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anÁLisES, reFlEXõEs e pERsPecTIvaS Tayson Ribeiro Teles organizador

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TÍTULOsubtítulo

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Bibliotecária responsável: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129

L727 Língua(gens), literaturas, culturas, identidades e direitos indígenas1.ed. no Brasil: análises, reflexões e Perspectivas [livro eletrônico] / organização Tayson Ribeiro Teles. – 1.ed. – Curitiba-PR: Editora Bagai, 2021. E-book.

Bibliografia. ISBN: 978-65-89499-57-2

1. Análises e reflexões. 2. Culturas – Identidades indígenas. 3. Direitos indígenas. 4. Linguagens e literatura indígena. I. Teles, Tayson Ribeiro.

04-2021/65 CDD 306.8

Índice para catálogo sistemático:1. Cultura indígena 306.8

https://doi.org/10.37008/978-65-89499-57-2.23.04.21

Este livro foi composto pela Editora Bagai.

www.editorabagai.com.br /editorabagai

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ISBN 978-65-89499-57-2

9 786589 499572 >

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LÍNGUA(GENS), LITERATURAS, CULTURAS, IDENTIDADES E DIREITOS

INDÍGENAS NO BRASIL:análises, reflexões e perspectivas

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1.ª Edição - Copyright© 2021 dos autoresDireitos de Edição Reservados à Editora Bagai.

O conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva responsabilidade do(s) seu(s) respectivo(s) autor(es). As normas ortográficas, questões gramaticais, sistema de citações e referencial bibliográfico são prerrogativas de cada autor(es).

Editor-Chefe Cleber Bianchessi

Revisão Os autores

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .................................................................................7

O CURRÍCULO ESCOLAR DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL COMO COLONIALIDADE DO PODER DA CULTURA EUROPEIA CRISTÃ ................................................................................................11Cleuma Roberta de Souza Marinho | José Adnilton Oliveira Ferreira

ENTRE SILVESTRES E EXÓTICOS: OS ANIMAIS DENTRO DA CULTURA CHIQUITANA .................................................................28Denildo da Silva Costa

MITO E LITERATURA: UMA LEITURA DA NARRATIVA COM A NOITE VEIO O SONO (2011), DE LIA MINÁPOTY .........................35Francisco Bezerra dos Santos | Karen Rafaela da Silva Cordeiro

POESIA INDÍGENA DE TIAGO HAKIY: UMA ECOLOGIA DE SABERES ...........................................................................................47Rosemar Eurico Coenga | Anna Mari Ribeiro F. Moreira da Costa

A ORDEM DO DISCURSO BIOMÉDICO: SILENCIAMENTO, TRADUÇÃO E FALA EM LÍNGUA INDÍGENA ...............................59Conrado Neves Sathler | Jéssica Camile Felipe Tivirolli

DIREITOS FUNDAMENTAIS INDIGENAS E A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DAS TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS NO BRASIL ................................................................... 71Edson Antônio Baptista Nunes

A COMISSÃO NACIONAL DE POLÍTICA INDIGENISTA (CNPI): UM BREVE CAPÍTULO DA HISTÓRIA RECENTE DO INDIGENISMO BRASILEIRO ..........................................................82Saulo Ferreira Feitosa | Rosane Freire Lacerda

A COMPLEXIDADE DO RECONHECIMENTO JURÍDICO DE COMUNIDADES INDÍGENAS NÃO ALDEADAS E NÃO VIVENTES EM TERRAS INDÍGENAS OFICIALMENTE RECONHECIDAS PELO ESTADO ....................................................96Tayson Ribeiro Teles

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OS ÍNDIOS E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO: PERSPECTIVAS PREVISTAS PELA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 NA ERA DA TECNODIVERSIDADE .................................................................... 109Eduarda Aparecida Santos Golart | Ingra Etchepare Vieira | Valéria Ribas do Nascimento

OS REFUGIADOS AMBIENTAIS DE BELO MONTE: A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS À CIDADANIA INDÍGENA ............ 120Alex Gaspar de Oliveira | Eliane Cristina Pinto Moreira

VISÃO SISTÊMICA: PERCEPÇÕES DA ECOLOGIA E CIDADES INTELIGENTES ................................................................................ 131Carlos Alberto Machado Gouveia | Nádia Leite Medeiros | Eujácio Lopes Filho

“VAMOS BRINCAR DE ÍNDIO”: BNCC E APROPRIAÇÃO CULTURAL INDÍGENA NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL ...............................................................................140Sadrack Oliveira Alves | Márcio Evaristo Beltrão

O DESENVOLVIMENTO DE METODOLOGIAS ATIVAS NO ENSINO DE ADMINISTRAÇÃO PARA OS INDÍGENAS DO ESTADO DO ACRE ...........................................................................152Müller Padilha Gonçalves | Dion Alves de Oliveira | Simone de Freitas Ferreira Alves

DO ACESSO À PERMANÊNCIA: REFLEXÕES SOBRE AS POLÍTICAS AFIRMATIVAS PARA INDÍGENAS ESTUDANTES NO ENSINO SUPERIOR ................................................................. 163Berenice Schelbauer Do Prado

INDIGENOUS RIGHTS, NECROPOLITICS AND THE “DAILY GENOCIDES” OF BRAZIL’S NATIVE AND TRADITIONAL PEOPLES ...........................................................................................172Erick da Luz Scherf | Marcos Vinicius Viana da Silva | José Everton da Silva

SOBRE O ORGANIZADOR .............................................................. 181

ÍNDICE REMISSIVO ........................................................................182

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APRESENTAÇÃO

O presente livro reúne 15 estudos que versam sobre perspectivas inter, trans e multidisciplinares sobre questões indígenas. Meu objetivo, enquanto organizador desse livro, é, precipuamente, defender a promoção e a proteção do direito à liberdade dos povos indígenas. Em outro trabalho, certa vez, eu disse: “Não se trata de tolerância para com os indígenas. Tolerância tem a ver com “suportar”. Trata-se de respeito” (TELES, 2017, p. 77)1. Eu gosto muito dos povos indígenas. Meu avô materno, que faleceu neste 2021, aos 79 anos, Onório Ribeiro da Silva, era/é um indígena nascido no Peru, na fronteira com o Acre, onde nasci e moro atualmente. Acredito na força dos indígenas enquanto integrantes da origem de todos nós brasileiros. Falar/escrever sobre eles é imprescindível.

Passo agora a apresentar os capítulos do livro, os quais, nas suas particu-laridades, problematizam sobre tudo isso que eu lhe falei, caro(a) leitor(a). No Capítulo 1 - O currículo escolar dos povos indígenas no Brasil como colonia-lidade do poder da cultura europeia cristã, de autoria de Cleuma Roberta de Souza Marinho e José Adnilton Oliveira Ferreira, os autores erigem um histórico de como os colonizadores europeus, ao chegarem ao Brasil, agiram tentando “civilizar” os povos indígenas, por meio da educação. Uma educação que não respeitou as culturas indígenas e que tentou apagá-las, rumo à ideia de criar uma identidade nacional una. No Capítulo 2 - Entre silvestres e exóticos: os animais dentro da cultura chiquitana, de autoria de Denildo da Silva Costa, o autor comenta sobre a importância de alguns animais para o povo chiquitano, indígenas que vivem na Bolívia e, no Brasil, em regiões do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. O autor nos mostra a relevância de alguns animais para aspectos culturais, para rituais, para crenças religiosas e para a culinária desse povo.

No Capítulo 3 - Mito e literatura: uma leitura da narrativa Com a noite veio o Sono (2011), de Lia Minápoty, de autoria de Francisco Bezerra dos Santos e Karen Rafaela da Silva Cordeiro, os autores analisam uma produção literária de Lia Minápoty, a qual é uma representante das muitas mulheres indígenas escritoras de origem Maraguá. A autora analisada nasceu na aldeia Yãbetue’y, na área indígena Maraguapagy, no rio Abacaxis-AM. Os autores nos mostram como, atualmente, a literatura absorve mitos indígenas. No Capítulo 4 - Poesia indígena de Tiago Hakiy: uma ecologia de saberes, de autoria de Rosemar Eurico Coenga e Anna Mari Ribeiro F. Moreira da Costa, os autores analisam as obra literária A pescaria do curumim e outros poemas indígenas, de Tiago Hakiy (2015). O autor analisado pertence à etnia Sateré Mawé, habitante da Terra Indí-gena Andirá-Marau, no médio rio Amazonas. Os autores concluem que Tiago

1 TELES, Tayson Ribeiro. Políticas públicas indígenas brasileiras: elevado planejamento e ineficaz implemento. São Paulo: Ixtlan, 2017.

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Hakiy possui, no texto analisado, uma escrita decolonial, porquanto valoriza a fauna e a flora do território do povo indígena Sateré Mawé, em um movimento que intensifica a ideia de que somos parte integrante da natureza. Por fim, os autores acreditam que textos de autores indígenas devem ser mais utilizados nos ambientes escolares, a fim de valorizarmos a diversidade cultural do Brasil.

No Capítulo 5 - A ordem do discurso biomédico: silenciamento, tradu-ção e fala em língua indígena, de autoria de Conrado Neves Sathler e Jéssica Camile Felipe Tivirolli, os autores comentam sobre as relações dos povos Kaiowá, Guarani e Terena com os servidores de um hospital localizado em Dou-rados (MS). Os autores afirmam que não há valorização das línguas indígenas durante os atendimentos médicos de indígenas por servidores não indígenas. Os indígenas são, assim, marginalizados, bem como seus saberes médicos tradicionais não são respeitados dentro do hospital analisado. No Capítulo 6 - Direitos fundamentais indigenas e a proteção constitucional das terras tradicionalmente ocupadas no Brasil, de autoria de Edson Antônio Baptista Nunes, o autor nos faz uma revisão teórica sobre o direito dos povos indígenas brasileiros às terras que eles ocupam tradicionalmente. O autor defende que esse direito é um direito fundamental.

No Capítulo 7 - A Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI): um breve capítulo da história recente do indigenismo brasileiro, de autoria de Saulo Ferreira Feitosa e Rosane Freire Lacerda, os autores fazem um retros-pecto da luta do movimento indígena brasileiro no período recente, do fim do século XX até a atualidade, com ênfase na fase de criação da CNPI. Conforme os autores, o entulho do indigenismo fundado na colonialidade, herdado pela Funai do SPI, ainda influencia certas políticas governamentais, revelando a necessidade de descolonização tanto das práticas dos agentes estatais quanto da própria estrutura do Estado brasileiro. No Capítulo 8 - A complexidade do reconhecimento jurídico de comunidades indígenas não aldeadas e não viventes em terras indígenas oficialmente reconhecidas pelo estado, de minha autoria, eu engendro uma reflexão sobre como o Estado brasileiro faz para reconhecer os direitos dos indígenas que não vivem em comunidades indígenas reconhecidas legalmente. Eu foco no dilema da autodeclaração indígena, da questão fenotípica e da heteroidentificação dos indígenas.

No Capítulo 9 - Os índios e o novo constitucionalismo latino-americano: perspectivas previstas pela constituição brasileira de 1988 na era da tecnodi-versidade, de autoria de Eduarda Aparecida Santos Golart, Ingra Etchepare Vieira e Valéria Ribas do Nascimento, as autoras problematizam se a nossa Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é uma Constituição forjada no âmbito do que se chama de Novo Constitucionalismo Latino-A-mericano, um movimento que inspirou Constituições na América Latina que reconhecem a diversidade dos povos, incluindo os indígenas como elementos basilares das nações, a exemplo das Constituições da Bolívia e do Equador. No

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Capítulo 10 - Os refugiados ambientais de Belo Monte: a violação dos direitos à cidadania indígena, de e autoria de Alex Gaspar de Oliveira e Eliane Cristina Pinto Moreira, os autores analisam alguns impactos ocasionados aos povos indígenas do Pará a partir da construção da Hidroelétrica de Belo Monte. Os autores concluem que os indígenas impactados foram alçados à categoria de refugiados ambientais e, a partir disso, praticamente perderam suas cidadanias indígenas. Nesse sentido, deve o Estado agir em prol de reparar isso.

No capítulo 11 - Visão sistêmica: percepções da ecologia e cidades inte-ligentes, de autoria de Carlos Alberto Machado Gouveia, Nádia Leite Medeiros e Eujácio Lopes Filho, os autores problematizam como as nossas cidades podem ser mais conectadas e inteligentes a partir da ótica do desenvolvimento sus-tentável ou durável, perpetuando o resgate dos costumes, culturas indígenas e conhecimentos que foram esquecidos com a vinda das pessoas para o ambiente urbano, de produção, de integração com natureza, como o biomimetismo, na arquitetura integrada com os ambientes pensando na sustentabilidade. Nesse sentido, eles analisam o formato das aldeias dos povos do Xingu. No Capítulo 12 - “Vamos brincar de índio”: BNCC e apropriação cultural indígena nos anos iniciais do ensino fundamental, de autoria de Sadrack Oliveira Alves e Márcio Evaristo Beltrão, os autores investigam na Base Nacional Comum Curricular perspectivas que podem incentivar uma abordagem positiva dos povos indígenas e suas culturas nas escolas de ensino fundamental, no sen-tido de valorizá-las (as culturas indígenas) e não apenas de caricaturá-las e estigmatizá-las, como ocorrem quando, em certas ocasiões, nos fantasiamos de indígenas, por exemplo.

No Capítulo 13 - O desenvolvimento de metodologias ativas no ensino de Administração para os indígenas do estado do Acre, de autoria de Müller Padilha Gonçalves, Dion Alves de Oliveira e Simone de Freitas Ferreira Alves, os autores teorizam ser possível no ensino de temas de Administração para comunidades indígenas do/no estado do Acre, fazer uso de Metodologias Ativas de Ensino. Os autores afirmam que tais metodologias tornam o ensino mais atrativo para os indígenas e promovem mais atividades práticas, havendo interação com as práticas culturais dos indígenas.No Capítulo 14 - Do acesso à permanência: reflexões sobre as políticas afirmativas para indígenas estudan-tes no ensino superior, de autoria de Berenice Schelbauer Do Prado, a autora analisa detidamente, inclusive com estatísticas, o implemento da política de cotas para ingresso nas instituições educacionais de ensino superior brasileiras, em relação aos cotistas na/da “categoria” indígenas. A autora conclui que de 2013 a 2018 aumentou o número de indígenas nas instituições de ensino superior. Segundo a autora, porém, muito ainda precisa ser feito/garantido pelo Estado aos indígenas, bem como não se sabe se todos os indígenas que ingressam no ensino superior saem dele formados.

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Por fim, no Capítulo 15 - Indigenous rights, necropolitics and the “daily genocides” of Brazil’s native and traditional peoples, de autoria de Erick da Luz Scherf, Marcos Vinicius Viana da Silva e José Everton da Silva, os autores narram que há, atualmente, no Brasil, uma tentativa diária de exterminar os povos indígenas e outras comunidades indígenas ou tradicionais do país e tal tentativa é liderada por forças neoliberais e necropolíticas, com o desejo de subjugar o ambiente e explorar os recursos naturais que ainda estão disponí-veis em certos territórios que outrora foram protegidos por leis ambientais.

Desejo ao(à) leitor(a) uma excelente leitura. Rio Branco, Acre, 19 de abril de 2021 (Dia dos Povos Indígenas).

Tayson Ribeiro Teles

O Organizador

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O CURRÍCULO ESCOLAR DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL COMO COLONIALIDADE DO PODER DA CULTURA EUROPEIA CRISTÃ

Cleuma Roberta de Souza Marinho1 José Adnilton Oliveira Ferreira2

INTRODUÇÃO

Nesse estudo aborda-se a educação escolar indígena no Brasil a partir do contexto do currículo escolar na colonização, apresentando algumas interfaces do processo de inferiorização dos povos indígenas que se deu principalmente por meio da hegemonia branca europeia, como efeito da colonização, que engendrou relações culturais, sociais, econômicas e de educação. Para tanto, realizou-se revisão bibliográfica do cabedal existente, partindo-se de autores que trazem uma abordagem crítica sobre a temática.

O referido estudo está estruturado da seguinte forma: na introdução apresenta-se a justificativa, o objetivo e o problema referente ao objeto de estudo em questão. O desenvolvimento teórico inicia-se com a análise da edu-cação colonial no Brasil, com foco no fortalecimento das estruturas de poder sobre as populações indígenas. Logo após, problematiza-se a colonialidade de poder eurocêntrica na educação do Brasil e sua dominação etnocêntrica sobre os povos indígenas através do currículo escolar; e, por fim, apresentam-se as conclusões do estudo.

A educação colonizadora inicia em 1549, quando chega à América Por-tuguesa a primeira missão jesuítica enviada de Portugal por D. João III, com-posta por missionários da Companhia de Jesus. Faustino (2010, p. 98) “salienta que com a vinda dos portugueses ao Brasil deu-se o início do processo de colonização, o qual teve por objetivo expandir o sistema mercantil português utilizando a mão de obra escrava dos indígenas.” O colonialismo português se expressa de forma cruel e desumana por suas vertentes de dominação política, administrativa e econômica.

Configura-se, assim, uma relação política e econômica na qual uma nação é subjugada por outra. Dessa forma, todo o cabedal cultural, social e religioso dos indígenas era considerado como abominável para uma sociedade que se pressupunha pura e cristã, ocorrendo assim um processo civilizatório

1 Mestra em Comunicação, Linguagem e Cultura (UNAMA). Professora de ensino especial e superior. CV: http://lattes.cnpq.br/4584243301199119 2 Doutorando em Ciência da Educação (UnB). Professor da Faculdade Estácio de Sá (Macapá--AP). CV: http://lattes.cnpq.br/2068358243656514

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e de aculturação que objetivava construir um novo padrão de comportamento para os indígenas: o ser dócil e submisso.

Neste contexto, o instrumento de controle mais eficaz da colonialidade foi a educação. Para que os indígenas participassem da mão de obra, estes deveriam ser civilizados a partir da educação. Isto é, O ‘selvagem’ deveria ser ‘civilizado’ para aceitar a situação de exploração e submissão a que estava sendo sujeitado. Nesse projeto, a educação escolar exerceu um papel fundamental. Acreditava-se que, por meio da instrução e catequese, os índios abandonariam sua forma ‘primitiva’ de viver e se integrariam à ‘civilização’ (FAUSTINO, 2010).

A referida autora afirma ainda que o processo educacional para o aten-dimento aos indígenas ocorreu de maneira com que eles fossem educados na fé cristã com o intuito de fazer da cultura europeia a referência a ser seguida. Assevera, ainda, que a lógica de supremacia do colonizador buscou extirpar outras culturas consideradas inferiores, incapazes e consideradas não puras.

Enfatiza que cabia aos padres jesuítas propagar o cristianismo euro-cêntrico, ou seja:

[...] inserir, nas culturas pagãs do novo mundo, noções de civilidade, de ordem, de disciplina, de respeito à hierarquia e a observância aos dogmas cristãos. Em algumas regiões, os jesuítas aprenderam e decodifica-ram a língua indígena, traduzindo textos doutrinários que foram usados na instrução e catequização (FAUS-TINO, 2010, p. 32).

A colonialidade mostra uma estrutura social em uma relação de infe-rioridade com uma cultura europeia cristã que se sobrepõe a outras culturas respaldada nas discriminações sociais codificadas como étnicas e antropológicas, constituindo uma estrutura de poder. Para Quijano (2005, p. 121), “essa colonia-lidade se refere a um padrão de poder que permeia as relações intersubjetivas entre colonizador e colonizado, e que reflete nas formas de valorização do conhecimento, na divisão racial do trabalho criada para justificar a hegemonia branca eurocêntrica.”

A EDUCAÇÃO COLONIAL NO BRASIL COMO FORTALECIMENTO DAS ESTRUTURAS DE PODER SOBRE AS POPULAÇÕES INDÍGENAS

O processo educacional no Brasil colônia se inicia com a necessidade de inserir, converter e catequizar a civilização indígena à fé católica, atribuindo-lhe também a função de vassalo da monarquia, principalmente como forma de

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domínio da população colonizada, usando de alicerce as diferenças de raça, sexo e etnia para a naturalização das diferenças.

Nesse contexto:

A progressiva monetarização do mercado mundial que os metais preciosos da América estimulavam e permitiam, bem como o controle de tão abundan-tes recursos, possibilitou aos brancos o controle da vasta rede pré-existente de intercâmbio que incluía, sobretudo China, Índia, Ceilão, Egito, Síria, os futuros Orientes Médio e Extremo. Isso também lhes permitiu concentrar o controle do capital comercial, do trabalho e dos recursos de produção no conjunto do mercado mundial. E tudo isso foi, posteriormente, reforçado e consolidado através da expansão e da dominação colonial branca sobre as diversas populações mundiais (QUIJANO, 2005, p. 232).

Dessa forma, o capitalismo europeu controlou e explorou outras popu-lações, inclusive indígenas, impondo-lhes, no processo de colonização, novos costumes, ritos e identidades. Portanto, para Santos (2010, p. 35), “as hierarquias são consequências das diferenças e, sendo assim, as diferenças são veladas e naturalizadas a partir de uma escala baseada na inferiorização do que difere do padrão dominante.” Afirma ainda que a supressão da diversidade cultural dos outros povos, pela exclusão e silenciamento de toda riqueza neles presente, visou atender aos interesses do capitalismo, fato que ocorreu por meio da dominação política, econômica e militar nas sociedades colonizadas.

A educação, então, foi uma das principais formas que o colonizador buscou para dominar os povos indígenas, já colocados em uma escala inferior da sociedade. Cabe reiterar que essa dominação não ocorre por meio passivo ou romântico, mas sim pela violenta segregação e inferiorização dos indígenas e pelo extermínio de muitos povos originários, com suas línguas e culturas.

Godelier (1981, p. 186), ao reportar-se à legitimidade da classe dominante, afirma que, “[...] todo poder de dominação se compõe de dois elementos indis-soluvelmente entrelaçados que lhes dão força: a violência e o consentimento.”

A busca de legitimidade marcou o início do processo de desconstrução da identidade cultural das populações indígenas, com o envio de missioná-rios religiosos que passaram a agrupar os ameríndios em missões, reduções e aldeamentos, para lhes apresentar a fé católica. Através da catequização foram disseminando os padrões de convivência e os modelos de produção que eram interessantes ao colonizador: “[...] o padrão de poder baseado na colonialidade implicava também um padrão cognitivo, uma nova perspectiva

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de conhecimento dentro da qual o não-europeu era o passado e desse modo inferior, sempre primitivo” (QUIJANO, 2005, p. 228)

As primeiras experiências começam com a colonização portuguesa, no início do século XVI, num contexto em que o poder político-econômico e a evangelização eram inseparáveis e em que, como já destacado, a educação tinha o papel de ajudar a perpetuar as desigualdades e naturalizar as diferenças entre colonizador e colonizado.

Logo que chegaram ao Brasil, os padres jesuítas lançaram as bases da catequização, com a criação das primeiras casas, as casas de bê-á-bá, dando início à educação colonial em seu sentido restrito, por meio da atuação em escolas de ler, escrever e contar e, posteriormente, em seus colégios na cidade de Salvador.

Nesse prisma:

Estas casas, ou residências ou ainda recolhimentos, recebiam os meninos índios para serem catequiza-dos e instruídos e se destinavam também a abrigar os padres aqui na colônia, bem como os órfãos vindos de Portugal e os da terra, a fim de lhes dar assistência e formação religiosa. [...] A vinda de órfãos de Portugal contribuiu grandemente como um motivador a mais para a já necessária construção de casas (residências ou recolhimento) e representou um reforço na conversão dos índios, uma vez que os jesuítas utilizaram como estratégia de catequese e instrução os órfãos para atrair os meninos índios (MENARDI, 2010, p. 159).

Pode-se contextualizar a relação entre os povos indígenas e os europeus nesses moldes explicitados que caracterizaram um processo de desconstrução da identidade das populações indígenas, ou seja, que se queria produzir uma população indígena “civilizada” adaptada aos moldes europeus. Dessa forma, os jesuítas empenharam-se na instrução da leitura, e do estudo interpretativo do catolicismo, pois assim se poderia compreender melhor o mundo supostamente desconhecido pelos nativos. “Os jesuítas perceberam que não seria possível converter os índios à fé católica sem que soubessem ler e escrever, os nativos poderiam de fato ser inseridos no mundo cristão” (AZEVEDO, 1978, p. 56).

Para Aranha (1996, p. 78), “essa ação contribui para que haja um choque entre os valores pregados pela cultura nativa e os do colonizador.” O sociólogo Gilberto Freire, na obra Casa-grande e senzala, afirma que os primeiros mis-sionários substituíram as ‘cantigas lascivas’, entoadas pelos índios, por hinos à Virgem e cantos devotos. Segundo Aranha (1996, p. 20), “não raro os padres ridicularizam a figura do pajé e os ensinamentos da tribo e condenam a poli-

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Língua(gens), Literaturas, Culturas, Identidades e Direitos Indígenas no Brasil

gamia, pregando a forma cristã de casamento, e dessa maneira começam a abalar o sistema comunal primitivo.”

Aqui se percebem algumas das ações missionárias com o intuito de boicotar a cultura dos povos indígenas e empregar o modo de vida do branco europeu cristão, moldando o nativo segundo a civilização ocidental cristã, mais especificadamente a cultura portuguesa. Entretanto, os jesuítas eram contra a exploração dos índios, pois quando estes eram escravizados morriam de fome e doenças. Mas, infelizmente a escola serviu como mecanismo de aculturação dos povos indígenas.

Vê-se que:

Quando a escola foi implantada em área indígena, as línguas, a tradição oral, o saber e a arte dos povos indígenas foram discriminados e excluídos da sala de aula. A função da escola era fazer com que estudantes indígenas desaprendessem suas culturas e deixas-sem de serem indivíduos indígenas. Historicamente, a escola pode ter sido o instrumento de execução de uma política que contribuiu para a extinção de mais de mil línguas (FREIRE, 2004, p. 23).

“A escola, organizada com um modelo curricular pedagógico alheio as cosmologias indígenas, foi imposta com o explícito intuito colonizador, integracionista e civilizador” (BANIWA, 2013, p. 12). A violência foi um dos componentes utilizados para o alcance de tais objetivos. Afirma Godelier (1981) que dentre os componentes do poder o mais forte não é a violência, e, sim, o consentimento do dominado em relação a sua dominação e sujeição.

Afinal, há a ideia de que:

[...] as representações “ilusórias” que os homens têm de si próprios e do mundo, e que “legitimam” uma ordem social existente nascida sem elas, fazendo assim aceitar as formas de dominação e de opressão do homem pelo homem que esta ordem contém e sobre as quais repousa (GODELIER, 1981, p. 189) (Grifos nossos).

Outro elemento da educação colonizadora foi a segregação. Para isso criou-se todo um aparato escolar, composto pelos colégios e as escolas-internato. Por meio da força e do poder emanados pela metrópole, as crianças indígenas foram retiradas das aldeias e enclausuradas nos colégios com o fito de se tor-nar mais fácil a missão de destruir suas identidades e subjetividades, pois os ameríndios não conceberam a escola como parte de seu cotidiano, sendo ela totalmente estranha à sua cultura.

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Enclausurados, longe do contato com seus semelhantes, tornaram-se mais frágeis, o que facilitou o trabalho do colonizador. A razão principal da implantação dos colégios estava em mantê-los isolados dos seus semelhantes para favorecer a aprendizagem da cultura eurocêntrica, já que a educação imposta era totalmente descontextualizada da realidade em que viviam. Porém, “bas-tava que eles voltassem ao convívio com outros que, mesmo aqueles que eram batizados, retornavam aos seus costumes e crenças” (HENRIQUES, 2007, p. 54).

Ainda a respeito desse assunto, tem-se a pertinente reflexão de Fanon (1979, p. 27):

Não se desorganiza uma sociedade, por mais primitiva que seja, com tal programa se não está decidido desde o início, isto é, desde a formulação mesma deste programa, a destruir todos os obstáculos encontrados no caminho. O colonizado que resolve cumprir este programa, torna-se o motor que o impulsiona, está preparado sempre para a violência [...].

A homogeneização dos povos indígenas foi outro artifício para a destrui-ção dos obstáculos encontrados no caminho dos colonizadores. A diversidade étnica foi ignorada e os indígenas concebidos como um só povo que deveria ser extinto ou assimilado. Para isso, a educação colonizadora contribuiu como um aparato político e pedagógico que tinha como finalidade a extinção de suas línguas e a negação de suas culturas, bem como a aprendizagem da língua e da cultura europeias obrigatória a todo o continente dominado pelo europeu (GROSFOGUEL, 2008).

Esse processo foi intenso no estado colonial português e motivado no intuito de destruir a identidade dos povos indígenas. Dentre as estratégias utilizadas inicialmente destacam-se: o currículo hegemonicamente branco eurocêntrico inicialmente a partir da alfabetização das crianças (ensinar a ler, escrever e contar - cálculos matemáticos) e o ensino da doutrina cristã, que ocorriam nas missões volantes; as casas para a doutrina dos índios não batizados e os colégios, que abrigavam meninos portugueses, mestiços e índios batizados, e onde “a educação tinha um caráter mais abrangente e estava voltada para a formação de pregadores (índios convertidos ao cristianismo) que ajudavam os jesuítas na conversão de outros índios” (RIBEIRO, 1984, p. 127).

A metodologia jesuítica de ensino baseava-se em uma estrutura curricular e no código pedagógico chamado Ratio Studiorum, um manual que continha conjuntos de normas e/ou regras para ajudar e nortear as atividades de cunho pedagógico dos professores e na organização e administração escolar dentro dos colégios da ordem jesuítica.

“Os jesuítas construíram uma ampla ‘rede’ de escolas elementares e colégios e o fizeram de modo muito organizado e contando com um projeto

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pedagógico uniforme e bem planejado, sendo o Ratio Studiorum a sua expressão máxima” (SANGENIS, 2004, p. 93). Assim, o Ratio preceitua a formação intelec-tual clássica estreitamente vinculada à formação moral embasada nas virtudes religiosas, nos bons costumes e hábitos saudáveis a sociedade, explicitando de forma detalhada as modalidades curriculares das instituições escolares; o acompanhamento do desenvolvimento da aprendizagem e a promoção dos alunos; condutas e posturas respeitosas que os conduziam (professores) até os que aprendiam (alunos).

Sabe-se que:

O manual contém 467 regras, cobrindo todas as ativi-dades dos agentes envolvidos ao ensino. Iniciava pelas regras do provincial, depois do reitor, do prefeito de estudos, dos professores de modo geral, de cada matéria de ensino; incluía também as regras da prova escrita, a distribuição de prêmios, do bedel, dos alunos e por fim as regras das diversas academias. Além das regras e das normas, o Ratio apresenta os níveis de ensino (Humanidades, Filosofia e Teologia) e as disciplinas que os alunos deveriam cumprir (TOYSHIMA; COSTA, 2012, p. 3).

Nota-se que o referido manual pedagógico vislumbrava um currículo de educação literária e humanística. Primado pela organização do ensino curricular, das regras e normas impostas aos professores. “Destaque-se que para tanto não era requerido apenas o exercício intelectual por meio do uso da memória, justamente porque o exercício de interpretações também era uma exigência no decorrer do estudo” (SANGENIS, 2004, p. 65).

Mesmo com toda a estrutura, organização e regras pedagógicas e admi-nistrativas, a educação jesuítica não satisfazia o Marquês de Pombal, primeiro--ministro de Portugal de 1750 a 1777, porque as escolas da Companhia de Jesus atendiam aos interesses da fé, enquanto Pombal se preocupava em atender os interesses do Estado.

Essa discordância de objetivos fez com que os jesuítas fossem expulsos das terras brasileiras em 1759. Assim, a missão educacional e civilizatória, inicialmente sobre responsabilidade dos missionários jesuítas, teve como foco a submissão dos indígenas às normas da metrópole portuguesa, “domestican-do-os” e disponibilizando-os ao mercado de trabalho braçal.

A sobreposição da cultura eurocêntrica sobre a indígena era o principal foco da escolarização, ou seja, civilizar o povo indígena para torná-lo cristão, cidadãos a serviço da coroa portuguesa. Por intermédio da educação negaram-se os saberes, as formas de organização social, política, econômica e religiosa e

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internalizou-se a do colonizador, fazendo com que perdessem suas identidades, tornando-se fracos, inseguros e mais dóceis para a dominação.

A COLONIALIDADE DE PODER EUROCÊNTRICA ATRAVÉS DA CATEQUIZAÇÃO JESUÍTICA NA EDUCAÇÃO DO BRASIL E SUA DOMINAÇÃO ETNOCÊNTRICA SOBRE OS POVOS INDÍGENAS

“O colonizador europeu impôs aos povos indígenas a sua cultura, os seus modos de ver o mundo, o seu conhecimento, a sua epistemologia; assim, moldou e formatou consciências, colonizou o pensamento por meio de uma única lógica, a eurocêntrica.” Santos (2007, p. 38) denomina esse fato como epistemicídio, ou seja, a morte das diversas formas de saberes dos povos indí-genas que sustentavam suas visões, leituras e interpretações do mundo e que faziam parte de suas histórias e culturas.

O entendimento dessas questões está, segundo Mignolo (2011), na colo-nialidade do poder, que, por meio da colonização epistemológica eurocêntrica e etnocêntrica foi se constituindo no processo de formação do sistema moderno colonial, tendo a Europa como centro privilegiado de produção e avaliação do conhecimento.

Razão pela qual, as cosmologias e os saberes indígenas foram subalter-nizados, invisibilizados e resumidos a superstições, folclore, entre outros. É a colonização da memória, que ocorreu por meio da negação da língua, pois os povos indígenas eram proibidos de falá-la na escola; dos conhecimentos, aproveitou-se apenas o que era útil ao capital; e a religião foi atacada, com a imposição de um único Deus.

Inicialmente, a população colonizada foi distinguida pelas características fenotípicas e, posteriormente, a cor da pele adotada como único critério para categorização racial da população. Desta maneira, cabe-nos pensar sobre a categoria raça e as devidas reflexões e discussões sobre a terminologia.

O termo raça vem possivelmente do italiano razza, e pode ser descrito como raça ou linhagem. Podemos identificar que a terminologia começou a ser usada e serviu para se estabelecer a supremacia racial branca sobre povos espalhados pelo mundo colonizado. Consequentemente, naturalizaram-se as diferenças que foram construídas socialmente, gerando a discriminação e o preconceito, pois “raça e identidade racial foram estabelecidas como instru-mentos de classificação social básica da população” (QUIJANO, 2005, p. 228)

Desse modo, o uso do termo raça se destinou e foi utilizado como meio de organização social e econômica pelo colonizador para hierarquizar e subal-

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ternizar outros povos, como a civilização indígena. Processo esse usado justi-ficativa para a opressão das sociedades colonizadas.

Mas, cabe destacar no âmbito biológico o seguinte:

A descoberta de que do ponto de vista biológico não existe raça não significa que as pessoas mudam suas representações sociais de acordo com as últimas des-cobertas científicas, nem tampouco significa que elas não utilizem essa categoria no seu dia-a-dia. Ao con-trário, a despeito da genética revelar que as diferenças entre um negro, um branco e um oriental são ínfimas a ponto de não fazer sentido falar em raça, as pessoas continuam a efetuar classificações e hierarquizações entre os seres humanos em virtude de traços morfo-lógicos (BERNARDINO, 2004, p. 19).

A partir do paradigma cientifico, com o advento da evolução dos estudos da biologia, comprova-se que o ser humano se deve colocado na condição de “raça” única. Dessa maneira, cairá por terra a legitimidade do termo raça como forma de classificar a humanidade.

Isso, porquanto:

Combinando todos esses desencontros com os progres-sos realizados na própria ciência biológica (genética humana, biologia molecular, bioquímica), os estudiosos desse campo de conhecimento chegaram à conclusão de que a raça não é uma realidade biológica, mas sim apenas um conceito aliás cientificamente inoperante para explicar a diversidade humana e para dividi-la em raça. Ou seja, biologicamente e cientificamente, as raças não existem (MUNANGA, 2003, p. 3).

Posto isto, somente no início do século XX, os resultados dos estudos criticamente fundamentados na genética humana levaram a uma ruptura terminológica com a noção de raças humanas. A obra “A invenção das raças”, do geneticista Barbujani (2007), apresenta argumentos que demonstram que só há uma raça humana, que nossa espécie não é uma miscelânea de grupos, biologicamente muito distintos, e mais: somos jovens no planeta e viemos da África. Mas, sociedades subalternizadas no passado, como indígenas e africanas, sofreram vertiginosamente como colonizados dentro da categorização racial, no panorama colonizador eurocêntrico.

Nesse sentido, voltaremos para causa indígena, para compreendermos o processo de inferiorização das populações indígenas. Na colonização bra-sileira, que iniciou no século XVI, foi necessário implementar mecanismos

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pelo colonizador, dentre eles a criação da categoria raça. O conceito de raça foi criado pelo colonizador para classificar os dominados e desta forma sub-jugá-los e inferiorizá-los.

Dessa maneira, é estabelecida a hegemonia da raça branca sobre as não brancas. Para Quijano (2005, p. 102), a ideia de raça “é uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial [...] o euro-centrismo”. Por meio da categoria raça as diferenças entre europeus e não europeus foram naturalizadas e universalizadas. Portanto, na colonialidade do poder, o referido autor descreve este processo de dominação como algo específico da modernidade.

A nova identidade atribuída pelos europeus colocou, numa mesma categoria, culturas diversas e, considerando que as instituições que serviam de representação para as identidades nacionais podiam também ser aplicadas aos grupos indígenas (língua, território tradicionalmente ocupado, história comum), porque não dizer, nações diferentes.

Na América, a ideia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista. A posterior constituição da Europa como nova identidade depois da América e a expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram à elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhe-cimento e com ela à elaboração teórica da ideia de raça como naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus (QUIJANO, 2005, p. 229).

Podemos notar que houve a imposição de um modelo de currículo escolar padronizado por uma única cultura que impôs um processo de naturalização e de dominação europeia que passava pela desconstrução da identidade cul-tural dos indígenas e pela imposição do modo de vida europeu. As divindades dos indígenas deveriam ser abandonadas, devendo esses aceitar o batismo e a iniciação no Cristianismo. Os modelos sociais de convivência nas antigas aldeias passaram a ser repelidos pelos colonizadores que precisavam inserir os indígenas no modelo de servidão dos Estados europeus para, assim, disporem de sua mão-de-obra.

Os modelos técnicos de produção, através dos quais os indígenas tradi-cionalmente se relacionavam com o meio ambiente também precisavam ser substituídos, pois as suas roças de subsistência não dariam conta do volume de produção necessário à empresa da colonização conforme as ambições dos exploradores europeus.

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A classificação social colonial produziu novas identidades baseadas, inicialmente, na cor da pele. Assim emergiram índios, negros, mestiços, oli-váceos e amarelos como raças dominadas e consideradas inferiores. “A raça dominadora e superior autodenominou-se branca e, em meados do século XVIII, passou a chamar-se europeu” (QUIJANO, 2005, p. 19).

Ao operar a desconstrução identitária das populações indígenas, iniciada no século XVI, com a chegada dos europeus, criou-se uma nova identidade aos grupos humanos ali existentes, generalizando-os como índios. Essa classificação homogeneizante estabeleceu uma nova identidade a partir da qual os índios, dali em diante assim chamados, passaram a ser representados na interação com o colonizador europeu.

A catequização foi um elemento de profunda importância na descons-trução da identidade indígena, pois, na América, e especialmente no Brasil, entre o século XVI e XIX, cristianizar, catequizar e civilizar eram parte de um mesmo processo de sobreposição dos modelos europeus aos modelos indígenas, sendo os três momentos considerados não apenas sucessivos, mas praticamente sinônimos quando aplicados à questão indígena. Contudo, foi ao longo do século XIX que se desenvolveu uma perspectiva biológica (comportamental) para se categorizar a espécie humana.

Nesse período:

[...] impôs-se a perspectiva que buscava nas diferenças físicas entre os homens indícios de caráter e de perso-nalidade, o que terminava por localizar, no contexto da cientificidade, a explicação biológica material do atraso tecnológico de muitas sociedades humanas. Legitimando domínios, tutelas e, eventualmente, exter-mínios em massa, não faltaram trabalhos preocupados em demonstrar o atraso histórico das culturas não-o-cidentais (FERREIRA NETO, 1997, p. 320).

Para a consolidação da colonialidade do poder, a articulação de todas as formas históricas de controle do trabalho por meio da regulação, exploração e monitoramento da produção-apropriação-distribuição de produtos associadas a relação capital-salário e do mercado mundial, configurou um moderno padrão global de controle do trabalho, constituído por uma nova, original e singular estrutura de relações de produção: o capitalismo mundial. “Assim, cada raça foi controlada por meio de uma forma específica de trabalho, tornando-se uma maneira de controle dos colonizados” (QUIJANO, 2005).

Esses princípios se mantiveram nos séculos de colonização, reforçados pela atuação das ordens religiosas como jesuítas, beneditinos, franciscanos, carmelitas, lassalistas e salesianos, e retomados pelo Estado brasileiro no iní-cio do século XX. Como afirma Henriques (2007), até o início do século XX o

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indigenismo brasileiro vivenciou uma fase de total identificação com a missão católica e o Estado dividiu com as ordens religiosas, mais uma vez, a respon-sabilidade pela educação formal dos índios com o intuito de transformá-los em “cidadãos”. A escola catequizadora, transmissora/reprodutora da cultura europeia e etnocêntrica, cumprem a sua parte enquanto aparelho ideológico do Estado.

Verifica-se, nesse diapasão:

[...] noções elementares da língua portuguesa (leitura e escrita) e estímulo ao abandono das línguas nativas, além de se introduzir uma série de pequenas alterações no cotidiano de um povo indígena, a partir de formas de socialização características de sociedades que têm na escola seu principal veículo de reprodução cultural. O modelo de governo idealizado, e que foi em certos casos com certeza implementado, procurava atingir a totalidade das atividades nativas, inserindo-se em tempos e espaços diferenciados dos ciclos, ritmos e limites da vida indígena (SOUZA LIMA, 1995, p. 191) (Grifos nossos).

O Estado deu continuidade ao projeto pedagógico que vinha sendo ope-racionalizado pelas ordens religiosas baseado na extinção das línguas nativas e de suas formas de organização social e temporal que envolve outros mundos, considerado pela educação colonizadora como primitivas, selvagens, dentre outros adjetivos que os inferiorizavam.

Exsurge que:

O órgão do Governo criado em 1967 foi a Fundação Nacional de Assistência ao Índio (Funai) que substi-tuiu o Serviço de Proteção ao Indio (SPI). A educação colonizadora contou com parcerias de instituições internacionais como o Summer Institute of Linguistics (SIL), para a realização de pesquisas com o objetivo de registro de línguas indígenas; à identificação de sistemas de sons; bem como a elaboração de alfabetos e análises das estruturas gramaticais (HENRIQUES, 2007, p. 68).

A referida instituição também estudava a língua indígena com a fina-lidade de traduzir a Bíblia para os índios. Todas essas ações foram voltadas, segundo o citado autor, para “a preparação de material de alfabetização nas línguas maternas e de material de leitura, o treinamento do pessoal docente,

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tanto da Funai, como de missões religiosas, e a preparação de autores indíge-nas.” (HENRIQUES, 2007, p. 15).

Dessa maneira, os povos indígenas passaram a ser alfabetizados na sua língua materna e na língua portuguesa. Quando atingiam o domínio deste idioma, o ensino passava a ser realizado exclusivamente em português, era um “bilinguismo de transição” (HENRIQUES, 2007, p. 16).

A língua indígena servia para facilitar o processo de integração do índio à cultura da sociedade não índia, pois, quando aprendia o português deixava de falar sua língua, simultaneamente, abandonava seu modo de vida e sua identidade diferenciada.

No intuito de garantir o sucesso do ensino bilíngue, passou-se a formar jovens nas aldeias para desempenhar a função de tradutor entre os alunos monolíngues e o professor não indígena, o qual ensinava o português e as demais matérias escolares, todas proferidas na língua hegemônica. A escrita da língua indígena, ensinada no primeiro ano escolar, servia de passagem para o aprendizado do português e para a introdução, entre os indígenas, de conhecimentos e visões de mundo eurocêntricos.

Nesse foco:

Esse papel será instrumentalizado pelo discurso de valo-rização da diversidade linguística dos povos indígenas, com a proposição da utilização das línguas maternas no processo de alfabetização para grupos que não faziam uso da língua portuguesa, visando facilitar o processo de integração à sociedade nacional. Assim, o ensino bilíngue é estabelecido como prioridade e busca-se implantá-lo nas escolas indígenas por meio de mate-riais produzidos para a alfabetização e da capacitação de índios para assumirem função de alfabetizadores em seus respectivos grupos (HENRIQUES, 2007, p. 14).

De acordo com Ribeiro (2017), o espanto não está na morte de inúmeros índios, uma vez que, contra eles se travou uma guerra de extermínio sem para-lelo na história, de duração multissecular, com muita perversidade e conduzida eficazmente com a utilização das armas de fogo. A autora afirma que a sociedade brasileira contrabandeou ideologias europeias como fruto de sua colonização, per-petuando a colonialidade do poder. Tais ideologias foram consolidadas enquanto patrimônio cultural como herança da velha Europa colonizadora.

MÉTODO

A pesquisa adotou metodologicamente a abordagem de um estudo descritivo, apoiado no referencial das ciências sociais, da pedagogia e antro-

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pologia interpretativista, através do levantamento bibliográfico. Para a análise compreensivo-interpretativa da análise de dados que foram realizadas a partir da técnica da análise de conteúdo pela proposta por Bardin (2002).

O processo de análise de conteúdo na triangulação de dados, confrontan-do-os em diferentes fontes, e aproximando o modelo dos aportes teórico-epis-temológicos que dentre os tipos de pesquisa bibliográfica, preferencialmente optou-se por estudo descritivo, por compreender que atende aos objetivos definidos neste estudo, que aborda o contexto da educação escolar dos povos indígenas no Brasil como expressão da colonialidade do poder da cultura europeia cristã.

