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VIDA, PAIXÃO E GLORIFICAÇÃO

DO CORDEIRO DE DEUS(Disponibilização parcial: textos disponíveis para leitura estão na cor vermelha)

CAPÍTULO I

Introdução: Família, amigos, infância e mocidade de Jesus

1. De Nosso Divino Salvador, como plenitude e consumação dos tempos

2. Da família altamente privilegiada de Nosso Senhor

3. Dos discípulos do Senhor e de outras pessoas bíblicas

4. Infância de Nossa Senhora e seu desponsório com São José

5. Anunciação e Visitação de Nossa Senhora

6. A viagem a Belém e o nascimento de Nosso Senhor

7. Os ascendentes dos três Reis Magos e a viagem destes a Belém

8. Apresentação de Jesus no Templo e fuga para o Egito

9. Da mocidade de Jesus. Sua permanência em Jerusalém onde ensina aos doutoresda lei e é encontrado pelos pais no Templo

10. A vida do Senhor até o começo de suas viagens apostólicas

11. As viagens apostólicas de Jesus antes do seu Batismo no Jordão

12. Vida pública de João Batista

13. O batismo de Jesus e o jejum de quarenta dias

14. Eleição dos primeiros discípulos e o milagre de Cana

15. Resumo do primeiro ano de vida de Jesus

16. Resumo do segundo ano de vida pública de Jesus

17. Resumo do terceiro ano de vida pública de Jesus

18. Notas gerais sobre a personalidade de Jesus e seu modo de ensinar Dos milagresde Jesus

19. De Judas, o traidor, e de seu procedimento na última refeição, em Betânia

20. Da antiga Jerusalém

CAPÍTULO II

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A última ceia

1. Preparativos para a ceia pascoal

2. O cenáculo ou casa da Ceia

3. Disposições para a refeição pascoal

4. Jesus vai a Jerusalém

5. A última ceia pascoal

6. O Lava-pés

7. Instituição da Sagrada Eucaristia

8. Instruções secretas e consagrações

9. Oração solene de despedida de Jesus

CAPÍTULO III

Jesus no Monte das Oliveiras

1. Jesus, com os apóstolos, a caminho do horto de Getsemani

2. Jesus atribulado pelos horrores do pecado

3. Tentações da parte de satanás

4. Jesus volta para junto dos três apóstolos

5. Anjos mostram a Jesus a enormidade dos seus sofrimentos e consolam-no

6. Mais imagens de pecados que atormentam o Senhor

7. Visões consoladoras. Anjos confortam Jesus

8. Judas e sua tropa

9. A prisão do Senhor

CAPÍTULO IV

Jesus conduzido a Anás e Caifás

1. Maus tratos que sofreu a caminho da cidade

2. Lamentações dos habitantes de Ofel

3. Preparativos dos inimigos de Jesus

4. Uma vista geral sobre a situação em Jerusalém àquela hora

5. Jesus diante de Anás

6. Jesus é conduzido de Anás a Caifás

7. O Tribunal de Caifás

8. Jesus diante de Caifás

9. Jesus é escarnecido e maltratado em casa de Caifás

10. A negação de Pedro

11. Maria no tribunal de Caifás

12. Jesus no cárcere

13. Judas aproxima-se da casa do tribunal

14. O julgamento de Jesus na madrugada

15. Desespero de Judas

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CAPÍTULO V

Jesus perante Pilatos e Herodes

1. Jesus é conduzido a Pilatos

2. O palácio de Pilatos e os arredores

3. Jesus perante Pilatos

4. Origem da Via-Sacra

5. Pilatos e a Esposa

6. Jesus perante Herodes

CAPÍTULO VI

Jesus é açoitado, coroado de espinhos e condenado à morte

1. Jesus reconduzido a Pilatos

2. Jesus é posposto a Barrabás

3. A flagelação de Jesus

4. Maria Santíssima durante a flagelação

5. Jesus é coroado de espinhos e escarnecido pelos soldados

6. Ecce Homo

7. Reflexão sobre estas visões

8. Jesus condenado à morte na cruz

CAPÍTULO VII

Jesus leva a cruz ao Gólgota

1. Jesus toma a cruz aos ombros

2. A primeira queda de Jesus sob a cruz

3. O encontro de Jesus com a Santíssima Mãe. Segunda queda de Jesus debaixo dacruz

4. Terceira queda de Jesus sob a cruz. Simão de Cirene.

5. Verônica e o Sudário.

6. A quarta e quinta quedas de Jesus sob a cruz. As compassivas filhas de Jerusalém.

7. Jesus no Monte Gólgota. Sexta e sétima quedas de Jesus e seu encarceramento.

8. Maria e as amigas vão ao Calvário.

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CAPÍTULO VIII

Crucificação e morte de Jesus

1. Os algozes despem Jesus para a crucificação e oferecem-lhe vinagre

2. Jesus é pregado na cruz

3. Elevação da cruz

4. A crucificação dos ladrões

5. Os algozes tiram a sorte às vestes de Jesus

6. Jesus crucificado e os ladrões

7. Primeira palavra de Jesus na cruz

8. Eclipse do sol. Segunda e terceira palavra de Jesus na cruz

9. Estado da cidade e do Templo durante o eclipse do sol

10. Abandono de Jesus. A quarta palavra de Jesus na cruz

11. Quinta, sexta e sétima palavras de Jesus na cruz. Morte de Jesus.

12. O tremor de terra, aparição de mortos em Jerusalém

13. Outras aparições depois da morte de Jesus

14. José de Arimatéia pede a Pilatos o corpo de Jesus

15. O coração de Jesus trespassado por uma lança. Esmagamento das pernas e mortedos ladrões.

16. A descida de Jesus aos infernos.

CAPÍTULO IX

A sepultura de Jesus

1. O jardim e o sepulcro de José de Arimatéia

2. O descendimento da cruz

3. O corpo de Jesus é preparado para a sepultura

4. O enterro

5. A volta para casa, depois do enterro. O sábado. Prisão de José de Arimatéia.

6. A guarda no túmulo de Jesus

7. Os amigos de Jesus no Sábado santo

CAPÍTULO X

A gloriosa ressurreição de Jesus

1. As vésperas da ressurreição

2. José de Arimatéia é posto em liberdade

3. A noite antes da ressurreição de Jesus

4. A ressurreição do Senhor

5. As santas mulheres no sepulcro. Aparições de Jesus

6. Relatório da guarda do sepulcro

7. Ameaças dos inimigos

8. Ágape após a ressurreição de Jesus

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CAPÍTULO XI

Outras aparições de Jesus até a ascensão

1. Jesus aparece aos dois discípulos no caminho de Emaús

2. Jesus aparece aos apóstolos na sala do Cenáculo

3. Jesus aparece novamente e converte o apóstolo São Tomé da descrença

4. A pesca milagrosa. Jesus proclama Pedro supremo Pastor

5. Jesus revela-se a quinhentos discípulos numa montanha

6. As relações de Maria Santíssima com os apóstolos e com a Igreja. Jesus aparece asua Santíssima Mãe.

7. Outras aparições de Jesus

CAPÍTULO XII

A ascensão e a vinda do Espírito Santo

1. O Senhor despede-se dos seus

2. Jesus sobre ao céu

3. Preparação dos apóstolos e discípulos para a vinda do Espírito Santo

4. A vinda do Espírito Santo

5. Sermão e batismo na piscina de Betesda

CAPÍTULO XIII

A expansão da Igreja cristã na Judéia

1. A cura do paralítico de nascença. Sermão de Pedro no Templo.

2. Ensino no Templo. A primeira santa Missa e ordenação de sacerdotes.

3. Curas milagrosas pela sombra de Pedro. Encarceramento dos apóstolos.

4. Comunhão de bens. Crescimento da comunidade.

5. Eleição dos sete diáconos. Queixas por causa da distribuição das esmolas.

6. As obras do diácono São Felipe.

7. Perseguições.

8. Estevão é interrogado e apedrejado

9. A conversão de Saulo

10. Herodes manda decapitar Tiago o Maior e lançar Pedro no cárcere.

11. Outras provações da Igreja de Jerusalém.

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CAPÍTULO XIV

Os últimos anos e a morte gloriosa de Maria Santíssima

1. Maria em Éfeso

2. Viagens de Maria a Jerusalém

3. Reunião dos apóstolos, por ocasião da morte de Maria, em Éfeso.

4. Os últimos dias de vida de Maria.

5. A morte gloriosa da Santíssima Virgem.

6. Embalsamamento e enterro de Maria

7. A assunção de Maria

8. Abertura do sepulcro de Maria

CAPÍTULO XV

Ação dos apóstolos e discípulos de Jesus entre os gentios

1. Vocação dos gentios. Conversão do Centurião Cornélio.

2. O Concílio dos apóstolos em Jerusalém

3. Fundação da Igreja de Roma por São Pedro

4. Viagens e trabalhos apostólicos de São Paulo

5. Santo André, apóstolo da Grécia

6. São Tiago o Maior, apóstolo da Espanha

7. São João Evangelista em Roma e na Ásia Menor

8. Viagens apostólicas e trabalhos de São Tomé, principalmente na Índia.

9. Trabalhos apostólicos de São Bartolomeu na Ásia e especialmente na Abissínia(África).

10. Os santos apóstolos Simão e Judas Tadeu na Pérsia

11. Trabalhos apostólicos e tribulações dos santos apóstolos Felipe, na Frigia e Mateus,na Etiópia

12. Os santos Evangelistas Marcos, em Roma e no Egito e Lucas, na Grécia

13. São Barnabé, São Timóteo e São Saturnino

14. São Lázaro, Marta e Madalena no sul da França

CAPÍTULO XVI

Glorificação de Jesus pelos Santos

1. O santo Papa Clemente

2. Santo Inácio de Antioquia

3. São Dionísio Areopagita

4. Santa Inês

5. Santa Ágata

6. Santa Dorotéa

7. Santa Apolônia

8. Santa Cecília

9. Santa Catarina de Alexandria

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CAPÍTULO XVII

Glorificação da Santa Cruz

1. Vitória e conversão de Constantino

2. Descoberta da Cruz

3. O triunfo da Santa Cruz

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VIDA, PAIXÃO E GLORIFICAÇÃO DO CORDEIRO DE DEUS” As Meditações de Anna Catharina Emmerich (1820-1823)

Aquele que deseja avançar de virtude em virtude, de graça em graça, deve meditar continuamente na Paixão de Jesus... Não há prática mais proveitosa para a inteira santificação da alma do que a freqüente meditacão nos sofrimentos de Jesus Cristo. São Boaventura MIR EDITORA São Paulo 2004

PREFÁCIO As Emocionantes e admiráveis narrativas da Paixão e Morte de Jesus Cristo, feitas pela Religiosa Agostiniana Anna Catharina Emmerich, resultantes de suas profundas meditações quaresmais, no decurso de 1820 e 1823, sem que conste discrepância alguma dos respectivos textos evangélicos, constituem uma demonstração plausível da realidade dessas visões sobrenaturais. Não se trata de fatos extraordinários submetidos às investigações científicas, mas sinceramente apreciados pela razão calma, refletida, que se conduz pelas leis do raciocínio às provas de sua veracidade. É verdade que a doutrina católica ordena e o bom senso exige que não se devem aceitar as visões ou revelações de ordem sobrenatural, sem primeiramente fazê-Ias passar pelo crivo de uma análise sensata, escrupulosa, submetida ao juízo da Igreja, evitando que se tomem suscetíveis de ser reduzidas às proporções de fenômenos naturais. Como é de esperar, deve ser esse o ponto de partida das investigações sobre a realidade das extraordinárias visões de Catharina Emmerich. Ora, é critério fundamental desse estudo conhecer quais os sinais característicos da origem das visões sobrenaturais. Primeiramente, se deve notar que a alucinação se distingue da sensação. Se estes dois fenômenos se confundem, como efeito imediato e íntimo de uma modificação material dos órgãos dos sentidos, entretanto, profunda é a sua distinção, porquanto a alucinação se passa na imaginação e, portanto, é subjetiva, e a sensação se dá no sentido e vem de um objeto exterior, é objetiva. A sensação está intimamente ligada, em sua totalidade, à ação do objeto, que é a causa. O objeto é a fonte essencial, é a medida. Suprimindo o objeto, desaparece a sensação. A sensação e a ação do objeto formam um conjunto perfeitamente unido: o objeto é o sinete e a sensação a impressão. É com sinais contrários que se reconhece a alucinação. Por não ter necessidade, para agir, das vibrações que constituem a ação própria do objeto sobre o sentido,

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conta apenas com a disposição puramente subjetiva dos tecidos nervosos do organismo vivo. É certo que os fenômenos do mundo sensível estão sujeitos às leis, de que nenhum poder natural pode dispensá-Ios. Os fantasmas da alucinação, ao contrário, estão sempre em oposição a estas leis e de um modo ridículo, como se observa constantemente. É a condição, o efeito próprio da alucinação, de que não se conhece exceção entre todos os fatos rigorosamente constatados. Escritores notáveis, Dirheimen, Schmoeger, que se ocuparam de estudar, com imparcialidade, as visões de Catharina Emmerich. Casales e Clemente Brentano, que traduziram a narração da vida e das cenas dolorosas da Paixão do Salvador, mostraram-se admirados e edificados da lealdade escrupulosa de Emmerich, que não permitiu acrescentar nem modificar o que ela viu e contemplou na integra, em obediência às suas revelações. Salientou-o ainda mais a abnegação de todo e qualquer elogio que se lhe dirigia. Na análise psicológica dos fatos visionários, os citados autores mostram que as verdadeiras sensações do sobrenatural, em Catharina Emmerich, se achavam inteiramente ligadas aos objetos que nelas imprimiam as suas imagens, conservando os órgãos de sensação uma certa independência, que facilitava a ação da vontade na recusa da influência de qualquer agente sensível com disposição anormal. Somente via, entendia e tocava o que lhe parecia ver, entender e tocar em plena objetividade. Ora, as alucinações não dependem igualmente de quem as experimenta. Penetram profundamente no íntimo dos órgãos sensórios apossam-se do sistema nervoso e da imaginação, sendo incapaz todo o es forço da vítima de poder dissipá-Ias. São verdadeiras obsessões. A cultura do espírito e, principalmente, alguns dons superiores da imaginação, podem manter certas regularidades nas concepções ou cenas preparadas sob a forma regularizada imaginativa. Tais fenômenos, porém, não podem ter lugar nos espíritos acanhados e incultos. Catharina Emmerich nasceu de pais pobres e camponeses. Aos vinte oito anos de idade, foi admitida, paupérrima, na comunidade das Agostinianas, no Convento de Duelmen. Ao penetrar nos segredos da vida interior, foi assistida da graça das visões celestiais. É de supor com que ardor espiritual, com que pureza e santidade contemplou a Vida de Jesus e da SS. Virgem, expressas em vestes maravilhosas! Como julgar que as cenas dolorosas da Paixão de Jesus Cristo, que inspiradamente traçou no quadro prodigioso de suas visões, sejam a criação artística de uma pobre e ignorante camponesa? O gênio não é a mesma coisa que a simplicidade, a ignorância e a ausência dos dons da imaginação. Ora, Catharina Emmerich, que se saiba, jamais procurou manifestar, como natural expansão de sua imaginação sem

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cultura, as sublimidades da Divina Redenção nos sofrimentos de Jesus sem uma intervenção sobrenatural. Prefaciando, embora modestamente, quando outros o poderiam fazer melhor, este livro, contendo as visões de Catharina Emmerich sobre a Paixão e Morte de Jesus, o nosso único intuito não é apreciar o valor intrínseco desse trabalho, que contém o produto sobrenatural de visões divinas, já reconhecidas pelo testemunho consciente e pelo critério judicioso, com as devidas reservas da Igreja. Apenas nos limitamos, por considerar oportuno, à exposição de diversas razões sobre o poder da imaginação, até onde será suscetível de chegar o alcance do bom senso vulgar. Em todo o correr da leitura deste livro, vê-se claramente que não pode ser uma obra de exclusiva imaginação ou uma conseqüência de alucinação, pois que se trata de representações sensíveis, que, anteriormente, não foram percebidas pelos sentidos. Ou melhor, não pode ser sintomática de alucinação toda a representação sensível, perfeitamente ordenada, cujos elementos, e não o tipo, foram percebidos pelos sentidos. A imaginação entregue a si mes-ma é condenada à desordem; não podia, precedentemente, combinar esses elementos na calma e sob a direção da razão. A representação sensível combinada dos fatos observados, as ce-nas descritas até então ignoradas, é injustificável que sejam resultados de alucinações. Não temos a pretensão de aplicar todos esses casos à série das visões de Catharina Emmerich, podendo, entretanto, dizer que não se teriam desprezado essas regras na crítica de tais revelações sob o prisma do sobrenatural, porque seria faltar a ciência, a mais elementar, não menos que o bom senso, em face da doutrina católica. Apesar deste livro não ter por objetivo doutrinar sobre um assunto que ainda não conta com o assentimento pleno e definitivo da Igreja, entretanto, não se lhe pode, negar que revela, com novos raios de luz, a verdade da mística divina, que conduz a alma cristã à sua união com Deus, na contemplação assídua do augusto mistério da Redenção. Pelo que se torna recomendável o piedoso livro à edificação dos fiéis. Todo o exposto está subordinado ao juízo decisivo da suprema Autoridade Eclesiástica. M. N. CASTRO

INTRODUÇÃO Quando os Apóstolos S. Pedro e S. João foram levados ao Grande Conselho, por causa do milagre operado no paralítico de nascimento, disse S. Pedro: "Este (Jesus) é a pedra que vós, construtores, rejeitastes; ei-Io tornado a pedra angular. Não há em nenhum outro salvação; pois nenhum outro nome foi dado aos homens que os possa tornar felizes". (Atos. 4, 11-12). Destas palavras se deduz o lugar importante que deve ocupar o

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divino Salvador, nos corações daqueles que por Ele querem chegar ao Pai celeste e à eterna bem-aventurança. Ao seu santíssimo amor sejam, pois, dedicadas estas páginas. Tratarão d’Ele, da sua vida santa, descrevendo-lhe principalmente a sagrada Paixão e Morte, que aceitou por amor de nós, para fazer-nos justos e filhos do Pai celeste, nós que eramos pecadores. Os impressionantes eventos pelos quais foi realizada esta dolorosa, mas também grandiosa obra da nossa salvação, estão descritos em letras de ouro no Livro dos livros, a Bíblia Sagrada, escrita por inspiração do Divino Espírito Santo, o Espírito da verdade, que dirigiu o escritor, de modo que tudo o que escreveu, com todo o direito é considerado e venerado como palavra de Deus. Sentimo-nos obrigados a declará-Io, antes de apresentar ao estimado leitor uma das obras póstumas de Clemente Brentamo, na qual nos relata o que uma antiga religiosa, Anna Catharina Emmerich, lhe tinha narrado da vida e morte de Nosso Senhor. A Escritura Sagrada vale mais do que tudo e não há outro livro, ainda que pareça vir de inspiração divina, que iguale o valor das palavras da Escritura Sagrada, cujo autor Deus preservou de todo e qualquer erro, o que não podemos afirmar dos que contaram mais tarde visões celestiais ou dos que as escreveram. Contudo, não somos dos que, por este motivo, desprezam as visões das almas privilegiadas. Deste modo, cada um seguirá a opinião que quiser. Pode examinar com toda a liberdade os motivos para a credibilidade destas visões e aproveitá-Ias nas suas meditações, ou pode deixar de dar-Ihes qualquer atenção. No último caso não transgredirá nenhum mandamento de Deus e, portanto, não pecará, mas renunciará deste modo, ao proveito espiritual que poderia delas tirar. Deus e a Igreja deixam-nos plena liberdade nestas coisas, contanto que creiamos o que a santa Igreja nos manda crer e que é para todos nós o único caminho da eterna bem-aventurança. Grande número de homens doutíssimos examinaram as visões da piedosa Anna Catharina Emmerich e reconheceram-lhe a credibilidade, com palavras calorosas. Citamos apenas algumas sentenças da opinião de Frederico Windischmann, professor tão piedoso como douto, mais tarde Vigário geral do arcebispado de Muenchen Freising: "A Providencia Divina escolheu em Anna Catharina um Instrumento que - preparado com os poucos conhecimentos da instrução rural, familiarizada, como se achava, somente com livros de devoção ordinários, não versada na Escritura Sagrada, privada até propriamente de uma direção espiritual, - não podia apresentar ao divino assunto um vaso humanamente tão bem formado como S. Teresa, Maria de Agreda e outras; por isso mesmo era muito menos capaz de fazer impostura, querendo imitar aqueles grandes exemplos. Pelo contrário, para provar claramente a verdade do dom

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divino, deviam as visões da jovem camponesa, despidas quase inteiramente da parte subjetiva e mística, no sentido comum desta palavra, referir-se somente ao objetivo da vida real de Jesus Cristo. Mas, justamente por isso lhe foi dado um assunto, em que não há lugar para fantasia puramente humana e para os sonhos de falsa contemplação, os quais, se quisessem imiscuir-se-Ihe, deveriam causar erros e enganos a cada passo; numa palavra: a inimitável objetividade da visão, sem reflexões místicas da vidente, é uma prova evidente da veracidade. Assim a descrição, às vezes quase fatigante, de pessoas, do respectivo aspecto, vestuário, costumes de vida; a enumeração de cidades e povoações, de caminhos e viagens, de regiões, montanhas, rios e lagos: todos estes detalhes arqueológicos tem o fim providencial: primeiro, de provar a impossibilidade de invenção, por parte da vidente ou do seu secretário; segundo, de dar à pessoa de Jesus, aparecendo e agindo com verdade histórica, um fundo histórico, do mesmo modo verdadeiro. Dissemos antes que nenhuma reflexão mística e contemplação subjetiva da vidente escurecia a objetividade das visões; mas isso não impede que, de vez em quando, resplandeça, através das pessoas e dos acontecimentos, uma luz maravilhosa de um mundo superior e que a vidente, como criança singela, nos deixe contemplar os mistérios mais profundos da Escritura Sagrada e da doutrina cristã.” Na presente obra seguimos principalmente o livro "A Paixão de Je-sus Cristo", escrito por Clemente Brentano, segundo as suas anotações, e editado pela primeira vez em 1832. (Cap. 2 - 10). Dividimos o texto em capítulos, dando-lhe mais títulos. Algumas Informações de Anna Catharina Emmerich, que somente perturbam a narração da Paixão de Jesus Cristo, foram eliminadas; outras, de mais importância, encontrará o leitor no apêndice. Por outro lado, parecia desejável dar primeiro algumas informações sobre a família do Divino Salvador, a sua infância e vida pública, até a instituição do SS. Sacramento, na noite de quinta feira da Semana Santa. O 1º. capítulo dá um resumo de tudo que a Serva de Deus viu, em muitos meses, dessa parte da vida de Jesus. Como, porém, o Divino Salvador mereceu com sua Paixão a glória da Ressurreição e Ascensão, a vinda do Espírito Santo e a propagação da Igreja, assim a história completa da Paixão exige também a narração dos fatos gloriosos da vida glorificada de Cristo; pois o próprio Salvador disse, no domingo da Páscoa, aos discípulos, no caminho de Emaús: "Não era preciso que assim sofresse o Cristo, para depois entrar na sua glória?" Narramos esses fatos gloriosos (Cap. 11 - 15), em geral, segundo as visões de Anna Catharina Emmerich, citando-a às vezes textualmente. Estranhamos que a serva de Deus mencionasse apenas em poucas palavras ou até calasse, muitas coisas que a Escritura

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Sagrada narra detalhadamente, por exemplo, as belas Palavras que o Arcanjo S. Gabriel e a SS. Virgem proferiram na Anunciação, como também a despedida de Jesus na noite da Quinta-Feira Santa, o sermão de S. Pedro no domingo de Pentecostes, a conversão e as obras de S. Paulo, etc. Vemos nisso a direção da Sabedoria Divina, que não faz coisa inútil. Mas para completar a narração, intercalamos, onde nos parecia conveniente, partes da Escritura Sagrada. Deste modo, apresentamos ao leitor a história bastante completa, apesar de curta, da Vida, Paixão e Glorificação de Jesus e desejamos ardentemente que concorra para acender e aumentar a chama de amor e gratidão ao nosso Divino Salvador. Tendo indicado o fim que visa este livro, queremos na primeira parte informar ligeiramente o leitor sobre a vida de Anna Catharina Emmerich, afim de que possa examinar e então resolver, se deve ou não dar fé às visões da Serva de Deus. Já Clemente Brentano, para não escandalizar os incrédulos, editou "A Paixão de Cristo" sob o título de "Meditações". Cada um tem assim a liberdade de tomar as narrações dessa religiosa sob esse ponto de vista ou de dar-Ihes fé mais ampla. Formalmente declaramos, portanto, conforme o decreto de Urbano VIII, que todos os fatos milagrosos contados neste livro, numa palavra, tudo que não foi confirmado pela Escritura Sagrada ou a Santa Igreja, exige somente credibilidade humana. Além disso, não queremos, de ne nhum modo, antecipar a sentença da Igreja, dando a alguém o titulo de "santo" ou "bem-aventurado", Damos a este livro o título de "Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus". Aproveitaram-se as seguintes obras: 1. A Dolorosa Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, Muenchen. 2. Vida da SS. Virgem Maria, Muenchen, 1862. 3. Vida de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. 3º. voI. Ratisbona, 1858 e 1860. 4. A cópia das notas originais de Clemente Brentano, feita pelo Revmo. Pe. João Janssen, de saudosa memória, no convento dos Redentoristas de Gars. Anna Catharina Emmerich Resumo de sua vida Anna Catharina Emmerich, filha de camponeses pobres, mas piedosos, nasceu na aldeia de Flamske, perto de Coesfeld, na Westfália, no dia 8 de Setembro de 1774 e foi batizada no mesmo dia. Desde a primeira infância, não cessou de receber do céu uma

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direção superior. Via frequentemente o Anjo da Guarda e brincava com o Menino Jesus, nos prados e no jardim. A Mãe de Deus, a Rainha do Céu, apresentava-se-lhe muitas vezes e também os Santos lhe eram bons e afetuosos amigos. Quando era criança, falava com toda a simplicidade dessas visões e fatos íntimos, pensando que as outras crianças vissem e experimentassem o mesmo; vendo, porém, que se admiravam das suas narrações, começou a guardar silêncio, pensando que era contra a modéstia falar dessas coisas. Anna Catharina tinha um gênio alegre e amável; andava, porém, quase sempre calada e recolhida. Os pais, julgando que fosse por teimosia, tratavam-na com bastante rigor. Ela conta mais tarde: "Meus pais muitas vezes me censuravam, mas nunca me elogiavam; como, porém, eu ouvisse outros pais louvarem os filhos, julgava-me a pior criança do mundo". Era, contudo, de uma grande delicadeza de consciência; a menor transgressão afligia-a tanto, que lhe perturbava a saúde. Quando fez a primeira confissão, sentia tanta contrição, que chorou alto e foi preciso levá-Ia para fora do confessionário. Na Primeira Comunhão, cheia de ardente amor, ofereceu-se de novo, sem reservas, ao seu Deus e Senhor. No verdor da mocidade, dos 12 aos 15 anos, Catharina trabalhou, como criada, em casa de um parente camponês, pastoreando rebanhos; depois voltou à casa paterna. Certa vez, trabalhando no campo, ouviu ao longe o toque lento e sonoro do sino do Convento das Anunciadas, em Coesfeld. Contava então 16 anos apenas. Sentiu-se tão fortemente enlevada com a voz daqueles sinos, que lhe pareciam mensageiros do Céu, convidando-a para a vida religiosa e tão grande lhe foi a comoção, que caiu desmaiada e foi levada para casa, onde esteve, por muito tempo, adoentada. Para conseguir mais facilmente admissão num convento, foi durante três anos trabalhar em casa de uma costureira, em Coesfeld, economizando assim 20 thalers (cerca de 3 libras Inglesas). Depois se mudou para a casa do piedoso organista Soentgen, esperando que, aprendendo a tocar órgão, se lhe facilitasse a entrada para um Convento. Mas a pobreza da família de Soentgen inspirou-lhe tanta compaixão, que, renunciando a tocar órgão, trabalhava na casa como criada, dando até as suas economias para aliviar a miséria do lar. "Deus deve ajudar agora", disse depois à mãe, "dei-lhe tudo, Ele saberá socorrer-nos a todos.” O bom Deus não deixou de ajudá-Ia, ainda que Anna Catharina só com 29 anos visse realizado o seu desejo de entrar para um convento. Quatro anos antes recebeu da bondade de Deus uma graça especial. Estava de joelhos na igreja dos padres Jesuítas, em Coesfeld, meditando e rezando diante de um crucifixo. "Então vi, conta ela mesma, vindo do Tabernáculo, onde se guardava o SS. Sacramento, o meu Esposo celeste em forma de um jovem resplandecente. Na mão esquerda trazia uma grinalda de flores, na direita uma coroa de espinhos; apresentou-mas, ambas, para eu

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escolher. Tomei a coroa de espinhos, Ele a pôs na minha cabeça e eu a apertei com ambas as mãos; depois desapareceu e voltei a mim, sentindo uma dor veemente em torno da cabeça. No dia seguinte a minha testa e as fontes, até as faces estavam muito inchadas e sofria horrivelmente. Essas dores e a inflamação voltaram muitas vezes. Não notei sangue em volta da cabeça, até que as minhas companheiras me induziram a vestir outra touca, porque a minha já estava cheia de manchas vermelhas, ferrugentas. Como Anna Catharina não tinha mais dote, ficaram-lhe fechadas as portas dos Conventos, segundo o pensamento dos homens. Mas Deus ajudou-a, como esperava. Clara Soentgen, a filha do organista, sendo também organista perfeita, foi de boa vontade recebida no convento das Agostinhas, em Duelmen. Soentgen, porém declarou então que deixava entrar a filha somente sob a condição de que admitissem também Anna Catharina. Em conseqüência disso, entraram as duas jovens para o Convento, em 18 de Setembro de 1802. O tempo do noviciado foi para Anna Catharina uma verdadeira esco-la da cruz, porque ninguém lhe compreendia o estado d'alma. Sofria, porém, tudo com paciência e amor, observando conscienciosamente a regra da Ordem. No dia 13 de Novembro de 1803, um ano depois de começar o noviciado, fez os votos solenes, tornando-se esposa de Jesus. O Esposo divino cumulou-a de novas e abundantes graças. "Apesar de todas as dores e sofrimentos", disse ela, "nunca estive tão rica no coração; minh'alma transbordava de felicidade. Eu vivia em paz, com Deus e com todas as criaturas. Quando trabalhava no jardim, vinham as avezinhas pousar sobre minha cabeça e meus ombros e cantávamos juntas os louvores de Deus. Via sempre o meu Anjo da Guarda ao meu lado e, ainda que o mau espírito me assustasse e agredisse, não me podia fazer mal. O meu desejo do SS. Sacramento era tão irresistível, que muitas vezes deixava de noite a minha cela, para ir rezar na igreja, quando estava aberta; se não, ficava ajoelhada diante da porta ou perto do muro, mesmo no inverno ou prostrada no chão, com os braços estendidos e em êxtase. Assim me encontrava o capelão do convento, Abbé Lambert (sacerdote francês, exilado da pátria, por não prestar juramento exigido pela constituição atéia), que tinha a caridade de vir mais cedo, para dar-me a sagrada Comunhão. Mas, logo que se aproximava para abrir a igreja, eu voltava a mim, indo depressa à mesa da Comunhão, onde achava o meu Deus e Senhor.” Como tantos Conventos, no princípio do século 19, também o Convento de Agnetenberg foi fechado a 3 de Dezembro de 1811. As piedosas freiras foram obrigadas a abandonar, uma após outra, o querido mosteiro. Anna Catharina, doente e pobre, ficou até a primavera seguinte, quando se mudou para uma pequena casa em Duelmen. No outono do mesmo ano (1812), lhe apareceu de novo o

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Divino Salvador, como um jovem resplandecente e entregou-lhe um crucifixo, que ela apertou com fervor de encontro ao coração. Desde então lhe ficou gravado no peito um sinal da cruz, do tamanho de cerca de três polegadas, o qual sangrava muito, a princípio todas as quartas-feiras, depois nas sextas-feiras, mais tarde menos freqüentemente. A estigmatização deu-se-lhe poucos dias depois, a 29 de Dezembro. Nesse dia, às 3 horas da tarde, estava deitada, com os braços estendidos, em êxtase, meditando na Sagrada Paixão de Jesus. Viu então, numa luz brilhante, o Salvador crucificado e sentiu um veemente desejo de sofrer com Ele. Satisfez-se-Ihe esse desejo, pois saíram logo das mãos, dos pés e do lado do Senhor raios luzidos cor de sangue, que penetraram nas mãos, nos pés e no lado da Serva de Deus, surgindo logo gotas de sangue nos lugares das chagas. Abbé Lambert e o confessor da vidente, Pe. Limberg, viram-nas sangrar dois dias depois, mas com sábio propósito fingiram não dar importância ao fato, na presença da Serva de Deus. Ela mesma procurava esconder os sinais das chagas, o que lhe era fácil, porque desde o dia 2 de Novembro de 1812 estava de cama, adoentada. Desde então não pôde mais tomar alimento, a não ser água, misturada com um pouco de vinho, mais tarde só água ou, raras vezes, o suco de uma cereja ou ameixa. Assim vivia só da sagrada Comunhão. Esse estado e a estigmatização tornaram-se públicos na cidade, em Março de 1813. O Vigário de Duelmen, Pe. Rensing, encarregou dois médicos, os Drs. Wesener e Krauthausen, como também o confessor, de fazerem um exame das chagas, que freqüentemente sangravam. Os autos foram mandados à autoridade diocesana de Muenster, a qual enviou o Rev. Pe. Clemente Augusto de Droste Vischering, mais tarde Arcebispo de Colônia, o deão Overberg e o conselheiro medicinal Dr. von Drueffel a Duelmen, para fazerem outra investigação, que durou três meses. O resultado foi a confirmação da verdade das chagas, da virtude e também o reconhecimento do caráter sobrenatural do estado da jovem religiosa. Também a autoridade secular, querendo examinar e "desmascarar a embusteira”, mandou, em 1819, uma comissão de médicos e naturalistas; isolaram-na por isso em outra casa, rigorosamente observada, do dia 7 a 29 de Agosto, o que lhe causou muita humilhação e sofrimento; também o resultado desse exame lhe foi favorável. No ano anterior, viera visitá-Ia pela primeira vez o poeta Clemente Brentano, recomendado pelo deão Overberg; a 17 de Setembro ele a viu pela primeira vez. Ela, porém, já o tinha visto muito antes, nas visões e recebido ordem do Céu para comunicar-lhe tudo. "O Peregrino", como o chamava, ficou até Janeiro de 1819, mas voltou de novo, para ficar com ela, no mês de maio. Foi para Catharina um amigo fiel até a morte, mas fê-Ia sofrer também às vezes, com seu gênio veemente. Reconheceu a tarefa que lhe fora

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dada por Deus, de escrever as visões desta mártir privilegiada e dedicou-se a isso com cuidado consciencioso. "O Peregrino" escrevia durante as narrações, em tiras de papel, os pontos principais, que imediatamente depois copiava, completando-os de memória. A cópia, a limpo, lia à Serva de Deus, corrigindo, acrescentando, riscando sob a direção de Catharina, não deixando nada que não tivesse recebido a confirmação expressa de fiel interpretação. Pode-se imaginar a grande facilidade que a prática diária, através de alguns anos, trouxe ao "Peregrino" para esse trabalho, dada a sua extraordinária inteligência e perseverança, como também o fato de ver nesse serviço uma obra santa, para a qual costumava preparar-se com orações e exercícios piedosos; assim podemos confiar que não lhe tenha faltado aos esforços o auxílio de Deus. O escrúpulo e a consciência com que procedia nesse trabalho, nunca lhe permitiram, durante tantos anos, resposta alguma aos que atribuíam grande parte das visões à imaginação do poeta, o que equivale a dizer que, homem sério que era, na tarde da vida se teria dado a esse incrível trabalho, para enganar conscientemente a si mesmo e aos outros". "Ela falava geralmente baixo-alemão, no êxtase, também o idioma mais puro; a sua narração era, ora de grande singeleza, ora cheia de elevação e entusiasmo. Tudo que ouvi e que, nas dadas condições, só raras vezes e apenas em poucas palavras podia anotar, escrevia eu mais extensamente em casa, imediatamente depois. O Doador de todos os bens deu-me a memória, a aplicação e elevação da alma acima dos sofri mentos, que tomaram possível a obra, como está. O escritor fez tudo que era possível e pede, nesta convicção, ao benévolo leitor a esmola da oração". Anna Catharina deu também a este trabalho plena aprovação. Quando estava num profundo êxtase, a 18 de Dezembro de 1819 e Brentano lhe apresentou uma folha, com as anotações, disse ela: "Estes são papéis de letras luminosas. O homem (isto é, o Peregrino) não escreve de si mesmo; tem para isto a graça de Deus. Nenhum outro pode fazê-lo; é como se ele mesmo visse". Anna Catharina viu no êxtase toda a vida e paixão do Divino Salvador e de sua Santíssima Mãe; viu os trabalhos dos Apóstolos e a propagação da Santa Igreja, muitos fatos do Velho Testamento, como também eventos futuros. Tocando em relíquias, geralmente via a vida, as obras e os sofrimentos dos respectivos Santos. Com certeza reconhecia e determinava as relíquias dos Santos, distinguindo em geral facilmente objetos sagrados de profanos. Adversários da Serva de Deus querem negar-lhe o caráter sobrenatural das informações recebidas durante os êxtases, alegando que Anna Catharina tirava a maior parte dos conhecimentos de livros, que antes teria lido. Mas isso não está de conformidade com o que Peregrino escreveu, em 8 de Maio de 1819 Ela me disse que nunca fora capaz de aproveitar coisas de livros

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e que sempre pensava: - Ora, tal livro não há de fazer pecar. Também não pôde guardar na memória coisas da Escritura Sagrada; mas tem da vida do Senhor a graça de tal intuição, que a consciência e certeza, que disso tenho, às vezes me fazem tremer, por manter um trato tão familiar e simples com uma criatura de Deus tão maravilhosa e privilegiada, como talvez não haja outra". Em outra ocasião ela disse ao Peregrino: "Nunca tive lembrança viva de histórias do Antigo Testamento ou dos Evangelhos, pois vi tudo com os meus próprios olhos, durante a minha vida inteira; o mesmo vejo cada ano de novo e nas mesmas circunstâncias, ainda que às vezes em outras cenas. Umas vezes estive naqueles lugares, no meio dos espectadores, assistindo aos acontecimentos, acompanhando-os e mudando de lugar; mas não estive sempre no mesmo lugar, pois às vezes fui levada para cima da cena, olhando deste modo para baixo. Outras coisas, principalmente os mistérios, vi-os mais com a vista interior da alma, outras em figuras separadas da cena: em todos os casos se me apresentava tudo transparente, de modo que nenhum corpo cobria o outro, nem havia confusão". Com todas estas grandes graças, Anna Catharina permanecia humilde, simples e singela como uma criança. Mostrava-se sempre obediente aos pais e às superioras religiosas, como também ao confessor e diretor espiritual. Se lhe mandavam tomar remédio, consentia, apesar de prever-lhe o mau efeito. Mesmo em êxtase, obedecia imediatamente à chamada do confessor. Era à dolorosa Paixão de Nosso Senhor que tinha uma devoção especial e rezava por isso muitas vezes, enquanto lhe era possível, a Via Sacra erigida ao longo de um caminho de quase duas léguas, nos arredores de Coesfeld. Nos domingos fazia essa devoção em companhia de algumas jovens piedosas, nos dias úteis a fazia muitas vezes de noite. Clara Soentgen, sua amiga, conta: "Muitas vezes ela se levantava de noite, saindo furtivamente de casa e rezava descalça a Via Sacra. Se a porta da cidade estava fechada, pulava os altos muros, para poder ir à Via Sacra; às vezes caía dos muros abaixo, mas nunca se machucava". Além dos muitos padecimentos que sofria com paciência e perseverança, exercitava-se constantemente nas mortificações voluntárias. Já na infância costumava privar-se de parte do sono e da comida. Muitas horas da noite passava velando e rezando; comia e bebia o que os outros recusavam, levando as comidas melhores aos doentes e pobres, dos quais tinha muita compaixão. O amor ao próximo impelia-a a pedir a Deus que, por favor, lhe desse a sofrer as doenças e dores dos outros ou que a deixasse cumprir os castigos merecidos pelos pecadores. Já o fizera na infância e fazia-o depois de um modo muito mais intenso. "A tarefa principal da sua vida, escreve Clemente Brentano, era sofrer pela Igreja ou por alguns meP1bros da mesma, cuja necessidade lhe era

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dada a conhecer em espírito ou que lhe pediam a intercessão". Anna Catharina aceitava de boa vontade tais sofrimentos e trabalhos. Muitas vezes, porém, Se tornavam estes tão grandes e pesados, que parecia prestes a morrer. Quando um dia, quase sucumbindo ao peso das dores, pediu ao Senhor que não a deixasse sofrer mais do que podia suportar, apareceu-lhe o Esposo Celeste e disse: "Coloquei-te no meu leito nupcial das dores, com as graças dos sofrimentos, adornada com os tesouros da reconciliação e com as jóias das boas ações. Deves sofrer. Não te abandono; estás amarrada à videira, não perecerás". Também as almas do purgatório se lhe dirigiam muitas vezes, pedindo-lhe socorro; e ela provava de boa vontade sua compaixão ativa. "Fiz um contrato com meu doce Esposo do Céu", conta ela, que cada gota de sangue, cada pulsar do coração, toda a minha vida e todos os meus atos devem sempre clamar: "Almas queridas do purgatório, saúdo-vos pelo doce Coração de Jesus". Isso faz bem a essas infelizes e alivia-as, pois são tão pacientes!” Depois de muitos e indizíveis sofrimentos, chegou o dia da sua morte a 9 de Fevereiro de 1824. A 15 de Janeiro desse ano dissera a Serva de Deus: "Na festa de Natal o Menino Jesus me trouxe muitos sofrimentos, hoje me deu ainda maiores, dizendo: "Tu me pertences, és minha esposa: sofre como eu sofri; não perguntes porque, é para a vida e para a morte". Ela jaz com febre, com dores reumáticas e convulsões, escreve o Peregrino, mas sempre em atividade espiritual, em prol da santa Igreja e dos moribundos. O confessor pensa que ela em pouco terminará, porque disse no êxtase, com grande serenidade "Não posso aceitar outro trabalho, já estou próxima do fim". Ela pronuncia, com voz de moribunda, só o nome de "Jesus". A 27 de Janeiro recebeu a Extrema-Unção. Aumentaram-lhe as dores; mas repetia de vez em quando: "Ai, meu Jesus, mil vezes vos agra-deço toda a minha vida; não a minha vontade, mas a Vossa seja feita". Na véspera da morte rezou: "Jesus, para Vós morro; Senhor, dou-Vos graças, não ouço nem enxergo mais". Quiseram mudar-lhe a posição, para aliviá-Ia, mas Anna Catharina disse: Estou deitada na cruz; deixem-me, em pouco acabarei". Recebeu mais uma vez a sagrada Comunhão, a 9 de Fevereiro. Suspirando pelo Divino Esposo, rezou diversas vezes: "Oh! Senhor, socorrei-me; vinde, meu Jesus". O confessor assistiu à moribunda, dando-lhe muitas vezes o crucifixo para beijar e rezando preces pelos moribundos. Ela ainda lhe disse: "Agora estou tão sossegada; tenho tanta confiança, como se nunca tivesse cometido pecado". Deram justamente 8 horas da noite, quando exclamou três vezes, gemendo: "Oh! Senhor, socorrei-me, vinde, oh! meu Senhor!" E a alma pura voou-lhe ao encontro do Esposo Celeste, para permanecer, como esperamos confiadamente, eternamente unida com Ele, na infinita felicidade do Céu.

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Com grande concorrência do povo foi sepultado o corpo da Serva de Deus, no cemitério de Duelmen, onde jaz ainda. Na noite de 21 a 22 de Março de 1824 foram abertos o sepulcro e o caixão, em presença do prefeito da cidade e do delegado de polícia. Viu-se que a decomposição ainda não tinha começado. Uma segunda abertura do sepulcro foi feita, no dia 6 de Outubro de 1858, pela autoridade eclesiástica. Anna Catharina achou muitos veneradores na Alemanha e longe, além das fronteiras, que se alegraram pela abertura do processo chama-do de informação, feito pela autoridade diocesana de Muenster, no ano de 1892. Encerrou-se esse processo no ano de 1899, sendo os documentos enviados à Santa Sé em Roma, para pedir a beatificação da piedosa sofredora. Oxalá que essa honra seja dada pelo chefe da Igreja, para a glória de Deus, que é "admirável nos seus Santos!” 1 Família, amigos, infância e mocidade de Jesus 1. Nosso Divino Salvador, como plenitude e consumação dos tempos. 2. Da família altamente privilegiada de Nosso Senhor 3. Os discípulos do Senhor e outras pessoas bíblicas 4. Infância de Nossa Senhora e seu desposório com São José 5. Anunciação e Visitação de Nossa Senhora 6. A viagem a Belém e o nascimento de Nosso Senhor 7. Os ascendentes dos três Reis Magos e a viagem destes a Belém 8. Apresentação de Jesus no Templo e fuga para o Egito 9. Da mocidade de Jesus. Sua permanência em Jerusalém onde ensina aos doutores da lei e é encontrado pelos pais no Templo 10. A vida do Senhor, até o começo de suas viagens apostólicas 11. As viagens apostólicas de Jesus, antes do seu Batismo no Jordão . 12. Vida pública de João Batista 13. O Batismo de Jesus e o jejum de quarenta dias. 14. Eleição dos primeiros discípulos e o milagre de Caná 15. Resumo do primeiro ano da vida pública de Jesus. 16. Resumo do segundo ano da vida pública de Jesus 17. Resumo do terceiro ano da vida pública de Jesus 18. Notas gerais sobre a personalidade de Jesus e seu modo de ensinar 19. Os milagres de Jesus 20. Judas, o traidor e seu procedimento na última refeição, em Betânia 21. A Jerusalém antiga

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Família, amigos, infância e mocidade de Jesus 1. Nosso Divino Salvador, como plenitude e consumação dos tempos A Escritura Sagrada diz: "Quando veio a plenitude dos tempos, enviou Deus o seu Filho, nascido de mulher, sujeito à lei, afim de remir os que estavam debaixo da lei, para que recebêssemos a adoção de filhos." (Gal. 4, 4-5). Essas palavras nos ensinam que, com a vinda do Redentor a este mundo, começou uma era nova, a qual a Escritura Sagrada chama a plenitude e consumação de todos os tempos. A era de-Jesus Cristo foi a plenitude dos tempos, porque nele se cumpriram todas as predições dos profetas. Foi-o também, porque em Jesus Cristo começou a última e perfeita era. Quantos períodos já tinham passado antes de começar esta última e mais sublime era! Segundo o que nos ensinam as ciências, tanto as profanas como as sagradas, já a haviam precedido muitos e, em parte, longos espaços de tempo. Assim a era sideral, em que foram criados por Deus, os astros, com o respectivo movimento e desenvolvimento; depois a era telúrica, em que a terra, até então uma massa ígnea em fusão, começou a formar em si uma crista firme, mais e mais espessa. Depois a era orgânica, em que Deus ornou e encheu a terra de plantas e animais; afinal a era histórica, que teve princípio com a criação dos primeiros homens. Mas esta última teve ainda diversos períodos; pois no princípio ficaram os homens sob o império da lei natural, que Deus lhes gravou em letras indeléveis na consciência; com ela todos os homens conhecem o que devem fazer ou deixar de fazer e por isso Deus exige a observação dessa lei de todos os homens, mesmo dos pagãos que não o conhecem. Mas Deus não se contentou com isso; quis entrar em relações com os homens, pela graça e conduzir aqueles que lhe obedecessem, a uma união mais íntima consigo. Mas também nesse desígnio procedeu gradualmente. A primeira aliança foi a que começou pela escolha de Abraão para ser pai do povo de Israel e acabou com a promulgação da lei, no monte Sinai. Em conseqüência dessa aliança, entrou o povo de Israel em relações mais estreitas com Deus. Recebeu d’Ele um culto novo, novas leis e a promessa consoladora de que do seu seio proviria o Salvador. Para esse fim, serviam todas as leis especiais, cerimônias e preceitos do Velho Testamento; até dos pecados e das desgraças do povo israelita sabia o Senhor, pela sua Divina Providência, dirigir os efeitos, de modo que lhe serviam aos divinos desígnios. Sob esse ponto de vista encara a Serva de Deus especialmente a formação daquela família, da qual devia nascer o divino Salvador. Quando o Redentor apareceu neste mundo, terminou a velha Aliança, porque estava realizado o seu fim: os bons, entre os judeus e

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também entre os gentios, reconheceram o seu estado pecaminoso e a necessidade da salvação, anelando ansiosos pelo Messias. Começou então uma segunda Aliança, abundante em graças, a qual foi confirmada no monte Sião, em Jerusalém, pela vinda do Espírito Santo, no dia de Pentecostes. Com essa Nova Aliança, que durará até o fim do mundo, principiou a consumação dos tempos, na qual foi proporcionada aos homens pecadores a salvação abundante em Jesus Cristo e pela qual somos elevados do estado de servidão ao estado de liberdade e à dignidade de filhos de Deus. 2. Da família altamente privilegiada de Nosso Senhor O evangelista S. Mateus começa a genealogia do Divino Salvador, segundo a sua humanidade, com as seguintes palavras "Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão.” Reduz assim a linhagem do Salvador a Abraão, o pai do povo de Israel. Jesus descendeu dele por Judá e Davi; era, portanto, da tribo de Judá e da família real de Davi. Catharina Emmerich narra a seguinte visão: "Vi a linhagem do messias dividir-se em Davi em dois ramos. A direita passou a linha através de Salomão, acabando em Jacó, pai de José, esposo de Maria. Essa linha corria em direção mais alta; partia em geral da boca e era inteiramente branca, sem cores. As pessoas ao lado da linha eram todas mais altas do que as da linha oposta. Todas seguravam na mão uma haste de flor, do tamanho de um braço, com folhas semelhantes às da palmeira, que se dependuravam em volta do ramo. Na ponta da haste havia uma flor campanada, branca, com 5 estames amarelos, que espalhavam um pó fino. Três membros desta linha, antes do meio, contados de cima, estavam eliminados, enegrecidos e ressequidos. As flores variavam em tamanho, beleza e vigor; a de José era de grande pureza, com as pétalas frescas e brancas, era mais bela. Vi esta linha unir-se pelo fim com a linha oposta, por um raio luzido; a significação sobrenatural e misteriosa desse raio me foi revelada: referia-se mais à alma e menos à carne; tinha algo da significação de Salomão; não sei explicá-lo bem. A linha da esquerda passou de Davi por Natan até Helí, que é o verdadeiro nome de Joaquim, pois recebeu este nome só mais tarde, como Abrão o de Abraão. Eu sabia o motivo desta troca e sabê-lo-ei talvez de novo. José foi chamado muitas vezes nas minhas visões "filho de HeIí”. Toda essa linha vi passar mais baixo; tinha diversas cores e manchas cá e lá, mas saia depois mais clara. Era vermelha, amarela e branca; não havia azul. As pessoas ao lado eram menos altas do que as do lado oposto; tinham ramos mais curtos, pendentes para o lado, com folhas verde-amarelas e

