágrafo também apontam este outrofundo: «ó meu Deus I levaí-me minha filha quandoeu me queixar da vossa vontade ... » Estas palavraspertencem, por um lado, inteiramente à situação doprimeiro plano, mas estão, por outro lado, intimamenteligadas ao outro plano ideológico. E ainda mais umacoisa o indica: o nome da heroína «Deolínda», nomenão invulgar, mas que aqui,como tal, condiz com oestilo do conjunto e que, pelo seu significado, se ligacom o fundo religioso do conto. É um caso claro deum nome significativo.

O que para nós era importante na configuraçãotécnica deste «tableau» era precisamente esta bílatera-lidade: que a situação do primeiro plano teve de servista perante um outro plano que se revelou de qualí-dade mais espiritual. Com isto chegamos à substânciada obra narrativa.

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