Realizou-se uma pesquisa bibliográfica com foco no acervo cultural e epistemológico sobre a colonialidade que se entende aqui como um padrão de poder que permeia as relações intersubjetivas entre colonizador europeu e o colonizado no caso dos povos indígenas. A questão norteadora da investi-gação: como ocorre o currículo escolar dos povos indígenas no Brasil como colonialidade do poder da cultura europeia cristã? A pesquisa Bibliográfica ou Quantitativa e suas principais características, entre elas, seu caráter descritivo. Uma pesquisa bibliográfica consiste em ser também descritiva, podendo ser definida como aquela que “observa, registra, analisa e correlaciona fatos ou fenômenos (variáveis) sem manipulá-los” (JARDILINO, ROSSI, SANTOS, 2000). A pesquisa bibliográfica implica em que os dados e informações necessárias sejam obtidos a partir do levantamento de autores especializados através de livros, artigos científicos e revistas especializadas, entre outras fontes.

“A pesquisa bibliográfica procura explicar um problema a partir de referências teóricas publicadas em documentos” (CERVO; BERVIAN, 1996). Em outras palavras, quando os dados coletados são oriundos da “própria bibliografia”, significa que a técnica utilizada para elaboração do tema em desenvolvimento é a pesquisa quantitativa (TOZONI-REIS, 2009).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os complexos processos educacionais e de currículo e de transculturação evidenciam uma a partir de uma escola, estruturada como uma organização curricular escolar que se concentrou na desconstrução violenta da cultura indígena por meio da ação intencional dos colonizadores em transformar os indígenas em colonos submissos, obedientes e escravos para que servissem de instrumentos à lógica do capital em processo de implantação. Destaca-se que as violências e violações contra os povos indígenas não são apenas resquícios do passado. Os grupos indígenas atuais, descendentes daqueles colonizados por esse processo, continuam a conviver com diversas atrocidades no Estado Republicano Democrático Brasileiro e um currículo escolar que não traduz sua verdadeira cosmologia indígena.

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Faustino e Silva (2003, p. 30), discorrem que em 1889 houve a Proclamação da República o qual acalentou a necessidade de renovar a sociedade brasileira e consequentemente, novos olhares passaram a ser direcionados à educação indígena. Segundo as autoras supracitadas “[...] estudiosos são unânimes em afirmar que começou a se desenvolver uma política menos desumana e mais abrangente no sentido de proteger os povos indígenas das barbáries cometidas nos séculos anteriores”.

Entende-se que o processo de colonização ocorreu eminentemente legitimado na base etnocêntrica europeia a partir da imposição do currículo que massificou toda uma educação indígena e que ocorreu de forma gradativa, sedimentada e implantada primeiramente pelos padres jesuítas nos dois pri-meiros séculos da colonialidade de poder da monarquia portuguesa, processada pela doutrina católica como forma de inferiorização étnica, religiosa e social de toda amálgama indígena para corroborar com a hegemonia cultural europeia.

Diante desse contexto histórico algumas inquietações precisam nos mobilizar enquanto historiadores da História da Educação. Como descolonizar o pensamento contemporâneo? Como a história da educação pode influenciar o processo de retomada da autonomia dos sujeitos indígenas, em um processo educativo verdadeiramente indígena e colocando-os como protagonistas na busca da emancipação humana por meio da conscientização? Por fim, a quem interesse essa colonialidade do currículo escolar aos povos indígenas? Quem legitima hoje esse modelo curricular?

Por certo, a construção do conhecimento por meio de uma reflexão crítica acerca da estrutura social que perpetua a colonialidade, a relação de inferioridade com culturas que invadem e transformam a realidade educacional num processo histórico de aculturação, tornar-se-á a retomada do compromisso ético da educação com a perspectiva da emancipação humana no sentido de estabelecer uma ação dialógica que problematize e proponha efetivamente mudanças na realidade social.

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ENTRE SILVESTRES E EXÓTICOS: OS ANIMAIS DENTRO DA CULTURA CHIQUITANA

Denildo da Silva Costa3

INTRODUÇÃO

Sobre etnia Chiquitana, (TOMICHÁ, 2002 e 2012; PUHL, 2011), define uma nomenclatura genérica, representando a união de dezenas de povos e culturas unificadas em missões religiosas jesuítas no final dos séculos XVII e XVIII, região central da América do Sul. Nas palavras de Tomichá (2002), o processo foi formado por grupos indígenas pertencentes a seis famílias linguísticas diferentes, houve homogeneização de povos que eram aliados e inimigos entre si. Esse processo é composto por relações interétnicas que os constituem culturalmente hoje, compartilhados pela fronteira internacional política territorial entre República federativa de Brasil e o Estado Plurinacional da Bolívia, onde suas aldeias e comunidades estão no departamento de Santa Cruz (Bolívia) e estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul (Brasil). Em ter-ritório Matogrossense principalmente nas cidades de Vila Bela da Santíssima Trindade, Cáceres, Pontes e Lacerda e Porto Esperidião.

Referente às populações autóctones publicou-se a obra: o Selvagem, Magalhães (1876) assim descrito sobre alguns costumes:

Quem visita uma aldeia selvagem quase visita um museu vivo de zoologia na região onde está localizada a aldeia; araras, papagaios de todos os tamanhos e cores, macacos de diversas espécies, porcos, quatis, mutuns, veados, avestruzes e até sucuris, jibóias e crocodilos [...]. O cherimbabo do índio (o animal que ele cria) é quase um membro da família. (MAGALHÃES, 1876. p. 33).

Vander Veldem (2011) apresenta a palavra xerimbabos, denominação do litoral tupi para a prática de animais silvestres trazidos desde jovens e criados na interação entre humanos em aldeias. Erikson (2012) define relações sim-bólicas complexas que os ameríndios estabelecem entre os lugares de que se apropriaram (seu habitat) e os seres vivos (animais, plantas e humanos) que ali estão ou transitam. Os animais são tratados igualmente como seus novos fami-liares humanos, incluindo a convivência íntima até os rituais de sepultamento, nos quais Erikson apresenta em detalhes as relações com os Matis, indígenas Amazônicos: “há uma dedicação especial, onde os mamíferos são alimentados no

3 Mestre em Ciências Ambientais (UNEMAT). Docente na rede pública de educação básica (Vila Bela da Santíssima Trindade – MT). CV: http://lattes.cnpq.br/8461506995455809

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peito e depois, como pássaros e bebês humanos, recebem comida pré-mastigada e oferecida pela boca” (p. 22)

Vander Veldem (2011) em obras da etnia Karitiana (Rondônia), descreve o conceito de grupo e animais exóticos, nos quais definem: cachorro é como filho, destacando relações de familiaridade / consanguinidade que o autor afirma cortar as fronteiras entre humanos e não-humano. Sobre a mesma etnia, o autor afirma que para comer é preciso caçar, xerimbabos não são carne.

Entre os chiquitano, os xerimbabos são considerados membros da família com maior preferência por pássaros. Durante a pesquisa etnográfica em seis comunidades nos municípios de Vila Bela da Santíssima Trindade – Brasil e San Ignácio de Velasco - Bolívia, entre os anos de 2015 a 2020, foram cataloga-das sete espécies diferentes, a maioria representada pela família Psittacidae: Arara canindé (Ara ararauna); Papagaio verdadeiro (Amazonas aestiva – figura 01); Pequeno Maracanã (Diopsittaca nobilís- figura 01); Periquito de peito ama-relo (Brotogeris chiriri); Maracanã (Primolius maracana); Ema (Rhea americana) e Tucanuçu (Ramphastos toco), três espécies de mamíferos: Veado-mateiro (Mazana americana); Queixada (Tayassu pecari) e macaco-prego (Sapajus apella).

Não há registro de répteis, anfíbios e algumas espécies de pássaros representam maus presságios, como pássaros da ordem Falconiformes e Stri-giformes (aves de rapina), representados por gaviões e corujas.

Figura 01 Xerimbabos Chiquitano

Figura 01 – Aves Silvestres: Papagaio verdadeiro (Amazonas aestiva) e Pequeno Maracanã (Diopsittaca nobilís; Aves exóticas: Pato doméstico (Anas platyrhynchos domesticus) e Galinhas (Gallus gallus domesticus).

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Os pássaros são preferidos para manter relacionamentos xerimbabos, mas algumas espécies, especialmente as aves de rapina: gaviões, gaviões e corujas, simbolizam crenças que trazem prenúncios ruins, maus presságios e morte. Essas espécies são retiradas ou afastadas da convivência, como a espécie coruja Suidara (Tyto alba), denominada mortal, seu canto ou sobrevoo das casas é interpretado como um sinal de morte aos moradores ou de alguém da família. Há um animal noturno especial, acredita-se que seja um pássaro que assobia alto e único, sinal da presença de espíritos malignos próximo as moradias, todos os objetos para repouso (bancos e cadeiras) que estão no espaço são viradas ao contrário, durante período noturno, segundo as crenças, para espíritos que não fazem o bem aos vivos não fiquem nas proximidades. Nimuendajú (1987) e Silva (2015) analisam essas mitologias malignas, animais noturnos e inimigos de estrelas luminosas, também descritas em várias culturas indígenas.

A entidade protetora dos animais é o Jenarrir-ti: a personificação antro-pomórfica, com corpo humano e pelagem animal, sempre aparece montada em uma anta (Tapirus terrestre) ou porco do mato (Pecari tajacu). Qualquer violação das regras cria uma dívida negativa entre o ser humano e o ser, existe uma preocupação com o respeito em manter um bom relacionamento e pro-teção com a entidade.

A CAÇA

Exclusivamente masculinas, as caçadas relatadas pelos missionários eram realizadas por todos os grupos: os caçadores e coletores dependiam das estações, pois os grupos sedentários iniciavam os processos de caça após a semeadura no campo, percorriam grandes distâncias para reunir grandes esto-ques de proteína animal para o abastecimento de consumo sazonal. Auxiliado por variedades de armas de caça (arcos e flechas específicas para animais, macanas e boleadoras), utilizando estratégias em cercados de rebanho, auxílio na queima controlada e perseguição com auxílio de cães.

O beneficiamento da carne era defumado até que todo o líquido (na textura de madeira seca) se perdesse, armazenado e depois transportado para os espaços de moradia, consumido in natura no momento da caça e triturado na forma de farinha para produzir sopas para consumir acompanhado com mandioca (Burgos, 1728; Fernández, 1996; Schmid, 1988 e Knogler, 1970).

Segundo Riester (1976), os Hichis (vivem fora das aldeias) não têm corpo humano, são antropomórficos, vivem em montanhas, rios, matas e animais. Uma caçada bem-sucedida só ocorre com a autorização do Jenarrir-ti (dono do animal) que regula a quantidade de alimento necessária para a família, exigindo uma caçada com habilidade e precisão. Caso contrário, deixando um

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animal ferido, os Hichi lançam punições malignas como escassez de alimento até enfermidade.

Atualmente as caçadas são organizadas individualmente em forma de sondagem (espera o animal em um local específico: árvore com frutificações, barreiros “locais com concentração de sódio no solo atraindo animais” e fonte de água para dessedentação) ou coletivamente e com a ajuda de cães para orien-tar as investidas. Tudo de acordo com as épocas do ano, o amadurecimento dos frutos, os hábitos das espécies animais e sua localização onde executam estratégias adequadas.

A caça de Caititus (Pecari tajacu) é organizada por auxílio de cães que varrem a mata, assim que são localizados, os animais são encurralados em uma toca (árvore oca, enterrada no solo), o caçador acompanha a matilha e abate o animal com objetos como: foice, facão, lança ou arma de fogo. Durante o processo de subtração da carne e retirada do couro, as vísceras do animal abatido são compartilhadas com os cães que auxilio na caça, uma recompensa pelo sucesso na caçada. Uma das estratégias de treinar os cães para a caça é o compartilhamento da caça com os mesmos que ao consumir aprendem com o odor do animal abatido, aprendendo a se identificar nas próximas caçadas.

Atualmente encontram dificuldades para manter rituais de caça, a presença de gado (bovinocultura) na região dificulta muito, animais silvestres adentram ao meio dos rebanhos, impossibilitando a concretização e abate, sem falar nas proibições impostas por fazendeiros que trancam os acessos. É importante notar que os caçadores são guiados pelos ciclos cosmológicos, datas religiosas e ciclos biológicos das espécies. Animais com filhotes ou em reprodução não são mortos. Uma prática muito comum, depois da caça ou da pesca, é dividir os recursos com as pessoas mais próximas. Mauss (2003) descreve isso como um fenômeno social de reciprocidade denominado Dom.

QUELONIOS: JABUTI UM SER ESPECIAL

Pezzuti (1998) define que, durante séculos, as tartarugas têm sido fonte de proteína na dieta de populações humanas que vivem em lugares hostis e ambientes isolados, e ainda hoje em várias partes do mundo.

Os Testudinidae são quelônios terrestres adaptadas à vida nas matas e campos da região, representado pelo Jabuti / peta, conhecido em outras regiões do Brasil como jabuti Piranga (Chelonoidis carbonarius Spix), por sua cor vermelha, seu manejo entre os chiquitano são: alimento (carne e ovos), medicamento (casca) e objeto utensílio (casca). A coluna vertebral do animal é usada para remédio para problemas de coluna humano (exemplar animal do sexo feminino para homens e masculino para mulheres), os ossos são usados

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como chá ou curtimento em bebidas alcoólicas, casco (carapaça) para mulheres com hemorragias menstruais.

Há crença de que a onça-pintada (Panthera onca) não consegue devorar o jabuti, por ser um animal lento, pensativo e muito inteligente, conseguindo até enganar o felino. Há uma relação de pacto entre caçador indígena e o quelônio, uma vez encontrado um jabuti durante caçada, realiza-se um pedido de sucesso onde a amarra no local, uma vez o pedido concedido “ocorrências boas na caça” volta-se e desamarra para não promover azar, presságios ou castigos no futuro.

Sobre o conhecimento da espécie, os chiquitano definem os jabutis: com reprodução em fevereiro, todos nascem sozinhos, nidificam em buraco de catete (porco do mato), os ovos podem ser consumidos na forma de farofa. A identifica-ção do gênero sexual do animal: casco ereto é feminino, casco profundo e curvo é masculino. Animal que resiste até seis meses sem beber água. Existem muitas lendas para explicar sua biologia e comportamento animal, uma revela que o motivo de morar em um casco porque ele não abriu mão de sua moradia para receber visitas de amigos.

É um animal que possui hábitos noturnos e diurnos, para sua caça existem cães especializados, a classificação das espécies, estão em pequenos (pretos) que vivem ao campo e as maiores (vermelhas e amarelas) nas flores-tas. O órgão mais apreciado para consumo é o fígado (farofa), geralmente são arremessados ao chão para que o referido órgão dilate e aumente de tamanho.

ANIMAIS DOMÉSTICOS

Animais domésticos foram introduzidos pelos contatos interétnicos (cães, gatos, patos, galinhas, jumentos, cavalos e bois) são animais de múl-tiplas proficuidades auxiliando nos trabalhos cotidianos e algumas espécies são reservas de estoque vivo para alimentação. Uma prática muito comum é adoção de animais filhotes que por vários motivos (rejeição da genitora, morte ou abandono) acabam sob os cuidados íntimos pessoais humano, são batizados de Guacho, ato que se cria um laço afetivo entre humanos e animais.

As roças e o extrativismo nos bosques auxiliam muito no provimento de alimentações para esses animais de criação. Algumas comunidades/aldeias existem pecuária extensiva em pequenas quantidades, onde cada família possui seu rebanho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há necessidade de estudar as etnias, suas crenças e práticas para com-preender seu universo de envolvimento com a fauna local. Entre os Chiquitano,

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as aves são prediletas, apresenta admirações entre sentimentos de adoração a recusa de presságios ruins.

A etnia nos apresentou enormes relações sentimentais com animais silvestres e com animais exóticos, esses últimos como rica fonte alimentar para soberania alimentar (estoque vivo de alimento).

REFERÊNCIAS

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MAGALHÃES, C. O selvagem. Typografia da reforma. Rio de Janeiro, 1876.

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PUHL, J. I. Territorialidades chiquitanas em comunidades rurais da Província de Velasco, Bolívia (1953-2006). São Leopoldo, RS: UNISINOS, 2011.

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SCHMIDT, M. Brief Nr. 18a: P. Martin Schimid an P. Joseph Schumacher SJ, S. Raphael Chiquitos, 10. Oktober 1744. S. 90-97. En: Rainald P. Fischer (ed.), P. martin Schimid SJ, 1694-1772. Siene Briefe und sein Wirken. Brief Nr. 19a: P. Martin Schimid na Franz Schimid OFM Cap, S. Raphael Chiquitos, 10. Oktober 1744. S. 100-105. En: Rainald P. Fischer (ed.), P. martin Schimid SJ, 1694-1772. Siene Briefe und sein Wirken. 1988.

SILVA, V. C da. Carnaval: alegria dos imortais ritual, pessoa e cosmologia entre os Chiquitano no Brasil. Tese doutorado em antropologia social Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015.

TOMICHÁ, R. C. La primeira evangelización em las reducciones de Chiquitos, Bolívia, 1691-1767: protagonistas y metodologia misional. Cochabamba-Bolivia: Editorial verbo Divino/Ordo fratrum Minorum Conv/UCB, 2002.

VANDER VELDER, F. “Rebanhos em aldeias: investigando a introdução de animais domesticados e formas de criação animal em povos indígenas na Amazônia (Ron-dônia)”. Espaço Ameríndio, v.5, n1:129-158. Porto Alegre, 2011.

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MITO E LITERATURA: UMA LEITURA DA NARRATIVA COM A NOITE VEIO O SONO (2011), DE LIA MINÁPOTY

Francisco Bezerra dos Santos4

Karen Rafaela da Silva Cordeiro5

INTRODUÇÃO

A partir das duas últimas décadas, a produção literária das comunida-des indígenas brasileiras tem se expandido demasiadamente. Os escritores representantes das mais variadas etnias veem na escrita dos mitos uma forma de salvaguardar suas histórias ancestrais. São histórias da criação do mundo, dos heróis civilizadores e muitas outras que explicam a existência das culturas indígenas.

Os mitos indígenas sempre estiveram presentes nas leituras dos brasi-leiros. Seja em narrativas de viagens ou mesmo na literatura do Romantismo. Na atualidade, esses relatos são apropriados por quem de fato tem autoridade para usufruí-los. Os mitos são o fulcro das narrativas de autoria indígena, cole-tadas por meio dos relatos mnemônicos. A literatura, para esses escritores, é uma forma de dialogar com a sociedade hegemônica e mostrar o outro lado da história. Essa escrita funciona, ainda, como instrumento de manutenção das identidades indígenas. Diante disso, o objetivo deste trabalho é discutir o mito a partir da leitura da narrativa indígena Com a noite veio o sono (2011), de Lia Minápoty.

Lia Minápoty é uma representante das muitas mulheres indígenas que se reafirma na literatura. De origem Maraguá, nasceu na aldeia Yãbetue’y, na área indígena Maraguapagy, no rio Abacaxis-AM. É uma das jovens lideranças das mulheres Maraguá, atuante e palestrante da causa indígena. Além de escritora também leciona para crianças de sua aldeia.

Para efeito de sistematização do trabalho, o configuramos da seguinte forma: Inicialmente, buscamos conceituar as características do mito com o apoio de estudiosos da área, em seguida, procuramos aplicar esses conceitos na análise da narrativa indígena escolhida. Por fim, com base na metodologia proposta por Erwin Panofsky (2017), analisamos como a narrativa mitológica é incorporada nas composições imagéticas da obra.

4 Doutorando em Letras: Estudos Literários (UFPR). CV: http://lattes.cnpq.br/5006822830827676 5 Mestra em Letras e Artes (UEA). CV: http://lattes.cnpq.br/5755763045522163

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MITO E LITERATURA: CONCEITUAÇÃO E DIÁLOGOS

Definir o mito é uma tarefa difícil, já que se apresenta muitas vezes como um objeto ilimitado, sujeito a muitas interpretações, de diferentes áreas do conhecimento. Na literatura, há pouco tempo, o mito tem ganhado notorie-dade. Os mitos encontram resguardo na literatura pelas vias do ato de narrar. Lembremo-nos da herança clássica que chegou até nós pelo viés literário. Na visão de Eliade (2016), a herança clássica foi “salva” pelos poetas, pelos artistas e filósofos. Os deuses e seus mitos foram transmitidos à Renascença e ao século XVII, pelas criações literárias e artísticas.

Conforme Krüger (2005, p. 14), “a matéria narrada é um denominador comum entre o mito e a literatura”. Nessa mesma linha de pensamento, Lou-reiro (2009) compreende o mito como uma etnoencenação poética da lingua-gem com uma finalidade contemplativa e sem ordenamento legal executivo. O estudioso vê semelhanças do mito com a epopeia, e considera o mito uma épica comprimida que narra algo objetivo com intercorrência do maravilhoso.

O conceito de mito sofreu algumas alterações ao longo dos tempos. Nesse sentido, para a compreensão do que o caracteriza, é importante buscarmos suas significações primevas. Eliade (2016) acentua que seria difícil encontrar uma definição que fosse aceita e acessível a todos. Como realidade cultural extre-mamente complexa, o estudioso questiona se é possível uma única definição englobar todos os tipos e funções do mito.

A definição que o mitólogo considera menos imperfeita é a seguinte:

[...] o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os perso-nagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo pres-tigioso dos “primórdios”. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobre-

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natural”) no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural (ELIADE, 2016, p. 11).

Os mitos, na ótica do teórico, revelam tudo que sucedeu nos tempos remotos, da cosmogonia até a fundação das instituições socioculturais. As ações reveladas pelo mito, não constituem a base de um “conhecimento” pro-priamente dito, pois exaurem o mistério das realidades cósmicas e humanas. O fato do mito trazer à tona e permitir o domínio de realidades cósmicas (o fogo, as colheitas, as serpentes etc.) configura-se como “objetos de conhecimento” e essas realidades continuam conservando sua densidade ontológica original.

Ainda segundo Eliade (2016), o mito não é uma garantia de bondade nem de moral. Sua função incide em revelar os modelos e fornecer assim, um sentido ao mundo e à existência da humanidade. É a partir do mito que des-pontam pausadamente as ideias de realidade, de valor, de transcendência e o mundo pode ser distinguido como Cosmo perfeitamente articulado, inteligível e significativo. Todas essas “revelações” engajam o homem mais ou menos diretamente, pois constituem uma “história sagrada”.

Nesse sentido, conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. A época mítica é a época dos objetos primordiais, das primeiras ações, positivas ou negativas. Os rituais, os recursos medicinais, procedimentos de caça. “Tendo em vista que a essência das coisas se identifica em certo sentido com a sua origem, o conhecimento da origem é a chave para o emprego da coisa e o conhecimento do passado se identifica com a sabedoria” (MIELIE-TINSKI, 1987, p. 201).

Campbell (1990) confirma em O poder do mito, a importância que envolve o assunto. Para o estudioso, mitos são histórias de nossa busca de verdade, de sentido, de significação através dos tempos. E o exercício de contar nossa história é uma precisão para compreendermos o mundo a nossa volta. Para as populações indígenas, narrar se configura como um ato de resistir à passagem do tempo. As narrativas sobrevivem milhares de anos através do ato mnemô-nico, e na atualidade encontram no formato de livro impresso ou digital mais um mecanismo de registro e perpetuação. Considerado frequentemente como a maior conquista da literatura oral, o mito ao longo do tempo provou ser o gênero mais atraente e ao mesmo tempo o mais complexo de compreender “porque, embora lide com questões cosmológicas, ele é, de alguma forma, o mais localizado dos gêneros, aquele que é mais engastado na ação cultural” (GOODY, 2012, p. 53).

Sobre a função dos mitos, a principal, segundo Eliade (2016), consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades expressivas

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dos humanos. Contudo, a mitologia não se reduz apenas a satisfazer a curiosi-dade do homem primitivo. Pois, “sua ênfase cognitiva está subordinada a uma orientação harmonizadora e ordenadora de vida, voltada para um enfoque integral do mundo no qual não se admitem os mínimos elementos do caótico, da desordem” (MIELIETINSKI, 1987, p. 196).

Todo esse sistema que abrange os mitos serve, segundo Lévi-Strauss (1989), para estabelecer relações entre as condições naturais e sociais, ou, mais precisamente, para definir uma lei que corresponda aos contrastes significati-vos situados em vários planos: geográfico, meteorológico, zoológico, botânico, técnico, econômico, social, ritual, religioso e filosófico.

Ainda para o teórico:

O mito certifica que o ancestral surgiu em tal lugar, que percorreu tal trajeto, efetuou aqui e ali determinadas ações que o designam como o autor de acidentes de terreno que ainda pode ser observado, enfim, que ele parou ou desapareceu em um lugar determinado. Propriamente falando, por conseguinte, o mito está ligado à descrição de um itinerário e nada, ou quase nada, acrescenta aos fatos notáveis que pretende esta-belecer: que um trajeto, os olhos-d´água, os bosques ou os rochedos que o margeiam tem um valor sagrado para um grupo humano e que esse grupo proclama sua afinidade com esta ou aquela espécie natural, lagarta, avestruz ou canguru (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 267-268).

Revelar e certificar os acontecimentos torna o mito mais compreen-sivo, pois entender esse processo vai além de elucidar uma etapa na história do pensamento humano, é também compreender melhor uma categoria dos nossos contemporâneos. Nas sociedades indígenas, o relato mítico assume um papel essencial. Para a sociedade contemporânea, o termo sofre modificações e passa a significar relatos fantasiosos. O mito, no seu sentido original, como propõe Eliade (2016), seria uma história verdadeira com características do sagrado e do sobrenatural.

Conforme Guesse (2014), as narrativas com características do mito na atualidade são marcadas pela livre criação artística e também passam a receber relevantes influências da sociedade; o conto popular nasce da profanação ou dessacralização do mito, que deixa de ser religioso e se torna artístico. Desse modo, compreende-se que a poética do mito deflui de uma dimensão do seu dizer alguma coisa sobre algo sem que, necessariamente, faça algo acontecer. O mito, quando oralizado ou transformado em literatura, também não se dirige à provocação de um acontecer, mas ao mistério gozoso da poesia ou ao deleite

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desse vago estado de crispação suspensa da alma a que chamamos estética (LOUREIRO, 2009).

Como forma de ampliarmos os conceitos e auferirmos um melhor enten-dimento dos mitos, nas linhas que seguem, apresentamos um olhar analítico sobre a narrativa selecionada.

ANÁLISE DA NARRATIVA

Em Com a noite veio o sono (2011), Lia Minápoty aborda a importância da noite para os Maraguá. A narrativa como fruto da mitologia dessa etnia, busca explicar como surgiu a noite e os animais que fazem parte do período noturno. A história é iniciada situando a vivência dos Maraguá num passado longínquo.

Narra a autora:

Nos tempos antigos, os índios Maraguá moravam na mata central [...]. Sem casas, viviam ao pé das gran-des árvores agrupados em buracos ou deitados em redes atadas nos galhos das árvores. Assim eram suas aldeias. Também não tinham noite. A noite ainda não era conhecida pelos homens. Somente Anhãga, o espí-rito do mal, e outras entidades da floresta a conheciam, e usavam-na para seu proveito, por isso a escasseavam mantendo-a guardada e presa para que ninguém, além deles, pudesse usá-la (MINÁPOTY, 2011, p. 7).

A ideia que expressa o aspecto do mito aparece já no início da narrativa quando o narrador situa o tempo dos acontecimentos. Segundo o narrador, a história se passou “nos tempos antigos”. O mito, como discutido por Eliade (2016), refere-se a uma narrativa ocorrida em tempos remotos e protagonizada por Entes Sobrenaturais. Os Entes Sobrenaturais também fazem parte da narrativa. A noite que é guardada em um pote é protegida por uma entidade maligna.

O símbolo da noite, segundo Chevalier e Gheerbrant (1986), tem dupla significação. Como aspecto negativo, para os gregos a noite é filha do caos. Pro-duz igualmente o sonho e a morte. Ainda segundo essa visão, com frequência nas noites se prolongam a vontade dos deuses, que detêm o sol e a lua, com o fim de realizar melhor suas façanhas. Como aspecto positivo, a noite repre-senta o tempo da gestação, das germinações. É rica em todas as virtualidades da existência. A noite, na narrativa preserva os dois aspectos descritos pelos estudiosos.

Num primeiro momento, ela é vista como necessária, logo, são enfati-zados seus aspectos positivos para os indígenas dessa etnia:

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Quanto aos Maraguá, eram obrigados a dormir no claro, expostos ao clarão do guarasy – o sol. Por isso almeja-vam um pouco de escuridão – a pituna, para poderem dormir melhor. Dessa maneira viviam cansados e sem vontade de trabalhar. Não havia o que lhes ajudassem ou os incentivassem. A falta de escuridão lhes tirava o ânimo e assim ficavam preguiçosos (MINÁPOTY, 2011, p. 7 – grifos no original).

No excerto acima, é possível perceber a importância da noite para o bem-estar dos indígenas. Nesse momento da narrativa, a noite funcionaria como um elemento que poderia trazer o descanso e a preparação para um novo dia. Entretanto, fica claro, no decorrer da história, que há riscos na busca pela noite, pois se os heróis fossem alcançados por ela antes de chegarem à aldeia poderiam ser transformados em animais noturnos. A noite, segundo um velho pajé, estava em dois kamuty6, protegidos pelo demônio Bikoroti – entidade maligna, segundo os Maraguá. Entendemos os aspectos negativos da noite, a partir das manifestações sobrenaturais que se apresentam na escuridão. Conforme Chevalier e Gheerbrant (1986), entrar na noite é se envolver com o indeterminado, onde se mesclam pesadelos e monstros.

Na narrativa, esses aspectos são enfatizados na presença do demônio que guarda a noite: “Ao se aproximarem, ouviram lá de dentro os gritos das corujas, a yurutay piando, as guaribas cantando e o demônio Bikoroti que roncava forte enquanto dormia” (MINÁPOTY, 2011, p. 12 – grifos no original). Essa personagem representa uma figura importante dos sistemas mitológicos, um anti-herói que usufrui sozinho dos benefícios da escuridão. Esse mesmo demônio aparece em outras narrativas dessa mesma etnia. No livro Murũgawa: mitos contos e fábulas do povo Maraguá (2007), de Yaguarê Yamã é tido como uma entidade maligna que rouba almas de crianças.

Advertidos pelo pajé dos perigos da empreitada, seis jovens guerreiros decidem partir em busca da noite. Após muito procurarem encontraram o lago sagrado e os dois grandes potes. A origem da noite é tema de muitas histórias das sociedades indígenas e o local onde a escuridão é guardada também. Em Antes o mundo não existia (1980), por exemplo, a noite é guardada em uma mala que só deveria ser aberta no dia da dança, pois poderia acontecer algo de ruim. A ordem é dada por Ñami, o dono da noite. Mas tal ordem não é respeitada, a mala é aberta antes da hora e saem de dentro o japu da noite, o grilo, o que causou grande espanto. O equilíbrio só foi reestabelecido mediante um ritual. Esse novo equilíbrio é composto por duas metades simétricas: uma clara outra escura.

6 Optamos por reproduzir os termos indígenas da mesma forma como se encontram nas narrativas. Em alguns casos, os termos têm grafias variáveis e são destacados em itálico.

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Já para os Sateré-Mawé, como conta Tiago Hakiy em Awyató-pót: histórias indígenas para crianças (2011), a noite foi criada por Tupana, mas usurpada e escondida em um caroço de tucumã pela cobra surucucu, que esconde o caroço no fundo da sua casa, uma caverna no meio da floresta vigiada por animais peçonhentos. No mito dos Sateré-Mawé, o equilíbrio também é reestabelecido por um guerreiro que resgata a noite para que todos os seres possam usufruir de seus benefícios.

Na narrativa Maraguá, a noite é guardada em dois potes; ou kamuty, em língua Maraguá. Dentro desses potes também estão alguns animais da noite: “– São a coruja, a guariba, a makukawa, o bacurau, o yurutay e o macaco zogue--zogue. Todos animais da noite e que vocês ainda não conhecem” (MINÁPOTY, 2011, p. 11 – grifos no original).

Poderíamos listar aqui inúmeras etnias brasileiras e de outros países que tem suas versões sobre a origem da noite, mas ficaremos somente com os exemplos dos Maraguá, Desana e Sateré-Mawé. Temos, portanto, a mesma história aparecendo em culturas diferentes. Para Campbell (1990), essa é uma das coisas mais surpreendente dos mitos, a precisão das repetições. É pratica-mente o reflexo da mesma coisa, a mesma história, em outro meio. “Em todo o mundo e em diferentes épocas da história humana, esses arquétipos, ou ideias elementares, apareceram sob diferentes roupagens. As diferenças nas roupagens decorrem do ambiente e das condições históricas” (CAMPBELL, 1990, p. 54). Guesse (2014), que estudou os mitos em narrativas Kaxinawá, pos-sivelmente amparada nos estudos de Jung e Campbell, afirma que os mitos de diferentes culturas seriam semelhantes porque cada povo passaria por etapas semelhantes na vida, em momentos diferentes, todas as culturas apresentariam sua fase de ritos e mitos.

Voltando ao desfecho da narrativa, para conseguirem a escuridão, os heróis traçaram um plano para driblar o demônio que vigiava os potes. Con-seguido tal intento, o líder do grupo Azuaguáp atira uma flecha certeira no pote menor. Em seguida, a escuridão se espalha repentinamente, mas os seis Maraguá correm para a aldeia para não serem atingidos. Aproveitam a escuridão e dormem pela primeira vez sem a luz do sol. Eis aí mais uma vez a positividade da noite, entendida segundo Chevalier e Gheerbrant (1986) como a preparação ativa para um novo dia, de onde brotará a luz da vida. Entretanto, a quantidade de escuridão presente no pote não era suficiente para trazer o equilíbrio como acontece com os Desana. Portanto, a saga dos heróis deve continuar, com a finalidade de obter o pote maior, onde estava uma grande quantidade de escuridão que daria para todas as noites.

Dessa vez partiram apenas três guerreiros, Azuaguáp, Popóga e Diãzoáp. Estes chegaram ao lago antes dos demônios da floresta. Pegaram o pote e colocaram em um lugar estratégico, Diãzoáp atirou uma flecha certeira. Após

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a quebra do pote, a escuridão começa a se propagar. Os heróis temendo por suas vidas se põem a correr para não serem alcançados pela noite. Mas são alcançados antes de chagarem a aldeia, e como consequência são transforma-dos em três animais noturnos. Diãzoáp em yurutay, Azuaguáp em guariba e Popóga em coruja.

Campbell (1990, p. 131), nos diz que os protagonistas dos mitos são heróis que descobriram ou realizaram alguma coisa além do nível normal de realizações ou de experiência. “O herói é alguém que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo”. Esses heróis que atuaram no tempo mítico, segundo Mielietinski (1987), podem ser denominados ancestrais-demiurgos-heróis culturais. Para o mitólogo, as concepções sobre essas três categorias estão entrelaçadas entre si, ou melhor, são sincreticamente indivisíveis.

Conforme Krüger (2005, p. 36), “a coesão grupal que o mito expressa pode ser resumida na dicotomia transgressão e punição, em que a prática da primeira leva, inevitavelmente, ao surgimento da segunda”. Mesmo se sacri-ficando pelo bem comum, o que acreditamos ser uma espécie de sacrifício voluntário, pois sabiam dos perigos advertidos pelo pajé, os heróis são punidos. Nesse caso, a transgressão é positiva, porquanto é graças aos esforços dos heróis que os Maraguá e toda a humanidade puderam se beneficiar com as bonanças da noite. Desse modo, compreende-se que mesmo trazendo benefícios a uma coletividade toda desobediência deve ser punida.

Como nos diz Krüger (2005, p. 37), “o castigo imposto pelos deuses indica que a conquista da civilização é penosa, que é necessário aos homens superar a Criação, afastar-se dela, já que se situa no início dos tempos, próximo ao caos primordial”. Para Lévi-Strauss (1989), a história mítica apresenta o paradoxo de ser simultaneamente disjunta e conjunta em relação ao presente. Disjunta, porque os primeiros antepassados eram de outra natureza que não a dos homens contemporâneos. Os primeiros foram criadores, os de hoje são copistas.

ANÁLISE DA NARRATIVA IMAGÉTICA: O DIA, A NOITE E OS KAMUTYS

A metodologia escolhida para a análise das imagens apresentadas neste trabalho seguirá os preceitos da iconologia de Erwin Panofsky (2017). O método consiste em três níveis de análise: pré-iconográfica, iconográfica e iconológica. Na primeira fase, analisamos as características dos elementos encontrados na imagem, como gestos e configurações da forma que são facilmente identifica-dos por nossa experiência social e cultural. Na segunda etapa, denominada de análise iconográfica, a interpretação buscará o tema secundário ou convencio-nal, os motivos artísticos que podem ser aproximados de conceitos em fontes interartísticas e intertextuais. A última etapa, entendida por Panofsky como

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análise iconológica, procura desvendar a mensagem contida na obra de arte e apresentar os possíveis significados simbólicos, os quais podem manifestar princípios filosóficos, psicológicos, sociais e/ou religiosos que por vezes são desconhecidos pelo próprio artista e que, no entanto, habitam sua criação de modo consciente ou inconsciente.

As ilustrações presentes no livro reforçam o caráter dual entre dia e noite, luz e escuridão, que são cerne da narrativa mitológica. De modo geral, as composições gráficas apresentam tons vibrantes com destaque para cores que, simbolicamente, fazem alusão ao dia e a noite. Dessa forma, de um lado há predominância de variações tonais de amarelo, verde, laranja e vermelho, usados para representar o dia, e de outro há destaque para o azul escuro e preto, empregados na ambientação noturna.

Vejamos:

Figura 1: Representação do dia Figura 2: Representação da noite.

Fonte: Minapoty, 2011, p. 7 e 11.

As ilustrações são assinadas pelo artista gráfico Maurício Negro. Seu trabalho imagético é criado por meio de composições híbridas, mesclando técnicas manuais, como desenho e pintura, aos suportes de design gráfico e à fotografia digital. Como resultado, as construções poéticas formam diferentes efeitos de fotomontagem.

Observa-se que o livro apresenta composições figurativas, em que os elementos das imagens são facilmente reconhecidos, os quais funcionam como recurso visual ao texto narrativo escrito por Minápoty. O artista recorre à visualidade indígena para recriar o universo de sua expressividade imagética. Nesse sentido, podemos observar a valorização de traços, cores e grafismos que remetem aos desenhos da etnia Maraguá, como é o caso em particular da representação dos potes kamutys.

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Figura 3: Kamutys em frente ao lago Waruã.

Figura 4: Momento de liberta-ção da noite.

Fonte: Minapoty, 2011, p. 12 e 19.

Os potes kamutys, guardiões da escuridão, preservam alguns dos traços da cultura ancestral indígena. Seus adornos são feitos com diferentes grafismos e a sua construção material remete tanto à uma cabaça quanto à uma peça feita em cerâmica, ambas usadas em utensílios e artefatos sagrados.

Os registros visuais dos kamutys no livro ocorrem em três momentos. A primeira aparição dos potes ocorre quando o ancião da tribo fala sobre a exis-tência e o conteúdo deles. O segundo registro imagético é feito no momento em que os líderes da tribo encontram os potes, nas margens do lago Waruã. O último deles, serve para ilustrar o momento em que a escuridão é liberada, através da quebra do kamuty maior, por meio de uma flecha.

Segundo Ribeiro (1989), os grafismos indígenas podem significar repre-sentações religiosas, cosmológicas ou exprimir relações sociais. Enquanto que para os ocidentais os grafismos estão ligados às representações abstratas, para os indígenas eles exprimem contextos figurativos, como, por exemplo, a representação de determinados animais. Pode-se presumir que o contexto sagrado do kamuty é reforçado por seus adornos e pelo papel que assume como guardião da noite na trama mitológica indígena Maraguá.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os mitos indígenas são vastos. A narrativa analisada comprova o quanto a literatura tem se beneficiado com a incorporação dos mitos em sua área de estudo. As sociedades indígenas escrevem seus mitos não apenas com intenções de tornar suas histórias literatura, mas também para registrá-las e torná-las conhecidas. Hoje, os mitos remotos das etnias estão sendo registrados em

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suportes físicos e digitais, são de temáticas variadas e representam inúmeras versões sobre a criação do mundo e da origem das coisas. Esses mitos justificam a existência humana, nossas ideias, estruturas sociais, entre outras coisas.

Na narrativa analisada, a escritora busca manter a originalidade do mito mesmo entendendo que há perdas na escrita da história. Todavia, é a partir da coleta e publicação que a literatura brasileira tem se expandido. As inúmeras etnias brasileiras somam-se aos grandes escritores e fazem do mito matéria cultural e literária.

O mito ganha dimensões imagéticas nas ilustrações que acompanham o texto narrativo. As imagens são, portanto, recursos visuais atrelados à trama mitológica, um outro tipo de manifestação poética que mantém conexões estrei-tas com a cultura ancestral indígena. São manifestações simbólicas, compostas por outro código de linguagem que imergem o fruidor ao universo mitológico.

REFERÊNCIAS

CAMPBELL, Joseph, com Bill Moyers. O poder do mito. Organizado por Betty Sue Flowers. Tradução: Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Editora Palas Athena, 1990.

CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Diccionario de los símbolos. Barcelona; Editorial Herder, 1986.

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2016.

GOODY, Jack. O mito, o ritual e o oral. Tradução: Vera Joscelyne. Petrópilis, RJ: Vozes, 2012.

GUESSE, Érika Bergamasco. Shenipabu Miyui: literatura e mito. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2014.

HAKIY, Tiago. Awyató-pót: histórias indígenas para crianças. São Paulo: Pau-linas, 2011.

KRÜGER, Marcos Frederico. Amazônia: mito e literatura. 2.ª ed. Manaus: Valer: Governo do Estado do Amazonas, 2005.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Tradução: Tânia Pellegrini. Campinas-SP, Papirus, 1989.

LOUREIRO, João de Jesus de Paes. A etnocenologia poética do mito. Revista Ensaio Geral, Belém, v. 1, n. 2, p. 152-158, jul./dez., 2009.

MIELIETINSKI, Eleazar, M. A poética do mito. Tradução. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense – Universitária, 1987.

MINÁPOTY, Lia. Com a noite veio o sono. São Paulo, LeYa, 2011.

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PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. Tradução: Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2017.

PÃRÕKUMU, Umusi, KEHÍRI, Torãmu. Antes o mundo não existia: a mitologia dos índios Desâna. 1. ed. São Paulo: Livraria Cultura, 1980.

RIBEIRO, Berta G. Arte indígena, linguagem visual. São Paulo: Editora da Univer-sidade de São Paulo, 1989.

YAMÃ, Yaguarê. Murũgawa: mitos, contos e fábulas do povo Maraguá. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.

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POESIA INDÍGENA DE TIAGO HAKIY: UMA ECOLOGIA DE SABERES

Rosemar Eurico Coenga7

Anna Mari Ribeiro F. Moreira da Costa8

INTRODUÇÃO

Com o objetivo de abrir caminhos para possíveis diálogos sobre o papel das narrativas indígenas como meio de promoção da educação multicultural no processo formativo de crianças e jovens, este estudo se dedica a analisar uma obra da literatura infantil de autoria indígena. Elegemos A pescaria do curumim e outros poemas indígenas, escrito por Tiago Hakiy (2015) e ilustrado por Taísa Borges. O livro apresenta formas de lidar com a temática indígena na sala de aula, em atendimento à Lei 11.645/2008 (BRASIL, 2008).

Como docentes e pesquisadores, temos contemplado em nossos estudos as narrativas mitológicas e os modos de vida indígenas presentes na literatura infantil e juvenil de autoria indígena e não indígena. A partir de nosso encon-tro em um ônibus da universidade para ministrar aulas nos cursos de Letras e História na cidade de Rondonópolis, Mato Grosso, iniciamos uma história de amizade e parceria acadêmica. Nesses vinte e um anos de amizade temos construído uma experiência riquíssima voltada ao aprofundamento no diálogo entre educação, história e literatura. Dentre nossas posturas acadêmicas está o desafio de se opor ao caráter monocultural dos saberes, ainda tão presente nas escolas. Entendemos, por exemplo, que a reflexão sobre a leitura literária e seu papel na constituição do aluno leitor é central para romper com essa visão e construir práticas educativas em que o debate da diferença e do multicultu-ralismo se faça cada vez mais presente.

Colocamos em destaque a literatura indígena infantil e juvenil de autoria indígena, especificamente o livro de Tiago Hakiy (2015), A pescaria do curumim e outros poemas indígenas. A problemática desta pesquisa incide na análise da narrativa poética do indígena Sateré Mawé. Seguimos com Eduardo Viveiros de Castro (2014), em sua acepção teórica do perspectivismo ameríndio ao entender que seres humanos e natureza encontram-se no mesmo nível de interações e modificações, ou seja, encontram-se no mesmo patamar. Isso significa que

7 Pós-doutorando (USP). Doutor em Teoria Literária e Literaturas (UnB). Docente do Programa de Pós-Graduação em Ensino da Universidade de Cuiabá (UNIC).CV: http://lattes.cnpq.br/6784437572638138 8 Pós-Doutorado em Ciências Sociais (PUC-SP). Doutora em História (UFPE). Docente (UNI-VAG). Membra do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso. CV: http://lattes.cnpq.br/9565286522023443

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não há prevalência de um sobre o outro. Em seu percurso poético, Hakiy, o “menino morcego”, demonstra haver uma intercomunicabilidade entre as espécies – humanos e não humanos. Exemplificamos o perspectivismo ame-ríndio estudado por Viveiros de Castro com a dedicatória de Hakiy no livro em questão: “Dedico este livro aos pássaros de minha floresta, aos peixes das águas do meu rio Andirá e aos curumins que reinventam a vida no coração da Amazônia.” (HAKIY, 2015, p. 3).