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dentadas, os quais rematavam em um botão avermelhado, da cor da rosa silvestre; em parte estavam vigorosos: em outra parte murchos; o botão não era tanto um botão de flor, mas um ovário e sempre fechado. Sant' Ana descendeu, pelo pai, da tribo de Leví, pela mãe, da de Benjamin. Vi alguns de seus avós carregarem a Arca da Aliança, mui piedosos e devotos e notei que receberam nessa ocasião raios do mistério, os quais se lhe referiam à descendência: Ana e Maria. Vi sempre muitos sacerdotes freqüentarem a casa paterna de Ana, como também a de Joaquim; dai o parentesco com Isabel e Zacarias. No ramo de Salomão havia diversas lacunas; os frutos, estavam mais separados, mas as figuras eram maiores e mais espirituais. As duas linhas tocaram-se várias vezes; três ou quatro membros, talvez, antes de Helí, se cruzaram, acabando afinal em cima, com a SS. Virgem Maria. Creio que nesses cruzamentos já vi principiar o sangue da SS. Virgem.” Os membros eliminados significam provavelmente ascendentes pecaminosos do Salvador. Se bem que Ele mesmo seja o "Santo dos Santos" e também tenha por Mãe uma Virgem Imaculada e por pai nutrício S. José, houve, todavia, pecadores e pecadoras entre os seus antepassados, por exemplo, o rei Salomão, Asa, Joram, Achaz, Manasses, Tamar e Betsabé; até duas pagãs: Racháb e Rut. Com certeza Jesus assim o permitiu, para manifestar a sua misericórdia e o seu amor para com os pecadores e também a intenção que tinha, de fazer participar da Redenção os gentios e conduzí-Ios à eterna bem-aventurança. Segundo as narrações de Anna Catharina Emmerich, eram os avós de Maria Santíssima piedosos Israelitas, que estavam em íntimas relações com os Essenos, os quais formavam uma espécie de ordem religiosa. "Vi os avós da SS.Virgem, conta Anna Catharina, gente extraordinariamente piedosa e simples, que alimentava secretamente o vivo desejo da vinda do Messias prometido. Vi-os levar uma vida mortificada; os casados muitas vezes fizeram a promessa de mútua continência durante certo tempo. Eram tão piedosos, tão cheios de amor a Deus, que os vi freqüentemente sozinhos no campo deserto, de dia e também de noite, clamando por Deus com um desejo tão veemente, que arrancavam as vestes do peito, como para deixar que Deus entrasse pelos raios do sol, ou como para saciar com o brilho da lua e das estrelas a sede que os devorava, do cumprimento da promissão.” Segundo Anna Catharina, chamava-se Emorun a avó de Sant'Ana e teve do matrimônio com Stolanus três filhas, uma das quais Isméria, foi mais tarde a mãe de Sant'Ana. Ana tinha uma irmã mais velha, chamada Sobe e uma mais moça, com o nome de Maharha e uma terceira, que era casada com um pastor. O pai de Ana, de nome Eliud, era da tribo de Leví, ao passo que

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a mãe pertencia à tribo de Benjamin. Ana nasceu em Belém, mas os pais foram depois viver em Seforis, perto de Nazaré. Após a morte de Isméria, Eliud morava no vale de Zabulon. Ali se encontraram Ana e Joaquim e travaram conhecimento. O pai de Joaquim, Matthat, era o segundo irmão de Jacó, pai de S. José. Joaquim, cujo nome legitimo era Helí, e José eram descendentes, pelo lado paterno, da estirpe real de Davi (1). Joaquim e Ana, depois de casados, levaram uma vida piedosa e benfazeja, primeiro em casa do pai, Eliud, depois em Nazaré. A filha mais velha recebeu o nome de Maria Helí; conheceram, porém, que esta não era a filha da promissão. Ana e Joaquim rezavam muitas vezes com grande devoção e davam muitas esmolas. Assim viveram 19 anos depois do nascimento da primeira filha, em contínuo desejo da filha prometida e em crescente tristeza. Além disso ainda eram insultados pelo povo. Quando um dia Joaquim quis oferecer um sacrifício no Templo, recusou-o o sacerdote, repreendendo-o por sua esterilidade. Joaquim, muito abatido, não voltou a Nazaré, mas viveu cinco semanas escondido, com os rebanhos, ao pé do monte Hermon. Com isso aumentou ainda a tristeza de Ana, que chorou e rezou muito. Um dia, quando rezava com grande aflição, eis que lhe apareceu um Anjo, anunciando-lhe que Deus lhe ouvira a oração. Mandou-a ir a Jerusalém, onde se encontraria com Joaquim na Porta Áurea. Na noite seguinte lhe apareceu de novo um Anjo, dizendo que conceberia uma filha santa; e escreveu o nome de Maria na parede. (1) José e Joaquim tinham a mesma avó. Depois da morte do primeiro marido. Matan, pai de Jacó, ela se casou com Leví. Dessa união nasceu Matthat, pai de Joaquim. Joaquim teve também a aparição de um Anjo; foi por isso ao Templo, ofereceu um sacrifício e recebeu nessa ocasião a bênção da promissão ou o santo da Arca da Aliança. (2) Ana e Joaquim encontraram-se na Porta Áurea, transbordando de alegria e felicidade. Ali, diz Catharina Emmerich, lhes veio aquela abundância da divina graça, pela qual Maria recebeu a existência, somente pela santa obediência e pelo puro amor de Deus, sem qualquer impureza dos pais.” Desse modo, após muitos anos de oração fervorosa, alcançou esse santo casal, Joaquim e Ana, aquela pureza e santidade, que os tomou aptos para receberem, sem o fomento da concupiscência, a santa filha, que foi escolhida por Deus para ser a Mãe do Redentor. 3. Os discípulos do Senhor e outras pessoas bíblicas Para facilitar a leitura e a compreensão do livro, damos algumas

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informações sobre os discípulos de Jesus e outras pessoas mencionadas freqüentemente durante a narração, informações colhidas das comunicações de Anna Catharina Emmerich. (2) Dessa bênção da promissão conta Anna Catharina o seguinte: Quando Eva foi formada. vi que Deus deu uma coisa a Adão: era como se torrentes de luz emanassem de Deus. aparecendo-lhe em forma humana, da fronte, da boca, do peito e das mãos e se unissem numa esfera de luz, que entrou no lado direito de Adão, do qual Eva foi tirada. Somente Adão o recebeu. Era este o germe da bênção de Deus. Por ter comido do fruto proibido. foi tirada a Adão essa bênção de geração pura e santa em Deus. Vi a segunda Pessoa divina descer com algo em forma de cutelo na mão e tirar a bênção a Adão. antes deste consentir no pecado. Abraão recebeu depois a bênção da promissão, quando o Anjo o abençoou; após ele, também Moisés. do qual veio a Arca da Aliança. Vi este Mistério ou a bênção numa espécie de invólucro, como um conteúdo, um ser ou uma força. Era pão e vinho, carne e sangue; era o germe da bênção antes do primeiro pecado; era a existência sacramental da geração antes do pecado, conservada aos homens pela religião, que lhes possibilitou, pela piedade, uma estirpe mais e mais purificada, que finalmente terminou em Maria, que concebeu pelo Espírito Santo o Messias, há tanto tempo anelado. Vi diversas vezes o Sumo Pontífice, estando no Santo dos Santos, empregar a bênção da promissão, como uma arma ou uma força, movendo-a de um lado para outro, para conseguir proteção ou bênção, concessão de uma graça pedida. um benefício ou um castigo. Não a tocava com as mãos nuas. Mergulhava-a também na água, para fins santos, a qual se dava a beber, como bênção Isméria, mãe de Sant’Ana. bebeu também dessa água e foi assim disposta para a conceição de Ana. Esta não bebeu da água sagrada; pois a bênção já estava com ela". Zacarias e Isabel, os santos pais de S. João Batista, moravam em Juta, perto de Hebron. Por sua conhecida virtude e descendência reta de Aarão, gozavam ambos de alta estima do povo; Zacarias figurava como chefe de todos os sacerdotes que moravam em Juta. Isabel era filha de Emerenciana, irmã de Isméria, que era a mãe de Sant'Ana. Por isso chama a Escritura Sagrada a Isabel prima de Maria. Maria, Mãe de Jesus, tinha uma irmã mais velha, de nome Maria Helí, cujos filhos eram Tiago, Sadah e Heliachim. Uma filha de Maria Helí era chamada pelo nome do pai - Maria Cleophas, que quer dizer Maria filha de Cleophas. Esta teve do primeiro marido, Alfeu, três filhos: Judas Tadeu, Simão e Tiago o Menor e uma filha, Suzana. Alfeu, que era viúvo, trouxe para esse matrimônio um filho, de nome Mateus, antes chamado Leví, que

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mais tarde tinha uma aduana perto de Betsaida, no lago Genezaré. Do segundo matrimônio, com Sabás, teve Maria Cleophas um filho, de nome José Barsabas, chamado na Escritura Sagrada "Joseph". Depois da ascensão de Jesus, foi ele, junto com Matias, escolhido para um deles ocupar entre os Apóstolos o lugar de Judas; a sorte designou Matias. Do terceiro matrimônio de Maria Cleophas, com Jonas, irmão mais moço do sogro de São Pedro, nasceu Simeão, que, depois do martírio de seu irmão Tiago o Menor, lhe sucedeu na cadeira de Bispo de Jerusalém. Todos esses filhos de Maria Helí e Maria Cleophas se tornaram discípulos de Jesus, alguns até Apóstolos (Judas, Simão, Tiago e Mateus). Quatro filhos de Maria Cleophas são chamados no Evangelho "irmãos (isto é, parentes) de Jesus". (Mat. 13,55) Pedro e André eram irmãos germanos; eram filhos de Jonas. Ambos viviam de pescaria e moravam no lago Genezaré; Pedro em Cafarnaum, André em Betsaida. Pedro casou com a viúva de um pescador, a qual lhe trouxe do primeiro matrimônio dois filhos e uma filha; esta será provavelmente a Santa Petronila, muitas vezes mencionada como filha de S. Pedro. Pedro, porém, não teve filhos; tinha quase a idade de Judas Tadeu, cinco anos mais que Jesus. André tinha dois anos mais do que Pedro. Era pai de dois filhos e duas filhas; depois da sua vocação ao apostolado, viveu em perfeita continência. Tiago o Maior e S. João Evangelista eram também irmãos, filhos de Zebedeu; a mãe chamava-se Maria Salomé e era filha de Sobe, irmã de Sant' Ana e, portanto, tia da Mãe de Deus. Foi ela que um dia apresentou os filhos ao Salvador, pedindo-lhe que os colocasse um à sua direita e o outro à sua esquerda, no reino do céu. S. Tiago tomou-se o Apóstolo da Espanha; seu sepulcro, em Compostela, é um lugar célebre de romaria. São João pregou em Éfeso, na Ásia Menor, onde morreu, na idade de mais de 100 anos, sendo o único dos Apóstolos que teve morte natural. Era o discípulo predileto do Salvador, não somente por sua fidelidade, singeleza e amor, mas também por causa de sua vida casta e pura. O Apóstolo S. Filipe morava em Betsaida e foi conduzido a Jesus por André. Bartolomeu era Esseno. O pai, Tolmai, era descendente do rei Tolmai de Gessur, cuja filha era casada com o rei Davi. Como escrivão, Bartolomeu era conhecido de Tomé, que tinha a mesma profissão e vivia em Arimatéia. De Judas Iscariotes falaremos por extenso no número 20 deste capítulo. O santo Apóstolo Matias era natural de Belém e pregou o Evangelho na Palestina. O Apóstolo S. Paulo pertencia à tribo de Benjamin e era natural de Gischala, a três léguas do monte Tabor. Os pais mudaram-se mais tarde para Tarso. Em Jerusalém teve Paulo como mestre o célebre

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e douto Gamaliel. Antes da conversão era partidário zeloso da lei de Moisés e por isso adversário encarniçado dos cristãos. O santo evangelista Marcos era pescador perto de Betsaida e tornou-se um dos primeiros discípulos de Jesus. S. Lucas Evangelista era natural de Antioquia; estudou pintura na Grécia e depois medicina e astronomia numa cidade do Egito. Durante a vida de Jesus, não se lhe associou, nem aos Apóstolos, ficando muito tempo indeciso, até que foi confirmado na fé pelo próprio Senhor, no domingo da Páscoa, em Emaús. Cleophas, que junto com Lucas foi favorecido com a aparição de Jesus, era neto do tio paterno de Maria Cleophae. José de Arimatéia (assim chamado porque era natural de Arimatéia) e Nicodemos eram escultores. Ambos moravam em Jerusalém e eram membros do Conselho do Templo. Mais pormenores veja no apêndice no. 10. Menção especial merece-nos a família de Lázaro, que tinha íntimas relações com Jesus e sua SS. Mãe. Vindo Jesus a Betânia, onde morava Lázaro, ou a Jerusalém, hospedava-se geralmente em casa de Lázaro, um edifício em forma de castelo, rodeado de jardins e plantações. A irmã de Lázaro, Marta, tinha dois anos menos e Madalena nove anos menos do que ele. Uma terceira irmã, chamada Maria, a silenciosa, que era considerada como mentecapta, não é mencionada nos Evangelhos. Depois da morte dos pais coube a Madalena por sorte o castelo de Magdala, na banda oriental do lago Genezaré. Na idade de onze anos ali se instalou com grande pompa e começou a levar uma vida suntuosa. Ainda muito moça, deixou-se arrastar a aventuras amorosas, tornando-se assim um escândalo para os irmãos, que viviam muito simples e recolhidos em Betânia. No começo do segundo ano da vida pública de Jesus, Madalena assistiu a um dos sermões do Divino Mestre e ficou inteiramente pertur bada e arrependida; pouco depois ungiu os pés do Salvador, em casa de Simão Zabulon e recebeu nessa ocasião a consoladora certeza de que os pecados lhe foram perdoados. Mas pouco tempo depois recaiu nos mesmos vícios. Pelos insistentes rogos de Marta, deixou-se levar a assistir mais uma vez à pregação de Jesus. Enquanto o Salvador falava, saíram os maus espíritos de Madalena que, muito contrita, se juntou às santas mulheres. Lázaro recebeu uma prova especial do amor de Jesus na milagrosa ressurreição, depois do corpo já lhe haver estado quatro dias no sepul cro. Outros pormenores sobre Lázaro, Marta e Madalena se encontram nos números 14 e 15 deste capítulo. O Evangelho e também a vidente mencionam muitas vezes as "santas mulheres"; além das já conhecidas, Maria Helí, Maria Cleophae, Marta, Madalena, Maria Salomé, mulher de Zebedeu e Suzana, filha de Alfeu, pertenciam ao grupo das santas mulheres ainda as seguintes:

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1. Verônica, (propriamente: Seráfia) prima de São João Batista e cujo marido, de nome Sirach, era membro do Conselho do Templo. Veja apêndice, no. 4. 2. Maria Marcos, mãe de João Marcos, que morava fora dos muros de Jerusalém, defronte do monte das Oliveiras. 3. Joana Chusa, viúva sem filhos, natural de Jerusalém. 4. Salomé, também viúva; morava em casa de Marta, em Betânia; era parenta da família por um irmão de José. 5. Suzana, de Jerusalém, filha do irmão mais velho de José, Cleophas e deste modo parente da família, como Salomé. 6. Dina, a Samaritana, que falara com Jesus no poço de Jacó e que se juntara às santas mulheres, depois da conversão. 7. Maroni, a viúva de Naim, cujo filho, Martialis, Jesus ressuscitara dos mortos. 8. Maria Sufanitis, Moabita, que Jesus livrara de um mau espírito. 4. Infância de Nossa Senhora e seu desposório com São José Maria tinha três anos e três meses, quando fez o voto de associar-se às virgens santas, que se dedicavam ao serviço do Templo. Antes da partida, fizeram na casa paterna uma grande festa, à qual estiveram presentes cinco sacerdotes, que sujeitaram Maria a uma espécie de exame, para ver se já chegara à idade de juízo e madureza de espírito, para, ser admitida no Templo. Disseram-lhe que os pais tinham feito por ela o voto, que não devia beber vinho ou vinagre, nem comer uvas ou figos. Maria ainda acrescentou que não comeria nem peixe, nem especiarias, nem frutas, senão uma espécie de pequenas bagas amarelas, que não beberia leite, dormiria na terra e se levantaria três vezes durante a noite para rezar. Os pais de Maria ficaram muito comovidos com estas palavras. Joaquim abraçou a filha, exclamando, entre lágrimas: "Oh, minha querida filha, isto é duro demais; se assim queres viver, teu velho pai não te verá mais." - Foi um momento de profunda comoção. Os sacerdotes, porém, disseram que se devia levantar só uma vez para a oração, como as outras virgens, juntando ainda outras circunstâncias atenuantes, como, por exemplo, que devia comer peixe nas grandes festas.” Maria ofereceu-se também para lavar as vestes dos sacerdotes e outras roupas grossas. "No fim da solenidade, vi que Maria foi abençoada pelos sacerdotes. Ela estava em pé, num pequeno trono, entre dois sacerdotes; aquele que a abençoou, estava-lhe em frente, os outros atrás. Os sacerdotes rezaram alternadamente, em rolos de pergaminho e o primeiro abençoou-a, estendendo as mãos sobre ela. Tive nessa ocasião uma maravilhosa visão do estado íntimo da santa

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Menina. Vi-a como que iluminada e transparente pela bênção do sacerdote e sob seu Coração, em glória indizível, vi a mesma imagem que na contemplação do santo Mistério na Arca da Aliança. Numa forma luminosa, igual à do cálice de Melquisedec, vi figuras brilhantes, indescritíveis, da bênção da promissão. Era como trigo e vinho, carne e sangue, que tendiam a unir-se. Vi, ao mesmo tempo, que sobre essa aparição o Coração da Virgem se abriu, como a porta de um templo e o mistério da promissão, cercado como de um dossel, guarnecido de misteriosas pedras preciosas, lhe entrou no Coração aberto; era como se a Arca da Aliança entrasse no templo. Depois disso, encerrava o coração da Virgem o maior bem que naquele tempo havia no mundo. Desaparecendo essa imagem, vi apenas a santa Menina cheia de ardente devoção e amor. Vi-a como que extasiada e elevada acima da terra". Joaquim e Ana viajaram com Maria para Jerusalém. Em procissão solene foi a Menina introduzida no Templo; depois de oferecido um sacrifício, erigiu-se um altar por baixo de um portal. Maria ajoelhou-se nos degraus, enquanto Joaquim e Ana lhe puseram as mãos na cabeça, proferindo orações de oferecimento. Um sacerdote cortou-lhe então um anel do cabelo, queimou-o num braseiro e vestiu-a de um véu pardo. Dois sacerdotes conduziram Maria muitos degraus para cima, à parede divisória que separa o Santo do resto do Templo e colocaram-na num nicho, do qual se via o Templo, em baixo. Depois um sacerdote ofereceu incenso no altar próprio. "Vi brilhar sob o Coração de Maria uma auréola de glória e soube que continha a promissão, a bênção santíssima de Deus. Essa auréola aparecia como que cercada pela arca de Noé, de modo que a cabeça da Santíssima Virgem sobressaia acima da Arca. Depois vi a figura da arca de Noé transformar-se na da Arca da Aliança, cercada pela aparição do Templo. Então vi desaparecer essas formas e sair da auréola brilhante a figura do cálice da última ceia, diante do peito de Maria. aparecendo-lhe diante da boca um pão assinalado com uma cruz. Dos lados lhe emanavam numerosos raios de luz, em cujas extremidades apareciam muitos mistérios e símbolos da SS. Virgem, como, por exemplo, os nomes da Ladainha de N. Senhora, em figuras. Do ombro direito e do esquerdo cruzavam-se dois ramos de oliveira e cipreste sobre uma palmeira pequena, que vi aparecer atrás de Maria. Entre esses ramos vi as formas de todos os instrumentos da paixão de Jesus. O Espírito Santo, com asas luminosas, parecendo mais figura de homem do que de pomba, pairou sobre a aparição. No alto vi o céu aberto, com a Jerusalém celeste no centro, com todos os palácios, jardins e habitações dos futuros Santos; tudo estava cheio de Anjos; também a auréola de glória que cercava Maria, estava cheia de cabeças de Anjos. Então desapareceu a visão gradualmente, como aparecera. Por fim vi somente o esplendor sob o Coração de Maria e luzir nele a bênção

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da promissão. Depois desapareceu também essa visão e vi apenas a Santa Menina, consagrada ao Templo, guarneci da de seus adornos, sozinha entre os sacerdotes.” Maria despediu-se dos pais e foi entregue às mestras: Noemi, Irmã da mãe de Lázaro e a profetisa Ana, outra matrona. "Então vi uma festa das virgens do Templo. Maria tinha de perguntar às mestras e às meninas, uma a uma, se queriam deixá-Ia ficar junto delas. Era o costume adotado. Depois fizeram uma refeição e no fim houve uma dança; estavam umas em frente às outras, duas a duas e dançando formavam figuras: cruzes, etc. De noite Noemi conduziu Maria ao seu quartinho, de onde se podia ver o interior do Templo. O quarto não formava um quadrângulo regular; as paredes estavam marchetadas de triângulos, que formavam várias figuras. Havia no quarto um banquinho, mezinha e estantes nos cantos, com diversos repartimentos para guardar objetos. Diante desse quartinho havia um quarto de dormir e um guarda-roupa, como também a cela de Noemi. As virgens do Templo usavam vestido branco, comprido e largo, com cinta e mangas muito largas, que arregaçavam para o trabalho. Estavam sempre veladas. Maria, era, para sua idade, muito hábil; vi-a trabalhar, fazendo já pequenos lenços brancos, para o serviço do Templo. Vi a Santa Virgem passar o tempo parte na morada das matronas (com as outras meninas), parte na solidão do quarto, em estudo, oração e trabalho. Trabalhava em ponto de malha e tecia, sobre varas compridas, panos estreitos, para o serviço do Templo. Lavava as toalhas e limpava os vasos do Templo. Vi-a muitas vezes em oração e meditação. Além das orações prescritas no Templo, Maria SS. tinha como devo-ção especial o desejo contínuo da Redenção, que lhe constituía uma ininterrupta oração da alma. Guardava esse desejo como um segredo e fazia as devoções às escondidas. Quando todas dormiam, levantava-se do leito, para orar a Deus. Vi-a muitas vezes se desfazer em lágrimas e rodeada de celestial esplendor, durante a oração. A alma da Virgem parecia não estar na terra e gozava muitas vezes de consolações celestes. Tinha um desejo indizível da vinda do Messias e na sua humildade, apenas se atrevia a desejar ser a serva mais humilde da Mãe do Salvador. Tendo as virgens do Templo alcançado certa idade, casavam-se e deixavam o serviço do mesmo. Quando chegou, porém, o tempo de Maria, ela não quis deixar o Templo; mas disseram-lhe que devia casar.” "Eu vi, conta Catharina Emmerich, que um sacerdote muito idoso, que não podia mais andar (provavelmente o Sumo Sacerdote), foi transportado por alguns outros, numa cadeira, para diante do

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Santíssimo e rezou, lendo num rolo de pergaminho que lhe estava em frente, sobre uma estante, enquanto se queimava um sacrifício de incenso. Extasiado em espírito, teve uma aparição, sendo-lhe a mão colocada sobre o rolo, onde o dedo indicador mostrava a palavra do Profeta Isaías: E sairá uma vara do tronco de Jessé o uma flor brotar-Ihe-á da raiz. (Is. 11, 1). Quando o ancião voltou a si, leu esse verso e conheceu-lhe a significação ensinada na visão. Enviaram, portanto, mensageiros por todo o país, convocando todos os homens solteiros da estirpe de Davi ao Templo. Reuniram-se muitos deles no Templo, em vestes de gala, e foi-Ihes apresentada a Virgem Santíssima. Vi ali um jovem muito piedoso da região de Belém; tinha também implorado sempre, com ardente devoção, a vinda do Salvador prometido e vi-lhe no coração o grande desejo de ser o esposo de Maria. Esta, porém, se recolheu à cela, derramando lágrimas abundantes e não podia conformar-se com o pensamento de ter de renunciar à virgindade. Então vi que o Sumo Sacerdote (segundo a inspiração recebida do Céu) distribuiu ramos a todos os homens presentes, com ordem de marcar cada um o seu ramo com o respectivo nome e segurá-Io nas mãos, durante a oração e o sacrifício. Feito Isso, todos entregaram os seus ramos, que foram colocados sobre um altar, diante do Santíssimo; anunciou-Ihes o Sumo Sacerdote que aquele cujo ramo florescesse, seria destinado por Deus a desposar a Virgem Maria de Nazaré. Enquanto os ramos estavam diante do Santíssimo, continuaram os homens a oferecer sacrifícios, a rezar; vi que aquele jovem clamava instantemente a Deus, com os braços estendidos, num dos átrios do Templo e rompeu em lágrimas, quando todos receberam os seus ramos e foram informados que nenhum florescera e, portanto, nenhum dentre os presentes fora destinado a ser o esposo dessa Virgem. Vi depois que os sacerdotes do Templo procuraram de novo, nos registros das gerações, se havia ainda um descendente de Davi, que antes tivessem saltado. Como, porém, fossem marcados seis irmãos de Belém, de um dos quais já há muito tempo não havia notícias, procuraram o domicílio de José e acharam-no, num lugar não muito longe de Samaria, situado num ribeiro, onde morava sozinho, perto do ribeiro, trabalhando em serviço de outros mestres. Estaria talvez na Idade de 33 anos. (3) (3) "José era o terceiro, entre seis irmãos. Os pais, já falecidos, tinham habitado um vasto edifício fora de Belém, o antigo solar de Davi, cujo pai, Isai ou Jessé, já o possuíra. Restavam, porém, no tempo de José, apenas os muros do edifício principal. Nos quartos de cima moravam José e os innãos, com o mestre, um velho judeu. Vi-os brincar nos quartos, lá em cima. Vi também o mestre Ihes dar muitas lições estranhas que não

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entendi bem. Os pais não cuidavam muito dos filhos; pareciam ser nem bons nem maus. José tinha um gênio muito diferente dos irmãos. Era inteligente e aprendia com facilidade; era, porém, simples, recolhido, piedoso e sem ambição. Os irmãos pregavam-lhe muitas peças, davam-lhe empurrões e causavam-lhe muitos desgostos. Os pais também não estavam muito satisfeitos com José; desejavam que, com os talentos de que era dotado, aspirasse a qualquer posição elevada no mundo; mas o rapaz não tinha inclinações para isso. Achavam-no muito simples e humilde demais; rezar e exercer pacatamente uma profissão era a única aspiração do jovem. Para evitar as contínuas provocações dos irmãos, vi-o ir muitas vezes do outro lado de Belém, em companhia de algumas mulheres piedosas e rezar com elas. Tinha então cerca de 19 anos. Vi-o também passar algum tempo em grutas, uma das quais veio a ser depois o lugar do nascimento de Nosso Senhor. Ali rezava e fazia pequenos trabalhos em madeira, pois perto havia a oficina de um velho carpinteiro; José ajudava-o nos trabalhos e aprendeu assim, pouco a pouco, a profissão. A hostilidade dos imlãos aumentou a tal ponto, que lhe foi impossível ficar mais tempo na casa paterna. Vi-o, numa noite, fugir disfarçado de casa, para ganhar o sustento pelo trabalho de carpinteiro. Estava na idade de 18 a 20 anos. Primeiro o vi trabalhar na oficina de um carpinteiro em Libonah, onde aprendeu a profissão completamente. José era piedoso, bom e singelo; todos o estimavam. Vi como prestava humildemente muitos pequenos serviços ao mestre; vi-o apanhar as aparas, juntar lenha e conduzí-Ia às costas. Depois trabalhou em Tanath, perto do Megiddo, mais tarde Tibérias; teria então cerca de 33 anos. José pedia e anelava muito pela vinda do Messias.” À ordem do Sumo Sacerdote, veio José com o seu melhor traje ao Templo de Jerusalém. Teve também de segurar um ramo, durante o sacrifício e as orações; quando quis pô-Io sobre o altar, diante do Santíssimo, brotou uma flor branca, como uma açucena, na ponta do ramo e vi descer sobre ele uma aparição luminosa, como o Espírito Santo. Então reconheceram José como esposo de Maria, escolhido por Deus e apresentaram-no a Maria, em presença de sua mãe e dos sacerdotes. Maria, conformada com a vontade de Deus, aceitou-o humildemente por noivo. As núpcias foram celebradas em Jerusalém. Depois seguiu Maria com a mãe para Nazaré; José, porém, foi primeiro a Belém, a negócios de família. À sua chegada em Nazaré, fizeram uma festa. Na casa que Ana montara para eles, tinha José um quarto separado, na frente. Ambos estavam muito acanhados. Viviam em oração e muito recolhidos.” 5. Anunciação e Visitação de Nossa Senhora

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Depois do casamento de Maria SS. com S. José, estavam preparadas pela Divina Providência todas as condições, de modo que o santíssimo e eternamente adorável mistério da Encarnação podia realizar-se. Deuse esse fato numa noite santa, na silenciosa casa de Nazaré. Inspirada pelo Espírito Santo, que queria operar nela o grandioso milagre, velou Maria toda a noite em ardente oração. Então sucedeu que, pela meia noite, entrou na casa de Nazaré um dos mais augustos Anjos do Céu, como mensageiro de Deus e, pelo consentimento da SS. Virgem, revestiu-se nela o Filho Unigênito de Deus da natureza humana. Assim se uniu a eternamente adorável Divindade, por um misterioso matrimônio e amor santo, com a humanidade pecaminosa, a qual o Pai de misericórdia quis elevar de novo pelo Homem-Deus, para estabelecer a nova Aliança de graça e amor. Ouçamos a singela descrição desse mistério pela vidente privilegiada de Dülmen: "Vi a Santíssima Virgem, pouco depois do casamento, em casa de José, em Nazaré. José saíra da cidade, com dois jumentos, para buscar alguma coisa; parecia estar voltando. Além da SS. Virgem e duas moças da mesma idade, vi ainda Sant'Ana e aquela parenta viúva, que lhe servia de criada. Pela noite rezaram, comendo depois alguma hortaliça. Maria recolheu-se então ao quarto de dormir e preparou-se para a oração, pondo um vestido comprido, de lã branca, com cinto largo e cobrindo a cabeça com um véu branco-amarelo. Tirou uma mezinha baixa encostada na parede e colocou-a no meio do quarto; tendo posto ainda uma almofada diante dessa mezinha, pôs-se de joelhos e cruzou os braços. Assim a vi rezar muito tempo, em ardente súplica, elevados os olhos ao céu, pedindo a redenção e a vinda do Rei prometido.” Então se derramou do teto do quarto uma torrente de luz sobre o lugar à direita de Maria; nessa luz vi um jovem resplandecente descer para junto dela: era o Arcanjo S. Gabriel, que lhe disse: "Ave, cheia de graça. O Senhor é convosco, bendita sois entre as mulheres." Ao ouvir estas palavras, a Virgem perturbou-se e cogitava das razões daquela saudação. Mas o Anjo observou-lhe: "Não vos perturbeis, Maria, porque merecestes graça diante de Deus; pois concebereis e dareis à luz um filho, ao qual poreis o nome de Jesus. Ele será grande e chamar-se-á o Filho do Altíssimo; e Deus Nosso senhor dar-lhe-á o trono de Davi, seu pai, e reinará eternamente sobre a casa de Jacó e o seu reino não terá fim." (Luc. 1,28-33). Vi-lhe sair as palavras da boca como letras. Maria virou um pouco a cabeça velada para o lado direito, mas, cheia de temor, não levantou os olhos. O Anjo, porém, continuou a falar e Maria levantou um pouco o véu e respondeu: "Como se fará isso, pois não conheço homem?" (Luc. 1,34)

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E o Anjo disse: "O Espírito Santo virá sobre Vós e a virtude do Altíssimo cobrir-vos-á com sua sombra. E por isso o Santo que nascerá de Vós, será chamado Filho de Deus. Já vossa prima Isabel concebeu um filho na velhice e este é o sexto mês da que se diz estéril; pois nada para Deus é impossível". Maria levantou o véu e, olhando para o Anjo, respondeu as santas palavras: "Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a vossa palavra." A Santíssima Virgem estava em profundo êxtase. O quarto estava cheio de luz, o Céu parecia aberto e um rasto luminoso permitiame ver por cima do Anjo, no fim da torrente de luz, a Santíssima Trindade. Quando Maria disse: "Faça-se em mim segundo a vossa palavra", vi a aparição do Espírito Santo; do peito e das mãos derramaram-se-Ihe três raios de luz para o lado direito da Santíssima Virgem, unindo-se-Ihe. Maria estava nesse momento toda luminosa e como transparente. Vi depois o Anjo desaparecer e do rasto luminoso que se retirava para o Céu, caíram sobre a Santíssima Virgem muitas rosas brancas fechadas, todas com uma folhinha verde. Nesse momento vi também uma serpente asquerosa arrastar-se pela casa e pelos degraus acima. O Anjo, ao sair do quarto da SS. Virgem, pisou diante da porta a cabeça desse monstro, que uivou tão horrivelmente, que tremi de medo. Apareceram, porém, três espíritos e expulsaram o monstro a pontapés e pancadas, para fora de casa. A Virgem Santíssima, toda absorta em extática contemplação, reconheceu e viu em si o Filho de Deus, feito homem, como uma pequena forma humana luminosa, com todos os membros já desenvolvidos, até os dedinhos e humildemente o adorou. Foi pela meia noite, que vi esse mistério. Depois de algum tempo, Maria se levantou, colocou-se diante do pequeno altar de oração e rezou em pé. Foi pela manhãque se deitou para dormir. Ana teve, por uma revelação de Deus, conhe-cimento de tudo.” Para a preparação completa da vida pública e das obras de Jesus era preciso também a santificação e a ação pública do Precursor. Esta devia efetuar-se, segundo a vontade de Deus, pela aproximação de Maria e de seu Filho milagrosamente concebido, da mãe do precursor. Por isso inspirou o Espírito Santo à Virgem Santíssima o desejo de visitar a prima Isabel. Esta morava em Hebron, no sul do país, Maria em Nazaré, no norte; mas essa distância não desanimou Maria. Pôs-se a caminho, em contínua adoração e contemplação do Filho de Deus, que trazia sob o Coração, acompanhada por S. José, evitando, quanto era possível, as cidades e vilas tumultuosas. Anna Catharina Emmerich narra: "Isabel (a prima de Maria e esposa de Zacarias) soube, por uma visão, que uma virgem da sua tribo se tornara mãe, do Messias prometido. Tinha pensado, durante essa visão, em Maria, com grande saudade e vira-a em espírito, em caminho para sua casa. Mas Zacarias deu-lhe a entender ser inverossímil que a

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recém-casada fizesse tal viagem. Isabel, porém, cheia de saudade, foi-lhe ao encontro. Maria Santíssima, vendo Isabel de longe e reconhecendo-a correu adiante de José, ao encontro dela. Cumprimentaram-se afetuosamente com um aperto de mão. Nisto vi um esplendor em Maria e um raio de luz passando dela para Isabel, que se sentiu milagrosamente comovida. Abraçando-se, atravessaram, o pátio em direção à porta da casa. José entrou, por uma porta lateral, no átrio da casa, onde humildemente cumprimentou o velho sacerdote venerável; este o abraçou cordialmente e expandiu-se com ele, escrevendo numa lousa, pois ficara mudo desde a aparição do Anjo no Templo. Maria e Isabel entraram pela porta da casa no átrio. Ali se cumpri-mentaram de novo muito afetuosamente, pondo as mãos nos braços uma da outra e encostando face a face. Nisso vi de novo como que um esplendor em Maria, radiando para Isabel, pelo que esta ficou toda luminosa, comovida por uma alegria santa. Recuando com as mãos levantadas, exclamou, cheia de humildade, alegria e entusiasmo: "Bendita sois entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre! Donde me vem a felicidade de ser visitada pela Mãe do meu Senhor? Porque assim que chegou a voz da saudação aos meus ouvidos, logo o menino deu um salto de prazer no meu ventre.” Então conduziu Maria ao quartinho preparado para ela. Maria, po-rém, na elevação da sua alma, proferiu o cântico do "Magnificat": Minha alma engrandece o Senhor, etc. Depois de alguns dias, voltou José a Nazaré, acompanhado, parte do caminho, por Zacarias. Maria Santíssima, porém, ficou três meses com Isabel, até o nascimento de João e já antes da circuncisão do menino voltou para Nazaré. José veio-lhe ao encontro até meio caminho e foi então que notou que estava grávida. Não tendo conhecimento da anunciação do Anjo à SS. Virgem, foi acometido de dúvidas e desassossego. Maria guardara consigo o mistério, por humildade e modéstia. José nada disse, mas lutou em silêncio com as dúvidas que lhe torturavam o cora-ção. Em Nazaré lhe cresceu o desassossego, a ponto de resolver abandoná-Ia e fugir secretamente. Então lhe apareceu um Anjo em sonho e consolou-o". Nas últimas linhas, que não fazem mais que repetir o que já consta da Escritura Sagrada, se revela a profunda humildade de Maria Santíssima. Ela compreendia que José devia saber o que se tinha passado. Sentiu profundamente a dor do piedoso esposo, mas, por modéstia, não teve a coragem de revelar-lhe o santo mistério e o extraordinário privilégio, que lhe fora dado. Humildemente confiou que Deus a ajudasse e foi-lhe recompensada essa confiança e ouvida a piedosa oração. Quanto tempo teve de pedir, não sabemos; em todo caso, porém, vemos que Deus não atende imediatamente às súplicas nem das pessoas mais santas, mas só quando chega o tempo previamente determinado pela divina

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sabedoria. 6. A viagem a Belém e o nascimento de Nosso Senhor (4) "Vi a Santíssima Virgem, com sua mãe Sant'Ana, fazendo trabalhos de malha, preparando tapetes, ligaduras e panos, conta Anna Catharina. José estava a caminho, voltando de Jerusalém, para onde tinha levado animais para o sacrifício. Passando pela meia noite pelo campo de Chirnki, a seis léguas de Nazaré, apareceu-lhe um Anjo, com o aviso de partir imediatamente com Maria para Belém, pois era ali que ela devia dar à luz o filho. Ordenou-lhe também que levasse, além do jumento, em que Maria devia viajar, uma jumentinha de um ano; que deixasse esta correr livre e seguisse o caminho que ela tomasse. José comunicou a Maria e Ana o que lhe fora dito; então se prepararam para a partida imediata. Ana ficou muito aflita. A Virgem Santíssima, porém, já sabia antes que devia dar à luz o filho em Belém, mas na sua humildade calara-se.” A vida dos filhos de Deus é uma mistura de alegria e de dor. Maria Santíssima tinha-o experimentado já em Nazaré; verificou-o por toda a vida e também então, na viagem ao lugar abençoado, onde o Filho de Deus ia descer à terra. A piedosa Emmerich narra: "Vi José e Maria partirem, acompanhados por Ana, Maria Cleophae e alguns criados, até o campo de Ginim, onde se separaram, despedindose comovidos. Vi a Sagrada Família continuar a viagem, subindo a serra de Gilboa. Na noite seguinte passaram por um vale muito frio, dirigindo-se a um monte. Caíra geada. Maria, sentindo frio, disse: "Devemos descansar, não posso ir mais adiante." José arranjou-lhe um assento, debaixo de um terebinto; ela, porém, pediu instantemente a Deus que não a deixasse sofrer qualquer mal, por causa do frio. Então a penetrou tanto calor, que ela deu as mãos a José, para aquecer as dele. José falou-lhe muito carinhosamente; ele era tão bom e sentia tanto que a viagem fosse tão penosa! Falou também da boa recepção que esperava achar em Belém. Celebraram o Sábado numa estalagem. Na manhã seguinte continuaram o caminho, passando por Samaria. A Santíssima Virgem andava a pé; às vezes paravam em lugares convenientes e descansavam. (4) Jesus Cristo nasceu, segundo as visões de Anna Catharina, ainda no ano de 3997, por conseguinte 8 anos antes da nossa cronologia, que se começa a contar no ano de 4004. A verdadeira data do nascimento também se lhe apresenta diferente: quatro semanas antes, portanto: a anunciação de Nossa Senhora nos fins de Fevereiro e o Natal pelos fins de Novembro.

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A jumenta ora ficava atrás, ora corria muito para a frente; mas onde os caminhos divergiam, apresentava-se e tomava o caminho bom e onde deviam descansar, parava. A primeira coisa que S. José fazia, em cada lugar de descanso e em cada estalagem, era arranjar um lugar cômodo para a Santíssima Virgem sentar-se e descansar. Quando a sagrada família chegou a dez léguas de Jerusalém, encontrou de noite uma casa solitária. José bateu à porta, pedindo agasalho para a noite; mas o dono da casa tratou-os grosseiramente e negou-lhes o abrigo. Então andaram um pouco adiante e, entrando num rancho, encontraram ali a jumenta esperando. Abandonaram esse abrigo já antes de amanhecer. Em outra casa foram também tratados asperamente. José tomou pousada mais vezes pelo fim da viagem, pois esta se tornava cada vez mais penosa para a SS. Virgem. Seguindo sempre a jumenta, fizeram deste modo uma volta de quase um dia e meio, para leste de Jerusalém. Rodeando Belém, passaram pelo norte da cidade e aproximaram-se pelo lado oeste. Pararam e pousaram afastados do caminho, sob uma árvore. Maria apeou-se e concertou o vestido. Depois José a conduziu a um grande edifício, que estava a alguns minutos fora de Belém; era a casa paterna de José, o antigo solar de Davi, mas naquele tempo servia de recebedoria do imposto romano. José entrou na casa; os amanuenses perguntaram quem era e depois lhe leram a genealogia, como também a de Maria. Aparentemente, ele não sabia que Maria descendia também por Joaquim, em linha direta, de Davi. Maria foi também chamada perante os escrivões. José entrou então com ela em Belém, procurando em vão pousada logo nas primeiras casas; pois havia muitos forasteiros na cidade. Continuaram assim, indo de rua em rua. Chegando à entrada de uma rua, Maria esperava com os jumentos, enquanto José ia de casa em casa, pedindo agasalho, mas em vão. Maria tinha de esperá-lo às vezes muito e sempre com o mesmo resultado; tudo já ocupado, não havia mais lugar para eles. Então disse José a Maria que era melhor ir à outra parte de Belém; mas também lá procurou em vão. Conduziu-a então e ao jumento, para debaixo de uma árvore grande, afim de descansar, enquanto ele ia à procura de hospedagem. Muita gente passou pela árvore, olhando para Maria. Julgo que alguns também se lhe dirigiram, perguntando quem era. Maria era tão paciente, tão humilde e ainda tinha esperança. Mas, depois de esperar muito, voltou José triste e abatido, pois nada arranja-ra. Os amigos, dos quais tinha falado à SS. Virgem, não quiseram reconhecê-lo. Lamentou-o com lágrimas nos olhos, mas Maria consolou-o. Mais uma vez começou ele a procurar de casa em casa, voltando finalmente tão abatido, que só se aproximou hesitante. Disse que conhecia um lugar fora da cidade pertencente aos pastores; ali, com certeza, achariam abrigo. Assim saíram de Belém, para uma colina situada no lado oriental

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da cidade, na qual havia uma gruta ou adega. A jumentinha, que já da casa paterna de José tinha corrido para lá, fazendo a volta da cidade, veio-lhes ao encontro, pulando e brincando alegremente em roda. Então disse a SS. Virgem a José: "Vê, de certo é vontade de Deus que aqui fiquemos.” José acendeu uma luz e, entrando na caverna, tirou algumas coisas de lá, afim de arranjar um lugar de descanso para a SS.Virgem. Depois a levou para dentro e ela se assentou no leito feito de mantas e fardéis de viagem. José pediu-lhe humildemente desculpa pela pobre hospedagem; mas Maria, cheia de piedosa esperança e amor, estava contente e feliz. José buscou água num odre e da cidade trouxe pratinhos, algumas frutas e feixes de lenha miúda; buscou também brasas, para acender fogo e preparar a refeição. Depois de ter comido e feito as orações, deitou-se Maria no leito; José, porém, arranjou o seu leito à entrada da gruta. Maria Santíssima passou o dia seguinte, o Sábado, na gruta, rezando e meditando com grande devoção. De tarde José a levou, através do vale, à gruta que servira de sepulcro a Marabá, ama de Abraão. Depois, terminado o Sábado, veio reconduzí-la à primeira gruta. Maria disse a S. José que à meia noite desse dia chegaria a hora do nascimento de seu Filho, pois teriam passado nove meses desde a anunciação pelo Anjo: José ofereceu-se para chamar algumas mulheres piedosas de Belém para assistí-la, mas Maria recusou. Desse modo chegaram os santos Pais de Jesus, guiados pela Divina Providência, ao lugar determinado pelo Pai Eterno, em união com o Filho Unigênito e o Espírito Santo, para o nascimento daquele divino Menino, cheio de graça, que havia de tirar da terra a maldição, abrir o Céu e criar um novo Éden de Deus cá na terra. Lúcifer e os seus sequazes perderam o reino do Céu pelo orgulho, querendo ser iguais a Deus e assim perderam os primeiros homens também o paraíso, porque o mesmo sedutor os enganou com vãos desejos de serem iguais a Deus. Por isso, a santa humildade havia de abrir de novo o caminho do Céu. O Filho de Deus veio a este mundo ensinar, pelo exemplo, essa e todas as outras virtudes. Eis porque Ele, o Rei da eternidade, quis nascer homem num lugar onde os animais se abrigavam. Para primeiro berço escolheu uma mise-rável manjedoura, na qual o gado costumava comer. Assim não lhe faltou nada da pobreza humana, mas uniu-se-lhe o esplendor da majestade divina. - A piedosa vidente continua: "Quando Maria disse ao esposo que o tempo estava próximo e que a deixasse e fosse orar, José saiu, recolhendo-se ao leito, para rezar. Ao sair, voltou-se mais uma vez, para fitar a SS. Virgem e viu-a como rodeada de chamas; toda a gruta estava iluminada como por uma luz sobrenatural. Então entrou com santo respeito na sua cela e prostrou-se por terra, para orar.

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Vi o esplendor em volta da SS. Virgem crescer mais e mais. Ela estava de joelhos, coberta de um vestido largo, estendido em redor, sem cinto. A meia noite ficou extasiada e levantada acima do solo; tinha os braços cruzados sobre o peito. Não vi mais o teto da gruta; uma estrada de luz abria-se-Ihe por cima, até o mais alto Céu, com crescente esplendor. Maria, porém, levantada da terra em êxtase, olhava para baixo, adorando o seu Deus, cuja Mãe se tornara e que jazia deitado por terra, diante dela, qual criancinha nova e desamparada. Vi o nosso Salvador qual criancinha pequenina, resplandecente, cujo brilho excedia a toda a luz na gruta, deitado no tapete, diante dos joelhos de Maria. Parecia-me que era muito pequeno e crescia cada vez mais, diante dos meus olhos. Depois de algum tempo vi o Menino Jesus mover-se e ouvi-o chorar. Então foi que Maria voltou a si. Tomou a criancinha e, cobrindo-a com um pano, apertou-a ao peito. Assim se sentou, envolvendo-se, com o Filhinho, no véu. Então vi em redor Anjos em forma humana, prostrados em adoração diante do Menino. Cerca de uma hora após o nascimento, Maria chamou S. José, que ainda estava rezando. Chegando-se-Ihe perto, prostrou-se-Ihe o esposo em frente, em adoração, cheio de humildade e alegria. Só depois que Maria lhe pediu que apertasse de encontro ao coração o santo dom de Deus, foi que se levantou, recebendo o Menino Jesus nos braços e louvando a Deus, com lágrimas de alegria. A SS. Virgem envolveu então o Menino em panos e deitou-o na manjedoura, cheio de junco e ervas finas e coberta com uma manta. A manjedoura estava ao lado direito, na entrada da gruta. Os santos Pais, tendo deitado o menino no presepe, ficaram-lhe ao lado, cantando salmos.” O tempo chegara à consumação: O Verbo fizera-se carne, - o Verbo Eterno e Divino do Pai Celestial Todo-Poderoso. A profecia de Isaías cumprira-se: A Virgem concebera e dera à luz um filho, cujo nome é Emanuel, "Deus Conosco". (Is. 7, 14). Apareceu entre nós o Messias, prometido já no paraíso e por todos os povos tão ardentemente anelado. Está deitado numa manjedoura, qual criança pobre e desamparada. Será reconhecido em tão humildes condições? A quem se revelará pri meiro o Rei da glória? Não aos grandes e soberbos da terra! Pastores, pobres e simples, são os primeiros convidados por mensageiros celestiais à manjedoura, para adorar o Menino divino. Conta Catharina Emmerich: "Vi três pastores, que estavam juntos, diante do rancho, admirando a maravilhosa noite; no céu vi uma nuvem luminosa, descendo para eles. Ouvi um doce canto. A principio se assustaram os pastores, mas de repente Ihes surgiu um Anjo, dizendo: "Não temais, anuncio-vos uma grande alegria, que é dada a todo o povo, pois nasceu hoje, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, nosso Senhor... Eis o sinal para conhecê-Io: achareis uma criança

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envolta em panos e deitada num pre sépio." Enquanto o Anjo assim falava, aumentava o esplendor em redor e vi então cinco ou sete Anjos, grandes, luminosos e graciosos, diante dos pastores; seguravam nas mãos uma fita, como de papel, na qual estava escrita uma coisa, em letras do tamanho de um palmo: ouvi-os louvar a Deus e cantar: "Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade". Os pastores na torre de vigia tiveram a mesma aparição, apenas um pouco depois. Do mesmo modo apareceram os Anjos a um terceiro grupo de pastores, perto de uma fonte, a três léguas de Belém, a leste da torre dos pastores. Vi que os pastores não foram imediatamente à gruta; para lá chegar os três pastores tinham um caminho de uma hora e meia e os da torre o dobro. Vi também que deliberaram sobre o que deviam levar, como presente, ao Messias recém-nascido; depois buscaram as dádivas o mais depressa possível. Ao crepúsculo da manhã chegaram os pastores, com os presentes, à gruta. Contaram a S. José o que Ihes anunciara o Anjo e que vinham para adorar o Messias. José aceitou os presentes, com humildes agradecimentos e conduziu os pastores à SS. Virgem. que estava sentada ao pédo presépio, com o Filho ao colo. Os recém-chegados prostraram-se de joelhos diante de Jesus, segurando os cajados nos braços; choraram de alegria e permaneceram assim muito tempo, sentindo grande felicidade e doçura. Quando se despediram, deu-Ihes a SS. Virgem o Menino a abraçar. De tarde vieram outros pastores, com mulheres e crianças, trazendo presentes. Alguns dias depois do nascimento de Jesus, estando José e Maria ao lado do presépio e olhando com grande e íntima felicidade para o divino Menino, aproximou-se de súbito o jumento, e, caindo de joelhos, baixou a cabeça até o chão. Maria e José derramaram lágrimas à vista disso. Depois do Sábado, José chamou três sacerdotes de Belém, para a circuncisão do Menino. Estes trouxeram a cadeira da circuncisão e uma laje de pedra octogonal, na qual se encontravam os instrumentos necessários. Ao nascer do dia teve lugar a circuncisão. Oito dias depois do nascimento do Senhor, vi que um anjo apareceu ao sacerdote, apresentando-lhe o nome de Jesus, escrito numa lousa. O Menino Jesus chorou alto, depois da santa cerimônia. José recebeu-o do sacerdote e depositou-o nos braços da SS. Virgem. Na tarde do dia seguinte, chegou Isabel, com um velho criado, à gruta. Houve grande regozijo. Isabel apertou o Menino ao coração. Veio também Ana, com o segundo marido e Maria Helí. Maria pôs o Menino nos braços da velha mãe, que estava muito comovida. Maria contou-lhe também, cheia de íntima felicidade, todas as circunstâncias do nascimento. Ana chorou com Maria, acariciando durante todo o tempo o Menino Jesus.”