Nossa perspectiva teórica segue com Candau (2013), ao refletirmos sobre a diversidade epistemológica com base as obras de recepção infantil e juvenil, descortinando possíveis ações de intervenção com vistas a uma educação emancipatória, crítica e decolonial. Alerta Candau (2013, p. 17) que a “nossa formação histórica está marcada pela eliminação física do ‘outro’ ou por sua escravização, também é uma forma violenta de negação de sua alteridade”. Lajolo e Zilberman (1995, 2017), Candau (2013), Candau; Moreira (2003), Thiél (2012), Bajour (2012), Graúna (2013), Lopes e Macedo (2011), Torres García (1990), Paulo Freire (1997), Santos (2010) nos conduzem aos percursos dos saberes do Sul. Um convite a praticar o verbo sulear na trilha da síntese con-ceitual do perspectivismo ameríndio proposta por Viveiros de Castro (2014), entendendo a natureza relacional dos seres e da constituição do mundo, tão presente na poesia de Hakiy.

Dividido em duas partes, esta abordagem põe à vista Os saberes do Sul: povos indígenas na literatura brasileira, momento em que se propõe a discorrer sobre ecologias de saberes, no entendimento de ser admissível um diálogo horizontal de saberes. Em detrimento de outros conhecimentos, a norma epistemológica dominante acha-se em contínuo processo de supressão dos saberes do Sul. Santos (2010, p. 33) se refere aos “conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses, ou indígenas do outro lado da linha.” A sabedoria indígena, transmitida milenarmente, de geração à geração, precisa ganhar visibilidade merecida e estar acessível ao público infantil e juvenil.

Em Vivências indígenas na literatura infantil brasileira contemporânea demonstramos a presença de perspectivas da ecologia de saberes da etnia Sateré Mawé e sua visão de estar no mundo, especialmente na relação esta-belecida entre homem e natureza. O autor nos oferece singular contribuição às discussões e considerações sobre narrativa mítica, presentes no conjunto da obra de Hakiy.

OS SABERES DO SUL: POVOS INDÍGENAS NA LITERATURA BRASILEIRA

Consideramos aqui importantes indagações: Por que se discute tanto as questões da diferença na contemporaneidade? O que pensamos sobre a pre-

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sença indígena nos livros literários endereçados a crianças e jovens? Quais as contribuições da literatura infantil e juvenil de autoria indígena na promoção de uma educação multicultural?

Valemo-nos da reflexão de Lopes e Macedo (2011, p. 185):

Contemporaneamente, as muitas exclusões operadas pela criação de uma cultura geral estão sendo postas em xeque, o que não significa que tenham deixado de ocorrer. As mudanças tecnológicas aproximando os sujeitos no espaço e no tempo, a globalização econô-mica, o fim da Guerra Fria, os fluxos migratórios são alguns dos ingredientes que criam uma atmosfera favorável ao maior fluxo de pessoas entre culturas.

As “epistemologias do Sul” (SANTOS, 2010) estão em constante combate aos padrões epistemológicos hierarquizantes, a banir a ideia de um conheci-mento ocidental culturalmente homogêneo. No caso do Brasil, especificamente, as epistemologias locais vêm sendo suprimidas e invisibilizadas desde o processo de colonização europeia iniciada em fins do século XV.

Nosso trilhar segue em direção a uma postura decolonial, antirracista e intercultural. Acompanha atentamente as perspectivas da linguagem esté-tica do artista plástico Joaquín Torres-García (1990) e suas acepções sobre o universalismo construtivo latino-americano, ambas voltadas à autonomia da arte latino-americana, avessas à dependência colonial europeia. Bradou Torres-Garcia: “Nosso Norte é o Sul” (1990) ao desenhar o mapa da América Latina de cabeça para baixo.

Contrario a homogeneização e padronização dos saberes, no rumo do artista plástico uruguaio, nos unimos com Paulo Freire que se inspirou em Marcio D’Olne Campos e criar o verbo sulear, uma permissão ao “SULeamento”, caso contrário, “não seria uma atitude de indiferença, de menosprezo, de desdém para com as nossas próprias possibilidades de construção local de um saber que seja nosso, para com as coisas locais e concretamente nossas?” Explica Freire (1997, p. 113) que “apesar disso, em nossas escolas, continua a ser ensinada a regra prática do Norte, ou seja, com a mão direita para o lado do nascente (Leste), tem-se à esquerda o Oeste, na frente o Norte e atrás o Sul.”

Dentro do espaço escolar, corroborando com os percursos teórico-con-ceituais acima explicitados, Moreira e Candau (2003, p. 161) afirmam que “a escola sempre teve dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las e neutralizá-las. Sente-se mais confortável com a homogeneização e a padronização.”

Essas questões que vêm se acentuando significativamente na escola não podem ser negligenciadas por parte dos educadores que vivem em uma socie-

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dade fundada no multiculturalismo. Daí surge nossa preocupação, no sentido de delinear estratégias pedagógicas e garantir no espaço escolar e na sala de aula debates sobre diferenças e diversidades. Dada as inúmeras e diversificadas concepções e vertentes suscitadas pelo multiculturalismo, Candau (2013, p. 20) distingue duas abordagens fundamentais: uma descritiva e outra propositiva.

A primeira afirma ser o multiculturalismo uma carac-terística das sociedades atuais. Vivemos em sociedades multiculturais. As configurações multiculturais depen-dem de cada contexto histórico, político e sociocultural [...]. Nesta concepção se enfatizam a descrição e a com-preensão da construção da configuração multicultural de cada contexto específico.

A perspectiva propositiva entende o multiculturalismo:

Não simplesmente como um dado da realidade, mas como uma maneira de atuar, de intervir, de transformar a dinâmica social. Trata-se de um projeto político cul-tural, de um modo de se trabalhar as relações culturais numa determinada sociedade, de conceber políticas públicas na perspectiva da radicalização da democracia, assim como construir estratégias pedagógicas nesta perspectiva. (CANDAU, 2013, p. 20).

A educadora advoga, ainda, três abordagens que estão na base de diversas propostas decononiais: o multiculturalismo assimilacionista, no sentido des-critivo: “nessa sociedade multicultural não existe igualdade de oportunidade para todas as pessoas. Procura-se integrar os grupos marginalizados valorizados pela cultura hegemônica” (CANDAU, 2013, p. 21).

Uma segunda concepção é denominada de multiculturalismo diferen-cialista. Candau (2013, p. 21) explica que esta abordagem parte da afirmação de “que quando se enfatiza a assimilação termina-se por negar a diferença ou por silenciá-la”. Enfatiza, assim, uma visão estática e essencialista da formação das identidades culturais. Já a perspectiva intercultural baseia-se na “promoção deliberada da inter-relação entre diferentes grupos culturais presentes em uma determinada sociedade” (CANDAU, 2013, p. 22). Candau, não apartada de Torres-García (1990) e Freire (1997) e dos teóricos do decolonialismo, defende a promoção de uma educação para o reconhecimento do “outro”.

A base da interculturalidade consiste no:

[...] diálogo entre os diferentes grupos sociais e cultu-rais, uma negociação cultural, que enfrenta os conflitos provocados pela assimetria de poder entre os diferen-tes grupos socioculturais nas nossas sociedades e é

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capaz de favorecer a construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças sejam dialeticamente incluídas (CANDAU, 2013, p. 23).

Outro aspecto a ser discutido no âmbito escolar, que consideramos de especial relevância, diz respeito a proporcionar espaços que favoreçam a cons-trução de práticas pedagógicas pelo viés do diálogo intercultural, valendo-nos de estratégias relacionadas à leitura literária. Uma proposta pedagógica que defendemos num contexto educacional e que contemple o respeito à diversidade cultural, coerente com a perspectiva intercultural, ou seja, aos saberes do Sul.

Significa idealizar um trabalho que viabilize práticas de respeito à diver-sidade e à inclusão social de comunidades historicamente marginalizadas, na busca por uma pedagogia decolonial e educação antirracista e intercultural. Assim sendo, para Oliveira e Candau (2010, p. 15), “a colonialidade do ser é pensada, portanto, como a negação de um estatuto humano para africanos e indígenas, por exemplo, na história da modernidade colonial.”

Quando se trata de literatura infantil e juvenil, nos últimos anos notamos uma crescente produção de obras abordando a diversidade de culturas indígenas. Sob esse ponto de vista, há um florescimento de escritores e escritoras indígenas: Daniel Munduruku, Graça Graúna, Eliane Potiguara, Olívio Jekupé, Yaguare Yama, Cristino Wapichana, Lia Minapóti, Kaká Werá, Ailton Krenak, Tiago Hakiy, dentre tantos outros. Dessa crescente produção de literatura indígena no país, surgem novas demandas de abordagem que precisam urgentemente estar no espaço escolar (sem deixar de mencionar os escritores não indígenas que também têm contribuído significativamente com essa demanda).

Desde os fins do século XX, a literatura escrita por autores indígenas vem ganhando espaço merecedor no mercado editorial. Contudo, ler livros escritos por indígenas ainda é algo causador de estranhamento por parte de pessoas não indígenas.

É interessante que em algumas regiões do Brasil, em escolas ou bibliotecas, tem livros de literatura indígena. O mais importante é que foram escritos por indíge-nas e de várias nações; era raro ver isso acontecer há uns 15 anos. Por isso acredito que o povo aos poucos conhecerá nossos escritores indígenas que já têm seus livros publicados e aos poucos surgirão outros (JEKUPÉ 2009, p. 19).

Mas, o certo é que a cada dia a literatura de autoria indígena se impõe e começa a “surtir resultados interessantes, traduzidos por livros elaborados por grupos e indivíduos de distintas etnias e publicados por variadas editoras”, diz Lajolo e Zilberman (2017, p. 91).

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Frente às considerações apontadas ao longo do texto, julgamos perti-nente apresentar os conceitos da literatura indígena, a partir das discussões apontadas pela indígena da etnia Potiguara, Graça Graúna (2013), e Janice Thiél (2012). Acerca da literatura brasileira, Graúna aponta a exclusão de temas relacionados aos índios, entre outros segmentos que a sociedade dominante classifica de minorias.

A autora destaca:

A literatura indígena contemporânea é um lugar utó-pico (de sobrevivência), uma variante do épico tecido pela oralidade, um lugar de confluência de vozes silen-ciadas e exiladas (escritas) ao longo dos mais 500 anos de colonização. Enraizada nas origens, a literatura indígena contemporânea vem se preservando na auto--história de seus autores e autoras e na recepção de um público-leitor diferenciado, isto é, uma minoria que semeia outras leituras possíveis no universo de poemas e prosas (2013, p. 15).

Ao dar destaque aos textos ao ensino da literatura, Thiél (2012, p. 12) destaca:

A literatura brasileira é constituída por muitas lite-raturas, por inúmeras culturas e vozes, tais como as indígenas. Estas merecem ser inseridas nos estudos promovidos na escola como forma de conhecimento e inclusão do outro, prática de multiletramento (espe-cialmente letramento literário, informacional e crítico) e de leitura de multimodalidade textuais.

A esse respeito, a pesquisadora menciona que a leitura de obras da lite-ratura indígena “problematiza conceito[s], desconstrói estereótipos, promove a reflexão sobre a presença dos índios na história e sobre a forma como sua palavra e tradição narrativa/poética são apresentadas em sua especificidade” (THIÉL, 2012, p. 12).

A revisão da produção literária indígena é sinônimo de apropriação identitária da diversidade de culturas existentes no Brasil. Nesse sentido, convém aos professores, além de trabalhar os textos clássicos, abordar os de autoria indígena. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) assinala como competências específicas para área de Linguagens para o Ensino Fundamental o respeito à diversidade cultural e à importância de um ensino em respeito as múltiplas culturas:

Desenvolver o senso estético para reconhecer, fruir e respeitar as diversas manifestações artísticas e cultu-

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rais, das locais às mundiais, inclusive aquelas perten-centes ao patrimônio cultural da humanidade, bem como participar de práticas diversificadas, individuais e coletivas, da produção artístico-cultural, com res-peito à diversidade de saberes, identidades e culturas (BRASIL, 2017, p. 65).

No documento também são mencionados aspectos referentes aos Direi-tos Humanos:

Os direitos humanos também perpassam todos os campos de diferentes formas: seja no debate de ideias e organização de formas de defesa dos direitos humanos (campo jornalístico-midiático e campo de atuação na vida pública), seja no exercício desses direitos – direito à literatura e à arte, direito à informação e aos conhe-cimentos disponíveis (BRASIL, 2017, p. 86).

Além disso, torna-se necessário promover um trabalho em torno da literatura de autoria indígena e seus parâmetros próprios de leitura e análise necessitam ser discutidos no ensino de literatura. Thiél (2012, p. 11) chama a atenção dos educadores para atividades de inserção e de leitura de textos indígenas, pois:

[...] temos de nos deparar com a questão da inclusão social e cultural, bem com o silenciamento ou a invisi-bilidade dos grupos indígenas ao longo da história, que devem ser revistos. Além disso, devemos nos preocu-par com a construção de repertório de nossos alunos, bem como com o desenvolvimento de um olhar crítico sobre a literatura.

Pensando assim, no nosso exercício docente, reconhecemos o compro-misso com a questão da diversidade cultural, marca identitária do povo brasileiro e consequentemente no Ensino Fundamental e Médio da escola pública pode ser articulada ao processo de formação de leitores literários, ocupando-nos de construtos teóricos da decolonialidade. Assumimos o compromisso de eviden-ciar em nossos trabalhos e estudos um olhar em torno da literatura indígena, sobretudo a literatura de recepção infantil e juvenil. A nosso ver, a literatura indígena constitui uma ferramenta da qual o professor lança mão para levar ao espaço escolar valores e formas estético-literários que, historicamente, por muitos anos foram silenciados.

Essa nova vertente literária surgiu nos “movimentos políticos de rei-vindicação de direitos indígenas, de organizações e de legislação específica [...] que se delineou o contexto em que surgem autores e livros oriundos de

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comunidades indígenas ou que em nome delas se apresentam” de acordo com Lajolo e Zilberman (2017, p. 91). Decorre de um leque de temas que autores e autoras denominam de um “novo indianismo”, incentivados por “distintos dis-cursos institucionais, políticos e estéticos [que] marcam a produção brasileira contemporânea para crianças e jovens” (LAJOLO, ZILBERMAN, 2017, p. 88).

Em razão do crescimento de obras voltadas para o público infantil e juvenil, Munduruku (2014, p. 177) revela uma tendência “que nos faz perceber a preocupação em atingir um grupo de leitores em formação capaz de ações futuras que ajudarão a diminuir o preconceito e a exclusão”. Neste caminhar, convidamos o poeta Tiago Hakiy para mostrar uma porção do pensamento ameríndio, ainda tão desconhecida da população não índia do Brasil.

VIVÊNCIAS INDÍGENAS NA LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

Da intensa produção literária escrita por autores e autoras indígenas voltada para crianças e jovens sobressai uma diversidade de temas e abordagens que contemplam as “epistemologias do Sul” (SANTOS, 2010). As obras discutem questões como pertencimento, memória, modos de vivência, mitos, relação homem e natureza e outros traços reveladores de um pensar decolonial ofer-tada pela literatura indígena. Em resposta a uma representação equivocada e genérica ainda presente nos livros didáticos, é pertinente que se reivindique um trabalho com a literatura infantil e juvenil indígena e que se construa um espaço para que possa ser reconhecida. Como Daniel Munduruku (2014, p. 169) afirmou, “isso marcado nos livros didáticos de tempos atrás e na literatura que hoje é produzida no Brasil afora e que traz a figura do “índio” folclorizado e estereotipado: usando penas, despido, corpo pintado, empunhando arco e flecha, entre outras imagens.”

Nesta abordagem, selecionamos A pescaria do curumim e outros poemas indígenas, de Tiago Hakiy (2015). O autor pertence à etnia Sateré Mawé, habitante da Terra Indígena Andirá-Marau, no médio rio Amazonas, e da Terra Indígena Coatá-Laranjal, com a etnia Munduruku. O povo Sateré Mawé é reconhecido como domesticador da cultura do guaraná.

A pescaria do curumim e outros poemas indígenas apresenta doze poemas. Nas últimas páginas acham-se um glossário com cinquenta e cinco palavras e textos biográficos de Tiago Hakiy e Taísa Borges, com suas respectivas foto-grafias. O universo temático escolhido pelo poeta – fauna, flora, vida aldeã – é recorrente na literatura dedicada ao público infantil.

Muitos autores vêm se valendo de animais como personagens inseridos nas produções literárias. Para Lajolo e Zilberman (1995, p. 112).

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A fábula e, depois, o conto de fadas foram as modali-dades literárias que procederam à conversão de per-sonagens não humanas, mas antropomorfizadas, em símbolos das vivências e da interioridade da criança. No Brasil, a transposição começa com Figueiredo Pimentel e prossegue com Monteiro Lobato (criador de Quindim e Rabicó), Viriato Correia (em A arca de Noé e No reino dos bichos ou No país da bicharada, entre outros) e Érico Veríssimo (A vida do elefante Basílio ou Os três porquinhos pobres), além de vários outros escritores.

Também na literatura produzida pelos indígenas, é possível notar a presença de animais silvestres em convivência pacífica com seres humanos. Essa convivência é entendida em um mesmo nível de interações e modifica-ções, como já foi dito anteriormente. Nesse livro, Hakiy oferece-nos poemas de grande valor e é, possivelmente, um dos poucos autores indígenas que se dedica ao gênero poético. Explora os textos da fauna e flora, aliando mitologia, ludismo e profundo senso humanístico. Os poemas são medianos e em sua maioria exploram o universo da interlocução do homem com a natureza. O indígena propõe ao pequeno leitor uma reflexão acerca do universo indígena, enfatizando a relação do homem com a natureza, tão presente nas narrativas míticas, passadas de geração a geração.

O poema A pescaria do curumim abre o livro. Hakiy poetiza um dia de pescaria de um curumim, até o chegar da noite quando, cansado das peripé-cias, adormece em sua rede. Cobra-grande demonstra o temor e respeito dos homens, bichos do ar, bichos da água e bichos da terra pelo enorme réptil. O banquete dos peixes narra o conhecimento indígena sobre a ictiofauna do rio Andirá, as características e hábitos alimentares de diferentes espécies de peixe que habitam “um mundo vestido de água/ os peixes banqueteiam sabores/ é um mundo mágico, multicores” (HAKIY, 2015, p. 13). Em Dia de pescaria, Hakiy explora a longa espera do curumim pelo Tucunaré e demonstra o uso de técnicas de pesca.

Um bom exemplo de atitudes de respeito do poeta pelo modo de ser dos bichos e do cuidado por uma cutia, seu bicho de estimação, está no poema Meu Xerimbabo:

Meu xerimbabo/ Não é mais bravo/ Ele é bem mansi-nho/ Ele é bem fofinho/. Quando eu o encontrei/ Ele estava perdido na floresta/ Então olhei e o abracei/ E ele logo fez a maior festa/ Trouxe ele comigo/ Pois no céu tinha trovão/ Desde então ele é meu amigo/ Meu xerimbabo do coração (HAKIY, 2015, p. 17)

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Muitas espécies de pássaros comparecem em Pássaros da floresta com suas cores e vozes – japim, beija-flor, pica-pau, jacamim, jaçanã, bacurau, urutau, mauari, bem-te-vi, mergulhão e andorinha, como notamos em um dos versos da estrutura poética:

Pássaro com canto bonito/Gosto de ouvir o inambu/ E também o periquito/ Mas confesso que gosto mais do uirapuru/ Tem muitos pássaros/ Na minha floresta/ Todos cantando juntos/Formam uma linda orquestra (HAKIY, 2015, p. 19)

Como Banho de rio não pode faltar no cotidiano aldeão, Hakiy externa a alegria do pequeno Sateré Mawé diante ao enorme rio que banha sua aldeia. O autor oferta um poema que, partindo do elemento água, alça voo ao universo alegre da infância, imprime um ritmo encantatório pela magia da construção de sua escrita poética. Em O peixe Pirarucu o poeta demonstra os conhecimen-tos do curumim sobre as espécies que habitam o rio Andirá, além do enorme pirarucu: baiacu, aracu, tucunaré-açu, jaraqui, tambaqui, piranha e pacu, dando-lhes predicativos comumente atribuídos aos seres humanos. O nascer do dia traz o andar da natureza, com as ações das fauna e flora, tratados com atributos humanos.

Depois do dia, a noite. Em Convite à alegria percebemos uma aproxima-ção com o título como se verifica, por exemplo, em Convite, poética infantil de José Paulo Paes (1997). Como podemos verificar, o título direciona o leitor à temporalidade da poesia, esta bastante presente em Hakiy, aos encantos das vivências lúdicas na aldeia. O velho índio remonta sobre a sabedoria anciã, ancestral, “Pintado de tradições/ Riscado de muitas lutas/ Muitas estrelas e trovões.” (HAKIY, 2015, p. 28). É um velho índio chamador de ventos e inventor de bravos trovões. Por último, Curumim da floresta é um poema autobiográfico, momento em que o menino “morcego” revela ser da floresta e traz um pouco do tempo da infância na aldeia, junto aos seus familiares. Enaltece a avó, sau-doso das histórias de deixar medo, histórias para rir, história que revelavam segredos, histórias para dormir, todas de respeito à natureza.

A sala de aula, nas práticas de leitura, pode inspirar o valor da escuta, da escuta aos modos diferentes de ser, de estar no mundo. “Essa concepção dialógica da escuta faz parte de todo ato de leitura em que se busque abrir sig-nificados e expandi-los de modo cooperativo”, diz Cecilia Bajour (2012, p. 25).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conjunto de poesias em A pescaria do curumim e outros poemas indí-genas, de Tiago Hakiy, do ponto de vista de estilo, apresenta construções bem humoradas, atitudes de defesa e respeito do modo de ser da fauna e flora, da

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relação homem-natureza. Os poemas disponibilizam uma qualidade estética significativa no âmbito da poesia direcionada ao público infantil. A escrita de Hakyi mergulha nos elementos terra, ar, fogo e água; na fauna e flora do terri-tório do povo indígena Sateré Mawé, em um movimento que intensifica a ideia de que somos parte integrante da natureza. A frequência de animais na poética de Hakiy é vigorosa e, em vários momentos, confunde-se com seres humanos. A acepção do perspectivismo ameríndio que verifica seres humanos e natureza em um mesmo nível de interações e modificações que pode ser reconhecida em A pescaria do curumim e outros poemas indígenas.

Levar ao espaço escolar epistêmes invisibilizadas e subalternizadas pelos conhecimentos do Norte, acompanhadas de análises sobre a colonialidade do poder é, sem dúvida, estar diante de conhecimentos diferentes da modernidade europeia. É a busca do acolhimento ao outro, ao diferente, ainda sem espaço para se manifestar. No entendimento de Maria Inês de Almeida (2009, p. 24), “a grande diferença entre a escrita ‘ocidental’ e a escrita dos índios é que, para estes, o corpo da escrita, o corpo nosso, e o corpo da terra, se integram, mul-tiplicadamente.” Tiago Hakiy, o “menino morcego”, em A pescaria do curumim e outros poemas indígenas, nos faz praticar o verbo sulear.

REFERÊNCIAS

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LOPES, Alice Casimiro; MACEDO, Elizabeth. Teorias de Currículo. São Paulo: Cortez, 2011.

MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa; CANDAU, Vera Maria. Educação escolar e cultu-ra(s): construindo caminhos. Revista Brasileira de Educação. n. 23, mai-ago, 2003.

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A ORDEM DO DISCURSO BIOMÉDICO: SILENCIAMENTO, TRADUÇÃO E FALA EM LÍNGUA INDÍGENA

Conrado Neves Sathler9

Jéssica Camile Felipe Tivirolli10

INTRODUÇÃO

Há, no imaginário eurocêntrico, um padrão referente aos espaços ocu-pados por populações específicas. Tanto a cidade quanto a aldeia indígena são delineadas, na modernidade, por características mais ou menos fixas, componentes do que se espera do estilo de vida de quem os ocupa. Enquanto a cidade é representada pela proximidade entre as casas dispostas em ruas entrecruzadas, com comércios, serviços e áreas de convivência em uma lógica que responde às estratégias de economia e circulação de pessoas e mercado-rias, a aldeia corresponde a um espaço de convivências na natureza. As casas indígenas são representadas como cabanas e, devido à ideia de estrutura, são tidas como inferiores às casas das cidades.

Segundo ainda a lógica moderna, a cidade deve ser planejada e favore-cer a saúde, a economia, a segurança e o trânsito de seus habitantes. Dessa forma, cria-se uma separação conceitual entre cidade e aldeia. A cidade é lógica, planejada e produtiva, a aldeia é um espaço vocacionado ao ócio, sem preparo para produção e distribuição de bens. A cidade é econômica e a aldeia é ecológica, inclinações opostas na relação do sujeito com a natureza, sendo que a economia transforma a natureza e dela se serve e, ao contrário, a ecologia conserva a natureza.

O sujeito do mundo moderno, etnocentrado, por inserir-se no imaginário que integra economia e conhecimento científico como organizadores dos modos de vida, tem o desejo de transformar as aldeias em cidades. Logo, as propostas de saneamento urbano, criação de ruas asfaltadas e separação dos espaços de produção, educação e saúde são pensadas como ajuda aos povos indígenas.

Em Dourados, a cidade e as aldeias se encontram. A periferia da cidade se estende margeando a aldeia. O número de indígenas também aumentou e a aldeia já não comporta mais todos seus habitantes. Assim, encontramos nas linhas de fronteira urbana pequenos assentamentos indígenas. Nos espaços contínuos de cidade e aldeias, seus habitantes se misturam. Além disso, uma

9 Doutor em Linguística Aplicada (UNICAMP). Docente Psicologia (UFGD). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0091-1042 10 Mestre em Antropologia. Psicóloga (SESAI). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6914-7682

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rodovia corta as aldeias que se interpõem entre duas cidades e os indígenas transitam pelos conglomerados urbanos com suas charretes puxadas por cavalos.

Esse hibridismo dos ambientes não liberta quem neles circula de dis-criminações, nem dos desejos colonizadores repetidores de valores da moder-nidade. A incompreensão sobre a resistência indígena aos modos de vida da sociedade envolvente se manifesta de múltiplas formas.

Nesses termos, fundamentados em Foucault (2003), pensamos que práticas de condução política da administração dos Estados não se fazem apenas pelo controle dos territórios, mas pela condução dos comportamentos da população - a governamentalidade -. Isso dirige a adesão da população aos planos de governo, por meio do convencimento de que o Estado faz o que é melhor para todos.

A governamentalidade se faz pela arte e pela ciência de governar e entre eles a Biopolítica se apresenta como uma estratégia objetiva e sutil. A Biopolítica se ocupa da gestão dos corpos, sobretudo nas intervenções coletivas, tornando aceitável o pensamento de que o Estado deve se responsabilizar pela saúde como investimento. Notamos o termo “investimento” como se fosse a melhor expressão da administração pública. Investimentos são feitos com expectativa de lucros. A proposição que define esta política é “faz viver e deixa morrer”.

Encerramos esse preâmbulo afirmando que a Rede de Atenção à Saúde é um importante agente na composição dessa administração e analisaremos como se processam relações de poder quando seus elementos pertencem a culturas diferentes. Nosso foco de observação será a língua indígena. Procu-ramos manter este foco, mesmo sabendo que a língua permeia todas as áreas da vida e que as práticas de cuidado em Saúde Indígena ocorrem tanto no hospital quanto na aldeia.

O Hospital é local de densa discussão e permite a análise de relações e práticas linguísticas. Desta forma, no cenário de nossas discussões se desenvol-vem Políticas Públicas, se reorganizam atendimentos e se encontram diversos sujeitos indígenas e não indígenas. O Hospital está localizado em Dourados, MS, cidade com a segunda maior população indígena do Brasil. O hospital atende a mais 34 municípios, dando cobertura a cerca de metade da população indígena do estado.

Em Dourados vivem os Kaiowá, Guarani e Terena, grande parte deles na Reserva Indígena de Dourados (RID), em duas aldeias, Bororó e Jaguapiru. Outros grupos como Kadiwéu e Ofaié habitam localidades próximas (MOTA, 2011).

Para melhor qualificar o atendimento hospitalar aos indígenas, foi criado o “Projeto Acolhimento da Porta de Entrada”. O projeto respondeu às demandas da implantação da Política de Humanização da Atenção e da Gestão e à priorização temática da língua, apontada pelo Conselho de Saúde Indígena da região (BRASIL, 2011), no intento de pensar novas práticas.

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Esse projeto foi uma estratégia para apoiar a implantação do cuidado diferenciado aos indígenas e o encontro de diferentes saberes e cosmovisões. Emerge, então, uma tensão funcional, uma vez que o hospital se constitui como estabelecimento inscrito em um campo de saberes e de condições históricas ocidentais precisas (FOUCAULT, 1979) implicados em políticas de intervenção, regime administrativo, conhecimentos disciplinares, regras de exclusão e em concepções de saúde, corpo, cura e morte que delimitam quem pode ou não integrá-lo. Há, no entanto, um discurso que reafirma a separação entre o “nós” e o “eles”, levando a um movimento constante de busca de integração em direção única.

ORDEM NA TORRE DE BABEL

O hospital é historicamente instituído por procedimentos de rigor da ciência ocidental moderna, especializada e classificatória com traços que deli-mitam comportamentos, discursos e verdades. O olhar médico vigora para além dos corredores hospitalares e, como qualquer discurso científico disciplinar “é reconhecido e reiterado, circula enquanto se desdobra disciplinando soberanamente a experiência cotidiana, segregando e organizando o saber para policiar e reprimir os que as quiserem transpor” (SANTOS, 2008, p. 74). Foucault (1977) enfatiza que o espaço médico pode coincidir com o espaço social, atravessando-o e penetran-do-o, tornando-se uma presença generalizada cujo olhar incide sobre os outros espaços, exercendo vigilância constante, móvel e diferenciada, o que promove um domínio indefinido tanto da existência individual quanto da coletiva.

Como instituição, o hospital apresenta rupturas, heterogeneidades, fronteiras, lugares, tempos desarticulados, sujeitos cindidos, tabus, saberes especializados e produções sociais que revelam particularidades apoiadas em um imaginário social e em pensamentos colonizadores.

Por meio da língua, nesse lugar, manifestam-se movimentos de diferen-ciação e aproximação, de delimitação de subjetividades com controle político de falas, espaços e tempos. Nos espaços de enunciação trafegam as línguas que se separam e se aglomeram numa transformação e disputa constantes (SAN-TOS, 2008). No hospital os sujeitos são separados pelos seus modos de dizer, os espaços são compostos por acontecimentos e equívocos, os papéis sociais são (re)organizados e os conflitos se desencadeiam sensivelmente.

O contato entre línguas, o ser-estar-entre-línguas (NETTO, 2009), aponta para um processo que, pela sua heterogeneidade, gera conflitos de gestão da língua e de seus enunciadores. Entre paciente e médico, entre indígena e não--indígena, o hospital valoriza, invariavelmente, o discurso científico biomédico. Enquanto a ciência normativa ditar as formas mais corretas de viver, entrará em conflito com as diferentes formas de vida e apresentará uma visão unilateral.

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Assim:

Na gestão da existência humana, toma uma postura normativa que não a autoriza apenas a distribuir con-selhos de vida equilibrada, mas a reger as relações físicas e morais do indivíduo e da sociedade em que vive. Situa-se nesta zona fronteiriça, mas soberana para o homem moderno, em que uma felicidade orgâ-nica, tranquila, sem paixão e vigorosa, se comunica de pleno direito com a ordem de uma nação, o vigor de seus exércitos, a fecundidade de seu povo e a marcha paciente de seu trabalho (FOUCAULT, 1977, p. 39).

O homem e o valor social resultam do alinhamento à modernidade soberana, mas constata-se no cotidiano hospitalar um trânsito imprevisto de diferentes línguas, silêncios, controles e movimentos peculiares de trans-formação. São declarados diariamente, por muitos profissionais, incontáveis “pacientes indígenas silenciosos”. Há outros dizeres habituais nas descrições clínicas: “paciente não se comunica bem em Português”; “nega quaisquer outras queixas”; “mau informante” (TIVIROLLI, 2017, p. 16). A percepção monofônica se perpetua, considera-se apenas uma perspectiva: “falar corretamente o Por-tuguês”. Os discursos não hospitalares não chegam a ser pronunciados ou não são ouvidos. As vozes são reduzidas a problemas de comunicação, distanciando e inviabilizando a alteridade.

Os agentes do Estado adotam medidas, implícitas ou explícitas, para estabelecer as línguas faladas em ambientes públicos de seus territórios.

Nesse prisma:

No campo político, as decisões sobre línguas manifes-tam uma intenção deliberada da instância de poder, seja para reconhecer e demarcar os territórios ocupados [...]. A metáfora da demarcação das línguas indígenas, se usada numa perspectiva histórica, pode revelar, [...] como as medidas políticas formuladas e executadas pela Coroa Portuguesa e, depois, pelo Estado nacional neobrasileiro, contribuíram para fortalecer algumas línguas em detrimento de outras e explicar porque algumas línguas desapareceram e outras se expandiram [...], com consequências sobre a ocupação do território e sobre o direito à terra (FREIRE, 2016, p. 364).

Retomamos a alteridade como ameaça imaginária. Inúmeras vezes, mesmo que usuários/as dos serviços compreendam e falem o Português, o

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tradutor é solicitado para funcionar como um anteparo, de modo a evitar o encontro e o contato direto com o Outro e, assim, silenciar sua voz (LOPES, 2018).

A língua constitui-se como poder, uma estratégia política. No contexto hospitalar, onde trafegam profissionais da Saúde, se reitera a necessidade da assepsia. Cotidianamente se dão conversas informais, reuniões profissionais, visitas aos leitos, diagnósticos complexos e receituários em língua portuguesa, mas há uma concepção de língua direta, limpa e transparente, uma higiene manifesta pelo uso da língua técnica. No hospital se permite falar, como apontou Foucault (1977, p. 107), a “língua bem feita”, o ideal do saber científico, pois é onde se dá a perfeita correlação entre o visível e o enunciável por meio de uma linguagem que domina o visível.

A palavra médica não fala do invisível à ciência ocidental, é um dis-curso hegemônico, sem espaço para dizeres não reconhecidos. Nesse ponto, Rajagopalan (1997) afirma que o mito da homogeneização se confunde com a higienização na compressão ou na negação de diferenças, de informações fora do padrão, de contradições ou de novas perspectivas. No processo de adaptação linguística do hospital local, percebe-se a função do intérprete como busca de saneamento de conflitos, como um meio de comunicação uníssono e compartilhado e, por isso, repleto de conotações ideológicas de bons “sel-vagens linguísticos” (RAJAGOPALAN, p. 26), que compreendam e aceitem as palavras do médico e sigam pacientemente o tratamento. Por carregar consigo heterogeneidades imprevistas, potências e irregularidades, por não enaltecer a pureza e a sensação de completude individual ou coletiva da comunidade de fala, a língua indígena - Guarani - é rechaçada.

A palavra, para o sujeito Guarani, engloba o corpo e a alma. Chamorro (2008) afirma que a palavra circula pelo esqueleto humano, ela é justamente o que o mantém em pé, que o humaniza. Melià (1989) acrescenta que para esse sujeito a palavra é tudo e tudo é palavra. É a expressão mais constante que o Guarani nos diz através de seus cantos, mitos e ritos, é uma experiência reli-giosa peculiar da palavra que se relaciona, inclusive, com crenças relativas à concepção e recepção do nome próprio.

É obrigatória a Declaração de Nascido Vivo (DN) no hospital. Desse modo, a mãe indígena é levada a escolher rapidamente o nome de seu bebê, sujeitando-a a um processo impróprio à sua cosmovisão ou à sua vontade. Certa vez, uma jovem Guarani foi convencida a desistir do nome escolhido para a filha sob a justificativa de que era esquisito. Em minutos uma DN foi feita nomeando a criança com um nome popular. Para além da legitimação contínua dos saberes ocidentais, alteram-se os nomes, as escolhas e manipu-lam-se as palavras. Há uma velada homogeneização das práticas, uma tentativa higienista por meio da língua.

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POLÍTICAS DE LÍNGUA

A perspectiva do sujeito nos processos do fazer saúde traz o usuário indígena para uma cena em que a língua se constitui como potencial de resis-tência, como ato político e agência que, de acordo com Feuerwerker (2014), admite componentes heterogêneos em movimentos permanentes que sustentam processos de (des/re)territorialização, produzindo devires.

O cuidado em Saúde marca sujeitos pelas barreiras da língua, mas o uso da língua indígena movimenta essas barreiras, mobiliza posições de poder, desloca canais de enunciação e lugares de silenciamento. Os sujeitos ocupam diferentes posições no discurso, pois são historicamente constituídos e, justa-mente por intervirem no repetível, atualizam e ressignificam discursos, produ-zem novos sentidos, outras leituras e interpretações (NETTO, 2008). Por isso o sujeito é sempre inacabado, produzindo-se interminavelmente em movimento de vir-a-ser. Por ser histórico é também político e Arendt (2002) constata ser a língua algo que surge entre os homens de modo a propiciar o aparecimento de um espaço entre eles. A política baseia-se na pluralidade humana, tratando da convivência entre diferentes e organizando um mar de diferenças.

As tensões percebidas no hospital remetem aos embates históricos entre os papéis de colonizador e colonizado. O índio continua a ser percebido com reservas, sempre controverso, estranho, distante e distorcido, com outras concepções de doença, saúde e cura que contrariam o conhecimento científico.

Nessa direção:

A estrutura da relação de produção linguística depende da relação de força simbólica entre os dois locutores, isto é, da importância de seu capital de autoridade (que não é redutível ao capital propriamente linguístico): a competência é também, portanto, capacidade de se fazer escutar. A língua não é somente um instrumento de comunicação ou mesmo de conhecimento, mas um instrumento de poder. Não procuramos somente ser compreendidos, mas também obedecidos, acreditados, respeitados, reconhecidos. Daí a definição completa da competência como direito à palavra, isto é, à linguagem legítima como linguagem autorizada, como linguagem de autoridade (ORTIZ, 1983, p. 160).

O silêncio dos usuários indígenas pode provocar entendimentos este-reotipados, reducionismos e percepções distorcidas de: desinteresse, distância, passividade e, até mesmo, déficit cognitivo. Justamente por não considerarem seus conhecimentos tradicionais, nas intervenções médicas e internações hos-pitalares são calados pela rotina e objetividade disciplinar, onde não cabe falar

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sobre remédio do mato, nem de reza ou de outras propostas de cura. Segundo Lopes (2018, p. 112), os Aparelhos do Estado funcionam como territórios-pe-ríodos de interdição, um local na estrutura social em que não se fala a língua a materna, que despersonaliza e tenta despolitizar o sujeito indígena subordi-nando-o aos modos de ser e aos estilos da modernidade ocidental. Exclui-se o indígena e, com ele, a diversidade contida no conceito de Saúde Indígena.

Spivak (2010) questiona a representação unilateral e hegemônica do sujeito soberano que oblitera e fala pelo outro. Só é possível inaugurar um Sujeito passando por um crivo crítico desse processo de silenciamento. Ainda para o autor, essas são violências epistêmicas causadas às populações das mar-gens, constituidoras do circuito dos oprimidos e silenciados que, caso tenham oportunidade, podem falar e conhecer suas condições.

No hospital existem muitas formas de dizer(-se). Na ausência de um tradutor emergem mulheres pacientes indígenas como tradutoras e suas nar-rativas são imprevisíveis. Assim, mesmo com os limites hospitalares, criam-se e transformam-se transgressões, uma ressignificação espaço-temporal por meio do uso da língua.

A permanência de mulheres no hospital local tem sido volumosa devido aos partos com frequentes e duradouras internações de bebês, impondo uma dura rotina a essas mulheres confinadas pelos corredores, dividindo conversas sobre suas vidas, habitando em alojamentos conjuntos e perambulando pelos setores nos quais realizam suas atividades. Nesses locais proliferam histórias, angústias e realizações cotidianas. Ocorrem momentos em que a língua surge como desafio para as equipes de cuidado, demandando intervenções com o intérprete hospitalar indígena.

No contexto do hospital, principalmente na Maternidade, vigoram demandas relacionadas aos papéis das mulheres que, no caso das indígenas, têm a cosmovisão e os sentidos atribuídos à suposta negligencia materna. A equipe costuma voltar-se para os cuidados com o bebê, exigindo constante-mente a presença da mãe para amamentar, o que não é exclusividade materna na cultura indígena. Nesse contexto inflexível, mulheres indígenas falantes somente da língua Guarani são discriminadas pelo não enquadre ao padrão. Há também os casos das “indígenas difíceis”, que se recusam a seguir as ordens, que não mantêm os papéis estipulados e negam-se a seguir a rotina. Novamente o intérprete é chamado.

No entanto, na ausência do interprete institucional tem-se a presença das intérpretes imprevistas. São mulheres indígenas bilíngues ou multilíngues, acompanhantes de pacientes com internações longas, cuidadoras que, por von-tade e desejo próprio, atuam em demandas de outras mulheres indígenas. Essa prática não configura uma atividade oficial e traz à tona outros discursos, não

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biomédicos, referentes à experiência de cada mulher e permite a emergência de sentidos surgidos na estadia hospitalar.

Muitas intérpretes imprevistas permanecem no hospital tempo sufi-ciente para se tornarem elos entre equipe institucional e usuárias, assim, apresentam demandas coletivas, formam relações de confiança e tornam-se porta-vozes. Há abrangência social, política e administrativa nesse papel. Por isso, a intérprete imprevista, ao não subordinar a mulher indígena, permite uma relação de troca e de comunicação para além da mera tradução e pode ter caráter transgressor. E, por tornar o feminino visível na língua, faz com que as mulheres sejam vistas e ouvidas no mundo real.

O comportamento linguístico no hospital revela enunciadores e posi-ções para sobrevivência, existência ou desaparecimento. O termo Guarani oñembotavy, que significa “fazer-se de bobo”, remete a estereótipos de figuras indígenas: quieto, calado, tímido e desinteressado, percepções inerentes a comportamento linguístico defensivo (TIVIROLLI, 2017, p. 18).

As diversas posições ocupadas nas relações hospitalares não são fixas, o absorto indígena conversa em Guarani com seus iguais, as mulheres indígenas trocam informações entre si, desta forma barreiras e interdições são criadas. Netto (2008, p. 52) faz referência ao termo “interdição”, cuja acepção remete a entredizer, carregando consigo a marca da alteridade. A autora afirma que a interdição constitutiva e estruturante da língua materna carrega a relação com o outro. Mas, também, o acesso e o controle à língua materna são vedados ao seu enunciador ao mesmo tempo em que o subordina, portanto a língua materna o torna sujeito.

Nesses movimentos de interdição o usuário indígena usa de sua língua para criar um espaço não acessível ao não indígena. É rotineiro encontrar no ambiente hospitalar mulheres reunidas, rindo e conversando em Guarani, entretanto, à menor aproximação de um funcionário, nada é traduzido. Deses-tabiliza-se por instantes a realidade dura e fria por meio de uma resistência linguística. Rajagopalan (2003) traz as questões linguísticas e políticas como uma só, pois, ao falarmos uma língua e nos engajarmos numa atividade linguística estamos nos comprometendo politicamente. A linguagem é um ato eminente-mente político e também uma escolha. Ao escolher pronunciar-se em Guarani, tem-se uma intenção de excluir os sujeitos presentes e o lugar de onde se fala.

De certo modo, por vigorar a voz técnica, composta por um discurso científico, tecnológico, farmacológico e ocidental, o viés institucional do hospital permite a brecha de um atendimento humanizado pautado na língua apenas se for conduzido por um profissional formado em Ciências da Saúde. Essa é uma barreira inicial que inviabiliza discursos outros, considerados errados e desprovidos de saber.

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O saber indígena não tem valor para o profissional (bio)médico e denota a prevalência do conhecimento e das práticas científicas modernas. Por isso, muitas vezes o papel do intérprete se reduz a repassar falas de uma equipe traduzidas para o Guarani para que as usuárias colaborem e sigam o protocolo. Essa é uma prática de convencimento na qual o sujeito indígena é tratado como paciente, subtraído de autonomia. O conhecimento da cultura indígena pode fazer parte de um discurso de limitação à atuação do intérprete e de restrição às intervenções externas e estranhas, sobrepujando o saber tradicional indígena e reprimindo sua família.

O pretexto de viabilizar a língua Guarani por meios regulamentados pela instituição acaba por desviar-se do propósito inicial no decorrer de práticas políticas relacionadas às situações singulares. O papel do intérprete indígena também se faz subversivo por realizar desvios e promover práticas. Moreno e Oliveira (2000) remetem à tradução subversiva a serviço de uma ideologia. Estamos diante de uma discussão sobre a fidelidade a partir de outro ângulo, o não hegemônico.

Mesmo que a língua Guarani seja silenciada, a equipe de cuidados se depara com o intérprete que pode silenciar a linguagem médica em sua tradução. Nem sempre o que é compreendido em Guarani é traduzido para o Português, e vice-versa, algumas vezes o intérprete evita reportar-se à equipe ou fornecer uma devolutiva, ou seja, o diálogo é impossibilitado. O ato de traduzir é também o de desconstruir a estrutura coesiva, reconstruindo-a em outra língua, e isso, segundo Furtado (2010) leva à formação de uma postura ética.

São perceptíveis, portanto, duas figuras distintas em um sujeito multifa-cetado, a do intérprete indígena e a do intérprete hospitalar, cada uma atuando de acordo com a situação e o contexto (TIVIROLLI, 2017). Há um trânsito de práticas e usos da língua em um contexto de poder vinculado à dimensão do direito e dos discursos de verdade. Na perspectiva de Foucault (2012), poder é algo que circula, sendo desencadeado, não localizável em lugar específico, nem apropriado como um bem, ele funciona e é exercido em redes. O poder só pode ser exercido se houver produção, circulação e acumulação de discursos de verdade.