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7. Os ascendentes dos três Reis Magos e a viagem destes a Belém Um dos fatos mais maravilhosos da vida do Divino Salvador é a vinda dos três Reis Magos ao presépio. Surge a pergunta: Como foi possível que três homens de alta posição, com numerosa comitiva, vindos de terras longínquas, chegassem guiados por uma estrela ao presépio de Belém? Para explicação cita-se geralmente o trecho do livro Números 24, 17; "Uma estrela sai de Jacó, um cetro levanta-se de Israel, que esmagará os príncipes de Moab." Certamente é este trecho de importância e sem dúvida o conheceram os pontífices dos judeus, melhor do que os chefes das tribos longínquas dos gentios. Contudo, não vieram aqueles ao presépio, mas estes últimos. Logo, não bastava só a estrela, para levá-los lá, faziam-se precisas outras previdências divinas, milagrosas. Quais foram estas, conta-nos a pobre camponesa de Flamske: "Os antepassados dos três Reis Magos descendiam de Jó, que outrora vivera no Cáucaso. Um discípulo de Balaão anunciara ali a profecia deste, de que apareceria uma estrela de Jató. Essa profecia achou larga aceitação. Construiu-se uma torre alta, numa montanha. Muitos sábios e astrônomos viveram ali altemadamente; tudo que notavam nos astros, escreviam e ensinavam a todos. Os chefes de uma tribo da terra de Jó, numa viagem ao Egito, na região de Heliopoli, receberam por um Anjo a revelação de que o Salvador nasceria de uma Virgem e seria adorado pelos seus descendentes. Eles mesmos deviam voltar e estudar os astros. Esses Médos começaram então a observar as estrelas. Diversas vezes, porém, caiu esse estudo em esquecimento, por causa de vários acontecimentos. Depois começou o abominável abuso de sacrificarem crianças, para que a criança prometida viesse mais depressa. Cerca de 500 anos antes do nascimento de Jesus, estava esse estudo dos astros também em decadência. Existia porém, a descendência daqueles chefes, constituída por três irmãos, que viviam separados, cada um com sua tribo. Tiveram três filhas, às quais Deus deu o dom de profecia, de modo que ao mesmo tempo percorreram o país e as três tribos, profetizando e ensinando sobre a estrela de Jacó. Então se renovou nessas três tribos o estudo das estrelas e renasceu o desejo da vinda do Menino prometido. Desses três irmãos descenderam os Reis Magos em linha direta, por 15 gerações, após 500 anos; mas, pela mistura com outras raças, eram de cores diferentes. Desde o princípio desses 500 anos, ficavam sempre alguns dos antepassados dos Reis num edifício comum, para estudarem os astros; conforme as diversas revelações que recebiam, mudavam certas coisas nos templos e no culto divino. Infelizmente continuou ainda entre eles, por muito tempo, o

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sacrifício de homens e crianças. Todas as épocas que se referiam à vinda do Messias, conheciam-nas em visões milagrosas, ao observar as estrelas. Desde a Conceição de Nossa Senhora, portanto há 15 anos, essas visões mostravam, cada vez mais distintamente, a vinda da criança. Por fim viram até muitas coisas que se referiam à paixão de Jesus. Podiam calcular bem o tempo da estrela de Jacó, que Balaão predis-sera. (Núm. 24, 17); pois viram a escada de Jacó e, segundo o número dos degraus e a sucessão das imagens que nestes apareciam, podiam calcular, como num calendário, a proximidade da Salvação; pois o cume da escada deixava ver a estrela ou a estrela era a última imagem dela. Viam a escada de Jacó como um tronco, que tinha três séries de escalões cravados em roda; nestes aparecia uma série de imagens, que viam também nas estrelas, no tempo da sua realização. Dessa maneira sabiam exatamente que a imagem havia de aparecer e conheciam, pelos intervalos, quanto tempo haviam de esperá-Ia. Lembro-me de ter visto, na noite do nascimento de Jesus, dois dos Reis na torre. O terceiro, que vivia a leste do Mar Cáspio, não estava com eles; viu, porém, a mesma visão, à mesma hora, na sua terra. A imagem que reconheceram, apareceu em diversas variações; não foi numa estrela que a viram, mas numa figura composta de um certo número de estrelas. Divisaram, porém, sobre a lua um arco-iris, sobre o qual estava sentada uma virgem; à esquerda desta, aparecia no arco uma videira, à direita um molho de espigas de trigo. Vi aparecer diante da Virgem a figura de um cálice ou, melhor, subir ou sair-lhe do esplendor; saindo desse cálice, apareceu uma criancinha e, sobre esta, um disco luminoso, como um ostensório vazio, do qual emanavam raios semelhantes a espigas. Tive nisso a impressão do SS. Sacramento. Do lado direito da criancinha, que subia do cálice, brotou um ramo, no qual desabrochou, como uma flor, uma igreja octogonal, que tinha um portão grande e duas portas laterais. A Virgem moveu com a mão o cálice, a criança e a hóstia para cima, colocando-as dentro da Igreja e a torre da Igreja levantou-se-Ihe por cima e tomou-se por fim uma cidade brilhante, assim como representamos a Jerusalém celeste. Vi nessa imagem muitas coisas, como procedendo e desenvolvendo-se umas das outras. Os Reis viram Belém como um belo palácio, como uma casa na qual se junta e se distribui muita bênção. Lá viram a Virgem SS., com o Menino, rodeada de muito esplendor e muitos reis se inclinarem diante dele, oferecendo-lhe sacrifícios. Tomaram tudo como realidade, pensando que o rei tinha nascido em tal esplendor e que todos os povos se lhe haviam submetido; por isso foram também lhe oferecer os seus dons. Havia um grande número de imagens naquela escada de Jacó. Vi-as todas aparecer nas estrelas, no

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tempo do seu cumprimento. Naquelas três noites, os três Reis Magos viram continuamente essas imagens. O mais nobre entre eles mandou então mensageiros aos outros e, quando viram a imagem dos reis que ofereceram presentes ao Rei recém-nascido, puseram-se também a caminho, com riquíssimas dádivas, para não serem os últimos. Todas as tribos dos astrônomos viram a estrela, mas s6 aqueles a seguiram. Alguns dias depois da partida dos reis, vi Theokenos, com o seu séquito, juntar-se aos grupos de Mensor e Sair; Theokenos não tinha estado antes com estes últimos. Cada um dos Reis tinha no séquito quatro parentes próximos da tribo, como companheiros. A tribo de Mensor era de cor agradável, pardacenta; a de Sair parda e a de Theokenos de cor amarela, brilhante. Mensor era Caldeu; depois da morte de Jesus, foi batizado por S. Tomé e recebeu o nome de Leandro. Sair teve o batismo de desejo; não vivia mais, quando Jesus foi à terra dos Reis Magos. Theokenos veio da Média e era o mais rico; foi batizado e chamado Leão por S. Tomé. Deram-se aos Reis Magos os nomes de Gaspar, Melchior e Baltasar, porque estes nomes lhes designam o caráter: Gaspar - Vai com amor. Me1chior - Aproxima-se humildemente. Baltasar - Age prontamente, conformando a sua vontade com a de Deus. O caminho para Belém era de mais de 700 léguas: fizeram-no em 33 dias, viajando muitas vezes dia e noite. A estrela que os guiava, era como um globo brilhante. Um jorro de luz emanava dela sobre a terra. Vi finalmente chegarem os Reis à primeira vila judaica. Ficaram, porém, muito acabrunhados, porque ninguém sabia coisa alguma do Rei recém-nascido. Quanto mais se aproximavam de Jerusalém, tanto mais tristes ficavam, pois a estrela se tornava muito menos clara e brilhante e na Judéia a viram raras vezes. Quando pararam, fora de Jerusalém, desaparecera totalmente. Falaram da estrela e da criança recém-nascida, ninguém quis compreendê-Ios; por isso, tomaram-se ainda mais tristes, pensando que se tinham enganado". Anna Catharina descreve ainda a admiração e sensação que a cara-vana dos Reis Magos causou na cidade; como Herodes, alta noite, mandou chamar Theokenos ao palácio e convidou os Reis a virem apre sentar-se na manhã seguinte. Herodes enviou alguns criados a chama rem os sacerdotes e escribas, que se esforçaram por sossegá-Io. Ao nascer do dia, se apresentaram os Reis a Herodes e perguntaram-lhe onde estava o novo rei dos judeus, cuja estrela tinham visto e ao qual tinham vindo adorar. Herodes ficou muito inquieto, informou-se mais sobre a estrela e disse-Ihes que a profecia se referia a Belém Ephrata; aconselhou-os a irem silenciosamente a Belém e voltarem depois a informar-lhe, pois que também queria adorar o Menino. Vi sair de Jerusalém a caravana dos Reis. Vendo de novo a estrela, deram um grito de alegria. Ao cair da noite, chegaram a Belém;

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então desapareceu a estrela. Muito tempp ficaram diante das portas, duvidando e hesitando, até que viram uma luz brilhante, ao lado de Belém. Então tomaram o caminho para o vale da gruta, onde acamparam. No entanto, apareceu a estrela por cima do outeiro da gruta e uma torrente de luz caiu verticalmente sobre este. De repente se lhes encheram os corações de grande alegria, pois viram na estrela a figura luminosa da criança. Os três Reis Magos aproximaram-se da colina; abrindo a porta da gruta, Mensor viu-a cheia de luz celeste e a Virgem sentada lá dentro, com a criança, como a tinham visto nas visões. Anunciou-o aos outros dois. S. José saiu-Ihes ao encontro, cumprimentando-os e dando-Ihes as boas vindas. Então se prepararam para o ato solene que queriam fazer e seguiram S. José. Dois jovens estenderam primeiro um tapete de pano no chão, até a manjedoura. Mensor e os companheiros entraram, caíram de joelhos e Mensor colocou aos pés de Maria e José os presentes; com a cabeça inclinada e os braços cruzados, proferiu palavras comoventes de adoração. Depois tirou do bolso uma mão cheia de barras do tamanho de um dedo, grossas e pesadas com um brilho de ouro e pô-Ias ao lado da criança, nas vestes de Maria. Tendo se retirado, com os companheiros, entrou Sair com os seus, prostrando-se, com profunda humildade, com os dois joelhos por terra. Ofereceu com palavras tocantes os presentes, colocando diante do Menino Jesus uma naveta de incenso, feita de ouro puro, cheia de pequenos grãos esverdeados de incenso. Ficou muito tempo de joelhos, com grande devoção e amor. Depois dele se aproximou Theokenos, o mais velho. Ficando em pé, inclinou-se profundamente e apresentou um vaso de ouro cheio de uma erva verde; ofereceu mirra e ficou muito tempo diante do Menino Jesus, em profunda comoção. Os Reis Magos estavam encantados e repassados de amor e humilde adoração. Lágrimas de alegria caiam-lhes dos olhos; também Maria e José derramaram lágrimas de felicidade. Aceitaram tudo, humildes e gratos; finalmente dirigiu Maria a cada um algumas palavras afáveis. Após os Reis, entraram também os criados, aproximando-se, cinco a cinco, do presépio; ajoelharam-se em roda do Menino e adoraram-no em silêncio; finalmente entraram também os pajens. Os Reis Magos voltaram mais uma vez ao presépio, vestidos de amplos mantos, trazendo turíbulos nas mãos; incensaram o Menino, Maria e José e toda a gruta, retirando-se depois, com profunda inclinação. Era esta a cerimônia de adoração entre aqueles povos. No outro dia visitaram os Reis mais uma vez o Menino e de noite vieram despedir-se. Mensor entrou primeiro. Maria pôs-lhe o Menino nos braços; ele chorou, radiante de alegria. Depois vieram também os outros. Maria deu-Ihes o seu véu de presente. Pela meia noite viram no sono a aparição de um Anjo, avisando-lhes

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que partissem imediatamente, não tomando o caminho de Jerusalém, mas o do Mar Morto. Com incrível rapidez desapareceram as tendas; e, enquanto os Reis Magos se despediam de S. José, já o séquito estava caminhando a toda a pressa, em três turmas, para leste, com rumo ao deserto de Engadi, ao longo do Mar Morto. Vi o Anjo com eles na campina, mostrando-lhes a direção do caminho; de súbito não se avistaram mais. O Anjo tinha avisado os Reis bem a tempo; pois a autoridade de Belém, não sei se por ordem de Herodes ou por próprio zelo, tinha a intenção de prender os Reis, que dormiam na estalagem, fechá-los, sob a sinagoga, onde havia adegas profundas e acusá-los perante o rei Herodes de desordens públicas. Mas de manhã, quando se soube da partida dos Magos, estes já estavam perto de Engaddi, e o vale onde haviam acampado estava quieto e deserto como dantes, nada restando do acampamento, fora algumas estacas de tendas e os rastos do capim pisado" . Em memória da visita dos três Reis Magos ao presépio é que se celebra, todos os anos, a festa de Reis. A Escritura Sagrada chama-os apenas os "Magos", mas o povo deu-lhes, desde os primeiros tempos, o título de "Reis", talvez induzido pela profecia de Davi: "Os reis de Tharsis e das ilhas oferecer-Lhe-ão dons; os reis da Arábia e de Sabá trar-Lhe-ão presentes". (S. 71, 10). A festa de Reis é uma das mais anti gas da Igreja cristã, mais antiga do que a de Natal. É prova de que esse acontecimento fez grande impressão aos amigos de Jesus. Em verdade era um fato maravilhosíssimo virem três príncipes do Oriente, com nu meroso séquito, guiados por uma estrela, prestar adoração ao Menino Jesus no presépio, ao passo que Israel não conheceu o seu Senhor. Só Deus pode criar estrelas e sobretudo uma estrela que guia homens e pára por cima do presépio: é um milagre grandioso, que só Deus, o Senhor da natureza, pode operar. Foi, pois, esse acontecimento uma prova de que tinha chegado verdadeiramente o cumprimento dos tempos e de que Jesus era mais do que um homem comum. A vinda dessa caravana numerosa e estranha devia dirigir os olhares de todo o povo para Belém; tinha todo o cabimento a pergunta: Então chegou o tempo em que deve vir o Messias? Desse modo foram preparadas todas as almas que amavam a Deus, ao reconhecimento de Jesus como Messias; os infiéis, porém, tomaram-se mais culpados. 8. Apresentação de Jesus no Templo e fuga para o Egito A santa vontade de Deus exigia a apresentação de Jesus no Templo, tanto mais necessária, quanto é certo que o nosso Divino Salvador tinha a vocação de oferecer-se ao Pai celeste como sacrifício de expia ção pelos pecados dos homens. Sacrificou-se

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em espírito, desde o começo da vida, como lemos na Escritura Sagrada. Mas esse oferecimento havia de fazer-se também publicamente, tanto por seus santos pais, como por ele mesmo, ao ser apresentado no Templo. "Na madrugada do dia seguinte, conta a Serva de Deus, vi a Sagrada Família dirigir-se ao Templo. Entraram num pátio do Templo, que era cercado de muros. Maria, com o Menino, foi recebida por uma matrona idosa, que a conduziu por um corredor ao Templo. Nesse corredor veio o velho Simeão, cheio de santa esperança, ao encontro da SS. Virgem. Ele vira, no dia anterior, um Anjo que lhe aparecera e avisara de que prestasse atenção ao Menino que no dia seguinte seria apresentado em primeiro lugar: era o Messias. Simeão dirigiu algumas palavras a Maria, cheio de júbilo e, tomando o Menino nos braços, apertou-o ao coração. A SS. Virgem foi depois conduzida aos átrios do Templo, onde a receberam Ana, que também tivera uma visão e Noemi, sua antiga mestra. Simeão levou Maria à mesa do Sacrifício, sobre a qual ela colocou o Menino Jesus, num bercinho de vime. Nesse momento, vi que o Templo se encheu de uma luz inefável. Vi que Deus estava nessa luz e, por cima do Menino, vi o céu aberto, até ao trono da SS. Trindade. Simeão reconduziu então Maria ao lugar das mulheres. Ele e três outros sacerdotes tomaram as vestes sacerdotais. Um deles colocou-se atrás e outro diante da mesa do sacrifício; os outros dois, nos lados estreitos da mesa, orando sobre o Menino. Maria, conduzida de novo à mesa do sacrifício, ofereceu frutas, algumas moedas e um par de rolas. O sacerdote, porém; de trás da mesa, tomando o Menino nos braços, levantouo e moveu-o para diversos lados do Templo, orando por muito tempo. Entregou depois o Infante a Simeão, que o depositou nos braços de Maria, orando sobre esta e o Menino. A SS. Virgem retirou-se depois ao lugar das mulheres, ao qual, entretanto, cerca de vinte mães já haviam chegado, com os primogênitos para os apresentar. José ficou mais para trás, no lugar dos homens. Então começaram os sacerdotes diante do altar uma cerimônia com incenso e orações. Tendo acabado esse ato, dirigiu-se Simeão a Nossa Senhora, e, tendo recebido a criança nos braços, falou muito a respeito do Menino, com entusiasmo, alegria e em alta voz. Louvando a Deus, por ter cumprido a sua promessa, exclamou: "Agora, Senhor, deixai partir o vosso servo em paz, conforme Vossa palavra. Pois meus olhos viram a Vossa salvação, que preparastes diante dos olhos das nações: luz para aclarar os gentios e glória de Israel, vosso povo.” José aproximara-se depois do sacrifício, escutando respeitosamente, juntamente com Maria, as palavras entusiasmadas de Simeão, que abençoou a ambos, dizendo depois a Maria: "Este menino veio ao mundo para a ruína e ressurreição de muitos em

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Israel e para ser um sinal de contradição. Vós mesma tereis a alma varada por uma aguda espada e assim serão patenteados os corações de muitos". Tendo Simeão acabado de falar, começou também a profetisa Ana, inspirada pelo Espírito Santo, a glorificar o Menino Jesus, felicitando à SS. Virgem. Esta luzia, como uma rosa celeste. Oferecera o sacrifício mais pobre, exteriormente; mas José deu secretamente a Simeão e a Ana muitas barras pequenas amarelas, para serem empregadas em beneficio das Virgens pobres do Templo. Depois do sacrifício, partiu a Sagrada Família, seguindo logo, através de Jerusalém, para Nazaré. Maria, a Virgem Puríssima, Imaculada, sujeitou-se humildemente à lei da purificação, escondendo deste modo também o seu alto privilégio. Apesar de tão belo ato de humildade, devia o gládio da dor atravessarlhe a alma. Dor e sofrimento, considerados à luz da fé, não são males, mas uma fonte de bênção e graça. A profecia de Simeão atravessou dolorosamente o brando Coração materno de Maria, mas em pouco, esse Coração havia de sofrer uma nova dor veemente, quando se viu forçada a fugir de Nazaré para o Egito, afim de salvar o Menino Jesus das garras dos assassinos, enviados por Herodes. Ouçamos o que Anna Catharina nos narra a respeito: "Vi um jovem resplandecente aproximar-se da cama de José e falar-lhe. José acendeu uma luz e, batendo à porta do quarto de Maria, pediu licença para entrar. Vi-o entrar e falar-lhe. Depois, foi à estrebaria dos jumentos e a um quarto. Aprontou tudo para a viagem. Maria vestiu-se imediatamente para a fuga e foi à casa de sua mãe, Sant'Ana, anunciando-lhe a ordem de Deus. Ana abraçou à SS. Virgem diversas vezes, chorando. Maria Helí prostrou-se no chão, desfazendo-se em lágrimas. Ambas apertaram, mais uma vez, o Menino Jesus de encontro ao cora ção. Ainda não era meia noite, quando abandonaram a casa. Maria levava o Menino Jesus, em uma faixa, diante de si; vestia um manto largo, que a envolvia e ao Menino. Vi a Sagrada Família passar, ainda de noite, por alguns lugarejos e descansar, pela manhã, em um rancho. Só três vezes acharam, durante a fuga, uma estalagem para pernoitar. Nos outros dias, com os freqüentes e penosos desvios, dormiam sempre em barrancos, cavernas e lugares desertos, longe da estrada. Viajavam sempre à distância de uma milha da estrada real, sofrendo falta de tudo. Vi-os chegar cansados e abatidos a uma gruta, perto de Efraim. Mas, para os refrescar, brotou uma fonte da terra e aproximou-se-Ihes uma cabra selvagem, que deixou ordenhar-se por eles; apareceu-Ihes também um Anjo, que os consolou. Tendo passado o território de Herodes e entrado num vasto deserto arenoso, não viram mais caminho, nem sabiam a direção; diante de si, viram serras inviáveis. A Sagrada Família estava muito angustiada; ajoelharam-se, pedindo a Deus socorro. Então

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vieram algumas feras enormes, que olharam para as serras, correram para a frente e voltaram para trás, como cães que querem conduzir alguém a certo caminho. A Família Sagrada seguiu finalmente às feras, atravessou a montanha (Séir?) e entrou numa região deserta e inóspita. Vi-a cercada por uma quadrilha de salteadores: o chefe, com cinco ou seis homens. A princípio estes se mostraram malévolos; mas à vista do Menino Jesus, tocou um raio de graça o coração do chefe, que proibiu à sua gente fazer mal aos viajantes. Conduziu a santa Família à sua cabana, na qual a mulher Ihes ofereceu alimentos; trouxe também uma gamela com água, para que Maria nela banhasse a Jesus. Nossa Senhora aconselhou-lhe que banhasse na mesma água o filho morfético. Esse menino estava cheio de lepra, mas, apenas mergulhado na água, caíram-lhe as crostas da enfermidade e tornou-se são e limpo. A mulher ficou fora de si, de alegria. Tive uma visão, na qual conheci que o menino curado se tornou, mais tarde, o bom ladrão. Pela madrugada, a Sagrada Família continuou a viagem pelo deserto e, tendo perdido de novo o rumo, vieram animais rasteiros mostrar-lhe o caminho. Mais tarde, viam sempre brotar uma rosa de Jericó, ao alcance da vista. Havendo chegado já às terras do Egito, vi a Família Sagrada lânguida de sede, passar por um mato, em cuja orla havia uma tamareira. As frutas pendiam do alto da árvore. Maria aproximou-se com o Menino Jesus e, levantando-o, rezou; então se inclinou a tamareira com a copa, de modo que lhe puderam colher todos os frutos. A Sagrada Família tomou o caminho de Heliópolis, cidade do Egito. Em frente às portas dessa cidade havia um grande ídolo, uma cabeça de touro sobre uma coluna, como pedestal. Sentaram-se os viajantes não longe dela, debaixo de uma árvore, para descansar. Pouco tempo depois se deu um abalo da terra; o ídolo vacilou e caiu do pedestal. Houve por isso na cidade grande alvoroço entre o povo. A Sagrada Família entrou pela cidade e foi morar sob um baixo alpen dre. José construiu, diante dessa morada, uma sacada, de madeira. Vi-o trabalhar muito em casa, como também fora e vi a Virgem Santíssima tecendo tapetes ou fazendo outros trabalhos. Moraram perto de ano e meio em Heliópolis; tiveram, porém, de sofrer muitas perseguições, depois de terem caído ainda outros ídolos, num templo vizinho. Pouco antes de deixar a cidade, teve a Santíssima Virgem, por um amigo, notícias da matança das crianças de Belém, Maria e José ficaram muito tristes; o Menino Jesus, que já podia andar, chorou durante todo o dia. Por causa da perseguição e por falta de trabalho, saiu a Sagrada Família de Heliópolis e, indo ao interior do país, em direção a Mênfis, veio para Mataréia, onde José executou muitos trabalhos de construção. À chegada, caiu também o ídolo de um

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pequeno templo e, mais tarde, todos os ídolos. Vi como o Menino Jesus, pela primeira vez, buscou água da fonte para sua Mãe. Maria estava rezando, quando o Menino Jesus, saindo furtivamente, foi ao poço com um odre, para buscar água. Maria ficou muito comovida quando Jesus voltou e pediu-lhe de joelhos que não o fizesse mais, com medo de que caísse no poço. Jesus, porém, disse-lhe que teria muito cuidado e queria sempre ir buscar água, quando ela precisasse. Ainda pequenino, Nosso Senhor prestava muitos serviços aos pais, era muito atencioso e ajuizado: notava tudo. Ía também comprar pão no próximo bairro dos judeus, em troca dos trabalhos de Maria. Quando o Menino Jesus foi lá pela primeira vez tinha seis ou sete anos. Vestiu, também pela primeira vez, aquela túnica parda, tecida pela Virgem Santíssima e bordada em baixo com florões amarelos. No caminho, lhe apareceram dois anjos, que lhe anunciaram a morte de Herodes, o Grande. Vi que S. José estava muito abatido uma noite; não lhe pagaram o salário e, assim, não pôde trazer nada para casa, onde tanto precisavam. Cheio de angústia, ajoelhou-se no campo deserto, queixando a Deus sua mágoa. Na noite seguinte lhe apareceu um Anjo, que lhe trouxe a ordem de partir do Egito e voltar à sua terra, pela estrada real. A viagem correu sem maior perigo para a Santa Família. Mas Maria Santíssima muitas vezes ficou aflita por causa de Jesus, que sofreu muito com a caminhada através da areia quente. José quis ir primeiro a Belém e não para Nazaré; estava, porém, indeciso. Finalmente lhe apareceu um Anjo, que lhe ordenou voltar para Nazaré, o que fez imediatamente. Ana ainda estava viva. Jesus tinha oito anos, menos três semanas.” 9. Da mocidade de Jesus. Sua permanência em Jerusalém onde ensina aos doutores da lei e é encontrado pelos pais no Templo (5) Visto que a Escritura Sagrada pouco relata da infância de Jesus, deve ser de grande interesse para nós o que Anna Catharina Emmerich nos conta dessa época, descrevendo como o nosso Divino Salvador passou a infância e mocidade. "Vi a Sagrada Família, constituída pelas três pessoas Jesus, Maria e José, desde o décimo até o vigésimo ano de Jesus, morar duas vezes em casa alugada, com outras famílias; do vigésimo ao trigésimo ano de Cristo, vi-a morar sozinha numa casa. Havia na casa três quartos separados: o da Mãe de Deus era o mais espaçoso e agradável e nesse se reuniam também os três membros da Família para a oração; fora disso, raramente os vi juntos.

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Durante a oração ficavam em pé, as mãos cruzadas sobre o peito; pareciam rezar alto. Vi-os rezar muitas vezes de noite, à luz do candeeiro. Todos dormiam separados nos respectivos quartos. Jesus passava a maior parte do tempo no seu quarto. José carpintejava no seu; vi-o talhar varas e ripas, polir peças de madeira ou, de vez em quando, trazer uma viga. Jesus ajudava-o no trabalho. Maria ocupava-se muito com trabalhos de costura ou certa espécie de ponto de malha, com varinhas. Vi Jesus cada vez mais recolhido, entregue à meditação, à proporção que se lhe apro-ximava o tempo da vida pública. Até os dez anos prestava aos pais todos os serviços que podia; era também amável, serviçal e obsequiador para com todos na rua e onde quer que se lhe ofereeesse ocasião. Como menino, era modelo para todas as crianças de Nazaré. Amavam-no e receavam desagradar-lhe. Os pais dos companheiros, censurando os maus costumes e as faltas dos filhos, costumavam dizer-Ihes: "Que dirá o filho de José, se lhe contar isso? Como ficará triste!" Às vezes se Lhe queixavam dos filhos, na presença destes, pedindo: "Dize-lhe que não façam mais isso ou aquilo!" E Jesus aceitava-o de maneira infantil, como brincadeira, ro gando aos amigos carinhosamente que procedessem de tal ou tal modo; rezava também com eles pedindo ao Pai Celeste força para se corrigirem, persuadia-os a confessarem sem demora as faltas e a pedirem perdão. Jesus tinha figura esbelta e delicada, rosto oval e alegre, a tez sadia, mas pálida. O cabelo liso, de um louro arruivado, repartido no alto da cabeça, pendia-lhe da testa, franca e alta, sobre os ombros. Vestia uma túnica comprida, de cor parda acinzentada, inteiramente tecida, que lhe chegava até os pés; as mangas eram um pouco mais largas nas mãos. Aos oito anos foi Jesus pela primeira vez a Jerusalém, para a festa da Páscoa e depois ia todos os anos. Quando Ele veio a Jerusalém, na idade de doze anos, possuía já muitos conhecidos na cidade. Os progenitores costumavam andar com os conterrâneos nessas viagens e, como fosse já a quinta romaria de Jesus, sabiam que sempre andava em companhia dos jovens de Nazaré. Desta vez, porém, na volta, se separara dos companheiros, perto do monte das Oliveiras, pensando estes que fosse juntar-se aos pais. Mas, quando chegaram a Gophna, notaram Maria e José a ausência de Jesus e tornaram-se muito inquietos. Voltaram imediatamente, procurando-o pelo caminho e em Jerusalém; mas não o acharam logo. Nosso Senhor se havia dirigido, com alguns rapazes, a duas escolas da cidade; no primeiro dia, a uma; no segundo, a outra. No terceiro dia, fora de manhã a uma terceira escola, e de tarde ao Templo, onde o acharam os pais. Jesus pôs os doutores e rabinos de todas as escolas, em tal estado de admiração e de embaraço, pelas suas

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perguntas e respostas, que resolveram humilhar o Menino, por intermédio dos rabinos mais doutos, na tarde do terceiro dia, em auditório público, interrogando-o sobre diversas matérias. Vi Jesus sentado numa cadeira grande, rodeado de numerosos judeus velhos, vestidos como sacerdotes. Escutavam atentamente e parecia estarem furiosos. Como o Senhor houvesse alegado, nas escolas, muitos exemplos da natureza, das artes e ciências, para demonstrar as suas respostas, reuniram-se conhecedores de todas essas matérias. Começando estes, pois, a discutir com Jesus, entrando em pormenores, objetou-Ihes que tais coisas não se deviam discutir no Templo; queria, porém, lhes responder por ser isso vontade de Deus. Falou então sobre medicina, descrevendo todo o corpo humano, como ainda não o conheciam os sábios; discorreu sobre astronomia, arquitetura, agricultura, geometria, matemática, jurisprudência e sobre tudo que lhe foi proposto. Deduziu tudo isso tão claramente da Lei e da promissão, das profecias do Templo, dos mistérios do culto e dos sacrifícios, que uns não se fartavam de admirar e outros ficavam, ora envergonhados, ora zangados e afinal todos se tornaram furiosos, porque lhes dissera Nosso Senhor coisas de que nunca haviam tido conhecimento, nem tão clara compreensão. Já havia ensinado desse modo algumas horas, quando José e Maria chegaram ao Templo, para se informarem, com Levitas conhecidos, à respeito do Filho. (5) Não se deve supor que Jesus acompanhasse os pais pela primeira vez a Jerusalém, quando tinha 12 anos. O santo Evangelista Lucas diz apenas: E os pais iam todos os anos a Jerusalém, no dia solene da Páscoa. E quando Jesus tinha doze anos, subiram a Jerusalém, segundo o costume do dia de festa. E, acabados os dias que esta durava, quando voltaram para casa, ficou o Menino Jesus em Jerusalém, sem que os pais o advenissem. (Luc. 2,41-43). S. Lucas não diz, portanto, de nenhum modo, que era a primeira vez que Jesus acompanhava os pais a Jerusalém. Não haveria ele cenamente mencionado nem essa viagem, nem as dos outros anos, se não houvessem acontecido coisas importantes, que era, desejável transmitir à posteridade. Que o Menino Jesus fizesse essa viagem de Nazaré a Jerusalém a pé, com oito anos, não se pode estranhar, pois que os meninos do Oriente, como, em geral, os dos países cálidos, se desenvolvem mais cedo, corporal e espiritualmente, do que nos países frios. Jesus já fizera nessa idade a viagem do Egito a Nazaré, viagem muito mais longa e penosa. Devia ser até estranho e inexplicável que o Menino Jesus não houvesse tomado parte nas romarias anuais a Jerusalém, dos oito aos doze anos. Pelo contrário, explica-se fácil e satisfatoriamente a confiança de Maria e José para com o Menino de doze anos, se este fazia aquela viagem, não pela

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primeira, mas pela quinta vez. Então souberam que se achava com os doutores da lei no auditório. Como fosse um lugar em que não Ihes era permitido entrar, mandaram um dos levitas chamar Jesus. Este, porém, Ihes mandou dizer que primeiro queria acabar o trabalho. Magoou muito a Maria o não vir Ele logo. Era a primeira vez que fazia saber aos pais que as ordens destes não eram as únicas que tinha a cumprir. Ensinou ainda uma boa hora e, só depois de todos estarem refutados, envergonhados e em parte zangados, foi que saiu do auditório e se dirigiu ao átrio de Israel e das mulheres, para se encontrar com os progenitores. José, retraído e admirado, nada disse; Maria, porém, encaminhou-se para Ele, dizendo: "Filho, porque nos fizeste isso? Olha que teu pai e eu te andávamos procurando, cheios de aflição." Mas Jesus, ainda muito sério, disse: Por que me procuráveis? Não sabeis que me devo ocupar das coisas de meu Pai?" Eles, porém, não compreenderam essas palavras e partiram com Ele, sem demora, de volta a Nazaré. A doutrina de Jesus produziu grande sensação entre os doutores da lei; mas estes guardaram silêncio sobre o acontecimento, falando só de um menino presunçoso, a quem haviam repreendido, que possuía bom talento, mas precisava ainda ser educado e polido.” Jesus, ficando em Jerusalém, não teve nenhuma intenção de afligir os pais; teve em mira só a vontade do Pai Celeste, que lhe inspirou ficar, para revelar a divina sabedoria. Por isso, mostrou nas escolas e no Templo um saber maior que o natural. Como menino de doze anos, ainda não freqüentara nenhuma escola, mas já se apresentava como mestre dos doutores. Oxalá tivessem ouvido e recebido a doutrina com coração suscetível! Mas, vaidosos de seu saber, não queriam ser ensinados; antes quiseram humilhá-Io, propondo-Lhe perguntas difíceis, às quais, como supunham, não poderia responder. Mas foram eles mesmos que ficaram humilhados pelas sábias respostas de Jesus e por isso se enraiveceram contra Ele. Recusaram-se a ver a luz que os iluminava. Uma estrela milagrosa anunciara o nascimento do Messias; mas o povo escolhido não se importara com tal fato, nem recebera o Salvador. O Menino Jesus fez brilhar a sua luz no Templo; mas as autoridades do povo, os sacerdotes e doutores fecharam propositadamente os olhos a essa luz. Por isso Ihes será tirada: cada ano, voltará o Salvador ao Templo; mas não ensinará mais publicamente, até que, chegado à idade madura, percorrerá todas as regiões da Palestina, pregando sua doutrina divina a todo o povo. Então se apresentará de novo no Templo, exclamando, em alta voz: "Eu sou a luz do mundo." Jerusalém, se ao menos nesse dia o conhecesses!

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10. A vida do Senhor, até o começo de suas viagens apostólicas Depois de voltar de Jerusalém, viveu Jesus, até a idade de trinta anos, com Maria e José, em paz e recolhimento, na pequena casa de Nazaré. Nem a Escritura Sagrada, nem a tradição nos transmitem pormenores dessa época; o Evangelho diz apenas: "E era-Ihes (aos pais) submisso." (Luc. 2, 51). Também Anna Catharina Emmerich conta pouco dessa fase da vida de Jesus. Ouçamos os fatos principais: "Depois de Jesus ter voltado a Nazaré, vi preparar-se uma festa, em casa de Sant' Ana, onde todos os moços e moças, parentes, e amigos de Jesus, se reuniram. Nosso Senhor era a pessoa principal dessa festa, à qual estiveram presentes 33 meninos, todos futuros discípulos do Salvador. Ele os ensinou e contou-Ihes uma belíssima parábola de núpcias nas quais a água seria mudada em vinho e os convidados indiferentes em amigos fiéis; depois Ihes falou de outras bodas, nas quais o vinho seria mudado em sangue e o pão em carne; e esta boda permaneceria. com os convidados, até o fim do mundo, como consolação e conforto e como vínculo vivo de união. Disse também a Natanael, jovem parente seu: "Estarei presente às tuas bodas.” Desde esse tempo, Jesus sempre foi como que o mestre dos compa-nheiros. Sentava-se-Ihes no meio, contando ou ensinando, ou passeava com eles pelos campos. Aos 18 anos, começou a ajudar a S. José na profissão. Dos vinte aos trinta anos, teve muito que sofrer, por secretas intrigas dos judeus. Estes não podiam suportá-Io, dizendo, com inveja, que o filho do carpinteiro queria saber tudo melhor. Na época em que começou a vida pública, tornou-se cada vez mais solitário e meditativo. Quando Jesus se aproximava dos trinta anos, tornou-se José cada vez mais fraco. Vi Jesus e Maria mais vezes em companhia dele. Maria sentava-se-Ihe ao lado do leito, de quando em quando. Quando José morreu, estava Maria sentada à cabeceira da cama, segurando-o nos braços; Jesus se achava em frente, junto ao peito do moribundo. Vi o quarto cheio de luz e de Anjos. O corpo de José foi envolvido num largo pano branco, com as mãos postas abaixo do peito, deitado num caixão estreito e depositado numa bela gruta sepulcral, perto de Nazaré, gruta a qual recebera como doação de um homem bom. Além de Jesus e Maria, foram poucos os que acompanharam o caixão; vi-o, porém, acompanhado de Anjos e rodeado de luz. O corpo de José foi levado mais tarde pelos cristãos para um sepulcro perto de Belém. Julgo vê-Io jazer ali, ainda hoje, em estado Incorrupto. José teve de morrer antes de Jesus, pois, sendo muito fraco e amoroso, não lhe teria sobrevivido à crucificação. Já sentira profundamente as perseguições que o Salvador teve de sofrer, dos vinte aos trinta anos, pelas repetidas maldades secretas dos

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judeus. Também Maria havia sofrido muito com essas perseguições. É indizível com que amor o jovem Jesus suportava as tribulações e intrigas dos judeus. Depois da morte de José, Jesus e Maria se mudaram para uma aldeia situada entre Cafamaum e Betsaida, em que um homem chamado Leví ofereceu uma casa a Jesus. Maria Cleophae, que, com o terceiro marido, vivia na casa de Sant'Ana, perto de Nazaré, mudou-se para a casa de Maria, em Nazaré. Vi Jesus e Maria irem de Cafarnaum para lá e creio que Maria ficou ali, pois havia acompanhado Jesus a Cafarnaum. Entre os moços de Nazaré Jesus já tinha muitos adeptos; mas sempre o abandonavam de novo. Andava com eles pelas regiões marginais do lago e também em Jerusalém, pelas festas. A família de Lázaro, em Betânia, era também já conhecida de Jesus.” 11. As viagens apostólicas de Jesus, antes do seu Batismo no Jordão Segundo as narrações de Anna Catharina Emmerich, o Divino Salva-dor já fizera, antes do seu Batismo, diversas viagens longas através da Palestina começando a pregar em público sua doutrina. Essas viagens tinham um fim preparativo. Por toda parte exortava os homens a que recebessem o Batismo de João, em espírito de penitência e ensinava que o Messias devia aparecer por aqueles dias. Que Ele mesmo era o Messias, não o dizia por enquanto. Admiravam-no como homem sábio e por suas qualidades espirituais e corporais; ficavam surpreendidos pelos seus feitos milagrosos... mas não chegavam a conhecer-lhe a divindade, pois os judeus tinham opinião muito errada, a respeito do Messias e do seu reino. Julgavam-no um rei vitorioso, que fundaria um poderoso reino; Jesus, porém, aos seus olhos, era apenas o "filho do carpinteiro.” Anna Catharina viu Jesus primeiro indo de Cafarnaum a Hebron, por Nazaré e Betânia, onde se hospedou em casa de Lázaro. Visitou o deserto, onde Isabel escondera o menino João e, voltando a Hebron, começou a visitar os enfermos, consolando-os e aliviando-os. Os possessos tornavam-se sossegados perto dele. De Hebron, foi Jesus à foz do Jordão, no Mar Morto, atravessou-o, para a outra banda, dirigindo-se à Galiléia. Passou por Dathaim, cerca de quatro léguas distante de Samaria, onde, numa casa grande, vi viam muitos possessos, que ficaram furiosos à aproximação de Nosso Senhor; quando, porém, Ihes falou, tornaram-se inteiramente calmos e voltaram para a sua terra. Em Nazaré, Jesus visitou os conhecidos de seus pais mas foi, em toda parte, recebido com frieza e, querendo ensinar na sinagoga, não Lho permitiram. Falou, porém, na praça pública, diante de grande multidão de povo, sobre o Messias e João Batista. Depois

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foi com Maria a Cafarnaum e dali novamente, de aldeia em aldeia, passando pelas sinagogas, para ensinar, consolando e socorrendo os enfermos. Esteve em Caná, depois à beira do Mar da Galiléia, onde expulsou o demônio de um possesso. Pedro pescava ali, Jesus falou com André e outros. Partindo do lago, com seis a doze companheiros, tomou o caminho de Sidônia, à beira-mar, passando pela montanha do Líbano; nessa cidade deixou os companheiros e foi a Sarepta e ensinou as crianças e muitas vezes se retirava a uma pequena floresta, perto da cidade, para rezar sozinho. Depois de voltar a Nazaré, ensinou também na sinagoga: como, porém, surgisse descontentamento e murmuração contra Ele, declarou aos amigos que ia a Betsaida. Ali ensinou e, do mesmo modo, em Cafarnaum, percorrendo assim toda a Baixa-Galiléia. Em Séforis, curou cerca de cinqüenta lunáticos e possessos; por causa disso se deu um tumulto na cidade, de maneira que Jesus teve de fugir, escondendo-se numa casa para abandonar a cidade de noite. Maria que com outras piedosas mulheres, estava presente, afligiu-se muito vendo-O, pela primeira vez, perseguido à viva força. Em Betúlia, Jesus foi recebido e tratado amistosamente, como também em Kedes e Kision. Celebrou o Sábado em Jezrael, com os Nazarenos, que faziam votos e viviam uma vida de mortificações e austeridades. Tendo depois exortado os publicanos de um lugar, na estrada real de Nazaré, a que não exigissem mais do que os direitos justos, ensinou em Kisloth, ao pé do monte Tabor, sobre o Batismo de João. Os fariseus deram-lhe um banquete, para espiá-Io e examinar-lhe a doutrina. Havia, porém, na cidade um costume e direito antigo, segundo o qual os pobres deviam ser convidados aos banquetes que fossem oferecidos a forasteiros. Sentando-se, pois, à mesa, Jesus perguntou logo aos fariseus onde estavam os pobres e mandou os discípulos chamá-I os, pelo que ficaram os fariseus muito zangados. Ainda na mesma noite partiu de Kisloth e chegou, pela tarde do dia seguinte, a Kimki, aldeia de pastores. Quando ensinou na sinagoga, levantaram-se contra Ele os fariseus, provocando um tumulto, Jesus continuou seu caminho, de noite, indo pela estrada real, até um lugarejo perto de Nazaré, habitado por pastores. Ali curou dois leprosos, mandando-os lavar-se com a água na qual Ele havia banhado os pés. Cerca de um quarto de légua antes de chegar a Nazaré, entrou Jesus na casa de um Esseno, chamado Eliud, com o qual rezou e conversou com grande intimidade, sobre a sua missão e o mistério da Arca da Aliança. Explicou-lhe como aceitara um corpo humano do germe da bênção, que Deus tirara de Adão, antes do primeiro pecado; que viera para salvar os homens, os quais se lhe mostrariam muito ingratos. A Virgem Santíssima veio com Maria Cleophae a Jesus, suplicando-lhe que não fosse a Nazaré, pois o povo estava irritado. Ele

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respondeu que esperaria só os companheiros que com Ele queriam ir a João Batista e depois passaria por Nazaré. Maria voltou a Cafarnaum. Jesus, porém, encaminhou-se com Eliud, pelo vale de Esdrelon, à cidade de Endor, pregando aí na praça pública sobre o Batismo de João e sobre o Messias. Os habitantes de Endor não eram propriamente judeus, mas antes escravos refugiados. Na tarde do terceiro dia voltou com Eliud e foi a Nazaré, onde ensinou na escola e sinagoga, falando de Moisés e explicando profecias sobre o Messias. Mas, como falasse de tal modo que os fariseus puderam concluir que se referia a eles mesmos, enraiveceram-se contra Ele, censurando-lhe as relações com publicanos e pecadores, como também o fato de abençoar muitas crianças, a pedido das mães. Na escola, lhe propuseram muitas perguntas intrincadas, mas Jesus reduziu todos os doutores ao silêncio. Ao legisperito respondeu com a lei de Moisés; ao médico, falou das doenças e do corpo humano, revelando conhecimentos por aquele inteiramente ignorados; aos astrônomos, ensinou o curso dos astros; discorreu também sobre comércio e indústria. Três jovens ricos pediram para ser recebidos como discípulos, Ele, porém, os recusou com tristeza, porque não pediram com intenção sincera. O Senhor enviou os discípulos, que então eram nove, a João, a quem mandou anunciar a sua vinda. Ele próprio, porém, acompanhado por Eliud, foi de Nazaré primeiro a Chim, curou ai um morfético e continuou depois o caminho pelo vale de Esdrelon. Nessa noite, no caminho, Jesus se mostrou a Eliud em gloriosa transfiguração e na manhã seguinte, o Senhor o mandou voltar para casa. Jesus continuou o caminho; passando ao pé do monte Garizim, perto de Samaria, chegou à cidade de Gofna, onde o receoeram com respeito. Entrando na sinagoga, explicou o livro de um profeta e provou que o tempo do Messias devia haver chegado. Depois veio a uma aldeia de pastores e lhe falaram do matrimônio ilícito de Herodes; Jesus censurou severamente o procedimento do rei, com o mesmo rigor condenou, em geral, os pecados da vida matrimonial. Repreendeu, também alguns em particular, pela vida de adultério que levavam; a muitos disse os pecados mais ocultos, de modo que prometeram, com profunda contrição, fazer penitência. De noite chegou Jesus a Betânia e hospedou-se em casa de Lázaro, onde Nicodemos, João, Marcos, Verônica e outros estavam reunidos. Durante a refeição, disse Jesus que lhe ia chegar um tempo muito sério; que Ele estava para entrar em um caminho cheio de contrariedades e perseguições; que lhe ficassem fiéis, se queriam ser-lhe verdadeiros amigos. No dia seguinte, Marta apresentou Jesus à irmã, chamada Maria Silenciosa. Jesus falou-lhe; conversaram sobre coisas divinas, Marta falou-lhe também, com grande tristeza, a respeito de Madalena; Jesus consolou-a. A Mãe de Nosso Senhor veio também a Betânia, com algumas das santas mulheres. O divino Mestre falou-lhe carinhoso e sério, dizendo-

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lhe que ia agora procurar João, para ser batizado e que depois teria de cumprir a sua missão; havia de amá-Ia como sempre, mas, daquele tempo em diante, devia viver e trabalhar para todos os homens. Jesus seguiu então com Lázaro em direção a Jericó, para serem batizados; andou descalço pelo caminho pedregoso; até o lugar do Batismo, contavam-se cerca de nove léguas. 12. Vida pública de João Batista Antes do Salvador começar a pregar publicamente a sua doutrina, enviou a divina Providência um homem que, pelo aspecto extraordinário e pelas exortações à penitência e ao Batismo, devia atrair a atenção de todo o povo. Era João, filho de Zacarias e Isabel, de Hebron. Para salvar o mesmo dos sicários de Herodes, por ocasião da carnificina das inocentes crianças de Belém, a mãe levara-o para o deserto, em que permaneceu até o princípio da sua vida pública. A tarefa de João Batista, como o último e maior profeta do Velho Testamento, era preparar o caminho do Salvador e, estando já no limiar do Novo Testamento, apresentar Jesus, o Cordeiro de Deus que, carregado dos pecados de todo o mundo, devia realizar a salvação do gênero humano, por seu amor e Paixão. Como João cumpriu essa difícil tarefa, conta-nos intuitivamente a religiosa de Dülmen: "Pouco antes de deixar o deserto do Líbano, teve João uma revelação a respeito do Batismo. Voltou depois do deserto para junto dos homens, produzindo em todos uma impressão maravilhosa. Alto, ema grecido pelo jejum e pelas mortificações, mas forte, era uma figura extraordinariamente nobre, pura, simples e dominante. Pelo meio do corpo, trazia cingido um pano, que lhe caia até aos joelhos. Vestia um manto áspero, pardo; braços e peito descobertos. Vindo do deserto, começou a construir uma ponte sobre um ribeiro. Falava só de penitência e da próxima vinda do Senhor. Tinha a voz aguda como uma espada, forte e severa; mas sempre agradável. Passava, por toda a parte, em caminho reto; vi-o correndo, através de matos e desertos, tirando pedras e árvores do caminho, preparando lugares de descanso, reunindo os homens que o admiravam, buscando-os até nas cabanas, para auxiliá-lo. Caminhou ao longo do Mar de Galiléia e, seguindo o vale do rio Jordão, passou perto de Jerusalém, para a qual olhou com tristeza; de lá foi à sua terra e a Betsaida. Nos três meses antes de começar o batismo, percorreu duas vezes o país, anunciando Aquele que havia de vir. Em lugares onde não havia nada que fazer, vi-o correr de campo em campo. Entrava pelas casas e escolas; para ensinar, reunia o povo em redor de si, nas ruas e praças públicas. Muitas vezes o vi indicar a região onde Jesus naquele momento se

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achava. João batizou em diversos lugares: primeiro, perto de Ainon, na região de Salem; depois em On, à margem ocidental do Jordão, não muito longe de Jericó; em seguida, a leste do Jordão, algumas léguas mais para o norte do segundo lugar; por fim voltou a Ainon. A água de que João usava ali em Ainon, para batizar, era de uma lagoazinha, separada de um braço do Jordão por um pequeno dique. A pessoa que se batizava, ficava entre duas línguas de terra, com a água até à cintura; punha-se São João numa dessas línguas, tirando água com uma taça e derraman do~a spbre a cabeça do neófito; na outra, se achava um homem já batizado, que colocava a mão sobre o ombro do que estava sendo batizado; ao primeiro, João mesmo impusera a mão. Tendo-se João tornado afamado, no correr de algumas semanas, pela sua doutrina e pelo batismo, Herodes enviou-lhe um mensageiro, com a ordem de apresentar-se-Ihe. João, porém, respondeu que tinha muito que fazer e se Herodes quisesse falar-lhe podia vir pessoalmente. Herodes veio, de fato, a um lugar cerca de cinco léguas distante de Ainon. Chegando, lá, falou-lhe João longamente, em tom muito sério e severo. Vi que Simão, Tiago o Menor, Tadeu e também André, Filipe e Levi, chamado depois Mateus, foram batizados por João. De Nazaré, Jerusalém e Hebron mandaram grupos inteiros de fariseus e chefes das sinagogas como mensageiros a João, para interrogá-Io a respeito de sua missão. Vieram também cerca de trinta soldados a João, que os repreendeu severamente, por não terem a intenção de arrepender-se. A multidão dos homens era enorme; centenas achavam-se sentados por ali e outras centenas chegavam continuamente, para ouvir-lhe a doutrina e receber o Batismo. Em Jerusalém houve uma grande sessão do Sinédrio por causa de João. Por três autoridades foram enviados nove homens, entre os quais José de Arimatéia. Deviam perguntar a João quem era ele e mandá-Io vir e ordenar que viesse a Jerusalém, pois se a sua missão fosse justa e legal, ter-se-ia apresentado primeiro no Templo. João deu apenas uma resposta curta e áspera. José de Arimatéia recebeu o Batismo. Vi João atravessar o Jordão e batizar enfermos; depois voltou à banda oriental do rio, a Ainon. Ali apareceu um Anjo, que o mandou ir para o outro lado do Jordão, a um lugar perto de Jericó, pois que se aproximava Aquele que havia de vir. Então levantaram João e os discípulos as tendas e cabanas do lugar de Batismo em Ainon e atravessaram o rio; o segundo lugar de Batismo dista cerca de cinco léguas de Jerusalém. Vieram de novo, duas vezes, emissários do Templo, fariseus, saduceus e sacerdotes a João. Disse-Ihes que se levantaria entre eles um homem, o qual não conheciam, que esperassem, pois em pouco viria Aquele que o mandara.

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"Eu, na verdade, vos batizo em água, mas virá outro, mais forte do que eu, a quem não sou digno de desatar a correia dos sapatos; Ele vos batizará na virtude do Espírito Santo e no fogo." (Luc. 3, 16). O lugar onde João pregava, era situado à distância de menos de meia légua, do lugar do Batismo. Ali estava ensinando, quando Herodes veio, pela segunda vez; João não se incomodou. Herodes tinha o desejo ilícito de casar-se com a mulher de seu irmão. Propusera, em vão, ao Sinédrio declarar lícito esse matrimônio; temendo também a voz pública, quis apaziguá-Ia por uma sentença de João. Este ensinou, diante dos discípulos, com grande franqueza, sobre o assunto a respeito do qual Herodes queria informar-se. Este mandou entregar-lhe um rolo, que continha escrita a sua causa. O rolo foi posto aos pés de João, pois este não quis contaminar-se, tocando-o com a mão com que batizava. Então vi Herodes, indignado, deixar o lugar com o séquito. João ensinou sobre o próximo Batismo do Messias e disse que nunca o tinha visto, mas acrescentou: "Para vos dar testemunho d’Ele mostrar-vos-ei o lugar onde será batizado. Eis que as águas do Jordão se dividirão e surgirá uma ilha." No mesmo instante vi que as ondas do rio se dividiram e avistou-se uma iIhota branca. Era esse o lugar onde os filhos de Israel atravessaram o Jordão, com a Arca da Aliança. João e os discípulos fizeram uma ponte, até à ilhota. Ao lado esquerdo desta, havia uma fossa, da qual subia água clara. Alguns degraus conduziam para baixo e, perto da superfície d'água, jazia uma pedra sobre a qual Jesus devia permanecer durante o seu batismo. Mais uma vez vi chegar uma comissão de cerca de vinte pessoas, enviadas pelas autoridades de Jerusalém, para pedir contas a João. Respondeu-Ihes como dantes, apelando para Aquele, que viria em pouco, para ser batizado. Depois vi Herodes chegar até perto do lugar de Batismo; discutiu com João, que o tinha excomungado. Vieram então a João também os discípulos que Jesus despedira em Nazaré; falaram-lhe de Jesus. Ao batizá-Ios, João teve a íntima certeza de que Jesus estava perto, pois o viu também numa visão. Desde então, ficou João cheio de indescritível alegria e com saudade de Jesus.” 13. O Batismo de Jesus e o jejum de quarenta dias. Os homens caíram pela soberba; pela humildade quis o Salvador levantá-Ios. Por isso, já no começo de sua tarefa difícil de ganhar os homens para o reino de Deus, pelo exemplo e pela Paixão, submeteu-se a uma profunda humilhação, deixando-se batizar por João. Assim exortou o povo, pelo exemplo, a imitá-Io, ensinando-nos também ao mesmo tempo a implorar, em espírito de

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humildade e penitência, a bênção de Deus para nós e para os nossos trabalhos. Pois a penitência e humildade nos tornam dignos da bênção e do agrado de Deus. Por isso, era tão meritória a humilhação voluntária do Filho de Deus, recebendo o Batismo de João; mereceu a santificação da água e os efeitos sacramentais do santo Batismo. Catharina Emmerich narra assim o batismo de Jesus: "Estava reunida uma extraordinária multidão de povo e João falou com grande alento sobre a próxima vinda do Messias e sobre a penitência; disse também que teria de desaparecer, para dar lugar Àquele. Jesus estava no meio do apinhado auditório. João, que O viu bem, ficou extremamente satisfeito e fervoroso. Já tinha batizado a muitos, quando Jesus, por sua vez, desceu ao tanque do Batismo. Então disse João, inclinando-se diante d’Ele: "Sou eu que devo ser batizado por Vós e vindes a mim!" Jesus respondeu-lhe: "Deixa fazer por ora; convém que assim cumpramos toda a justiça, que me batizes e que eu seja batizado por ti". Também lhe disse: "Receberás o Batismo do Espírito Santo e de sangue.” O Salvador dirigiu-se então por cima da ponte, à ilhota, acompanhado por João o pelos discípulos André e Saturnino. Entrando numa tenda, despiu as vestes e veio para fora, coberto de uma túnica de um tecido pardo; desceu à margem do tanque, onde despiu também a túnica, tirando-a pela cabeça. Cingiu os rins com uma faixa, que lhe envolvia as pernas, até abaixo dos joelhos. Assim entrou na fonte. João estava de lado, ao sul do tanque; tinha na mão uma taça com aba larga e três biqueiras. Abaixando-se, tirou água, com a taça e derramou-a, pelas três biqueiras, sobre a cabeça do Senhor, dizendo mais ou menos as seguintes palavras: "Javé derrame a sua bênção sobre ti, pelos Querubins e Serafins, com sabedoria, inteligência e fortaleza." Jesus subiu então e André e Saturnino cobriram-no com um pano, com o qual se enxugou; vestindo-o depois de uma comprida túnica branca de batismo, impuseram-Lhe as mãos aos ombros, enquanto João lhe pós a mão na cabeça. Ouviu-se então um grande bramido, vindo do céu, como um trovão e todos que estavam presentes, olharam para cima, estremecendo. Desceu uma nuvem branca e luminosa e vi uma figura lúcida, com asas, pairar por cima de Jesus, derramando sobre Ele uma torrente de luz; vi também a aparição do Pai Celestial e ouvi as palavras: "Eis meu Filho muito amado em quem ponho minha afeição." (Mal. 3,17) Jesus, porém, subiu os degraus, vestiu a túnica e dirigiu-se, cercado dos discípulos, ao largo da ilha. João falou com grande alegria ao povo, dando testemunho de que Jesus era o Messias prometido. Citou as promissões dos patriarcas e profetas, que nesse momento foram cumpridas; contou o que tinha visto e que era

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a voz de Deus, que todos tinham ouvido. Disse também que, daí a pouco, se retiraria, logo que Jesus voltasse. Exortou todos a seguirem Jesus. Jesus confirmou simplesmente o que João dissera. Disse também. que se retiraria por algum tempo; mas depois viessem a Ele todos os enfermos e aflitos, pois que Ihes daria consolação e socorro. Depois de batizado, Jesus partiu com os companheiros, primeiro para Belém, seguindo daí para o sul do Mar morto, pelo mesmo caminho que a Sagrada Família tomara, na fuga para o Egito. De lá, voltando, foi conduzido pelo Espírito Santo ao deserto, para jejuar quarenta dias. Começou o jejum na montanha de Jericó, onde subiu ao monte deserto e íngreme de Quarantania e rezou numa gruta. Descendo do monte, atravessou, numa embarcação, o rio Jordão e veio a uma montanha muito íngreme, distante cerca de nove léguas do Jordão. Jesus rezava numa gruta, ora prostrado por terra, ora de joelhos, ora em pé. Não comia nem bebia, mas era confortado pelos Anjos. "Cada dia, conta Anna Catharina Emmerich, a obra da oração de Jesus é diferente; cada dia nos alcança outras graças. Sem essa obra, não podia ser meritória a nossa resistência às tentações. Outro dia o vi prostrado com o rosto em terra, quando vieram numerosos Anjos, que o adoraram e lhe perguntaram se podiam apresentar lhe a sua missão e se ainda era a sua vontade sofrer como homem, para os homens. Tendo Jesus de novo confirmado sua vontade de aceitar os sofrimentos, erigiram-Ihe em frente uma Cruz alta. Três Anjos trouxeram uma escada, outro uma cesta, com cordas e ferramentas; outros, a lança, a haste de hissopo, varas, chicotes, coroa de espinhos, pregos, tudo o que depois se empregou na Sagrada Paixão. A Cruz, porém, parecia oca; podia abrir-se, como um armário e estava cheia de inúmeros e diversíssimos instrumentos de tortura. Todas as partes e lugares da cruz eram de cores diferentes, pelas quais se podia conhecer que tortura teria de sofrer. Havia também na Cruz muitas fitas de diversas cores, como que relatórios de muitas contrariedades e trabalhos que Jesus teria de suportar na sua vida e Paixão da parte dos discípulos e de outros homens. Quando, desse modo, toda a Paixão estava posta diante dele, vi que Jesus e os Anjos choravam. Satanás não sabia que Jesus era Deus, tomou-o por um profeta. Uma vez o vi à entrada da gruta, sob a figura de certo jovem, a quem Jesus muito amava. Fez barulho, pensando que Jesus se zangasse; mas este nem olhou para ele. Depois, enviou o demônio sete ou nove aparições de discípulos à gruta; disseram-lhe que o tinham procurado ansiosamente; não devia arruinar-se lá em cima e abandoná-Ios. Jesus disse somente: "Afasta-te, Satanás, ainda não é tempo". Então desapareceram todos. Num dos dias seguintes vi Satanás querendo afigurar-se Anjo, trajando vestes

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resplandecentes. Chegou voando à entrada da gruta e disse: "Fui enviado por vosso Pai, para vos confortar." O Senhor, porém, não olhou para ele. Jesus sofreu fome e sede. Ao cair da noite, Satanás, sob a forma de um homem alto e forte, subiu ao monte. Levava duas pedras que tirara em baixo, dando-Ihes a forma de pães. Disse a Jesus: "Se sois o Filho de Deus, fazei que estas pedras se mudem em pão." Ouvi Jesus apenas dizer: "O homem não vive de pão." Satanás ficou furioso e desapareceu. Ao cair da tarde do dia seguinte, vi Satanás aproximar-se de Jesus, em forma de um Anjo poderoso. Vangloriando-se, disse-lhe: "Mostrar-vos-ei quem sou e o que posso. Eis aí Jerusalém e o Templo. Vou colocar-vos no mais alto pináculo; mostrai então o vosso poder." Satanás segurou-o pelos ombros e, levando-o pelos ares a Jerusalém, colocou-o no cimo de uma torre. Depois voou para baixo, à terra e disse: "Se sois o Filho de Deus, mostrai o vosso poder e atirai-vos à terra; pois está escrito: Ele mandará os seus Anjos, que vos sustentarão com as mãos, afim de que não machuqueis os pés de encontro às pedras." Jesus respondeu: "Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus.” Então voltou Satanás, cheio de raiva e Jesus lhe disse: "Usa do teu poder, do poder que te foi dado." Satanás, furioso, segurou-o de novo pelos ombros, e, levando-o por cima do deserto, em direção a Jericó, colocou-o no mesmo monte onde Jesus começara o jejum. Era o ponto mais alto do monte, no qual o tinha posto; mostrou em redor de si e viram-se os mais maravilhosos panoramas, em todas as direções do mundo. Então disse Satanás a Jesus: "Sei que quereis propagar agora a vossa doutrina. Eis ai todas essas terras magníficas, esses povos poderosos e aqui a pequena Judéia. Ide lá! Dar-vos-ei todas essas terras, se, prostrado a meus pés, me adorardes". Jesus disse: "Adorarás o Senhor teu Deus e a Ele servirás. Afasta-te, Satanás!" Então vi Satanás, numa forma indescritivelmente hedionda, lançar-se para baixo e desaparecer. Logo depois, vi um grupo de Anjos aproximar-se de Jesus e levá-Io à gruta, onde começara o jejum. Eram doze esses Anjos e numerosos outros, para o servirem. Celebrou-se, então, na gruta, uma festa em ação de graças e de júbilo e depois houve um banquete.” Jesus desceu do monte e veio ao Jordão, perto do lugar onde João estava batizando. Este se voltou logo para o Mestre, exclamando: "Eis o Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo". Podia-se perguntar: Por que fez Jesus um jejum tão rigoroso? Por que se sujeitou àquelas tentações? Jesus está para começar sua vida pública; quer percorrer abertamente o país, repreender os pecadores, convidá-Ios a converter-se e fazer penitência; na sua doutrina, terá de fazer frente, muitas vezes, a opiniões errôneas a respeito da fé e da

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moral; terá de apresentar-se ao povo como o Messias prometido, como o Filho de Deus e de exigir humilde aceitação de sua doutrina. É uma tarefa dificílima, que traz consigo muitos trabalhos penosos, mortificações, sofrimentos, inimizades e perseguições. Por isso se prepara o Salvador para essa obra com jejum e medita-ção, na solidão do deserto. Ali, no retiro absoluto, deixa tentar-se por Satanás, que parece não lhe conhecer a divindade. Por causa da inseparável união de sua alma com o Verbo Divino, não podia a tentação nascer-lhe da própria natureza, mas podia só provir do exterior. O homem tentado, pela tríplice concupiscência, é logo inclinado a ceder à tentação e, desse modo, inúmeros homens caem na ruína temporal e eterna. Jesus, porém, quer salvar os homens dessa maior desgraça; por isso, oferece também o jejum e as tentações sofridas, como expiação dos pecados. Assim nos mostra como devemos vencer a tentação; pela vitória sobre a mesma nos merece a graça de vencê-Ia também. Em tudo se tomou igual a nós, com exceção do pecado. 14. Eleição dos primeiros discípulos e o milagre de Caná A figura majestosa de Jesus, o seu trato sério, mas sempre amável e delicado, a força da sua palavra, juntamente com os prodígios extraordinários que operava, deviam fazer profunda impressão em todos. Uns, cheios de boa vontade, creram-lhe humildemente na doutrina e nos milagres; outros, malignos, invejosos e de coração endurecido, encheramse de ódio contra Ele. Quem não se lembra, à vista desses fatos, da profecia do velho Simeão: "Este Menino está posto para a ruína e salvação de muitos, em Israel?” Do número ainda pequeno dos aderentes só poucos se lhe tinham juntado, acompanhando-o nas viagens apostólicas. Quando, porém, saiu do deserto, depois do jejum de quarenta dias, aumentou o número dos discípulos; entre estes era André um dos primeiros. Ouvira, com Saturnino, João indicar a Jesus, dizendo: "Eis aí o Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo." Ambos se reuniram a Jesus. André conduziu o irmão Simão ao Salvador, que lhe disse: "Tu és Simão, filho de Jonas; no futuro serás chamado Kephas (latim: Petrus)." Jesus encontrou-se depois com Filipe e convidou-o para discípulo, dizendo-lhe: "Segue-me". Filipe falou a Natanael do Messias; mas só o saber sobrenatural de Jesus o induziu a seguí-Io. Com os discípulos e parentes, dirigiu-se Jesus a Caná, para assistir às bodas a que Ele e sua Mãe tinham sido convidados. O noivo chamava-se Natanael e tinha certo parentesco com Jesus; pois era sobrinho da filha de Sobe, a qual já conhecemos como irmã de Sant' Ana. Conta-nos Anna Catharina Emmerich o seguinte: Estavam reunidos mais de cem convidados. Jesus dirigia a festa,

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presidia aos divertimentos, temperando-os com palavras de sabedoria. Foi também quem organizou todo o programa da festa. Vi os convidados, homens e mulheres, divertirem-se separados num jardim, conversando ou brincando. Jesus também tomou parte num jogo de frutas, com amável seriedade. Dizia, às vezes, sorrindo, algumas palavras sábias, que todos admiravam ou escutavam comovidos. Nesses dias falou Jesus muito em particular com aqueles discípulos que, mais tarde, se lhe tomaram Apóstolos. Quis revelar-se, nessa festa a todos os parentes e amigos e desejou que todos até então por Ele eleitos se conhecessem uns aos outros, naquela reunião, em que havia maior franqueza. No terceiro dia depois da chegada de Jesus, foi celebrada a cerimônia do casamento. Noivo e noiva foram conduzidos da casa da festa à sinagoga. No cortejo havia seis meninos e seis meninas, que levavam grinaldas; depois seguiam seis moços e moças, com flautas e outros instrumentos. Além desses, doze donzelas acompanhavam a noiva, como paraninfas e o noivo, doze mancebos. A cerimônia do casamento foi feita pelos sacerdotes, diante da sinagoga. Os anéis que trocaram, foram um presente de Maria Santíssima e tinham sido bentos antes por Jesus. Para o banquete nupcial reuniram-se todos de novo, no jardim. Vi um jogo preparado por Jesus mesmo, para os homens: a sorte que caía a cada um dos jogadores, indicava-lhe as, qualidades, os defeitos e virtudes. Jesus interpretava a sorte de cada um, conforme a combinação das frutas que ganhavam. O noivo ganhou para si e a esposa duas frutas estranhas, num só pé, como já vi antes, no paraíso. Todos se admiravam muito e Jesus falou do matrimônio e do cêntuplo fruto da castidade. Depois dos noivos terem comido a fruta, vi que uma sombra escura deles se afastava. A fruta tinha relação com a castidade e a sombra que se apartava, era a concupiscência da carne. Ao jogo no jardim seguiu-se o banquete nupcial. A sala estava dividida em três partes; na do meio estava Jesus sentado à cabeceira da mesa. A mesma mesa sentaram-se também Israel, o pai da noiva, os parentes masculinos de Jesus e da noiva e também Lázaro. As outras mesas laterais sentaram-se os outros convidados e os discípulos. O noivo serviu as mesas dos homens e a noiva as das mulheres. Jesus encarregara-se das despesas do segundo prato do banquete. (Lazaro pagou as despesas, mas só Jesus e Maria o sabiam). Tudo estava bem arranjado pela Santíssima Virgem e Marta. Jesus lhes tinha dito que forneceria o vinho para esse prato. Depois de ter sido servido às mesas laterais o segundo prato, que constava de aves, peixe, iguarias de mel, frutas e uma espécie de pastéis, que Seráfia (Verônica) trouxera, Jesus aproximou-se e repartiu todas as iguarias; depois se sentou de novo à mesa. Serviram-se as iguarias, mas faltou o vinho. Jesus, porém, estava

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ensinando. Esta parte do banquete ficou aos cuidados da Santís-sima Virgem e, como notasse que faltava vinho, aproximou-se de Jesus, lembrando-lhe ansiosamente essa falta, porque Ele tinha dito que o forneceria. Jesus, que falava do Pai Celestial, disse-lhe então: "Mulher, não vos apoquenteis. Deixai de inquietar-vos e a mim, minha hora ainda não chegou." Assim falando, não manifestava falta de respeito a sua Mãe. Disse mulher e não mãe, porque quis nesse momento, como Messias e Filho de Deus, realizar uma ação misteriosa diante dos seus discípulos e parentes, mostrando que ali estava, presente na sua missão divina. Maria não se inquietou mais; disse aos criados: "Fazei tudo que Ele vos mandar.” Depois de algum tempo, mandou Jesus aos criados trazerem as ânforas vazias e virarem-nas. Trouxeram-nas; eram três ânforas de água e três de vinho. Os criados mostraram que estavam vazias, virando-as por cima de uma bacia. Jesus mandou que enchessem todas com água. As ânforas eram grandes e pesadas; eram precisos dois homens para transportarem cada uma. Depois de estarem cheias de água, e postas ao lado do aparador, Jesus aproximou-se, benzeu as ânforas e, tendo-se sentado de novo à mesa. disse: "Enchei os cálices e levai um ao despenseiro." Este, tendo provado o vinho, aproximou-se do noivo e disse-lhe que sempre fora costume dar primeiro o bom vinho e depois dos convidados terem bebido bastante oferecer o vinho inferior, mas que ele tinha dado o melhor no fim. Então beberam também o noivo e o pai da noiva, ficando ambos pasmos; os criados protestaram que haviam enchido de água as ânforas e tirado delas para encher os cálices e copos das mesas. Então beberam todos. Não houve, porém, nenhum barulho por causa do milagre, mas reinava silêncio respeitoso em toda a reunião e Jesus ensinou muito, a respeito do que se passara. Todos os discípulos, parentes e convidados estavam agora convencidos do poder de Jesus e de sua dignidade e missão. Desse modo esteve Jesus a primeira vez na sua comunidade e foi o primeiro prodígio que nela e para ela operou, para confirmar-lhe a fé. Por isso é relatado na história da sua vida como o primeiro milagre e a última Ceia como o último milagre, quando já era firme a fé dos apóstolos. Ao fim do banquete veio o noivo sozinho a Jesus e declarou-lhe, com muita humildade, que sentia extinta em si toda a concupiscência da carne e que desejava viver em santidade com a esposa, se ela consentisse. Também a noiva veio a Jesus, sozinha, dizendo-lhe o mesmo. Chamou-os então Jesus a ambos e falou-Ihes do matrimônio, da castidade, tão agradável a Deus e do fruto cêntuplo do espírito. Citou muitos profetas e santos, que viveram castos, sacrificando a carne, por amor do Pai Celestial, que tiveram como filhos espirituais muitos homens perdidos, reconduzindo-os ao caminho da virtude e que assim tinham grande e santa descendência. Os noivos fizeram então voto de continência

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e de viverem como irmãos durante três anos. Ajoelharam-se diante de Jesus, que os abençoou. 15. Resumo do primeiro ano da vida pública de Jesus. O primeiro ano de pregação de Nosso Senhor compreende o tempo da primeira viagem, antes do Batismo, até a primeira Páscoa em Jerusalém. Nesse tempo, tiveram lugar o Batismo de Jesus por João Batista, sua estadia por quarenta dias no deserto e seu primeiro milagre público, relatado pelas Escrituras Sagradas, - o das bodas de Caná. Pouco tempo depois de voltar do deserto, Jesus mandou André e Satumino batizarem perto de Betabara. Quando Jesus, vindo de Caná e passando por Cafarnaum, ao longo do Lago Genezaré, foi a Jericó, ao lugar onde João batizava, já este não batizava quase ninguém, mas mandava todos a Jesus. Partindo Jesus da região de Jericó, caminhou por um desvio para Nebo, onde instruiu os neófitos, como também em outros lugares, mandando-os batizar pelos discípulos. De lá, foi a Jezrael, ao sul da Galiléia, onde os discípulos da Galiléia se lhe juntaram; Madalena deixara-se persuadir por Lázaro e Marta a ir também lá. Viu Jesus passar pelas ruas e o Salvador olhou-a tão sério, que ficou toda arrependida e envergonhada da vida pecaminosa que levava. Jesus encaminhou-se depois para Cafarnaum e, passando por Betúlia e Kistoth, no monte Tabor, voltou a JezraeI. Em todo o país já se lhe tomara conhecida a doutrina e os milagres; por isso concorria o povo aos lugares onde o Mestre pregava. Tendo ido de novo a Cafarnaum, visitou sua Mãe, ensinou na sinagoga e curou enfermos; saiu da Galiléia e viajou por Dothain, Seforis, através da Samaria, até Betânia, na Judéia, onde se hospedou em casa de Lázaro. Todos os dias ia a Jerusalém, para rezar no Templo e ensinar. Num desses dias mandou, muito amável e delicadamente, aos numerosos negociantes que se retirassem do átrio dos orantes para o átrio dos gentios. Encontrando-se ali de novo, procedeu com maior severidade, avisando-Ihes de que duas vezes os exortava por bem e que da terceira vez empregaria violência. Como a Páscoa estivesse perto, chegara já muita gente a Jerusalém. Jesus comeu o Cordeiro pascal, em casa de Lázaro, no monte Sião, junto com os discípulos e parentes. A maior parte da noite passou em oração. Ao amanhecer, se dirigiu ao Templo, onde os negociantes se encontravam de novo no átrio dos orantes. Quando, à ordem que lhes deu de se retirarem, queriam resistir, pegou num cabo e, derrubando as mesas, empurrou os renitentes para fora; os discípulos também empurraram e forçaram todos a sair. Grande

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número de sacerdotes acorreram e perguntaram-lhe quem lhe dera o direito de fazer isso, ao que Ele respondeu que o Templo era ainda um lugar sagrado, apesar do Santo tê-lo abandonado e não devia tomar-se lugar de usura e comércio. Em outro dia Jesus curou no átrio do Templo, cerca de dez paralíticos e mudos, o que causou grande sensação. 16. Resumo do segundo ano da vida pública de Jesus Três semanas depois da Páscoa, partiu Jesus da Betânia e foi ao lugar de Batismo, perto de Ono. Ali o procurou um mensageiro do Rei Abgar de Edessa, que estava doente e pediu para ser curado. Enquanto Jesus ensinava, pintou-lhe esse homem o rosto, num pequeno quadro branco, esforçou-se por muito tempo, mas não conseguiu fixá-lo bem, pois cada vez que olhava para Jesus, parecia estar admirado do seu rosto, julgando que devia começar de novo. Acabada a pregação de Jesus, ajoelhou-se o mensageiro diante d’Ele e entregou-lhe uma carta do rei. Jesus leu-a e escreveu nela algumas palavras. Depois apertou a parte mole do invólucro de encontro ao rosto e devolveu a carta ao mensageiro; este a apertou também sobre o desenho que fizera, que depois mostrou perfeita semelhança com o rosto de Jesus. Também no pano em que Jesus tocara, lhe ficou gravado o retrato. Por causa do grande concurso de povo, no lugar onde Jesus batizava, mandaram os fariseus invejosos mensageiros, com cartas, a todas as sinagogas do país, com a ordem de prendê-lo, entregá-lo e de prender e repreender-lhe os discípulos. Jesus mandou por isso aos discípulos que se dispersassem, enquanto Ele, com poucos companheiros, fez a longa viagem para Tiro e Sidônia, onde pregou a doutrina e curou enfermos. Entretanto, foram chamados os discípulos a Jerusalém e Genabris, para responderem acerca da doutrina de Jesus e das relações que tinham com Ele. Pedro, André e João foram também citados e presos. Mas rasgaram os laços com um leve esforço, como por milagre e foram soltos. Jesus, porém, voltou furtivamente a Cafarnaum, onde consolou sua Mãe e os discípulos, retirando-se depois novamente para Tiro. Ali foi a Sichor, Libnath e Adama. Neste último lugar, contou a parábola do administrador infiel. Um velho Judeu dessa cidade, que obstinadamente falou contra a doutrina de Jesus e por um milagre ficou com o corpo curvado, converteu-se e foi curado por outro milagre. De Adama, dirigiu-se Jesus ao monte do Sermão, perto de Berota, a seis léguas de Adama e lá pregou a alguns milhares de homens, das dez horas da manhã até à noite. Quando chegou a Cafarnaum, vieram os discípulos de João dar-lhe a notícia da prisão do mestre. Jesus continuou a viagem, encaminhando-se para Betãnia, onde permaneceu alguns dias. De noite se retirou para a gruta do Monte das Oliveiras, para rezar na solidão e também

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porque Adão e Eva, expulsos do Paraíso, pisaram pela primeira vez a terra ali, no Monte das Oliveiras. Lázaro e as piedosas mulheres ofereceram-se para edificar hospedarias para Jesus e os discípulos e assim resolveram que se construíssem quinze hospedarias, distribuídas por todo o país. Jesus contou a parábola da pedra preciosa, aplicando-a a Madalena, que, como tal, se tinha perdido. Depois partiu para Bethoron, Kibzaim, passando por Gabaa e Najoth, falando em toda parte do último tempo da graça e da justiça que se lhe seguiria. Contou também a parábola do dono da vinha, que afinal havia enviado o filho e proferiu os "Ais" sobre Jerusalém. Continuando o caminho pela Samaria, veio ao poço de Jacó, perto de Sichar, onde conversou com a Samaritana Dina e se lhe deu a conhecer como o Messias prometido. Depois tomou o caminho da Galiléia, por Atharot e Engannim, onde curou cerca de quarenta coxos, cegos, mudos, etc., seguindo depois, por Naim e Caná, para o Lago de Genezaré. Em Caná lhe veio ao encontro o mensageiro do tribuno de Cafarnaum, cujo filho moribundo curou. Dirigiu-se então a Cafarnaum, ensinou ali alguns dias, curando muitos enfermos. Tendo visitado Betsaida, veio também a Nazaré e, entrando na sinagoga, interpretou como referente a Ele mesmo o trecho do profeta Isaías: (61, 1). "O Espírito do Senhor repousou sobre mim, porque o Senhor me encheu de sua unção; mandou-me evangelizar os pobres, curar os contritos de coração, pregar remissão aos cativos e liberdade aos encarcerados, etc.". Repreendeu também severamente a injustiça dos fariseus, que por isso se enraiveceram e o levaram a um monte, para lançá-lo de um rochedo ao abismo. Jesus, porém, passou despercebido pela multidão apinhada e escapou. Perto de Trariquéia, à margem austral do Lago Genezaré, curou Jesus cinco leprosos; depois veio a Galaad, atravessando o lago e visitou a casa de Pedro. Num dia curou cerca de cem enfermos; no dia seguinte, outros tantos em Cafarnaum, entre estes a sogra de Pedro. Então percorreu diversas povoações, entre Caná e o lago, como Betúlia, Jotapata, Dothaim, Genabris e, algumas léguas para o sul, Abelmehola e Bezech; atravessando o Jordão, ensinou em Ainon Ramoth-Galaad, Azo, Ephron e Betharamphta-Julias, dirigindo-se depois mais para o norte, a Abila e Gadara, onde curou grande número de doentes e possessos; de lá voltou, ao longo do Jordão, por Dion e Jogbeha, a Ainon, onde contou a parábola do filho pródigo e celebrou a festa dos Tabemáculos. Atravessando de novo o Jordão, foi a Acrabis, Siloé Coréia, na província de Samaria; depois ao norte, a Salem, AserMichmethath e, ao oeste, a Meroz, onde Judas Iscariotes se juntou a Jesus; ali curou também as duas filhas possessas do demônio, de uma viúva chamada Lais de Naim. Em Dothaim, curou um homem hidrópico, de nome Issachar e recebeu Tomé no número dos discípulos. Em Endor, livrou um rapaz pagão

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de um demônio mudo. Em Gischala curou o filho coxo e mudo do tribuno daquele lugar. Quando Jesus ensinou num monte, perto de Gabara, estava também presente Madalena, obedecendo a um convite de Marta e das santas mulheres. Ficou comovida com as palavras de Jesus e, seguindo-o à casa de Simão, onde Ele se sentara à mesa, derramou-lhe sobre a cabeça um frasco de óleo aromático e recebeu o perdão dos pecados. Converteu-se, mas recaiu pouco depois na antiga vida de pecados. Jesus curou o servo do tribuno de Cafarnaum e depois um leproso, pronunciando apenas estas palavras: "Quero. Fica são.” Enquanto ensinava na sinagoga, entrou por ela precipitadamente um endemoninhado; Jesus livrou-o, dizendo ao demônio: "Cala-te! E sai deste homem!” Em Naim, ressuscitou Jesus o filho da viúva Maroni. Quando estava curando em Megido, vieram discípulos de João, dizendo: "João manda perguntar-vos: - Sois aquele que há de vir ou devemos esperar por outro?" Jesus respondeu: "Ide, anunciai a João o que tendes ouvido e visto: cegos enxergam, coxos andam, surdos ouvem, leprosos ficam sãos, mortos ressuscitam. O que é torto, fica direito e feliz de quem não se escandalizar de mim." Depois falou de João, chamando-o o maior dos profetas. Em Cafarnaum, ressuscitou a filha do chefe da sinagoga, Jairo. Nesse tempo chamou Mateus; no dia seguinte, disse a Pedro e André: "Segui-me; far-vos-ei pescadores de homens." Também Tiago e João, filhos de Zebedeu, foram convidados a seguí-Io. Atravessando na mesma noite o mar de Galiléia, na barca de Pedro, com os doze Apóstolos, apaziguou a tempestade com sua palavra. Alguns dias depois se realizaram a pesca milagrosa e o sermão da montanha. Em Cafarnaum, Jesus curou um paralítico, que fizeram descer pelo teto e colocaram diante do Senhor. A filha do chefe da sinagoga recaiu e faleceu de novo. Jesus foi, a pedido de Jairo, à casa deste. No caminho se deu a cura da mulher que padecia de fluxo de sangue, só pelo contacto com as vestes do Salvador. A filha de Jairo ressuscitou segunda vez, pelo poder divino de Jesus. Os fariseus de Cafarnaum, desde muito inimigos de Jesus, murmuraram contra Ele e propuseram-lhe muitas perguntas ardilosas. Jesus operou muitos milagres, à vista deles, curando aí também o homem que tinha uma das mãos secas. Depois foi à terra dos Gerasenos, onde encontrou dois possessos. Os demônios pediram-lhe que os deixasse entrar numa manada de porcos, que estavam perto. Jesus permitiu-lhes. Então se lançou a manada num lago vizinho. Os dois homens, porém, ficaram livres dos demônios. Jesus mandou os discípulos atravessarem o lago antes d’Ele e seguiu-os mais tarde, andando sobre a água. Salvou então Pedro,

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que ia afundar-se, por falta de fé. Jesus celebrou a festa da Dedicação do Templo em Cafarnaum e depois enviou os Apóstolos e discípulos a diversas regiões, para ensinarem, batizarem e curarem. Com os restantes discípulos percorreu a região ao norte do lago Genesaré. Na vila de Azanoth, situada mais para o sul, pregou um sermão longo e severo, ao qual, às insistências de Marta, também Madalena assistiu. Durante o sermão, teve esta diversos ataques como convulsões e o demônio saiu-lhe do corpo em forma escura. Ela chorou e recebeu do Senhor o perdão dos pecados, permanecendo depois no estado de graça. Jesus viajou então para Betânia e Hebron, onde visitou a casa paterna de João Batista, dando aos parentes a notícia da decapitação do Precursor. Em Jerusalém, curou o homem que por trinta e oito anos estivera doente, ensinando em seguida no Templo. Chegando a Tirza, remiu um certo número de presos e dirigiu-se de novo a Cafarnaum, onde ensinou e explicou o "Pai nosso''; ali escolheu os Apóstolos, subordinando-lhes os 72 discípulos. Com cinco pães e dois peixes saciou cinco mil homens, que por isso queriam fazê-lo rei. Atravessou, porém, o lago e deu em Cafarnaum a promessa da SS. Eucaristia. Pouco depois fartou, com sete pães e sete peixes, a quatro mil homens. Esse milagre, assim como a primeira multiplicação de pães, operou-o Jesus numa montanha, entre Betsaida e Chorozaim, à margem setentrional do lago Genezaré. Dirigiu-se depois para o norte, à região de Cesaréia Filipe. Foi ali que interrogou os doze Apóstolos: "Por quem toma o povo o Filho do homem?" Pedro respondeu com entusiasmo: "Vós sois o Cristo, o Filho de Deus vivo." Como recompensa, recebeu Pedro a promissão do poder das chaves: "Tu és Pedro e sobre esta (pedra) edificarei minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Dar te-ei as chaves do reino dos céus: Tudo que ligares na terra, será ligado no Céu; e tudo que desligares na terra, será desligado, no Céu". Dali viajou Jesus para Betânia, para celebrar a Páscoa. 17. Resumo do terceiro ano da vida pública de Jesus Jesus comeu o cordeiro pascal, em casa de Lázaro; diariamente ia ao Templo, para ensinar; contou também a parábola do homem rico e do pobre Lázaro. Partindo depois da festa, Jesus viajou para o monte Tabor e, subindo ao monte com Pedro, João e Tiago o Maior, transfigurou-se diante deles. Ouviram a voz do Pai Celestial: "Eis O meu Filho muito amado, em quem pus toda minha afeição: ouvi-O.!" De volta, curou Jesus, ao pé do monte, um rapaz lunático e endemoninhado; depois se dirigiu a Cafarnaum e pregou dois dias diante de uma grande multidão de povo, sobre um monte, perto de

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Gabara, algumas léguas a oeste do lago; de lá tomou o caminho de Tiro, para embarcar e navegar pelo Mar Mediterrâneo, para a ilha de Chipre. Jesus desembarcou na cidade de Salamis, onde foi bem recebido: pregou e curou ali, assim como em outras vilas da ilha, na qual também celebrou a festa de Pentecostes. Tendo ali convertido ao todo 570 judeus e pagãos e voltou à Palestina. Desembarcou, com os companheiros, na baía do Monte Carmelo, encaminhou-se para Cafamaum, onde visitou sua Mãe; os Apóstolos, de volta da missão, relataram-lhe os trabalhos e receberam novas instruções. Depois tomou o caminho de além do Jordão a Betabara, perto da foz deste rio, no Mar Morto. Continuando a viagem, curou dez leprosos, mandando-Ihes que se apresentassem aos sacerdotes; só um voltou, para agradecer-lhe. Ao entrar em Jericó, viu Jesus a Zaqueu na figueira, foi à casa deste e converteu-o. Marta e Madalena enviaram mensagem, convidando-O a vir a Betânia, porque Lázaro estava muito doente. Perto de Jericó, Jesus ressuscitou uma menina, que estava morta, havia já quatro dias. Ao aproximar-se de Samaria, trouxeram-lhe a notícia da morte de Lázaro. Foi logo a Betânia: ao chegar, havia já oito dias justos que Lázaro morrera e quatro dias que fora sepultado. Jesus fez-se conduzir ao sepulcro, mandou tirar a pedra do túmulo e a tampa do caixão e exclamou: "Lázaro, vem para fora, sai." No mesmo instante se levantou este, indo depois para casa, com o Senhor e aqueles que estavam presentes. A ressurreição de Lázaro excitou em Betânia, assim como em Jerusa lém, um grande tumulto; por esse motivo fugiu Jesus, com Mateus e João, para além do Jordão, fazendo dali uma viagem à terra dos Reis Magos, acompanhado apenas por três jovens: o rei Sair já tinha falecido; Mensor, porém, e Theokenos estavam ainda vivos, esperando que Jesus os visitasse. Nessa viagem, Jesus pregou e curou muitos, na cidade de Kedar e ressuscitou também um homem rico dos arredores, de nome Nazor, proprietário de grandes rebanhos. Jesus foi recebido pelos Reis Magos, com grande alegria e solenidade. Ensinou-Ihes e ao povo, exortando-os a abandonarem a idolatria; o povo tirou logo todos os ídolos dos templos. Jesus disse também que o rei Sair recebeu o Batismo, de desejo. A despedida, Mensor chorou como uma criança. Passando pela Caldéia, Jesus operou diversos milagres e ensinou em várias vilas pagãs. Repreendeu severamente os habitantes por causa da idolatria, lembrando-Ihes que se Ihes tinham quebrado todos os ídolos na noite em que aparecera a estrela aos Reis Magos; assim, em verdade, acontecera. Jesus continuou o caminho, em marcha forçada, até o Egito, para visitar ali os lugares onde vivera a Sagrada Família. Ensinou também aos judeus dessas terras, revelou-se-Ihes como o Messias e falou-Ihes da sua morte

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próxima. Depois de uma ausência de três meses, voltou à Judéia, tomando o caminho de Sichar, Ephron e Jericó. Na primeira cidade lhe vieram Pedro e João ao encontro, em Jericó o esperavam sua Mãe e as santas mulheres. Dirigiu-se dali a Cafamaum e Nazaré, voltando depois a Betânia, de onde fez diversas visitas aos arredores. Em seguida, ia diariamente com os Apóstolos ao Templo, para ensinar. Anunciou à Virgem SS. que o tempo da Páscoa, se aproximava. Instruiu também os Apóstolos a respeito e deu-Ihes instruções sobre os lugares para onde deviam ir, depois da sua morte. No fim de um grande sermão, ao sair do Templo, quiseram lapidá-Io os fariseus; mas Jesus escapou-se e deixou de ir ao Templo por três dias. Quando ensinou a última vez, antes do domingo de Ramos, estava o Templo cheio de povo. Disse que dentro em pouco seria abandonado pelos seus; mas antes disso entraria triunfante no Templo e ficaria ainda quinze dias com eles. Por causa dessas palavras reuniram-se os fariseus e escribas num con-selho, em casa de Caifás, proibindo depois publicamente que se recebessem Jesus e os discípulos em casa. No dia anterior ao domingo de Ramos, anunciou Jesus que na manhã seguinte faria a sua entrada triunfante em Jerusalém e mandou convocar os discípulos a Betânia. De manhã mandou dois Apóstolos trazerem a jumenta, com o jumentinho. Dirigiu-se com os doze e os discípulos a caminho de Bethphagé. Maria e as mulheres piedosas seguiram-no. Chegado a Bethphagé, montou na jumenta. Os Apóstolos caminhavam à frente, dois a dois, levando nas mãos ramos de palmeira; atrás de Jesus seguiam os discípulos, aos quais se juntavam as santas mulheres. À notícia da entrada triunfante de Jesus em Jerusalém, o povo começou a enfeitar as ruas. Inumeráveis forasteiros, que estavam em Jerusalém, para celebrarem a próxima festa, vieram com o povo ao encontro de Jesus. Muitos arrancaram ramos das árvores, cobrindo com eles o caminho; outros estenderam os mantos na estrada diante d’Ele, cantando e aclamando Jesus jubilosamente. O Mestre, porém, chorou e choraram também os Apóstolos, quando disse que muitos daqueles que então o aclamavam, cheios de alegria, daí a poucos dias o escarneceriam; que um deles o trairia e que a cidade seria destruída. No caminho curou alguns e, chegado ao Templo, ensinou até à noite, quando estavam de novo abertas as porta; da cidade, que antes tinham sido fechadas pelos inimigos de Jesus. Nos três dias seguintes Jesus continuou a ensinar no Templo; entre outras coisas, contou também a parábola do dono da vinha e da pedra angular rejeitada. No quarto dia, ficou com os apóstolos e as piedosas mulheres, em casa de Lázaro, ensinando-os e exortando-os até alta noite. No quinto dia se sentou em frente à caixa de

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esmolas do Templo, ensinando aos Apóstolos sobre a esmola da viúva pobre, que dera mais do que os outros. De volta disse Jesus que do Templo não ficaria pedra sobre pedra. No sexto dia depois do domingo de Ramos, ensinou de novo no Templo e assim no sétimo dia, falando claramente da sua próxima Paixão. O oitavo dia passou na vizinhança de Betânia, consolando os discípulos. Nos dois dias seguintes, ensinou novamente no Templo, sem ser incomodado, despedindo-se enfim do santuário com lágrimas. 18. Notas gerais sobre a personalidade de Jesus e seu modo de ensinar Prescindindo dos últimos grandes dias da Paixão, era a vida pública do Senhor a parte mais importante e mais salutar da sua vida. Aproveitou-a do melhor modo possível. Foi incansável em percorrer diversas vezes toda a Palestina e em todas as direções, aquém e além do Jordão, passando além das fronteiras do norte e indo até o Líbano. Visitou os judeus na ilha de Chipre e no Egito e mesmo os astrólogos pagãos, na terra dos Reis Magos. Fazia as viagens penosas sempre a pé, às vezes até descalço. Em todos os lugares a que chegava ou por que passava, ensinava ao povo e curava os enfermos. Nesses trabalhos nem ao gozo do descanso se entregava; renunciava até, não raras vezes, à comida e bebida, porque tinha fome e sede de almas, para cuja salvação viera. A personalidade do Divino Salvador, que queremos descrever segundo as informações da piedosa freira Agostiniana, tinha em si algo de majestoso, para o que muito lhe contribuíam a figura e o olhar sério. Anna Catharina conta o seguinte, sobre a personalidade de Jesus: "Vi de súbito diante de mim o Senhor, como viveu na terra. Era uma figura alta, esbelta e viril, tinha o rosto comprido, de uma alvura puríssima, a fronte alta, de um branco sem mescla e o nariz bem formado e oblongo. O cabelo, repartido no alto da cabeça, caia-lhe de ambos os lados do rosto, até os ombros; vestia uma longa túnica, de cor cinzenta, semelhante a uma camisa, terminando em simples pregas e cingida debaixo do peito. As mangas eram bem largas, as mãos cruzadas sobre o peito. O Senhor tinha algo de imóvel, reto, comovedor, sério e amável. Era infini-tamente nobre, simples e bom.” Em outra ocasião diz a piedosa vidente: "Jesus era mais alto do que os apóstolos; onde iam ou estavam, sempre parecia sobressair-lhe a fronte branca e séria. Tinha o andar sempre ereto e direito; não era magro nem corpulento, mas de aparência absolutamente sadia e nobre, com peito e ombros largos. Tinha

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músculos bem exercitados pelas viagens e exercícios, mas não mostravam sinais de trabalho pesado. As palavras, o som da voz do Mestre eram como raios vivos, penetrantes. Falava sem defeito de pronúncia, calmo e forte, nunca muito depressa, a não ser algumas vezes aos fariseus, mas então as palavras eram como flechas agudas e o som da voz mais severo. A voz era barítono agradável, puríssima, sem igual. Ouvia-se-Ihe a voz entre todas as outras vozes, numa multidão, sem que Ele gritasse. Era um aspecto comovedor o de Jesus indo pelas ruas de Cafarnaum, ora com as vestes compridas, ora arregaçadas, sem muito movimento, mas também sem rapidez, tão calmo, quase sem tocar a terra, mais simples e mais poderoso do que os outros homens. Nada de excêntrico, nada de vacilante ou de afetação; tudo n’Ele era natural no ardor, no olhar e no falar. Os amigos de Lázaro, Nicodemos, o filho de Simeão, João Marcos, tinham falado com Jesus e todos ficaram cheios de admiração pela atitude, pela sabedoria, pelas qualidades humanas e até corporais do Mestre e sempre que Este estava ausente, diziam uns aos outros: "Que homem extraordinário! Tal não houve nem haverá; tão sério, tão amável, tão sábio e perspicaz e ao mesmo tempo tão simples. Não compreendo tudo que diz, mas vejo-me obrigado a crer, de tal modo fala. A gente não o pode olhar de frente; Ele parece ler todos os pensamentos e sentimentos do coração. Que figura, que porte sublime! Que rapidez, sem lhe notar precipitação! Quem pode andar com Ele? Caminha com tanta velocidade; chega, sem mostrar cansaço e, após uma hora, já está novamente a caminho. Que homem excelente se tornou!" Mas ninguém imaginava que era do Filho de Deus que falavam. Achavam-no o maior de todos, veneravam-no com certo temor, mas sempre o tomavam por homem, apesar de maravilhoso.” "Onde quer que Jesus chegasse, relata a vidente, à respeito da sua estadia em Kisloth, sempre havia grande movimento. Aclamavam-no, prostravam-se-Lhe aos pés, apinhavam-se-Lhe ao redor para tocá-Lo e era para evitar a multidão que Jesus ia e vinha inesperadamente. Muitas vezes se separava dos discípulos pelo caminho, mandando-os a outros lugares e caminhando "'sozinho. Nas vilas era às vezes preciso abrir-lhe caminho, através das multidões. A muitos, porém, permitia que se lhe aproximassem e o tocassem e parte destes se sentiam por isso comovidos e convertiam-se ou saravam. Andava (em Jerusalém) sem medo, vestia, na maior parte das vezes, uma longa túnica, de pano branco; era a túnica dos profetas. As vezes se apresentava como qualquer indivíduo, sem chamar a atenção e passava facilmente desapercebido, mas outras vezes fazia uma impressão extraordinária: o rosto resplandecia-Lhe com um brilho sobrenatural. A entrada de Jesus no Templo costumava causar uma singular comoção entre os judeus. O que deve admirar, é que todos ocultassem os sentimentos e que nenhum ousasse falar

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aos outros da impressão que lhe fazia o aspecto do Mestre. Era uma providência divina, para prolongar a ação pública de Jesus, pois, se falassem uns aos outros, crescer-Ihes-ia ainda mais o furor. Mas assim lutava em muitos o ódio e o furor com uma santa comoção; em outros nascia um fraco desejo de conhecê-lo e todos se esforçavam para entrar, por intermédio de outros, em relação com Ele. Como era incansável o Senhor! Como obrigava também os Apóstolos a fazerem uso de todas as suas forças! A principio, muitas vezes, estavam cansadíssimos. Durante a marcha, cumpria aos discípulos ir ao encontro do povo, ensiná-Io e chamá-Io à doutrina de Jesus. Os discípulos tinham muito que agüentar e às vezes lhes era bem desagradável a missão. Aonde quer que fossem, anunciando o Senhor, ouviam freqüentemente palavras de escárnio, como, por exemplo: "Então lá vem o homem de novo? O que quer? Donde vem? Não lhe foi proibido?" Riam-se deles, apupavam-nos, vaiavam-nos. É verdade que alguns se mostravam satisfeitos de sua vinda; mas estes não eram numerosos. A dirigir-se a Jesus mesmo, diretamente, aquela gente não se atrevia; mas justamente onde Ele ensinava, estando os discípulos ao redor ou seguindo-o pelas ruas, todos aqueles vozeadores se lhes dirigiam, fazendo-os parar, interrogando-os, alegando terem entendido mal as palavras de Jesus ou pedindo. uma explicação. Às vezes eram interrompidos por gritos de júbilo: Jesus tinha de novo curado a alguém; isso os vexava e retiravam-se. Desse modo continuava o trabalho até à noite, durante a marcha penosa e distante, sem refrigério ou descanso. "Vi o Senhor conversar com diversas famílias (em Seforis), tão indizivelmente amável e afetuoso, que não posso descrevê-Io. Os modos caridosos do Mestre comoveram-me até as lágrimas.” Chegando Jesus a uma cidade, entrava quase sempre na sinagoga, subia ao púlpito, mandava trazer os rolos da Escritura, dos quais lia um trecho aos presentes e em conexão com o trecho, começava a ensinar. Geralmente o sermão tinha por assunto a necessidade de penitência e verdadeira conversão de coração ou a prova de que o reino de Deus já tinha chegado e que o Messias já devia ter vindo. Interpretava tudo como se referindo à sua pessoa, mas, na maioria das vezes, sem afirmar abertamente que Ele era o Messias ou Deus; contudo, falava distintamente do Pai do Céu, que o tinha mandado, para que assim se apresentasse e curasse os enfermos. "Jesus ensinou novamente (em Cafarnaum), com muito fervor, sobre o profeta Isaías, interpretando tudo com referência ao seu tempo e à sua pessoa; disse que o tempo tinha chegado e que estava próximo o reino de Deus; que sempre tinham desejado o cumprimento das profecias e anelado pelo Profeta, o Messias, que lhes tirasse o pesado fardo, mas que quando Ele chegasse, não o aceitariam, porque não se lhes conformariam com as opiniões errôneas.