Essa tentativa de legitimar uma língua é a escolha por uma História, por uma maneira de ser e pensar, por uma visão de mundo. A língua Guarani acaba interditada, e por isso subverte sem deixar de existir. Por essa língua, reafirma-se um movimento de resistência que, segundo Cruz e Coelho (2012), é criado por atores em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo trincheiras de resistência e sobrevivên-cia baseadas em princípios diferentes ou mesmo antagônicos aos vigentes na sociedade dominante.

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Enquanto convergirem relações assimétricas das forças hegemônicas e das práticas homogeneizantes que inventam passados para dar lugar a um futuro, o mundo será dividido numa cartografia abissal, como bem coloca Santos (2007). A zona colonial é sempre tida como um mundo incompreensível com crenças apenas toleráveis, pendendo para conhecimentos que não podem sequer ser considerados.

Se o conhecimento dominante continua a não enxergar os habitantes subalternos como agentes, sempre haverá apropriação e violência das mais variadas formas desde a incorporação, cooptação e assimilação até a destruição física, material, cultural e humana. E, a essa denúncia, Santos (2007) frisa as transgressões tão naturalizadas no cotidiano do país, garantidas e reiteradas pelo discurso institucional/oficial que nega os conhecimentos indígenas sobre a biodiversidade, proíbe o uso de suas línguas e impõe a adoção de nomes cristãos. O sujeito indígena é dualizado nos processos e práticas de saúde e a ruptura se dá também linguisticamente no contexto hospitalar. Não se trata aqui de apontar um lugar de múltiplas vitimizações (NASCIMENTO, 2014) nessa situação de colonização multifacetada, mas atentar para como a língua irradia pelos territórios, inclusive sobre o imaginário moderno.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O complexo cenário hospitalar revela sua rugosidade a partir de reen-trâncias, rupturas e marcas produzidas pelos diversos sujeitos e línguas que transitam, se tocam, se atravessam e se distanciam revelando processos comuns à rotina do cuidado, à produção de discursos e às possibilidades de existência dos saberes subalternos e marginalizados, dos fluxos de reterritorialização e do devir das línguas que se mostram políticas, sensíveis, contraditórias, intersticiais.

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DIREITOS FUNDAMENTAIS INDIGENAS E A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DAS TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS NO BRASIL

Edson Antônio Baptista Nunes11

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como objetivo analisar a proteção constitucional das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas como um direito funda-mental destas comunidades à manutenção de sua cultura e de sua dignidade. A posse dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam é considerada um direito fundamental. Direito fundamental este que decorre dos preceitos contidos no art. 231 de nossa Constituição Federal.

A Constituição Federal de 1988 (CF/88) normatizou os direitos e garantias para garantir às condições indispensáveis para a vida digna das comunidades indígenas, entre elas estão: o direito à posse das suas terras e ao usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (artigo 231, caput e § 2o, da CF/88); o direito à preservação da própria cultura (artigo 231, caput, da CF/ 88); o direito à educação na própria língua (artigo 210, § 2o, da CF/88);

Embora este direito fundamental não esteja diretamente elencado no art. 5º de nossa Carta Magna, não resta dúvida que este seja um direito fundamen-tal. Também é importante salientar que o direito à terra e manutenção de sua cultura são, sem dúvida, os principais cernes dos direitos dos povos indígenas.

Do direito à terra, a sua posse, dependem todos os demais direitos e a própria continuidade e reprodução cultural desses povos, uma vez que sem o direito a suas terras todos os demais direitos indígenas estão prejudicados na sua essência.

O entendimento deste princípio é importante, uma vez que este é a base para entender todos os conflitos que ocorrem diante desta situação e muitas vezes os argumentos contrários buscam justificativas no sentido de deslegiti-má-lo, ou mesmo de desqualificá-lo como direito fundamental.

Esta argumentação ocorre por motivos diversos, o que ao invés de contri-buir para solução do problema, na maioria dos casos serve como combustível para aumentar a discussão e pressionar os órgãos governamentais e setores da sociedade brasileira, no sentido de que não se demarquem as terras tradi-cionalmente ocupadas pelos indígenas.

11 I Mestre em Direitos Fundamentais (UNOESC). Advogado. CV: http://lattes.cnpq.br/7985719108706196

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Esta posição de indefinição, marcada por uma quebra de braço entre setores da sociedade e entidades indigenistas, ambos buscando convencer o governo de que a sua posição é a mais correta, acarreta em uma situação onde a solução não seja encontrada e o problema persista “ad eternum”.

Voltando a questão dos Direitos Fundamentas, reforçar-se o entendimento de que a Constituição Federal não restringe a exclusividade do seu art. 5º para tratar dos Direitos Fundamentais, uma vez que essa categoria de direitos não forma um sistema fechado e independente.

Atualmente, os conflitos existentes dentro do constitucionalismo moderno na maioria das vezes dizem respeito aos direitos fundamentais, justamente por não ser possível a sua hierarquização em abstrato, devido à sua fundamentalidade.

No próprio texto constitucional está muito clara a ampliação do elenco dos direitos fundamentais. O art. 5°, §2°, de nossa Carta Magna diz que: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorren-tes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

Neste sentido, com muita propriedade afirmou o professor Ingo Sarlet, que a fundamentalidade do direito dos índios sobre a posse de suas terras, nos termos do art. 5º, §2°, Constituição Federal, pode se justificar tanto por decorrência de tratados internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil seja parte; quanto por decorrência do regime e dos princípios adotados pela Constituição Federal 88 (SARLET, 2010, p. 68).

O direito a posse das terras tradicionalmente ocupadas por comunidades indígenas é um direito fundamental essencial a essas comunidades, uma vez que a terra é um elemento fundamental para que toda e qualquer sociedade indígena sobreviva, visto tratar-se do espaço físico vital para a satisfação de suas diferentes necessidades e preservação de sua cultura (LOPES, 2001, p. 87).

OS DIREITOS FUNDAMENTAIS INDÍGENAS EM DECORRÊNCIA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Para discorrer sobre os direitos indígenas oriundos do princípio cons-titucional da dignidade humana tem-se que lembrar o ensinamento de Pietro Alarcón de Jesús, que afirma que a tendência dos mandamentos constitucionais é no sentido de reconhecer e valorizar o ser humano como a base e o topo do direito.

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Entre as grandes transformações ocorridas no Direito no século passado, pode-se citar uma alteração profunda no conteúdo da Dignidade Humana, que passa a incorporar além das liberdades da época.

Exemplo disto é a Constituição Italiana de 1947 que sagrou o princípio da dignidade da pessoa humana em seu artigo 3º, com a seguinte expressão: “todos cidadãos tem a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.

Levando em conta estas alterações sofridas no que diz respeito ao con-teúdo da Dignidade Humana, na busca de uma maior participação dos grupos minoritários, questiona-se as restrições neste conteúdo (FREITAS e CASTRO, 2012, p. 324).

Deve-se lembrar que no ano de 1949 a Assembleia das Nações Unidas consagrou expressamente as palavras: “A dignidade do homem é intangível, os poderes públicos estão obrigados a respeitá-la e protegê-la”.

Pode-se observar que ao longo da história os conteúdos para a dignidade humana foram se moldando conforme as variáveis políticas e sociais de sua época (FREITAS e CASTRO, 2012, p. 324).

Outro exemplo marcante neste sentido foi a Constituição Portuguesa que assim trouxe o assunto no seu bojo: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.

Também neste sentido, a Constituição Espanhola, que trata da dignidade humana nos seguintes termos: “A Dignidade da Pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito pela lei e pelos direitos dos outros são fundamentos da ordem política e da paz social”.

A Constituição da Alemanha, conforme citado por Nunes, traz a seguinte afirmação quando trata da Dignidade Humana: “A dignidade humana é intan-gível. Respeitá-la, e protegê-la é obrigação de todo o poder público” (NUNES 2009, p. 48).

A Constituição Francesa, por sua vez, embora não traga de forma explí-cita e expressa, o princípio da dignidade da pessoa humana é utilizado por hermenêutica através do Conselho Constitucional.

A dignidade como um princípio de direito fundamental é a pedra angu-lar para os demais princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais. Assim, não se pode falar em desconsideração da dignidade da pessoa humana em nenhuma forma de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídi-cas, uma vez que o mesmo é considerado um supra princípio constitucional.

Quando e se fala em direitos fundamentais no Brasil, conforme abordado por Cleber Francisco Alves, foi a Constituição do Império de 1824 que trouxe em seu texto alguns direitos fundamentais, entre eles a liberdade, a segurança individual e a propriedade (ALVES, 2001, p. 125-126).

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Por outro lado, é importante lembrar que não existiam até então alguma menção expressa à dignidade da pessoa humana nas primeiras cartas cons-titucionais brasileiras. Somente na Constituição brasileira de 1934 aparece expressamente no texto constitucional o termo “a todos existência digna”. A partir desta Constituição Federal se torna indispensável o enfoque no texto constitucional da dignidade da pessoa humana (NUNES, 2018, p. 49).

A Constituição Federal de 1988, busca a construção de um Estado Demo-crático de Direito, que tem por finalidade “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” (PIOVESAN, 2013, p. 88).

Quando se fala em dignidade da pessoa humana, deve-se sempre lem-brar que sua admissão deve ser realizada dentro de um Estado Democrático de Direito. Estado este, que é o fundamento da nossa Constituição e tem como objetivo a garantia do exercício dos direitos sociais e individuais, da liberdade, da segurança, do bem-estar, entre outros direitos fundamentais, como valores supremos de uma sociedade moderna, fraterna, igualitária e pluralista que pensa no ser humano como um ente que detém dignidade e que esta dignidade deve ser protegida e respeitada pelo Estado.

Segundo Sarlet (2007), a dignidade da pessoa humana não depende de uma circunstância concreta, uma vez que todos os seres humanos possuem dignidade de maneira igual. Sendo que este é o entendimento do artigo 1° da Declaração Universal da ONU (1948), pelo qual “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade” (SARLET, 2007, p. 158).

Ao tratar de direitos fundamentais do indígena, é importante lembrar que este direito tem fundamentação no princípio da dignidade da pessoa humana (BARBIERI, 2008, p. 121).

Assim como todos os seres humanos, o indígena tem direito a uma vida digna em igualdade de condições com outros povos. No mesmo sentido, é importante que as condições que mantem esta dignidade devem ser preserva-das, como exemplo destas condições podemos citar a sua cultura, sua crença, seus hábitos e sua forma de viver (NUNES, 2018, p. 52).

O direito à posse das terras tradicionalmente ocupadas pelas comu-nidades indígenas é um direito fundamental. Lembra-se que os dispositivos previstos na Constituição Federal, como direitos fundamentais, possuem prerrogativas maiores dentro do sistema constitucional. Assim, quando uma norma da Constituição Federal é considerada “direito fundamental”, passa a ser considerada de aplicabilidade imediata e eficácia plena (art. 5°, §2°, CF); é havida como cláusula pétrea, impossibilitando a sua revogação pelo poder constituinte derivado (art. 60, §4°, CF).

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A juridicidade, a constitucionalidade e os direitos fundamentais são as três dimensões fundamentais do princípio do Estado de Direito, nota-se que o documento constitucional aplica largamente essas dimensões. Isto está muito claro já em seus primeiros artigos, (arts. 1º e 3º), que trazem princípios que aplicam os fundamentos e os objetivos do Estado Democrático de Direito Brasileiro (PIOVESAN, 2013, p. 88).

Por sua importância, os valores de justiça e de dignidade que são essen-ciais às relações existenciais e ao respeito à pessoa e estão presentes no arca-bouço principiológico da Constituição são percebidos em sua fundamentalidade, sendo a eles atribuída a classificação de “direito fundamental”.

Outro ponto importante a ser considerado é o fato de que os direitos fundamentais indígenas exercem uma função democratizadora, uma vez que eles são o elemento básico para a realização do princípio democrático destas comunidades (PIOVESAN, 2013, p. 88).

Deve-se lembrar dos conceitos de direitos humanos e direitos funda-mentais apresentados anteriormente para que se possa identificar claramente e com nitidez o direito fundamental das comunidades indígenas às terras tradicionalmente por elas ocupadas.

Quando se fala em indígenas, não se pode esquecer que desde a desco-berta do continente Americano a maioria dos estudiosos nutria um conceito errôneo sobre a natureza e condição humana dos nativos, chegando a serem classificados como seres inferiores, ignorantes, de terceira classe, quiçá como meio de justificar a exploração dos colonizadores sobre estas comunidades (COLAÇO, 2000, p. 89).

Com o passar do tempo e a afirmação da colonização do continente Americano, onde a visão do colonizador passa de um interesse de simples exploração para um interesse de colonização de fato, começam a aparecer algumas preocupações com os direitos humanos indígenas, inicialmente com denúncias de maus tratos, injustiças e explorações das mais diversas, o que finalmente gerou uma proteção constitucional do direito dessas comunidades.

Os direitos humanos são universais e não aceitam restrições legais ou morais sobre o seu conteúdo, uma vez que estes estão morfologicamente rela-cionados à proteção da dimensão básica da dignidade, que é inerente a todos os seres humanos. Eles representam o limite mínimo que deve ser observado por todas as nações na regulação de suas práticas morais (BAEZ, 2011, p. 41).

O valor da dignidade da pessoa humana estabelece-se como o núcleo fundamental e informador de todo o ordenamento jurídico, atuando como critério e parâmetro de valoração visando à orientação, interpretação e com-preensão do sistema constitucional vigente (PIOVESAN, 2013, p. 89).

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Por este motivo, privar os índios da posse de suas terras tradicionais poderá comprometer a dignidade das suas vidas. Neste sentido, podemos afir-mar que a posse indígena sobre as terras por eles tradicionalmente ocupadas é um direito fundamental, uma vez que sem esta terra sua dignidade resta comprometida.

OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS INDIGENAS ÀS TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS

As terras tradicionalmente ocupadas por índios são aquelas por eles habitadas de forma permanente, sendo utilizadas para atividades de produção e proteção dos recursos ambientais que fazem parte do devido espaço indígena, gerando o seu bem estar, a reprodução física e cultural de acordo com o que suas tradições que são passadas de geração em geração (SANTOS, 2006, p. 45).

É importante salientar que o direito dos povos indígenas às suas terras de ocupação tradicional configura-se como um direito originário e, consequen-temente, o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas é declaratório.

Caracterizam-se como terras tradicionalmente ocupadas pelos índios aquelas que sejam habitadas em caráter permanente, sejam conforme artigo 231, § 1° da Constituição da República Federativa do Brasil.

Usa-se o termo terras tradicionalmente ocupadas pelos índios justamente para designar o modo tradicional que essa comunidade utiliza para ocupar essas áreas, seus costumes, tradições, crenças e organização social (BORGES, 2014, p. 111-115). As áreas tradicionalmente ocupadas são aquelas em que os índios efetivamente praticam o poder físico da posse com exercício de suas atividades permanentes, como a fruição dos seus bens e riquezas, exercendo essa posse de forma real e com exercício de atividade permanente.

Deve-se destacar que a Constituição Federal de 1988 adota expressamente o direito originário das comunidades indígenas sobre terras tradicionalmente ocupadas, conceituando-as como aquelas “que se destinam a sua posse permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis a preservação dos recursos naturais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo usos, costumes e tradições”.

Dessa maneira, a Constituição Federal, ao criar uma espécie de posse normativa em favor dos povos indígenas, não exige como pressuposto a exatidão dos registros de ocupação anterior. Outra consequência a ser apontada, também oriunda do texto constitucional, diz respeito à impossibilidade de se consolidar quaisquer direitos sobre as terras tradicionalmente ocupadas por índios.

Essas terras devem ser objeto de mera declaração do poder público, noticiando seu caráter originário. Não prevalecem, em tais circunstâncias,

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títulos dominiais concedidos pelos estados, nulos de pleno direito face ao reconhecimento da ocupação tradicional.

A configuração de terras “tradicionalmente ocupadas” pelos índios, nos termos do art. 231, § 1º, da Constituição Federal, já foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal, com a edição da Súmula 650, que dispõe: “os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”.

A Suprema Corte deixa muito claro que o referencial insubstituível para o reconhecimento aos índios dos “direitos sobre as terras que tradicio-nalmente ocupam” é a data da promulgação da Constituição Federal, isto é, 5 de outubro de 1988.

Acrescenta-se ainda que, ao marco temporal, deve-se considerar como complementar o marco da tradicionalidade da ocupação. Não basta que a ocu-pação seja coincidente com o dia e o ano da promulgação da Constituição Federal, é preciso haver a perdurabilidade da ocupação indígena, no sentido entre anímico e psíquico de que viver em determinadas terras é tanto pertencer a elas quanto elas pertencerem a eles, os indígenas.

Os direitos fundamentais das comunidades indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam estão enquadrados no rol dos direitos funda-mentais, já que estes apresentam as características para serem classificados como direito fundamental.

Isso porque os direitos humanos fundamentais representam uma dimen-são básica de satisfação da dignidade humana. Ele possui atributos fundamen-tais dos seres humanos que lhes é inerente desde o seu surgimento na terra. A preservação da diversidade de cada cultura, alcança a dimensão cultural da dignidade humana impondo-se como único limite a essas tradições a não vio-lação do conceito básico que distingue o ser humano de um objeto preservando a sua dignidade (BAEZ, 2011, p. 89).

Salienta-se para este entendimento, que os direitos fundamentais são concebidos como princípios supremos do ordenamento jurídico, não só na relação do indivíduo com o poder público, atuando em forma imperativa. Afetam, também, a relação recíproca dos atores jurídicos particulares e limi-tam sua autonomia privada, regendo-se, então, como normas de defesa da liberdade e, ao mesmo tempo, como mandados de atualização e deveres de proteção para o Estado.

Por isso tudo pode-se afirmar que o direito dos indígenas sobre as terras por eles tradicionalmente ocupada são direitos fundamentais. Neste sentido, a Constituição federal em seu art. 231, confere maior logística a este dispositivo que trata sobre a posse dos índios sobre as terras tradicionalmente ocupadas e, com isso, faz frente ao direito fundamental de propriedade civil dos não indígenas (NUNES, 2018, p. 66).

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Neste sentido, faz-se importante o reconhecimento da posse indígena como um direito fundamental, o que pode ser um instrumento jurídico eficaz para a pacificação social. Daí a importância do debate sobre a superioridade de prerrogativas que os direitos fundamentais vêm a ter dentro do sistema, posto que, cada vez mais, existem conflitos que envolvam a posse indígena em face de outros direitos fundamentais e que reclamam uma solução pelo Judiciário. Assim, a adoção dessa teoria sobre a natureza da posse indígena tem como fim auxiliar na sua efetivação e solução deste conflito de direitos fundamentais.

O direito à terra, entendida como o espaço de vida e liberdade de um grupo humano, é a reivindicação fundamental dos povos indígenas brasileiros e latino-americanos (SOUZA FILHO, 2005, p. 114).

Mister salientar que mesmo as comunidades indígenas com maior con-tato com a sociedade não índia, mantém a cultura e a tradição do uso da terra tradicionalmente ocupada e esta relação com a terra serve como suporte para transmissão e manutenção de sua cultura e de seus costumes.

A importância de se enquadrar o direito indígena como um direito fun-damental aflora no presente contexto histórico, político e social, decorrentes do sistema neoliberal. Neste contexto, a globalização política na esfera na nor-matividade jurídica introduz novos direitos, entre eles o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo (BONAVIDES, 2010, p. 148-150).

O reconhecimento dos direitos dos índios pela Constituição Federal é uma grande inovação. As terras tradicionalmente ocupadas pelas comunidades de indígenas são bens da União, competindo a ela, a demarcação, proteção e respeito a todos os seus bens. Consideram-se habitadas em caráter perma-nente, as utilizadas para fins produtivos, bem como aquelas imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais a seu bem-estar.

Torna-se cada vez mais forte a necessidade de implantação desses direitos para salvaguardar a convivência entre os povos. Na formação de uma sociedade pluralista, não se deve pretender a uniformização dos grupos humanos. Ora, constantemente se acentua que o papel de uma Constituição moderna não é aquele de simplesmente retratar a vontade comum de um povo, expressa pela maioria de seus membros, mas principalmente a de garantir os direitos de todos, inclusive contra a vontade popular (FACHINNI NETO, 2003, p. 185).

A determinação de que a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas deve ser destinada a essas comunidades, visa não só preservar o direito ao bem material destas comunidades, mas de manter a identidade e a cultura da mesma.

A posse dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam é o meio mais eficiente que eles possuem para manter os traços que distinguem a sua cultura e forma de vida e a consequente convivência harmoniosa com a coletividade e a preservação de sua cultura e costumes.

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O reconhecimento da posse indígena como um direito fundamental pode ser um instrumento jurídico eficaz para a pacificação social. Daí a importância do debate sobre a superioridade de prerrogativas que os direitos fundamentais vêm a ter dentro do sistema, posto que, cada vez mais, existem conflitos que envolvam a posse indígena em face de outros direitos fundamentais e que reclamam uma solução pelo Judiciário.

Assim, a adoção dessa teoria sobre a natureza da posse indígena tem como fim auxiliar na sua efetivação e solução deste conflito de direitos fun-damentais. Sem a garantia de posse das terras tradicionalmente ocupadas, às comunidades indígenas terão problemas para manter seus hábitos e costumes, perdendo sua dignidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito a ocupação das terras tradicionalmente ocupadas pelos indí-genas é um direito fundamental coletivo da comunidade indígena que ocupa a referida área e esta comunidade está protegida Constitucionalmente por uma relação jurídica-base.

Os princípios de direitos fundamentais têm como pedra fundamental a dignidade da pessoa humana e produzem eficácia nas relações entre o Estado e os particulares.

A Constituição Federal trouxe elementos para definição do que são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, e no seu texto condicionou seu uso respeitando os costumes e às tradições das comunidades indígenas.

A fundamentalidade da posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas decorrer do art. 231 da Constituição Federal, configurado como um princípio jurídico ligado à dignidade da pessoa humana.

Os direitos dos índios são considerados direito fundamentais, uma vez que estes decorrem da possibilidade de aplicabilidade direta e eficácia imediata e a impossibilidade de sofrer emenda constitucional o que se equipara em importância constitucional, com o direito de propriedade particular.

Resta claro que o direito dos indígenas sobre as terras por eles tradicio-nalmente ocupada são direitos fundamentais. A Constituição federal em seu art. 231 reafirma este conceito quando traz em seu dispositivo ao tratar sobre a posse dos índios sobre as terras tradicionalmente ocupadas, o que faz testa ao direito fundamental de propriedade civil dos não indígenas.

O reconhecimento da posse indígena como um direito fundamental imprescindível para a resolução dos conflitos que ocorrem sobre estas áreas. Conflitos estes que todos os são mais frequentes diante do exercício da posse

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indígena as terras tradicionalmente ocupadas e outros direitos fundamentais. Dessa forma, ficaremos mais próximo de uma solução a este problema.

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A COMISSÃO NACIONAL DE POLÍTICA INDIGENISTA (CNPI): UM BREVE CAPÍTULO DA HISTÓRIA RECENTE DO INDIGENISMO BRASILEIRO

Saulo Ferreira Feitosa12

Rosane Freire Lacerda13

INTRODUÇÃO

O termo “indigenismo” é comumente utilizado para referenciar um conjunto de práticas e ações em favor dos indígenas. Em face disso, a expressão “indigenista” passou a ser utilizada tanto para definir um tipo de atividade ou campo de ação (política indigenista, legislação indigenista, formação indigenista) como para designar uma categoria funcional (agente indigenista, antropólogo indigenista, missionário indigenista). Todavia, sob o aspecto conceitual, torna-se muito difícil encontrar uma definição precisa.

Diante dessa dificuldade, a antropóloga Alcida Rita Ramos assim a ele se referiu:

É uma Babel de conjunções e disjunções erigida com uma grande variedade de ingredientes que vão desde políticas oficiais, posturas religiosas e laicas sobre o destino dos povos indígenas, de construções antropo-lógicas ou imagens jornalísticas a manifestações dos próprios índios frente à sociedade dominante. A minha definição de Indigenismo não se restringe, portanto, ao indigenismo oficial. É, ao contrário, um indigenismo com I maiúsculo para marcar um recorte bem mais amplo do que o oficialismo indigenista e para seguir o emaranhado de trilhas deixadas na consciência e no inconsciente coletivo por multidões de transeuntes que se acotovelam na paisagem do campo interétnico (RAMOS, 1998, p. 8).

Segundo Alves (2007, p. 30), “o termo indigenismo, cujos significados foram cunhados a partir da Revolução Mexicana de 1910, possui, atualmente, um leque grande de sentidos, o que dificulta bastante sua utilidade em ter-mos analíticos”. Todavia, a partir da realização do I Congresso Indigenista

12 Doutor em Bioética. Professor (UFPE). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6360-021213 Doutora em Direito (UnB). Professora (UFPE). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3096-2089

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Interamericano realizado no México, no ano de 1940, com a participação de vários representantes dos governos da região, os países americanos passaram a fazer uso do termo para designar as várias formas de relação estabelecidas pelo Estado com os povos originários. Contudo, Portela (2011) sustenta que no caso do Brasil o conceito de indigenismo aparece num primeiro momento no Século XIX, no contexto dos investimentos políticos para o desenvolvimento de um projeto de nação, e depois, no Século XX, quando é criado o Serviço de Proteção ao Índio (SPI).

Embora seja fato que já nos oitocentos começa a se esboçar no país certa idéia de indigenismo a partir de formulações dos intelectuais do período, como José Bonifácio e Varnhagen, deve-se considerar que a palavra enquanto tal não aparece nos registros históricos da época. Além disso, somente no início do século XX o Estado brasileiro formula e começa a por em prática uma proposta de indigenismo estatal e laico, tendo como marco principal a criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN) (LACERDA, 2007, p. 84). Instituído pelo Decreto n.º 8.072 de 20 de junho 1910, o órgão teve longa duração, tendo sido localizado inicialmente no Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC).

Com base em uma orientação ideológica positivista, o órgão recebeu a incumbência de incorporar (integrar) os índios ao processo civilizatório do país, assegurando-lhes a proteção por parte do Estado. Dessa forma, tomando como referência a criação do SPILTN, o chamado ‘Indigenismo Oficial’ comemorou seu centenário em 2010, quando foram realizadas várias atividades comemo-rativas por parte do Governo brasileiro.

Em 1918 o SPILTN foi desmembrado, ficando as atividades de proteção aos índios sob encargo do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), enquanto as ações sobre localização dos trabalhadores nacionais passaram à responsabilidade do Serviço de Povoamento do Solo (SPS). No ano de 1967, em face dos vários escândalos envolvendo funcionários do órgão, desde corrupção até crime de genocídio (DAVIS, 1978, p. 33-35), o SPI foi extinto pela Lei Federal n.º 5.371, de 5 de dezembro, que em seu lugar instituiu a Fundação Nacional do Índio (Funai).

Nesse prisma, percebe-se que, desde sua origem até pouco tempo atrás, a política de proteção aos povos indígenas adotada pelo Estado brasileiro baseava-se em uma concepção evolucionista14, segundo a qual os indígenas encontravam-se em uma fase inicial da evolução da humanidade. Por essa razão, não eram vistos como possuidores de capacidade plena, sobretudo do ponto de vista jurídico. Eram, em síntese, considerados como selvagens a serem protegidos e conduzidos à civilização, onde ser civilizado implicaria em deixar

14 Tal concepção somente foi alterada após a aprovação da Constituição Federal de 1988, não obstante tenha permanecido na prática de muitos agentes indigenistas do Estado resquícios da compreensão anterior.

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de ser indígena. Para realizar a pretendida integração, foi criada a Lei Federal n. 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio), ainda hoje vigente.

Como bem descrevem Gagliardi (1989) e Souza Lima (1995), o indige-nismo brasileiro oficial tem como características o protecionismo, o assisten-cialismo e o produtivismo, o que pode ser facilmente compreendido dentro no contexto do seu surgimento como parte de um projeto de modernização, que pretendia promover a integração do meio rural ao modelo de desenvolvi-mento adotado para o país. Dessa forma, “mais do que como raça ou etnia os indígenas passam a ser vistos aí como produtores agrícolas, como ‘campesinos’” (VERDUM, 2006, p. 19).

Havia nessa política uma negação dos direitos originários dos povos indígenas sobre suas terras. Sob o véu da “harmoniosa integração”, o principal projeto do Estado era promover a expansão de suas as fronteiras econômicas através da expropriação dos territórios indígenas e sua liberação ao latifúndio.

Como observava José Carlos Mariátegui (2007, p. 29):

La cuestión indígena arranca de nuestra economía. Tiene sus raíces em el régimen de propiedad de la tierra. Cualquier intento de resolverla com medidas de administración o policía, con métodos de enseñanza o com obras de vialidad, constituye un trabajo super-ficial o adjetivo, mientras subsista la feudalidad de los “gamonales”15.

Paradoxalmente, enquanto negava aos povos indígenas sobreviventes a sua identidade étnica na perspectiva de integrá-los à chamada “comunhão nacional”, essa política possibilitou a sobrevivência física de muitos deles, ainda que em certos casos espremidos em pequenas faixas de terras reserva-das, assemelhadas a campos de concentração, e compartilhadas à contragosto entre povos rivais.

O presente texto não pretende apenas dar visibilidade à experiência do indigenismo oficial brasileiro, mas analisar o processo histórico de sua construção. Como bem observa Scott (1998, p. 304),

Tornar visível a experiência de um grupo diferente expõe a existência de mecanismos repressivos, mas não sua lógica ou seus funcionamentos internos; sabe-mos que a diferença existe, mas não a entendemos como constituída em relação mútua. Por isso precisa-

15 A questão indígena começa em nossa economia. Tem suas raízes no regime de proprie-dade da terra. Qualquer tentativa de resolvê-lo com medidas administrativas ou policiais, com métodos de ensino ou com obras viárias, constitui um trabalho superficial ou adjetivo, desde que subsista a feudalidade dos latifúndios. (Tradução livre).

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mos nos referir aos processos históricos que, através do discurso, posicionam sujeitos e apresentam suas experiências.

Para tanto, serão consideradas as relações de poder estabelecidas entre as instituições representativas do poder estatal e os povos indígenas do país, visto que “não há evento histórico que não seja produto de dadas relações sociais, de tensões, conflitos e alianças em torno do exercício do poder” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 27).

A TUTELA INDÍGENA

A vida dos povos indígenas sob a proteção do antigo SPI e depois da Fundação Nacional do Índio (Funai) foi historicamente desprovida de auto-nomia. Considerados “relativamente incapazes” pelo Código Civil de 201616 e submetidos ao regime de tutela, estavam sob o controle constante do Estado, que entre outras restrições limitava-lhes o direito de ir e vir, e determinava com quem poderiam se relacionar.

A tutela imposta aos povos indígenas revela a problemática cultural resultante do processo colonial, posto que “a cultura só emerge como um problema ou uma problemática no ponto em que há uma perda de significado na contestação e articulação da vida cotidiana entre classes, gêneros, raças, nações” (BHABHA, 1998, p. 63). Frente a isso, faz-se necessário considerar para fins de análise do desenvolvimento do indigenismo tutelar no Brasil a questão da diferença cultural.

De acordo com Swain (2004, p. 35), “a diferença em si não é nem positiva nem negativa, pois somos diferentes mesmo em relação a nós mesmos, em nosso caminhar histórico”. Contudo, a autora reconhece que há uma “diferença” que é politicamente criada, constituindo assim “a diferença cultural” identificada dentro de todo e qualquer processo de colonização. Nesse contexto, os membros de uma cultura hegemônica colonizadora exercem uma dominação sobre os membros de culturas não hegemônicas e colonizadas, exercendo uma relação de poder geradora e mantenedora das desigualdades sociais.

Considerando a complexidade dos processos de colonização, Bhabha defende a utilização do conceito de “diferença cultural”, entendendo ser insu-ficiente uma análise fundamentada apenas na diversidade cultural para a compreensão ampla das relações de poder ali estabelecidas. A diversidade

16 O novo Código Civil, de 2002, delegou a decisão sobre a capacidade civil indígena à legis-lação específica, que continua sendo o Estatuto do Índio de 1973, pautado no regime tutelar integracionista. Tal perspectiva, contudo, não se encontra recepcionada no novo paradigma trazido pela Constituição Federal de 1988, que reconhece a capacidade plena e autonômica dos indígenas, nos termos de suas próprias competências socioculturais.

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cultural, diz ele, “é um objeto epistemológico – a cultura como conhecimento empírico –, enquanto diferença cultural é o processo de enunciação da cul-tura como ‘conhecível’, legítimo, adequado à construção de sistema cultural” (BHABHA, 1998, p. 63).

Bhabha é um dos representantes de uma corrente do pós-colonialismo formada por intelectuais asiáticos radicados nos Estados Unidos que desenvol-veram uma crítica à historiografia colonial e eurocêntrica, um aporte impor-tante para os estudos que realizam uma abordagem histórica na perspectiva da geopolítica, a qual contempla as relações de poder entre o Norte e o Sul. Contudo, alguns críticos do pós-colonialismo avaliam que a análise desenvolvida pelos pós-colonialistas é insuficiente para expor a gravidade das assimetrias inerentes às referidas relações.

Para Dirlik (1997, p. 49):

Os críticos pós-coloniais se engajaram em críticas váli-das de formas passadas de hegemonia ideológica, mas tiveram pouco a dizer sobre suas figurações contem-porâneas. [...] Eles transformaram em problemas de subjetividade e epistemologia problemas concretos e materiais do mundo contemporâneo.

Por essa razão, recorremos à perspectiva teórica da “colonialidade do poder”, uma construção originária da América Latina, que tem na matriz do poder colonial moderno o seu principal referencial de análise. Ela se propõe produzir uma epistemologia descolonial, por entender que durante a moder-nidade colonial foi forjada uma estratégia epistêmica que classifica as formas de conhecimento como superiores e inferiores, consequentemente passa a haver também uma classificação de povos superiores e inferiores (GROSFO-GUEL, 2008, p. 24). Dessa maneira, a colonialidade do poder estabelece uma “classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjectivos, da existência social quotidiana e da escala societal” (QUIJANO, 2009, 73).

A tutela indígena, ainda hoje praticada pelo Estado, é, pois, uma expressão inequívoca dessa colonialidade perene que acaba por naturalizar as relações de dominação estabelecidas entre o poder estatal e os povos originários. Por esse motivo, o rompimento com a tutela é condição principal para o estabe-lecimento de novas formas de relacionamento entre os povos indígenas e o Estado brasileiro.

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A RESPOSTA DO MOVIMENTO INDÍGENA

Há muitos registros historiográficos sobre o indigenismo brasileiro que contemplam apenas as ações do Estado, ocultando completamente o protagonismo indígena. Isso pode ser compreendido a partir da análise feita por Burguière (1990, p. 127) sobre a importância dispensada pelo pensamento histórico ao estudo sobre o cotidiano das pessoas originárias dos lugares. Para ele, esse tipo de registro “tornou-se supérfluo a partir do momento em que os Estados-Nações, recentemente constituídos, recrutaram a memória coletiva a fim de justificar pelo passado sua dominação sobre determinado território e sua maneira de organizar a sociedade”.

Contudo, ao analisar as conquistas espanholas, Héctor Bruit (1995, p. 151) interpreta que logo após as derrotas militares os indígenas iniciaram uma resistência silenciosa como forma de garantir a sobrevivência física daqueles que se salvaram após vários massacres. Para autor, essa forma de resistência teve como principais métodos, detectáveis nos registros dos cronistas do século XVI, a teimosia, o uso da mentira perante o conquistador europeu e até mesmo a embriaguez. No caso brasileiro, pode-se também constatar essa estratégia, haja visto a impressionante história dos povos indígenas na região nordeste do país que após serem dados como extintos na segunda metade do Século XIX reaparecem no cenário político nacional de forma organizada na segunda metade do Século XX.

Embora vivendo sob o regime tutelar imposto por um forte esquema repressivo, os indígenas brasileiros – contando com o apoio de entidades indigenistas –, iniciaram a partir dos anos 1970 um processo de articulação, mobilização e construção de organizações próprias, tendo como principal elemento aglutinador a luta pela demarcação de seus territórios tradicionais.

Em dissertação que tem como título O Processo de Criação e Consoli-dação do Movimento Pan-indígena no Brasil (1970-1980), Matos (1997, p. 257) destaca o papel das assembléias de chefes indígenas realizadas entre 1974 e 1984. Conforme a autora elas representaram a criação de um espaço onde a fala dos indígenas podia ser assegurada, criando um ambiente favorável à articulação das lutas por demarcação de terras e servindo como embrião das futuras organizações indígenas que eclodiriam nos anos 1980.

Graças a essa capacidade organizativa os povos indígenas puderam participar ativamente e de maneira decisiva na Assembléia Nacional Consti-tuinte (ANC) ocorrida entre os anos 1987-1988 (LACERDA, 2008, p. 32), o que lhes assegurou a conquista de um capítulo específico sobre direitos indígenas na Carta Magna brasileira.

Como consequência direta do avanço das lutas indígenas impulsiona-das pela vitoriosa participação indígena na Constituinte, foi criada em 2006 a

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Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI)17, através de decreto do Pre-sidente Luiz Inácio Lula da Silva. Dessa forma, cinco séculos após o início da colonização e quase cem anos após a criação do SPI, o Estado brasileiro cedia à pressão do movimento indígena, instituindo um espaço colegiado no âmbito do Executivo Federal onde pela primeira vez aqueles povos podiam participar e influenciar nas discussões e definições de políticas governamentais voltadas para suas comunidades.

Embora a reivindicação primeira do movimento indígena fosse a cria-ção de um Conselho Nacional de Política Indigenista, com poder deliberativo, os povos indígenas e seus aliados compreenderam que a CNPI representou importante conquista no marco dos cem anos de indigenismo oficial, devendo a partir dali avançar para a sua instituição enquanto conselho. Por esse motivo, tanto o movimento indígena quanto o movimento indigenista empenharam-se para atender as exigências necessárias à indicação de nomes a fim de preencher as vagas correspondentes à representação não governamental. Isso significou uma aposta numa nova etapa da história do indigenismo estatal, a tentativa de superar de uma vez por todas a forte marca tutelar que sempre pautou a relação do Estado com os povos indígenas.

A CNPI E A HERANÇA DO INDIGENISMO COLONIALISTA

Pouco mais de um ano após sua criação, a CNPI foi finalmente insta-lada. Em sua primeira reunião, em julho de 2007, o governo surpreendeu a representação não governamental ao submeter à apreciação do colegiado um Anteprojeto de Lei (APL) de regulamentação da mineração em terras indígenas, elaborado pela Casa Civil e Ministério de Minas e Energia. Como justificativa, alegou tratar-se de alternativa ao PL 1610/96 – reconhecidamente danoso aos povos indígenas – que naquele momento, após aprovado no Senado, passava a tramitar na Câmara Federal.

Demonstrando grande habilidade política, os indígenas reagiram con-dicionando a discussão do APL à retomada da discussão sobre o PL 2057/92, Projeto de Lei que trata da criação de um novo Estatuto para os povos indíge-nas e que se encontrava com sua tramitação paralisada desde o ano de 1994. Justificaram essa posição argumentando que a mineração em seus territórios deveria ser tratada dentro do corpo desse novo Estatuto, e não em lei isolada.

17 Vinculada ao Ministério da Justiça e presidida pela Funai, a CNPI era constituída por treze (13) representantes do Governo Federal – doze deles com direito a voto além do voto do presidente da Funai em caso de empate –, vinte (20) representantes de Povos Indígenas regionalmente considerados – sendo dez (10) com direito a voto –, e dois (02) de organizações indigenistas, cada um com direito a voto. Os representantes dos órgãos governamentais con-tavam então com 12 votos, enquanto a representação de indígenas e indigenistas somavam outros 12 votos, ficando o desempate a cargo da Funai.

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A proposta foi aceita pelo governo, o que representou uma dupla vitória para o movimento indígena: ao mesmo tempo em que se retardava a tramita-ção do PL 1610/96, possibilitava-se um novo debate sobre o Estatuto dos Povos Indígenas. Por entender que o texto do PL 2057/92 já estava desatualizado em razão dos quase 20 anos passados desde a sua redação primeira, os indígenas membros da CNPI asseguraram que a comissão promovesse uma ampla con-sulta aos povos, através de oficinas nas várias regiões do país, no intuito de debater a proposta existente.

Dessa forma, durante os anos 2008 e 2009 ocorreu o processo de con-sultas, a partir de uma metodologia participativa construída conjuntamente com os representantes indígenas, indigenistas e governamentais na CNPI. A opção metodológica foi bastante exitosa, possibilitando a revisão completa do texto original, com muitas emendas e supressões, o que resultou em proposta alternativa ao PL 2057/92, que foi submetida ao plenário do Acampamento Terra Livre (ATL)18 realizado em 2009, em Brasília. Pouco tempo depois, o então Ministro da Justiça, Tasso Genro, acompanhado por uma representação indígena da CNPI, entregava ao presidente da Câmara Federal o texto aprovado pelo Acampamento Terra Livre.

Esse acontecimento parecia indicar que o governo estava realmente interessado em investir na mudança da relação estabelecida entre o Estado e os indígenas durante os mais de 500 anos de colonização. Muitos acreditavam que a experiência de consulta realizada sobre o Estatuto poderia servir como ponto de partida para a regulamentação do instrumento de Consulta Prévia, Livre e Informada previsto pela Convenção 169 da OIT. Para alimentar ainda mais a esperança, ainda em 2008, a CNPI já concluíra uma de suas principais tarefas estabelecidas pelo decreto de criação da mesma e enviava ao Congresso Nacional, através de uma mensagem do Poder Executivo, a proposição de um Projeto de Lei para a criação do Conselho Nacional de Política Indigenista (PL 3571/08).

Além disso, durante as reuniões da CNPI, a representação indígena demonstrava grande capacidade de articulação, o que possibilitava a aprovação de moções de apoio e resoluções referentes aos mais variados assuntos: agili-zação de procedimentos de demarcação de algumas terras, criação de comis-sões especiais para visitar terras indígenas em situação de conflito, medidas de combate à violência contra povos indígenas, intervenção na elaboração de políticas públicas etc.

18 Acampamento Terra Livre é como é conhecida a assembleia anual realizada desde 2004 pelos povos indígenas de todas as regiões do Brasil no gramado central da Esplanada dos Ministérios, em Brasília – DF. A experiência teve início com a montagem de diversas malocas no local como forma de reivindicar a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, localizada em Roraima.

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Mas a empolgação que a todos envolveu sofreu um duro golpe nos últi-mos dias do ano de 2009, exatamente na semana dos festejos de final de ano. Entre o Natal e a Celebração do Ano Novo, quando todo o país entra em clima de confraternização, inclusive os povos indígenas, o Governo editou o Decreto Federal 7056 promovendo uma reestruturação da Funai, sem qualquer consulta aos principais interessados, os povos indígenas.

Tal mudança provocou muitos embates entre o governo e representações do movimento indígena no Brasil. Embora houvesse críticas dos povos indí-genas à Funai e desejo de que mudanças fossem realizadas, a forma como foi feita causou descontinuidade dos serviços prestados às comunidades, deixando muitas aldeias sem a presença de servidores do órgão indigenista, retirados abruptamente do local, deixando a população sem informações sobre a quem direcionar suas demandas.

Em junho de 2011, às vésperas da 17ª reunião ordinária da CNPI, mani-festa-se mais uma evidência do autoritarismo estatal. Através da imprensa, a representação não governamental da CNPI tomou conhecimento da publica-ção da Portaria Conjunta n° 951 de 19 de maio de 2011 que criou um grupo de estudo interministerial para elaborar ato que disciplinava a participação dos entes federados nos procedimentos de identificação e delimitação das terras indígenas.

Descumprindo o que determina a Convenção 169 da Organização Inter-nacional do Trabalho (OIT), que em seu artigo 6º estabelece que os governos devam “consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e particularmente, por meio de suas instituições representativas, sempre que se tenha em vista medidas legislativas ou administrativas capazes de afetá-los diretamente”, o governo constituiu um Grupo de Trabalho apenas com repre-sentantes governamentais, demonstrando uma atitude deliberada de excluir os indígenas da discussão dos procedimentos de demarcação de seus territórios tradicionais.

Diante dessa atitude, logo após a instalação da 17ª sessão plenária da CNPI, no dia 16 de junho de 2011, todos representantes indígenas inscreve-ram-se para assegurar o direito à fala, e em posição unânime, fizeram duras críticas ao processo de esvaziamento da CNPI iniciado pelo governo desde o final de 2009. Concluídas as intervenções, comunicaram a decisão coletiva de suspenderem, a partir daquele momento, sua participação na CNPI, condi-cionando a volta a uma reunião de trabalho com a presidenta Dilma Roussef. Esta reivindicação se justificava pelo fato da presidenta, por várias vezes, ter se recusado a receber representantes indígenas, sempre alegando dificuldades na agenda ou motivos de saúde.

Alguns meses após aquela sessão traumática o diálogo com o governo começou a ser reconstruído, agora entrando em pauta a reivindicação dos indí-

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genas de transformar a CNPI em um conselho. Considerando que a tramitação do PL 3571/08 na Câmara Federal se encontrava paralisada principalmente pela pressão da bancada ruralista19, as lideranças compreenderam que a criação do Conselho Nacional de Política Indigenista, através de um Decreto Presidencial, seria a alternativa. Essa pauta logrou êxito e no dia 17 de dezembro de 2015 foi criado o referido conselho através do Decreto Federal Nº 8.593. Sua composição assegurava a representação de 15 membros do Poder Executivo federal, todos com direito a voto, 28 representantes dos povos e organizações indígenas, sendo 13 com direito a voto e dois representantes de entidades indigenistas, com direito a voto.