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Enumerou então os sinais, pelos quais se conheceria o Profeta, cujo aparecimento tanto desejavam, que aprendiam nas escolas, nos rolos da Escritura e suplicantes imploravam a Deus que lhes permitisse ver com os próprios olhos; demonstrou-Ihes que de fato esses sinais já tinham aparecido. Disse-Ihes: "Os coxos andarão, os cegos enxergarão, ouvirão os surdos." Por acaso não é o que acontece? Por que assistem os pagãos à exposição da doutrina? Por que gritam os possessos? Por que são expulsos os demônios? Por que louvam a Deus os curados? Não o perseguem, porventura, os sanguinários inimigos? Não o rodeiam os espiões? Expulsarão e matarão o filho do dono da vinha, mas que lhes sucederá? Se não quiserdes aceitar a salvação, esta não se perderá por isso, nem podereis vedá-Ia aos pobres, enfermos, pecadores, publicanos, penitentes e até aos gentios, aos quais se dirigirá, retirando-se de vós.” Tais eram os assuntos dos sermões. Dizia também: "Reconheceis João como profeta, a quem agora tendes preso. Ide a ele, na cadeia e perguntai-lhe para quem preparou o caminho, de quem dá testemunho?" - Enquanto assim ensinava, crescia mais e mais o furor dos fariseus, que murmuravam e cochichavam uns com os outros. Quando Jesus estava para ensinar em Adama, levantou primeiro os olhos ao céu, rezou alto ao Pai, de quem tudo vem, pedindo que a doutrina encontrasse corações contritos e sinceros e mandando ao povo que lhe repetisse as palavras; e assim fizeram. O sermão durou das nove horas da manhã até às quatro da tarde; uma vez houve um intervalo e ofereceram-lhe um cálice de bebida refrigerante e um pouco de alimento, para restaurar-se. Os ouvintes iam e voltavam, conforme os negócios que tinham na cidade. Ele ensinou sobre a penitência, sobre a purificação e sobre a lavagem com água; falou também de Moisés, das tábuas da Lei quebradas, do bezerro de ouro, do trovão e dos relâmpagos no monte Sinai.” O Redentor dava as explicações de suas palavras com extraordinária doçura, amor e paciência, respondendo também às dúvidas e perguntas que propunham. Aos fariseus hostis, que lhe faziam muitas perguntas ardilosas e dificuldades maliciosas, respondia com calma, mas severamente; do mesmo modo flagelava, com rigor e sem indulgência, a hipocrisia dos fariseus, que impunham ao povo carga tão pesada, que eles mesmos não podiam suportar; como também a dureza de coração, com que afligiam os pobres e humildes. Em tais ocasiões falava tão severamente e sabia refutar todas as dificuldades tão claramente, que os inimigos se retiravam envergonhados, mas cheios de raiva e ódio contra ele. Não se deixava confundir nem por ameaças, nem por perseguições, mas falava sempre com toda franqueza. Muitas vezes a Virgem Santíssima lhe suplicava, com lágrimas, que moderasse as palavras severas ou não fosse a um lugar, onde o ameaçava a perseguição, por exemplo, a Nazaré e Cafarnaum. Jesus consolava-a

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carinhosamente, mas dizia-lhe decididamente que iria ou falaria de tal modo, porque devia realizar a obra para a qual o Pai celeste o enviara e para cuja realização ela se tomara sua Mãe. De um sermão impetuoso que pregou no monte de Gabara, relata Anna Catharina o seguinte: "Jesus chegou ao cimo, com os discípulos, perto das dez horas; os fariseus, herodianos e saduceus seguiram-no também. O Senhor subiu ao lugar que servia de púlpito, os discípulos ficaram de um lado, os fariseus do outro, formando desse modo um círculo. Jesus fez alguns intervalos, em meio do sermão, durante os quais o povo se mudou, saindo uns, entrando outros; diversos pontos da doutrina foram explicados de novo. Nas pausas tomava o povo um refresco, dando também uma vez a Jesus um pouco de comer e de beber. O sermão que o Mestre fez, foi um dos mais severos e veementes que jamais proferiu. Logo ao princípio, antes de rezar, disse que não se deviam escandalizar de chamar a Deus seu Pai; pois quem fizesse a vontade do Pai do Céu, seria filho d’Este e então provou que Ele cumpria a vontade do Pai. Depois rezou alto ao Pai celeste e começou uma exortação severa à penitência, a modo dos profetas. Resumiu tudo que acontecera, desde o tempo da promissão, citou as ameaças dos profetas e o respectivo cumprimento, símbolo desse tempo e do futuro próximo. Provou a vinda do Messias, pelo cumprimento das profecias. Falou de João, o precursor, que lhe preparou o caminho e como realizou tão conscienciosamente a obra da preparação e que eles com tudo ficaram endurecidos. Acusou-os dos vícios, da hipocrisia, idolatria, da carne pecaminosa. Descreveu, com franqueza e severidade, os fariseus, herodianos e saduceus, falou com grande zelo da ira de Deus, do juízo futuro, da destruição de Jerusalém, do Templo e da devastação do país. Citou muitos trechos do profeta Malaquias, interpretando-os e explicando-os, sobre o precursor do Messias, a oblação pura, nova, pela qual entendi claramente o sacrifício da Missa, - os judeus não o compreenderam, - o juízo sobre os ímpios, a volta do Messias no novíssimo dia, a confiança e consolação dos piedosos. Dirigiu-se aos discípulos, exor-tando-os à fidelidade e perseverança: disse-Ihes que os enviaria a todos os homens, para pregarem a salvação. Avisou-Ihes de que não se associassem aos fariseus, nem tão pouco aos herodianos ou saduceus, dos quais deu uma pública descrição, ilustrando-a com boas comparações, quase os indicando abertamente. Isso os aborreceu tanto mais, quanto não queriam ser conhecidos como herodianos, a cuja seita pertenciam só secretamente. Jesus falou, nesse sermão, quase só dos profetas. Numa ocasião disse que, se não aceitassem a salvação, teriam sorte pior do que Sodoma e Gomorra. Os fariseus pensaram que com isso lhe podiam fazer uma dificuldade e numa pausa perguntaram logo se aquela

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montanha, a cidade e todo o país, com todos eles, deviam afundar-se? E como podia haver sorte ainda pior? Jesus replicou: que em Sodoma e Gomorra se afundaram as pedras, mas não as almas, porque não conheciam a promissão, nem tinham a Lei, nem os profetas; disse ainda algumas palavras, de que concluí que se referia à sua ida ao Limbo e à salvação de muitos; os judeus não o entenderam; eu, porém, me regozijei como criança, por saber que aqueles homens não estavam todos perdidos. - Dos judeus do seu tempo, porém, disse Jesus que lhes foi dado tudo: foram escolhidos para povo de Deus, receberam todas as exortações e repre ensões, a promessa e o respectivo cumprimento; se o recusassem, persistindo na incredulidade, as almas e os corações, duros como pedras, ser-Ihes-iam devorados pelo abismo, mas não as pedras e montanhas, que obedeciam ao Senhor. Assim a sorte Ihes seria pior do que a de Sodoma e Gomorra. Tendo Jesus chamado tão severamente os discípulos à penitência e tão claramente delineado os castigos dos ímpios, tornou-se novamente carinhoso, convidando os pecadores a virem a Ele e derramando até lágrimas de amor. Rezando, suplicou ao Pai que movesse os corações, ainda que só um grupo de alguns homens ou um só viesse a Ele carrega do de pecados, pois se pudesse salvar uma só alma, repartiria tudo, sacrificaria tudo por ela, até pagaria com a vida para remí-Ia. Estendeu as mãos a todos, exclamando: "Vinde a mim todos que estais cansados e carregados, vinde, ó pecadores, fazei penitência, crede e participai comigo do reino de Deus." Estendeu as mãos também aos fariseus e aos inimigos, que pelo menos viesse um, que se, por suas palavras, caísse apenas uma faísca de penitência, contrição, amor, fé e esperança num coração perdido e este desse fruto, ser-lhe-ia recompensado, havia de viver e crescer, Ele próprio o nutriria, educaria e reconduziria ao Pai.” "No entanto, eram cerca de seis horas da tarde; o sol já tinha baixado atrás da montanha; Jesus olhava, durante o sermão, para o ocidente, pois do ponto em que pregava, para lá se estendia o horizonte; atrás dele não havia ninguém. Rezou, abençoou e dêspediu a multidão do povo.” Cuidado especial dedicou Jesus à instrução dos Apóstolos e discípulos. Assim conta Anna Catharina Emmerich que Ihes ensinou o "Pai Nosso" e os instruiu sobre a eficácia da oração com vários exemplos: "Ensinava a todos os discípulos o mesmo e repetia-o muitas vezes, com paciência e assiduidade comovedora, para que pudessem ensiná-Io por toda a parte. Procedeu como no ensino às crianças, interrogando ora um ora outro sobre as explicações dadas, corrigindo-os e explicando de novo o que tinham entendido mal. Jesus ensinava aos discípulos durante todo o caminho. Ensinava só em parábolas e comparações, tomadas de todas as classes e

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ofícios, de cada arbusto, pedra, planta e lugar, que se lhe apresentava à vista, no caminho (a Galaad).” Jesus dedicava tanto tempo e esforço à instrução dos Apóstolos e discípulos, porque queria encarregá-Ios da propagação da sua doutrina e continuar por meio deles a obra da salvação. Preparava-os gradualmente para essa importante tarefa, tirando-Ihes pouco a pouco a suposição de que tivesse vindo ao mundo para fundar um reino terrestre; introduzia-os cada vez mais profundamente no conhecimento dos mistérios da sua doutrina e falava cada vez mais claro da sua Paixão e da necessidade desta, para a redenção da humanidade pecadora. Jesus ensinava muito e com profunda sabedoria, em parábolas e comparações; falava às vezes tão intuitivamente, como se o fato se lhe passasse diante dos olhos. As parábolas eram na maioria das vezes, bem compreensíveis; freqüentemente explicava a todos, outras vezes só aos Apóstolos; mas, quando as parábolas se Lhe referiam à própria pessoa e os fariseus espiavam, para poder acusá-Io, não as explicava a ninguém. Os fariseus fechavam propositalmente os olhos à luz e por isso não podiam ver. Com tanto mais gosto falava Jesus à gente humilde e sempre simples, que recebia e compreendia a doutrina de boa vontade e com fé humilde. Muito gostava Jesus de ensinar às crianças e abençoava-as, sempre que as mães lhas traziam ou se lhe aproximavam dele no caminho. "Vi muitas mães, vindo com grupos de crianças, como em procissões: eram crianças de todas as idades, até crianças de peito traziam ao colo. Vieram a uma rua larga da vila, quando Jesus, dobrando uma esquina, entrou nessa mesma rua, os discípulos, que iam à frente, quiseram repelir um pouco asperamente as mulheres e crianças; Jesus, porém, mandou que as deixassem; colocaram-nas por isso, em certa ordem. Num lado da rua formaram cinco fileiras compridas de crianças, de diferentes idades e sexos, meninos separados de meninas; estas eram muito mais numerosas. As mães, porém, com as crianças de peito, ficaram atrás da quinta fileira. No outro lado da rua havia, em grande quantidade, outra gente, que alternadamente se adiantava. O Senhor passou devagar ao longo da primeira fileira, falou às crianças e, impondo-Ihes as mãos sobre as cabeças, abençoou-as. A algumas passou uma das mãos na cabeça, outra no peito; outras apertou ao coração, outras ainda apresentou a todos como modelos e assim passou, ensinando, exortando, animando e abençoando. Chegado ao fim da fileira, voltou pelo outro lado da rua, ao longo dos adultos, exortando-os, ensinando-os e apresentando-Ihes também uma ou outra criança; depois passou por outra fileira de crianças, voltando de novo pelo lado dos adultos, onde, entretanto, entraram outros no lugar da frente. Assim continuou, até que finalmente fez esse ato de caridade também às crianças de peito. Foi-me revelado que todas as crianças abençoadas por

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Ele receberam uma graça especial e se tornaram mais tarde cristãs. Eram cerca de mil as crianças apresentadas a Jesus, pois me parece que a afluência continuou por vários dias. Muito me comoveu ver, no jardim, Jesus ensinando aos filhos do dono da casa: ora os tinha diante de si, ora ao colo, ora abraçando os dois menores juntos. Ensinou-Ihes a obedecer aos pais e respeitar os mais velhos. O Pai do Céu tinha-Ihesdado aquele pai e, como respeitassem os pais terrenos, assim respeitariam o Pai Celestial. Falou dos filhos de Jacó e de Israel, os quais, por terem murmurado, não entraram na terra prometida, que era tão linda. Então Ihes mostrou as belas árvores e frutos do jardim e falou do reino dos céus, que também nos é prometido, se guardarmos os mandamentos de Deus e que é um país muito mais belo que a terra, a qual, em comparação com ele, é apenas um deserto. Portanto, deviam obedecer a Deus e suportar o que Ele Ihes mandasse. Que se guardassem de murmurar, para alcançar o Céu e nunca duvidas-sem da beleza deste, como os israelitas duvidaram no deserto; deviam pensar que o Céu é muito melhor do que a terra, mais belo que tudo, dessa verdade deviam lembrar-se sempre e pensar em merecer o Céu, por todos os esforços e trabalhos,” Num passeio que Jesus fez com os meninos da escola de Abelmehola, ensinou-lhes, com belas comparações da natureza, que tomou de diversíssimos objetos: de árvores, frutas, flores, abelhas e aves, do sol, da lua, da terra, da água, dos rebanhos e da lavoura. Assim ensinou aos meninos, de uma maneira indizivelmente atraente. Em Bezech, proferiu Jesus uma tocante exortação aos meninos e às meninas. Admoestou os meninos a serem pacientes uns com os outros; se alguém Ihes batesse ou Ihes jogasse uma pedra, não se vingassem, mas sofressem com paciência e se retirassem, perdoando aos inimigos. Não deviam responder palavra alguma, mas amar ainda mais e praticar atos de caridade até para com os inimigos. Não cobiçassem o bem alheio e, se outros meninos lhes tirassem utensílios de escrever, os brinquedos e frutas, deviam dar-lhes ainda mais do que cobiçavam e satisfazer-Ihes a avidez, se lhes fosse permitido dar essas coisas, pois só os pacientes, os que praticam a caridade e liberalidade, podem receber um lugar no reino celeste. Descreveu esse lugar de maneira infantil, como belíssimo trono. Falou dos bens da terra, que se devem abandonar, para alcançar os bens do céu. Dirigindo-se às meninas, exortou-as, entre outras coisas, a que não se invejassem umas às outras, por causa de preferências ou de belos vestidos, mas que praticassem a obediência, amor filial, caridade e temor de Deus. No fim dessa instrução pública, dirigiu-se aos discípulos, consolando-os com infinito carinho e exortando-os a sofrerem tudo com Ele e a não se deixarem vencer pelos cuidados deste mundo.

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19. Os milagres de Jesus Nos santos Evangelhos se relatam três ressurreições e grande número de outros milagres que o Salvador operou; mas mencionam-se na Escritura Sagrada apenas os mais importantes. S.João Evangelista dá a entendê-lo na frase final de seu Evangelho: "Muitas outras coisas, porém, fez Jesus, as quais, se se escrevessem uma por uma, creio que no mundo todo não poderiam caber os livros que delas se houvessem de escrever". (S. João 21, 25). Em conformidade com essas palavras, narra a estigmatizada da Westfália, a qual nas suas visões acompanhou o Divino Salvador nas viagens, ouviu-lhe os sermões, viu os milagres que Ele operou, milagres sem interrupção, principalmente depois do seu Batismo. Em grande número vinham os doentes a Ele ou eram transportados por outros e Ele os curava a todos, a não ser aqueles que eram endurecidos de coração. Muitas vezes até não esperava que se Lhe aproximassem, mas procurava-os, para os curar. Não curava, porém, a todos indistintamente. Jesus pode curar todos, diz a serva de Deus, mas cura só os que crêem e fazem penitência; e muitas vezes Ihes avisa para não recaírem. Ele não veio a este mundo para dar a saúde do corpo e deixá-Ios de novo pecar, mas quer curar o corpo, para remir a alma e salvá-Ia.” Jesus curou muitos homens acometidos de diversíssimas enfermidades: cegos, surdos, mudos, coxos, paralíticos, hidrópicos, epiléticos, doentes de febre, morféticos ou leprosos e muitos possessos de maus espíritos. De grande interesse é o que a vidente nos conta do modo por que Jesus operava as curas milagrosas. "Jesus curava de vários modos: a uns de longe, com um olhar ou com uma palavra, a outros tocando-Ihes, a outros impondo-Ihes as mãos, a outros soprava ou benzia-os, a outros aplicava saliva nos olhos. Muitos o tocavam e ficavam curados; a outros fez sarar, sem que se virasse para eles. Curava cada um, conforme o mal, a fé ou à natureza, como ainda, agora de modo diferente, corrige e converte os pecadores. Jesus não rompia a ordem da natureza, mas apenas lhe anulava as leis; não cortava os nós, mas desatava-os e sabia desatar todos. Tinha todas as chaves e, sendo Homem-Deus, operava de modos humanos, santificando-os. Não cura sempre do mesmo modo: ora ordena, ora impõe as mãos; às vezes se inclina sobre os doentes, outras vezes os manda lavar-se, amassa barro com saliva e aplica-Ihes nos olhos. A

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alguns admoesta, a ou tros diz os pecados, poucos são os que se recusa curar. Cada modo de curar tinha uma misteriosa significação própria; todos se referiam à causa oculta e significação da doença e à necessidade espiritual do homem. Assim recebiam, por exemplo, os ungidos com óleo uma certa força espiritual, de que era sinal o óleo. Nenhuma dessas ações de certo era sem significação e intenção. Jesus não curava todos do mesmo modo. Também não curava de modo diferente dos Apóstolos, Santos e sacerdotes até do nosso tempo. Impunha as mãos e rezava com os enfermos; mas fazia-o mais depressa do que os Apóstolos. Fazia os milagres e as curas também como modelos, para os seus sucessores e discípulos. Sempre procedia como convinha ao mal e à necessidade: tocava os coxos e os músculos recobravam força e eles se levantavam. Nos membros quebrados, tocava na fratura e as partes reuniam-se. Quanto aos leprosos, vi que, quando os tocava, as chagas se Ihes fechavam, caindo-Ihes as crostas secas imediatamente; mas ficavam manchas vermelhas, que desapareciam pouco a pouco, porém, mais depressa do que de costume e segundo o grau de merecimento dos doentes. Nunca vi que um corcunda se tivesse tornado direito num instante, ou um osso torto em osso reto. Não porque Jesus não pudesse fazê-Io, mas porque não queria que os seus milagres fossem espetáculos, mas, sim, obras de misericórdia; eram símbolos da sua missão de desligar, reconciliar, ensinar, desenvolver, educar e resgatar. E, como exige a cooperação dos homens, para participarem da salvação, assim haviam de manifestar-se nas curas: fé, esperança, caridade, contrição e reforma dos homens, como cooperação nas mesmas. Cada estado do enfermo tinha tratamento próprio e desse modo se tornava cada doente e o respectivo tratamento o símbolo duma doença espiritual, perdão e correção. Só entre os gentios vi que alguns dos milagres eram mais estranhos e notórios. Os milagres dos Apóstolos e dos San-tos, mais tarde, davam muito mais na vista e eram mais contrários à ordem geral da natureza, pois os pagãos precisavam de um abalo espiritual, de uma forte comoção; os judeus, porém, careciam apenas que se Ihes desvendassem os olhos espirituais e assim por diante. Curava muitas vezes pela oração, à distância, principalmente mulheres que sofriam de fluxo de sangue, pois estas não ousavam aproximar-se, nem podiam, sendo proibido pelas leis judaicas. Jesus observava geralmente as leis que tinham uma significação sobrenatural e misteriosa, as outras não. "Vi novamente, conta Catharina Emmerich na outra passagem, a grande diferença nos modos de curar e que Jesus provavelmente curava de tão diversos modos, para ensinar aos discípulos como eles mesmos, e depois a Igreja, em todos os séculos, deviam proceder. Em todo o seu agir e sofrer, revelava sempre modos e

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formas humanas, nada se lhe revestia de um cunho mágico ou se transformava instantaneamente. Vi em todas as curas uma certa transição, conforme a espécie da doença ou do pecado. Vi que em todos sobre os quais orava ou pousava as mãos, se efetuava uma momentânea calma e recolhimento e os doentes levantavam-se curados, como de um desmaio. Paralíticos levantavam-se vagarosamente e, sentindo-se curados, prostravam-se-Ihe aos pés; mas a força interior e a agilidade dos membros voltavam só depois de certo tempo: em alguns depois de horas; em outros após alguns dias, etc. Vi hidrópicos que puderam achegar-se-Ihe, cambaleando de fraqueza, outros que era preciso serem transportados. Ele pousava geralmente a mão sobre a cabeça e o estômago dos enfermos; logo após as palavras do Mestre, podiam levantar-se, sentiam-se leves e a água saía-Ihes pelo suor. Os leprosos perdiam, logo depois da cura, as crostas das chagas, mas ficavam-Ihes manchas vermelhas, onde antes houvera lepra. Aqueles que recuperavam a vista ou o ouvido ou o uso da língua, sentiam ainda a princípio a falta de desembaraço nesses sentidos. Vi paralíticos curados, que não sentiam mais dores e podiam caminhar; a inchação não desaparecia imediatamente, mas em pouco tempo. Epiléticos fica-vam curados no mesmo instante; quanto ás febres, cessavam logo, mas os doentes não ficavam fortes e sãos no mesmo momento, mas restabeleciam-se como uma planta murcha, depois da chuva. Os possessos caiam geralmente num curto desmaio, levantando-se depois livres do demônio, e sossegados, mas ainda fatigados. Tudo se fazia com calma e ordem, somente para os infiéis e adversários, tinham os milagres de Jesus algo de terrível. Em Genabris rezou Jesus em silêncio sobre os doentes, que na maior parte tinham braços aleijados; tocou-Ihes os braços, passando a mão levemente, de cima para baixo; depois mandou que se retirassem e louvassem a Deus: estavam curados. Em frente da sinagoga de Bezech, estava reunido grande número de enfermos. Jesus, acompanhado pelos discípulos, passou de um a outro, curando-os. Entre estes havia alguns endemoninhados, que, enraivecidos, gritavam contra ele; o Mestre livrou-os e mandou que se calassem. Havia ali paralíticos, tísicos, hidrópicos, com úlceras no pescoço, com glândulas intumescidas, surdos e mudos; curou-os todos, impondo as mãos a cada um, mas o modo de tocá-Ios era diferente; alguns dos doentes ficaram imediatamente curados; outros sentiram-se aliviados e a cura completa efetuou-se-Ihes em pouco tempo, conforme a espécie do mal e estado da alma. Os curados afastaram-se, cantando um salmo de Davi. Havia, porém, tantos doentes, que Jesus não pôde chegar a todos; os discípulos ajudaram-no, levantando e livrando os enfermos. Jesus passou as mãos na cabeça de André, João e Judas Barabás, to mou-lhes depois as mãos nas suas, mandando que fizessem a uma parte dos enfermos o que Ele fazia aos outros. Os Apóstolos cumpriram a ordem e

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curaram a muitos. Em Hukok curou Jesus a um cego, que sofria de catarata; Jesus mandou-o lavar o rosto na fonte; depois de feito isso, untou-lhe os olhos com óleo e, quebrando um pequeno ramo de arbusto, mostrou lho, perguntando-lhe se enxergava. O homem disse: "Sim, vejo uma árvore grande." Então lhe untou Jesus de novo os olhos, e ao pergun tar-lhe outra vez se via, o homem lançou-se-lhe feliz aos pés, exclamando: "Oh! Senhor, vejo montanhas, árvores, homens, vejo tudo!" Então reinou grande alegria na multidão de povo e conduziram o homem à cidade. Só pela sua presença, Jesus expulsava dos possessos os demônios, que se retiravam visivelmente, em forma de vapor, que depois formava uma sombra de horrível figura humana e fugia. O povo admirava-se e assustava-se; os libertos empalideciam e desmaiavam. Jesus, porém, lhes falava e, tomando-Ihes as mãos, mandava-os levantar-se; então voltavam a si, como de um sonho e caindo de joelhos, agradeciam-lhe; eram homens inteiramente mudados. Jesus exortava-os e dizia-lhes as faltas de que se deviam corrigir. Entre todos que foram curados por Jesus, nunca vi dementes, como os chamam; foram todos curados como endemoninhados e possessos.” Os milagres de Jesus não eram só curas de doentes. Ele operava também muitos outros prodígios, como a multiplicação dos pães, a pesca milagrosa, a bonança do mar, produzida por suas palavras, o cami nhar sobre as ondas do mar. Outros milagres realizou, profetizando, tornando-se invisível aos perseguidores e mostrando conhecer os pensamentos ocultos. Essas curas milagrosas e os prodígios, cujo caráter sobrenatural devia dar na vista de todos os homens sinceros e amigos da verdade, davam testemunho da divina missão de Jesus e, como operasse os milagres não em outro nome, mas no seu próprio, ninguém podia negar-Lhe o poder divino; em outras palavras: todos eram obrigados a crer-lhe na divindade. Com mais força ainda nos levam a esta fé as ressurreições operadas por ele, pois só há um Senhor da vida e da morte - Deus. Jesus manifestou-se desse modo o Taumaturgo prenunciado pelos profetas. Expulsando os demônios, curando os enfermos e ressuscitando os mortos, revelou-se como Redentor do pecado e das respectivas conseqüências: doença e morte. Ao mesmo tempo manifestou o Salvador, pelas curas, o amor e a benignidade do seu coração misericordioso, que, com profunda compaixão da miséria e dos muitos males humanos, os socorria e ajudava em toda parte, que, morrendo na Cruz pelos pecados dos homens, quis salvar-Ihes e santificar-Ihes corpo e alma. Daí a bela palavra da piedosa Catharina Emmerich: "Ele veio para curar os muitos e diferentes males de muitos e

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diferentes modos, para expiar os pecados de todos os fiéis, pela morte na Cruz, que contém todos os tormentos e sofrimentos, penitências e satisfações. Abriu primeiro os grilhões e as algemas da miséria e do castigo temporal, com, as chaves do amor; ensinou, curou e socorreu os homens de todos os modos e depois abriu a porta do céu e do Limbo, que é a expiação, com a chave principal: a morte da Cruz.” 20. Judas, o traidor e seu procedimento na última refeição, em Betânia Judas, com o apelido de lscariote, por terem os pais vivido algum tempo naquele lugar (Cariot), foi recomendado por Bartolomeu e Simão a Nosso Senhor, quando este, no segundo ano de sua vida pública, veio a Meroz; disseram-lhe que Judas era um homem instruído, distinto e obsequioso; que muito desejava ser discípulo. Jesus suspirou e parecia triste, sem dizer o motivo. Judas, então na idade de 25 anos, linha certa erudição e dedicara-se também ao comércio. Gostava de dar ares de importância e mostrava-se indiscreto e intrometido, onde não o conheciam. Também era ambicioso e cobiçoso de dinheiro e sempre tinha andado à procura da riqueza. A personalidade de Jesus atraía-o muito e por isso tinha grande desejo de ser chamado seu discípulo e participar-lhe da glória. Bartolomeu e Simão, que o tinham recomendado, apresentaram-no a Jesus, que o olhou muito amavelmente, mas com indizível tristeza. Judas pediu que o deixasse tomar parte no ensino, ao que Jesus respondeu profeticamente que podia, a não ser que quisesse deixá-Io a outrem. "Judas era baixo e forte, muito serviçal, ágil e loquaz; não era feio, apresentava até um rosto amável e contudo repugnante e ignóbil. Os pais não eram bons: o pai natural tinha ainda algumas boas qualidades e o que havia de bom em Judas, fora herdado do pai. A mãe separara-se do marido; quando Judas voltou mais tarde à casa materna, esta teve, por causa dele, um desentendimento com o marido e cheia de ira amaldiçoou o filho. A infeliz vivia de impostura e fraude, pois ela e o marido eram prestidigitadores. Os discípulos gostavam de Judas a princípio, pois era muito obsequioso, até Ihes limpava as sandálias. Era um excelente andador e fez ao começo muitas e longas caminhadas a serviço da comunidade. Estava, porém, sempre cheio de ciúme e inveja e pelo fim da vida de Jesus, se aborreceu das viagens apostólicas, da obediência e do mistério que envolvia a pessoa do Divino Mestre e que não compreendia.” Como um dos doze Apóstolos, Judas tornou-se íntimo de Jesus. Ainda não era mau e talvez não chegasse a sê-Io, se se tivesse vencido nas pequenas coisas. A SS. Virgem exortou-o muitas vezes. Como

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ele esperasse um reino terrestre do Messias e essa esperança diminuísse, começou a ajuntar dinheiro. Na última festa dos Tabernáculos se deixou arrastar inteiramente ao mau caminho; já no domingo de Ramos andou com a traição no coração, tendo já falado com os fariseus. Quando Madalena, nas vésperas do domingo de Ramos, derramou óleo aromático sobre a cabeça de Jesus, o apóstolo infiel murmurou; onze dias depois, teve outra ocasião de protestar contra igual "desperdício", como dizia. Foi quando por ordem de Jesus, se realizou em casa de Simão, na Betânia, um banquete no qual ele tomou parte, em companhia dos doze Apóstolos e das santas mulheres. Durante esse banquete, veio Madalena com ungüento, que comprara na cidade, prostrou-se diante de Jesus, untando-lhe os pés e enxugando-os com os sedosos cabelos. Depois derramou também água aromática sobre a cabeça do Mestre, de modo que o perfume encheu toda a sala. Judas, indignado, falou então do desperdício, dizendo que o dinheiro se podia ter dado aos pobres. Jesus, porém, afirmou que Madalena o ungira para a morte e onde fosse pregado o Evangelho, se anunciaria também essa ação. Findo esse banquete, Judas correu, cheio de ira e avareza, a Jerusalém, oferecendo-se aos fariseus para entregar-Ihes Jesus e perguntando quanto lhe dariam por isso. Satisfeitíssimos, ofereceram-lhe trinta dinheiros. 21. A Jerusalém antiga Aproximava-se a hora em que Cristo, nosso divino Salvador, havia de ir a Jerusalém, para ser escarnecido, açoitado e condenado à morte. Para ter uma compreensão melhor e mais clara dos acontecimentos em conexão com as localidades, apresentamos ao leitor uma descrição mais detalhada da antiga cidade de Jerusalém. Juntaremos a descrição da presente situação de Jerusalém com as diversas informações de Anna Catharina Emmerich e os resultados dos estudos arqueológicos. A cidade de Jerusalém foi fundada e existe ainda hoje, assentada sobre três montes principais: monte Sião, monte Moriá e monte Acra. Podemos mencionar também o monte de Ophel, que, em verdade, é apenas o primeiro degrau do monte das Oliveiras, sobre o qual passa o caminho de Jerusalém a Betânia, mas não no ponto mais elevado. O monte das Oliveiras tem 60 metros mais de altura do que o monte Sião, que também de sua parte supera os montes Moriá e Acra. Do monte das Oliveiras, que é separado da cidade pelo vale do ribeiro Cedron, chama do vale de Josafá, se avista, além deste vale, primeiro o monte Moriá, com os vastos edifícios do Templo. Como este monte, no cume, não desse bastante lugar para o Templo, com todos os respectivos átrios, o rei Salomão já o tinha feito

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cercar de um muro colossal, que em parte era construído de imensas pedras, pelos lados de SO., S. e SE.. Os espaços formados por essa muralha, mandou em parte encher de terra, a outra parte mandou abobadar sobre uma rede de pilastras, até à altura do monte do Templo. Dessa obra ficaram até em nossos dias alguns restos da muralha, que formam, nas partes mais acessíveis, o "muro das lamentações", ao qual os judeus costumam ir às sextas-feiras para chorar a destruição da cidade e do Templo. O vale de Josafá estende-se do N. ao S. do monte das Oliveiras se vê, portanto, além desse vale, o monte Moriá, com o Templo, ao fundo e mais alto o Monte Sião, em cujo cume se achava o Cenáculo, casa da última ceia. Naquele tempo estava ainda dentro da cidade, agora, porém, está fora dos muros. De Sião para o S. se via o profundo vale de Hinom, que separa aquele monte santo do monte do Mau Conselho. Do fundo desse vale se avistavam, no alto, o monte Sião, o monte Moriá e o monte das Oliveiras. No vale de Hinom se entregaram os Israelitas, sob vários reis maus, ao culto do falso deus Moloch, o qual consistia em sacrifícios cruéis de crianças; ali se achava a estátua de Moloch, feita de bronze e oca no interior; para pôr-se fogo havia uma abertura no peito da estátua, dentro da qual deixavam cair as criancinhas nas chamas do interior, para se queimarem, como sacrifícios ao ídolo. Foi nesse vale que Judas se enforcou. Entre os montes Sião e Moriá há um vale profundo, chamado agora vale de Tiropeon, que termina ao S., no vale de Hinom; ao N., porém, subia gradualmente até o monte Acra, que está situado ao N. do monte Moriá. Nesse vale se achava, segundo as informações de Anna Catharina Emmerich, a piscina de Betsaida, cujas águas de tempo em tempo efervesciam; ali curou Jesus o homem que estava paralítico havia 38 anos; depois da vinda do Espírito Santo, se administrava ali o santo Batismo e mais tarde foi ali construída uma Igreja que, não contando o Cenáculo, foi a primeira Igreja cristã. No vale de Tiropeon havia uma ponte, pela qual se podia ir do monte Moriá a Sião, subindo o caminho suavemente até ao cume deste último. Nosso divino Salvador, tendo sido preso no horto de Getsemani, que se acha na encosta ocidental do monte das Oliveiras, foi conduzido para baixo desse monte, sobre a ponte do Cedron e pelo vale de Josafá. Subiu pelo Monte Ophel, no lado ocidental do Templo, ao monte Sião, em cujo cume, não muito longe do Cenáculo, se achava o tribunal de Anás e Caifás. Depois de condenado, levaram Jesus ao tribunal de Pilatos, que ficava ao norte do monte do Templo, entre o Moriá e o Acra. Ali se achava também a cidadela Antônia, construída pelos Romanos, para dali manterem o povo, no Templo e nos outros bairros da cidade, sob o jugo de Roma. Do tribunal de Pilatos ao palácio de

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Herodes, no monte Acra, não havia grande distância. Depois de escarnecido por Herodes, Jesus foi reconduzido a Pilatos, onde O açoitaram, O coroaram de espinhos e, finalmente, O condenaram à morte. O caminho do Gólgota dirigia-se do palácio de Pilatos para oeste, entre Sião e Acra, até à porta da cidade. Esta era uma das mais importantes de Jerusalém; por ela saia não só quem viajava para Jope, por mar, mas também quem queria ir a Belém, ao sul. Pois o vale de Hinom, ao sul da cidade, impedia o caminho e era preciso portanto, sair peia porta ocidental; pouco além da cidade, se dirigia o caminho para o sul, ao oeste para Belém e Hebron. Próximo dessa porta ocidental, ao sul, se achava também a colossal torre de Davi. Os arredores do Gólgota pertencem ainda ao Monte Sião, e assim se pode dizer que no monte Sião foi fundada a Nova Aliança. Da porta ocidental se estendia o muro da cidade para o norte; cercando grande parte do monte Acra, dirigia-se então para o leste e depois para o sul, até chegar ao muro que encerra o lado oriental do monte Moriá. A Serva de Deus descreve detalhadamente algumas partes da Jeru-salém antiga, com as seguintes palavras: "A primeira porta de Jerusalém, ao lado oriental da cidade, contado da esquina do Templo, de SE. em direção ao sul, era a que dava para o bairro de Ofel; a porta, porém, que ficava mais perto da esquina do NE. do Templo e dava para o norte, era a porta das "Ovelhas". Entre essas duas portas fora construída outra, não havia muito tempo, (antes da crucifixão), a qual conduzia a duas ruas, que subiam uma acima da outra, do lado oriental do monte do Templo e que na maior parte eram habitadas por pedreiros e outros operários. As casas encostavam-se nos alicerces do Templo. Quase todas as casas dessas duas ruas eram propriedade de Nicodemos, que as mandara construir. Os pedreiros que nelas moravam, pagavam aluguel em dinheiro ou em trabalho, pois estavam sempre em relações com Nicodemos e seu amigo José de Arimatéia. Este possuía grandes pedreiras em suas terras e negociava em pedras. Nicodemos construiu, pois, uma bela porta nova para essas ruas. Chamavam-na agora porta Moriá. Depois de terminada, Jesus foi o primeiro a entrar por ela, no domingo de Ramos. Entrou, portanto, pela porta nova de Nicodemos, pela qual ninguém entrara ainda e foi sepultado no sepulcro novo de José de Arimatéia, no qual antes ninguém fora sepultado. Aquela porta foi mais tarde fechada com alvenaria e formou-se a lenda de que por ela os cristãos haviam de entrar de novo. Hoje ainda há naquele lugar uma porta fechada com um muro, à qual os turcos chamam porta Áurea, ou Porta de Ouro. O caminho reto da porta das Ovelhas a oeste, se se pudesse passar por todos os muros, seguiria entre o Gólgota e o extremo noroeste do monte Sião. Da porta até o Gólgota, em linha reta, havia um

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caminho de 3/4 de hora; do palácio de Pilatos ao Gólgota, em linha reta, talvez 5/8 de uma hora. A cidadela Antônia estava situada ao lado NO. do monte do Templo, sobre um rochedo saliente; quem se dirigisse do palácio de Pilatos a oeste, pelas arcadas da esquerda tinha a cidadela ao lado esquerdo. Sobre os muros dessa cidadela havia um largo aberto, do qual se avistava parte do foro. Daí fazia Pilatos muitas proclamações ao povo, como por exemplo, das novas leis. Na via sacra, dentro da cidade, teve Jesus o Calvário algumas vezes à direita. (O caminho de Jesus deve ter se dirigido em parte a SO.). Jesus foi conduzido pela porta do muro interior da cidade, que dava para Sião, bairro que estava situado muito alto. Fora desse muro, para oeste, havia uma parte da cidade que tinha mais hortas e jardins do que casas; perto do muro exterior da cidade, havia também belos sepulcros, com entradas de alvenaria, artisticamente talhadas na rocha, e em cima, às vezes lindos jardins. Nesse bairro também se achava a casa que Lázaro possuía em Jerusalém, com belos jardins, perto da porta da esquina, onde o muro externo, a oeste da cidade, se dirigia para o S.. Parece-me que uma pequena porta própria conduzia, através desse muro, aos jardins, não longe da porta das Ovelhas, Jesus e os seus entravam e saiam por ali de vez em quando, com licença de Lázaro. A porta, na esquina de NO., dava para o caminho de Betsur, situado mais para o N. do que Emaús e Jope. Ao norte do muro exterior da cidade se encontravam vários mausoléus reais. Essa parte ocidental da cidade era a mais baixa: descia um pouco em direção ao muro, mas perto deste subia um pouco e nessa encosta havia belas hortas e também vinhas. Atrás destas passava um caminho largo de alvenaria, ao longo do muro, o qual, em algumas partes, era transitável e tinha subidas para cima do muro e para as torres, as quais não tinham escadas no interior, como as das fortalezas de hoje. Além do muro, fora da cidade, havia uma descida para o vale, de modo que o muro, nessa parte baixa da cidade, ficava como sobre um elevado baluarte. Na encosta fora do muro, havia também hortas e vinhas. O caminho de Jesus para o Calvário não passou por essas hortas e vinhas, mas essa parte da cidade lhe ficou à direita, ao norte, pelo fim do caminho. Simão de Cirene, porém, veio desse bairro, entrando no caminho de Jesus. A porta pela qual Jesus foi conduzido para fora, não dava diretamente para oeste, mas na direção do sol às 4 horas da tarde (SO.). Ao sair da porta, se via que o muro, à esquerda, um pouco para o sul, fazia uma curva para oeste e ia depois de novo para o sul, rodeando o monte Sião. Nesse mesmo lado esquerdo, ao sair da porta, havia, na direção de Sião, uma poderosa torre, como uma cidadela. Perto da porta, à esquerda, outra porta; eram essas as portas da cidade que mais se aproximavam. Esta última dava para oeste, no vale, onde o caminho se dirigia à esquerda, isto é, para o sul e conduzia a

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Belém. O caminho de Jesus, pouco além da porta, se dirigia à direita, para o Monte Calvário, que, ao lado oriental, que dá para a cidade, é íngreme, mas na parte ocidental forma uma encosta branda. Além do monte, a oeste, se vê uma parte do caminho de Emaús, ao lado do qual havia um prado, onde vi S. Lucas colhendo ervas; foi depois da ressurreição, quando ele, junto com Cleofas, iam a Emaús e se encontraram com Jesus. Pendente da Cruz, Nosso Senhor olhava na direção do sol às dez horas da noite, entre oeste e norte; virando a cabeça um pouco à direita, podia ver uma parte da cidadela Antônia. Ao longo do muro da cidade, a leste e ao norte do Cal vário, havia também hortas, vinhas e sepulcros. A NE., ao pé do Calvário, foi enterrada a Cruz. Do outro lado desse lugar, para NE., havia belas vinhas na encosta do monte. Do lugar da crucificação o sul, caia a vista sobre a casa de Caifás, ficando a torre de Davi mais ao alto. 2 A última Ceia 1. Preparativos para a ceia pascal 2. O cenáculo ou casa da Ceia 3. Disposições para a refeição pascal 4. Jesus vai a Jerusalém 5. A ultima ceia pascal 6. O Lava-pés 7. Instituição da Sagrada Eucaristia 8. Instruções secretas e consagrações 9. Oração solene de despedida de Jesus A última Ceia 1. Preparativos para a ceia pascal: (Quinta-feira Santa, 13 de Nisan ou 29 de Março; Jesus na idade de 33 anos, 18 semanas menos 1 dia) Foi ontem à noite que se efetuou em Betânia a última e grande refeição de Nosso Senhor e dos seus amigos, em casa de Simão, curado da lepra por Jesus e durante a qual Maria Madalena ungiu Jesus pela última vez. Judas, indignado com isso, correu a Jerusalém, onde negociou ainda uma vez com os príncipes dos sacerdotes, para entregar-lhes Jesus. Depois da refeição, voltou Jesus à casa de Lázaro e uma parte dos discípulos dirigiram-se à albergaria, situada fora de Betânia. Nicodemos veio ainda cre noite à casa de Lázaro, onde teve longa conversa com o Senhor;

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voltou a Jerusalém antes do amanhecer, acompanhado numa parte do caminho por Lázaro. Os discípulos já tinham perguntado a Jesus onde queria comer o cordeiro pascal. Hoje, antes da madrugada, Nosso Senhor mandou vir Pedro e João e falou-lhes muito de tudo que deviam comprar e preparar em Jerusalém; disse-lhes que, subindo o monte Sião, encontrariam um homem com umjarro de água. (Eles já conheciam esse homem, pois fora quem já na última Páscoa, em Betânia, preparara a ceia de Jesus; por isso diz S. Mateus: um certo homem). Deviam seguí-lo até à casa em que morava e dizer-lhe: "O Mestre manda avisar-te que seu tempo está perto e que quer celebrar a Páscoa em tua casa". Deviam pedir que lhes mostrasse o Cenáculo, que já estaria preparado e fazer-lhe depois todos os preparativos necessários. Vi os dois Apóstolos subirem a Jerusalém, seguindo um barranco ao Sul do Templo e subirem ao monte Sião pelo lado setentrional. Ao lado Sul do monte do Templo havia algumas fileiras de casas; seguiram um caminho que passava em frente destas casas, ao longo de um ribeiro, que corria no fundo do barranco e os separava das casas. Tendo chegado à altura de Sião, que é mais alto do que o monte do Templo, dirigiramse a um largo um pouco em declive, na vizinhança de um velho edifício, cercado de pátios; ali, no largo, encontraram o homem que lhes fora indicado, seguiram-no e perto da casa lhe disseram o que Jesus lhes ordenara. Ele se regozijou muito de os ver e, ouvindo o recado, respondeu-lhes que a refeição já lhe tinha sido encomendada (provavelmente por Nicodemos), sem que soubesse para quem era, mas que muito lhe agradava saber que era para Jesus. Esse homem era Elí, cunhado de Zacarias de Hebron, o mesmo em cuja casa Jesus anunciara, no ano anterior, em Hebron, a morte de S. João Batista. Tinha só um filho, que era Levita e amigo de Lucas, antes deste se juntar a Jesus, e além desse, também 5 filhas solteiras. Todos os anos ia com os criados à festa e, alugando uma sala, preparava a Páscoa para as pessoas que não tinham casa em Jerusalém. Nesse ano tinha alugado um cenáculo, pertencente a Nicodemos e José de Arimatéia. Mostrou aos dois Apóstolos a sala e o arranjo interior. 2. O cenáculo ou casa da Ceia Ao lado sul do monte Sião, perto do castelo abandonado de Davi e do mercado situado na subida, à leste desse castelo, se acha um velho e sólido edifício, entre duas fileiras de árvores copadas e no meio de um pátio espaçoso, cercado de muros fortes. A direita e à esquerda da entrada há ainda outras construções encostadas ao muro: à direita a habitação do mordomo e, perto desta, outra, à qual Nossa Senhora e as santas mulheres às vezes se retiravam, depois da morte de Nosso Senhor. O Cenáculo, antigamente mais

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espaçoso, servira de morada aos bravos capitães de Davi, que ali se exercitavam no manejo das armas; também estivera ali por algum tempo a Arca da Aliança antes da construção do Templo e ainda há indícios da sua estada num subterrâneo da casa. Vi também uma vez o profeta Malaquias escondido nos mesmos subterrâneos, onde escreveu as profecias acerca da sagrada Eucaristia e do sacrifício do Novo Testamento. Salomão tinha também esta casa em muito respeito, por certa relação simbólica, a qual, porém, esqueci. Quando grande parte de Jerusalém foi destruída pelos Babilônios, ficou salva essa casa, a respeito da qual tenho visto muitas outras coisas, mas lembro-me só do que acabo de contar. O edifício estava meio arruinado, quando se tornou propriedade de Nicodemos e José de Arimatéia, que restauraram a casa principal e acomodaram-na bem, para a celebração da festa da Páscoa, fim para o qual costumavam alugá-Ia a forasteiros, como fizeram também na última Páscoa do Senhor. Além disso, serviam-Ihes a casa e os pátios de armazém para monumentos sepulcrais e pedras de construção, como também de oficina para os operários, pois José de Arimatéia possuía excelentes pedreiras nas suas terras e negociava em pedras sepulcrais e variadíssimas colunas e capitéis, esculpidos sob sua direção. Nicodemos trabalhava muito como construtor e, nas horas vagas, gostava de ocupar-se também com a escultura; fora da época das festas, esculpia estátuas e monumentos de pedra, na sala ou no subterrâneo debaixo desta. Essa arte pusera-o em contato com José de Arimatéia; tornaram-se amigos e muitas vezes se associaram também nas empresas. Nessa manhã, enquanto Pedro e João, enviados de Betânia por Jesus, conversavam com o homem que tinha alugado o Cenáculo para aquele ano, vi Nicodemos indo para além e para aquém das casas à esquerda do pátio, para onde tinham sido transportadas muitas pedras, que impediam as entradas da sala do Cenáculo. Havia uma semana, eu vira algumas pessoas ocupadas em pôr as pedras ao lado, em limpar o pátio e preparar o Cenáculo para a celebração da Páscoa; julgo até ter visto, entre outros, alguns discípulos de Jesus, talvez Aram e Temeni, sobrinhos de José de Arimatéia. A casa principal, o Cenáculo propriamente dito, está quase no meio do pátio, um pouco para o fundo. É um quadrilátero comprido, cercado por uma arcada menos alta de colunas, a qual, afastados os biombos entre os pilares, pode ser unida à grande sala interior; pois todo o edifí cio é aberto de lado a lado e pousa sobre colunas e pilares; apenas estão as passagens fechadas ordinariamente por biombos. A luz entra por aberturas existentes no alto das paredes. Na parte estreita da frente, há um vestíbulo, ao qual conduzem três entradas; depois se entra na grande sala interior, alta e com bom soalho lajeado; do teto pendem diversas lâmpadas; as paredes estão ornadas para a festa, até meia altura, com belas esteiras e tapetes e no teto há uma abertura coberta

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com um tecido brilhante, transparente, semelhante à gaze azul. O fundo da sala está separado do resto por uma cortina igual. Essa divisão do Cenáculo em três partes dá-lhe uma semelhança com o Templo; há também um adro, o santo e o santo dos santos. Nesta última parte é que são guardados, à direita e à esquerda, as vestimentas e vários utensílios. No meio há uma espécie de altar. Sai da parede, um banco de .pedra com a ponta cortada no meio das duas faces laterais; deve ser a parte superior do forno, no qual o cordeiro pascal é assado; pois hoje, durante a refeição, estavam os degraus em roda muito quentes. Ao lado dessa parte do Cenáculo, há uma porta, que dá para o alpendre que fica atrás da pedra saliente; de lá é que se desce ao lugar onde se acende o fogo no forno; há ali ainda outros subterrâneos e adegas, debaixo da grande sala. Naquela pedra ou altar saliente da parede há várias divisões, semelhantes a caixas ou gavetas, que se podem tirar; em cima há também aberturas como de uma grelha, uma abertura também para fazer fogo e outra para apagá-Io. Não sei mais descrever exatamente tudo que ali vi, parece ter sido um forno para cozer o pão ázimo da Páscoa e outros bolos ou também para queimar incenso ou certos restos das refeições da festa; é como uma cozinha pascaI. Por cima desse forno ou altar há uma caixa de madeira, saliente, semelhante a um nicho, que tem em cima uma abertura, com uma válvula, provavelmente para deixar sair a fumaça. Diante desse nicho ou pendente por cima dele, vi a figura de um cordeiro pascal; tinha cravado na garganta uma faca e o sangue parecia cair gota a gota sobre o altar; não sei mais exatamente como era feito. Dentro do nicho da parede há três armários de diversas cores, os quais se fazem girar como os nossos tabernáculos, para se abrirem e fecharem. Neles vi todas as espécies de vasos para a Páscoa, taças e mais tarde também o SS. Sacramento. Nas salas laterais do Cenáculo há assentos ou leitos em plano inclinado, feitos de alvenaria, sobre os quais se acham mantas grossas enroladas; são leitos de dormir. Debaixo de todo o edifício há belas adegas; antigamente esteve ali no fundo a Arca da Aliança, onde, em seguida, foi construído o forno pascaI. Debaixo da casa há cinco esgotos, que levam todas as águas e imundícies monte abaixo, pois a casa está situada no alto. Já antes vi Jesus curar e ensinar aqui; às vezes passavam alguns discípulos a noite nas salas laterais. 3. Disposições para a refeição pascal Tendo os Apóstolos falado com Helí de Hebron, voltou este pelo pátio à casa; eles, porém, se dirigiram para a direita, a Sião, desceram pelo lado norte, passaram uma ponte e, seguindo por veredas ladeadas de sebes verdejantes, foram pelo outro lado do

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barranco, até às fileiras de casas ao sul do Templo. Ali era a casa do velho Simeão, que morrera depois da apresentação de Jesus no Templo. Moravam então lá os filhos do venerando ancião; alguns eram secretamente discípulos de Jesus. Os Apóstolos falaram a um deles, que era empregado no Templo; era homem alto e muito moreno. Ele desceu com os Apóstolos, passando a leste do Templo, por aquela parte de Ophel pela qual Jesus entrara triunfalmente em Jerusalém, no domingo de Ramos; assim foram pela cidade, ao norte do Templo, até o Mercado de gado. Vi na parte meridional do mercado pequenos recintos, onde belos cordeiros saltavam como em pequenos jardins. Na entrada triunfal de Jesus pensei que isso fora feito para abrilhantar a festa; mas eram cordeiros pascais, que se vendiam ali. Vi o filho de Simeão entrar num desses recintos; os cordeiros seguiram-no, saltando, e empurravam-no com as cabeças, como se o conhecessem. Ele escolheu quatro, que foram levados ao Cenáculo. Vi-o também de tarde no Cenáculo, ajudando na preparação do cordeiro pascaI. Vi como Pedro e João deram ainda vários recados na cidade, encomendando muitas coisas. Vi-os também fora de uma porta, ao norte do monte Cal vário e a NO da cidade; entraram numa estalagem, onde ficaram nesses dias muitos discípulos. Era a estalagem construída em Jerusalém para os discípulos, a qual estava sob a administração de Seráfia, (conhecida pelo nome de Verônica). Pedro e João mandaram alguns discípulos de lá ao Cenáculo, para dar alguns recados, dos quais me esqueci. Foram também à casa de Seráfia, à qual tinham de pedir diversas coisas; o marido desta, membro do conselho, estava a maior parte do tempo fora de casa, em negócios e, mesmo quando estava em casa, ela o via pouco. Seráfia era uma mulher quase da idade da SS. Virgem e há tempo estava em relações com a Sagrada Família; pois quando o Menino Jesus, depois da festa, ficara atrás, em Jerusalém, comera em casa dela. Os dois Apóstolos receberam ali diversos objetos, em cestos cobertos, que foram levados ao Cenáculo, em parte pelos discípulos. Foi também ali que receberam o cálice de que Nosso Senhor se serviu, na instituição da sagrada Eucaristia. 4. Jesus vai a Jerusalém Na manhã em que os dois Apóstolos andaram por Jerusalém, ocupados com os preparativos da Páscoa, Jesus se despediu muito comovido das santas mulheres, de Lázaro e de sua Mãe em Betânia, dando-Ihes ainda algumas instruções e exortações. Vi o Senhor conversar com a Virgem SS. separadamente; disse-lhe, entre outras coisas, que tinha mandado a Pedro, o representante da fé, e João, o representante do amor, para prepararem a Páscoa