Lamentavelmente, com o impeachment da presidenta Dilma Roussef no ano de 2016, o Conselho não entrou em atividade, ficando reduzido à sua sessão de criação no final do ano anterior. Após dois anos sem reunir-se durante o governo Michel Temer, o Conselho foi objeto, nos primeiros 100 dias do governo Jair Bolsonaro, do Decreto Federal Nº 9.759 que extinguiu todos os conselhos federais de participação social que haviam sido criados por decreto.

Os episódios relatados revelam que o Estado brasileiro ainda se rege por uma estrutura social colonial, definida por Aníbal Quijano como “colo-nialidade do poder”, ou seja, “uma estrutura ou matriz de poder que permite a classificação hierárquica de identidades sociais” (WALSH, 2009, s. p.). Con-siderados hierarquicamente inferiores, os indígenas apenas são consultados quando suas respostas não conflitam com interesses governamentais e dos grupos econômicos e políticos que apóiam o governo, caso contrário, o direito à consulta lhes é negado.

Entendemos ser fundamental uma busca constante de mecanismos que possibilitem o estabelecimento de diálogos interculturais autênticos que possam contribuir para uma mudança na forma de relacionamento entre o Estado brasileiro e os povos originários. Para tanto, muitos desafios precisam ser enfrentados.

O primeiro desafio é transpor o grande fosso que separa os povos indí-genas da cultura ocidental. Segundo Habermas (1989, p. 153) “todos os parti-cipantes de um discurso devem ter a mesma oportunidade de empenhar atos de fala comunicativos, de iniciar, intervir, interrogar e responder”.

Contudo, é importante estarmos atentos ao questionamento levantado por Sousa Santos (2002, p. 30):

Como realizar um diálogo multicultural quando algu-mas culturas foram reduzidas ao silêncio e as suas

19 A chamada “bancada ruralista” no Congresso Nacional é composta por representantes do agronegócio, setor que congrega inimigos históricos e declarados dos povos indígenas. São conhecidos tanto pelos discursos de ódio anti indígena que frequentemente utilizam, quanto pelos seus interesses diretos nas terras daqueles povos.

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formas de ver e conhecer o mundo se tornaram impro-nunciáveis? Por outras palavras, como fazer falar o silêncio sem que ele fale necessariamente a linguagem hegemónica que o pretende fazer falar?

Como saída ele sugere a hermenêutica diatópica: “É por via da tradução e do que eu designo por hermenêutica diatópica que uma necessidade, uma aspiração, uma prática numa dada cultura pode ser tornada compreensível e inteligível para outra cultura” (SOUSA SANTOS, 2002a, p. 31).

A hermenêutica diatópica tem como pressuposto a incompletude de toda e qualquer cultura. Mas cada cultura “incompleta” possui “lugares comuns retóricos”, topoi. Os topoi, por mais importantes que sejam para uma determinada cultura, são tão incompletos quanto ela própria. Todavia, vistos de dentro da mesma cultura, tal incompletude não pode ser percebida, pois há uma apropriação da parte pelo todo como resultado do anseio à totalidade. O objetivo da hermenêutica diatópica seria, portanto, contribuir com a tomada de consciência dessa mútua incompletude favorecendo, dessa forma, o diálogo entre as diferentes culturas.

Para que o Brasil possa de fato romper com o legado autoritário e colonialista do indigenismo positivista, integracionista e tutelar forjado na primeira metade do Século XX, faz-se necessário estabelecer novos parâmetros de relacionamento com os povos indígenas do país. Parâmetros de respeito à sua autonomia, a fim de que possam se manifestar e decidir livremente sobre as políticas governamentais destinadas às suas comunidades, fazendo isso de acordo com suas formas próprias de representação, considerando-se seus usos, costumes e tradições, conforme prevê a Constituição brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a Constituição Federal de 1988, o Brasil inaugurou uma nova com-preensão sobre o status jurídico dos povos indígenas que habitam seu território. Até então esses povos eram considerados relativamente incapazes, e vistos como uma espécie de categoria transitória que deixaria de existir a partir do momento que atingissem o grau de “civilização”, definido pelo estado como indicador de emancipação. Sob essa justificativa, viviam na condição de tute-lados pelo órgão indigenista oficial brasileiro.

Com o texto constitucional de 1988, a autonomia dos povos originários passou a ser reconhecida, o que implica no fim da tutela. Uma grande virada que reconheceu os direitos territoriais e culturais dos indígenas e rompeu defi-nitivamente com a perspectiva evolucionista que propugnava a sua integração à “comunhão nacional”. Entretanto, com base na experiência acumulada por longas décadas o Brasil continua a desenvolver uma política indigenista auto-

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ritária e tutelista, indo na contramão do movimento indígena que continua a lutar pela efetivação dos direitos conquistados na Constituição.

Passados mais de 30 anos da aprovação da Carta Política de 1988, o embate entre os povos indígenas e o Estado brasileiro continua. As experiências da CNPI e do Conselho Nacional de Política Indigenista são episódios representativos desse enfrentamento. O entulho do indigenismo fundado na colonialidade herdado pela Funai ao SPI, ainda influencia certas políticas governamentais, revelando a necessidade de descolonização tanto das práticas dos agentes estatais quanto da própria estrutura do Estado. Um Estado que deixe de ser monocultural e uninacional, e passe a contemplar as várias nacionalidades indígenas nele existentes.

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Nota: o presente texto consiste em parte em adaptação da dissertação de Mestrado em História do primeiro autor, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da PUC Goiás em 2014, com o título “A Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI): Novas e Velhas Relações entre o Estado Brasileiro e os Povos Indígenas”.

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A COMPLEXIDADE DO RECONHECIMENTO JURÍDICO DE COMUNIDADES INDÍGENAS NÃO ALDEADAS E NÃO VIVENTES EM TERRAS INDÍGENAS OFICIALMENTE RECONHECIDAS PELO ESTADO

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INTRODUÇÃO

Em 2018, por seis meses, após aprovação em concurso público, atuei como servidor efetivo da Fundação Nacional do Índio – Funai, no cargo de Indigenista Especializado, de nível superior. Fui lotado no estado do Pará, na cidade de Altamira. Laborei na Funai por apenas seis meses, porquanto fui convocado de outro concurso público, em outro estado da federação.

Na cidade de Altamira encontrei os conflitos entre os povos indígenas daquela região e a empresa Norte Energia S/A, a qual estava finalizando as obras da Hidrelétrica de Belo Monte, que fica na região do Rio Xingu, próximo à Altamira. A obra impactou a vida dos ribeirinhos e povos indígenas da região. Em contrapartida, a Norte Energia S/A ofereceu compensações aos indígenas e outros povos tradicionais locais. Desde indenizações a materiais, como barcos, voadeiras, construção de casas em alvenaria nas aldeias etc.

Ocorre que, nesse contexto do recebimento das compensações, houve um momento em Altamira que qualquer um se dizia indígena com o intuito de ser beneficiado pela Norte Energia S/A. A empresa passou a requerer que as pessoas apresentassem declarações da Funai local de que eram indígenas. Começou um grande problema, pois atualmente a legislação pátria veda o reconhecimento indígena por essa via. Hoje em dia, por conta de tratados internacionais, vivemos sob a égide do auto reconhecimento indígena. Se a pessoa se considera indígena, ela tem de ser vista pelo Estado como tal.

O objetivo deste texto é discutir esse assunto. A metodologia de pesquisa é a exploração bibliográfica. O diferencial do trabalho é que ele se trata de uma experiência pessoal do autor. Ao chegar em Altamira em janeiro de 2018, fui convidado para atuar como Chefe do Serviço de Gestão Ambiental e Terri-torial – Segat da Coordenação Regional Centro Leste do Pará e, então, coube a mim, junto com a Coordenação Geral da Funai local, buscar, junto à Funai

20 Doutorando em Letras: Linguagem e Identidade (UFAC). Docente EBTT (IFAC). Líder do Grupo de Pesquisa Núcleo de Pesquisas em Gestão e Negócios do Acre (NUPEGEN-Acre), do IFAC/CNPq. OCIRD: https://orcid.org/0000-0003-1309-8708

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Brasília, uma solução para o problema narrado. Como reconhecer indígenas, ou pessoas que se dizem indígenas, que vivem na cidade e não em aldeias na zona rural, nas florestas?

A autoria do artigo engendra o texto e o apresenta à sociedade brasileira exclusivamente na condição de cidadão brasileiro que acompanha o indige-nismo pátrio, notadamente o edificado pelo órgão indigenista estatal/oficial - a FUNAI. O artigo não representa a opinium, oficial ou não, de nenhuma insti-tuição, principalmente a da FUNAI e seus servidores. Todos os documentos e legislações citados neste texto, que têm relação direta com a FUNAI, são públicos e estão presentes em sua Homepage oficial na internet ou em outros sites também públicos.

O CONTEXTO DOS INDÍGENAS DO SUDOESTE DO PARÁ

A Coordenação Regional Centro Leste do Pará da Funai – CRCLPA e suas Coordenações Técnicas Locais – CTL’s, localizadas em Altamira-PA, atuam junto aos povos indígenas Arara, Juruna, Assurini, Araweté, Parakanã, Xikrin, Kayapó, Xipaya e Kuruaya, abrangendo os municípios de Altamira, Senador José Por-fírio, Vitória do Xingu, Anapu, São Félix do Xingu, Brasil Novo, Medicilândia, Placas e Uruará, todos no estado do Pará, os quais residem respectivamente nas Terras Indígenas -TI’s Arara (do Laranjal) e Arara da Volta Grande do Xingu, Paquiçamba, Koatinemo, Araweté/Igarapé Ipixuna, Apyterewa, Trincheira Bacajá, Kararaô, Xipaya e Kuruaya. A Coordenação Regional Centro Leste do Pará da Funai, por meio da Frente de Proteção Etnoambiental do Médio Xingu – FPEMX, atua também junto aos povos isolados da área de restrição Ituna Itatá, e de outras áreas

Alguns desses povos atendidos pela CRCLPA mantêm relações com a sociedade nacional que, independentemente do tempo de contato, apresentam singularidades e seletividade (autonomia) na incorporação de bens e serviços, sendo considerados povos recém-contatados os Parakanã, os Araweté e os Arara da Cachoeira Seca. A CRCLPA atua, ainda, com indígenas residentes em áreas urbanas e rurais/ribeirinhas da região, possuindo uma CTL própria para a articulação e a implementação de políticas públicas voltadas a esta população, a “CTL Citadinos e Ribeirinhos”.

O Serviço de Gestão Ambiental e Territorial – Segat da CRCLPA, após a implantação do empreendimento Usina Hidrelétrica de Belo Monte (ainda em construção) na sua região de atuação, no ano de 2018, recebeu várias visitas de pessoas que não residem em Terras Indígenas - TI’s, mas afirmavam serem indí-genas e/ou remanescentes de comunidades indígenas. Essas referidas pessoas requeriam ao Segat “declarações” e/ou “atestados” de que suas comunidades eram indígenas, o fazendo a fim de utilizarem tais documentações em processos junto ao empreendedor da Usina Hidrelétrica Belo Monte, a Norte Energia S/A,

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com o desiderato de serem incluídas nos diversos programas de mitigação de impacto executados pela gestora do empreendimento ou por suas executoras terceirizadas, principalmente o PAP – Programa de Atividades Produtivas.

O VIÉS JURÍDICO DA QUESTÃO

A Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indí-genas – PNGATI, criada pelo Decreto Federal n. 7.747, de 5 de junho de 2012, estabelece que:

Art. 3º São diretrizes da PNGATI:

I - reconhecimento e respeito às crenças, usos, cos-tumes, línguas, tradições e especificidades de cada povo indígena;

II - reconhecimento e valorização das organizações sociais e políticas dos povos indígenas e garantia das suas expressões, dentro e fora das terras indígenas (BRASIL, 2012) (Grifos nossos).

O Estatuto da Funai, aprovado pelo Decreto Federal n. 9.010, de 23 de março de 2017, propala que:

Art. 2º A FUNAI tem por finalidade:

I - proteger e promover os direitos dos povos indígenas, em nome da União;

II - formular, coordenar, articular, monitorar e garan-tir o cumprimento da política indigenista do Estado brasileiro, baseada nos seguintes princípios:

a) reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas;

b) respeito ao cidadão indígena e às suas comunidades e organizações;

(BRASIL, 2017) (Grifos nossos).

Nesse contexto, na condição de Chefe do Segat da CRCLPA determinei a não elaboração das(os) referidas(os) declarações e/ou atestados, porquanto entendi ser complexo o reconhecimento de “comunidades indígenas” que não se localizam no interior de Terras Indígenas demarcadas/homologadas, bem como porque me preocupei com a devida legalidade da questão, afinal apregoa o Código Penal pátrio, em seu Art. 299, a questão da falsidade ideológica de documento público. Para a regularização de áreas privadas onde vivam indí-

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genas o Estado brasileiro já erigiu os institutos da Reserva Indígena, do Parque Indígena e da Colônia Agrícola Indígena. Afinal, é isto o clarificado pelo, em algumas partes, ainda em vigor oficialmente “Estatuto do Índio”, a Lei Federal n. 6.001, de 19.12.1973, a saber:

Art. 26. A União poderá estabelecer, em qualquer parte do território nacional, áreas destinadas à posse e ocupação pelos índios, onde possam viver e obter meios de subsistência, com direito ao usufruto e utili-zação das riquezas naturais e dos bens nelas existentes, respeitadas as restrições legais.[...]Parágrafo único. As áreas reservadas na forma deste artigo não se confundem com as de posse imemorial das tribos indígenas, podendo organizar-se sob uma das seguintes modalidades:

a) reserva indígena;

b) parque indígena;

c) colônia agrícola indígena.

Art. 27. Reserva indígena é uma área destinada a ser-vidor de habitat a grupo indígena, com os meios sufi-cientes à sua subsistência.

Art. 28. Parque indígena é a área contida em terra na posse de índios, cujo grau de integração permita assistência econômica, educacional e sanitária dos órgãos da União, em que se preservem as reservas de flora e fauna e as belezas naturais da região.[...]§ 3º O loteamento das terras dos parques indígenas obedecerá ao regime de propriedade, usos e costu-mes tribais, bem como às normas administrativas nacionais, que deverão ajustar-se aos interesses das comunidades indígenas.

Art. 29. Colônia agrícola indígena é a área destinada à exploração agropecuária, administrada pelo órgão de assistência ao índio, onde convivam tribos aculturadas e membros da comunidade nacional.

Art. 30. Território federal indígena é a unidade admi-nistrativa subordinada à União, instituída em região na

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qual pelo menos um terço da população seja formado por índios.

Art. 31. As disposições deste Capítulo serão aplicadas, no que couber, às áreas em que a posse decorra da aplicação [...] da Constituição Federal (BRASIL, 1973). (Grifos nossos)

O referido “Estatuto do Índio” também insculpe que:

Art. 17. Reputam-se terras indígenas:I - as terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas, a que se referem os artigos 4º, IV, e198, da Constituição; II - as áreas reservadas de que trata o Capítulo III deste Título;III - as terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas (BRASIL, 1973). (Grifos nossos)

Então, o “Estatuto do Índio”, considerado por muitos como tacitamente revogado pela CRFB/88, releva áreas particulares adquiridas por indígenas (áreas de domínio das comunidades indígenas) como Terras Indígenas. Afi-nal, é isso o dito pelo mesmo Estatuto no seu Art. 32, ipsis litteris: “São de propriedade plena do índio ou da comunidade indígena, conforme o caso, as terras havidas por qualquer das formas de aquisição do domínio, nos termos da legislação civil” (BRASIL, 1973). Assim, é possível que indígenas comprem áreas privadas. Logo, a depender do ponto de vista jurídico quanto ao vigor ou não do Estatuto do Índio21, para que o Estado brasileiro considere áreas privadas ocupadas por comunidades que se declaram indígenas como sendo Terras Indígenas, o problema central se mostra na conceituação do que seja uma comunidade indígena.

A QUESTÃO DA AUTODETERMINAÇÃO INDÍGENA

A convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre povos indígenas e tribais, reconhecida no Brasil por meio do Decreto Federal n. 5.051, de 19 de abril de 200422, em seu Art. 1º, item 2, reconhece a consciên-cia da identidade indígena como pressuposto determinante no forjamento do conceito de pessoa/comunidade indígena.

21 “Atualmente, a demarcação de terras indígenas é regida pelo que está previsto no artigo 231 da Constituição Federal de 1988 e pela Lei 6.001 de 1973, que, embora anterior à Consti-tuição, segue vigente naquilo que não a contraria e é regulamentada pelo Decreto 1.775/1996” (CAVALCANTE, 2016, p. 7). 22 Revogado pelo Decreto Federal n. 10.088/2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D10088.htm#art5. Acesso em: 07 mar. 2021.

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A Declaração da Organização das Nações Unidas - ONU sobre os direi-tos dos povos indígenas, de 2007, reconhecida pelo Brasil, estabelece, em seu preâmbulo, que “no exercício de seus direitos, os povos indígenas devem ser livres de toda forma de discriminação”, bem como que é fato cabal “os povos indígenas terem sofrido injustiças históricas como resultado, entre outras coi-sas, da colonização e da subtração de suas terras, territórios e recursos, o que lhes tem impedido de exercer, em especial, seu direito ao desenvolvimento, em conformidade com suas próprias necessidades e interesses”. Crava esta Decla-ração, ainda em seu preâmbulo, “o respeito aos conhecimentos, às culturas e às práticas tradicionais indígenas contribui para o desenvolvimento sustentável e equitativo e para a gestão adequada do meio ambiente”.

Como evidencia a Declaração da ONU de 2007 já citada, em seu preâmbulo, “os indivíduos indígenas têm direito, sem discriminação, a todos os direitos humanos reconhecidos no direito internacional, e que os povos indígenas pos-suem direitos coletivos que são indispensáveis para sua existência, bem-estar e desenvolvimento integral como povos”. Destaca ainda a Declaração da ONU de 2007, em seu preâmbulo, que “a situação dos povos indígenas varia conforme as regiões [ribeirinhos, aldeados, citadinos?] e os países e que se deve levar em conta o significado das particularidades nacionais e regionais e das diversas tradições históricas e culturais”.

Como dicciona a Declaração da ONU de 2007, em seu Art. 9º, “os povos e pessoas indígenas têm o direito de pertencerem a uma comunidade ou nação indígena, em conformidade com as tradições e costumes da comunidade ou nação em questão. Nenhum tipo de discriminação poderá resultar do exercí-cio desse direito”. Põe em relevo a Declaração da ONU de 2007, em seu Art. 26, itens 1, 2 e 3, que “os povos indígenas têm direito às terras, territórios e recursos que possuem e ocupam tradicionalmente ou que tenham de outra forma utilizado ou adquirido”;

“Os povos indígenas têm o direito de possuir, utilizar, desenvolver e con-trolar as terras, territórios e recursos que possuem em razão da propriedade tradicional ou de outra forma tradicional de ocupação ou de utilização, assim como aqueles que de outra forma tenham adquirido”; e “os Estados assegurarão reconhecimento [via Declaração/Atestado?] e proteção jurídicos a essas terras, territórios e recursos. Tal reconhecimento respeitará adequadamente os costumes, as tradições e os regimes de posse da terra dos povos indígenas a que se refiram”.

A QUESTÃO DA EMISSÃO DE DECLARAÇÃO DE INDÍGENA PELA FUNAI

Conforme a CRFB/88, em seu Art. 225, “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essen-

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cial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” e, nesse caminhar, os povos indígenas integram e constituem o (meio) ambiente brasileiro, possuindo o direito de serem respeitados e terem atendidos todos os seus direitos.

O referido Códex máximo da nação acima mencionado aduz, ainda, que qualquer cidadão brasileiro, indígena ou não, possui o direito de petição a órgãos públicos, afinal é isto o exarado no inciso XXXIV do Art. 5º constitu-cional: “são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder; b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal”.

Como dito no introito, que o Segat da CRCLPA, após a implantação do empreendimento Usina Hidrelétrica de Belo Monte na região de sua atuação, em 2018, recebeu várias visitas de pessoas que não residem em TI’s, mas afirma-vam serem indígenas e/ou remanescentes de comunidades indígenas, as quais pediam declarações/atestados/certidões de que suas comunidades são indígenas.

Nessa senda, existe o dever da República Federativa do Estado de Direito brasileiro de reconhecer a organização social, os costumes, as línguas, as cren-ças, as tradições e os direitos originários sobre as terras que os povos indígenas tradicionalmente ocupam23. O Estado brasileiro criou, por meio da Lei Federal n. 5.371, de 5 de dezembro de 1967, a Funai, a fim de que esta estabeleça as diretrizes e garanta o cumprimento da política indigenista, baseada em vários princípios, como o do respeito à pessoa do índio e as instituições e comunidades tribais (inciso I, alínea “a”).

São diretrizes para o planejamento das ações da Funai referente ao período de 2018-2019, “proteção e promoção dos direitos sociais e de cidadania dos povos indígenas, considerando sua pluralidade de organizações sociais, costumes, crenças e tradições, observado o recorte de gênero e de geração; incentivo às ações de desenvolvimento sustentável e de gestão territorial e ambiental em terras indígenas, em especial àquelas previstas no Plano Integrado de Implementação da PNGATI; fortalecimento das ações de interveniência em processos de planejamento e licenciamento de empreendimentos que possam impactar povos e terras indígenas [como a UHE Belo Monte]; consonância com a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e com a Convenção 169 da OIT; fortalecimento das ações de proteção das terras indí-genas e dos processos demarcatórios, com vistas à garantia da posse plena de todos os povos sobre suas terras; fortalecimento institucional, em especial das

23 Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988, Art. 231, caput, e Art. 2.º do Decreto n.º 9.010, de 23 de março de 2017 (Estatuto da FUNAI).

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unidades descentralizadas, com vistas à melhoria do atendimento à população indígena; valorização da cultura material e imaterial dos povos indígenas; e reconhecimento das estratégias de vida dos povos indígenas isolados, enquanto expressão de sua autonomia”24.

Nesse contexto, cabe à Funai identificar quem é indígena e lutar pelos seus direitos, mas, como vimos, em relação à indianidade, existe a autodecla-ração indígena. Portanto, já se findou o tempo em que a Funai dava “carteiras de índios” e/ou declarações de indianidade. Para o indígena ser atendido como tal, basta declarar-se indígena. É necessário o enaltecimento, no âmbito da Administração Pública Federal, dos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade e, principalmente, publicidade e eficiência25. Ainda hoje, em 2021, instituições da própria Administração Pública Federal, como Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal não atendem indígenas sob a condição especial de indígenas, quase sempre exigindo a presença da Funai para atendimentos. A Funai não tutela mais os indígenas, eles são livres.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A solução para o problema relatado neste capítulo foi a seguinte: na condição de Chefe do Serviço de Gestão Ambiental e Territorial, solicitei à Coordenação Regional Centro Leste do Pará o encaminhamento das seguintes dúvidas/questões itematizadas, para respostas por parte dos setores responsá-veis/competentes na Funai – Sede, em Brasília, notadamente a Procuradoria Federal Especializada – PFE junto à Funai26, a Coordenação Geral de Identifi-cação e Delimitação27 e a Coordenação Geral de Licenciamento Ambiental28:

24 Resolução CGE/FUNAI (Câmara de Gestão Estratégica) n. 1, de 24 de novembro de 2017, Art. 2°. 25 Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988, Art. 37, caput. 26 Conforme o Art. 23, inciso III, do Regimento Interno da Funai, a Portaria n. 666, de 17 de julho de 2017, da Presidência da Funai, cabe à PFE junto à Fundação “exercer as atividades de consultoria e assessoramento jurídicos no âmbito da Funai e aplicar, no que couber, o disposto no art. 11 da Lei Complementar n. 73, de 10 de fevereiro de 1993”. 27 Consoante o Art. 184, inciso I, do Regimento Interno da Funai, a Portaria n. 666, de 17 de julho de 2017, da Presidência da Funai, compete à Coordenação-Geral de Identificação e Delimitação - CGid “promover, planejar, organizar, coordenar, orientar, avaliar e executar as ações de sistematização dos registros de reivindicações fundiárias indígenas; de estudos de identificação e delimitação de terras indígenas tradicionalmente ocupadas, incluindo aquelas ocupadas por povos indígenas isolados e de recente contato; e de estudos visando à constituição de reservas indígenas”. 28 Aduz o Art. 135, incisos I e IV, do Regimento Interno da Funai, a Portaria n. 666, de 17 de julho de 2017, da Presidência da Funai, que cabe à Coordenação Geral de Licenciamento Ambiental – CGLic “formular, planejar, organizar, coordenar, orientar, avaliar e monitorar, em articulação intersetorial e interinstitucional, a execução das ações necessárias ao cumprimento do componente indígena do licenciamento ambiental de atividades e empreendimentos, pro-

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a. Para a Fundação Nacional do Índio, qual o conceito oficial de Pes-soa Indígena?

b. Para a Fundação Nacional do Índio, qual o conceito oficial de Povo Indígena?

c. Para a Fundação Nacional do Índio, qual o conceito oficial de Indí-gena Aldeado?

d. Para a Fundação Nacional do Índio, qual o conceito oficial de Indí-gena Não-aldeado?

e. Para a Fundação Nacional do Índio, qual o conceito oficial de Indí-gena Citadino?

f. Para a Fundação Nacional do Índio, qual o conceito oficial de Indí-gena Ribeirinho?

g. Para a Fundação Nacional do Índio, qual o conceito oficial de Terra Indígena? É o mesmo que o de terra tradicionalmente ocupada?

h. Para a Fundação Nacional do Índio, qual o conceito oficial de Aldeia/Aldeamento Indígena?

i. Para a Fundação Nacional do Índio, qual o conceito oficial de Povoado Indígena?

j. Para a Fundação Nacional do Índio, qual o conceito oficial de Área Indígena?

k. Para a Fundação Nacional do Índio, qual o conceito oficial de Comu-nidade Indígena? Havendo tal conceito, existe um mínimo de pes-soas que devem constituir tal “comunidade”? Pode haver apenas 1 (uma) família?

l. A Fundação Nacional do Índio reconhece oficialmente como indíge-nas “comunidades”, “aldeias” e/ou “povoados” que se autodeclaram como indígenas, mesmo que estes sejam localizados fora de Terras Indígenas -TIs? Isso se dá por meio de qual instrumento? Como é/deve ser o processo?

m. Para a Fundação Nacional do Índio, para uma área de terra ser considerada indígena ela tem de necessariamente ser localizada dentro de uma Terra Indígena demarcada?

n. Para a Fundação Nacional do Índio, há algum conceito oficial, mesmo que simbólico, de Território Indígena diverso do estabelecido no Estatuto do Índio, em seu Art. 30?

postos por terceiros, que sejam potencial ou efetivamente causadores de impacto aos povos e às terras indígenas” e “propor normas e procedimentos no que se refere à regulamentação do componente indígena no licenciamento ambiental, no âmbito da sua competência”.

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o. Qual o posicionamento da Fundação Nacional do Índio sobre a ideia/teoria da autodeterminação étnica? Ainda é legítimo/permitido que Coordenações Regionais da Funai declarem, em documentos, a indianidade de pessoas ou “comunidades” indígenas?

p. O que é preciso no Brasil para que uma pessoa seja “reconhecida” pelo Estado brasileiro como indígena? Basta sua autodeterminação, no contexto de sua vida tradicional, e/ou é necessário também o reconhecimento/aceitação por parte de algum povo indígena (ou liderança) que viva em uma Terra Indígena demarcada? E para uma comunidade ser “reconhecida” como indígena?

q. Pessoas/comunidades que se declaram indígenas, mas que vivem em áreas urbanas (ou às margens de cidades) ou às margens de rios devem buscar qualificar reivindicações de demarcação das áreas onde moram ou há outro procedimento específico para que as suas áreas sejam, se isso for possível, declaradas como “áreas indígenas”?

r. No contexto da promoção, defesa e promoção dos direitos dos povos indígenas do Pará, qual o limite de atuação da Funai em sua representação na CR Centro Leste do Pará? Os limites territoriais das Terras Indígenas são marco para a aplicação e/ou implemento de políticas públicas em favor dos indígenas? É possível que a Funai aja em benefício de cidadãos ribeirinhos ou urbanos que se decla-ram indígenas?

s. Quando pessoas que se declaram indígenas, mas que vivem fora de TI’s procurarem a Coordenação Regional Centro Leste do Pará – CRCLPA requerendo “declarações”, “certidões” e/ou “atestados” de que suas comunidades são indígenas, como deve o SEGAT da CRCLPA proceder?

t. Se o empreendedor da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, a Norte Energia, quiser incluir em seus projetos de mitigação dos impactos da obra “comunidades indígenas” localizadas fora de Terras Indí-genas, qual deve ser o papel e o posicionamento da Funai, em sua representação na CR Centro Leste do Pará? E se o mesmo ocorrer com outros empreendedores, como no caso da Mineradora Belo Sun, que está se instalando na região?

u. A Fundação Nacional do Índio pode reconhecer, de algum modo, o caráter indígena de comunidades urbanas ou semiurbanas que se declaram indígenas? Como se daria tal processo? Com visitas/vistorias in locu de equipe integrada por antropólogo(a)?

Em julho de 2018 eu pedi exoneração da Funai, por convocação de outro concurso público, para laboro em outra instituição e, por isso, não sei quais foram as respostas para as perguntas que erigi. Dada à burocracia da Adminis-

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tração Pública pátria, ou a Funai Brasília não respondeu minhas perguntas ou escreveu como resposta que simplesmente que a Funai não oferta declarações de indianidade, pois existe a autodeterminação. O que nos fica, portanto, é a reflexão sobre o tema.

Sobre o tema abordado no presente capítulo há um acontecimento bem atual: A Procuradoria Federal Especializada da FUNAI, da Advocacia Geral da União (AGU), emitiu o Parecer 0006/2020, o qual originou a Resolução n. 4/2021 da FUNAI, que trata sobre os procedimentos de heteroidentificação dos povos indígenas. Ou seja, a possibilidade de os indígenas não mais se autodeclara-rem como tal e outros/terceiros dizerem se eles são indígenas ou não, como em concursos e outros certames públicos, por exemplo. O Ministério Público Federal já se manifestou pela inconstitucionalidade dessa Resolução. Em 16 de março de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu essa Resolução29.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Decreto Federal nº 9.010, de 23 de Março de 2017. Brasília: Presidência da República, 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Decreto/D9010.htm. Acesso em: 07 mar. 2021.

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BRASIL. Lei Federal nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor). Brasília: Presidência da República, 1989. Dis-ponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%207.716%2C%20DE%205%20DE%20JANEIRO%20DE%201989.&text=Define%20os%20crimes%20resultantes%20de,de%20ra%C3%A7a%20ou%20de%20cor. Acesso em: 07 mar. 2021.

29 Disponível em: https://cimi.org.br/2021/03/stf-suspende-resolucao-funai-restringia-au-todeclaracao-indigena/#:~:text=O%20ministro%20Roberto%20Barroso%2C%20do,de%20identidade%20dos%20povos%20ind%C3%ADgenas. Acesso em: 09 abr. 2021.

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Língua(gens), Literaturas, Culturas, Identidades e Direitos Indígenas no Brasil

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CAVALCANTI, Lívio Coêlho. O fim da tutela indígena. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF. Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40128/o-fim--da-tutela-indigena. Acesso em: 07 mar. 2021.

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Tayson Ribeiro Teles (org.)

MOTA, Clarice Novaes da. Ser indígena no brasil contemporâneo: novos rumos para um velho dilema. Ciência e Cultura, vol.60 no.4 São Paulo Oct. 2008. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252008000400011. Acesso em: 07 mar. 2021.

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OS ÍNDIOS E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO: PERSPECTIVAS PREVISTAS PELA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 NA ERA DA TECNODIVERSIDADE30

Eduarda Aparecida Santos Golart31

Ingra Etchepare Vieira32

Valéria Ribas do Nascimento33

INTRODUÇÃO

Desde o início da década de 1980, começou a se desenvolver uma nova ordem constitucional na América Latina, com o objetivo de abandonar os constitucionalismos criados na Europa e nos Estados Unidos, mas que eram empregados nesse continente. O novo constitucionalismo latino-americano surge com propostas de um Estado plurinacional, que valoriza a diversidade cultural – englobando as populações sonegadas pela história como indígenas, ciganos, dentre outras - e que respeita e reconhece os diferentes conhecimentos e cosmovisões criadas na América Latina.

Mesmo tendo sido denominado de novo constitucionalismo latino-a-mericano, isso não significa que todos os países localizados nesse continente façam parte desse movimento. Na verdade, existem países que somente pro-porcionaram o surgimento dele, ao passo que outros realmente possuem suas Constituições desenvolvidas dentro do novo constitucionalismo latino-ameri-cano, como é o caso da Bolívia e do Equador.

Diante disso, cabe perquirir se a Constituição Federal de 1988 pode ser considerada uma Constituição pertencente ao novo constitucionalismo latino-americano? Tendo por base essa problemática, o objetivo do presente trabalho é verificar a situação/alocação da Constituição do Brasil frente a esse novo movimento na era da tecnodiversidade, sendo que este conceito abrange uma multiplicidade de cosmotécnicas que diferem umas das outras em seus valores, epistemologias e formas de existência (HUK, 2020)

30 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. 31 Mestranda em Direitos Emergentes na Sociedade Global (UFSM).CV: http://lattes.cnpq.br/3534826537258706 32 Mestranda em Direitos Emergentes na Sociedade Global (UFSM). CV: http://lattes.cnpq.br/4877829050497620 33 Doutora em Direito (UNISINOS). Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD/UFSM). CV: http://lattes.cnpq.br/6294253776126361

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Para cumprir com o objetivo proposto, se adota como abordagem o método dedutivo, visto que primeiro é estudado o novo constitucionalismo latino-americano, para, em seguida, verificar se a Constituição do Brasil faz parte desse novo movimento. Portanto, parte-se de uma abordagem geral, até se chegar na problemática escolhida, como ponto específico. No que tange ao procedimento utiliza-se a análise bibliográfica.

A fim de atender a abordagem escolhida e para um melhor desenvolvi-mento do trabalho, o debate terá como ponto inicial os diferentes movimentos constitucionalistas até o desenvolvimento do novo constitucionalismo latino--americano, deixando para sequência analisar como a Constituição Federal de 1988 está disposta frente ao movimento em estudo.

DESENVOLVIMENTO

A América Latina é marcada pela colonização e pela colonialidade. As terras localizadas nesse continente foram “descobertas” e apropriadas pelos europeus, que além de retirá-las daqueles que nesses espaços já viviam, ten-taram retirar deles também a cultura, conhecimento e religião através de um processo de “civilização” do homem selvagem/primitivo (ACOSTA, 2016, p. 55).

Todo esse processo é marcado pela violência e pelo uso da colonialidade do poder, do saber e do ser. Além disso, ele proporcionou o surgimento de novos meios de dominação que se perduram até os dias atuais. Se a colonização ficou de lado há séculos, a colonialidade se mostra vigente ainda hoje, isso porque a colonialidade é a “continuação do colonialismo por outros meios, um outro tipo de colonialismo” (SANTOS, 2020, p. 27).

Nesse processo de colonização, foi imposto aos povos originários o mundo europeu enquanto único modo de vida certo e possível em prol do desenvolvimento (ACOSTA, 2016, p. 55). Desde então, criou-se uma cultura de recepção de tudo que vem de fora, notadamente da Europa. E isso não foi diferente quando se trata de sistemas jurídicos, posto que a América Latina sofria e ainda sofre forte influência daqueles adotados na Europa e nos Estados Unidos, mesmo diante das evidentes diferenças existentes entre esses espaços (COELHO, 2018, p. 30).

Assim, como o continente latino-americano passou a recepcionar a cultura da Europa, houve a recepção dos sistemas jurídicos europeus, como o constitucionalismo moderno. Esse movimento surge no século XVIII, sob a influência das Revoluções Francesa, Inglesa e Americana. Mas ele nasce liberal devidos às reivindicações da época. O Estado liberal não era intervencionista e primava pela liberdade e pela propriedade privada, sendo esses valores almejados à época devido aos anteriores períodos de absolutismo. Em que

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pese atendesse a vontades populares, essas se modificaram e, posteriormente, houve a passagem para o Estado Social (ALVES, 2012, 135).

A chegada do Estado Social deriva de lutas sociais por maiores garan-tias, realizadas principalmente por operários. Apesar da inclusão dos direitos sociais em sede constitucional, o constitucionalismo social também não ficou livre de ser substituído. Ainda mais que não deu conta de efetivar os direitos postos, assim como não foi suficiente para evitar a Segunda Guerra Mundial (ALVES, 2012, p. 135-136).

Após a Segunda Grande Guerra e a insuficiência dos constitucionalismos anteriores, houve a mudança para o denominado neoconstitucionalismo. Isso se deu principalmente porque “a ideia de um ordenamento jurídico desprovido de valores éticos e morais já não era mais aceita” (ASSIS; VIEIRA, 2016, p. 1164). Esse movimento, então, tem como origem a Europa, mas não se limitou a ela, tendo sido empregado em outras partes do globo, inclusive na América Latina (em função da cultura da importação).

Devido às razões que levaram a sua eclosão, o neoconstucionalismo trouxe como principais mudanças a inclusão de direitos fundamentais e de valores como a dignidade da pessoa humana (ALVES; OLIVEIRA, 2018, p.234). Nesse viés, tem-se que os direitos fundamentais se tornaram os pressupostos do neoconstitucionalismo (ASSIS; VIEIRA, 2016, p. 1164).

Além disso, coloca a Constituição no centro do Ordenamento Jurídico, enquanto vetor de validade para todo o resto. Não obstante o neoconstitucio-nalismo traga a previsão de direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana, ele surge e se desenvolve com raízes colonizadoras e calcado no sistema capitalista, fazendo com que não seja a melhor opção para países colo-nizados, como os da América Latina. Principalmente porque não enfrenta as desigualdades, as exclusões e as diversas violências que ainda ocorrem nesse continente com os povos marginalizados, por exemplo, os índios e os ciganos (COELHO, 2018, p. 20).

É dentro desse contexto que surge a proposta de um novo constituciona-lismo latino-americano, em meados de 1980. Desta vez, criado e desenvolvido na América Latina, podendo-se levar em conta as diferenças e realidades a fim de buscar alternativas compatíveis com os problemas vivenciados por países latino-americanos (ALVES, 2012, p. 133). Mas além de ter sido desenvolvido na América Latina, o novo constitucionalismo tem como atores protagonistas os povos indígenas, o que se estabeleceu em razão das lutas por seus direitos e reconhecimento às suas cosmovisões. Inclusive, essas se encontram presen-tes nas Constituições que derivam desse movimento, conforme se verá mais adiante (ALVES, 2012, p. 139).

Portanto, um dos principais pontos desse movimento é a inserção dos povos indígenas em todo o processo decisório, de modo que houve uma refor-

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mulação da própria democracia. Sendo a América Latina um continente com grande presença de população indígena e o objetivo do novo constitucionalismo ser fiel à sua realidade social e local, nada mais elementar que assegurar a participação desses povos na tomada de decisões no processo constituinte, seja na elaboração, como na aprovação da nova ordem constitucional (BARBOSA; TEIXEIRA, 2017, p. 1126).

Dentro dessa nova dinâmica, cria-se a existência de uma pluralidade de sujeitos participantes do poder constituinte originário. Fato este de extrema importância dentro desse movimento, mas que só é possível porque ao rees-truturar os conceitos ligados a democracia e a participação, o movimento está incorporando as reivindicações feitas por aqueles que nunca puderam participar de qualquer processo decisório (ALVES, 2012, p. 141).

Com isso, o novo constitucionalismo parte de um duplo objetivo:

[...] Por um lado, recuperar e atualizar o conceito de poder constituinte democrático, garantindo a origem democrática da Constituição por meio de iniciativas populares de ativação desse poder e de seu exercício fundante por uma assembleia constituinte participativa e plural, assim como pela aprovação direta da Consti-tuição pela cidadania, por meio de consulta popular. Por outro lado, gerar conteúdos constitucionais que permitam resolver os problemas de legitimidade do sistema que o constitucionalismo social de origem europeia não conseguiu resolver (PASTOR; DALMAU, 2019, p. 339).

Para atingir ambos os objetivos participam desse poder não só a elite, mas todos os povos marginalizados e excluídos historicamente. Afinal, se esses povos fazem parte dos problemas sociais e vivem na pele todas as consequências de um constitucionalismo importado, eurocêntrico e colonizador, nada mais acertado que considerar também as suas realidades e cosmovisões quando se busca alternativas para problemas que lhes dizem respeito. Em síntese, de nada adiantaria um constitucionalismo latino americano que busca mudanças, mas que ignora a vivência do seu continente.

A América Latina é composta por inúmeros povos indígenas e tradicio-nais, razão pela qual o novo constitucionalismo tem como base a plurinacio-nalidade e multiculturalidade. Significa dizer que “reconheceu-se com isto a diferença e o direito a ser diferente e poder ter uma participação política e ter seus direitos e sua realidade preservados dentro de uma sociedade constituída com base nos diálogos dos diversos atores e integrantes dessas nações únicas” (COELHO, 2018, p. 39). Portanto, mesmo diferentes e não integrados a “sociedade nacional” é garantido direitos e principalmente, o direito de participação política.

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Como visto, o novo constitucionalismo pressupõe a plurinacionalidade, ou seja, produz Estados Plurinacionais, onde há o reconhecimento de várias nacionalidades. Essa é justamente a importância do estado plurinacional, porque deixa de lado o estado nacional, que é “uniformizador de valores e radicalmente excludente” (ALVES; OLIVEIRA, 2018, p. 239). Aos ser plurina-cional o Estado ratifica que as diversas nações que compõem o seu território também o constituem.

Inclusive, a própria formação do Estado nacional ocorre com a exclusão dos povos originários e africanos, visto que somente se levou em consideração as lutas feitas pela elite que buscava sua independência. Por isso, é que o estado plurinacional se mostra necessário: ele inclui outras nacionalidades que sempre fizeram parte da América Latina, mas que foram excluídas pelo estado nacional (BARBOSA, TEIXEIRA, 2017, p. 1116). Em decorrência do próprio Estado plu-rinacional surge o pluralismo jurídico, que deixa de lado o monismo jurídico, para estabelecer que dentro de um mesmo estado existem diferentes fontes de direito e diferentes sistemas jurídicos (ALVES; OLIVEIRA, 2018, p. 239).

Ao lado do Estado plurinacional e do pluralismo jurídico situa-se o multiculturalismo, que além de recepcionar a diversidade cultural, busca contemplar as cosmovisões indígenas nas constituições que se inserem den-tro do novo constitucionalismo latino americano. Foi o que aconteceu com as Constituições do Equador de 2008 e da Bolívia de 2009, que inseriram a Pacha Mama e o Buen Vivir, que são termos e conceitos indígenas.

A Pacha Mama é um conceito criado pelos povos indígenas, nos Andes centrais e que foi inserido na Constituição do Equador como um dos sujeitos de direito, ao lado da natureza. Apesar de comumente traduzido como natureza, o conceito de Pacha Mama vai muito além do conceito ocidental de natureza, pois a Pacha Mama é um “um modo de se entender como parte de uma comu-nidade social e ecologicamente ampliada, que por sua vez está inserida em um contexto ambiental e territorial” (GUDYNAS, 2019, p. 142).

Na Constituição do Equador de 2008, figuram como sujeitos de direitos tanto a natureza, como a Pacha Mama, englobando conceitos ocidentais, e também aqueles originados de outras cosmovisões. Com isso, a “constituição equipara a natureza a Pacha Mama, o que faz é colocar no mesmo nível de hierarquia a herança de conhecimento europeia e os saberes tradicionais que têm sido sufocados desde a época da colônia” (GUDYNAS, 2019, p. 96). Esse posicionamento da Constituição em tela é de extrema relevância para o efetivo reconhecimento do multiculturalismo.

Ao lado da Pacha Mama situa-se o buen vivir, enquanto um conceito indí-gena e incorporado pela Constituição do Equador e da Bolívia. O buen vivir não é um conceito fechado, mas sim um caminho e uma oportunidade de construir novas formas de vida, conforme aponta Alberto Acosta:

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O Bem viver apresenta-se como uma oportunidade para construir coletivamente novas formas de vida. Não se trata simplesmente de um receituário materializado em alguns artigos constitucionais, como no Caso do Equador e da Bolívia. Tampouco é a simples soma de algumas práticas isoladas e, menos ainda, de alguns bons desejos de quem trata de interpretar o Bem Viver à sua maneira. O Bem Viver deve ser considerado parte de uma longa busca de alternativas de vida forjadas no calor de lutas populares, particularmente dos povos e nacionalidades indígenas. (ACOSTA, 2016, p. 69-70).

Por conseguinte, o Buen vivir é um pensamento indígena que surge a partir das lutas e resistências vivenciadas por povos indígenas e que podem muito contribuir para soluções de problemas ligados as questões ambientais, sociais e políticas. Ambos os conceitos utilizados pelas constituições são alter-nativas provenientes de outras cosmovisões e que ganham destaque no novo constitucionalismo latino-americano. O Buen Viver, a Pacha Mama, o Estado plurinacional, o pluralismo jurídico são marcas do novo movimento latino-a-mericano, e é por isso que, de pronto se reconhece que as Constituições da Bolívia e do Equador fazem parte do referido movimento.

Ademais, destaca-se na contemporaneidade o desenvolvimento da tec-nodiversidade sublinhado por Yui Huk com objetivo de rearticular a questão da tecnologia; em vez de entendê-la como um universo antropológico, propõe-se a redescobrir uma multiplicidade de cosmotécnicas e reconstruir suas histórias para projetá-las no antropoceno as possibilidades que nelas estão adormeci-das (HUK, 2020, p. 15). Aqui, o autor lança indagações que remetem a atual era tecnológica em que o mundo todo está inserido. Entretanto, observa que mesmo a tecnologia pode ser desenvolvida por bases diversas. Huk indaga o que significa uma cosmotécnica amazônica, inca, maia?

Tendo conhecido o novo constitucionalismo latino-americano e as Constituições que reconhecidamente o integram, cabe analisar a posição da Constituição Federal de 1988 (CF/88) frente a esse movimento. Primeiramente, é relevante destacar que, no Brasil, o neoconstitucionalismo eclodiu com a promulgação da Lei Maior, acompanhada da reconstitucionalização do país e a transição para o estado democrático de direito (BARROSO, 2005, p. 4). Ainda, a Constituição brasileira foi um exemplo das cartas que sofreram uma adaptação latino-americana do constitucionalismo social europeu (PASTOR; DALMAU, 2019, p. 337).

Ao contemplar os direitos dos povos indígenas, a constituição pátria “contribuiu para iniciar a superação do paradigma liberal, individualista e antro-pocêntrico, servindo de instrumento propulsor para um constitucionalismo do

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tipo pluralista e multicultural” (SOUZA; NASCIMENTO; BALEM, 2019, p. 591). Segundo Raquel Fajardo (2011, p. 140), o constitucionalismo pluralista passou por três ciclos desde o final do século XX, quais sejam, o constitucionalismo multicultural, o constitucionalismo pluricultural e o constitucionalismo plu-rinacional. O primeiro é datado de 1982 a 1988 e se configura pelo surgimento do multiculturalismo, englobando os direitos a identidade cultural e também alguns direitos indígenas (FAJARDO, 2011, p. 141).

O segundo ciclo, de 1989 a 2005, por sua vez, reafirma os conceitos abarcados pelo primeiro, desenvolvendo o pluralismo e a diversidade cultural como princípios constitucionais (FAJARDO, 2011, p. 142). Já o terceiro ciclo é marcado pelas reformas ocorridas na Bolívia (2006-2009) e no Equador (2008), com a consolidação do estado plurinacional (FAJARDO, 2011, p. 149), já tratado anteriormente. De acordo com a autora, com a Constituição Federal de 1988, o Brasil se enquadra no primeiro ciclo mencionado, beirando a segunda etapa (FAJARDO, 2011, p. 141).

O processo constituinte que originou a Carta brasileira trouxe diversas consequências positivas, como a consolidação da ordem democrática e a garantia dos direitos fundamentais. Os movimentos sociais e as reivindicações populares tiveram papel importante nesse contexto de implementação do Estado Social e Democrático de Direito (BRANDÃO, 2013, p. 18).

No entanto, conforme os pensamentos de Pedro Augusto Brandão, a partir do estudo das ideias de Roberto Viciano Pastor e Rubén Martínez Dalmau, a Constituição brasileira não integra o novo constitucionalismo latino americano. Isso porque houve a participação de representantes da ditadura militar no pro-cesso constituinte, bem como ausência de consulta popular para a formação deste e, também, falta de posterior ratificação pela população (BRANDÃO, 2013, p. 18-19). Em outras palavras, ela “não deve ser considerada como um dos signos do novo constitucionalismo pelas debilidades democráticas de seu processo constituinte e pela falta de vontade transformadora em relação ao constitucionalismo do Estado social” (PASTOR; DALMAU, 2019, p. 342).

Também, nota-se que, apesar da legislação constitucional pátria contar com mecanismos, como o plebiscito e referendo e ter recepcionado tratados que tratam do direito à consulta prévia dos povos indígenas, esse direito carece de efetividade. Portanto, os mecanismos existem, mas não são efetivos. Como consequência, as populações tradicionais acabam por não serem ouvidas na tomada de decisões, inclusive quando dizem respeito a assuntos que as afetarão diretamente (NEDEL; GREGORI, 2018, p. 32).

Como exemplo da situação retratada acima, pode-se citar a edição da Medida Provisória (MP) nº 2186-16 e a Lei 13.123/2015, normas que tratam do tema da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados, em que ambas careceram de participação dos povos tradicionais em seus processos

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de elaboração. No caso da MP, ela foi editada pelo executivo em ato repentino, ignorando todas as discussões que já existiam no legislativo. Anos depois, com a Lei 13.123, tudo se repete quando mais uma vez não ocorre a participação dos povos tradicionais para a criação da legislação que iria regular os seus conhecimentos tradicionais associados (NASCIMENTO; BARBOSA; PEREIRA, 2017, p. 177).

Dessa forma, percebe-se que não houve e não há adequada participação da população no Processo legislativo brasileiro. Esse déficit continua ocorrendo nos dias atuais, podendo-se evidenciar uma fragilidade na democracia brasileira. Justifica-se isso, uma vez que os povos marginalizados, como os indígenas, não participam dos processos decisórios, nem mesmo daqueles que impactarão mais diretamente as suas vidas. Há, assim, mais um elemento em dissonância com as características do novo constitucionalismo latino-americano.

Não obstante a constituição brasileira consagrar o direito ao meio ambiente, à cultura e a proteção da população indígena, constata-se que “a questão da plurinacionalidade e do interculturalismo não permeiam todo o texto constitucional, como ocorre nas Novas Constituições Latino-americanas” (NEDEL; GREGORI, 2018, p. 32). No entanto, é possível reconhecer elementos característicos da essência desse movimento na sociedade brasileira, tendo em vista os traços multiculturais e a desigualdade presentes (NASCIMENTO; MARTINS; IRIGARAY, 2016, p. 561).

Conforme abordado anteriormente, a natureza é um fator essencial para as constituições do novo constitucionalismo latino-americano. O Brasil elenca o meio ambiente como bem de uso comum do povo, o que representa uma ideia de exploração, contrária ao movimento estudado. Dito de outro modo, no constitucionalismo latino-americano “o homem é parte integrante da natureza, superando a perspectiva de que a natureza é bem de uso comum do povo, como faz a constituição brasileira” (BARBOSA; TEIXEIRA, 2017, p. 1131).

Já no que tange ao pluralismo jurídico, componente relevante do movi-mento em questão, conforme abordado alhures, também não se verifica em profundidade no sistema jurídico brasileiro. Nas palavras de Ana Paula Barcel-los, “O Judiciário brasileiro parece combinar supremacia constitucional com o monismo jurídico de tal modo que uma concepção estadocêntrica continua sendo a lógica principal que orienta o funcionamento da ordem jurídica bra-sileira” (BARCELLOS, 2019, p. 179).

A maioria dos doutrinadores entende que a Constituição Brasileira de 1988 pertence efetivamente ao neoconstitucionalismo (NASCIMENTO; MAR-TINS; IRIGARAY, 2016, p. 545). A partir do exposto, pode-se concluir que a Carta Magna pátria apresenta alguns traços característicos do novo constituciona-lismo latino-americano, como o multiculturalismo. Entretanto, são incipientes quando comparados àqueles desenvolvidos pelas Constituições Equatoriana e

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Boliviana, símbolos do movimento ora estudado. Dessa maneira, evidencia-se que são necessários o desenvolvimento e o aprimoramento de diversos fatores para que a CF/88 seja enquadrada plenamente no novo constitucionalismo lati-no-americano, a exemplo da participação indígena nos processos decisórios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa buscou averiguar se a Constituição Federal de 1988 pode ser considerada uma Constituição do novo constitucionalismo lati-no-americano. Assim, estudou-se, primeiramente, os diferentes movimentos constitucionalistas, englobando o constitucionalismo moderno, o constitu-cionalismo social, o neoconstitucionalismo, até o novo constitucionalismo latino-americano, bem como se buscou inserir os movimentos constitucionais contemporâneos dentre da era da tecnodiversidade.

Além disso, foi possível verificar os principais elementos caracterizado-res do movimento que é o cerne deste estudo. Como exemplo, tem-se a efetiva participação dos grupos marginalizados, como os indígenas, nos processos decisórios, inclusive no processo constituinte. A plurinacionalidade, envol-vendo o reconhecimento das múltiplas nacionalidades e o pluralismo jurídico também constituem o movimento. Ainda, o multiculturalismo e a valorização da natureza enquanto sujeito de direito, ao lado da Pacha Mama e do Buen Vivir estão presentes.

Em síntese, verificou-se que o novo constitucionalismo latino-americano surge com propostas de um estado plurinacional, que valoriza a diversidade cultural e que respeita e reconhece os diferentes conhecimentos e cosmovisões criadas na América Latina. Também se apontou como símbolos do movimento em questão, a constituição do Equador de 2008 e a constituição boliviana de 2009.

Posteriormente, averiguou-se o enquadramento da Constituição brasileira no novo constitucionalismo latino-americano, analisando se as principais carac-terísticas do movimento estão presentes no texto constitucional. Concluiu-se, por fim, que a Constituição pátria apresenta alguns traços característicos do novo constitucionalismo latino-americano, como o multiculturalismo. Entretanto, são incipientes quando comparados àqueles desenvolvidos pelas Constituições Equatoriana e Boliviana, por exemplo. Dessa maneira, evidencia-se que são necessários o desenvolvimento e o aprimoramento de diversos fatores para que a CF/88 seja enquadrada plenamente no novo constitucionalismo latino--americano - a exemplo da participação indígena nos processos decisórios – e no momento particular da tecnodiversidade.

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Tayson Ribeiro Teles (org.)

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OS REFUGIADOS AMBIENTAIS DE BELO MONTE: A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS À CIDADANIA INDÍGENA

Alex Gaspar de Oliveira34

Eliane Cristina Pinto Moreira35

INTRODUÇÃO

O número de refugiados ambientais vem aumentando em números absolutos em todo o mundo nos últimos anos e seus episódios de deslocamento forçados estão cada vez mais visíveis em termos nacionais e internacionais. Na Amazônia, como exemplo, cita-se a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que vem gerando intensos deslocamentos forçados de povos indígenas e comunidades tradicionais para o centro urbano de Altamira, uma cidade no Sudoeste do Pará. Um traço característico desse deslocamento é a violação aos direitos humanos à moradia, à preservação cultural, que não encontram proteção e amparo de autoridades a níveis internacional e nacional, provocando a contínua destruição de comunidades e culturas.

O episódio Usina de Belo Monte guarda certa particularidade que se resume num conflito socioambiental que tem como consequência o extermínio cultural dos povos indígenas ou mais comumente conhecido como etnocídio, pela incessante necessidade de se impor uma racionalidade econômico-ins-trumental visando o desenvolvimento econômico do país.

Assim sendo a implantação de grandes projetos de infraestrutura na Amazônia, iniciada na década de 60 do século XX que perdura até os dias atuais, vem gerando intensos impactos socioambientais na região Amazônica. Sendo o exemplo mais atual a Construção da Usina de Belo Monte no Estado do Pará. Esse projeto refletiu no aumento do número de uma nova categoria de refugiados assim conhecidos como refugiados ambientais. Dentre eles destacam-se os povos indígenas em torno de tal projeto. Sobre desse contexto, pergunta-se: em que medida a implantação desse projeto, observada a con-juntura de práticas etnocidas sofridas pela população indígena na Região do Xingu Amazônico, explica a lesão aos direitos de cidadania desta categoria de refugiados ambientais?

O texto apresenta como estrutura metodológica um conteúdo de caráter bibliográfico, pois irá se utilizar obras e teses bibliográficas. A pesquisa engloba

34 Mestrando em Direitos Humanos (UFPA). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4280-7334 35 Pós-Doutora em Direito (UFSC). Doutora em Desenvolvimento Sustentável (UFPA). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9085-041X

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um aspecto documental, a Ação Civil Pública nº 3017-82.2015.401.3903, que foi impetrada pelo Ministério Público Federal e tem como réus o Governo Federal e a empresa Norte Energia S/A.

Em termos estruturais, o texto está formatado em três tópicos sendo o primeiro de caráter doutrinário, servindo para demonstrar como a legislação internacional dos direitos humanos tratou o tema refugiados ao longo da história, procurando destacar a conceituação do termo refugiado ambiental, apresentando seus elementos característicos.

O segundo tópico consiste no estudo de caso de Belo Monte que demanda de uma breve compreensão prévia dos conflitos socioambientais na Amazônia assim como uma breve demonstração gráfica em torno do aspecto do direito a vida principalmente no que tange a mortalidade infantil e práticas etnocídas dentro dos argumentos apresentados na Ação Civil Pública.O último tópico traz o entendimento jurídico e antropológico do termos “ação etnocida” e de cidadania indígena, fazendo uma interconexão desses termos com o contexto de Belo Monte.

REFUGIADO AMBIENTAL: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS

Antes de adentrar ao conceito de refugiados ambientais, é necessária a compreensão de como surgiu o conceito de refugiado, cuja normatização remonta com a Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados, criada em 28 de julho de 1951. Nesta época, esse conceito apresentava uma limitação temporal. Assim, eram considerados refugiados apenas àqueles que saíram da Europa antes de 1º de janeiro de 1951. Essa mesma Convenção também atri-buía as nações signatárias, o direito de escolha no momento da assinatura e da adesão se a abrangência poderia ser antes de 1º de janeiro de 1951 ou após 1º janeiro de 1951.

Com o aumento do número de refugiados na Europa e diversas outras partes no mundo, a limitação temporal já não se mostrou adequada, portanto, houve uma necessidade de ampliação legislativa o que de fato ocorreu com o Protocolo do Estatuto de Refúgio em 1967 convocado pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC). A partir de tal protocolo foi abandonada a limitação temporal que existia no Estatuto dos Refugiados de 1951.

Tem-se que:

Em 04 de outubro de 1967, o referido Protocolo entrou em vigor, por meio do qual se considera refugiado todo o indivíduo que sofre perseguição devido a sua raça, religião, grupo social, nacionalidade ou opinião política, sendo obrigado a deixar seu país de origem devido a ameaças (MOTTIN E ZANONI, 2018, p. 1771).

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Em que pese a existência de tais conceitos de refugiados documentados nos instrumentos internacionais citados, o tratamento jurídico de refugiado ambiental vem sendo negligenciado pela comunidade internacional. Ainda assim parte da doutrina vem trabalhando com afinco para elaboração uma conceituação dessa categoria de refugiados.

Segundo Raiol (2010), o refugiado ambiental constitui-se numa espécie de refugiado específico que guarda todas as características do refugiado presente na Convenção de 1951, mas com um aspecto diferenciado, ou seja, de não precisar ultrapassar as fronteiras de seu país de origem, sendo fator suficiente o ser humano ser forçado a abandonar seu território.

Nesse contexto:

[...] imprime-se uma abertura historicamente revolu-cionária ao enfrentamento dos problemas relacionados aos refugiados, visto que, para o reconhecimento da condição de refugiado, não haveria mais a exigência de um deslocamento humano ir além das fronteiras do Estado de origem. Em síntese, a definição ampliada de refugiado ambiental, tal como proposta por El-Hin-nawi, acaba por unificar os conceitos de refugiado e deslocado interno, pelo menos no que concerne o motivo ambiental e, nesse sentido, a relação com o meio ambiente trouxe uma importante e inovadora contribuição à maneira de tratar a questão do refugiado (RAIOL, 2010, p. 160).

Outra questão que envolve o conceito de refugiado ambiental reside no motivo do dano ambiental, ou seja, se o motivo é um distúrbio ambiental natural ou provocado pelo homem. Assim, Hinnawi (2002, apud RAIOL, 2010, p. 160) destaca que se incluiriam tanto as mudanças físicas e químicas que se processam no ecossistema como também distúrbios provocados pela ação predatória do homem frente à natureza, ficando de fora situações que apesar de forçarem a saída de uma população de um determinado local não esteja relacionado ao meio ambiente, como exemplo, conflitos armados ou crises de desemprego.

Por outro lado, incluir-se-ia nesse motivo [distúrbio ambiental] casos como a construção de uma usina hidrelétricas, uma elevação grave do nível águas dos mares e dos oceanos, a contaminação de um rio que serve a comunidade ou a explosão de um reator nuclear [como de Chernobyl] (RAIOL, 2010, p. 161).

Segundo Hinnawi (2002 apud RAIOL, 2010, p. 161), na definição proposta para refugiado ambiental exige uma característica específica deste distúrbio

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ambiental, ou seja, que o mesmo coloque em risco a comunidade existente e comprometa seriamente a qualidade de vida dos atingidos, logo, apenas a existência de um distúrbio ambiental não seria suficiente para caracterizar o surgimento de um refugiado ambiental.

Essa característica diferencia o refugiado ambiental do refugiado cons-tante na Convenção de 1951, por não envolver o elemento perseguição e sim por apenas comprometer a existência de risco à vida e qualidade da mesma, o que torna o princípio da precaução um elemento essencial, tendo em vista que podem ainda ser tomadas medidas para reapreciar o risco causado.

Como destaca Raiol (2010) mais importante do que conceituar estes institutos é que reconhecer as quatro características essenciais dos refugiados ambientais que são: não precisar ultrapassar as fronteiras de seu país, a exis-tência de um distúrbio ambiental ou natural também provocado pelo homem e não apenas pela natureza, que este distúrbio coloque em risco a comunidade existente e comprometa seriamente a qualidade de vida dos atingidos, e, por fim, vê-lo dentro de uma perspectiva de injustiça ambiental.

Tais características estarão muito presentes no decorrer desta pesquisa, principalmente no que tange a análise do contexto etnocida envolvendo os indígenas na implantação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.

O CONFLITO SOCIOAMBIENTAL EM TORNO DA HIDRELÉTRICA DE BELO MONTE E OS REFUGIADOS AMBIENTAIS

A compreensão do fenômeno dos refugiados ambientais indígenas de Belo Monte perpassa por uma análise dos estudos de Alier (2018), principal-mente quando este trata de sua corrente teórica do ecologismo dos pobres, também conhecida como movimento de justiça ambiental, ecologismo popular ou ecologismo do sustento ou da sobrevivência humana.

Na leitura de Allier (2018, p. 33), essa corrente demonstra que o cresci-mento econômico implica em maiores impactos ao meio ambiente e que atin-gem desproporcionalmente grupos sociais que protestam e que muitas vezes apelam para os direitos territoriais indígenas para assegurar seu sustento e sua sobrevivência. O mesmo autor destaca o crescimento desta corrente está dire-tamente relacionado com o crescimento no número de conflitos distributivos.

Belo Monte é um exemplo atual dessa conjuntura, pela necessidade da economia de ganhos de escala, ou seja, por considerar a energia hidrelétrica mais barata e geradora de maiores killowatts. Isso traz como consequência a deterioração de todo um ecossistema que compromete as gerações futuras e continuidade cultural dos povos indígenas que se defrontaram com a desagre-gação da estrutura social de suas comunidades, pelo desaparecimento de rios,

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mudança no curso dos mesmos e consequente desaparecimentos de espécies aquáticas.

Instala-se em Belo Monte, portanto, um conflito socioambiental. Assim sendo, os conflitos socioambientais são caracterizados por discriminações e racismos institucionais, que, segundo os autores, “consistem em ações e práticas pautadas pelos grupo raciais ou étnicos socialmente hegemônicos com impactos diferenciados e negativos sobre os grupos raciais ou étnicos historicamente vulnerabilizados” (BULLARD, 2004 apud PALMQUIST, 2018, p. 87).

Palmquist (2018, p. 87) ressalta que os conflitos ambientais se manifestam para um ambiente socialmente construído e qualitativamente diferenciado. Destaca a autora que os rios para os povos indígenas não possui o mesmo sig-nificado para as empresas hidrelétricas. A cosmologia indígena permite que se interajam e se conectem as águas, o território e a atmosfera materialmente e socialmente com os diferentes grupos em formas diferentes de modos de vida e de saber. Daí vêm o grande choque com das comunidades indígenas quando se defrontam com toda situação de degradação ambiental, o que acaba provocando os conflitos ambientais.

Nesse prisma:

Os conflitos ambientais tornaram-se assim, espaços especialmente violentos. Para a imposição do ambiente, faz-se uso de toda a sorte de artimanhas e arbitrarie-dade: desinformação, cooptação, ameaças, violência sexual e outras forma de violência física, perpetradas por agentes públicos e privados. Nos casos mais gra-ves há desterritorialização e remoção compulsória dos habitantes tradicionais, que se tornam refugiados ambientais ou refugiados do desenvolvimento (MAGA-LHÃES DE OLIVEIRA, 2016, p. 48-49).

Logo, o surgimento dos refugiados ambientais na Amazônia, tendo como referência o caso Belo Monte, é consequência imediata da desintegração das comunidades indígenas que se veem afetadas pela perda dos seus direitos sendo consequência dos processos de desterritorialização.

Monteiro (2016, p. 12) ressalta que a principal justificativa do Estado é necessidade inadiável de implantação de um modelo de desenvolvimento baseada em uma racionalidade de cunho econômico e instrumental que atribui à natureza um valor exclusivamente mercadológico na imposição de ações a todo custo sob o discurso de desenvolvimento e progresso, ou seja, desconsi-dera formas de racionalidade que operam no âmbito dos saberes e práticas dos grupos sociais em sua diversidade.

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Leff (2005) ressalta que essa racionalidade provocou a crise ambiental do século XX, que denunciou não só a degradação do meio ambiente como também a desintegração dos valores culturais de diversos grupos, logo a potencialidade da natureza e de diversos grupos foram convertidos em objetos exclusivos de apropriação econômica.

Umas das mais graves violações de direitos humanos sofridas pelos povos indígenas em todo o histórico envolvendo os grandes projetos de infraestru-tura da Amazônia foram as práticas etnocidas aplicadas dentro de uma lógica racional instrumental voltada para a promoção do crescimento econômico.

Palmquist (2018, p. 30) destaca que em dezembro de 2015, o Ministério Público Federal (MPF), de forma inédita na história jurídica brasileira, ingres-sou na Justiça Federal de Altamira (PA) com uma Ação Civil Pública que pede o reconhecimento de que Belo Monte representa uma “ação etnocida contra os povos indígenas”, acusando o governo brasileiro e a concessionária Norte Energia S/A.

A argumentação central do processo pelo Ministério Público foi a negli-gência por parte do Estado e do Consórcio em cumprir os planos de mitigação dos impactos previsto no licenciamento ambiental. Segundo o teor da ACP, para o Ministério Público, diversas condicionantes que deveriam ser feitas, no entanto, foram negligenciadas. Uma delas foi a ausência de proteção territorial, tratado no tópico da Ação Civil Pública denominado “Da vulnerabilidade das terras indígenas”. Nesse sentido o Consórcio Norte Energia não tomou provi-dências para evitar invasões, roubo de madeira e outros recursos florestais, o que acabou provocando uma proliferação de doenças entre os indígenas e o desmatamento de uma vasta quantidade de terras indígenas.

Nesse caminhar, segundo a Fundação Nacional do Índio (FUNAI):

A abertura irregular de estradas e extração ilegal de madeira têm sido verificadas nas terras indígenas Paquiçamba e Trincheira Bacajá. A necessidade de abertura de estradas para o acesso às aldeias da TI Trin-cheira Bacajá, em função da diminuição do volume de água do rio Bacajá, tem aumentado expressivamente a vulnerabilidade deste território. Diversas informações e relatórios de campo apontam situações de exploração ilegal de madeira no interior da terra indígena, inclusive em áreas próximas às UPTs [unidades de proteção que deveriam estar operando], ou seja, áreas já consideradas vulneráveis pelos levantamentos anteriores. (PARECER TÉCNICO 14/2015/CGMT/FUNAI)

Com a proliferação das doenças e com o aumento do número de aldeias, formada pela desintegração de outras, o Distrito de Saúde Indígena - DISEI já

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não foi suficiente para atender a demanda crescente de indígenas deslocados para a cidade de Altamira. A ACP impetrada pelo Ministério Público ressalta que no Plano de Mitigação de Belo Monte estava previsto que as ações de saúde deveriam ser realizadas nas aldeias, justamente para garantir a presença dos indígenas nas suas comunidades, apenas permitindo o deslocamento para as cidades em casos de média ou grande complexidade.

Assim foi prevista a construção de uma Casa de Saúde Indígena - CASAI, no entanto, a mesma foi instalada em um bairro residencial da cidade de Alta-mira, sendo uma casa de apenas três quartos para receber apenas uma família. Segundo informações técnicas do próprio Ministério Público, a lotação diária do CASAI entre 150 e 200 pessoas. Como consequência, houve um aumento do número de mortalidade infantil tardia e precoce36 entre os anos de 2012 e 2014.

Figura 01: Evolução do Coeficiente de Mortalidade Tardia x Proporção de Partos na Aldeia

Fonte: (BRASIL. Ministério Público Federal. UHE Belo Monte: Ação Civil Pública Processo nº 3017-82.2015.401.3903, p. 44)

Pelo figura acima se verifica o grave quadro de mortalidade após o nas-cimento, o que demonstra o total desinteresse e negligência do poder público e do Consórcio responsável na manutenção dessas vidas e também da saúde mental das indígenas que viram seus filhos vindo à óbito sem assistência. Logo, pelo gráfico, à medida em que o projeto foi sendo implementado houve um aumento no coeficiente de mortes tardias que vieram acompanhada pela

36 A mortalidade infantil é dividida em dois componentes: mortalidade neonatal ou infantil precoce - que compreende os casos de crianças falecidas durante os primeiros 28 dias de vida - e mortalidade pós-neonatal ou infantil tardia - que corresponde aos óbitos ocorridos entre o 29º dia de vida e um ano de idade (LAURENTI et al., 1987).

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diminuição da proporção de partos nas aldeias, sendo uma grave consequência da desterritorialização das tribos ocorridas nesse período.

O SIGNIFICADO DO TERMO “AÇÃO ETNOCIDA” E LESÃO DA CIDADANIA INDÍGENA

A compreensão do termo “ação etnocida” usada pelos membros do Ministério Público traz uma conceito muito rico que faz surgir uma série de valores que estão inclusos dentro dos pressupostos da cidadania indígena.

Palmquist (2018, p. 30) destaca que a ação judicial não acusa os aconteci-mentos de Belo Monte como um etnocídio ou genocídio, nos termos propostos pelos procuradores, mas sim como sendo uma ação etnocida “evidenciada na destruição da organização social, costumes, línguas e tradições, nos termos do artigo 231 da Constituição Federal”. Há de se destacar que o etnocídio não é reconhecido como um crime no ordenamento jurídico brasileiro, daí ressaltar que o Ministério Público não acusou o Consórcio de etnocídio, prova disso é que propôs a Ação Civil Pública que é uma ação de caráter não penal, pois não prevê responsabilidade penal, onde foi solicitada apenas reparações cíveis aos povos indígenas e uma intervenção judicial no empreendimento.

O crime de genocídio no ordenamento jurídico está tipificado na Lei 2.88937 e no caput do artigo 1º requer o elemento de intenção na prática do ato. O genocídio caracteriza-se pela intencionalidade, no entanto, o que não é percebido pelo objetivo principal do Consórcio Norte Energia, que é a cons-trução da Usina.

Segundo Palmquist (2018, p. 33), o etnocídio nunca foi uma intenção declarada pelo Estado, apesar de sempre ser uma consequência previsível em planejamentos estatais e paraestatais. Complementa a autora que o etnocídio não deve se caracterizar por uma intencionalidade, mas sim por um complexo de negligências, omissões ou promessas vãs.

Clasters (2004 apud Palmquist, 2018, p. 35) dentro de uma perspectiva antropológica, analisa a postura do Estado em relação à prática etnocida. Para o antropólogo francês, o Estado aplica força centrípeta que tende a esmagar as forças centrífugas inversas, portanto, o núcleo de substância do Estado é uma força atuante voltada para uma vocação de recusa do múltiplo, o temor

37 Art.1º. Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave a integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo

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e o horror da diferença, que torna a violência etnocida um efeito inseparável do poder estatal.

Viveiros de Castro (2015 apud Palmquist, 2018, p. 35) considera que a distinção de meios e dos fins em Belo Monte foi enganosa, pois são os fins que caracterizam o etnocídio. Isso para o autor abre a possibilidade para a tipifica-ção de um etnocídio culposo em que as ações etnocidas podem ser cometidas como um “resultado não intencional” ou “dano colateral” de decisões e projetos de iniciativa do governo.

Em suma, a tese da intencionalidade presente na legislação brasileira e na Convenção sobre o genocídio acabou por prevalecer na tese jurídica levantada pelo Ministério Público, o que o impediu de imputar a responsabilidade penal. No entanto, a construção argumentativa do Ministério Público se fundamentou em um aspecto fundamental visando a ênfase dos direitos humanos dos povos indígenas: a da ação etnocida como violação cosmológica e geradoras de efeitos psíquicos do modus vivendi dos indígenas.

No que tange ao conceito de cidadania indígena Bicalho (2010 apud Machado e Santos, 2019, p. 3) defende que a análise da cidadania indígena deve ocorrer em dois planos: individual e coletivo. Villares (2009 apud Machado e Santos,2019, p. 3) indica que plano individual compreenderiam as conquistas relacionadas aos direitos civis e a integração do indígena a comunidade nacio-nal, ou seja, pretende-se nessa ótica declarar que o índio é igual aos cidadãos perante a lei.

Um exemplo: é o sistema de cotas em universidades públicas. Já no plano coletivo o autor expõe que o reconhecimento de sua cidadania abrange o reconhecimento de direitos coletivos sem os quais os direitos civis não podem ser exercidos. Como exemplos apontam-se: os direitos territoriais, os direitos à autodeterminação dos povos, ao etnodesenvolvimento e os direitos culturais.

Machado e Santos (2019, p. 4) destacam que é em torno desse direitos coletivos que há uma articulação entre o ser índio cidadão, a identidade indígena e o exercício da cidadania, no qual o exercício da cidadania consiste como o reconhecimento da comunidade no geral e como sujeito de direito. Logo, os autores concluem que o direito ao território é um direito coletivo e sem ele não há possibilidade de sua reprodução e cultural, pois compromete a dignidade dessa comunidade que compartilha com essa cultura.

Nessa perspectiva:

As lutas indígenas por terra e território são lutas por cidadania. ‘a questão da territorialidade assume a proporção da própria sobrevivência dos povos, um povo sem território, ou melhor, sem seu território, está

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ameaçado a perder suas referências culturais’ (SOUZA FILHO, 1998 Apud MACHADO E SANTOS, 2019, p. 3)

Portanto, a conjuntura em torno de Belo Monte tornou explícita a lesão de cidadania indígena principalmente se considerarmos a práticas de atos etnocidas dentro de uma perspectiva antropológica apontada nesse texto, que compromete a reprodução física e cultural dessas comunidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção de grandes projetos na Amazônia, como Belo Monte, provocou um deslocamento forçado de várias etnias que tiveram que assimilar padrões culturais que afetaram suas perspectivas de vida provocando a perda da cidadania indígena.

A perda da cidadania indígena representa uma espécie de perda do seu espaço público, na medida em que o deslocamento forçado de seu território, faz com que ele perca seus valores culturais e étnicos, não restando alterna-tiva senão de assimilar uma cultura estranha à sua. Esta perda é traduzida de forma ampliada na perda de seu território, autodeterminação e pelo seu etnodesenvolvimento.

Em todo seu processo de construção Belo Monte contou um forte apoio do Estado dentro de uma lógica racional-econômica quando não considerou os direitos territoriais dos povos indígenas. O direito à saúde que fez com que muitos indígenas se deslocassem para as cidades principalmente por não encontrar assistência à saúde nas proximidades das suas aldeias, prejudicando o próprio direito à vida, um exemplo foi o aumento do índice de mortalidade infantil conforme demonstrado.

O direito à moradia também foi violado na medida em que as moradias foram desestruturadas com o desmatamento, roubo de madeira e reestruturadas de forma diversas daquela ao qual estavam habituados. E por fim o principal deles o direito à cultura que abalado pela desestruturação das aldeias. Logo, tais direitos traduzem os três direitos macro que foram violados: direito ao território, autodeterminação e etnodesenvolvimento.

Logo, o episódio ocorrido com os povos indígenas de Belo Monte se caracteriza dentro de uma perspectiva fenomenológica uma categoria de refu-giados ambientais, tendo em vista que os indígenas perderam seu território através de um deslocamento interno, logo perderam sua cultura, na medida em que teve que se adaptar a uma nova realidade no município de Altamira, assimilando outros hábitos culturais, sujeitos às práticas discriminatórias e a negligência do Estado em adotar políticas públicas que preservasse a sua cidadania enquanto povos indígenas.

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REFERÊNCIAS

ALIER, Joan Martínez. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2014.

BRASIL. Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956. Define e Pune do Crime de Geno-cídio.Diário Oficial da União: Brasília, DF, out.1956.

BRASIL. Ministério Público Federal. UHE Belo Monte: Ação Civil Pública Processo nº 3017-82.2015.401.3903 - Impactos incidentes sobre os povos indígenas. Altamira: MPF, 2015. Disponível em: https://ox.socioambiental.org/sites/default/files/ficha--tecnica//node/202/edit/2020-08/Inicial%20ACP%20Etnoc%C3%ADdio.pdf. Acesso em: 04 dez. 2019.

LEFF, Henrique. Ecología y Capital: racionalidad ambiental, democracia partici-pativa y desarrollo sustentable. 5. ed. México: Siglo XXI, 2005.

MACHADO, Vilma de Fátima e SANTOS, Leonilson Rocha. Construção da cidada-nia dos povos originários: aspectos históricos e conceituais na consolidação dos direitos coletivos e territórios. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=22fbcf3708d8f7c3. Acesso em: 18 abr. 2020.

MAGALHÃES DE OLIVEIRA, Rodrigo. A ambição dos pariwat: consulta prévia e conflito socioambiental. Dissertação de mestrado. Belém: UFPA, 2016.

MONTEIRO, Maria Rúbia Muniz. Reflexo da Racionalidade Econômico-Instrumental na Amazônia no Contexto dos Povos Indígenas em face da Construção da UHE Belo Monte. Tese (Tese em Sociologia) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2016.

MOTTIN, Carina Fabiana; ZANONI, Lísias Camargo Andrade. Refugiados ambien-tais e o vazio jurídico existente. Revista Jurídica Uniandrade, v.28, n. 01, jan.2018. Disponível em: https://www.uniandrade.br/revistauniandrade /index.php/juridica /article /view/957. Acesso em: 04 dez. 2019.

PALMQUIST, Helena. Questões sobre o genocídio e etnocídio indígena. Disserta-ção (Dissertação em Antropologia) – Universidade Federal do Pará. Belém, 2018.

RAIOL, Ivanilson Paulo Corrêa. Ultrapassando Fronteiras: A proteção jurídica dos refugiados ambientais. Porto Alegre: Fabris Editora, 2010, p. 143-230.

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VISÃO SISTÊMICA: PERCEPÇÕES DA ECOLOGIA E CIDADES INTELIGENTES

Carlos Alberto Machado Gouveia38

Nádia Leite Medeiros39

Eujácio Lopes Filho40

INTRODUÇÃO

As concepções de mundo, o olhar que temos sobre a nossa ótica, são perspectivas de uma realidade contemporânea de ações e resultados imediatos com consequências permanentes, em uma concepção de sociedades cada vez mais líquidas e insustentáveis.

As nossas ações advém de concepções culturais, sociais, econômicas, partindo de uma contextualização histórica e geográfica. Temos o poder de modificar o nosso ambiente, porém, temos que observar as nossas ações em uma perspectiva a médio e longo prazo.

As cidades passaram por um processo de inchaço com grandes imigra-ções, o processo de urbanização possibilitaram o acesso a serviços, produtos e satisfação das necessidades humanas, de forma a melhorar a qualidade de vida e o desenvolvimento das nossas atividades.

A questão que trazemos nesse capítulo é como as nossas cidades podem ser mais conectadas, inteligentes e pensar de maneira sistemática, a partir da ótica do desenvolvimento sustentável ou durável, perpetuando o resgate dos costumes, culturas indígenas e conhecimentos que foram esquecidos com a vinda das pessoas para o ambiente urbano, de produção, de integração com natureza, como o biomimetismo, na arquitetura integrada com os ambientes pensando na sustentabilidade.

A pesquisa tem como procedimentos técnicos, a revisão bibliográfica e exploratória de ações de sustentabilidade como referência, a associação da cultura dos povos do Xingu e edificações sustentáveis com a técnica de construção das casas desses povos, cultura milenar e sistematização.

38 Doutorando em Ciências da Educação (Universidad Columbia del Paraguay). CV: http://lattes.cnpq.br/8671154111711220 39 Especialização em Direção, Coordenação e Orientação Escolar (UFPA). Professora (Cas-tanhal-PA). CV: http://lattes.cnpq.br/3558711884909084 40 Graduado em Licenciatura Intercultural (UFMG). Compõe o grupo de líderes Pataxó. Membro da Coordenação de Pesquisa da História, Cultura e Língua Pataxó.CV: http://lattes.cnpq.br/8071159553748175

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A partir dos conceitos teóricos de desenvolvimento sustentável e de estudos das tecnologias dos povos do Xingu, temos uma sistematização desse campo relevante para salientar na pesquisa apresentada.

VISÃO HOLÍSTICA DA SUSTENTABILIDADE

As cidades se desenvolveram em um processo acelerado e com uma concepção de oferecer bem estar e acessibilidade de serviços, no entanto, com o aumento dessa população, tivemos um inchaço dessas cidades e, con-sequentemente, a falta de infraestrutura e o abastecimento desses centros, aumentando o custo e diminuindo a qualidade do bem estar social.

As cidades pensadas de modo inteligente, devem buscar sustentabilidade, de modo a recriar os espaços de maneira que a estruturação dos ambientes, perpassem por uma visão, não apenas dinâmica e sistêmica, mas também do ponto de vista estratégico, antecipando o crescimento de suas populações.

Segundo (DIAS, 2009):

Através da abordagem sistêmica, gestores urbanos terão como implantar o planejado estrategicamente. Porém, há dificultadores nesse processo. No mundo em geral [...] as cidades não possuem planejamento e crescem de forma acelerada, o que as leva à desordem espacial, econômica, social, ambiental e, muitas vezes, à perda de identidade local (DIAS, 2009, p. 21 e 22).

A partir dessa perspectiva, o homem guia e segue a natureza, como afirma Morin (2005). Sendo a ecologia agente integrador nesse processo em seus mais diversos aspectos, relacionando para o campo das cidades, fomentando essa abor-dagem de múltiplas dimensões, de maneira integrada e participativa. Portanto, a ecologia urbana tem essa análise de que é necessário estabelecer relações entre o ambiente e a natureza, se formos além, partimos da seguinte perspectiva de que o ser também deve ser integrado nessas conexões entre ser, ambiente e natureza.

Segundo Boff (1999, p. 13), um modo-de-ser não é um novo ser. É uma maneira do próprio ser de estruturar-se e dar-se a conhecer. O cuidado entra na natureza e na constituição do ser humano. O modo-de-ser cuidado revela de maneira concreta como é o ser humano.

De acordo com Sanz (2008), o território deve ser entendido como um ecossistema e nessa relação devemos compreender as evidenciações de todos os recursos utilizados e de onde derivam, da geração e destinação correta dos resíduos como resíduos orgânicos, resíduos sólidos, e, o que ainda não se tem tecnologia suficiente e/ou custos altos para reintegração aos recursos utilizados, são considerados, rejeitos. Essas relações que permeiam essas ressignificações do ser e o ambiente, tem base nas relações da ecologia, como a mensuração

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de fluxos de energia e matéria, observando os princípios da termodinâmica aplicado nas mais diversas áreas de conhecimento.De acordo com Montibeller Filho (1993), descrito no quadro a baixo, temos as

seguintes dimensões:

DIMENSÃO COMPONENTES PRINCIPAIS OBJETIVO

SUSTENTABILIDADE SOCIAL

- Criação de postos de trabalho que permitam renda individual ade-quada e melhor condição de vida e a melhor qualificação profissional.- Produção de bens dirigida prio-ritário emente às necessidades básicas sociais.

REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES

SOCIAIS

SUSTENTABILIDADE ECONÔMICA

- Fluxo permanente de investimen-tos públicos e privados (estes últi-mos com especial destaque para o cooperativismo).- Manejo eficiente dos recursos.- Absorção pela empresa dos custos ambientais.- Endogeneização: contar com suas próprias forças.

AUMENTO DA PRODUÇÃO E DA

RIQUEZA SOCIAL, SEM DEPENDÊNCIA

EXTERNA

SUSTENTABILIDADE ECOLÓGICA

- Produzir respeitando os ciclos ecológicos dos ecossistemas.- Prudência no uso de recursos não renováveis.- Prioridade à produção de bio-massa e à industrialização de insu-mos naturais renováveis. - Redução da intensidade energética e con-servação de energia. - Tecnologias e processos produtivos de baixo índice de resíduos. - Cuidados ambientais.

QUALIDADE DOMEIO AMBIENTE E

PRESERVAÇÃODAS FONTES DE

RECURSOSENERGÉTICOS E

NATURAIS PARAPRÓXIMASGERAÇÕES

SUSTENTABILIDADE ESPACIAL OU GEOGRÁFICA

- Descentralização espacial (de ati-vidade, de população).- Desconcentração - democratiza-ção local e regional do poder.- Relação cidade-campo equili-brada (benefícios centrípetos).

EVITAR EXCESSO DE AGLOMERAÇÕES

SUSTENTABILIDADE CULTURAL

- Soluções adaptadas a cada ecossistema.- Respeito à formação cultural comunitária.

EVITAR CONFLITO CULTURAIS COM

POTENCIAL REGRESSIVO

Quadro 1: Autor Mendes Filho (1993).

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A cultura nos remete esse resgate dos saberes e suas diversidades, pois é necessária essa interação e enriquecimento cultural das cidades inteligentes, por conseguir absorver os saberes e conhecimentos dos povos e do biomime-tismo, aprender com a natureza para construção mais sustentáveis. Segundo (MORIN, 2000, p. 55).

Nessa perspectiva:

O duplo fenômeno da unidade e da diversidade das cul-turas é crucial. A cultura mantém a identidade humana naquilo que tem de específico; as culturas mantêm as identidades sociais naquilo que têm de específico. As culturas são aparentemente fechadas em si mesmas para salvaguardar sua identidade singular. Mas, na realidade, são também abertas: integram nelas não somente os saberes e técnicas, mas também ideias, costumes, alimentos, indivíduos vindos de fora. As assimilações de uma cultura a outra são enriquecedoras (MORÍN, 2000, p. 55).

Considerando esses aspectos, percebemos como o conceito de desenvol-vimento sustentável ou desenvolvimento durável perpassa diversas dimensões, perspectivas e que existe muitos debates e estudos com o intuito de redimensio-nar as nossas ações e reestruturação do ambiente que vivemos. Nesse aspecto, as cidades precisam absorver esses conhecimentos para obter-se o equilíbrio de intervenções humanas e pensarmos como um ecossistema para que todas as dimensões sejam atendidas e a parcimônia seja alcançada.

As práticas, milenares dos povos indígenas do Xingu nos inspiram às ações ambientais e auto sustentáveis que tanto se fala na atualidade. Atualmente, habitam o parque do Xingu 16 Povos: Aweti, Ikpeng, Kaiabi, Kalapalo, Kamaiurá, Kĩsêdjê, Kuikuro, Matipu, Mehinako, Nahukuá, Naruvotu, Wauja,Tapayuna, Trumai, Yudja, Yawalapiti. Esses povos oriundos, do local e de outros cantos do Brasil foram reunidos nesse parque pelos irmãos Villas Boas, em meados dos anos 60.

A arquitetura das casas indígenas é totalmente sustentável até o momento que estes, por imposição do homem branco, foram obrigados a fixar residên-cia em um só lugar. Sua vida nômade lhes permitia abandonar um local para que esse pudesse regenerar suas potencialidades através do processo natural promovido pela natureza. O fato de alguns materiais estarem desaparecendo motivou a UNB, através do Centro de Pesquisa e Aplicação de Bambu e Fibras Naturais, propor substituições para que a atividade arquitetônica não desapareça.

Na cultura xinguana os recém casados habitam a casa dos pais da esposa em grupos de 30 ou mais pessoas. Quando o grupo começa a ficar muito grande, com o aparecimento dos filhos, o casal, com a ajuda da comunidade, constrói sua própria casa, recomeçando o ciclo.

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As casas são construídas em espaços estratégicos, formando um grande círculo, possibilitando a proteção contra as fortes pancadas de vento, Além de sistemas de aberturas que refrigera durante o dia e mantém o aquecimento a noite. Na verdade, essa casa xinguana serviu como inspiração para criação do Centro Sebrae de Sustentabilidade, que conquistou dois troféus no prêmio mundial de construções sustentáveis, o Breeam Awards 2018.

Nesse prisma:

O Ecodesenvolvimento pressupõe, então, uma soli-dariedade sincrônica com a geração atual, na medida em que desloca a lógica da produção para a ótica das necessidades fundamentais da maioria da população; e uma solidariedade diacrônica, expressa na econo-mia de recursos naturais e na perspectiva ecológica para garantir às gerações futuras as possibilidades de desenvolvimento (MONTIBELLER FILHO,1993, p. 2).

Imagem 1/ Foto da aldeia Kamayura

Fonte: Takuman Kamayurá - 24/11/2012.

Além serem detentores de tecnologias das construções das casas de forma totalmente ecológica e sustentável, os indígenas ainda se destacam na produção de alimentos, garantindo o seu sustento sem agredir a natureza, utilizando técnicas milenares como o cultivo orgânico e rotação de cultura. Se analisarmos a geografia das terras indígenas em comparação com as terras destinadas à agricultura, pelos brancos, veremos que a agricultura atual deixa um rastro de destruição e desertificação por onde passa. A forma de relação

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com a terra e as práticas desenvolvidas pelas comunidades que às utilizam nos dá a noção de territórios diferenciados de produção de alimentos.

Nesse sentido:

O paradigma sociológico ou das ciências sociais que tende a definir o território a partir da relação humana com o espaço, no qual se desenvolvem ações, rela-ções e interações sociais bem como culturais com a finalidade de desenvolver a afinidade dos grupos ou comunidades com o propósito de personalizar a sua identidade, garantindo desta maneira as tradições culturais e sociais com intenção de preservar a relação dos indivíduos com o seu lugar no espaço (OLIVEIRA, 2015, p. 12).