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em Jerusalém. De Madalena, que estava desvairada de dor e tristeza, disse o Mestre que o seu amor era indizível, mas ainda arraigado na carne e que por isso ficava desatinada de dor. Falou também das intenções traiçoeiras de Judas e a Santíssima Virgem pediu por este. Judas tinha ido novamente de Betânia a Jerusalém, sob pretexto de fazer várias compras e pagamentos. De manhã interrogou Jesus os nove Apóstolos a respeito, apesar de saber perfeitamente o que Judas estava fazendo. Este correu todo o dia pelas casas dos fariseus, combinando tudo com estes; mostraram-lhe até os soldados que deviam apoderar-se de Jesus. O traidor premeditou todos os passos que carecia dar, para que pudesse sempre explicar a sua ausência; não voltou para junto de Nosso Senhor, senão pouco antes de comerem o cordeiro pascal. Vi-lhe todas as conspirações e os pensamentos. Quando Jesus falou a Maria acerca de Judas, vi muitas coisas em relação ao caráter deste; era ativo e atencioso, mas cheio de avareza, ambição e inveja e não lutava contra as paixões. Fizera também milagres e curara doentes na ausência de Jesus. Quando Nosso Senhor comunicou à SS. Virgem o que havia de suce-der, pediu ela de modo tocante que a deixasse morrer com Ele. Mas Jesus exortou-a a que mostrasse mais calma na dor do que as outras mulheres; disse-lhe também que ressuscitaria e lhe indicou o lugar onde lhe, apareceria. A Mãe SS. então não chorou muito, mas ficou tão profundamente triste e séria, que impressionou a todos. Nosso Senhor, como Filho piedoso, agradeceu-lhe todo o amor que lhe tinha mostrado; abraçou-a com o braço direito e apertou-a ao coração; disse-lhe também que faria a ceia com ela espiritualmente, indicando-lhe a hora em que a receberia. Ainda se despediu de todos, muito comovido, e instruiu-os sobre muitas coisas. Cerca de meio dia partiu Jesus de Betânia, com os nove Apóstolos, tomando o caminho de Jerusalém; seguiram-no sete discípulos que, com exceção de Natanael e Silas, eram naturais de Jerusalém e arredores. Lembro-me que entre estes estavam João Marcos e o filho da viúva pobre, que na quinta-feira antecedente oferecera o denário no Templo, enquanto Jesus ensinava. Havia poucos dias Jesus admitira o último como discípulo. As santas mulheres seguiram mais tarde. Jesus e a comitiva andaram por aqui e por ali, por diversos caminhos ao redor do monte das Oliveiras, no vale de Josafá e até o monte Cal vário; durante todo o caminho, continuou a ensinar-lhes. Disse aos Apóstolos, entre outras coisas, que até agora lhes dera pão e vinho, mas hoje queria dar-lhes seu corpo e sangue, que lhes daria e deixaria tudo que tinha. Nosso Senhor disse-o de uma maneira tão tocante, que toda a alma parecia fundir-se-Lhe e languir de amor, com o desejo de se lhes dar. Os

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discípulos não O compreenderam, julgaram que falava do cordeiro pascal. Não se pode exprimir quanto havia de amor e resignação nos últimos discursos que fez em Betânia e aqui. As santas mulheres foram mais tarde à casa de Maria, mãe de Marcos. Os sete discípulos que seguiram Nosso Senhor a Jerusalém, não O acompanharam no caminho, mas levaram as vestimentas da cerimônia da Páscoa ao Cenáculo, puseram-nas no vestíbulo, voltando depois à casa de Maria, mãe de Marcos. Quando Pedro e João vieram com o cálice da casa de Seráfia ao Cenáculo, já encontraram todo o vestuário da cerimônia no vestíbulo, onde os discípulos e alguns outros o tinham colocado; também tinham coberto as paredes da sala com tapeçaria, desprendido as aberturas do teto e aprontado três candeeiros de suspensão. Pedro e João foram então ao vale de Josafá, para chamar a Jesus e aos nove Apóstolos. Os discípulos e amigos que comeram com eles o cordeiro pascal, vieram mais tarde. 5. A última ceia pascal Jesus e os seus comeram o cordeiro pascal no Cenáculo, divididos em três grupos de doze, dos quais cada um era presidido por um chefe, que fazia às vezes de pai de família. Jesus tomou a refeição com os doze Apóstolos, na sala do Cenáculo. Natanael presidiu a outra mesa, numa das salas laterais e outros doze tinham como pai de família Eliaquim, filho de Cleofas e Maria Heli, irmão de Maria Cleofas e que fora antes discípulo de João Batista. Três cordeiros tinham sido imolados para eles no Templo, com as cerimônias do costume. Mas havia lá um quarto cordeiro, que foi imolado no Cenáculo; foi o que Jesus comeu com os doze Apóstolos. Judas ignorava essa circunstância, pois estava ocupado com diversos negócios e com a traição e ainda não estava de volta, por ocasião da imolação do cordeiro; veio alguns instantes antes da refeição pascal. A imolação do cordeiro destinado a Jesus e aos Apóstolos foi uma cerimônia singularmente tocante; realizou-se no vestíbulo do Cenáculo; Simeão, que era levita, ajudou. Os Apóstolos e os discípulos estavam também presentes, cantando o salmo 118. Jesus falou então de uma nova época, que começava; (veja n. 1 do primeiro capítulo) disse que então se devia cumprir o sacrifício de Moisés e a significação do cordeiro pascal simbólico; o cordeiro devia por isso ser imolado do mesmo modo que o do Egito, do qual só então o povo de Israel sairia verdadeiramente liberto. Os vasos e tudo o que era mais precioso, estavam prontos; trouxeram um belo cordeirinho, ornado de uma grinalda, que foi tirada e enviada à SS. Virgem, que ficara com as santas mulheres em outra sala. O cordeiro foi amarrado pelo meio do corpo numa tábua, o que recordou Jesus preso à coluna da flagelação. O filho

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de Simeão segurou a cabeça do cordeiro para cima; Jesus cravou-lhe a faca no pescoço, entregando-a depois ao filho de Simeão, que continuou a preparação do cordeiro. Jesus parecia sentir dor e repugnância em ferí-lo. Fê-lo rapidamente, mas com muita gravidade. O sangue foi colhido numa bacia; trouxeram um ramo de hissopo, que Jesus molhou no sangue. Em seguida avançou para a porta, tingiu com o sangue os dois portais e a fechadura, fixando depois em cima da porta, o ramo tinto de sangue. Durante esse ato, lhes ensinou solenemente e disse, entre outras coisas, que o Anjo exterminador passaria ali; que fizessem, porém, a adoração naquele lugar, sem medo e inquietação, depois dele, o verdadeiro Cordeiro pascal, ter sido imolado; começaria um tempo e um sacrifício novo, que duraria até o fim do mundo. Dirigiram-se então ao fogão, no fundo da sala, onde outrora estivera a Arca da Aliança; já estava aceso o fogo. Jesus aspergiu o forno com o sangue e consagrou-o como altar; o resto do sangue e a gordura vazaram-nos no fogo, debaixo do altar. Todas as portas estavam fechadas durante essa cerimônia. Entretanto, o filho de Simeão acabara de preparar o cordeiro pascal. Pusera-o numa estaca, as pernas dianteiras fixadas num pau transversal, as traseiras na estaca. Ai! parecia tanto com Jesus pregado na Cruz! Em seguida foi posto no forno, para ser assado, junto com os outros três, trazidos do Templo. Os cordeiros pascais dos judeus eram todos imolados no átrio do Templo, em três lugares diversos: para as pessoas de distinção, para a gente pobre e para os forasteiros. O cordeiro pascal de Jesus não foi imolado no Templo, mas todo o resto da cerimônia foi feita rigorosamente conforme a lei. Jesus falou mais tarde a esse respeito; disse que o cordeiro era simplesmente um símbolo; que Ele mesmo, na manhã seguinte, devia ser o verdadeiro Cordeiro pascal. Não sei mais tudo quanto ensinou nessa ocasião. Desse modo instruiu Jesus os Apóstolos sobre o cordeiro pascal e sua significação. Por fim veio também Judas. Tendo então chegado a hora, prepararam-se as mesas. Os convivas vestiram as vestes da cerimônia, que se achavam no vestíbulo; outro calçado, uma veste branca, à maneira de túnica ou camisa e por cima um manto, curto na frente e comprido atrás; arregaçaram as vestes com o cinto, sendo também as mangas largas arregaçadas. Era o traje de viagem, prescrito pela Lei mosaica. Assim se dirigiu cada grupo à respectiva mesa; os dois grupos de discípulos para as salas laterais, o Senhor e os Apóstolos à sala do Cenáculo. Tomando todos um bastão na mão, caminharam, dois a ,dois, para a mesa, onde ficaram em pé diante dos respectivos lugares, os bastões encostados nos braços e as mãos levantadas. Jesus, que estava no meio da mesa, recebera do mordomo dois pequenos bastões, um pouco recurvados em cima, semelhantes a cajados curtos de pastores. Tinham em cima uma forqueta, a maneira de ramo cortado. Jesus

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pô-Ios à altura da cintura, em forma de cruz, diante do peito e durante a oração colocou os braços estendidos sobre as forquetas. Nessa atitude tinham os movimentos do Mestre algo de singularmente tocante e parecia servir-lhe de apoio a cruz, que em pouco devia pesar-lhe sobre os ombros. Nessa posição cantaram: "Bendito seja o Senhor, Deus de Israel" e "Louvado seja o Senhor, etc.". Terminada a oração, Jesus deu um dos bastões a Pedro e o outro a João. Puseram-nos de lado ou fizeram-nos passar de mão a mão, entre os outros discípulos; já não me lembro mais exatamente. A mesa era estreita e tão alta, que passava meio pé acima dos joelhos de um homem; tinha a forma de um segmento de círculo. Em frente de Jesus, na parte interior do semicírculo, havia um lugar livre, para servir os pratos. Se bem me lembro, estavam à direita de Jesus: João, Tiago o Maior e Tiago o Menor; no lado estreito, à direita, Bartolomeu; em seguida, no semicírculo interior, Tomé e Judas Iscariotes; à esquerda, Simeão e perto deste, no lado interior, Mateus e Filipe. No meio da mesa, numa travessa, estava o cordeiro pascal. A cabeça repousava-lhe sobre os pés dianteiros, postos em forma de cruz, as pernas traseiras estavam estendidas; a margem da travessa, em roda do cordeiro, estava coberta de alho. Havia mais uma travessa com o assado da Páscoa, a cada lado desta um prato com ervas verdes, dispostas umas contra as outras, em pé e mais outro prato com tufos de ervas amargas, semelhantes a erva de bálsamo. Diante de Jesus havia um prato com ervas de cor verde-amarelada e outro com molho escuro. Pães redondos serviam de pratos para os convivas, que usavam facas de osso. Depois da oração, o mordomo pôs na mesa, diante de Jesus, a faca para trinchar o cordeiro. Pós também diante de Nosso Senhor um copo de vinho e encheu de um jarro seis copos, cada um para dois discípulos. Jesus benzeu o vinho e bebeu, os Apóstolos beberam, dois a dois em cada copo. O Senhor trinchou o cordeiro; os Apóstolos apresentaram cada um com o seu bolo redondo, com uma espécie de gancho, recebendo cada um a sua parte. Comeram-na apressadamente, separando a carne dos ossos com as facas de osso. Os ossos descarnados foram depois queimados. Comeram também às pressas do alho e da verdura, que ensoparam no molho. Comeram o cordeiro pascal em pé, reclinados ape nas um pouco aos encostos dos assentos. Jesus partiu também um dos pães ázimos, recobrindo uma parte; o resto distribuiu. Comeram todos então os respectivos bolos. Trouxeram ainda um cálice de vinho, mas Jesus não bebeu mais. Disse: Tomai este vinho e reparti-o entre vós, pois não beberei mais vinho, até chegar o reino de Deus. Tendo bebido dois a dois, cantaram e em seguida Jesus ainda rezou e ensinou; finalmente todos lavaram as mãos. Só então se deitaram nos assentos. Tudo que precedeu, foi feito muito depressa, ficando

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os convivas em pé; somente ao fim se encostaram um pouco aos assentos. O Senhor trinchara também outro cordeiro, que foi depois levado para as santas mulheres, a um dos edifícios laterais do pátio, onde tomaram a ceia. Comeram ainda ervas e alface com molho. Jesus estava extraordinariamente amável e sereno; nunca o tinha visto assim. Disse também aos Apóstolos que esquecessem tudo que os pudesse angustiar. A SS. Virgem, à mesa das mulheres, estava também muito serena. Comoveu-me profundamente ver como se virava com tanta simplicidade, quando as outras mulheres se lhe aproximavam, puxando-a pelo véu, para lhe falarem. A princípio Jesus conversou muito amavelmente com os Apóstolos, enquanto ceavam; mas depois se tornou mais sério e triste. "Um de vós me atraiçoará, disse, cuja mão está comigo à mesma mesa." Jesus serviu alface, de que havia só um prato, àqueles que lhe estavam ao lado; encarregou a Judas, que lhe ficava quase em frente, de distribuí-Ia pelo outro lado. Os Apóstolos assustaram-se muito, quando Jesus falou do traidor, dizendo: "Um que está comigo à mesma mesa", ou "que mete a mão no mesmo prato comigo", o que quer dizer: "Um dos doze que comigo comem e bebem, um daqueles com os quais parto o meu pão." Com essas palavras não indicou Judas aos outros; pois - "meter a mão no mesmo prato" - era uma alocução geral, indicando relações da maior intimidade. Contudo, quis também dar um aviso a Judas, que no mesmo momento de fato meteu com o Salvador a mão no mesmo prato, para distribuir alface. Jesus disse ainda: "O Filho do Homem vai certamente para a morte, como está escrito a respeito dele, mas ai do homem por quem será traído! Melhor fora nunca haver nascido.” Os Apóstolos ficaram muito perturbados e perguntaram um após outro: "Senhor, sou eu?" pois todos bem sabiam que nenhum compre-endera o sentido daquelas palavras. Pedro inclinou-se para João, por detrás de Jesus e fez-lhe um sinal, para perguntar ao Senhor quem era; pois tendo sido censurado tantas vezes por Jesus, receava que se referisse a ele. Ora, João estava deitado à direita do Senhor e, como todos comiam com a mão direita, encostando-se sobre o braço esquerdo, estava ele com a cabeça perto do peito de Jesus. Aproximou mais a cabeça do peito do Mestre e perguntou-lhe: Senhor, quem é? Então lhe foi revelado que o Senhor se referia a Judas. Não vi Jesus pronunciar as palavras: "É aquele a quem dou o bocado de pão molhado"; não sei se o disse muito baixo a João; este, porém, o percebeu, quando Jesus molhou o pão envolvido em alface e afetuosamente o ofereceu a Judas, que justamente nesse momento perguntava também: "Senhor, sou eu?" Jesus olhou-o com muito amor e deu-lhe uma resposta concebida em termos gerais. Era entre os Judeus sinal de amizade e intimidade; Jesus fê-Io muito afetuosamente, para exortá-Io, sem o comprometer perante os outros. Judas, porém, estava com o coração

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cheio de raiva. Vi, durante toda a ceia, uma pequena figura hedionda sentada aos seus pés, a qual algumas vezes lhe subiu até o coração. Não percebi se João repetiu a Pedro o que ouvira de Jesus; mas vi que o sossegou com um olhar. 6. O Lava-pés Levantaram-se da mesa e, enquanto mudavam e arranjavam as vestes, como costumavam fazer antes da oração solene, entrou o mordomo, com dois criados, para levar a mesa, tirá-Ia do meio dos assentos que a cercavam e pô-Ia ao lado. Tendo feito isso, recebeu ordem de Jesus para trazer água ao vestíbulo e saiu da sala, com os dois criados. Jesus, em pé no meio dos Apóstolos, falou-Ihes muito tempo em tom solene. Mas tenho até agora visto e ouvido tantas coisas, que não é possível relatar com exatidão a matéria de todos os discursos. Lembro-me que falou do seu reino, de sua ida para o Pai, prometendo deixar-Ihes tudo o que possuía, etc. Também pregou sobre a penitência, exame e confissão das faltas, arrependimento e purificação. Tive a impressão de que essa instrução se relacionava com o lava-pés e vi também que todos conheceram os seus pecados e se arrependeram, com exceção de Judas. Esse discurso foi longo e solene. Tendo terminado, Jesus mandou João e Tiago o Menor trazerem a água do vestíbulo, ordenando aos Apóstolos que colocassem os assentos em semicírculo, Ele próprio foi ao vestíbulo, despiu o manto e arregaçando a túnica, cingiu-se com um pano de linho, cuja extremidade mais longa pendia para baixo. Durante esse tempo tiveram os Apóstolos uma discussão, sobre qual deles devia ter o primeiro lugar; como o Senhor lhes anunciara claramente que os ia deixar e que o seu reino estava perto, surgiu de novo entre eles a opinião de que Jesus tinha aspirações secretas, um triunfo terrestre, que se realizaria no último momento. Jesus, que estava no vestíbulo, deu ordem a João para tomar uma bacia e a Tiago o Menor para trazer um odre cheio de água, transportando-o diante do peito, de modo que o bocal pendesse sobre o braço. Depois de ter derramado água do odre na bacia, mandou que os dois O seguissem à sala, onde o mordomo tinha posto no meio outra bacia maior, vazia. Entrando pela porta da sala, de forma humilde, Jesus censurou os Apóstolos em poucas palavras, por causa da discussão havida antes entre eles, dizendo, entre outras coisas, que Ele mesmo queria servirlhes de criado, que tomassem os assentos, para que lhes lavasse os pés. Então se sentaram, na mesma ordem em que foram colocados à mesa, tendo sido os assentos dispostos em semicírculo. Jesus, indo de um a outro, derramou-Ihes sobre os pés água da bacia, que João sucessivamente colocava sob os pés

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de cada um. Depois tomava o Mestre a extremidade da toalha de linho, com que estava cingido e enxugava-lhes os pés com ambas as mãos. Em seguida se aproximava, com Tiago, do Apóstolo seguinte. João esvaziava de cada vez a água usada, na grande bacia que estava no meio da sala e Jesus enchia de novo a bacia, com água do odre que Tiago segurava, derramando-a sobre os pés do Apóstolo e enxugando-lhos. O Senhor, que durante toda a ceia pascal se mostrara singularmente afetuoso, desempenhou-se também desta humilde função com o mais tocante amor. Não o fazia como uma cerimônia, mas como ato santo de caridade, exprimindo nele todo o seu amor. Quando chegou a Pedro, este quis recusar, dizendo: "Senhor, Vós me quereis lavar os pés?". Disse, porém, o Senhor: "Agora não entendes o que faço, mas entendê-lo-ás no futuro." Pareceu-me que lhe disse em particular: "Simão, tens merecido aprender de meu Pai quem sou eu, donde venho e para onde vou; só tu o tens conhecido e confessado; por isso, construirei sobre ti a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. O meu poder há de ficar também com os teus sucessores, até o fim do mundo." Jesus indicou-o aos outros, dizendolhes que Pedro devia substituí-Io na administração e no governo da Igreja, quando Ele tivesse saído deste mundo. Pedro, porém, disse: "Vós não me lavareis jamais os pés." O Senhor respondeu-lhe: "Se eu não tos lavar, não terás parte em mim." Então lhe disse Pedro: "Senhor, não me lavareis somente os pés, mas também as mãos e a cabeça." Jesus respondeu: "Quem foi lavado, é puro no mais; não é preciso lavar senão os pés. Vós também estais limpos, mas não todos." Com estas palavras referiu-se a Judas. Jesus, ensinando sobre o lava-pés, disse que era uma purificação das faltas quotidianas, porque os pés, caminhando descuidosamente na terra, se sujavam continuamente. Esse banho dos pés era espiritual e uma espécie de absolvição. Pedro, porém, viu nele apenas uma humilhação muito grande para o Mestre; não sabia que Jesus, para salvá-lo e aos outros homens, se humilharia na manhã seguinte até à morte ignominiosa da Cruz. Quando Jesus lavou os pés de Judas, mostrou-lhe uma afeição comovedora; aproximou o rosto dos pés do Apóstolo infiel, disse-lhe muito baixo que se arrependesse, pois que já por um ano pensava em tornar-se infiel e traidor. Judas, porém, parecia não querer perceber e falava com João. Pedro irritou-se com isso e disse-lhe: "Judas, o Mestre fala-te." Então disse Judas algumas palavras vagas e evasivas a Jesus, como: "Senhor, tal coisa nunca farei.” Os outros não perceberam as palavras que Jesus dissera a Judas, pois falara baixo e eles não prestaram atenção; estavam ocupados em calçar as sandálias. Nada, em toda a Paixão, afligiu tão profundamente o Senhor como a traição de Judas. Jesus lavou depois

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ainda os pés de João e Tiago. Primeiro, se sentou Tiago e Pedro segurou o odre de água, depois se sentou João e Tiago segurou a bacia. Jesus ensinou ainda sobre a humildade, dizendo que aquele que servia aos outros, era o maior de todos e que dali em diante deviam lavar humildemente os pés uns aos outros; tocou ainda na discussão sobre qual deles havia de ser o maior, dizendo muitas coisas que se encontram também no Evangelho. "Sabeis o que vos fiz? Vós me chamais Mestre e Senhor e dizeis bem, porque o sou. Se eu, sendo vosso Senhor'e Mestre, vos lavei os pés, logo deveis também lavar os pés uns aos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu fiz, assim façais vós também. Em verdade, em verdade, vos digo: não é o servo maior do que o seu Senhor, nem o enviado é maior do que aquele que o enviou. Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sereis se também as praticardes. Não digo isto de todos vós; sei os que tenho escolhido; mas é necessário que se cumpra o que diz a Escritura: "O que come o pão comigo, levantará contra mim o calcanhar." Desde agora vos digo, antes que suceda; para que, quando suceder, creiais que sou eu. Em verdade, em verdade vos digo: O que recebe aquele que eu enviar, a mim me recebe; e o que me recebe a mim, recebe Aquele que me enviou." (Jo. 13, 12 - 20). Jesus vestiu de novo as vestes. Os Apóstolos desenrolaram também as vestes, que antes tinham arregaçado, para comer o cordeiro pascal. 7. Instituição da Sagrada Eucaristia Por ordem do Senhor, o mordomo pusera novamente a mesa e colocara-a um pouco mais alto e no meio, coberto de um tapete, sobre o qual estendera uma toalha vermelha e em cima desta, outra branca, bordada a crivo. Por baixo da mesa pôs um jarro de água e outro de vinho. Pedro e João, indo à parte da sala onde era o fomo do Cordeiro pascal, buscaram o cálice que haviam trazido da casa de Seráfia. Transportaram-no solenemente, dentro do invólucro; eu tinha a impressão de que carregavam um Tabernáculo. Colocaram-no sobre a mesa, diante de Jesus. Havia também um prato. oval, com três pães ázimos, brancos e delgados, marcados com sulcos regulares; eram por estes divididos em três partes, no sentido da largura e no duplo de partes da largura, no sentido do comprimento. Os pães estavam cobertos. Jesus já Ihes fizera ligeiras incisões, durante a ceia pascal, para partí-Ios mais facilmente e pusera por baixo da toalha a metade do pão partido no banquete pascal. Estavam também sobre a mesa um cântaro de água e outro de vinho, como também três vasos, um com óleo grosso, outro com azeite, o terceiro vazio e mais uma espátula.

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Desde os antigos tempos reinava o costume de partir o pão e beber do mesmo cálice no fim do banquete; era sinal de fratemidade e amor, usado por ocasião de boa vinda e despedida. Creio que há alguma coisa a este respeito também na Escritura Sagrada. Jesus, porém, elevou esse uso à dignidade do Santíssimo Sacramento. Até então tinha sido somente um rito simbólico e figurativo. Pela traição de Judas foi levado ao tribunal também a acusação de ter Jesus juntado alguma coisa nova às cerimônias da Páscoa; Nicodemos, porém, provou com trechos da Escritura Sagrada, que esse uso de despedida era muito antigo. O lugar de Jesus era entre Pedro e João. As portas estavam fechadas; tudb se fez com solenidade misteriosa. Depois de se haver tirado do cálice o invólucro e levado à parte separada da sala, rezou Jesus, falando num tom solene. Vi que Ihes explicava todas as santas cerimônias da última ceia; era como se um sacerdote ensinasse aos outros a santa Missa. Em seguida tirou da bandeja em que estavam os vasos, um tabuleiro corrediço, tomou o pano de linho que cobria o cálice e estendeu-o sobre o tabuleiro. Depois o vi tirar do cálice uma patena redonda e pô-Ia sobre o tabuleiro coberto. Tirou então os pães que estavam ao lado, num prato coberto com um pano de linho e colocou-os na patena, diante de si. Os pães, que tinham a forma de um quadrilátero oblongo, excediam dos dois lados a patena, cuja borda, porém, permanecia visível na largu ra. Em seguida puxou para si o cálice, tirou dele um copinho, colocando também os seis copos pequenos à direita e esquerda do cálice. Depois benzeu o pão ázimo e, creio, também os óleos, que estavam ao lado, levantou a patena, em que estavam os pães ázimos, com ambas as mãos, olhou para o céu, rezou e ofereceu-o a Deus, pôs a patena no tabuleiro e cobriu-a. Depois tomou o cálice, mandou Pedro derramar vinho e João derramar água, que antes benzera e juntou ainda um pouco de água, que colheu com a colherzinha. Benzeu o cálice, levantou-o, ofereceu-o, rezando e colocou-o no tabuleiro. Mandou a Pedro e João derramarem-Lhe água sobre as mãos, por cima do prato em que anteriormente foram postos o pães ázimos e, tiran-do a colherzinha do pé do cálice, apanhou um pouco da água que lhe correra sobre as mãos e espargiu-a sobre as mãos dos dois Apóstolos. Depois passou o prato em redor da mesa e todos lavaram nele as mãos. Não me lembro bem se foi essa a ordem exata das cerimônias; mas tudo isso, que me lembrou muito o santo Sacrifício da Missa, comoveu-me profundamente. Durante esse santo ato tomou-se Jesus cada vez mais afetuoso; disse-Ihes que agora queria dar-Ihes tudo que tinha: sua própria pessoa. Era como se derramasse sobre eles todo o seu amor e vi-O tomar-se transparente; parecia uma sombra luminosa. Orando com esse amor, partiu o pão nas partes marcadas, as quais amontoou sobre a patena, em forma de pirâmide. Do primeiro bocado

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quebrou um pedacinho com a ponta dos dedos e deixou-o cair no cálice. No momento em que o fez, tive a impressão de que a SS. Virgem recebeu o Santo Sacramento espiritualmente, apesar de não estar ali presente. Não sei agora como o vi; mas pensei vê-Ia entrar pela porta, sem tocar no chão e aproximar-se de Jesus, do lado desocupado da mesa e receber o santo Sacramento em frente d'Ele; depois não a vi mais. Jesus dissera-lhe de manhã, em Betânia, que celebraria a Páscoa junto com ela, marcando-lhe a hora em que, recolhida em oração, devia recebê-Ia espiritualmente. O Senhor rezou ainda e ensinou; todas as palavras lhe saíram da boca como fogo e luz e entraram nos Apóstolos, com exceção de Judas. Depois tomou a patena com os bocados de pão (não sei, mais se a tinha posto sobre o cálice) e disse: "Tomai e comei, isto é o meu corpo, que será entregue por vós." Nisso estendeu a mão direita como para benzer e, enquanto assim fazia, saiu d’Ele um esplendor, suas palavras eram luminosas e também o era o pão que se precipitou na boca dos Apóstolos, como um corpo resplandecente; era como se Ele mesmo entrasse neles. Vi-os todos penetrados de luz; só Judas vi escuro. O Senhor deu o Sacramento primeiro a Pedro, depois a João; em seguida fez sinal a Judas para aproximar-se; foi o terceiro, a quem deu o SS. Sacramento. Mas a palavra do Cristo parecia recuar da boca do traidor. Fiquei tão horrorizada, que não posso exprimir o que senti nesse momento. Jesus, porém, disse-lhe: "Faze já o que queres fazer" e continuou a dar o Santo Sacramento aos Apóstolos, que se aproximaram dois a dois, segurando alternadamente, em frente um do outro, um pequeno pano engomado, bordado nos lados, o qual cobria o cálice. Jesus levantou o cálice pelas duas argolas até a altura do rosto e pronunciou as palavras da consagração sobre ele. Nesse ato ficou transfigurado e como transparente, parecendo passar tudo o que Ihes deu. Fez Pedro e João beberem do cálice, que segurava nas mãos, colocando-o depois na mesa; João passou com a colherzinha o SS. Sangue do cálice para os copinhos, que Pedro ofereceu aos Apóstolos, os quais beberam dois a dois de um copo. Creio, mas não tenho absoluta certeza, que Judas também participou do cálice; não voltou, porém, ao seu lugar mas saiu imediatamente do Cenáculo. Como Jesus lhe tivesse feito um sinal, pensaram os outros que o tivesse encarregado de algum negócio. Retirou-se sem ter rezado e feito a ação de graças, por onde se vê como é mau retirar-se sem ação de graças, depois de tomar o pão quotidiano ou o Pão Eterno. Durante toda a refeição, eu tinha visto ao pé de Judas a figura de um pequeno monstro vermelho e hediondo, cujo pé era como um osso descarnado e que às vezes lhe subia até o coração. Quando saiu da casa, vi três demônios cercarem-no: um entrou-lhe na boca, outro empurrou-o para a frente e o terceiro

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correu-lhe à frente. Era noite e eles pareciam alumiá-lo; Judas corria como um louco. O Senhor deitou o resto do Santíssimo Sangue, que ainda ficara no fundo do cálice, no copinho que antes estivera dentro do cálice; pondo depois os dedos por cima do cálice, mandou Pedro e João derramarem água e vinho sobre eles. Feito isso, fê-los beber ambos do cálice e o resto vazou-os nos outros copinhos, distribuindo-os pelos outros Apóstolos. Em seguida Jesus enxugou o cálice, meteu nele o pequeno copo, contendo o resto do Santíssimo Sangue, colocou em cima a patena, com os restantes pães ázimos consagrados pôs a tampa e cobriu o cálice de novo com o pano, colocando-o depois sobre a bandeja, entre os seis copinhos. Vi os Apóstolos comungarem dos restos do Santíssimo Sacramento, depois da ressurreição de Jesus. Não me lembro de ter visto o Senhor comer as espécies consagradas, a não ser que eu não reparasse. Dando o Santíssimo Sacramento, deu-se de modo que parecia sair de si mesmo e derramar-se nos Apóstolos, numa efusão de amor misericordioso. Não sei como posso exprimí-lo. Também não vi Melquisedec, quando ofereceu pão e vinho, comê-lo e bebê-lo. Soube também porque os sacerdotes o consomem, apesar de Jesus não o ter feito. Dizendo isso, Catharina Emmerich virou de repente a cabeça, como para escutar; recebeu uma explicação sobre esse ponto, da qual pôde comunicar somente o seguinte: "Se fosse administrado pelos Anjos, estes não o teriam recebido; se, porém, os sacerdotes não o recebes sem, já se teria perdido há muito; por isso é que se conserva.” Todas as cerimônias, durante a instituição do SS. Sacramento, foram feitas por Jesus com muita calma e solenidade, para ao mesmo tempo ensinar e instruir os Apóstolos, os quais vi depois tomarem notas de certas coisas, nos pequenos rolos que tinham consigo. Todos os movi mentos de Jesus, para a direita e para a esquerda, eram solenes, como sempre que estava rezando. Tudo mostrava em geral o santo Sacrifício da Missa. Durante a cerimônia e em outras ocasiões, vi também os Apóstolos se inclinarem uns diante dos outros ao aproximarem-se, como ainda fazem os sacerdotes de hoje. 8. Instruções secretas e consagrações Jesus deu ainda instruções secretas. Disse aos Apóstolos que continuassem a consagrar e administrar o SS. Sacramento, até o fim do mundo. Ensinou-Ihes as formas essenciais da administração e do uso do Sacramento e de que modo deviam gradualmente ensinar e publicar esse mistério; explicou-Ihes quando deviam receber o resto das espécies consagradas e dá-Io à SS. Virgem e que deviam consagrar também o SS. Sacramento, depois de Ihes ter enviado o

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Divino Consolador. Instruiu-os em seguida sobre o sacerdócio, sobre a preparação do Crisma e dos santos óleos e sobre a unção. Estavam ao lado do cálice três umas, duas das quais continham misturas de bálsamo e diversos óleos e algodão; as umas podiam ser postas uma em cima da outra. Jesus ensinou-lhes muitos mistérios, como se devia preparar o santo Crisma, a que partes do corpo se devia aplicar e em que ocasiões. Lembro-me, entre outras coisas, que mencionou um caso em que a sagrada Eucaristia não podia mais ser recebida; talvez se tenha referido à Extrema-Unção: mas as minhas lembranças a tal respeito não são muito cla ras. Falou ainda de diversas unções, inclusive a dos reis e disse que os reis sagrados com o Crisma, mesmo os injustos, possuíam uma força interna misteriosa, que não era dada aos outros. Derramou, pois, ungüento e óleo na uma vazia e misturou-os; não sei mais positivamente se foi nesse momento ou já por ocasião da consagração dos pães, que benzeu o óleo. Vi depois Jesus ungir a Pedro e João; já por ocasião da instituição do SS. Sacramento lhes derramara sobre as mãos a água que sobre as suas lhe correra e os fizera também beber do cálice que Ele mesmo segurava. Saindo do meio da mesa, um pouco para o lado, pousou as mãos primeiro sobre os ombros e depois sobre a cabeça de Pedro e João. Em seguida mandou que ficassem de mãos postas e colocassem os polegares em forma de cruz. Inclinaram-se os dois Apóstolos profundamente diante do Mestre (não sei ai estavam de joelhos). O Senhor ungiu-Ihes os polegares e indicadores com ungüento e fez-lhes com o mesmo também o sinal da cruz na cabeça. Disse-Ihes também que essa unção devia permanecer com eles até o fim do mundo. Tiago o Menor, André, Tiago o Maior e Bartolomeu receberam também ordens. Vi também o Senhor ajustar em forma de cruz, sobre o peito de Pedro, a faixa estreita de pano, que todos traziam ao pescoço; aos outros, porém, do ombro direito para debaixo do braço esquerdo. Não sei mais com certeza se isso se fez já por ocasião da instituição do SS. Sacramento ou só na hora da unção. Vi, porém, que Jesus lhes comunicou com essa unção uma coisa real e também sobrenatural, não sei como exprimí-Io em palavras. Disse-Ihes mais que, depois de terem recebido o Espírito Santo, deviam também consagrar pão e vinho e dar a unção aos outros Apóstolos. Nesse momento tive uma visão sobre Pedro e João que, no dia de Pentecostes, antes do grande batismo, impuseram as mãos aos outros Apóstolos, o que também fizeram, uma semana depois, a alguns outros discípulos. Vi também João, depois da ressurreição de Jesus, dar pela primeira vez o SS. Sacramento a Nossa Senhora. Esse acontecimento foi celebrado pelos Apóstolos com grande solenidade; a Igreja militante não tem mais essa festa, mas vejo-a celebrada ainda na Igreja triunfante. Nos primeiros

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dias depois de Pentecostes vi só Pedro e João consagrarem a santa Eucaristia, mais tarde a consagraram também os outros. O Senhor benzeu-Ihes também fogo, num vaso de bronze; esse fogo desde então ardeu sempre, até depois de longas ausências era guardado junto ao lugar onde se conservava o SS. Sacramento, numa parte do antigo fogão pascal; ali sempre o buscavam para as cerimônias religiosas. Tudo que Jesus fez por ocasião da instituição da sagrada Eucaristia e da unção dos Apóstolos, foi debaixo de grande segredo e era também ensinado só secretamente e tem se conservado, na sua essência, pela Igreja até os nossos tempos, aumentado, porém, sob a inspiração do Espírito Santo, conforme as necessidades. Os Apóstolos ajudaram na preparação e bênção do santo Crisma; quando Jesus os ungiu e lhes impôs as mãos, fez tudo com grande solenidade. Terminadas as santas cerimônias, o cálice, perto do qual estavam também os santos óleos, foi coberto com a capa e Pedro e João levaram assim o SS. Sacramento para o fundo da sala, separado do resto por uma cortina e ali era desde então o Santuário. O SS. Sacramento estava por cima do fogão pascal, não muito alto. José de Arimatéia e Nicodemos cuidavam do Santuário e do Cenáculo, na ausência dos Apóstolos. Jesus ensinou ainda por muito tempo e disse algumas orações com grande fervor. Parecia às vezes conversar com o Pai celeste, cheio de entusiasmo e amor. Os Apóstolos também ficaram penetrados de zelo e ardor e fizeram-lhe várias perguntas, às quais respondeu. Creio que tudo isso está escrito em grande parte na Escritura Sagrada. Durante esses discursos, disse Jesus algumas coisas a Pedro e João separadamente, as quais estes depois deviam comunicar aos outros Apóstolos, como complemento de instruções anteriores e estes aos outros discípulos e às santas mulheres, quando chegassem ao tempo de receberem tais conhecimentos. Pedro e João estavam sentados perto de Jesus. O Senhor teve também uma conversa particular com João, da qual me lembro agora apenas o prognóstico de que a vida deste Apóstolo seria mais longa que a dos outros; falou-lhe também de sete Igrejas, de coroas, Anjos e outras figuras simbólicas, com as quais designava, como me parece, certas épocas. Os outros Apóstolos sentiram, diante dessa confiança particular, um leve movimento de inveja. O Mestre falou também diversas vezes do traidor, dizendo o que naquela hora este estava fazendo; vi sempre Judas fazer o que o Senhor dizia. Como Pedro lhe afirmasse, com grande ardor, que havia de permanecer fiel, disse-lhe Jesus: "Simão, Simão, eis que Satanás vos reclama com instância, para vos joeirar como o trigo; mas eu roguei por ti, afim de que tua fé não desfaleça; e tu enfim, depois de convertido, confirma na fé teus irmãos." Como, porém, Jesus dissesse que onde iria, não poderiam seguí-Io, exclamou

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Pedro que o seguiria até a morte. Replicou Jesus: "Em verdade, antes que o galo cante duas vezes, tu me negarás três vezes," Quando lhes anunciou os tempos duros que viriam, per guntou-Ihes: "Quando vos enviei sem alforje, sem sapatos, faltou-Ihes porventura alguma coisa?" Responderam: "Não." Disse, porém, que daquela hora em diante, quem tivesse bolsa, a tomasse e também alforje e o que nada tivesse, vendesse a túnica e comprasse espada, pois que se devia cumprir a palavra: "E foi reputado por um dos iníquos". Tudo que fora escrito sobre Ele, devia cumprir-se então. Os Apóstolos entenderam-no no sentido natural e Pedro mostrou Lhe duas espadas curtas e largas, como cutelos. Jesus disse: "Basta, vamo-nos daqui." Rezaram então um cântico; a mesa foi posta ao lado e dirigiram-se todos ao vestíbulo. Ali se aproximaram a mãe de Jesus, Maria de Cleofas e Madalena, que lhe pediram instantemente que não fosse ao monte das Oliveiras; pois se propagara o boato de que queriam apoderar-se dEle. Mas Jesus consolou-as com poucas palavras, continuando apressadamente o caminho; eram cerca de 9 horas da noite. Descendo a grandes passos pelo caminho pelo qual Pedro e João tinham vindo ao Cenáculo, dirigiram-se ao monte das Oliveiras. 9. Oração solene de despedida de Jesus Não podemos deixar de inserir aqui as últimas palavras e ensinamentos tão profundos, que Jesus, no fim da ceia, dirigiu aos Apóstolos, com tanto amor e carinho e que nos foram transmitidos por S. João no seu Evangelho, caps 14 a 17. Jesus disse: "Não se perturbe o vosso coração. Credes em Deus, crede também em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas; se assim não fora, eu vo-lo teria dito: pois vou a aparelhar-vos o lugar. E depois que eu for e vos aparelhar o lugar, virei outra vez, e tomar-vos-ei comigo, para que onde eu estiver, estejais vós também, para onde eu vou, sabeis vós e sabeis também o caminho." Disse-lhe Tomé: "Senhor, não sabemos para onde vais, e como podemos saber o caminho?" Respondeu-lhe Jesus: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vai ao Pai senão por mim. Se me conhecêsseis a mim, também certamente havíeis de conhecer meu Pai; mas conhecê-Lo-eis bem cedo e já o tendes visto." Disse-lhe Filipe: "Senhor, mostrai-nos o Pai e isso nos basta." Respondeu-lhe Jesus: "Há tanto tempo que estou convosco e ainda não me tendes conhecido? Filipe, quem vê a mim, vê também ao Pai. Como dizes logo: "Mostra-nos o Pai?" Não credes que estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que vos digo, não as digo de mim mesmo, mas o Pai, que está em mim, é que faz as obras. Não credes que estou

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no Pai e que o Pai está em mim? Crede ao menos por causa das mesmas obras. Em verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim, fará também as obras que faço e fará outras ainda maiores; porque vou para o Pai. E tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, eu vo-lo farei, para que o Pai seja glorificado no Filho. Se me amais, guardai os meus mandamentos. E rogai ao Pai e Ele vos dará outro Consolador, para que fique eternamente convosco, o Espírito da verdade, a quem o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece; mas vós o conheceis, porque Ele ficará convosco e estará em vós. Não vos deixarei órfãos; virei a vós. Resta ainda um pouco, depois já o mundo não me verá; mas ver-me-eis vós, porque eu vivo e vós vivereis. Naquele dia conhecereis que estou em meu Pai e vós em mim e eu em vós. Aquele que tem os meus mandamentos e que os guarda, esse é o que me ama. E aquele que me ama, será amado de meu Pai e eu o amarei também e me manifestarei a ele.” Disse-lhe Judas, não o Iscariotes: "Senhor, donde procede que te hás de manifestar a nós e não ao mundo?" Respondeu-lhe Jesus: "Se alguém me ama, guardará a minha palavra e meu Pai o amará e viremos a ele e faremos nele morada. O que não me ama, não guarda as minhas palavras. E a palavra que tendes ouvido, não é minha, mas, sim, do Pai que me enviou. Eu vos disse estas coisas, permanecendo convosco; mas o Consolador, que é o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar tudo o que vos tenho dito. A paz vos deixo, a minha paz vos dou; eu não vo-la dou como a dá o mundo. Não se turbe o vosso coração, nem fique sobressaltado. Já tendes ouvido que eu vos disse: Eu vou e venho a vós. Se me amardes, certamente haveis de alegrar-vos, que vou para junto do Pai, porque o Pai é maior do que Eu. Eu vo-lo disse agora, antes que suceda, para que, quando suceder, o creiais. Já não falarei muito convosco, porque vem o príncipe deste mundo e ele não tem em mim coisa alguma. Mas, para que o mundo conheça que amo o Pai e que faço como me ordena. Levantai-vos, vamo-nos daqui. Eu sou a verdadeira videira e meu Pai é o agricultor. Todo ramo que não der fruto em mim, Ele o cortará e todos os que derem fruto, limpá-los-á, para que o dêem mais abundante. Vós já estais puros, em virtude da palavra que eu vos disse. Permanecei em mim e eu permanecerei em vós. Como o ramo da videira não pode de si mesmo dar fruto, se não permanecer na videira, assim nem vós podereis dar, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira, vós sois os ramos; o que permanece em mim e em quem eu permaneço, dá muito fruto; porque vós sem mim não podeis fazer nada. Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora como o ramo e secará e enfeixá-Io-ão e lançá-Io-ão ao fogo e ali arderá. Se permanecerdes em mim e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis tudo o que quiserdes e ser-vos-á feito. Nisso é

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glorificado meu Pai, em que vós deis muito fruto e em que sejais meus discípulos. Como meu Pai me amou, assim vos amei. Permanecei no meu amor. Se guardardes os meus preceitos, permanecereis no meu amor, assim como também eu guardei os preceitos de meu Pai e permaneço no seu amor. Disse-vos estas coisas, para que o minha alegria esteja em vós e que a vossa alegria seja completa. O meu preceito é este: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que este de dar a própria vida pelos amigos. Vós sereis meus amigos, se fizerdes o que vos mando. Já vos não chamarei servos; porque o servo não sabe o que faz o seu senhor. Mas chamei-vos amigos, porque vos revelei tudo quanto ouvi de meu Pai. Não fostes vós que me escolhestes a mim, mas fui eu que vos escolhi a vós e vos constitui, para que vades e deis fruto e para que o vosso fruto permaneça, para que tudo quanto pedirdes a meu Pai, em meu nome, Ele vo-lo conceda. O que eu vos mando, é que vos ameis uns aos outros. Se o mundo vos odeia, sabei que primeiro do que a vós, me odiou a mim. Se fôsseis do mundo, o mundo vos amaria como sendo seus; mas porque não sois do mundo, mas do mundo que vos escolhi, por isso é que o mundo vos odeia. Lembrai-vos da minha palavra que eu vos disse: Não é o servo maior do que o seu senhor. Se me perseguiram a mim, também vos hão de perseguir a vós. Se guardaram a minha palavra, também hão de guardar a vossa. Mas vos farão tudo isto por causa de meu nome, porque não conhecem aquele que me enviou. Se eu não viesse e não Ihes tivesse falado, não teriam pecado; mas agora não há desculpa para o seu peca do. Aquele que me odeia, odeia também a meu Pai. Se eu não tivesse feito entre eles tais obras, como nenhum outro fez, não haveria da parte deles pecado; mas agora não somente as viram, mas ainda me odiaram, tanto a mim como a meu Pai. Mas é para se cumprir a palavra que está escrita na lei (Sal. 34,19; 68,5): "Eles me odiaram sem motivo". Quando, porém, vier o Consolador, o Espírito da verdade, que procede do Pai, que eu vos enviarei da parte do Pai, Ele dará testemunho de mim; e também vós dareis testemunho, porque estais comigo desde o princípio. Eu vos disse estas coisas, para que não vos escandalizeis. Eles vos lançarão fora das sinagogas e está a chegar o tempo em que todo o que vos matar, julgará que nisso faz serviço a Deus. E assim vos tratarão, porque não conhecem o Pai, nem a mim. Ora, eu vos disse estas coisas, para que, quando chegar esse tempo, vos lembreis de que eu vo-las disse. Não vo-las disse, porém, desde o princípio, porque estava convosco. E agora vou para aquele que me enviou; e nenhum de vós pergunta: Para onde vais? Antes, porque eu vos disse estas coisas, se apoderou do vosso coração a tristeza. Mas eu vos digo a verdade; a vós vos convém que eu vá porque, se eu não for, não virá a vós o Consolador; mas, se eu for, vo-Lo enviarei. E Ele, quando vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo. Sim, do pecado, porque não creram

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em mim. E dajustiça, porque vou para o Pai e não me vereis mais. E do juízo, enfim, porque o príncipe deste mundo já está julgado e condenado. Tenho ainda muitas coisas a vos dizer, mas não as podeis suportar agora. Quando vier, porém, o Espírito da verdade, Ele vos ensinará todas as verdades, porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo que tiver ouvido e anunciar-vos-á as coisas que estão para vir. Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar. Um pouco e já me não vereis; e outra vez um pouco e verme-eis; porque vou para o Pai". Disseram então alguns discípulos uns para os outros. "Que vem a ser isto que Ele nos diz: "Um pouco e já me não vereis e outra vez um pouco e ver-me-eis, porque vou para o Pai?" E diziam: "Que vem a ser isto, que Ele nos diz: um pouco... Não sabemos o que quer dizer." E entendeu Jesus que lho queriam perguntar e disse-lhes: "Vós perguntais uns aos outros o que é que vos quis significar, quando disse: Um pouco e já me não vereis e outra vez um pouco e ver-me-eis. Em verdade, em verdade vos digo que haveis de chorar e gemer e que o mundo se há de alegrar e que haveis de estar tristes, mas que a vossa tristeza se há de converter em gozo. Quando uma mulher dá à luz, está em tristeza, porque é chegada a sua hora; mas, depois que lhe nasceu um filho, já se não lembra do aperto, pelo gozo que tem, de haver nascido ao mundo um homem. Assim também vós outros sem dúvida estais agora tristes, mas hei de ver-vos de novo e o vosso coração ficará cheio de alegria e esta ninguém vo-la tirará. E naquele dia nada mais me perguntareis. Em verdade, em verdade vos digo: se pedirdes ao meu Pai alguma coisa em meu nome, Ele vo-la há de dar. Até agora não pedistes nada em meu nome. Pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja completa. Tenho vos dito estas coisas debaixo de parábolas. Está chegado o tempo, em que já não vos hei de falar por parábolas, mas abertamente vos falarei do Pai. Naquele dia pedireis em meu nome e não vos digo que hei de rogar ao Pai por vós. Porque o mesmo Pai vos ama, porque vós me amastes e, crestes que saí de Deus. Eu saí do Pai e vim ao mundo; outra vez deixo o mundo e torno para o Pai". Disseram-lhe os discípulos: "Eis que agora nos falas abertamente e não usas de parábola alguma; agora conhecemos que sabeis tudo e que não é necessário fazer-te perguntas; nisto, cremos que saíste de Deus." Respondeu-Ihes Jesus: "Credes agora? Eis que aí vem e já é chegada a hora em que sejais espalhados, cada um para seu lado e que me deixeis só; mas não estou só, porque o Pai está comigo. Tenho vos dito estas coisas, para que tenhais paz em mim. Haveis de ter aflições no mundo; mas tende confiança, eu venci o mundo.” Assim falou Jesus e, levantando os olhos ao céu, disse: -"Pai, é chegada a hora, glorifica a teu Filho, para que teu Filho te glorifique a ti; assim como tu lhe deste poder sobre todos os homens, afim de que Ele dê a vida eterna a todos que lhe deste.

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A vida eterna, porém, consiste em que conheçam por um só verdadeiro Deus a ti e a Jesus Cristo, que enviaste. Glorifiquei-te sobre a terra; acabei a obra de que me encarregaste. Tu, pois, agora, Pai, me glorifica a mim em ti mesmo, com aquela glória que tive em ti, antes que houvesse mundo. Manifestei o teu nome aos homens que me deste do mundo. Eles eram teus e mos deste e eles guardaram a tua palavra. Agora conheceram eles que todas as coisas que me deste, vêm de ti. Porque Ihes dei as palavras que me deste; e eles as receberam e conheceram verdadeiramente que saí de ti e creram que me enviaste. Por eles é que rogo; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus e todas as minhas coisas são tuas e todas as tuas coisas são minhas; e neles sou glorificado. E não estou mais no mundo, mas eles estão no mundo e eu vou para junto de ti. Pai santo, guarda em teu nome aqueles que me deste, para que sejam um, assim como também nós. Quando eu estava com eles, guardava-os em teu nome. Conservei os que me deste e nenhum destes se perdeu, mas somente o que era filho da perdição, para se cumprir a Escritura. Mas agora vou para junto de ti e digo estas coisas, estando ainda no mundo, para que eles tenham em si mesmos a plenitude da minha alegria. Dei-Ihes a tua palavra mas o mundo os odeia, porque não são do mundo, como também eu não sou do mundo. Não peço que os tires do mundo, mas, sim, que os guardes do mal. Eles não são do mundo, como eu também não sou do mundo. Santifica-os na verdade. A tua palavra é a verdade. Assim como me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. E santifico-me a mim por eles, para que também sejam santificados pela verdade. E não rogo somente por eles, mas rogo também por aqueles que hão de crer em mim por meio das suas palavras; para que sejam todos um, como tu, Pai, o és em mim e eu em ti, para que também eles sejam um em nós e creia o mundo que me enviaste. Dei-Ihes a glória que me havias dado, para que sejam um, como nós também somos um. Eu estou neles e tu estás em mim, para que eles sejam consumados na unidade e para que o mundo conheça que me enviaste e que os amaste, como amaste também a mim. Pai, a minha vontade é que, onde eu estiver, estejam também comigo aqueles que me deste, para verem a minha glória, que me deste; porque me amaste antes da criação do mundo. Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheci e estes conheceram que me enviaste. E eu Ihes fiz conhecer o teu nome e lho farei ainda conhecer, afim de que o mesmo amor com que me amaste; esteja neles e eu neles.” 3 Jesus no Monte das Oliveiras

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1. Jesus, com os Apóstolos, a caminho do horto de Getsêmani 2. Jesus atribulado pelos horrores do pecado 3. Tentações da parte de Satanás 4. Jesus volta para junto dos três, Apóstolos 5. Anjos mostram a Jesus a enormidade dos seus sofrimentos e consolam-nO 6. Mais imagens de pecados que atormentam o Senhor 7. Visões consoladoras; Anjos confortam Jesus 8. Judas e sua tropa 9. A prisão do Senhor Jesus no Monte das Oliveiras 1. Jesus, com os Apóstolos, a caminho do horto de Getsêmani Quando Jesus, depois da instituição do SS. Sacramento, saiu do Cenáculo com os onze Apóstolos, já tinha a alma oprimida de aflição e crescente tristeza. Conduziu os onze, por um desvio, ao vale de Josafá, dirigindo-se ao monte das Oliveiras. Ao chegarem ao portão, vi a lua, ainda não inteiramente cheia, levantar-se por cima da montanha. Andando com os Apóstolos pelo vale, disse-Ihes o Senhor que lá voltaria um dia, para julgar o mundo, mas não pobre e sem poder como hoje, e que então muitos, com grande medo, exclamariam: "Montes, cobri-nos." Os discípulos não O compreenderam, pensando, como muitas vezes nessa noite, que a fraqueza e o esgotamento os faziam delirar. Ora andavam, ora paravam, conversando com o Mestre. Disse-lhes também Jesus: "Vós todos haveis de escandalizar-vos em mim esta noite; pois está escrito: ''Tirarei o pastor, e as ovelhas serão dispersas. - Mas, quando tiver ressuscitado, preceder-vos-ei na Galiléia". Os Apóstolos estavam ainda cheios de entusiasmo e amor, pela recepção do SS. Sacramento e pelas palavras solenes e afetuosas de Jesus. Comprimiam-se-Lhe em tomo, exprimindo-Lhe de vários modos o seu amor e protestando que não O abandonariam nunca. Mas, como Jesus continuasse a falar no mesmo sentido, disse-lhe Pedro: "E, se todos se escandalizarem por vossa causa, eu nunca me escandalizarei." Respondeu-lhe o Senhor: "Em verdade te digo, tu mesmo três vezes me negarás esta noite, antes do galo cantar." Pedro, porém, não quis conformar-se de modo algum e disse: "Mesmo que tivesse de morrer convosco, não vos havia de negar." Assim falaram também todos os outros. Continuavam andando e parando altemadamente e a tristeza de Jesus aumentava cada vez mais. Queriam os Apóstolos consolá-Lo de modo inteiramente humano, assegurando-lhe que não aconteceria tal. Nesses vãos esforços se cansaram, começaram a duvidar e veio-Ihes a tentação.

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Atravessaram a torrente Cedron, não pela ponte, sobre a qual Jesus foi depois conduzido preso, mas por outra, porque tinham tomado um desvio. Getsêmani, situado no monte das Oliveiras, para onde se dirigiram, fica a meia hora certa do Cenáculo, pois do Cenáculo à porta que dápara o vale de Josafá,-se leva um quarto de hora e dali a Getsêmani outro tanto. Este lugar, no qual Jesus ensinou algumas vezes aos discípulos, passando ali a noite com eles nos últimos dias, consta de algumas casas de pousada, abertas e desocupadas e de um largo jardim, cercado de sebe, no qual há somente plantas ornamentais e árvores frutíferas. Os Apóstolos e diversas outras pessoas tinham a chave desse jardim, que era um lugar de recreio e de oração. Gente que não tinha jardim próprio, fazia às vezes festas e banquetes ali. Havia também vários caramanchões de folhagem espessa, num dos quais ficaram naquele dia oito Apóstolos e alguns outros discípulos, que se lhes juntaram mais tarde. O horto das Oliveiras é separado do Jardim de Getsêmani por um caminho e estendese mais para o alto do monte. É aberto, cercado apenas de um aterro e menor do que Getsêmani, um canto cheio de grutas e recantos, em que por toda a parte se vêem oliveiras. Um lado era mais bem tratado; havia nele assentos, bancos de relva bem cuidados e grutas espaçosas e sombrias. Quem quisesse, podia ali facilmente achar um lugar próprio para a oração e meditação. Era à parte mais sem cuidados que Jesus ia rezar. 2. Jesus atribulado pelos horrores do pecado Eram quase 9 horas da noite, quando Jesus chegou, com os discípulos, a Getsêmani. Ainda reinava a escuridão na terra, mas no céu a lua jáespargia a luz prateada. Jesus estava muito triste e anunciou-Ihes a aproximação do perigo. Os discípulos assustaram-se e Ele disse a oito dos companheiros que ficassem no Jardim de Getsêmani, num lugar onde havia um caramanchão. "Ficai aqui, disse, enquanto vou ao meu lugar rezar". Tomando consigo Pedro, João e Tiago o Maior, subiu mais para o alto e, cruzando um caminho, avançara, numa distância de alguns minutos, do horto das Oliveiras ao pé do monte. Ele estava numa indizível tristeza; pressentia a tribulação e tentação, que se aproximavam. João perguntou-lhe como podia agora estar tão abatido, quando sempre os tinha consolado. Então Jesus disse: "Minha alma está triste até a morte" e, olhando em redor de si, viu de todos os lados se aproximarem angústias e tentações, como nuvens cheias de figuras assustadoras. Foi nessa ocasião que disse aos Apóstolos: "Ficai aqui e vigiai comigo; orai, para não serdes surpreendidos pela tentação." Eles ficaram então ali; Jesus, porém, adiantou-se ainda mais; mas as horrorosas visões assaltavam-no de tal modo, que, cheio de angústia, desceu um pouco

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à esquerda dos três Apóstolos, escondendo-se debaixo de um grande rochedo, numa gruta de talvez 7 pés de profundidade; os Apóstolos ficaram em cima desse rochedo, numa espécie de cavidade. O chão da gruta era suavemente inclinado e as plantas pendentes do rochedo, que sobressaía em frente, formavam uma cortina diante da entrada, de maneira que quem estivesse dentro da gruta, não podia ser visto de fora. Quando Jesus se afastou dos discípulos, vi em redor dele um largo circulo de imagens horríveis, o qual se apertava mais e mais. Cresceu-lhe a tristeza e a tribulação e retirou-se tremendo para dentro da gruta, semelhante ao homem que, fugindo de uma repentina tempestade, procura abrigo para rezar, vi, porém, que as imagens assustadoras o perseguiram lá dentro da gruta, tomando-se cada vez mais distintas. A estreita caverna parecia encerrar o horrível espetáculo de todos os pecados cometidos, desde a primeira queda do homem, até ao fim dos séculos, como também todos os castigos. Foi ali, no monte das Oliveiras, que Adão e Eva, expulsos do Paraíso, pisaram primeiro a terra e foi nessa caverna que choraram e gemeram. Tive a clara impressão de que Jesus, entregando-se às dores da Paixão, que ia começar e sacrificando-se à justiça divina, em satisfação de todos os pecados do mundo, de certo modo retirou a sua divindade para o seio da SS. Trindade; impelido por amor infinito, quis entregar-se à fúria de todos os sofrimentos e angústias, na sua humanidade puríssima e inocente, verdadeira e profundamente sensível, para expiação dos pecados do mundo, armado somente do amor do seu coração humano. Querendo satisfazer pela raiz e por todas as excrescências do pecado e da má concupiscência, tomou o misericordiosíssimo Jesus no coração a raiz de toda a expiação purificadora e de toda a dor santificante, por amor de nós, pecadores e, para satisfazer pelos pecados inumeráveis, deixou esse sofrimento infinito estender-se, como uma árvore de dores e penetrar-lhe com mil ramos todos os membros do corpo sagrado, todas as faculdades da alma santa. Entregue assim inteiramente à sua humanidade, implorando a Deus com tristeza e angústia indizíveis, prostrou-se por terra. Viu em inumeráveis imagens todos os pecados do mundo, com toda a sua atrocidade, tomou todos sobre si e ofereceu-se na sua oração, para dar satisfação à justiça do Pai Celestial, pagando com os sofrimentos toda essa dívida da humanidade para com Deus. Satanás, porém, que se movia no meio de todos os horrores, em figura terrível e com um riso furioso, enraivecia-se cada vez mais contra Jesus e, fazendo passar-lhe diante da alma visões sempre mais horrorosas, gritou diversas vezes à humanidade de Jesus: "Que? Tomarás também isto sobre ti? Sofrerás também castigo por este crime? Como podes satisfazer por tudo isto?” Veio, porém, um estreito feixe de luz, da região onde o sol está

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entre as dez e onze horas, descendo sobre Jesus e nela vi surgir uma fileira de Anjos, que Lhe transmitiram força e ânimo. A outra parte da gruta estava cheia de visões horrorosas dos nossos pecados e de maus espíritos, que O insultavam e agrediam; Jesus aceitou tudo; o seu Coração, O único que amava perfeitamente a Deus e aos homens, nesse deserto cheio de horrores, sentia com dilacerante tristeza e terror a atrocidade e o peso de todos esses pecados. Ai! vi tantas coisas ali! Nem um ano chegaria para contá-Ias! 3. Tentações da parte de Satanás Quando essa multidão de culpas e pecados acabou de passar diante da alma de Jesus, como um mar de horrores e após se haver ele oferecido, como sacrifício de expiação por tudo e chamado sobre si toda a onda de penas e castigos, suscitou-lhe Satanás inumeráveis tentações, como outrora no deserto; apresentou até numerosas acusações contra o puóssimo Salvador. "Que!" disse ele, "Queres tomar tudo isto sobre ti e não és puro? Vê isto e aquilo e mais isto!" E então desenrolou, diante dos olhos imaculados da Divina Vítima, com impertinência infernal, uma multidão de acusações inventadas. Acusou-O das faltas dos discípulos, dos escândalos que tinham dado, das perturbações que Ele trouxe ao mundo, renunciando aos costumes antigos. Satanás procedeu como o mais hábil e astuto fariseu. Acusou-O de ter sido a causa da matança dos inocentes por Herodes, dos perigos e sofrimentos de seus pais no Egito; acusou-O de não ter salvado da morte a João Batista, de ter desunido famílias, protegido pessoas de má fama, de não ter curado certos doentes, de ter causado prejuízo aos habitantes de Gergesa, porque permitiu aos possessos que entornassem a sua doma de bebidas e porque causou a morte da manada de porcos no lago. Imputou-Lhe as faltas de Maria Madalena, por não lhe ter impedido a recaída no pecado; acusou-O de ter abandonado a família e de ter dissipado o bem alheio; numa palavra, tudo de que Satanás podia ter acusado, na hora da morte, um homem comum, que tivesse feito tais ações externas, sem motivos sobrenaturais: tudo apresentou o tentador à alma abatida de Jesus, para amedrontá-Ia e desanimá-Ia; pois ignorava que Jesus era o Filho de Deus e tentou-O somente como ao mais justo dos homens. Nosso Salvador deixou predominar a sua humanidade de tal modo, que quis sofrer também aquelas tentações, que assaltam mesmo os homens que têm uma morte santa, pondo em dúvida o valor interno das suas obras boas. Jesus permitiu, para esvaziar todo o cálice da agonia, que o tentador, ignorando-Lhe a divindade, Lhe apresentasse todas as suas obras de caridade como outras tantas dívidas, ainda não pagas, à graça divina. O tentador censurou-O de querer expiar as culpas de outros, Ele, que

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não tinha méritos e que tinha ainda de satisfazer à justiça divina, pelas graças de tantas obras que considerava boas. A divindade de Jesus permitiu que o inimigo lhe tentasse a humanidade, como podia tentar um homem que quisesse atribuir às suas obras um valor próprio, além daquele único que podem ter, da união com os méritos da morte redentora de nosso Senhor e Salvador. O tentador apresentou-Lhe assim todas as suas obras de amor como atos privados de todo mérito, que antes O constituíam devedor de Deus, porque, segundo o acusador, o seu valor provinha antecipadamente, por assim dizer, dos méritos da Paixão, ainda não consumada e cujo valor infinito Satanás ainda não conhecia; portanto, não teria Jesus ainda satisfeito, na opinião do tentador, pelas graças recebidas para essas obras. Apresentou-lhe títulos de dívida por todas essas boas obras e disse, aludindo a estas: "Ainda deves por esta obra e por aquela". Finalmente desenrolou mais um título de dívida diante de Jesus, afirmando que tinha recebido e gasto o preço da venda da propriedade de Maria Madalena em Magdalum; disse a Jesus: "Como ousaste desperdiçar o bem alheio, prejudicando assim aquela família?" Vi a apresentação de tudo a cuja expiação Jesus se oferecera e senti com Ele todo o peso das numerosas acusações que o tentador levantou contra Ele; pois, entre os pecados do mundo que o Salvador tomou sobre si, vi também os meus inumeráveis pecados e do circulo das tentações veio também a mim, um como rio de acusações, nas quais se me patentearam todos os meus pecados de atos e omissões. Eu, porém, olhava sempre para o meu Esposo celeste, durante essa apresentação dos pecados, gemendo e rezando com Ele e virava-me também com Ele para os Anjos consoladores. Ai! O Senhor torcia-se como um verme, sob o peso da dor e das angústias! Durante todas essas acusações de Satanás contra o puríssimo Sal-vador, somente com grande esforço consegui conter-me; mas, quando levantou a acusação da venda da propriedade de Madalena, não pude mais me conter e gritei-lhe: "Como podes chamar dívida o preço da venda dessa propriedade? Eu mesma vi o Senhor, com essa quantia, que lhe foi entregue por Lázaro, para obras de misericórdia, remir 27 pobres desamparados dos cárceres de Tirza (6).” (6) Essas palavras referem-se a uma visão, na qual viu Jesus remir 27 devedores insolventes, detidos numa cadeia que tinha uma guarnição romana. A princípio estava Jesus de joelhos, rezando tranqüilamente; mais tarde, porém, se lhe assustou a alma, à vista da atrocidade dos inumeráveis crimes e da ingratidão dos homens para com Deus; assaltaram-no angústia e dor tão veementes, que suplicou

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tremendo: "Meu Pai, se for possível, passe este cálice longe de mim. Meu Pai, tudo vos é possível: afastai este cálice de mim". Depois sossegou e disse: "Não se faça, porém, a minha vontade, mas a vossa". A sua vontade e a do Pai eram uma só; mas entregue à fragilidade da natureza humana, por amor, Jesus tremia à vista da morte. 4. Jesus volta para junto dos três, Apóstolos Vi a caverna rodeada de formas assustadoras; todos os pecados, toda a iniqüidade, todos os vícios, todos os tormentos, toda a ingratidão, que o angustiavam; vi os terrores da morte, o horror que sentia, como homem, diante do imenso sofrimento expiatório, assaltando-O e oprimindo-O, sob as formas de espectros hediondos. Ele caiu por terra, torcendo as mãos; cobria-O o suor da angústia; tremia e estremecia. Levantou-se, mas os joelhos trementes quase não O suportavam; estava inteiramente desfigurado e irreconhecível, os lábios pálidos, o cabelo eriçado. Eram cerca de dez horas e meia, quando se levantou e se arrastou para junto dos três Apóstolos, cambaleando, caindo a cada passo, banhado num suor frio. Subiu à esquerda da caverna, e, passando por cima desta, chegou a um aterro, onde os discípulos estavam adormeci-dos, encostados um ao outro, abatidos pela fadiga, tristeza, inquietação e tentação. Jesus aproximou-se-Ihes, como um homem angustiado a quem o terror impele para junto dos amigos e como um bom pastor que, transtornado profundamente, vai para junto do rebanho, que sabe, ameaçado de um perigo próximo; pois não ignorava que também eles se achavam em angústia e tentação. Vi as horrorosas visões cercarem-no também nesse curto caminho. Encontrando os Apóstolos a dormir, torceu as mãos e caiu por terra ao lado deles, cheio de tristeza e fraqueza, dizendo: "Simão, dormes?" Então acordaram e levantaram-se; e Ele dis se, no seu desamparo: "Então não pudestes velar uma hora comigo?". Quando o viram tão assustado e desfigurado, pálido, cambaleando, banhado em suor, tremendo e estremecendo, quando O ouviram queixar-se com voz quase extinta, não sabiam mais o que pensar; se não Ihes tives-se aparecido cercado de certa luz que bem conheciam, não o teriam reconhecido. Disse-lhe João: "Mestre, que tendes? Quereis que chame os outros Apóstolos? Devemos fugir?" Jesus, porém, respondeu: "Ainda que vivesse mais 33 anos, ensinando e curando enfermos, não chegaria ao que tenho de cumprir até amanhã. Não chames os oito; deixaios ali, porque não poderiam ver-me nesta aflição, sem escandalizar-se; cairiam em tentação, esquecer-se-iam de muitas coisas e duvidariam de mim. - Vós, porém, que vistes o Filho do homem transfigurado, podeis vê-Io também no seu desamparo; mas vigiai e orai para não cairdes em tentação. O espírito é pronto, mas a carne é fraca".

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Disse-o, referindo-se a eles e a si mesmo. Quis induzí-Ios, com essas palavras, à perseverança e dar-Ihes a saber a luta da sua natureza humana contra a morte e a causa daquela fraqueza. Falou-Ihes ainda sobre outras coisas, sempre abismado naquela tristeza e ficou cerca de um quarto de hora com eles. Em angústia mais e mais crescente voltou à gruta; eles, porém, estenderam para Ele as mãos chorando e caíram uns nos braços dos outros, perguntando: "Que é isto? Que lhe aconteceu? Está tão desolado'" Começaram a rezar, com as cabeças cobertas, cheios de tristeza. Tudo que acabo de contar, deu-se em mais ou menos uma hora e meia, depois que entraram no horto das Oliveiras. É verdade que Jesus disse, segundo o Evangelho: "Não podeis velar uma hora comigo?" Mas não se o pode entender ao pé da letra, segundo o nosso modo de falar, os três Apóstolos, que vieram com Jesus, tinham rezado no começo; mas depois adormeceram; conversando entre si com pouca confiança, caíram em tentação. Os oito Apóstolos, porém, que ficaram na entrada do horto, não dormiram. A angústia que se mostrara nessa noite em todos os discursos de Jesus, tornou-os muito perturbados e inquietos; erravam pelas vizinhanças do monte das Oliveiras para procurar um lugar de refúgio, em caso de perigo. Em Jerusalém houve nessa noite pouco movimento; os judeus estavam nas suas casas, ocupados com os preparativos para a festa. Os acampamentos dos forasteiros que tinham vindo para a festa, não estavam nas vizinhanças do monte das Oliveiras. Enquanto eu ia e voltava nesses caminhos, vi discípulos e amigos de Jesus, andando e conversando; pareciam inquietos, à espera de qualquer desgraça. A Mãe do Senhor, com Madalena, Marta, Maria, mulher de Cleofas, Maria Salomé e Salomé, assustadas por boatos, foram com amigas para fora da cidade, afim de ter notícias de Jesus. Ali as encontraram Lázaro, Nicodemos, José de Arimatéia e alguns parentes de Hebron e procuraram sossegáIas; pois, tendo eles mesmos conhecimento, pelos discípulos, dos tris tes discursos feitos por Jesus no Cenáculo, foram pedir informações a alguns fariseus conhecidos e destes souberam que não constava nada sobre tentativas imediatas contra o Senhor. Disseram por isso às mulhe-res que o perigo não podia ser grande, que tão próximo da festa não poriam as mãos em Jesus. É que não sabiam da traição de Judas. Maria, porém, contou-Ihes o estado perturbado deste nos últimos dias ao sair do Cenáculo e advertiu-os de que com certeza fora trair ao Senhor, apesar das repreensões, pois era um filho da perdição. Depois voltaram as santas mulheres à casa de Maria, mãe de Marcos. 5. Anjos mostram a Jesus a enormidade dos seus sofrimentos e consolam-nO

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Voltando à gruta, com toda a tristeza que o acabrunhava, Jesus prostrou-se por terra, com os braços estendidos e rezou ao Pai Celeste. Mas passou-lhe na alma nova luta, que durou três quartos de hora. Anjos vieram apresentar-Lhe em grande número de visões, tudo o que devia aceitar de sofrimentos, para expiar o pecado. Mostraram-lhe a beleza do homem antes do primeiro pecado, como imagem de Deus e quanto o pecado o tinha rebaixado e desfigurado. Mostraram-lhe como o primeiro pecado fora a origem de todos os pecados, a significação e essência da concupiscência e seus terríveis efeitos sobre as faculdades da alma e do corpo do homem, como também a essência e a significação de todas as penas contrárias à concupiscência. Mostraram-lhe os seus sofrimentos expiatórios primeiramente como sofrimentos de corpo e alma, suficientes para cumprir todas as penas impostas pela justiça divina à humanidade inteira, por toda a má concupiscência; e depois como sofrimento, que, para dar verdadeira satisfação, castigou os pecados de todos os homens na única natureza humana que era inocente: na humanidade do Filho de Deus, O qual, para tomar sobre si, por amor, a culpa e o castigo da humanidade inteira, devia também combater e vencer a repugnância humana contra o sofrimento e a morte. Tudo isto lhe mostraram os Anjos, ora em coros inteiros, com séries de imagens, ora separados, com as imagens principais; vi as figuras dos Anjos mostrando com o dedo elevado as imagens e percebi o que disseram, mas sem lhes ouvir as vozes. Não há língua que possa descrever o horror e a dor que invadiram a alma de Jesus, ao ver esta terrível expiação; pois não viu somente a significação das penas expiatórias contrárias à concupiscência pecaminosa, mas também a significação de todos os instrumentos do martírio, de modo que O horrorizou, não só a dor causada pelos instrumentos, mas também o furor pecaminoso daqueles que os inventaram, a malícia dos que os usavam e a impaciência daqueles que com eles tinham sido atormentados, pois pesavam sobre Ele todos os pecados do mundo. O horror desta visão foi tal, que lhe saiu do corpo um suor de sangue. Enquanto a humanidade de Jesus sofria e tremia, sob esta terrível multidão de sofrimentos, notei um movimento de compaixão nos Anjos; houve uma pequena pausa: parecia-me que desejavam ardentemente consolá-Io e que apresentavam as súplicas diante do trono de Deus. Era como se houvesse uma luta instantânea entre a misericórdia e a justiça de Deus e o amor que se estava sacrificando. Foi-me mostrada uma imagem de Deus, não como em outras ocasiões, num trono, mas numa forma luminosa menos determinada; vi a pessoa do Filho retirar-se na pessoa do Pai, como que lhe entrando no peito; a pessoa do Espírito Santo saindo do Pai e do Filho e estando entre Eles; e todos eram um só Deus. Quem poderá descrever exatamente uma tal visão? Não tive tanto

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uma visão com figuras humanas, como uma percepção interna, na qual me foi mostrado, por imagem, que a vontade divina de Jesus Cristo se retirava mais para o Pai, para deixar pesar sobre a sua humanidade todos os sofrimentos, que esta pedia ao Pai que afastasse; de modo que a vontade divina de Jesus, unida ao Pai, impunha à sua humanidade todos os sofrimentos que a vontade humana, pelas súplicas, queria afastar. Vi-O no momento da compaixão dos Anjos, quando estes desejavam consolar Jesus que, com efeito, teve neste instante um certo alívio. Depois desapareceu tudo e os Anjos, com sua compaixão consoladora, abandonaram o Senhor, cuja alma entrou em novas angústias. 6. Mais imagens de pecados que atormentam o Senhor Quando o Redentor, no monte das Oliveiras, se entregou, como homem verdadeiro e real, ao horror humano, à dor e à morte, quando se incumbiu de vencer esta repugnância de sofrer, que faz parte de todo o sofrimento, foi permitido ao tentador que lhe fizesse tudo o que costuma fazer a todo homem que quer sacrificar-se por uma causa santa. Na primeira agonia Satanás mostrara a Nosso Senhor, com raivosa zombaria, a enormidade da culpa do pecado, que quisera tomar a si e levou a audácia ao ponto de afirmar que a vida do mesmo Redentor não era livre de pecados. Na segunda agonia viu Jesus a imensidade da Paixão expiatória, em toda a sua realidade e amargura. Esta apresentação, foi feita pelos Anjos; pois não compete a Satanás mostrar a possibilidade da expiação, nem convém que o pai da mentira e do desespero mostre as obras da misericórdia divina. Tendo, porém, Jesus resistido a todas essas tentações, pelo abandono completo à vontade do Pai Celeste, foi-Lhe apresentada à alma uma nova série terrível de visões assustadoras; a dúvida e inquietação que no coração do homem precedem a todo o sacrifício, a pergunta amarga: Qual será o resultado, o proveito deste sacrifício? A visão de um futuro assustador atormentou-Lhe então o Coração amoroso. Deus mergulhou o primeiro homem, Adão, num profundo sono, abriu-lhe o lado, tomou-lhe uma das costelas, formou dela Eva, a mulher, a mãe de todos os vivos e apresentou-a a Adão. Então disse este: "Este é o osso dos meus ossos e a carne da minha carne; o homem deixará pai e mãe, para aderir à sua mulher e serão dois numa só carne." Do matrimônio foi escrito: "Este sacramento é grande, digo, porém, em Jesus Cristo e na Igreja;" Pois Jesus Cristo, o novo Adão, quis também se submeter a um sono, o sono da morte na Cruz; quis também deixar que lhe abrissem o lado, para que deste fosse feita a nova Eva, sua esposa imaculada, a Igreja, mãe de todos os vivos; quis dar-lhe o sangue da redenção, a água da purificação e o Espírito Santo: os três que dão testemunho na terra; quis dar-lhe os santos Sacramentos, para que fosse uma

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esposa pura, santa e imaculada; quis ser-lhe a cabeça e nós devíamos ser-lhe os membros, sujeitos à cabeça, devíamos ser os ossos dos seus ossos, carne da sua carne. Aceitando a natureza humana, para sofrer a morte por nós, tinha Jesus abandonado pai e mãe e unira-se a sua esposa, à Igreja; tornou-se uma carne com ela, alimentando-a com o santíssimo Sacramento do Altar, no qual se une a nós dia após dia; quis permanecer presente na terra com sua esposa, a Igreja, até nos unirmos todos a Ele no Céu e disse: "As portas do inferno não prevalecerão contra ela." Para praticar esse incomensurável amor para com os pecadores, tornarase homem e irmão dos pecadores, tomando sobre si a pena de toda a culpa. Tinha visto com grande tristeza a imensidade desta culpa e da paixão expiatória e contudo entregara-se voluntariamente à vontade do Pai celeste, como vítima expiatória. Neste momento, porém, viu Jesus os sofrimentos, as perseguições, as feridas da futura Igreja, sua esposa, que estava para remir tão caro, com o seu próprio sangue: viu a ingratidãq dos homens. Apresentaram-se-Lhe diante da alma todos os futuros sofrimentos dos Apóstolos, discípulos e amigos, a Igreja primitiva, tão pouco numerosa, depois também as heresias e cismas, que nasceram à medida que a Igreja crescia, repetindo a primeira queda do homem pelo orgulho e desobediência, pelas diversas formas de vaidade e falsa justiça. Viu a tibieza, a corrupção e malícia de um número infinito de cristãos, as mentiras e a esperteza enganadora dos mestres orgulhosos, os crimes sacrílegos de todos os sacerdotes viciosos e todas as horríveis conseqüências: A abominação e desolação do reino de Deus sobre a terra, neste santuário da humanidade ingrata, o qual estava: para fundar e remir com indizíveis sofrimentos, pelo preço de seu sangue e sua vida. Vi passar diante da alma do nosso pobre Jesus, em séries imensas de visões, os escândalos de todos os séculos, até o nosso tempo e mesmo até o fim do mundo, em todas as formas do erro doentio, da intriga orgulhosa, do fanatismo furioso, dos falsos profetas, da obstinação e malícia herética. Todos os apóstatas, os heresiarcas, os reformadores de aparência santa, os sedutores e os seduzidos insultavam e torturavam-na, como se não tivesse sofrido bastante, nem sido bem crucificado a seu ver e conforme o desejo orgulhoso e presunção vaidosa de cada um; rasgavam e partiam, disputando, a túnica sem costuras da Igreja; cada um queria tê-Lo como Redentor de modo diferente do que se tinha mostrado no seu amor. Muitos O maltratavam, insultavam, ne-gavam-nO. Viu inúmeros alçarem os ombros e sacudirem a cabeça, afastando-se dos braços que Ihes estendia para salvá-Ios e precipitar-se no abismo, que os tragou. Viu um número infinito de outros, que não ousavam negá-Ia em alta voz, mas que se afastavam, por desgosto das aflições da Igreja, como o levita que se afastou do pobre viajante que caíra nas mãos

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dos salteadores. Viu-os separar-se de sua esposa ferida, como filhos covardes e infiéis abandonam as mães de noite, quando a casa é assaltada por ladrões e assassinos, aos quais por descuido abriram a porta. Viu-os seguirem os despojos levados ao deserto, os vasos de ouro e os colares quebrados. Viu-os separados da videira verdadeira, pousarem sob as videiras silvestres; viu-os como ovelhas extraviadas, abandonadas aos lobos, conduzidas a mau pasto por mercenários e não querendo entrar no aprisco do bom Pastor, que deu a vida por suas ovelhas. Viu-os errarem, sem pátria, no deserto, não querendo ver a sua cidade, colocada sobre o monte e que não pode ficar escondida. Viu-os em discórdia, agitados pelo vento para lá e para cá, nas areias do deserto, mas sem querer ver a casa de sua esposa, a Igreja fundada sobre a pedra, com a qual prometeu ficar até o fim do mundo e contra a qual as portas do inferno não prevalecerão. Não queriam entrar pela porta estreita, para não baixar a cabeça. Viu-os seguir a outros, que não entraram no aprisco pela porta verdadeira. Construíram, sobre a areia, cabanas mudáveis e diferentes umas das outras, que não tinham nem altar nem sacrifício, porém cata-ventos nos tetos e suas doutrinas mudavam-nas com os ventos; contradiziam-se uns aos outros, não se entendiam, nem tinham estadia permanente. Viu-os destruírem muitas vezes as cabanas, lançando os destroços contra a pedra angular da Igreja, que ficou inabalável. Viu muitos que, apesar da escuridão nas suas moradas, não queriam aproximar-se da luz, posta no candelabro, na casa da esposa, mas erravam, com os olhos cerrados, em redor do jardim cercado da Igreja, de cujos perfumes ainda viviam. Estendiam as mãos a imagens nebulosas e seguiam astros errantes, que os conduziam a poços sem água e mesmo na margem das fossas, não davam ouvido à voz do Esposo que os chamava e esfomeados riam-se ainda, com orgulho arrogante, dos servos e mensageiros, que os convidavam para o banquete nupcial. Não queriam entrar no jardim, por temerem os espinhos da cerca-viva. Viu-os o Senhor, inebriados de amor próprio, morrer de fome, por não ter trigo e de sede, por não ter vinho; cegos pela sua própria luz, chamavam de invisível a Igreja do Verbo encarnado. Jesus viu-os todos com tristeza; quis sofrer por todos que não queriam seguí-Io, carregando a cruz da Igreja, sua esposa, à, qual se deu no SS. Sacramento, na sua cidade colocada no cimo do monte, que não pode ficar escondida, na sua Igreja, fundada sobre a pedra e contra a qual as portas do inferno não prevalecerão. Todas estas inumeráveis visões da ingratidão dos homens, do abu-so feito da morte expiatória de meu Esposo Celeste, vi-as passar diante da alma contristada do Senhor, ora variando, ora em dolorosa repetição; vi Satanás, em diversas figuras assustadoras, arrancando e estrangulando, diante dos olhos de Jesus, os homens remidos pelo seu sangue e até mesmo homens

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ungidos com o seu santo Sacramento. O Salvador viu com grande amargura toda a ingratidão, toda a corrupção, tanto dos primeiros cristãos, como dos que se lhe seguiram, dos presentes e dos futuros. Entre estas aparições dizia o tentador continuamente à humanidade do Cristo: "Eis aí, por tal ingratidão queres sofrer?" Estas imagens passaram, em contínua repetição diante do Senhor e com tanta impetuosidade, com tanto horror e escárnio pesaram sobre Jesus, que angústia indizível lhe oprimia a natureza humana. Jesus Cristo, o Filho do Homem, estendia e torcia as mãos, caindo como que oprimido e pôs-se de novo de joelhos. A vontade humana do Redentor travava uma luta tão terrível contra a repugnância de sofrer tanto por uma raça tão ingrata, que o sangue lhe saiu do corpo, em grossas gotas de suor e correu em torren-tes sobre a terra. Naquela aflição olhou em redor de si como para pedir socorro e parecia chamar o céu, a terra e os astros do firmamento por testemunhas de seu sofrimento. Parecia-me ouví-Io exclamar: "É possível suportar tal ingratidão? Sois testemunhas do que sofro.” Então foi como se a lua e as estrelas se aproximassem num instante; senti nesse momento que se tornava mais claro. Observei então a lua, o que antes não fizera, e pareceu-me de todo diferente: ainda não era toda cheia e parecia maior do que em nossa terra. No meio vi uma mancha escura, semelhante a um disco posto diante dela e no meio havia uma abertura, pela qual brilhava a luz para o lado onde a lua ainda não estava cheia. A mancha escura era como um monte e em redor da lua havia ainda um círculo luminoso, como um arco-íris. Jesus, na sua aflição, levantou a voz por alguns momentos, em alto pranto. Vi os Apóstolos levantarem-se assustados, com as mãos postas erguidas, escutarem e querendo correr para junto do Mestre. Mas Pedro reteve a João e Tiago, dizendo: "Ficai, eu vou lá." Vi-o correr e entrar na gruta. "Mestre, disse ele, que tendes?", e parou, tremendo, ao vê-Io todo ensangüentado e angustiado. Jesus, porém, não lhe respondeu e pareceu não lhe notar a presença. Então voltou Pedro para junto dos outros dois e suspirava. Por isso Ihes aumentou ainda a tristeza; senta-ram-se, velando as cabeças e rezaram entre lágrimas. Eu, porém, voltei a meu Esposo Celeste, em sua dolorosa agonia. As imagens hediondas da ingratidão e dos abusos dos homens futuros, cuja culpa tomara sobre si, a cuja pena se entregara, arremessaram-se contra Ele, cada vez mais terríveis e impetuosas. De novo lutou contra a repugnância da natureza humana de sofrer; diversas vezes o ouvi exclamar: "Meu Pai, é possível sofrer por todos estes? Pai, se este cálice não pode ser afastado de mim, seja feita a vossa vontade.” No meio de todas estas visões de pecados contra a divina misericórdia, vi Satanás em diversas formas hediondas, conforme

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a espécie dos pecados. Ora aparecia como homem alto e negro, ora sob a figura de tigre, ora como raposa ou lobo, como dragão ou serpente; não eram, porém, as figuras naturais desses animais, mas apenas as feições salientes da respectiva natureza, misturadas com outras formas horríveis. Não havia nada ali que representasse figura completa de uma criatura, eram somente símbolos de decadência, de abominação, de horror, da contradição e do pecado: símbolos do demônio. Essas figuras diabólicas empurravam, arrastavam, despedaçavam e estrangulavam, à vista de Je sus, inumeráveis multidões de homens, por cujo resgate, das garras de Satanás, o Salvador entrara no doloroso caminho da Cruz. No princípio não vi tão freqüentemente a serpente, mas no fim a vi gigantesca, com uma coroa na cabeça, arremessar-se com força terrível contra Jesus e com ela, de todos os lados, exércitos de todas as gerações e classes. Armados de todos os meios de destruição, instrumentos de martírio e armas, lutavam ora uns contra os outros, ora com terrível raiva contra Jesus. Era um espetáculo horrível. Carregavam-nO de insultos, maldições e imundícies, cuspiam-Lhe, batiam-Lhe, traspassavam-nO. As suas armas, espadas e lanças, iam e vinham, como os manguais dos debulhadores numa imensa eira; todos desencadeavam a sua fúria so bre o grão de trigo celeste, caído na terra para nela morrer e depois alimentar eternamente todos os homens com o pão da vida, com fruto imensurável. Vi Jesus no meio destas coortes furiosas, entre as quais me parecia haver muitos cegos; estava tão alterado, como se realmente sentisse os golpes dos agressores. Vi-O cambalear de um lado para o outro; ora caia, ora de novo se levantava. Vi a .serpente no meio de todos esses exércitos, instigando-os continuamente; batia ora aqui, ora ali, com a cauda, estrangulando, despedaçando e devorando todos que com ela derrubava. Tive a explicação de que a multidão dos exércitos que lutavam contra Nosso Senhor, era o número imenso daqueles que maltrataram de muitíssimos modos a Jesus Cristo, seu Redentor, real e substancialmente presente no Santíssimo Sacramento, com divindade e humanidade, com corpo e alma, com carne e sangue, debaixo das espécies de pão e vinho. Avistei entre esses inimigos de Jesus todas as espécies de profanadores do SS. Sacramento, penhor vivo de sua contínua presença pessoal na Igreja Católica. Vi com horror todos esses ultrajes, desde o descuido, irreverência, abandono, até o desprezo, abuso e sacrilégios os mais horrorosos, o culto dos ídolos deste mundo, orgulho e falsa ciência e por outro lado, heresia e descrença, fanatismo, ódio e sangrenta perse guição. Vi entre esses inimigos de Jesus todas as espécies de homens: até cegos e aleijados, surdos e mudos e mesmo crianças; cegos, que não queriam ver a verdade; coxos, que

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por preguiça não queriam seguí-IO; surdos, ,que não queriam ouvir-Lhe as exortações e advertências; mu dos, que não queriam lutar por Ele nem com a palavra; crianças, desviadas na companhia dos pais e mestres mundanos e esquecidos de Deus, nutridos pela concupiscência, ébrias de ciência falsa, sem gosto das coisas divinas ou já perdidas por falta delas, para sempre. Entre as crianças, cujo aspecto me afligiu particularmente, porque Jesus amava tanto as crianças, vi também muitos meninos ajudantes da Santa Missa, pouco instruídos, mal educados e desrespeitosos, que nem respeitavam a Jesus Cristo na mais santa cerimônia. Em parte eram culpados os mestres e os reitores das Igrejas. Vi com espanto que também muitos sacerdotes, de todas as hierarquias contribuíam para o desrespeito de Jesus no SS. Sacramento, até alguns que se tinham por crentes e piedosos. Quero mencionar, entre estes infelizes, apenas uma classe: vi ali muitos que acreditavam, adoravam e ensinavam a presença de Deus vivo no SS. Sacramento, mas na sua conduta não Lhe manifestavam fé e respeito: pois descuidavam-se do palácio, do trono, da tenda, da residência, dos ornamentos do Rei do Céu e da Terra, isto é, não cuidavam da Igreja, do altar, do tabernáculo, do cálice, do ostensório de Deus vivo e dos vasos, utensílios, ornamentos, vestes para uso e enfeite da casa do Senhor. Tudo estava abandonado e se desfazia em poeira, mofo e imundície de muitos anos; o culto divino era celebrado com pressa e descuido e se não profanado internamente, pelo menos degradado exteriormente. Tudo isso, porém, não era conseqüência de verda-deira pobreza, mas de indiferença, preguiça, negligência, preocupação com interesses vãos deste mundo, muitas vezes também de egoísmo e morte espiritual, pois vi tal descuido também em Igrejas ricas e abastadas; vi muitos até, nas quais o luxo mundano e inconveniente e sem gosto substituíra os magníficos e veneráveis monumentos de uma época mais piedosa, para esconder, sob aparências mentirosas e cobrir com um disfarce brilhante o descuido, a imundície, a desolação e o desperdício. O que faziam os ricos, por vaidosa ostentação, logo imitaram estupidamente os pobres, por falta de simplicidade. Não pude deixar de pensar nesta ocasião na Igreja do nosso pobre convento, cujo belo altar antigo, esculpido artisticamente em pedra, tinham também coberto com uma construção de madeira e pintura tosca, imitando mármore, o que sempre me fez muita pena. Todas essas ofensas feitas a Jesus no SS. Sacramento, vi-as aumen-tadas por numerosos reitores das Igrejas, que não tinham esse sentimento de justiça de repartir pelo menos o que possuíam com o Salvador, presente sobre o Altar, que se entregou por eles à morte e se Ihes deu todo inteiro no SS. Sacramento. Em verdade, mesmo os mais pobres estavam muitas vezes melhor instalados nas suas casas do que o Senhor nas Igrejas. Ai! Como esta falta de

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hospitalidade entristecia Jesus, que se Ihes tinha dado como alimento espiritual! Pois não é preciso ser rico para hospedar aquele que recompensa ao cêntuplo o copo de água oferecido a quem tem sede. Oh! Quanta sede tem ele de nós! Não terá acaso motivo de queixar-se de nós, se o copo estiver sujo e a água também? Por tais negligências vi os fracos escandalizados, o SS. Sacramento profanado, as Igrejas abandonadas, os sacerdotes desprezados e em pouco tempo passou essa negligência também às almas dos fiéis daquelas paróquias: não guardavam mais puro o tabernáculo do coração, para receber nele o Deus vivo, do que o tabernáculo dos altares. Para agradar e adular os príncipes e grandes deste mundo, para satisfazer-Ihes os caprichos e desejos mundanos, vi tais administradores de Igrejas fazer todos os esforços e sacrifícios; mas o Rei do Céu e da Terra estava deitado, como o pobre Lázaro, diante da porta, desejando em vão as migalhas de caridade que ninguém lhe dava. Tinha apenas as chagas que nós lhe fizemos e que lhe lambiam os cães, isto é, os pecadores reincidentes, que, semelhantes a cães, vomitam e depois voltam para comer o vômito. Se falasse um ano inteiro, não podia contar todas as afrontas feitas a Jesus e que deste modo conheci. Vi os autores dessas afrontas agredirem a Nosso Senhor com diferentes armas, conforme a espécie de seus pecados. Vi clérigos irreverentes, de todos os séculos, sacerdotes levianos, em pecado, sacrílegos celebrando o Santo Sacrifício e distribuindo a sagrada Eucaristia; vi multidões de comungantes tíbios e indignos. Vi homens numerosos para os quais a fonte de toda a bênção, o mistério de Deus vivo, se tornara uma palavra de maldição, fórmula de maldição; guerreiros furiosos e servidores do demônio, profanando os vasos sagrados e jogando fora as hóstias sagradas ou maltratando-as horrivelmente e até abusando do Sumo Bem, por uma hedionda e diabólica idolatria. Ao lado destes brutais e violentos, vi inúmeras outras impiedades, menos grosseiras, mas do mesmo modo abomináveis. Vi muitas pessoas, seduzidas por mau exemplo e ensino pérfido, perderem a fé na presença real de Jesus na Eucaristia e deixarem de adorar nela humildemente seu Salvador. Vi nestas multidões grande número de professores indignos, que se tornaram heresiarcas; lutavam a princípio uns contra os outros e depois se uniam, para atacar furiosamente a Jesus no SS. Sacramento, na sua Igreja. Vi um grupo numeroso destes heresiarcas negar e insultar o sacerdócio da Igreja, contestar e negar a presença de Jesus Cristo neste mistério do SS. Sacramento, negar também ter Ele entregue este mistério à Igreja e havê-Io esta guardado fielmente; pela sedução Lhe arrancaram do coração um número imenso de homens, pelos quais tinha derramado o seu sangue. Ai! Era um aspecto horrível: pois vi a Igreja como éorpo de Jesus, que reunira, pela dolorosa Paixão, os membros separados e dispersos; vi todas aquelas comunidades e famílias

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e todos os seus descendentes, separados da Igreja, serem ar-rancados, como grandes pedaços de carne, do corpo vivo de Jesus, ferindo e despedaçando-O dolorosamente. Ai! Ele os seguia com olhares tão tristes, lastimando-Ihes a perdição. Ele, que no SS. Sacramento se nos tinha dado como alimento, para unir ao corpo da Igreja, sua Esposa, os homens separados e dispersos, viuse despedaçado e dividido nesse mesmo corpo de sua Esposa, pelos maus frutos da árvore da discórdia. A mesa da união no SS. Sacramento, sua mais sublime obra de amor, na qual quis ficar eternamente com os homens, tornara-se, pela malícia dos falsos doutores, fonte de separação. No lugar mais conveniente e salutar para união de muitos, na mesa sagrada, onde o próprio Deus vivo é o alimento das almas, deviam os seus filhos separar-se dos infiéis e hereges, para não se tornarem réus de pecado alheio. Vi que deste modo povos inteiros se Lhe arrancaram do coração, privando-se do tesouro de todas as graças, que Ele deixara à Igreja. Era horrível vê-Ios separarem-se, só poucos no princípio, mas esses se voltaram como povos grandes, em hostilidade uns contra os outros, por estarem separados no Santíssimo. Por fim vi todos que estavam separados da Igreja, embrutecidos e enfurecidos, em descrença, superstição, heresia, orgulho e falsa filosofia mundana, unidos em grandes exércitos, atacando e devastando a Igreja e no meio deles, a serpente, instigando e estrangulando-os. Ai! Era como se Jesus se visse e sentisse despedaçado em inúmeras fibras, das mais delicadas. O Senhor viu e sentiu nessas angústias toda a árvore venenosa do cisma, com todos os respectivos ramos e frutos, que continuam a dividir-se até o fim do mundo, quando o trigo será recolhido ao celeiro e a palha será lançada ao fogo. Esta horrorosa visão era tão terrível e hedionda, que meu Esposo celeste me apareceu e, colocando a mão misericordiosa sobre o meu peito, disse: "Ninguém viu isto ainda e o teu coração se despedaçaria de dor, se eu não o sustentasse.” Vi então o sangue rolando, em largas e escuras gotas, sobre o pálido semblante do Senhor; o seu cabelo, em geral liso e repartido no meio da cabeça, estava conglutinado com o sangue, eriçado e desgrenhado, a barba ensangüentada e em desordem. Foi depois da última visão, na qual os exércitos inimigos O despedaçaram, que saiu da caverna, quase fugindo e voltou para junto dos discípulos. Mas não tinha o andar firme; andava como um homem coberto de feridas e curvado sob um fardo pesado, como quem tropeça a cada passo. Chegando junto dos três Apóstolos, viu que não se tinham deitado para dormir, como da primeira vez; estavam sentados, as cabeças veladas e apoiadas sobre os joelhos, posição em que vejo muitas vezes o povo daquele país, quando estão de luto ou querem rezar. Adormeceram vencidos pela tristeza, medo e fadiga. Quando Jesus se aproximou, tremendo e gemendo,

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acordaram, mas ao vê-Io diante de si, na claridade do luar, com o peito encolhido, o semblante pálido e ensangüentado, o cabelo desgrenhado, fitando-os com olhar triste, não O reconheceram por alguns momentos, com a vista fatigada, pois estava indizivelmente desfigurado. Jesus, porém, estendeu os braços; então se levantaram depressa e, segurando-O sob os braços, ampararam-nO carinhosamente. Disse-Ihes que no dia seguinte os inimigos O matariam; dai a uma hora O prenderiam, conduziriam ao tribunal, seria maltratado, insultado, açoitado e finalmente entregue à morte mais cruel. Com grande tristeza lhes disse tudo o que teria de sofrer até a tarde do dia seguinte e pediu-Ihes que consolassem sua Mãe e Madalena. Esteve assim diante deles por alguns minutos, falando-lhes; mas não responderam, porque não sabiam o que dizer, de tal modo as palavras e o aspecto do Mestre os tinha assustado; pensavam até que estivesse em delírio. Quando, porém, quis voltar à gruta, não tinha mais força para andar; vi que João e Tiago O conduziram e, depois de ter entrado na gruta, voltaram. Eram cerca de onze horas e um quarto. Durante essas angústias de Jesus, vi a SS. Virgem também cheia de tristeza e angústia, em casa de Maria, mãe de Marcos. Estava com Madalena e a mãe de Marcos, num jardim ao lado da casa; prostrara-se de joelhos, sobre uma pedra. Diversas vezes perdeu os sentidos exteriormente, pois viu grande parte dos tormentos de Jesus. Já enviara mensageiros a Jesus, para ter notícias, mas não podendo, na sua ânsia, esperar-lhes a volta, saiu com Madalena e Salomé para o vale de Josafá. Ela andava velada e estendia muitas vezes as mãos para o monte das Oliveiras, porque via em espírito, Jesus banhado em suor de sangue e ela parecia, com as mãos estendidas, querer enxugar-lhe o rosto. Vi Jesus, comovido por esses caridosos impulsos da alma de sua Mãe, olhar para a direção em que Maria se achava, como para pedir socorro. Vi esses movimentos de compaixão em forma de raios luminosos, que emanavam de um para o outro. O Senhor pensou também em Madalena, percebeu-lhe comovido a dor e olhou também para ela; por isso mandou também aos discípulos que a consolassem, pois sabia que, depois do amor de sua Mãe, o de Madalena era o mais forte e tinha também visto o que ela teria de sofrer por Ele e que nunca mais O ofenderia pelo pecado. Neste momento, cerca de 11 horas e 15 minutos, voltaram os oito Apóstolos à cabana de folhagem, no horto de Getsêmani; ali conversaram ainda e finalmente adormeceram. Estavam muito. assustados e desanimados, em veementes tentações. Cada um tinha procurado um lugar para esconder-se e perguntaram uns aos outros inquietamente: "Que faremos, se o matarem? Abandonamos tudo quanto tínhamos e ficamos pobres e expostos ao escárnio do mundo. Fiamo-nos inteiramente n’Ele e ei-Lo agora tão impotente e abatido, que não podemos mais procurar n’Ele consolação." Os

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outros discípulos, porém, erraram no princípio de um lado para outro e depois de terem ouvido várias notícias das últimas palavras assustadoras de Jesus, retiraram-se, pela maior parte, para Betfagé. 7. Visões consoladoras; Anjos confortam Jesus Vi Jesus rezando ainda na gruta e lutando contra a repugnância da natureza humana ao sofrimento. Estava exausto de fadiga e abatido e disse: "Meu Pai, se é a vossa vontade, afastai de mim este cálice. Mas faça-se a vossa vontade e não a minha.” Então se abriu o abismo diante d’Ele e apareceram-Lhe os primeiros degraus do Limbo, como na extremidade de uma vista luminosa. Viu Adão e Eva, os patriarcas, os profetas, os justos, os parentes de sua Mãe e João Batista, esperando-Lhe a vinda, no mundo inferior, com um desejo tão violento, que essa vista Lhe fortificou e reanimou o coração amoroso. Pela sua morte devia abrir o Céu a esses cativos; devia tirá-Ios da cadeia onde languesciam à espera. Tendo visto, com profunda emoção, esses Santos dos tempos antigos, apresentaram-Lhe os Anjos, todas as multidões de bem-aventurados do futuro que, juntando seus combates aos méritos da Paixão do Cristo, deviam unir-se por Ele ao Pai Celeste. Era uma visão indizivelmente bela e consoladora. Todos agrupados, segundo a época, classe e dignidade, passaram diante do Senhor, vestidos dos seus sofrimentos e obras. Viu a salvação e santificação sair, em ondas inesgotáveis, da fonte da Redenção, aberta pela sua morte. Os Apóstolos, os discípulos, as virgens e santas mulheres, todos os mártires, confessores e eremitas, pa-pas e bispos, grupos numerosos de religiosos, em uma palavra: um exército inteiro de bem-aventurados apresentou-se-Lhe à vista. Todos traziam na cabeça coroas triunfais e as coroas variavam de forma, de cor, de perfume e de virtude, conforme a diferença dos respectivos sofrimentos, combates e vitórias que Ihes tinham proporcionado a glória eterna. Toda a vida e todos os atos, todos os méritos e toda força, assim como toda glória e todo o triunfo dos Santos provinham unicamente de sua união aos méritos de Jesus Cristo. A ação e influência recíproca que todos estes Santos exerciam uns sobre os outros, a maneira por que hauriam a graça de uma única fonte, do santo Sacramento e da Paixão do Senhor, apresentava um espetáculo singularmente tocante e maravilhoso. Nada parecia casual neles; as obras, o martírio, as vitórias, a aparência e os vestuários: tudo, apesar de bem diferente, se fundia numa harmonia e unidade infinitas; e essa unidade na variedade era