Os indígenas xinguanos além de se preocuparem com a agricultura e moradia sustentável, também mantém uma relação de comensalismo com os rios que estão próximos às suas moradias, onde a relação traz benefícios sem prejuízos à ambos. O respeito do índio com a água dos rios, principalmente no caso dos xinguanos, nos mostra uma forma de sustentável de conviver com os recursos necessários à vida. Os rios que banham as aldeias xinguanos, embora tenham uma relação sustentável com os indígenas estão morrendo, poluídos, por conta que suas nascentes não estarem dentro das terras indígenas e no percurso até chegar lá, passa por várias fazendas e projetos de mineração.

A área afetada, desmatada, na bacia do rio Xingu chega a 31,36%, 5,573 da área total que é igual 17,77 milhões hectares. A partir dessa realidade e com o apoio de agências ambientais internacionais várias, iniciativas foram implementadas para implantação de unidades de conservação ao longo do rio Xingu, para proteção de áreas de importâncias críticas, como é o caso do programa Xingu.

Segundo o ISA - Instituto Sócio Ambiental:

O Programa Xingu quer contribuir com o ordenamento socioambiental da Bacia do Rio Xingu, considerando a expressiva diversidade socioambiental que a caracteriza e a importância do corredor de áreas protegidas de 28 milhões de ha que inclui Terras Indígenas e Unidades de Conservação, ao longo do Rio Xingu. Articulando parcerias e promovendo diálogos intersetoriais, o Pro-grama desenvolve projetos voltados à proteção e sus-tentabilidade dos 26 povos indígenas e das populações ribeirinhas que habitam a região, à viabilização da agricultura familiar, à adequação ambiental da produ-

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ção agropecuária e à proteção dos recursos hídricos (ISA - Instituto Sócio Ambiental, 2011. p. 5).

Ao sobrevoar o Parque do Xingu, podemos notar que ele é uma ilha de floresta preservada, cercada por recortes geométricos de pastagens ou plantações de caráter intensivo, tornando esse parque um oásis para plantas e animais ameaçados de extinção. Essa realidade acontece por conta da incli-nação do índio às questões ambientais e também por conta da Lei Federal n. 6.001/1973 (Estatuto do Índio), que regulamenta a relação de usufruto do índio com o território ocupado por ele.

Tem-se que:

O usufruto exclusivo nas terras indígenas difere do instituto do usufruto privado, principalmente pelo seu caráter coletivo. Os titulares do direito são as comu-nidades indígenas e não cada índio individualmente. Porém, assemelham-se na natureza de direito real sobre coisa alheia e permitem a percepção dos frutos e utilidades do bem. Desse direito decorrem limitações e impedimentos às atividades econômicas de terceiros nas áreas indígenas, com exceção da mineração e do aproveitamento de recursos hídricos (231, §0CF), con-dicionados à prévia autorização do Congresso Nacio-nal, à oitiva das comunidades afetadas e à garantia de participação nos resultados da lavra (ROMERO; LEITE, 2010, p. 141).

As vinculações que podemos constatar com os estudos científicos da cultura dos povos nativos, como ocorreu com os povos do Xingu, nos direciona para as possibilidades de novos aprendizados, pensar no local, agimos local-mente, mas, sempre com um olhar global, de que nossas ações tem reflexos e interferem de maneira complexa e ampliada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As concepções de desenvolvimento sustentável, permeia o conceito holístico das diversas dimensões que permeiam a sustentabilidade social, econômica, ecológica, espacial e cultural, redimensionando as ressignificações que precisam ser observadas na estruturação das nossas cidades.

Tão somente essas ressignificações são necessárias em todos os aspectos, a integração entre ambiente, ser e suas relações precisam conduzir a ações sustentáveis, planejar e sincronizar-se com o todo, a visão parcial não pode ser a resposta única, o sistêmico deve ser pensado e questionado por todos os atores envolvidos.

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Os povos nativos, como os do Xingu, partem dessa concepção do todo, são totalmente integrados e conectados com a natureza, e partem da integração de maneira gradual e sustentável, desenvolveram tecnologias como as suas casas, de forma sustentável e de significado cultural.

O Centro de Sustentabilidade de Cuiabá buscou os conceitos e as téc-nicas dos povos do Xingu que foram utilizadas na construção do Centro de Sustentabilidade pela economia dos recursos naturais, processo sistêmico e de transformação dos resíduos em ideias de intervenções pensadas e sustentadas em processos tecnológicos e de integração cultural.

Pensar no sustentável vai além das perspectivas de cada ser, é socializar todos esses conhecimentos e experiências, a fim de desmistificar que as nossas ações isoladas e independentes, pois, percebemos a visão transdisciplinar, passando pela visão holística e da concepção que o ambiente deve integrar todos as dimensões inerentes ao desenvolvimento sustentável.

REFERÊNCIAS

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CARVALHO, Eveline Barbosa Silva. A Teoria do Crescimento Endógeno e o Desen-volvimento Endógeno Regional: Investigação das Convergências em um Cenário Pós-Cepalino. Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 32, n. Especial p. 467-482, novembro 2001.

DIAS. Sistema de planejamento para implementação e monitoramento de planos diretores em municípios brasileiros. 2009. Tese (Doutorado em Gestão das Organi-zações) - Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

FURTADO, Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Con-traponto: Centro Internacional Celso Furtado, 2009.

GADOTTI, Moacir. Educar para Sustentabilidade: Uma contribuição à Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável. São Paulo: Ed, L, 2008. 127 p. (Série Unifreire, 2).

GONÇALVES, Luiz Eduardo Fonseca de Carvalho. As relações Brasil-CEPAL. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011.

INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Almanaque Socioambiental Parque Indígena do Xingu: 50 anos Instituto Socioambiental (ISA). São Paulo: Instituto Socioambiental, 2011. Disponível em: https://www.socioambiental.org/sites/blog.socioambiental.org/files/publicacoes/10380_0.pdf. Acesso em: 30 jul. 2018.

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MONTIBELLER FILHO, Gilberto. Ecodesenvolvimento e Desenvolvimento Susten-tável: Conceitos e Princípios. Revista Textos de Economia, v. 4. n.1. p.131-142. 1993.

MORIN, E. O método II: a vida da vida. Porto Alegre: Sulina, 2005.

MORÍN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação. Tradução de Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya; revisão técnica de Edgard de Assis Carvalho. – 2. ed. – São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2000.

OLIVEIRA, Cristina Perpétua Sobral de. Agricultura familiar e desertificação: estudos de casos nos distritos de Braga e da guarda. Dissertação do Instituto Uni-versitário de Lisboa da Estudos em Desenvolvimento, Desenvolvimento Sustentável. 2015. 162 p.

ROMERO, Ellen Cristina Oenning; LEITE, Vera Lúcia Marques. Terras indígenas: usufruto exclusivo e proteção do meio ambiente Indigenous land: exclusive usu-fruct and environment protection. Revista: Tellus, ano 10, n. 18, p. 139-160, jan./jun. 2010 Campo Grande - MS.

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“VAMOS BRINCAR DE ÍNDIO”: BNCC E APROPRIAÇÃO CULTURAL INDÍGENA NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL

Sadrack Oliveira Alves41

Márcio Evaristo Beltrão42

INTRODUÇÃO

O presente capítulo versa sobre a apropriação cultural, seu conceito e suas consequências para determinados grupos sociais, delimitando o assunto para a observação da apropriação cultural indígena no ambiente escolar. Tra-ta-se do pressuposto de uma apropriação da cultura indígena em sala de aula e, para tanto, elenca-se o que pode ser feito a respeito da temática, tendo como respaldo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Considerando a amplitude do ambiente escolar, delimitou-se os Anos Iniciais do Ensino Fundamental, descrevendo as competências, habilidades e objetos de conhecimento que a Base traz, envoltos ao termo “indígena”, em todos os componentes curriculares disponíveis.

HOMENAGEIA, APRECIA OU APROPRIA?

O ano era 1988, mais precisamente o dia 19 de abril43. Se você fosse pro-fessor/a, provavelmente estaria pintando o rosto dos/as alunos/as com cores vibrantes, adornando o corpo das crianças com penas, palhas de coqueiro ou qualquer molde que tenha sido cortado em cartolina, e se preparava para colocar em alguma vitrola o novo LP da cantora infantil e apresentadora de televisão Xuxa Meneghel. Caso naquele ano você fosse aluno/a, estaria “vestido” de indígena em sua escola e “brincando de índio”. Essa seria a atividade peda-gógica avaliativa considerada ideal para o “Dia do Índio”, a qual foi repassada por gerações nos trinta anos seguintes.

A canção gravada por Xuxa integrou o álbum “Xou da Xuxa 3” — consi-derado o disco feminino mais vendido da história do Brasil — e tornou-se uma

41 Especialista em História e Cultura Afro-Brasileira (FAVENI) e em Educação Indígena (FAVENI). CV: http://lattes.cnpq.br/3185382286565628 42 Doutor em Estudos de Linguagem (PPGEL/UFMT). CV: http://lattes.cnpq.br/4946711879533148 43 Em 1943, o então presidente Getúlio Vargas instituiu o decreto-lei que estabeleceu a data comemorativa do “Dia do Índio” para 19 de abril. O responsável por convencê-lo foi o general Marechal Rondon, o qual possuía bisavós indígenas e criou, em 1910, o Serviço de Proteção ao Índio, atual Fundação Nacional do Índio (BBC, 2018).

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das músicas mais famosas e lembradas de sua carreira, atingindo, inclusive, sucesso internacional em mais de cinco países. Em seu videoclipe, a cantora e um grupo crianças aparecem trajados com cocares e pinturas corporais. Na letra da canção, há versos como “Vamos brincar de índio / Mas sem mocinho pra me pegar” e “Índio já foi um dia/O dono dessa terra/Índio ficou sozinho”.

Após 30 anos de seu lançamento, em entrevista à revista Cláudia (D’ÉR-COLE, 2020), Xuxa disse que “não se sente chocada” ao avaliar recortes do que ela fazia/produzia em 1980 em comparação ao contexto atual, visto que suas apresentações seguiam o que era padrão na década de 80. A apresentadora enfa-tiza que, embora na época não enxergasse problema algum, hoje sabe que há um nome específico para o que fazia: apropriação cultural. Xuxa cita, inclusive, uma das edições da franquia de álbuns “Xuxa Só para Baixinhos”, na qual exibiu uma espécie de “volta ao mundo”, apresentando diferentes culturas e trajada de roupas japonesas, africanas, entre outras. Naquela época, ela tratava essa ação como uma espécie de “licença cultural para falar com as crianças”. Mesmo ressaltando que o padrão de discussão era outro nos anos 80, Xuxa concorda que é importante debater questões de representação/representatividade, visto que isso pode “abrir portas para outras coisas erradas”.

As situações protagonizadas por Xuxa Meneghel são necessárias para a discussão sobre apropriação cultural no ambiente escolar, entretanto não são as únicas existentes para o diálogo, principalmente quando há uma delimitação por um viés midiático, mais precisamente carnavalesco. A fim de exemplificar, elenca-se outros casos de apropriação cultural envolvendo personalidades famosas e, a título de recorte temático, foca-se na apropriação cultural indígena.

Em 2018, a atriz Paolla Oliveira — brasileira, branca e loira — foi alvo de críticas de internautas depois que divulgou uma foto, em uma rede social, na qual aparece trajada com uma “fantasia de índia” para um baile de carnaval. No mesmo ano, foi lançada na mesma rede social uma campanha em forma de hashtag, criada e veiculada pela ativista indígena Katú e nomeada como #índionãoéfantasia. Em publicação destinada à atriz, a ativista ressaltou que “cocar não é seu acessório de modinha, cocar é sagrado, é resistência (...)” (D’ÉRCOLE, 2018).

Posteriormente, em 2020, a também atriz Alessandra Negrini — brasileira e branca — se apresentou como rainha “fantasiada de índia” no bloco Acadê-micos do Baixo Augusta. A atriz se viu em um centro de comentários críticos na internet e, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo (BERGAMO, 2020), se defendeu dizendo que “a luta indígena é de todos nós” e, por isso, teve “a ousadia de me vestir assim”. Ao contrário de Paolla Oliveira, que teve a ação criticada por lideranças indígenas, Alessandra foi defendida por Sônia Guajajara, líder indígena e ex-candidata à presidência do Brasil (PSOL), a qual afirmou que a produção não poderia ser classificada como uma apropriação cultural, já que

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o objetivo era político. Ainda em tom de justificativa, a atriz destacou que seu corpo havia sido pintado pelo artista indígena cearense Benício Pitagury.

Outro exemplo que pode ser utilizado na discussão sobre apropria-ção cultural indígena é a série nacional “Cidade Invisível”, da plataforma de streaming Netflix. Desde a sua estreia, em 5 de fevereiro de 2021, a produção figurou entre as mais assistidas dessa plataforma e chegou a entrar no Top 10 de países como a França e a Espanha. Tamanho sucesso não poupou a série de receber críticas de pesquisadores/as e ativistas indígenas, os quais apontaram que a produção, baseada no folclore brasileiro, não contratou consultores/as que conheçam melhor a cultura e os mitos originários da tradição indígena brasileira. Ao abordar personagens folclóricos como a Cuca, o Saci, o Curupira e a sereia Iara, a série foi criticada por não escalar atores/atrizes que de fato possuíssem origem indígena para os papéis principais (CAPOBIANCO, 2021).

A proposta de discutir sobre a apropriação cultural indígena no ambiente escolar não é nova, mas pertinente. Deste modo, antes de avançarmos na discussão sobre o assunto, é necessário compreender o conceito do termo e, paralelamente, descrever de que forma episódios de apropriação cultural indígena ocorrem no contexto escolar. Para tanto, utilizar-se-á os estudos de Vygotski (1989) — em uma vertente de apropriação cultural por meio dos signos funcionais da sociedade — e a pesquisa do babalorixá e doutor em antropolo-gia Rodney William (2019), a qual culminou na obra “Apropriação Cultural da coleção Feminismos Plurais”, coordenada pela filósofa Djamila Ribeiro.

De acordo com Vygotsky (1989), homens e mulheres naturalmente se apropriam e internalizam a cultura. Nesse contexto de internalização, os signos dialeticamente transformam o funcionamento mental ao constituir as funções psíquicas superiores e nelas promovem alterações qualitativas. Assim, o psicólogo bielorrusso acreditava que, em geral, o contato com a produção cultural é capaz de trazer inúmeras possibilidades de desenvolvimento dessas funções e de avanço da consciência humana.

Em um nível histórico-cultural, ao aprender, o indivíduo não está isolado, mas sempre envolvido com outras pessoas em um processo intersubjetivo44 que, segundo Vygotsky (1989), é constituído pelo sujeito que aprende, por aquele/a que ensina e pela própria relação entre ambos/as. Logo, a aprendizagem não é efetivada somente na presença do sujeito que ensina — neste caso, o/a profes-sor/a; ela pode ser constituída também por objetos culturais, situações sociais

44 Braten (1998, apud Nogueira e Moura, 2007, p. 129) ressalta que a intersubjetividade pode assumir três significados distintos: como senso de “comunhão”, estabelecido a partir do enga-jamento conjunto de pessoas, que mutuamente se ajustam e sintonizam expressões e estados afetivos; como envolvendo comportamentos de atenção conjunta (sujeito-sujeito-objeto) e domínios compartilhados de conversação linguística; e como compreensão da comunicação mediada por (meta) representações.

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e, principalmente, pela linguagem. Esses aspectos estão carregados de signifi-cados, o que os tornam signos fundamentais para a internalização da cultura.

Desse modo, não é somente a presença e/ou o discurso do/a docente que transmite conhecimento cultural e promove consciência humana, uma vez que objetos culturais e situações também formam cidadãos/ãs críticos/as quanto à cultura internalizada em seu processo de aprendizagem e que, por vezes, é externa à cultura em que se está inserido/a. No Dia do Índio, um cocar que o/a estudante coloca na cabeça ou um grito indígena que ele/a emite não são um mero objeto ou episódio social, mas, para além de símbolos de resistência, fatores culturais que, se não trabalhados com criticidade e responsabilidade, podem ser esvaziados quanto aos seus significados.

Como ressalta Vygotsky (1989), é produto dessa dinâmica de valorização cultural a importância dos mecanismos externos (sociais) na constituição dos mecanismos internos do indivíduo. Esses mecanismos são responsáveis pelo alicerce do processo de apropriação da cultura e que apontam para a natureza social, histórica e cultural dos processos mentais superiores dos/as alunos/as, os quais são constituídos na dinâmica da interação do homem com seu mundo cultural. Em suma, a chamada apropriação da cultura acontece de forma inten-sificadora: o sujeito transforma as atividades externas ao seu organismo e as interações com o outro em atividades internas e intrapsicológicas45.

Assim, o/a aluno/a não-indígena, ao fazer uso de adereços que não fazem parte propriamente de sua cultura, cria uma espécie de interação com o/a outro/a que, independentemente de qual seja a intenção, termina por res-significá-lo de seu conceito original. A saber: em sala de aula, por vezes, no Dia do Índio, os/as estudantes são incentivados/as a produzirem uma espécie de “colar indígena”, com miçangas, barbantes, recortes de canudos de plástico e afins. Nessa situação, é interessante propor o seguinte questionamento: o/a discente sabe qual é o real significado daquele objeto para o/a protagonista da cultura de onde ele foi retirado? Afinal, há um ditado indígena que pondera que “se quiseres conhecer um índio, olhe o seu colar”, uma vez que em seu pescoço está a exibição de seus títulos, habilidades, capacidade e formação ao longo de sua vida como membro de uma sociedade. Logo, não é um objeto isolado de significado (KARIRI-XOCÓ, 2013).

Para William (2019), de uma cultura para outra, tudo o que é considerado um empréstimo acabará sendo reinterpretado e poderá mudar em forma, pro-pósito ou significado. Quando um grupo excluído ou marginalizado é forçado a absorver as características culturais de quem o domina para a sobrevivência, não há posse cultural, com o ocorreu no período da colonização, especialmente na escravidão. A apropriação cultural é exatamente o oposto. O autor destaca

45 Diz respeito ao plano de signos internos ao sujeito (VYGOTSKY, 1989).

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que a noção de apropriação cultural vai muito além de definir uma lista com o que pode ou não ser usado.

William (2019) destaca que desvendar uma cultura diferente não leva ninguém a obter propriedade sobre ela. O simples fato de conhecer a cultura alheia, mesmo que em profundidade, não torna o sujeito um membro dela. Cultura pressupõe pertencimento e, portanto, não pode ser considerada domí-nio de todos/as. Desse modo, deve haver um distanciamento, um limite entre a noção de se familiarizar/pesquisar/defender causas indígenas e se sentir parte de uma cultura diferente da que se é inserido socialmente. No caso da docência, o/a professor/a não se torna detentor/a de conhecimentos indígenas, uma espécie de cacique da selva de pedra, porque se especializou e leu livros sobre a temática.

Fazer uso de manifestações sociais e culturais indígenas, como a música, a dança, a culinária, a linguagem, os costumes, os trajes e os acessórios, é pro-mover a descontextualização cultural de tal povo. Afinal, como problematiza William (2019, p. 48), “mudar sentidos, depurar, esvaziar, é a ‘lógica’ da apro-priação cultural”. Diante do exposto, pode-se, então, haver o questionamento: “mas o Brasil não é um país de muitos e todos?”. Surge, consequentemente, o mito da democracia racial46, o qual propaga a falsa ideia de que “somos todos iguais” e a errônea noção de “nosso”: nosso país, nossa crença, nosso povo, nossos direitos e afins. Logo, há a contribuição para a execução da apropria-ção cultural, em decorrência da exploração de elementos de uma cultura por indivíduos que efetivamente não pertencem a ela e promovem a aculturação pela crença de que “é tudo nosso”.

Como expresso anteriormente, a discussão acerca da apropriação de cultura não é pautada em o que pode ou não ser usado, mas sim, sobre quais critérios, cuidado, respeito e responsabilidade se faz esse uso. Se trata, portanto, de não promover a desvalorização ou esvaziamento simbólico de uma cultura, o que pode, significativamente, comprometer a existência de grupos sociais e seus membros. Em um ambiente escolar, atitudes como as tratadas aqui podem acontecer costumeiramente e o intuito não é debater os erros ou acertos dessa questão, mas atribuir de que forma tal tema pode ser pedagógico e didático.

Destarte, a seguir, propõe-se uma descrição de pontos importantes para o trabalho acerca da temática indígena em sala de aula, perpassando pela apropriação cultural indígena, por meio do respaldo da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Delimitou-se a BNCC em seus Anos Iniciais do Ensino Fundamental (1º ao 5º ano), considerando essa fase de ensino como a

46 Mito criado por Gilberto Freyre em “Casa Grande & Senzala” (1933), de que o Brasil é uma democracia racial. Ganhou, por meio dessa obra, sistematização e status científico, com base nos critérios de cientificidade da época. Visava estabelecer uma ordem de direito livre e minimamente igualitária com base nas raças.

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mais propícia para um trabalho sobre a temática que aborde o uso de elementos indígenas, principalmente no chamado Dia do Índio.

BNCC E AS ORIENTAÇÃO QUANTO À TEMÁTICA “INDÍGENA” NOS ANOS INICIAIS

Dentre diversos objetivos políticos, pedagógicos e metodológicos que a criação da BNCC possa transparecer, assume-se a ideia de que sua origem está centrada na pretensão de não ignorar áreas específicas da escola, os seus pensamentos, conceitos e formas de ensino, com o intuito de educar de acordo com a realidade dos/as alunos/as. Sua terceira versão teve início em 2016, como parte de um processo conjunto e só foi aprovada e publicada em 2018, após muitos debates e diálogos. Atualmente, o Brasil tem um currículo nacional comum relativamente estruturado que cobre desde as séries do Ensino Fun-damental até o Ensino Médio.

A temática indígena trabalhada na BNCC foi alvo de críticas desde a publicação do documento. Quanto à educação indígena, por exemplo, a Base é vista por Silva (2019) como um entrave para a construção de um paradigma educacional próprio às escolas indígenas, uma vez que foi construída sem a participação das comunidades originárias e, consequentemente, é incapaz de refletir seus anseios e propostas curriculares.

Em consonância a essa criticidade, Nazareno e Araújo (2018, p. 56) pontuam:

A BNCC revisada deixa de lado, de fato, as conquistas dos povos indígenas brasileiros no campo da educação nas últimas décadas. Tais conquistas fazem parte do repertório das universidades brasileiras que deba-tem a questão. Os cursos de Educação Intercultural Indígena, organizados nas duas últimas décadas em atendimento a legislação vigente, é um dos exemplos, e contribui para a construção de uma nova base epistê-mica responsável, entre outras coisas, pela formulação e proposição de novas políticas públicas de educação para a diversidade. Ignorar a quantidade e a qualidade da produção intelectual dos próprios indígenas acerca de seus processos próprios de aprendizagem é, sem nenhuma dúvida, um desrespeito e acima de tudo, um absurdo inominável.

A queixa citada pelas autoras não condiz com o que a própria BNCC traz em sua introdução, em uma espécie de pacto interfederativo para implementa-ção da base. Contextualizando o cenário brasileiro como aquele acentuado pela

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diversidade cultural e profundas desigualdades sociais, o documento destaca que os sistemas e as redes de ensino devem construir currículos propostas pedagógicas que considerem as necessidades, as possibilidades e os interesses de cada estudante, pontuando suas identidades linguísticas, étnicas e culturais. Em uma breve análise historiográfica, o documento cita, inclusive, que ao longo da história o Brasil naturalizou desigualdades educacionais e promoveu exclusões que marginalizaram grupos. É exatamente nesse ponto que o termo “indígena” é citado pela primeira vez como povos originários, cuja identidade própria carece de equidade na escola.

No que tange aos capítulos destinados aos Anos Iniciais do Ensino Fun-damental, não há qualquer menção ao termo “indígena” entre as habilidades e objetos de conhecimento do componente curricular Língua Portuguesa. O componente Arte, por sua vez, traz uma única habilidade (EF15AR25) que propõe o conhecimento e a valorização do patrimônio cultural, material e imaterial, de culturas diversas e, nesse caso, inclui a matriz indígena.

Na introdução do componente curricular Educação Física, o documento trata da relevância em trabalhar didaticamente jogos e brincadeiras que estejam presentes na memória dos “povos indígenas e das comunidades tradicionais, que trazem consigo formas de conviver, oportunizando o reconhecimento de seus valores e formas de viver em diferentes contextos ambientais e sociocul-turais brasileiros” (BRASIL, 2018, p. 215).

Inclusive, há nesse campo de estudo os objetos de conhecimento “Brin-cadeiras e jogos de matriz indígena e africana”, “Danças de matriz indígena e africana” e “Lutas de matriz indígena e africana” para estudantes do 3° ao 5° Ano. Assim, percebe-se que a utilização do termo “oportunizando o reconheci-mento de seus valores” pode estar intimamente direcionado à não-apropriação da cultura, uma vez que busca legitimar a tradição do povo originário.

Entre as habilidades propostas, destaca-se:

(EF35EF01) Experimentar e fruir brincadeiras e jogos populares do Brasil e do mundo, incluindo aqueles de matriz indígena e africana, e recriá-los, valorizando a importância desse patrimônio histórico cultural.

(EF35EF02) Planejar e utilizar estratégias para pos-sibilitar a participação segura de todos os alunos em brincadeiras e jogos populares do Brasil e de matriz indígena e africana.

(EF35EF03) Descrever, por meio de múltiplas lingua-gens (corporal, oral, escrita, audiovisual), as brin-cadeiras e os jogos populares do Brasil e de matriz indígena e africana, explicando suas características e

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Língua(gens), Literaturas, Culturas, Identidades e Direitos Indígenas no Brasil

a importância desse patrimônio histórico cultural na preservação das diferentes culturas.

(EF35EF04) Recriar, individual e coletivamente, e expe-rimentar, na escola e fora dela, brincadeiras e jogos populares do Brasil e do mundo, incluindo aqueles de matriz indígena e africana, e demais práticas corpo-rais tematizadas na escola, adequando-as aos espaços públicos disponíveis.

(EF35EF09) Experimentar, recriar e fruir danças popu-lares do Brasil e do mundo e danças de matriz indígena e africana, valorizando e respeitando os diferentes sentidos e significados dessas danças em suas culturas de origem.

(EF35EF10) Comparar e identificar os elementos cons-titutivos comuns e diferentes (ritmo, espaço, gestos) em danças populares do Brasil e do mundo e danças de matriz indígena e africana.

(EF35EF11) Formular e utilizar estratégias para a exe-cução de elementos constitutivos das danças populares do Brasil e do mundo, e das danças de matriz indígena e africana. (BRASIL, 2018, p. 229)

Há ainda habilidades (EF35EF13; EF35EF14; EF35EF15) que fazem menção às lutas indígenas, recriando, inclusive, a situação social no contexto comunitá-rio. Embora as habilidades peçam respeito ao/à colega durante a execução das atividades, reconhecendo a diferença entre briga e luta indígena, o documento não propõe nenhuma mediação de conhecimento sobre o que é proposto. Menciona-se, então, William (2019), quando reafirma que a vontade de fazer uso de objetos e símbolos da cultura alheia não pode se sobrepor à história e aos significados que esses elementos possuem para seus grupos de origem.

No componente curricular Ciências, mais especificamente na unidade temática Terra e Universo, além de incentivar a compreensão de características da Terra, do Sol, da Lua e de outros corpos celestes, atenta-se para a exploração desses elementos, o que permite, entre outras coisas, uma maior valorização de outras formas de conceber o mundo e, nesse caso, é válido descrever aos/às estudantes os conhecimentos próprios dos povos indígenas originários. Imprescindível e extremamente didático na teoria da BNCC, essa “valorização” no componente Ciências não ultrapassa da introdução, considerando que não há nenhuma habilidade que faça menção a teorias ou mitos indígenas sobre a criação, por exemplo, do planeta Terra e seus elementos.

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Tayson Ribeiro Teles (org.)

Em Ciências Humanas, em breve análise do componente curricular Geografia, a introdução narra que é imprescindível que os/as estudantes sejam capazes de identificar a presença e a sociodiversidade de culturas indígenas, entre outras comunidades tradicionais, a fim de compreender suas caracte-rísticas socioculturais e suas territorialidades. A finalidade é que os/as alunos/as, por meio da identificação das comunidades originárias, sejam capazes de diferenciar os lugares de vivência e compreender a produção das paisagens, bem como a inter-relação entre elas. Todavia, entre as habilidades destinadas aos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, há somente duas habilidades voltadas aos preceitos indígenas e ambas para o 4º Ano.

(EF04GE01) Selecionar, em seus lugares de vivência e em suas histórias familiares e/ou da comunidade, elementos de distintas culturas (indígenas, afro-bra-sileiras, de outras regiões do país, latino-americanas, europeias, asiáticas etc.), valorizando o que é próprio em cada uma delas e sua contribuição para a formação da cultura local, regional e brasileira.

(EF04GE06) Identificar e descrever territórios étnico--culturais existentes no Brasil, tais como terras indíge-nas e de comunidades remanescentes de quilombos, reconhecendo a legitimidade da demarcação desses territórios.

Vale destacar que um plano de aula interdisciplinar entre os componentes curriculares Educação Física e Geografia contemplam habilidades que con-tradizem a ideia de apropriação cultural. A saber: ao passo que as habilidades de Educação Física incentivam o uso da prática dos conhecimentos indígenas por meio da luta, as habilidades de Geografia fazem menção à valorização do que é próprio da cultura, divulgando de quais formas elementos como a luta podem contribuir para a formação da cultura nacional.

Em História, há destaque para as temáticas voltadas à diversidade cultural e para as múltiplas configurações identitárias. Na introdução do componente, por exemplo, há citação sobre abordagens relacionadas à história dos povos indí-genas originários e africanos. A inclusão da temática é amparada por legislação vigente, como descreve a própria BNCC, enfatizando que deve-se ultrapassar o limite puramente retórico e permitir que haja no ambiente escolar a defesa dessas populações como artífices da própria história do Brasil.

No 3º Ano, na unidade temática “As pessoas e os grupos que compõem a cidade e o município”, há uma única habilidade (EF03HI03) que faz referência direta à temática indígena, levando os/as alunos/as a identificarem e compararem o local em que vivem com diferentes grupos sociais e culturais, com especial

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Língua(gens), Literaturas, Culturas, Identidades e Direitos Indígenas no Brasil

destaque para as culturas africanas, indígenas e de migrantes. Posteriormente, já no 4º Ano, há somente o objeto de conhecimento “Os processos migratórios para a formação do Brasil: os grupos indígenas, a presença portuguesa e a diáspora forçada dos africanos” (BRASIL, 2018, p. 412) e nenhuma habilidade específica. Enquanto no 5º Ano, há uma singular habilidade (EF05HI08), res-ponsável pela orientação de “Identificar formas de marcação da passagem do tempo em distintas sociedades, incluindo os povos indígenas originários e os povos africanos” (BRASIL, 2018, p. 415).

No prefácio do componente curricular Ensino Religioso, o/a leitor/a é levado/a a crer que a pauta é voltada para alteridades, identidades, conhecimento de práticas espirituais e ritualísticas, espaços e territórios sagrados, crenças religiosas e, além de diversos outros aspectos, mitos. Todavia, o sagrado indí-gena só é retratado no 5º Ano e em uma única habilidade (EF05ER05), a qual salienta a necessidade de identificar os elementos da tradição oral nas culturas e religiosidades indígenas, entre outras, como afro-brasileiras e ciganas. Essa espécie de silenciamento de elementos da espiritualidade indígena pode oca-sionar a apropriação cultural ou o uso insignificante de tais elementos por parte de uma cultura considerada dominante. Por exemplo, alunos/as podem fazer uso de amuletos em colares e chaveiros, sem se darem conta do simbolismo dado aos objetos por parte de povos originários.

Nos componentes curriculares Língua Inglesa e Matemática não foram encontradas referências ao termo “indígena”, o que causa indagações quanto a aplicabilidade da Lei 11.645/2008, a qual estabelece as diretrizes e bases da educação nacional e que orienta no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É importante frisar que o intuito deste trabalho foi descrever as habili-dades, competências e objetos de conhecimento propostos na Base Nacional Comum Curricular que estejam voltados para a temática indígena, com inte-resse em divulgar as formas com que a cultura indígena pode ser trabalhada no ambiente escolar sem que o/a docente caia nas armadilhas da apropriação cultural. Interessa evidenciar, porém, que a temática pode ser trabalhada tam-bém em elementos que a BNCC cita, como os termos cultura, étnico-racial, étni-co-cultural, ancestralidade, povos originários, pluriétnico, vivências culturais, pluralidade, diversidade de grupos sociais, diversidade cultural, entre outros.

Deste modo, foram elencados aspectos indígenas na BNCC com a fina-lidade de não causar ainda mais uma espécie de epistemicídio, definido por Sousa Santos (1997) como o extermínio do conhecimento do outro, mediante a definição do que é válido ou não obter conhecimento a respeito. Logo, defen-de-se que é válido obter conhecimento sobre a cultura dos povos indígenas,

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legitimando seus saberes, crenças, terras, identidades e culturas. A obtenção de conhecimento com respeito, atenção e responsabilidade é uma das metodologias capazes de tornar o/a docente atento/a para não promover a apropriação cultural.

Assim, considerando a nação brasileira como um conjunto de sujeitos inseridos em um sistema de racismo estrutural, a apropriação cultural é um forte elemento para a propagação do racismo, e a educação pode ser uma combatente na luta antirracista. É preciso que haja vontade política e intencionalidade por parte de alunos/as e professores/as, indo além do material proposto na Base Nacional e repensando práticas como “brincar de índio” para promover, de fato, uma educação de equidade.

REFERÊNCIAS

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D’ÉRCOLE, Isabella. Paolla Oliveira é criticada por fantasia de índia. Revista Cláudia: Grupo Abril, 2018. Disponível em: https://claudia.abril.com.br/moda/fantasias-erradas-para-o-carnaval/. Acesso em: 16 mar. 2021.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Record, 1933.

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Língua(gens), Literaturas, Culturas, Identidades e Direitos Indígenas no Brasil

KARIRI-XOCÓ, Nhenety. Colar do índio. Blog Nhenety Kariri-Xoco, 2013. Dispo-nível em: http://kxnhenety.blogspot.com/2013/04/colar-do-indio.html. Acesso em: 19 mar. 2021.

NAZARENO, Elias; ARAÚJO, Ordália Cristina Gonçalves. História e diversidade cultural indígena na Base Nacional Comum Curricular (2015-2017). Cidade de Goiás: Revista Temporis[ação], 2018.

SILVA, Renan Costa da. Aprenda um pouco sobre a educação indígena nos dias de hoje. MAXI EDUCA, 2019. Disponível em: https://blog.maxieduca.com.br/edu-cacao-indigena-escolar/. Acesso em: 15 mar. 2019.

SOUSA SANTOS, Boaventura de. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-mo-dernidade. São Palo: Cortez, 1997.

VYGOTSKY, Lev Semionovitch. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores (J. Cipolla Netto et al., Trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1989.

WILLIAM, Rodney. Apropriação cultural. São Paulo: Pólen, 2019.

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O DESENVOLVIMENTO DE METODOLOGIAS ATIVAS NO ENSINO DE ADMINISTRAÇÃO PARA OS INDÍGENAS DO ESTADO DO ACRE

Müller Padilha Gonçalves47

Dion Alves de Oliveira48

Simone de Freitas Ferreira Alves49

INTRODUÇÃO

As metodologias ativas na educação têm um papel importante para o desempenho dos estudantes. Tendo como premissa o aluno e sua inserção no conhecimento prático, permitem uma conexão mais dinâmica entre teoria e prática. Sendo assim, o ensino, a pesquisa e a extensão permitem ao discente a proatividade na construção de competência essenciais para o mundo científico, quando eivados de metodologias ativas.

As metodologias ativas na educação visam atender as diversidades, levando-se em consideração o multiculturalismo das comunidades do Brasil. Mas, mesmo com as diversidades culturais que o Brasil tem, é de se esperar que todos tenham acesso à educação profissional e tecnológica de qualidade em todo o território nacional. Isso é possível por meio do acesso à informação que está fortemente presente hoje.

O foco do presente estudo é a região norte, mais especificamente o Estado do Acre, que possui em sua composição populacional migrante nordes-tinos, sulista e paulistas, bem como imigrantes de países como Bolívia, Peru, Venezuela e Haiti, sendo formado, também, por indígenas, que compreende aproximadamente 16 mil pessoas. Essas comunidades indígenas são predomi-nantes no interior do Estado e é por meio do acesso à tecnologia que é possível o compartilhamento de conhecimentos e experiencias tanto na comunidade acadêmica, quanto nas comunidades indígenas.

Existem pesquisas das metodologias ativas no processo de ensino em administração para as etnias indígenas do estado do Acre? Pode-se observar que as comunidades indígenas presentes no interior do estado do Acre desenvolvem a identificação da cultura e ensino voltado ao aprendizado e este conhecimento

47 Especialista em Docência da Administração (FCV). Docente do Ensino Básico, Tecnológico (IFAC). CV: http://lattes.cnpq.br/6984534888323401 48 Mestrando em Administração (UNIVALI). Docente do Ensino Básico, Tecnológico (IFAC). CV: http://lattes.cnpq.br/4360706435025584 49 MBA Gestão Administrativa e Governanças. Gestora de Políticas Públicas (CBMAC).CV: http://lattes.cnpq.br/1980512039323837

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fica retido na própria comunidade. Isso é perceptível ao analisar que, embora as metodologias ativas coexistam na comunidade acadêmica e indígena, elas não se interligam. As políticas públicas implicam que as instituições de ensino devem ter o papel de qualificar, em igualdades de condições, os cidadãos para a sociedade.

Aduz a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88):

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desen-volvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguin-tes princípios:

I - Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II - Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

........

VII - garantia de padrão de qualidade (BRASIL, 1988).

Visto que esta pesquisa tem o objetivo basilar de verificar e identificar nas bases de dados acadêmicos, informações sobre a temática é a metodologias ativas no ensino de Administração para as etnias do Estado do Acre. E optou por pesquisa bibliográfica, com análise de conteúdo nas bases de dados CAPES, SPELL, SCIELO E GOOGLE ACADÊMIC, utilizando a metodologia qualitativa, que fornece base à pesquisa e aos pesquisadores maior flexibilidade na inte-pretação dos dados do estudo, no desenvolvimento de metodologias ativas no ensino de administração para as comunidades indígenas do Estado do Acre.

SURGIMENTO DAS METODOLOGIAS ATIVAS

As Metodologias Ativas destacaram-se como alternativa de transição da pedagógica técnica para a pratica, em meados dos anos 1980, onde a transmis-são de conteúdo do professor para o aluno era tida como formas didáticas da educação, que desenvolve no discente o intuito de “mais ativo e proativo, comu-nicativo” e pesquisador (MOTA; ROSA, 2018; DO NASCIMENTO; FEITOSA, 2020).

Nessa direção:

As metodologias ativas de ensino e aprendizagem são baseadas em estratégias de ensino, fundamentadas

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Tayson Ribeiro Teles (org.)

na concepção pedagógica crítico-reflexiva, que per-mitem uma leitura e intervenção sobre a realidade, favorecendo a interação entre os diversos atores e valorizando a construção coletiva do conhecimento (Cotta et al., 2012, p. 788).

Com o passar do tempo, houve transição pedagógica desses métodos tradicionais que se embasavam na transmissão contínua de informações e conteúdos do professor ao aluno, para uma metodologia baseada em atividades práticas, desafios, solução de problemas, jogos/gamification, onde cada aluno aprende em determinado ritmo, em grupos e com trabalhos reais do dia a dia (FREIRE, 1996; BERBEL, 2011; MONTEIRO; CITTADIN, 2020).

Nesse prisma:

Alguns componentes são fundamentais para o sucesso da aprendizagem: a criação de desafios, atividades, jogos que realmente trazem as competências neces-sárias para cada etapa, que solicitam informações pertinentes, que oferecem recompensas estimulantes, que combinam percursos pessoais com participação significativa em grupos, que se inserem em plataformas adaptativas, que reconhecem cada aluno e ao mesmo tempo aprendem com a interação, tudo isso utilizando as tecnologias adequadas (MORÁN, 2015, p. 18).

METODOLOGIAS ATIVAS, DA TEORIA À PRÁTICA

Segundo Morán (2015), os métodos de ensino tradicionais deram evi-dencias de que eram grandes as diferenças de acesso à informação e mais difíceis os aprendizados, mas com o avanço da tecnologia e o acesso à internet, este cenário mudou, pois atualmente pode-se aprender em qualquer lugar e qualquer hora e com várias pessoas e professores diferentes, isso é, porém, complexo, pois não se tem modelos prévios de sucesso estabelecidos para uma educação formal e flexível na sociedade atual conectada (DE ALMEIDA; VALENTE, 2012; MORÁN, 2015).

Nesse rumo:

A autonomia do aluno, que é um dos princípios teó-ricos da metodologia ativa, é de grande importância no processo pedagógico, tendo a pesquisa como um considerável catalisador do aprendizado, facilitando o desenvolvimento a autonomia intelectual e de uma consciência crítica no aluno. Com esse desenvolvi-mento, o ele consegue construir seu conhecimento

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em vez de adquirir com o professor, de forma passiva (DO NASCIMENTO, 2020, p. 5).

Outrossim, os autores Monteiro e Cittain (2020) afirmam que as metodolo-gias tradicionais no processo de ensino-aprendizagem não vêm dando conta de desenvolver competências necessárias de atuação profissional, como atividades de criatividade, flexibilidade, trabalho em equipe, autocontrole, comunicação, capacidade de análise crítica e capacidade de tomada de decisões (BARBOSA; MOURA, 2013; MONTEIRO; CITTADIN, 2020).

Nesse foco, a Metodologia Ativa desenvolve a análise crítica e reflexiva no aluno, pois:

[...] as metodologias ativas apresentam importantes recursos para a formação crítica e reflexiva do aluno através do processo de ensino e aprendizagem, onde acontece a interação, a realização de hipóteses e a construção do conhecimento de forma ativa ao invés de um aprendizado passivo, portanto, a aprendizagem significativa acontece quando o aluno interage com o assunto em estudo (DO NASCIMENTO, 2020, p. 3).

Nesse sentido, são inúmeras as contribuições de metodologias ativas para o processo de ensino-aprendizagem, podendo ser aplicadas nas mais diversas áreas do ensino, inclusive no processo de ensino em Administração. Podem ser utilizadas durante o ensino de administração, entre outras metodologias de aprendizagem, a Baseada em Problema, a Metodologia da Problematização como o Arco de Maguerez, o Ensino Híbrido, a Aprendizagem por Pares e o Estudo de Caso (MONTEIRO; CITTADIN, 2020).

Nesse contexto:

A utilização dessas metodologias pode favorecer a autonomia do educando, despertando a curiosidade, estimulando tomadas de decisões individuais e cole-tivas, advindos das atividades essenciais da prática social e em contextos do estudante. Dentre umas das Metodologias Ativas utilizadas está a problematização, que tem como objetivo instigar o estudante mediante problemas, pois assim ele tem a possibilidade de exa-minar, refletir, posicionar-se de forma crítica (BORGES; ALENCAR, 2014, p. 120).

Já o ensino de Administração no Brasil teve início pela administração pública, além de sofrer grande influência do tempo do Império, foi fortemente influenciado pelo conhecimento técnico norte americano (FISCHER, 1984; SILVA; FICHER, 2008). Segundo Silva (2007), apesar da evolução rápida do

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ensino de Administração na sociedade brasileira, é notório e visível a influência norte-americana tanto no currículo como também nas metodologias de ensino empregadas para a formação básica do curso de Administração.

Ademais, o ensino de administração vem sendo difundido em todo Brasil, pois ofertado, conforme o Ministério da Educação, em mais de 1.500 instituições do país.

Tem-se que:

Os cursos de Administração detiveram o maior número de ingressantes anuais, com cerca de 300 mil novos alunos matriculados. Esse valor representa aproxi-madamente 11% do total de matrículas efetuadas em instituições de Ensino Superior no Brasil. Ao todo, o número de profissionais com título de bacharelado ou com cursos superiores específicos nas diversas áreas da Administração supera os 6,5 milhões (BOAVENTURA et al.,2018, p. 2).

No entanto, quando se trata da utilização de Metodologias Ativas de ensino para comunidades tradicionais indígenas, os trabalhos são escassos no mundo acadêmico científico. (DANTAS, 2020; SOUZA et al., 2020).

Nesse diapasão:

Diante da ressignificação da escola para muitas comuni-dades étnicas, profundas problemáticas ainda desafiam educadores e pesquisadores do campo, no sentido de melhor compreender e desenvolver os processos educa-cionais de forma adequada às comunidades indígenas. Entre estas questões, destacamos a inclusão das escolas indígenas nos sistemas oficiais de ensino em todo o país que é relativamente recente e ainda se encontra em difícil processo de construção, enfrentando problemas e buscando soluções condizentes com o direito cons-titucional de operar uma educação escolar específica e diferenciada (DA SILVA, 2020, p. 50).

EDUCAÇÃO PARA INDÍGENAS NO BRASIL

A ideia de escolarização indígena, de acordo com Meira (2020), trata-se de uma ligação das comunidades indígenas com as não indígenas, pois as escolas foram pensadas dentro do contexto urbano industrial, como as instituições disciplinadoras e capitalistas, de modo a ordenar que a comunidade indígena se adequasse ao meio.

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Língua(gens), Literaturas, Culturas, Identidades e Direitos Indígenas no Brasil

Sabe-se que:

Ao introduzir a educação escolar aos indígenas, o objetivo era controlar estes povos adaptando-os as ideologias dominantes. Mas, após anos de luta, os movimentos indígenas se apropriam da escola, com o objetivo de resignar a mesma, isso ocorreu através de iniciativa dos próprios indígenas. A partir da década de 1980, cresce a reivindicação em busca de uma definição e autogestão dos processos de educação formal voltado a essas comunidades (MEIRA, 2020, p. 4).

Historicamente, no Brasil, as escolas para comunidades indígenas foram desenvolvidas em missões das igrejas, nos processos de catequização, a partir da chegada dos portugueses ao território brasileiro durante o período colonial. Após esse período, na atualidade, os direitos dos povos indígenas solidificaram-se com a garantias da CRFB/88, que em seu bojo garante a reprodução cultural.

Nesse caminhar:

O reconhecimento dos direitos dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam, para garantirem sua reprodução e perpetuação física e cultural é um dos direitos consagrados na Constituição Federal, promul-gada em 1988, que também propõe garantias aos povos indígenas de manterem suas identidades diferenciadas, preservando suas línguas, culturas, tradições, modos de ser e de pensar (DA SILVA, 2020, p. 50).

Ressalta-se que a escola, enquanto instituição, promove uma integração alheia às tradições das etnias indígenas, pois existe a diferença entre Educação Indígena e Educação Escolar Indígena. Enquanto a Educação Indígena, é trata dos próprios processos de produção e transmissão dos conhecimentos das próprias etnias indígenas, a Educação Escolar Indígena trata-se do conjunto de processos de produção e transmissão dos conhecimentos não indígenas e indígenas por meio da escola (MEIRA, 2020).

METODOLOGIAS ATIVAS NAS COMUNIDADES INDÍGENAS

Neste sentido, a aplicabilidade das Metodologias Ativas durante o processo de ensino-aprendizagem para comunidades indígenas torna-se um contexto inovador, pois nos processos produtivos e aspectos administrativos, além de promover a difusão do conhecimento, da igualdade social e da interação multicultural, preserva a identidade e autonomia dos saberes existentes das comunidades indígenas.

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Nesse fluxo:

Professores na sua disciplina podem organizar com os alunos no mínimo um projeto importante na sua disciplina, que integre os principais assuntos da matéria e que utilize pesquisa, entrevistas, narrativas, jogos como parte importante do processo. É importante que os projetos estejam ligados à vida dos alunos, às suas motivações profundas, que o professor saiba gerenciar essas atividades, envolvendo-os, negociando com eles as melhores formas de realizar o projeto, valorizando cada etapa e principalmente a apresentação e a publi-cação em um lugar virtual visível do ambiente virtual para além do grupo e da classe (MORÁN, 2015, p. 22).

No contexto acreano, as etnias indígenas no Estado do Acre, possuem suas economias baseada na produção e cultivo de banana, macaxeira, milho, abacaxi, como também, criação de animais como galinha, porco, peixe, gado, e produção de artesanatos, turismo ecológico e turismo religioso (SIVIERO et al. 2019).

É consabido que:

Ao longo do tempo a produção agrícola de mandioca e feijão substituiu a borracha como fonte de renda, sendo as áreas de cultivo localizadas nas margens de rios. Simultaneamente a pecuária na Reserva Extrativista do Alto Juruá avançou constituindo a segunda fonte principal de renda seguida de agricultura, trabalho assalariado, pensões e programas de transferência de renda como bolsa família superando a renda das atividades do setor primário (SIVIERO; TEIXEIRA; DOS SANTOS, 2019, p. 348).

Esses processos de produção dos produtos são mantidos por métodos e técnicas próprias das suas comunidades indígenas, podendo ocorrer a transmis-são de métodos e técnicas, mediante o ensino-aprendizagem de Administração, que contribuam para aperfeiçoar seus processos produtivos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Firma-se, em primeiro momento, que não foi encontrado, dentro dos critérios de pesquisa deste trabalho, qualquer artigo ou bibliografia que explore ou demonstre a aplicabilidade desta temática: Metodologias ativas para o ensino de Administração para etnias indígenas no Estado do Acre.

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Língua(gens), Literaturas, Culturas, Identidades e Direitos Indígenas no Brasil

Vejamos alguns matérias encontrados: Tabela 1. Artigos encontrados nas bases de dados acadêmicos CAPES, SPELL,

SCIELO E GOOGLE ACADÊMICO.

Título Autores Objetivo Ano

Metodologias Ativas, com foco nos pro-cessos de ensino e aprendizagem

(NASCIMENTO; FEITSA, 2020)

Analisar as publicações a res-peito do tema das chamadas Metodologias Ativas, com foco nos Processos de Ensino e Aprendizagem, através de uma pesquisa bibliográfica realizada por meio de dados encontrados no portal de periódicos, no período de 2017 a 2020

2020

Metodologias Ativas de ensinoaprendizagem naconstrução dos sabe-res contábeis

(JANUARIO JOSÉ; ANDREIA, 2020)

I nve s t i ga r o u s o d e Metodologias Ativas de Ensino-Aprendizagem nas disciplinas que compõem a área Contabilidade de Gestão do Curso de Ciências Contábeis da UNESC.

2020

O que é ser um aca-dêmico indígena de administração?

(KLICHOWSKI, et al. 2020)

Identificar e analisar quais as compreensões, expectativas e os dilemas presentes nos percursosformativos dos estudantes indígenas dos cursos de administração das universi-dades estaduais paranaenses

2020

Educação Escolar Indígena Intercultural e O Ensino de Geografia

(MEIRA, 2020)

Trazer uma análise referente à educação escolar indígena no que tange ao ensino de geografia como contribuição para uma Educação Escolar Intercultural.

2020

Percurso formativo de professores que ensinam Matemática em escolas indígenas do Acre

(DA COSTA SILVA, et al. 2018)

Compreender sobre o pro-cesso de solidificação de uma educação intercultural e diferenciada, apresentando reflexões que emergiram da experiência na participação do processo formativo de professores indígenas que ensinam matemática

2018

Fonte: Elaborado pelos autores.

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Tayson Ribeiro Teles (org.)

Com isso, destaca-se que, após análise da amostra extraída na pesquisa, encontrou-se na educação escolar indígena trabalhos nas áreas de Geografia, Matemática, Contabilidade e multidisciplinar em nível de graduação, mas em Administração o tema foi abordado apenas no Estado do Pará.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de ensino-aprendizagem de Administração para comuni-dades indígenas torna-se um fator importante no ensino do conhecimento técnico por meio da Educação Escolar Indígena, visando contribuir para o aperfeiçoamento de seus processos produtivos e aspectos administrativos, além de contribuir nas áreas do comércio, turismo e artesanato. Dessa forma, as Metodologias Ativas podem ser aplicadas no processo de Ensino-Aprendiza-gem no ensino de Administração, evidenciando os alunos indígenas como foco principal desse processo, tendo em vista que na utilização dessas metodologias os alunos são postos a ter experiências de trabalhos e estudos com problemas reais do cotidiano.

Apesar de não ter sido encontrado nenhum trabalho ou bibliografia que trata-se do uso de metodologias ativas no ensino de Administração para etnias indígenas, recomenda-se a sua aplicabilidade em caso prático numa dinâmica de ensino de conhecimento técnico e científico contribuindo no aperfeiçoa-mento das práticas adotadas por essas comunidades.

Por fim, sugere-se futuras pesquisas referente a aplicabilidade de meto-dologias ativas nos processos de ensino para etnias indígenas, podendo ser esses ensinos tantos nas áreas de administração, como também em outras áreas, pois, através do uso dessas metodologias ativas pode-se realizar mudanças importantes, que rompem barreiras culturais e contribuam no processo de ensino-aprendizagem.

REFERÊNCIAS

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DO ACESSO À PERMANÊNCIA: REFLEXÕES SOBRE AS POLÍTICAS AFIRMATIVAS PARA INDÍGENAS ESTUDANTES NO ENSINO SUPERIOR

Berenice Schelbauer Do Prado50

INTRODUÇÃO

Este capítulo propõe discorrer sobre as Políticas Educacionais pensadas para população indígena que ingressa no Ensino Superior. É um ensaio resultante das questões discutidas nas aulas teóricas do Doutorado (Programa de Pós-gra-duação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS) e que serão aprofundadas na construção da tese sobre a presença de indígenas estudantes51 no Ensino Superior e o proposto a partir da Constituição de 1988 para esse grupo ainda invisível no espaço acadêmico.

As discussões realizadas nas aulas do Seminário com maior destaque às referências teóricas de Akkari (2010) e Dubbet (2003) e os documentos legais, que balizam as políticas públicas para a educação e a escolarização das cama-das populares subsidiarão o tema de este ensaio que é a presença de indígenas estudantes no Ensino Superior.

Entende-se que cultura e conhecimento são produzidos nas e pelas rela-ções sociais. Desse modo, a escolarização dos povos indígenas e seu ingresso no ensino superior não pode ser pensada fora dessas relações.

De acordo com Freire (1987, p. 38):

É preciso que a educação esteja em seu conteúdo, em seus programas e em seus métodos adaptada ao fim que se persegue: permitir ao homem chegar a ser sujeito, construir-se como pessoa, transformar o mundo, estabelecer com outros homens relações de reciprocidade, fazer a cultura e a história (...). O diálogo, como encontro dos homens para a pronúncia do mundo, é uma condição fundamental para a sua real humanização.

50 Doutoranda em Educação (UNISINOS). Técnica em Assuntos Educacionais (UFSC). CV: http://lattes.cnpq.br/9146520093365915O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.51 Utiliza-se o conceito de indígena estudante em respeito ao pertencimento desses sujeitos que estão no Ensino Superior os quais afirmam que “antes de serem estudantes, são indígenas”

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Portanto, o acesso e permanência de indígenas estudantes no Ensino Superior é indiscutivelmente uma educação imprescindível, uma vez que a educação é um processo contínuo e atemporal, tanto na educação básica, tendo seu acesso e permanência garantidos, quanto no Ensino Superior Público, como espaço de formação e produção do conhecimento, que também deve ser oportunizado. Quais são os desafios da permanência desses estudantes nas instituições para que possam concluir seus cursos com êxito e superar a lógica monocultural organizada pelo ensino superior brasileiro?

SOBRE OS INDÍGENAS ESTUDANTES NO ENSINO SUPERIOR

Enquanto os indígenas não contarem suas histórias, ela será sempre a história do colonizador. (Adaptado de um provérbio africano sobre o leão e os caçadores).

Os povos indígenas têm ocupado um espaço de pouca visibilidade em nossa historiografia. A presença do sujeito indígena no cenário nacional é bastante recente e surge em meio às discussões que começaram a acontecer de maneira mais organizada e formalizada a partir da década de 70, do Século XX. Fortalecidos pelos movimentos políticos ocorridos na época pós Ditadura Militar, os indígenas começam a emergir de um processo de resistência já existente, mas, ainda assim, subjugados pela política de Estado que descaracte-rizava o quadro de diversidade e desestruturava, no interior das comunidades, o conceito e o desejo de alteridade.

Os indígenas estão ingressando no Ensino Superior. Pouco a pouco, mas lá estão eles. Chegaram para conhecer o mundo, o mundo acadêmico e científico como contaram os estudantes de duas instituições públicas do Rio Grande do Sul em um evento oficial chamado “Diálogos com Povos Indígenas”.

Mas sua chegada provoca surpresa, causa discriminação e inferioridade e eles não se sentem pertencentes naquele espaço, que é público, que é de todos, que é plural. Eles ainda estão invisíveis e têm dificuldade em permanecer no ensino superior, dado ao desconhecimento de muitos docentes e gestores públi-cos não indígenas, na distinção da Educação Indígena, característica da cultura de cada povo e de sua etnia, daquela que é feita pela educação escolar formal.

A presença cada vez mais constante de indígenas estudantes permite compreender e aprofundar o possível diálogo do conhecimento acadêmico para o reconhecimento da existência e sobrevivência dos povos indígenas com seus conhecimentos educacionais, linguagens e identidades culturais. Os povos indígenas começam a ter visibilidade, de uma forma ainda incipiente a partir da Constituição de 1988, após muitas lutas desenvolvidas pelo Movimento Indí-gena. É a partir desse documento que a violência contra esses povos começa a

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Língua(gens), Literaturas, Culturas, Identidades e Direitos Indígenas no Brasil

ser minimizada com os seus direitos garantidos, mas com um longo caminho para que sejam praticados e entre eles o acesso à educação de qualidade, res-peitando a diversidade de cada povo.

Nesse contexto:

[...] Com o propósito de promover maior diversidade social de grupos com baixa representatividade nas diferentes esferas sociais e corrigir injustiças históricas que resultaram em desigualdades, a implementação de ação afirmativa começou a ser progressivamente delineada, no Brasil, a partir das experiências de outros países que fizeram essa intervenção para garantir a melhoria de condições e igualdade de oportunidades para a população negra e/ou outros grupos margina-lizados (AKKARI, 2010, p. 13).

Entre as mudanças que ocorreram nos últimos anos em relação às políticas públicas voltadas à escolarização dos povos indígenas podemos citar:

1º o surgimento, em 2001, do programa Parâmetros Curriculares em Ação: Educação Escolar Indígena e Referência para formação de Professores Indígenas, com um conjunto de temas com a intenção de promover programas de formação de professores indígenas nos Estados e na Comissão de Educação Escolar Indígena;

2º a incorporação, em 2003, da recém-criada Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade - SECAD;

3 – a criação da Lei 11.645/08, que estabelece o tema obrigatório para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena no currículo oficial;

4º– a criação da Lei 12.711/12, que prevê ingresso de indígenas estudantes em Universidades públicas federais e instituições federais de ensino técnico do ensino médio.

5º - a Primeira Conferência Mundial do Povos Indígenas durante a 69ª Assembleia Geral da ONU, em 2014.

Cabe lembrar que os povos indígenas foram parte das pautas discu-tidas nos documentos internacionais gerados a partir das Conferências de Jomtiem/1990, Dakar/2000, Fórum Mundial Social em Porto Alegre/2003 e o mais recente Fórum Mundial da Educação em Incheon/2015 que resultou na Declaração de Incheon52.

52 A Declaração de Incheon foi assinada em maio de 2015 durante o Fórum Mundial de Edu-cação e preconiza que a educação é o principal impulsionador para o desenvolvimento e para que o mundo alcance os demais Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) organizados pela ONU. Também assume o compromisso com a defesa de uma educação de qualidade e com a melhoria dos resultados de aprendizagem. Os povos indígenas são citado seis vezes no

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Portanto, apesar das políticas públicas serem pensadas para esse fim, veri-fica-se ainda que o sistema educacional gera padrões diferenciados na educação em todos os níveis e modalidades, desde a educação básica até a Universidade. Parece evidente, que as camadas populares têm historicamente menos chances de ingressar e dar continuidade aos seus estudos, principalmente no nível superior.

No entanto, apesar da vigência de uma legislação que garante o acesso e a permanência à educação para “todos os cidadãos”, não é garantia de direito à permanência na Universidade. Os indicadores estatísticos produzidos e divulga-dos pelos órgãos oficiais demonstram que a presença de estudantes indígenas no Ensino Superior tem apresentado significativa melhoria na última década, com o expressivo aumento no número de matrículas no Ensino Superior como um todo. Porém, há grandes desafios educacionais que o país ainda precisa vencer para superar o déficit histórico acumulado nessa área no que se refere aos indígenas estudantes como pode se perceber na Tabela 1 que, em 2018, segundo o Censo da Educação Superior, 57.706 indígenas estudantes estavam matriculados no Ensino Superior.

Mesmo que se considere a baixa concentração demográfica da popula-ção indígena (menos de 1% da população total), enquanto os afro-brasileiros compõem quase metade da população (Akkari, 2010, p. 17-18), dados do último Censo Demográfico de 2010 no Brasil revela que existe aproximadamente 1 milhão de indígenas distribuídos entre 305 povos indígenas, com 174 línguas identificadas naquele período. São dados bastante significativos, do ponto de vista da pesquisa com povos indígenas devido à sua autodefinição ética e identitária.

Tabela 1 - Matrículas nos Cursos de Graduação Presenciais e a Distância, por Cor / Raça, segundo a Unidade da Federação e a Categoria Administrativa das IES - 2018

Unidade da Federação / Categoria AdministrativaTotalBranca

Matrículas em Cursos de Graduação Presenciais e a Distância por Cor / Raça

Preta Parda Amarela IndígenaNão Dispõe da Informação

Não Declarado

Brasil 8.450.755 3.533.562 591.161 2.436.411 140.730 57.706 30.393 1.660.792

Pública 2.077.481 835.915 195.875 644.485 32.605 15.450 19.204 333.947

Federal 1.324.984 500.664 137.074 469.543 18.324 11.619 12.693 175.067

Estadual 660.854 285.494 55.181 159.083 13.420 3.552 6.312 137.812

Municipal 91.643 49.757 3.620 15.859 861 279 199 21.068

Privada 6.373.274 2.697.647 395.286 1.791.926 108.125 42.256 11.189 1.326.845

Adaptado de MEC/INEP/DEED – 2018.

documento. Seu texto servirá de base para a definição das metas internacionais de educação para o período 2016-2030. (Disponível em: https://nacoesunidas.org/declaracao-de-incheon--disponivel-em-portugues-no-site-da-unesco). Acesso em: 05/dez/2020.

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Língua(gens), Literaturas, Culturas, Identidades e Direitos Indígenas no Brasil

Chama a atenção como os dados contidos na Tabela 1 contrastam a dis-paridade existente entre os números de matrículas das pessoas autodeclaradas Brancas com as àquelas autodeclaradas Pretas, Pardas, Amarelas, Indígenas, Não declarados e ainda aqueles que não foi possível obter a informação. Sobre os dados “Não declarados” e “Não Dispões da Informação, “cabe um estudo explo-ratório de como as instituições de Ensino Superior desconhecem essas infor-mações considerando que esses dados estão atrelados à coleta feita pelo IBGE.

Ainda sobre a disparidade entre brancos e as demais categorias, os indi-cadores sociais da pesquisa sobre Condição de Vida da População Brasileira publicada pelo IBGE, vem confirmando que as duas categorias, educação e participação econômica, permanecem como a principal fronteira de exclusão social. Entender esse processo de exclusão/inclusão nos sistemas de ensino ajudará a responder à questão inicial do texto sobre os desafios enfrentados para a permanência.

Destaca-se a importância de discutir as questões educacionais sob a pro-blemática da exclusão social que de acordo com Dubet (2003), o tema da escola e da exclusão não deve se restringir à indignação moral ou à longa descrição das dificuldades encontradas pelos estudantes excluídos da escola ou originários de meios já “excluídos”. É necessário “distinguir uma série de problemas se quisermos ver a questão de um modo um pouco mais claro e não ceder à moda que busca explicar a exclusão por meio das ideias mais consolidadas sobre a desigualdade das oportunidades escolares.” (DUBET, 2003, p. 30).

Em sua análise o autor aponta três problemas:

O primeiro deles é o lugar da escola numa estrutura social perpassada pelos mecanismos de exclusão. É importante saber o que se refere à sociedade e o que se refere à escola. Ou seja, qual é o lugar da escola numa estrutura social que desenvolve processos de exclusão? O segundo tipo de problemas concerne à análise dos mecanismos propriamente escolares que engendram uma segmentação escolar, determinante na formação dos percursos de exclusão. Pode-se, por fim, evocar as consequências dessa mutação estrutural sobre a natureza das próprias experiências escolares, a dos professores e a dos estudantes (DUBET, 2003, p. 30).

Neste contexto, pode-se perceber que o número da população não branca frequentando o Ensino Superior ainda é muito pequena, o que vem a comprovar as distorções presentes no processo de acesso ao Ensino Superior. No entanto, se por um lado o processo seletivo de ingresso à universidade pública é privilégio de alguns, o que gera um quadro excludente para àqueles que não obtiveram êxito, por outro, políticas afirmativas vem sendo desenvolvidas, nos últimos

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anos, inscritas nos quadros das políticas públicas de inclusão social visando diminuir as desigualdades sociais nos sistemas educacionais, sobretudo no que se refere ao ensino superior53. Se compararmos os dados da Tabela 1 de 2018 com os dados da Tabela 2, quando apenas 13.687 matrículas foram registradas, percebemos um aumento de 421%.

Tabela 2 - Matrículas nos Cursos de Graduação Presenciais e a Distância, por Cor / Raça, segundo a Unidade da Federação e a Categoria Administrativa das IES – 2013.

Unidade da Federação / Categoria AdministrativaTotalBranca

Matrículas em Cursos de Graduação Presenciais e a Distância por Cor / Raça

Preta Parda Amarela IndígenaNão Dispõe da Informação

Não Declarado

Brasil 7.305.977 1.829.692 222.338 908.683 77.337 13.687 2.364.798 1.889.442

Pública 1.932.527 520.730 90.105 297.095 21.899 5.079 545.602 452.017

Federal 1.137.851 288.996 70.103 198.439 11.073 2.903 317.889 248.448

Estadual 604.517 175.223 17.831 87.787 9.963 2.002 202.433 109.278

Municipal 190.159 56.511 2.171 10.869 863 174 25.280 94.291

Privada 5.373.450 1.308.962 132.233 611.588 55.438 8.608 1.819.196 1.437.425

Adaptado de MEC/INEP/DEED – 2013.

Em relação às Universidade Federais esse aumento pode ser atribuído à Lei 12.711/12, que determina às instituições públicas federais de ensino superior a reservar 50% de suas vagas para estudantes autodeclarados negros, pardos e indígenas a partir de 2013. No entanto é um número muito incipiente. Se compararmos somente no ano de 2018, com as instituições privadas, temos uma diferença de 230%. 37% do total dessas matrículas encontra-se na Região Nordeste. Porém, um dado que chama atenção é que a maioria dos indígenas estudantes se encontram matriculados nas instituições privadas.

É um número muito significativo e chama muito a atenção. No entanto, nesse momento não é possível cotejar esses dados. Uma hipótese é esses estudan-tes estarem estudando por meio do Programa Universidade para Todos-Fundo--ProUni ou pelo Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior-FIES ou, ainda, por meio de alguma bolsa institucional de Assistência Estudantil, haja vista a situação de vulnerabilidade social que é uma característica dos povos indígenas. O Censo da Educação Superior não traz essas informações. A informação sobre o número de concluintes é feita de acordo com o Número de

53 Entre os autores que discutem essa temática estão Chauí, Romanelli, Spósito e Nogueira.

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Língua(gens), Literaturas, Culturas, Identidades e Direitos Indígenas no Brasil

Cursos e Matrículas nos Cursos de Graduação Presenciais e a Distância, segundo as Regiões Geográficas e as Instituições que oferecem cursos à distância.

Pensa-se que se houvesse informações sobre a proporcionalidade entre o número de matrículas e concluintes por cada ano acadêmico de acordo com a cor/raça, os dados seriam mais fidedignos e contribuiriam para subsidiar as Políticas Públicas para a Educação Superior e ratificar o cumprimento de Metas do Plano Nacional de Educação, principalmente a Meta 1254.

A presença de indígenas estudantes no Ensino Superior leva à necessidade de uma análise cuidadosa dela nas instituições de ensino e a perceber o quanto esse espaço de relações sociais com o conhecimento fora da cosmologia indí-gena interfere no modo de vida e costumes desses estudantes, especialmente no que diz respeito à preservação da cultura e identidade desse grupo étnico.

Os povos indígenas têm clareza de que a cultura e o conhecimento ocorrem nas e por relações sociais, porém a discriminação que sofrem por estarem em um espaço escolar que não é considerado seu por direito, precisa urgentemente ser superada. A permanência dos indígenas estudantes no Ensino Superior será uma realidade, na medida em que as políticas públicas garantam aos povos indígenas o direito de ser diferente, com todas as prerrogativas ine-rentes a qualquer cidadão comum, começando pelo respeito à sua identidade de “sentir-se índio”, respeito à sua cosmologia. Portanto, o prolongamento da escolaridade dos povos indígenas e sua entrada no Ensino Superior não podem ser pensados sem essas relações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se observar pelos dados do Censo da Educação Superior que a entrada no Ensino Superior de indígenas estudantes ainda é incipiente. Mas, também foi possível visualizar possibilidades que apontam para mudanças signi-ficativas no que concerne ao acesso das camadas populares ao Ensino Superior. Essas possibilidades nos indicam de que se houver a continuidade das políticas públicas como o sistema de cotas, e estas forem prioridade, o proposto pelo Plano Nacional de Educação de aumentar o percentual de ingresso no Ensino Superior de 50% até 2024 para os jovens entre 18 e 34 anos será cumprido.

Os dados empíricos preliminares apontados neste breve ensaio, indicam transformações no acesso ao ensino superior, que ainda é visto como um espaço destinado a estudantes de elevado capital cultural e econômico. Portanto, a

54 A Meta 12 objetiva elevar a taxa bruta de matrícula na educação superior para 50% (cinquenta por cento) e a taxa líquida para 33% (trinta e três por cento) da população de 18 (dezoito) a 24 (vinte e quatro) anos, assegurada a qualidade da oferta e expansão para, pelo menos, 40% (quarenta por cento) das novas matrículas, no segmento público. (Plano Nacional de Educação – Lei 13005/2014). Disponível em: http://pne.mec.gov.br/18-planos-subnacionais--de-educacao/543-plano-nacional-de-educacao-lei-n-13-005-2014. Acesso em: 05 dez. 2020.

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presença de indígenas estudantes no Ensino Superior caracteriza a efetivação da inclusão social proporcionada pelas políticas públicas por meio de Ações Afirmativas, resultado da conquista da luta dos movimentos sociais indígenas.

As matrículas apresentadas nos últimos dados coletados e representadas na Tabela 2 comprovam que os indígenas estudantes ingressaram no Ensino Superior, mas será que permaneceram, permanecem, permanecerão? Questões urgentes e necessárias, que precisam ser respondidas.

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Língua(gens), Literaturas, Culturas, Identidades e Direitos Indígenas no Brasil

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Nota: Este texto foi publicado em língua espanhola no congresso internacional pedagogia 2021 com o título “Reflexiones sobre políticas afirmativas para indígenas estudiantes en la educación superior en Brasil”, publicação que pode ser acessada em: https://www.pedagogiacuba.com/simposio/las-ciencias-de-la-educacion-y-su--contribucion-a-la-calidad-de-los-sistemas-educativos-y-la-agenda-2030/.

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INDIGENOUS RIGHTS, NECROPOLITICS AND THE “DAILY GENOCIDES” OF BRAZIL’S NATIVE AND TRADITIONAL PEOPLES

Erick da Luz Scherf55

Marcos Vinicius Viana da Silva56

José Everton da Silva57

“Para el derecho penal internacional genocidio es la acción tendente a hacer desaparecer en todo o en parte determinados grupos humanos entre los que los pueblos indígenas están hoy

expresamente comprendidos. Una política de acoso incluso incruento a comunidades persiguiendo la neutralización y

ninguneo del correspondiente pueblo, con esta determinada intención, puede constituir genocidio; si a esto se suma la

violencia sanguinaria más o menos selectiva, sin necesidad de que sea masiva, tal delito es paladino.”

Bartolomé Clavero (2011, p. 11)

INTRODUCTION

From the time of “discovery” (or invasion) in 1500 up to 1970, Brazilian Indigenous populations decreased considerably, and many Indigenous peoples were extinct (FUNAI, 2010). On the latest national survey, the Brazilian Census of 2010 revealed that the Indigenous population was of around 817 thousand people divided into more than 300 peoples, compared to almost 4 million before invasion by the Portuguese Crown. More recently, according to Damiani, Pereira, and Nocetti (2018), in the region of Latin America, Brazil has become the leader when it comes to the assassination of Indigenous persons58.

On the verge of contemporary conservatism and social regression, vio-lence against the Indigenous population has increased significantly since 2016, represented in many forms including (but not limited to): increased childhood mortality, violent murder, and negligence or slowness in regularizing Indige-

55 MSc student at the European Master in Social Work with Families and Children (M-Family) (University of Stavanger in Norway). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3712-5777 56 Post-Doctorate Fellow (URI – Santo Ângelo). Juris Doctor (JD) in Law (University of Alicante - Spain). PhD, M.A, and B.A in Law (UNIVALI). CV: http://lattes.cnpq.br/0483045958159744 57 Post Doctorate from the University (UPF). Professor of the Master’s / Doctorate program in Legal Sciences (UNIVALI). CV: http://lattes.cnpq.br/2188129548654528 58 This article considers the definition of indigenous or tribal peoples set by the International Labour Organization (ILO) on Convention No 169, which was also adopted by the Brazilian legislation on the matter (ILO, 1989).

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nous lands (CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO, 2016). Additionally, with the new coronavirus outbreak in early 2020 in Brazil, findings showed a high, but disproportionate burden of COVID-19 on the Indigenous population in the country (SANTOS et al., 2020).

Equally or similarly, traditional peoples and communities (TPCs)59 in Brazil - which are composed by Indigenous persons as well as by other cultu-rally diverse people such as: Quilombolas, Artisanal fishermen, “Extractivists”, Riverine people, Gypsies and those belonging to Terreiro communities (among others) – have also been threatened with violence, persecution, and rights violations. According to a recent report published by Human Rights Watch (HRW) in 2020, although violence against Brazilian TPCs has been a chronic problem for decades, the election of current president Jair Bolsonaro has led to an escalation on violence against Indigenous peoples and TPCs in the country, especially due to land-related conflicts and relaxation or dismantle of environmental protection laws (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2020).

Thus, the main argument of this chapter is that the dangerous combi-nation of neoconservatism (FORTES, 2016), neoliberal/necropolitical policies (DALL’ALBA et al., 2021), and the strengthening of the agribusiness lobby (IORIS, 2016) is leading to rights violations and the “daily genocides” of Indigenous peoples and TPCs in Brazil, even though this sort of genocide may not be rec-ognized by international law. To sustain our argument, we adopt Bartolomé Clavero’s (2011) definition of genocidios cotidianos (“daily genocides”) and apply it to the experience of the subjects under analysis. We also argue that the con-cept of “necropolitics”, coined by Achille Mbembe, is somewhat essential to understanding this type of violence.

INDIGENOUS RIGHTS, HUMAN RIGHTS AND DEMOCRATIC DECAY IN BRAZIL

Like everyone else, Indigenous people (as well as members of other TPCs) enjoy, or should enjoy, all the human rights norms and principles enshrined in international treaties, customary international law, constitutions, national laws, and moral systems across the globe. However, Indigenous persons need to have specific rights because of their unique position as first peoples of their nations and their increased vulnerability in some parts of the world:

59 This definition was adopted based on the 2017 National Policy for Sustainable Development of the Traditional Peoples and Communities issued by the former Brazilian Ministry of Social Development, which considers TPCs to be: culturally differentiated groups that recognize themselves as such, that have their own forms of social organization, that occupy and use territories and natural resources as a condition for their cultural, social, religious, ancestral and economic reproduction, using knowledge, innovations and practices generated and transmitted by tradition (SECRETARIA ESPECIAL DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL, 2021).

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Often due to the lingering effects of colonization and oppression, Indigenous people are vulnerable to dis-crimination and mistreatment and excluded from effectively participating in processes that affect their rights. This means that today they are more likely to experience poverty, imprisonment, poor health and restrictions on self-determination (AMNESTY INTER-NATIONAL AUSTRALIA, 2021, online).

The UN Declaration on the Rights of Indigenous Peoples (UNDRIP) of 2007 is the most comprehensive international instrument on the matter. According to the Australian Human Rights Commission (2021, online): “it establishes a universal framework of minimum standards for the survival, dignity and well-being of the Indigenous peoples of the world and it elaborates on existing human rights standards and fundamental freedoms as they apply to Indigenous peoples”. In the context of the UNDRIP, issues that are essential to Indigenous peoples include (but are not limited to) the rights to non-discri-mination, self-identification, land rights and development.

However, even though some argue that the Declaration carries “signifi-cant legal weight” in the context of international human rights law (BARNABAS, 2017), others question its limitations in terms of the recognition of collective rights (ENGLE, 2011) and regarding its relevance to Indigenous peoples in their struggle for survival (HENDERSON, 2014).

In Brazil, the contemporary situation of the demarcation and land title regularization processes (or lack thereof) of Indigenous lands may be one the most pressing issues related to the rights of Indigenous peoples and TPCs, amongst others. According to Silva (2018), the protection and demarcation of Indigenous lands is very important, as it makes it possible for these peoples to secure a space that provide them with a means of economic subsistence and development, continuance of cultural practices, and overall survival. Nonetheless, since 2016 especially, the situation of Indigenous peoples and traditional peoples and communities, especially in relation to processes of self-determination and access to territories, has significantly worsened with the emergence of the “new right” and increasing democratic decay:

This has been especially pronounced under the last two governments of Michel Temer and Jair Bolsonaro, including the revocation of legal frameworks, closure of social oversight forums, dismantling of State appa-ratuses, suppression of social programs, and budget cuts. Some specific threats are worth highlighting: the Direct Action on Unconstitutionality put into effect by the Democratas Party in relation to Decree 4887/2003;

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PEC 215, which transfers to Congress decisions concer-ning the demarcation and regularization of indigenous lands and the territories of quilombola communities and traditional peoples and communities; the CPI introduced in the Chamber of Deputies against the work of FUNAI, INCRA and anthropologists in land regula-rization processes, which has been shelved but may return; among other risks (COSTA-FILHO, 2020, p. 14).

Thus, even though Brazil does have a quite extensive legal apparatus – found in international instruments as well as in the Federal Constitution and all the infra-constitutional legislation and regulation at federal, state and municipal levels - designed to protect both Indigenous persons and members of TPCs, it has not been enough to stop contemporary undemocratic movements fueled with social regression and right-wing extremism from violating and dismantling the rights of these historically excluded groups.

ENVIRONMENTAL DAMAGE, NECROPOLITICS AND THE “DAILY GENOCIDE” OF BRAZILIAN INDIGENOUS AND TRADITIONAL PEOPLES

Even though Brazil has dealt with environmental issues for decades, since 2016 and especially after Brazilian President Jair Bolsonaro has stepped into office in 2018, the country has witnessed a decay in environmental law enforcement and a considerable rise in deforestation, especially in the Brazilian Amazon (ESCOBAR, 2020). Taking into account that Indigenous peoples (and TPCs at some level) are key to forest conservation efforts and the protection of global biodiversity (RAYGORODETSKY, 2018; COLCHESTER, 2004), they are vie-wed as a threat to Bolsonaro’s Administration and its anti-environment agenda.

The election of Bolsonaro represented, among many other things, the victory of neoliberal and agribusiness interests over environmental protection causes, a fact that became clearer as the Government went on to destroy major environmental protection policies, despite the large environmental protection legislation Brazil possesses (SILVA; SCHERF, 2020; CAPELARI et al., 2020). The Brazilian example showcases how, independently from constitutional and international legal provisions, the assault on the environment can be explicitly engineered to meet private interests, such as those held by the agribusiness lobby (PEREIRA et al., 2019).

This dismantling of environmental policies has also been accompanied by a public discourse based on the argument that non-interference in Indi-genous lands and environmental protection shuts off the country’s progress, which resulted in: a) slowness or a complete stop in demarcating Indigenous

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lands; b) the dismantling of the environmental regulation system and general relaxation on inspection; c) the systematic use of lying and distorted informa-tion on numerous environmental issues, including the false assertion that the data on deforestation are manipulated (BARRETTO-FILHO, 2020). All this has conveyed a general feeling among farmers and rural leaders who support the current administration that the Government has their back, which led to the systematic invasion of protected areas and Indigenous Lands.

In late 2019, farmers and loggers in the Amazon region started clearing land by burning the rainforest to show support for Bolsonaro’s loosening of environmental restrictions (LOPES, 2019). In consequence, there has been a significant rise in illegal deforestation since then as Bolsonaro has said that more commercial farming and mining in the Amazon rainforest are neces-sary to “lift the region out of poverty”. In September 2020, at least 160 illegal fires on the Indigenous lands of Pantanal were registered. Almost half of the regularized Indigenous areas in the region faced severe burnings that have destroyed villages, homes, agriculture crops and led to hospitalizations due to respiratory problems (MUNIZ; FONSECA; RIBEIRO, 2020; HRW, 2020b). In sum, Indigenous peoples and TPCs are being put under threat constantly by Bolsonaro’s administration and its supporters, facing a process of increased socio-environmental vulnerability and violation of the rights to land, culture, health and to enjoy a healthy and clean environment (ROCHA; PORTO, 2020).

These constant symbolic and physical attacks on Indigenous peoples and TPCs are part of a necropolitical strategy employed by the President and by his administration, including the Minister of the Environment, Ricardo Salles, who is currently facing corruption charges on a massive illegal logging scandal. Necropolitics can be understood as the subjugation of life to the power of death (MBEMBE, 2019). “Under everyday necropolitics, a mass of populations live under extremely precarious conditions and as such, can be exploited and elimi-nated ‘naturally’” (PELE, 2020, online). This everyday creation of “death-worlds” for Indigenous peoples, TPCs and every other person deemed perishable to modern-day capitalism (because they cannot be exploited anymore or do not wish to participate in the workforce) allows the Government to share the use of violence and eliminate certain populations in “small doses”, through social, economic, and symbolic violence (MBEMBE, 2019; PELE, 2020). By reducing environmental policies, suppressing access to social welfare, delaying the regularization of Indigenous lands, and inciting a narrative of violence and neo-colonial practices, Jair Bolsonaro and his allies are creating the perfect conditions to strip native peoples from their living means and lead them to death without a bloodbath.

In this sense, the concept of necropolitics is closely related to that of “daily genocides”, coined by Bartolomé Clavero to explain the contempo-rary violence perpetrated against the Indigenous peoples of Latin America.

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According to Gomes (2021), the daily genocides of Indigenous peoples - in Brazil and throughout Latin America - relates to the expropriation of nature and the ineffectiveness of land rights, whereas companies and other private actors exploit natural resources with the consent and promotion of the state and state agents. With the expression “daily genocide” (genocidios cotidianos), Clavero (2011) refers to the gradual disappearance of Indigenous peoples and communities in some Latin American countries (including Brazil), driven by large transnational corporations (mining, oil, forestry, and others) and by government authorities themselves. It differs from the classic definition of genocide under the UN Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide because it employs different methods that do not necessarily involve widespread massacre, instead, it aims at the destruction of cultures, livelihoods, and silent extermination.

FINAL REMARKS

The current attempt at exterminating the Indigenous peoples and other Native or Traditional communities of Brazil is, among other things, a byproduct of neoliberal and necropolitical forces, supported by Jair Bolsonaro’s adminis-tration, and their wish to subjugate the environment and exploit the natural resources that are still available in certain territories that once were protected by environmental laws. The disappearance of these peoples would allow the complete exploitation of their territories for the purposes of capitalist econo-mic activity, which can be achieved through daily acts of violence that are not necessarily deemed illegal under the law and are not perceived as genocide in its classic definition. Thus, the concepts of necropolitics and “daily genocides” can help us better understand the current existential risk that Indigenous peo-ples and TPCs are facing on a regular basis in contemporary Brazilian society.

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SOBRE O ORGANIZADOR

Tayson Ribeiro Teles

Nascido em 1991 no estado do Acre, na Amazônia brasileira, onde reside atualmente, é um apaixonado por questões, saberes e práticas indígenas. É Ex-ser-vidor Efetivo (Indigenista Especializado) da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, tendo, na sua passagem por este órgão federal, atuado na proteção, defesa e pro-moção dos direitos dos povos indígenas do sudoeste do estado do Pará, na região onde foi construída a Hidroelétrica de Belo Monte. Advogado não militante. É Doutorando do/no Programa de Pós-graduação em Letras: Linguagem e Identi-dade da Universidade Federal do Acre (UFAC), mesmo Programa onde realizou seu Mestrado. Atualmente, é Docente do Magistério Federal, Carreira EBTT, Área Economia e Gestão de Finanças e Comércio, no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Acre – IFAC. Graduado em Direito, em Matemática e em Tecnologia em Gestão Financeira. Concluiu 4 Pós-graduações Lato Sensu (Espe-cializações) nas áreas de Gestão, Educação, Políticas Públicas e Informática/Tec-nologias. Pesquisa e estuda temáticas das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, notadamente interfaces entre Economia, Administração, Contabilidade, Direito, Política e Educação/Prática Docente, com ênfase em Educação Financeira, Finanças Pessoais, Planejamento Financeiro Familiar e Ensino de Ciências Econômicas. Possui 65 artigos, ensaios, crônicas, resenhas e textos diversos publicados em periódicos nacionais. Autor e/ou organizador de 5 livros. Autor de 16 capítulos de livros. Líder do Grupo de Pesquisa Núcleo de Pesquisas em Gestão e Negócios do Acre (NUPEGEN-Acre), do IFAC/CNPq. Membro do Grupo de Pesquisa História e Cultura, Linguagem, Identidade e Memória (GPHCLIM), da UFAC/CNPq. Avaliador/Parecerista de algumas Revistas Científicas nacionais. Membro do Comitê Editorial/Científico da Editora Pimenta Cultural (SP).

Lattes: http://lattes.cnpq.br/3272508883742018Ocird: https://orcid.org/0000-0003-1309-8708E-mail: [email protected]

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ÍNDICE REMISSIVOAação etnocida 121, 125, 127-128apropriação cultural 6, 9, 140-144, 148-151autodeterminação 100, 105-106, 128-129autonomia 25, 49, 67, 77, 85, 92, 97, 103, 118, 154-155, 157, 160-161Bbase nacional comum curricular 9, 52, 57, 140, 144, 149-151bilíngue 23Ccapitalismo 13, 21, 93catequização 12-14, 18, 21, 157cidadania indígena 6, 9, 120-121, 127-129civilização 12, 15, 19, 26, 42, 83, 92, 110colonialidade 5, 7-8, 11-13, 18, 20-21, 23-27, 51, 57, 86, 91, 93-94, 110colonialidade do poder 5, 7, 11, 18, 20-21, 23-24, 27, 57, 86, 91, 94, 110comissão nacional de política indige-nista 5, 8, 82, 88, 95comunidades indígenas 5, 8-10, 35, 54, 71-72, 74-79, 96-100, 102, 105, 124, 137, 152-153, 156-158, 160conflito socioambiental 120, 123-124, 130cotas 9, 107, 128, 169crenças 7, 16, 30, 32, 63, 68, 76, 98, 102, 149-150cultura europeia 5, 7, 11-12, 22, 24cultura indígena 24, 65, 67, 140, 149currículo escolar 5, 7, 11, 20, 24-25

Ddaily genocides 6, 10, 172-173, 176-177desigualdades sociais 85, 146, 168diálogos 36, 47, 91, 112, 136, 145, 164dignidade da pessoa humana 72-75, 79-81, 111direitos fundamentais indígenas 72, 75, 80direitos indígenas 53, 71-72, 87, 115, 118discriminação 18, 101, 164, 169discurso 5, 8, 23, 59, 61, 63-64, 66-68, 70, 80, 85, 91, 124, 143diversidade linguística 23dominação 11, 13, 15, 18, 20, 67, 85-87, 110Eecologia de saberes 5, 7, 47-48, 58, 70educação indígena 25, 140, 145, 151, 157, 164ensino fundamental 6, 9, 52-53, 140, 144-146, 148equidade 146, 150era da tecnodiversidade 6, 8, 109, 117escravidão 143escravizados 15estado do acre 6, 9, 152-153, 158, 181estruturas de poder 11-12extermínio 13, 23, 120, 149Fforçados 120forças hegemônicas 68fortalecimento 11-12, 102Gguiados 31H

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herança 23, 36, 88, 113hidrelétrica de belo monte 96-97, 102, 105, 120, 123homogeneização 16, 28, 49, 63, 70Iidentidade indígena 21, 100, 128igualdade 50, 74, 118, 153, 157, 165indígenas estudantes 6, 9, 163-166, 168-170indigenismo brasileiro 5, 8, 22, 82, 84, 87Llinguagens 52, 130, 146, 164língua indígena 5, 8, 12, 22-23, 59-60, 63-64literatura indígena 47, 51-54, 57-58literatura infantil 47-49, 51, 54, 58lutas indígenas 87, 128, 147Mmetodologias ativas no ensino de administração 6, 9, 152-153, 160mitologia 38-39, 46, 55mitos indígenas 7, 35, 44, 147movimento indígena 8, 87-90, 93, 164mulheres indígenas 7, 35, 65-66narrativa indígena 35Nnecropolitics 6, 10, 172-173, 175-177, 179Oopressão 15, 19origem 7, 35, 37, 40-41, 45, 83, 111-112, 121-122, 142, 145, 147Ppermanência 6, 9, 65, 153, 163-164, 166-167, 169

poder 5, 7, 11-15, 18, 20-21, 23-25, 27, 37, 45, 50, 57, 60, 62-64, 67, 69, 73-74, 76-77, 80, 85-86, 88-89, 91, 94, 102, 110, 112, 126, 128, 131, 150poesia indígena 5, 7, 47políticas afirmativas 6, 9, 163, 167, 171populações indígenas 11-14, 19, 21, 37povos indígenas 5, 7-11, 13-16, 18, 23-25, 34, 48, 57, 59, 69, 71, 76, 78, 81-98, 100-103, 105-106, 108, 111-115, 118-120, 123-125, 127-130, 134, 136, 145-149, 157, 163-166, 168-169, 178, 180-181preconceito 18, 26, 54, 106proteção constitucional 5, 8, 71, 75Rrefugiados ambientais 6, 9, 120-121, 123-124, 129-130resistência 60, 64, 66-67, 87, 141, 143, 164Ssaberes do sul 48, 51silenciamento 5, 8, 13, 53, 59, 64-65, 149sujeitos indígenas 25, 60sustentabilidade 9, 131-132, 135-138Tterras tradicionalmente ocupadas 5, 8, 71-72, 74, 76-80traditional peoples 6, 10, 172-175, 178tutela indígena 85-86, 107Vvalorização 8, 12, 23, 43, 98, 103, 117, 143, 146-148viés jurídico 98violência 13, 15-16, 68, 89, 110, 124, 128, 164, 178-179vivências 48, 54-56, 149