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produzida pelos raios de um único sol, pela Paixão de Nosso Senhor, do Verbo feito carne, o qual era a vida, a luz dos homens, que ilumina as trevas, as quais não a compreenderam. Foi a comunidade dos futuros Santos que passou diante da alma do Salvador, que se achava colocado entre o desejo dos patriarcas e o cortejo triunfal dos bem-aventurados futuros; esses dois grupos unindo-se e completando-se de certo modo, cercavam o coração do Redentor, cheio de amor, como uma coroa de vitória. Essa visão, inexprimivelmente tocante, deu à alma de Jesus um pouco de consolação e força. Ah! Ele amava tanto seus irmãos e suas criaturas, que teria aceito de boa vontade todos os sofrimentos, aos quais se entregaria pela redenção até de uma só alma. Como essas visões se referissem ao futuro, pairavam em certa altura. Mas essas imagens consoladoras desapareceram e os Anjos mostraram-lhe a Paixão, mais perto da terra, porque já estava próxima. Estes Anjos eram muito numerosos. Vi todas as cenas apresentadas muito distintamente diante dele, desde o beijo de Judas, até à última palavra na Cruz; vi lá tudo o que vejo nas minhas meditações da Paixão, a traição de Judas, a fuga dos discípulos, os insultos perante Anás e Caifás, a negação de Pedro, o tribunal de Pilatos, a decisão diante de Herodes, a flagelação, a coroação de espinhos, a condenação à morte, o transporte da cruz, o encontro com a Virgem SS. no caminho do Calvário, o des-maio, os insultos de que os carrascos O cobriram, o véu de Verônica, a crucifixão, o escárnio dos fariseus, as dores de Maria, de Madalena e João, a lançada no lado, em uma palavra, tudo passou diante da alma de Jesus, com as menores circunstâncias. Vi como o Senhor, na sua angústia, percebia todos os gestos, entendia todas as palavras, percebia tudo que se passava nas almas. Aceitou tudo voluntariamente, sujeitou-se a tudo por amor dos homens. O que mais O entristecia era ver-se pregado na Cruz num estado de nudez completa, para expiar a impudicícia dos homens: implorava com instância a graça de livrar-se daquele opróbrio e que pelo menos Lhe fosse concedido um pano para cingir os rins; e vi ser atendido, não pelos carrascos, mas por um homem compassivo. Jesus viu e sentiu profundamente a dor da Virgem SS., que pela união interior aos sofrimentos do seu Divino Filho, caíra sem sentidos nos braços das amigas, no Vale de Josafá. No fim das visões da Paixão, Jesus caiu por terra, como um moribundo; os Anjos e as visões da Paixão desapareceram; o suor de sangue brotava mais abundante; vi-O escoar-se através da veste amarela encostado ao corpo. A mais profunda escuridão reinava na caverna. Vi então um Anjo descendo para junto de Jesus: era maior, mais distinto e mais semelhante ao homem do que os que eu vira antes. Estava vestido como um sacerdote, de uma longa veste flutuante, ornada de franjas e trazia na mão, diante de si, um

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pequeno vaso, da forma do cálice da última Ceia. Na abertura deste cálice se via um pequeno corpo oval, do tamanho de uma fava, que espargia uma luz avermelhada. O Anjo estendeu-Lhe a mão direita e pairando diante de Jesus, levantou-se; pôs-lhe na boca aquele alimento misterioso e fê-Lo beber do pequeno cálice luminoso. Depois desapareceu. Tendo aceitado o cálice dos sofrimentos e recebido nova força, Jesus ficou ainda alguns minutos na gruta, mergulhado em meditação tranqüila e dando graças ao Pai Celeste. Estava ainda aflito, mas confortado de modo sobrenatural, a ponto de poder andar para junto dos discípulos sem cambalear e sem se curvar sob o peso da dor. Estava ainda pálido e desfigurado, mas o passo era firme e decidido. Enxugara o rosto com um sudário e pusera em ordem os cabelos, que lhe pendiam sobre os ombros, úmidos de suor e conglutinados de sangue. Quando saiu da gruta, vi a lua como dantes, com a mancha singular que formava o centro e a esfera que a cercava, mas a claridade dela e das estrelas era diferente da que tinham dantes, por ocasião das grandes angústias do Senhor. A luz era agora mais natural. Quando Jesus chegou junto aos discípulos, estavam estes deitados, como na primeira vez, encostados ao muro do aterro, com a cabeça velada e dormiam. O Senhor disse-lhes que não era tempo de dormir, mas que deviam velar e orar. "Esta é a hora em que o Filho do homem será entregue nas mãos dos pecadores, disse, levantai-vos e vamos: o traidor está perto; melhor lhe seria que não tivesse nascido." Os Apóstolos levantaram-se assustados e olharam em roda de si inquietos. Depois de um pouco tranqüilo, Pedro disse calorosamente: "Mestre, vou chamar os outros, para vos defendermos." Mas Jesus mostrou-Ihes a alguma distância, no vale, do outro lado da torrente de Cedron, uma tropa de homens armados que se aproximavam com archotes e disse-Ihes que um deles O tinha traído. Os Apóstolos julgavam-no impossível. O Mestre falou-lhes ainda com calma, recomendando-Ihes de novo que consolassem a Virgem SS. e disse: "Vamos ao encontro deles. Vou entregar-me sem resistência nas mãos dos meus inimigos." Então saiu do horto das Oliveiras, com os três Apóstolos e foi ao encontro dos soldados, no caminho que ficava entre o jardim e o horto de Getsêmani. Quando a SS. Virgem voltou a si, nos braços de Madalena e Salomé, alguns discípulos, que viram aproximar-se os soldados, vieram a ela e reconduziram-na à casa de Maria, mãe de Marcos. Os soldados tomaram um caminho mais curto do que o que Jesus tinha seguido, vindo do Cenáculo. A gruta onde Jesus tinha rezado nessa noite, não era aquela na qual estava acostumado a rezar, no monte das Oliveiras. Ia geralmente a uma caverna mais afastada, onde, depois de ter maldito a figueira infrutífera, rezara numa grande aflição, com

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os braços estendido e apoiados sobre um rochedo. Os traços do corpo e das mãos ficaram-Lhe impressos na pedra e foram mais tarde venerados; mas não se sabia então em que ocasião o prodígio fora feito. Vi diversas vezes semelhantes impressões feitas em pedras, seja por profetas do Velho Testamento, seja por Jesus, Maria ou algum dos Apóstolos; vi também as do corpo de Santa Catarina de Alexandria, no monte Sinai. Essas impressões não parecem profundas, mas semelhantes às que ficam, pondo-se a mão sobre uma massa consistente. 8. Judas e sua tropa Judas não esperava que a traição tivesse as conseqüências que se lhe seguiram. Queria ganhar a recompensa prometida e mostrar-se agradável aos fariseus, entregando-Ihes Jesus, mas não pensara no resultado, na condenação e crucifixão do Mestre; não ia tão longe em seus desígnios. Era só o dinheiro que lhe preocupava o espírito e já havia muito tempo travara relações com alguns fariseus e Saduceus astutos que, com lisonjas, o incitavam à traição. Estava aborrecido da vida fatigante, errante e perseguida, que levavam os Apóstolos. Nos últimos meses furtara continuamente as esmolas, de que era depositário e a cobiça, irritada pela liberalidade de Madalena quando derramou perfumes sobre Jesus, impeliu-o finalmente ao crime. Tinha sempre esperado um reino temporal de Jesus e uma posição brilhante e lucrativa nesse reino; como, porém, não o visse aparecer, procurava amontoar fortuna. Via crescerem as fadigas e perseguições e pretendia manter boas relações com os poderosos inimigos de Jesus, antes de chegar o fim; pois via que Jesus não se tornaria rei, enquanto que a dignidade do Sumo Sacerdote e a importância dos seus confidentes lhe produziam viva impressão no espírito. Aproximava-se cada vez mais dos agentes fariseus, que o lisonjeavam incessantemente, dizendo-lhe, num tom de grande certeza, que dentro de pouco tempo dariam cabo de Jesus. Ainda recentemente tinham vindo procurá-Io diversas vezes em Betânia. O infeliz entregava-se cada vez mais a esses pensamentos criminosos e multiplicava nos últimos dias as diligências para que os príncipes dos sacerdotes se decidissem a agir. Estes ainda não queriam começar e tratavam-no com visível desprezo. Diziam que não havia tempo suficiente antes da festa e que qualquer tentativa causaria apenas desordem e tumulto durante a festa. Somente o sinédrio deu atenção às propostas do traidor. Depois da recepção sacrílega do SS. Sacramento, Satanás apoderou-se totalmente de Judas, que saiu decidido a praticar o crime. Primeiro procurou os negociadores, que sempre o tinham lisonjeado até ali e que o receberam ainda com amizade fingida. Foi ter com outros, entre os quais Caifás e Anás; este último, porém, usou

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para com ele de um tom altivo e sarcástico. Estavam hesitantes, não contavam com o êxito, porque não tinham confiança em Judas. Vi o império infernal dividido: Satanás queria o crime dos Judeus, desejava a morte de Jesus, do santo Mestre que fizera tantas conver sões, do Justo a quem tanto odiava; mas sentia também não sei que medo interno da morte dessa inocente vítima, que não queria subtrair-se aos perseguidores; invejava-O por sofrer inocentemente. Vi-O assim excitar de um lado o ódio e furor dos inimigos de Jesus e de outro lado insinuar a alguns destes que Judas era um patife, um miserável, que não se podia fazer o julgamento antes da festa, nem reunir número suficiente de testemunhas contra Jesus. No sinédrio houve longa discussão sobre o que se devia fazer e, entre outras coisas, perguntaram a Judas: "Podemos prendê-Lo? Não terá homens armados consigo?" E o traidor respondeu:, "Não, está só com os onze discípulos; está desanimado e os onze são homens medrosos". Também Ihes disse que era preciso apoderar-se de Jesus nessa ocasião ou nunca, que não podia esperar mais tempo para entregá-Lo, porque não voltaria para junto do Mestre, pois, alguns dias antes, os outros discípulos e Jesus mesmo haviam evidentemente suspeitado dele; pareciam pressentir-lhe os ardis e sem dúvida o matariam, se voltasse para o meio deles. Disse-Ihes ainda que, se não O prendessem agora, escaparia, voltando com um exército de partidários, para fazer proclamar-se rei. Essas ameaças de Judas fizeram efeito. Deram-lhe ouvido ao conselho maldoso e ele recebeu o preço da traição, os trinta dinheiros. Essas moedas tinham a forma de uma língua, estavam furadas na parte arredondada e enfiadas, por meio de argolas, numa espécie tle córrente; traziam certos cunhos. Judas, ofendido pelo contínuo desprezo e a desconfiança que lhe manifestavam, sentiu-se impelido pelo orgulho a restituir-Ihes esse dinheiro ou oferecê-Io ao Templo, para que o tomassem por um homem justo e desinteressado. Mas recusaram-no, porque era preço de sangue, que não se podia oferecer ao Templo. Judas viu quanto o desprezavam e sentiu-o profundamente. Não tinha esperado provar os frutos amargos da traição já antes de a ter cometido; mas de tal modo que se havia comprometido com aqueles homens, que estava nas suas mãos e não podia mais se livrar deles. Observavam-no de muito perto e não o deixariam sair antes de ter explicado o caminho a seguir, para apoderar-se de Jesus. Três fariseus acompanhavam-no, quando desceu a uma sala, onde se achavam guardas do Templo, que não eram todos judeus, mas gente de todas as nações. Quando tudo estava combinado e reunido o número de soldados necessários, Judas correu primeiro ao Cenáculo, acompanhado de um servo dos fariseus, para Ihes dar noticia, se Jesus ainda estava ali, por causa da facilidade de prendê-Io lá, ocupando as portas; devia mandar avisar-lhe por um

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mensageiro. Um pouco antes de Judas receber o prêmio da traição, um dos fariseus saíra, para mandar sete escravos buscar madeira, para preparar a Cruz de Cristo, no caso que fosse condenado, porque no dia seguinte não teriam mais tempo, pois começava a festa da Páscoa. Andaram cerca de um quarto de hora, para chegar ao lugar onde queriam buscar o madeiro da cruz; estava ali ao longo de um muro alto e comprido, junto com muitas outras madeiras, destinadas a construções do Templo; carregaram-no para um lugar atrás do tribunal de Caifás, afim de prepará-Io. A árvore da cruz crescera antigamente perto da torrente Cedron, no vale, de Josafá; mais tarde caíra através do ribeiro e servia de ponte. Quando Neemias escondeu o fogo santo e os vasos sagrados na piscina Betesda, empregou também este tronco para cobri-Ios, junto com outra madeira; tirando-o depois de novo, jogaram-no para o lado, com outra madeira de construção. Em parte foi para zombar de Jesus, em parte aparentemente por acaso, mas em verdade unicamente por disposição da Divina Providência, que a Cruz foi construída de uma forma especial. Sem contar a tábua do título, a cruz foi feita de cinco diferentes espécies de madeiras. Tenho visto muitas coisas a respeito da cruz, diversos acontecimentos e significações, mas tenho esquecido tudo, fora o que acabo de contar. Judas, no entanto, voltou e disse que Jesus não estava mais no Cenáculo, mas havia de estar certamente no monte das Oliveiras, num lugar onde costumava rezar. Insistiu então que mandassem com eles somente uma pequena tropa, para que os discípulos, que espiavam por toda a parte, não suspeitassem e provocassem uma insurreição. Trezentos soldados deviam ocupar as portas e ruas de Ofel, bairro ao sul do Templo e o vale Milo, até a casa de Anás, no monte de Sião, para poder mandar reforço à tropa na volta, caso o pedisse; pois em Ophel todo o povo baixo aderia a Jesus. O indigno traidor disse-Ihes ainda que tomassem muito cuidado, para Jesus não Ihes escapar, mencionando que este já muitas vezes se tinha tomado invisível, por meio de artifícios misteriosos, fugindo assim aos companheiros na montanha. Fez-Ihes também a proposta de amarrá-Io com uma corrente e servir-se de certas práticas mágicas, para que Jesus não rompesse as correntes. Os Judeus, porém, recusaram desdenhosamente esse conselho, dizendo: "Não nos podes impor nada; uma vez que esteja em nossas mãos, está seguro.” Judas combinou com a tropa entrar ele primeiro no horto, para beijar e saudar Jesus, como se voltasse do negócio, como amigo e discípulo; depois deviam entrar os soldados, para prender o Mestre. Procederia como se os soldados tivessem chegado na mesma hora, só por acaso; fugiria depois, como os outros discípulos, fingindo não saber de nada. Talvez pensasse também que houvesse

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um tumulto, no qual os Apóstolos se defenderiam e Jesus fugiria, como fizerajá diversas vezes. Assim pensava nos momentos de raiva, sentindo-se ofendido pelo desprezo e desconfiança dos inimigos de Jesus, mas não porque se arrependesse da negra ação ou por ter compaixão de Jesus; pois tinha-se entregue inteiramente a Satanás. Também não queria consentir que os soldados, entrando depois, trouxessem algemas e cordas, nem que o acompanhassem, homens de má reputação. Satisfizeram-lhe aparentemente os desejos, mas procederam como julgavam dever proceder com um traidor em quem não se pode fiar e que se joga fora, depois de ter feito o serviço. Foram dadas ordens expressas aos soldados de vigiar bem Judas e não o deixar afastar-se antes de ter prendido e amarrado Jesus; pois, como já tivesse recebido a remuneração, era de recear-se que o patife fugisse com o dinheiro e assim não poderiam prender Jesus de noite ou prende-riam outro em seu lugar, de modo que resultariam desta empresa apenas tumultos e desordens, no dia da Páscoa. A tropa escolhida para prender Jesus compunha-se de vinte soldados, alguns da guarda do Templo, os outros soldados de Anás e Caifás. Estavam vestidos quase da mesma forma que os soldados romanos; usavam capacetes e do gibão lhes pendiam correias em redor da cintura, como tinham também os soldados romanos. Distinguiam.se desses principalmente pela barba, pois os romanos em Jerusalém usavam só suíças, os lábios e queixo tinham imberbes. Todos os vinte soldados estavam armados de espadas, alguns tinham apenas lanças. Levavam consigo tochas e braseiras que, fixas sobre paus, serviam de lanternas; mas ao chegar, traziam acesa só uma das lanternas. Os judeus queriam mandar antes uma tropa mais numerosa com Judas, mas abandonaram esse plano, concordando com ele, objeção do traidor, de que do monte das Oliveiras se podia ver todo o vale e desse modo uma tropa maior não poderia deixar de ser vista. Ficou, portanto, a maior parte em Ophel; mandaram também sentinelas a vários atalhos e diversos lugares da cidade, para impedir tumultos ou tentativas de salvar Jesus. Judas marchou à frente dos vinte soldados; mandaram, porém, seguí-lo a certa distância quatro soldados de má reputação, gente ordinária, que levavam cordas e algemas. Alguns passos atrás desses, seguiam aqueles seis agentes, com os quais Judas travara relações há muito tempo. Havia entre eles um sacerdote de alta posição e confidente de Anás, outro de Caifás; além desses havia dois agentes fariseus e dois saduceus, que eram também herodianos. Todos, porém, eram espiões, hipócritas, aduladores interesseiros de Anás e Caifás e inimigos ocultos de Jesus, dos mais maliciosos. Os vinte soldados seguiram ao lado de Judas, até chegarem ao lugar onde o caminho passa entre Getsêmani e o horto das Oliveiras; aí não quiseram deixá-Io avançar sozinho e começaram a discutir com

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ele, num tom grosseiro e impertinente. 9. A prisão do Senhor Quando Jesus saiu do horto, no caminho entre Getsêmani e o horto das Oliveiras, apareceu na entrada desse caminho, à distância de vinte passos, Judas com os soldados, que ainda estavam discutindo. Pois Judas queria, separado dos soldados, aproximar-se de Jesus, como amigo; eles deviam depois entrar como por acaso, aparentemente sem Ele saber; mas os soldados seguraram-no, dizendo: "Assim não camarada, não nos fugirás antes de termos preso o Galileu." Avistando depois os oito Apóstolos, que ao ouvir, o barulho se aproximaram, chamaram os quatro soldados para reforçar-se. Judas, porém, não consentiu que esses o acompanhassem e discutiu veementemente com eles. Quando Jesus e os três Apóstolos viram, à luz da lanterna, esse tropel ruidoso, com as armas nas mãos, Pedro quis atacá-Ios à força e disse: "Senhor, os oito de Getsêmani estão também lá adiante: Vamos atacar esses soldados". Jesus, porém, mandou-o ficar quieto e retirou-se alguns passos para além do caminho, onde havia um lugar coberto de relva. Judas, vendo o seu plano transtornado, enraiveceu-se. Quatro dos discípulos saíram do horto Getsêmani, perguntando o que havia acontecido. Judas começou a conversar, querendo sair do embaraço por meio de mentiras, mas os soldados não o deixaram afastar-se. Aqueles quatro eram Tiago, o Menor, Filipe, Tomé e Natanael; este e um dos filhos do velho Simeão e alguns outros tinham vindo para junto dos oito Apóstolos, em Getsêmani, uns enviados pelos amigos de Jesus, para ter notícias d’Ele, outros impelidos pela inquietação e curiosidade. Além desses quatro, andavam também os outros discípulos pelas vizinhanças, espiando de longe e sempre prontos a fugir. Jesus, porém, aproximou-se alguns passos da tropa e disse em voz alta e clara: "A quem estais procurando?" Os chefes dos soldados responderam: "Jesus de Nazaré." E Jesus disse: "Sou eu." Apenas tinha dito estas palavras, caíram os soldados uns sobre os outros, como que atacados de convulsões. Judas, que estava perto, ficou ainda mais desconcertado no seu plano; e pareceu querer aproximar-se de Jesus, mas o Senhor levantou a mão, dizendo: "Amigo, para que vieste?" Judas disse, cheio de confusão, alguma coisa sobre negócio realizado. Jesus, porém, disse-lhe mais ou menos as seguintes palavras: "Oh! Melhor te fora não ter nascido." Mas não me lembro mais das palavras exatas. No entretanto tinham-se levantado os soldados e aproximaram-se de Jesus e dos seus, esperando o sinal do traidor: que beijasse a Jesus. Pedro, porém, e os outros discípulos, cercaram Judas com ameaças, chamandoo de ladrão e traidor. O infeliz quis livrar-se deles por meio de mentiras, mas não conseguiu justificar-se, pois os

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soldados defenderam-no contra os discípulos, dando assim testemunho contra ele. Jesus, porém, disse mais uma vez: "A quem procurais?" Virando se para Ele, responderam de novo: "Jesus de Nazaré." Então disse: "Sou eu; já vos tenho dito que sou eu; se, pois, procurais a mim, deixai aqueles." A palavra "sou eu", caíram os soldados de novo com convulsões e contorções, como as têm os epiléticos e Judas foi de novo cercado pelos Apóstolos, que estavam extremamente furiosos contra ele. Jesus disse aos soldados: "Levantai-vos." Levantaram-se assustados e como os Apóstolos ainda discutissem com Judas e também se dirigissem contra os soldados, estes atacaram os Apóstolos, livrando-Ihes Judas das mãos e impelindo-o com ameaças a dar o sinal combinado, pois tinham ordem de prender só aquele a quem beijasse. Judas aproximou-se então de Jesus, abraçou e beijou-O, dizendo, "Deus te salve, Mestre." E Jesus disse: "Judas, écom um beijo que atraiçoas o Filho do Homem?" Então os soldados cercaram Jesus e os soldados, avançando, puseram mãos em Nosso Senhor. Judas quis fugir, mas os Apóstolos detiveram-no e atacaram os soldados, gritando: "Mestre, feriremos com as espadas?" Pedro, porém, mais excitado e zeloso, puxou da espada e golpeou Malcho, criado do Sumo Sacerdote, que o quis repelir e cortou-lhe um pedaço da orelha, de modo que Malcho caiu por terra, aumentando deste modo ainda a confusão. . A situação nesse momento do veemente ataque de Pedro era a seguinte: Jesus preso pelos soldados, que O queriam amarrar; cercavam-na, num largo círculo, os soldados, um dos quais, MaIcho, foi prostrado por Pedro. Outros soldados estavam ocupados em repelir os discípulos, que se aproximaram ou em perseguir outros que fugiram. Quatro dos discípulos andavam pelo lado do monte e só se avistavam de vez em quando, a grande distância. Os soldados estavam em parte um pouco desanimados pelas quedas, em parte não ousavam perseguir seriamente os discípulos, para não enfraquecerem demasiadamente a tropa que cercava Jesus. Judas, que quis fugir logo depois do beijo traidor, foi detido a certa distância por alguns discípulos, que o cobriram de injúrias. Mas os seis agentes, que só então se aproximaram, livraram-no das mãos dos cristãos indignados. Os quatro soldados, em roda de Jesus, estavam ocupados com as cordas e algemas, seguravam-na e iam amarrá-Ia. Tal era a situação, quando Pedro golpeou Malcho e Jesus ao mesmo tempo disse: "Pedro! Embainha a tua espada, pois quem se serve da espada, perecerá pela espada. Ou pensas que eu não podia pedir a meu Pai que me mandasse mais de doze legiões de Anjos? Então não devo beber o cálice que meu Pai me apresentou? Como se cumpririam as Escrituras, se assim não ,se fizesse?" Disse aos soldados: "Deixai-me curar este homem". Aproximou-se de MaIcho,

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tocou-lhe na orelha, rezando e ficou sã. Estavam, porém, em roda os esbirros, os soldados e os seis agentes, que O insultaram, dizendo aos soldados: "Ele tem contrato com o demônio; a orelha por feitiço parecia ferida e por feitiço sarou.” Então Ihes disse Jesus: "Viestes a mim, armados de espadas e paus, a prender-me como um assassino. Todos os dias tenho ensinado no Templo, no meio de vós e não ousastes pôr a mão em mim; mas esta é a vossa hora, a hora das trevas." Eles, porém, mandaram amarrá-Ia e insultaram-nO, dizendo:. "A nós não nos pudeste jogar por terra com teu feitiço." Do mesmo modo falaram os soldados: "Acabaremos com as tuas práticas de feiticeiro, etc." Jesus respondeu ainda algumas palavras, mas não sei mais o que foi; os discípulos, porém, fugiram para todos os lados. Os quatro soldados e os seis fariseus não tinham caído e portanto também não se tinham levantado, o que sucedeu, como me foi revelado, porque estavam inteiramente nas redes de Satanás, do mesmo modo que Judas, que também não caíra, apesar de estar no meio dos soldados; todos os que caíram e se levantaram, converteram-se depois e tornaram-se cristãos. O cair e levantar era símbolo da conver são. Esses soldados não puseram a mão em Jesus, mas apenas O cercaram; MaIcho converteu-se logo depois da cura, de modo que só por causa da disciplina continuou o serviço; já nas horas seguintes, durante a Paixão de Jesus, fazia o papel de mensageiro entre Maria e os outros amigos de Jesus, para dar notícias do que se passava. Os soldados amarraram Jesus com grande barbaridade e com a bru-talidade de carrascos, por entre contínuos insultos e escárnios dos fariseus. Eram pagãos da classe mais baixa e vil; tinham o peito, os braços e joelhos nus; na cintura usavam uma faixa de pano e na parte superior do corpo, gibão sem mangas, ligado nos lados com correias. Eram de estatura baixa, mas fortes e muito ágeis, de cor parda-ruiva, como a dos escravos do Egito. Amarraram Jesus de uma maneira cruel, com as mãos sobre o peito, prendendo sem compaixão o pulso da mão direita por baixo do cotovelo do braço esquerdo e o pulso da mão esquerda por baixo do cotovelo do braço direito, com cordas novas e duras que lhe cortavam a carne. Passaram-lhe em redor do corpo um cinturão largo, no qual havia pontas de ferro e argolas de fibra ou vime, nas quais amarraram-Lhe uma espécie de colar, no qual havia pontas e outros corpos pontiagudos, para ferir; desse colar saiam, como uma estola, duas correias cruzadas sobre o peito até o cinturão, ao qual foram fortemente apertadas e ligadas. Fixaram ainda, em diversos pontos do cinturão, quatro cordas compridas, pelas quais podiam arrastar Jesus para lá e para cá, conforme lhes ditava a maldade. Todas essas cordas e correias eram novas e pareciam preparadas de propósito, desde que começaram a pensar em prender Jesus.

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4 Jesus conduzido a Anás e Caifás 1. Maus tratos que sofreu a caminho da cidade 2. Lamentações dos habitantes de Ofel 3. Preparativos dos inimigos de Jesus 4. Uma vista geral sobre a Situação em Jerusalém àquela hora 5. Jesus diante de Anás 6. Jesus é conduzido de Anás a Caifás 7. O Tribunal de Caifás 8. Jesus diante de Caifás 9. Jesus é escarnecido e maltratado em casa de Caifás 10. A negação de Pedro 11. Maria no tribunal de Caifás 12. Jesus no cárcere 13. Judas aproxima-se da casa do tribunal 14. O julgamento de Jesus na madrugada 15. Desespero de Judas Jesus conduzido a Anás e Caifás 1. Maus tratos que sofreu a caminho da cidade Depois de acesas algumas lanternas, o cortejo se pôs em marcha. A frente marchavam dez soldados; depois seguiam os esbirros, arrastando Jesus pelas cordas, atrás vinham, insultando-O e escarnecendo-O, os fariseus e no fim os restantes 10 soldados, que formavam a retaguarda. Os discípulos andavam ainda pelas vizinhanças, como fora de si; João, porém, seguia a pouca distância os últimos soldados e os fariseus mandaram prendê-lo. Voltaram por isso alguns soldados, correndo, para segurá-Io, mas ele pôs-se a fugir e, como o segurassem pelo sudário que tinha em volta do pescoço, abandonou-o nas mãos dos soldados e escapou. Já tinha despido o manto antes, vestindo só uma túnica arregaçada e sem mangas, para poder fugir mais ligeiramente. O pescoço, cabeça e braços tinha-os envolvido numa faixa estreita de pano, como os Judeus costumam usar. Os soldados arrastavam e maltratavam Jesus da maneira mais cruel e praticavam muitas maldades, só para agradar e adular desse modo baixo aos seis agentes farisaicos, que eram cheios de ódio e maldade contra Jesus. Conduziram-nO pelo caminho incômodo, por todos os sulcos, sobre as pedras e pela lama. Puxavam as cordas compridas com força, escolhendo para si o melhor caminho; assim

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Jesus tinha de seguir onde as cordas o arrastavam. Tinham nas mãos pedaços de cordas nodosas, com que batiam e impeliam Nosso Senhor para frente, como costumam fazer os carniceiros, levando o gado ao matadouro; tudo isso faziam entre escárnios e insultos tão grosseiros, que seria contra a decência repetir-Ihes as palavras. Jesus ia descalço; além da roupa do corpo, vestia uma túnica de lã, tecida sem costura e um manto. Os discípulos, como os judeus em geral, usavam no corpo, sobre as costas e o peito, um escapulário, constando de duas peças de pano, unidas sobre os ombros por correias, deixando deste modo descobertos os lados; cingiam-se com um cinto, do qual pendiam quatro faixas de pano, as quais, enrolando as coxas, formavam uma espécie de calça. Devo acrescentar ainda que não vi os soldados apresentarem uma ordem escrita ou documento de prisão; procederam como se Jesus estivesse fora da lei e sem direitos. O cortejo marchou a passo rápido e tendo saído do caminho que passa entre o horto de Getsêmani e o das Oliveiras, caminhou algum tempo ao longo do lado oriental de Getsêmani, dirigindo-se a uma ponte que ali atravessa a torrente Cedron. Jesus, indo com os Apóstolos ao monte das Oliveiras, não passara por esta ponte, mas atravessara o Cedron por outra ponte, mais para o sul, tomando um atalho pelo vale de Josafá. A ponte sobre a qual foi conduzido pelos soldados, era muito comprida, porque não se estendia somente sobre o leito do Cedron, que ali passa perto do monte, mas também a alguma distância, sobre os terrenos desiguais do vale, formando uma estrada calçada, transitável. Antes do cortejo chegar à ponte, vi Jesus cair duas vezes por terra, pelos arrancos cruéis que os soldados davam nas cordas. Chegando, porém, no meio da ponte, praticaram ainda maior crueldade. Empurraram o pobre Jesus amarrado, a quem seguravam pelas cordas, da ponte, que ali tinha a altura de um homem, ao leito do Cedron e insultaram-nO ainda, dizendo que aí bebesse à vontade. Foi só por proteção divina que o Redentor não se feriu mortalmente. Caiu sobre os joelhos e depois sobre o rosto, que se teria machucado gravemente no leito, que tinha pouca água, se Ele não o tivesse protegido, estendendo as mãos ligadas. Essas não estavam mais amarradas no cinto; não sei se foi por assistência divina ou se os soldados mesmos lhas desamarraram. As marcas dos joelhos, pés, cotovelos e dedos do Salvador imprimiram-se, pela vontade de Deus, no lugar em que tocaram, no fundo rochoso; mais tarde eram veneradas pelos cristãos. Hoje não se crê mais em tais efeitos; mas vi muitas vezes, em visões históricas, tais impressões feitas em rochas pelos pés, joelhos e mãos de patriarcas e profetas, de Jesus, da SS. Virgem e de outros santos. As rochas eram menos duras e mais crentes do que os corações dos homens e deram, em tais momentos, testemunho da impressão que a verdade sobre elas fez.

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Eu não tinha visto Jesus beber durante as graves angústias no mon-te das Oliveiras, apesar da veemente sede; depois, porém, quando o empurraram no Cedron, eu O vi beber penosamente e recitar a: passagem profética do salmo que fala em "beber do ribeiro ao lado do caminho." (Sal. 109,7). Os soldados que ficaram na ponte, seguravam Jesus sempre pelas cordas e porque Ihes era demasiadamente dificultoso puxá-Lo para cima e como a muralha na outra banda impedia que Jesus atravessasse o ribeiro, voltaram para trás, para o começo da ponte, arrastando Jesus através do Cedron; ali desceram à margem e puxaram-nO de costas, pela ribanceira acima. Esses miseráveis empurraram então ao pobre Jesus pela segunda vez, sobre a longa ponte, arrastando e arrancando-O para frente, cobrindo-O de insultos e maldições, empurrões e pancadas. A longa túnica de lã, ensopada de água, caia-Lhe pesada sobre os ombros; movia-se com dificuldade e no outro lado da ponte caiu ,de novo por terra. Levantaram-nO aos arrancos, batendo-Lhe com as cordas nodosas, arregaçaram-Lhe no cinto o vestido molhado, entre vis escárnios e insultos; falaram, por exemplo, de arregaçar a veste, para matar o cordeiro pascal e zombarias semelhantes. Ainda não era meia noite, quando vi Jesus caminhar, empurrado de-sumanamente pelos soldados, entre pragas e pancadas, sobre o pedregulho cortante e pedaços de rochas, através de cardos e espinheiros. O caminho passava para o outro lado do Cedron; era estreito e já muito estragado e havia atalhos paralelos a ele, ora mais acima, ora mais abaixo. Os seis malvados fariseus ficavam onde o caminho o permitia, sempre perto de Jesus; cada um tinha na mão um instrumento de tortura, uma vara curta, com ponta aguda, com a qual Lhe batiam ou, empurrando-O, picavam. Nos lugares por onde Jesus andava, com os pés descalços e sangrentos, sobre as pedras cortantes, por urtigas e espinheiros, arrastado pelos soldados, que andavam nas veredas mais cômodas do lado, o coração terno do pobre Jesus ainda era ferido pelo malicioso escárnio dos seis fariseus, que diziam, por exemplo: "Aqui o teu precursor, João Batista, não te preparou um bom caminho." ou: Aqui não se cumpre a palavra do profeta Malaquias: "Eis aí mando o meu Anjo e ele preparará o caminho diante de ti"; ou: "Porque não ressuscita Ele a João Batista, para preparar-Lhe o caminho?" Tais palavras escarnecedoras daqueles miseráveis, acompanhadas de risadas impertinentes dos outros, instigavam também os soldados a afligirem Jesus com novas crueldades. Tendo arrastado o Senhor por algum tempo, notaram que diversos homens se avistavam ao longe, seguindo o cortejo, pois, à notícia da prisão de Jesus, vieram muitos discípulos de Betfagé e de outros esconderijos, para ver o que sucedia ao Mestre. À vista disso, começaram os inimigos de Jesus a recear que aqueles homens pudessem agredí-los e libertar o preso; fizeram por isso sinais

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na direção do arrabalde de Ofel, gritando que Ihes mandassem reforço, como antes tinham combinado. O cortejo tinha ainda um caminho de alguns minutos até a porta que, mais ao sul do Templo, conduzia, através de um arrabalde pequeno, ao monte Sião, onde moravam Anás e Caifás, quando vi sair dessa porta um pelotão de 50 soldados, para reforçar a guarda de Jesus. Marchavam em três grupos: o primeiro de dez, o último de quinze homens; esses contei, o do meio tinha, portanto, 25. Traziam diversas lanternas e avançavam muito barulhentos e impertinentes, dando gritos altos, como para anunciar a sua vinda aos soldados do cortejo e dar-Ihes os parabéns pela vitória. Aproximaram-se com grande vozeria. No momento em que o primeiro grupo se juntou ao cortejo de Jesus, vi Malcho e alguns outros da retaguarda aproveitarem a desordem, para se afastarem furtivamente, dirigindo-se de novo ao monte das Oliveiras. Quando esse destacamento saiu ao encontro do outro cortejo, à luz das lanternas e com grande gritaria, dispersaram-se os discípulos que tinham aparecido nos arredores. Vi, porém, a SS. Virgem e nove mulheres, impelidas pelo medo, virem de novo ao vale de Josafá. Estavam com ela, Marta, Madalena, Maria, filha de Cleofas, Maria Salomé, Maria Marcos, Suzana, Joana Chusa, Verônica e Salomé. Estavam ao sul de Getsêmani, defronte daquela parte do monte das Oliveiras, onde há outra gruta, na qual Jesus, em outras ocasiões, costumava rezar. Vi com elas também Lázaro, João Marcos, como também o filho de Verônica e de Simeão. Esse estivera também com os oito Apóstolos em Getsêmani e passara no meio dos soldados em tumulto. Trouxeram a notícia às santas mulheres. Nesse momento ouviram a gritaria e avistaram as lanternas das duas tropas, que se encontravam. A SS. Virgem perdeu então os sentidos, caindo nos braços das companheiras, que se retiraram com ela a certa distância, para, depois de passado o cortejo, levá-Ia à casa de Maria Marcos. 2. Lamentações dos habitantes de Ofel Os cinqüenta soldados faziam parte de uma tropa de 300 homens, que haviam ocupado de improviso as portas e ruas de Ofel e arredores; pois Judas, o traidor, prevenira o Sumo Sacerdote que os habitantes de Ofel, na maior parte pobres operários, jornaleiros, carregadores de água e lenha, a serviço do Templo, eram os partidários mais convictos de Jesus e que era para recear que fizessem tentativas de livrá-Lo, ao ser conduzido por lá. O traidor bem sabia que Jesus tinha ali muitas vezes ensinado, consolado, socorrido e curado muitos dos pobres obreiros. Foi também ali que Jesus se demorou, por ocasião da viagem de Betânia a Hebron, depois da morte de S. João Batista, para consolar os amigos deste; nessa estadia em Ofel, Jesus curara muitos

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operários e jornaleiros, feridos no desabamento do aqueduto e da grande torre de Silo. A maior parte dessa pobre gente reuniu-se, depois da vinda do Espírito Santo, à primeira comunidade cristã; quando depois os cristãos se separaram dos judeus e fundaram várias colônias da comunidade, erigiramse tendas e cabanas dali por todo o vale, até o monte das Oliveiras. Naquele tempo era também ali o campo de ação de Estevão. Ofel é uma colina cercada de muralhas, situada ao sul do Templo e habitada na maior parte por jornaleiros pobres; parece-me que não é muito menor do que Dülmen. Os habitantes de Ofel foram acordados do sono pelo barulho da tropa, que ocupou o bairro. Saíram das casas a correr, apinharam-se nas ruas e diante da porta onde estavam os soldados e perguntaram o que sucedia; mas foram repelidos para suas casas com zombarias e rudes insultos pelos soldados, que eram na maior parte escravos de índole baixa e impertinente. Quando, porém, tiveram a informação dada por alguns soldados: "trazem preso o falso profeta, Jesus, o malfeitor; o Sumo Sacerdote quer acabar-Lhe com as práticas; provavelmente morrerá na cruz", levantou-se alto pranto e lamentação em toda a vila, acordada do sono noturno. Essa pobre gente, homens e mulheres, correram pelas ruas, chorando ou caindo de joelhos, com os braços estendidos, clamando ao céu ou lembrando em alta voz os benefícios que Jesus Ihes havia feito. Mas os soldados fizeram-nos voltar para as casas, empurrando-os e batendo-Ihes; insultaram também a Jesus, dizendo: "Eis aqui uma prova evidente de que é um agitador do povo. Não conseguiram, porém, sossegar inteiramente o povo, temendo também que, com maio res violências, ficasse ainda mais excitado; contentaram-se, pois, em retê-Io fora da rua pela qual Jesus devia ser conduzido. Entretanto aproximava-se cada vez mais da porta de Ofel o cortejo desumano, que trazia Jesus preso. Nosso Senhor já caíra diversas vezes e parecia não poder sustentar-se mais em pé. Um soldado compadecido aproveitou essa ocasião e disse: "Vós mesmos vedes que Ele não pode mais andar: Se O quiserdes levar vivo à presença do Sumo Pontífice, soltai-Lhe um pouco as cordas que Lhe prendem as mãos, para que, caindo, possa apoiar-se. Enquanto o cortejo parava e os soldados Lhe desligavam um pouco as mãos, outro soldado misericordioso trouxe Lhe água para beber, de um poço que se achava na vizinhança. Haurira a água com um saquinho de cortiça, que os soldados e viajantes nesse país costumam usar para beber. Jesus disse-Lhe algumas palavras de agradecimento, citando um trecho de um profeta, sobre "beber água viva" ou "fontes de água viva", não sei mais exatamente; os fariseus zombaram e insultaram-nO por isso. Acusaram-nO de vangloriar-se e de blasfemar, disseram-Lhr que deixasse tais palavras vaidosas; que não daria mais a beber nem

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a um animal, muito menos a um homem. Foi-me, porém, revelado que aqueles dois homens: um que fez desligar as mãos de Jesus e o outro que lhe deu a beber, tiveram a graça de uma iluminação interna. Converteram-se já antes da morte de Jesus e uniram-se, como discípulos, à comunidade cristã. Eu lhes sabia os nomes e também os nomes que receberam como discípulos e todas as circunstâncias da sua conversão; mas é impossível guardar tudo na memória: é uma imensidade de coisas. O cortejo continuou então o caminho, maltratando o Senhor; subin-do por uma encosta, entrou pela porta de Ofel, onde foi recebido pelos lamentos pungentes dos habitantes, que tinham por Jesus grande afeto e gratidão. Só à força podiam os soldados reter a multidão de homens e mulheres, que se acercaram de todos os lados. Vinham correndo, prostravam-se de joelhos, estendendo os braços e exclamando, "Soltai este homem, soltai este homem. Quem nos há de socorrer, quem nos há de curar e consolar? Entregai-nos este homem." Era um espetáculo que dilacerava o coração: Jesus, pálido, desfigurado, ferido, o cabelo em desordem, o vestido molhado, sujo, mal arregaçado, puxado pelas cordas, empurrado a pauladas, impelido pelos soldados impertinentes, meio nus, como se conduz um animal meio morto ao sacrifício; vê-Io arrastado pela soldadesca arrogante, através da multidão dos habitantes de Ofel, cheios de gratidão e compaixão, que Lhe estendiam os braços, que curara de paralisia, que o aclamavam com as línguas a que restituíra a voz, que olhavam e choravam com os olhos a que dera a vista. Já no vale do Cedron se juntara à tropa muita gente de classe baixa, agitada pelos soldados e provocada pelos agentes de Anás e Caifás e outros inimigos de Jesus; insultavam e injuriavam a Jesus e ajudavam também a ultrajar e afrontar o bom povo de OfeI. Este lugar está situado numa colina; vi o ponto mais alto, no meio da vila, um largo onde estava empilhada muita madeira de construção, como no pátio de uma carpintaria. Descendo dali, o cortejo dirigiu-se a uma porta do muro, pela qual saiu do arrabalde. Depois do cortejo ter saído de Ofel, os soldados impediram o povo de seguí-Io, O cortejo desceu ainda um pouco no vale, deixando à direita um edifício vasto, restos, se me lembro bem, de obras de Salomão e à esquerda, o tanque de Betesda. Assim marcharam, descendo sempre o caminho do vale chamado Milo, depois se dirigiram um pouco para o sul, subindo as altas escadarias do monte Sião, para a casa de Anás. Em todo esse caminho continuavam a insultar e maltratar Jesus e o povo baixo que vindo da cidade se juntara ao cortejo, instigava os infames soldados a repetirem as crueldades. Do monte das Oliveiras até a casa de Anás caiu Jesus sete vezes. Os habitantes de Ofel ainda estavam cheios de susto e tristeza,

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quando outro incidente lhes renovou a compaixão: a Mãe de Jesus, conduzida pelas santas mulheres e pelos amigos de Jesus, vindo do vale de Cedron, passou por Ofel, indo à casa de Maria Marcos, situada ao pé do monte Sião. Quando a boa gente de Ofel a reconheceu, começou de novo a chorar compadecida; apinhava-se de tal modo em roda de Maria e dos companheiros, que a Mãe de Jesus foi quase transportada pela multidão. Maria, muda de dor, não falava, nem depois de chegar à casa de Maria Marcos, senão quando chegou mais tarde João; então começou a perguntar com grande tristeza e João contou-lhe tudo o que vira, desde a saída do Cenáculo, até aquela hora. Mais tarde levaram a SS. Virgem à casa de Marta, a leste da cidade, ao pé do palácio de Lázaro. Conduziram-na novamente por desvios, evitando os caminhos pelos quais Jesus fora conduzido, para não lhe aumentar demais a tristeza e dor. Pedro e João que, a certa distância, tinham seguido o cortejo, quando este entrou na cidade, recorreram depressa a alguns conhecidos que João tinha entre os empregados do Sumo Pontífice, para acharem uma oportunidade de entrar na sala do tribunal, para onde o Mestre devia ser levado. Esses conhecidos de João eram uma espécie de mensageiros do tribunal, que naquela hora receberam ordem de percorrer a cidade, para acordar os anciãos de várias classes e mais outras pessoas e convocálos para a sessão do tribunal. Desejavam mostrar-se obsequiosos aos dois Apóstolos, mas não acharam outro meio senão o de fazer João e Pedro vestirem-se dos mantos de mensageiros e ajudá-Ios a convocar os anciãos e revestidos desses mantos, entrarem depois no tribunal de Caifás; pois ali estava reunido somente gente de classe baixa, todos subornados, soldados e falsas testemunhas; todos os outros eram expulsos. Como, porém, José de Arimatéia e Nicodemos e outras pessoas bem intencionadas também fossem membros do Sinédrio, aos quais os fariseus talvez deixassem de avisar de propósito, foram Pedro e João convidar todos esses amigos de Jesus. Judas, no entanto, como um criminoso desvairado, que a seu lado vê o demônio, andava vagando pelas encostas íngremes ao sul de Jerusalém, para onde se jogavam o lixo e todas as imundícies. 3. Preparativos dos inimigos de Jesus Anás e Caifás tinham imediatamente recebido notícia da prisão de Jesus. Em suas casas estava tudo em pleno movimento. As salas dos tribunais estavam iluminadas e todas as respectivas entradas e passagens guardadas; os mensageiros percorriam a cidade, para convocar os membros do Conselho, os escribas e todos quantos tinham voto no tribunal. Muitos, porém, já estavam reunidos com Caifás, desde a hora da traição de Judas, para esperar o resultado. Foram também chamados os anciãos das três classes de

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cidadãos. Como os fariseus, saduceus e herodianos de todas as partes do país, tinham chegado para a festa a Jerusalém, já havia alguns dias e tendo sido combinado havia muito tempo, entre eles e o Sinédrio, a prisão de Jesus, foram chamados também entre eles os mais ferozes inimigos do Salvador (Caifás tinha uma lista com os nomes de todos); receberam a ordem de juntar, cada um no seu meio, todas as provas e testemunhas contra o Senhor e de trazê-Ias ao tribunal. Estavam, porém, reunidos em Jerusalém todos os fariseus e saduceus e outra gente malvada de Nazaré, Cafamaum, Tirza, Gabara, Jotapata, Silo e outros de lugares, aos quais Jesus tinha dito tantas vezes a verdade crua, cobrindo-os de vergonha e confusão, diante de todo o povo; estavam todos cheios de ódio e raiva e cada um foi então procurar alguns patifes, entre os peregrinos conterrâneos, que moravam em acampamentos separados, conforme as várias regiões; subornaram-nos com dinheiro, para agitarem contra Jesus e O acusarem. Mas, fora algumas evidentes mentiras e calúnias, não sabiam proferir senão' aquelas acusações, a respeito das quais Jesus os reduzira inumeráveis vezes ao silêncio nas sinagogas. Todos esses homens reuniram-se pouco a pouco no tribunal de Caifás e mais toda a multidão de inimigos de Jesus, entre os orgulhosos fariseus e escribas e toda a escória mentirosa de seus partidários em Jerusalém. Haviajá alguns dos mercadores, furiosos porque Jesus os expulsara do Templo; muitos doutores vaidosos que Ele fizera emudecer no Templo, diante do povo e talvez ainda houvesse alguns que não Lhe podiam perdoar tê-los convencido de erros quando, menino de doze anos, ensinara pela primeira vez no Templo. Entre os inimigos de Jesus ali reunidos havia pecadores impenitentes, que Ele não quisera curar da doença, pecadores reincidentes, que depois da cura, de novo adoeceram; jovens vaidosos, que o Mestre não aceitara como discípulos; caçadores de heranças, furiosos por Ele ter dividido entre os pobres tantos bens que esperavam possuir; criminosos, cujos camaradas convertera; libertinos e adúlteros, cujas amantes reconduzira ao caminho da virtude; homens que já se rejubilavam de herdar riquezas, cujos proprietários foram por Ele curados da doença; e muitos vis aduladores, capazes de toda a maldade, muitos instrumentos de Satanás, cujos corações odiavam tudo quanto era santo e, portanto, mais ainda, o Santo dos santos. Essa escória de uma grande parte do povo judaico, reunida para a festa, foi posta em movimento, excitada pelos inimigos principais de Jesus e afluía de todos os lados ao palácio de Caifás, para acusar falsamente de todos os crimes ao verdadeiro Cordeiro pascal de Deus, que tomara sobre si os pecados do mundo; vinham manchá-Lo com os efeitos dos pecados que tomara sobre si, suportando e expiando-os. Enquanto esse lodo do povo judaico se agitava, para enlamear o

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Salvador Imaculado, aproximavam-se também muitas pessoas piedosas e amigos de Jesus, acordados pelo tumulto e entristecidos pela terrível notícia; não estavam iniciados nas intenções secretas dos inimigos, e quando ouviam e choravam, eram enxotados, quando se calavam, olhavam-nos de canto. Outros, mais fracos, bem intencionados e outros meio convencidos, se escandalizavam ou caiam em tentações, duvidando de Jesus. O número dos que ficaram firmes na fé, não era grande; aconteceu como ainda acontece hoje, que muitos querem ser bons cristãos, enquanto lhes convém, mas que se envergonham da cruz onde ela não é bem vista. Já no principio, porém, muitos se retiraram abatidos e calados; pois estavam enojados do processo injusto, da acusação infundada, dos insultos e ultrajes vis e revoltantes e também comovidos pela paciência resignada do Salvador. 4. Uma vista geral sobre a Situação em Jerusalém àquela hora Terminadas as numerosas cerimônias e orações, tanto públicas como particulares, acabados os preparativos para a festa, a vasta cidade populosa e os extensos acampamentos dos peregrinos pascais, nos arredores, estavam mergulhados em profundo sono e descanso, quando veio a notícia da prisão de Jesus, excitando tanto inimigos como amigos do Senhor. De todos os pontos da cidade se põem em movimento os convocados pelos mensageiros do Sumo Sacerdote. Correm, aqui ao claro luar, acolá à luz de lanternas, pelas ruas de Jerusalém, as quais de noite, pela maior parte, estão escuras e desertas; pois em geral se passa a vida das famílias nos pátios interiores, para onde também dão as janelas. Todos aqueles homens caminham para Sião, de cuja eminência bri-lha a luz das lanternas e ressoa grande vozeria. Ouve-se ainda, cá e lá, bater às portas dos vestíbulos para acordar os dormentes. Em muitas partes da cidade há tumulto, barulho e gritaria; abrem-se as portas aos que batem, pergunta-se o que há e obedece-se à ordem de ir a Sião. Curiosos e criados seguem, para trazer depois notícias dos acontecimentos aos que ficam em casa. Ouve-se o fechar de portas e o puxar barulhento de ferrolhos e trancas. O povo é medroso e receia uma agitação. Cá e lá saem pessoas das casas, pedindo informações a conhecidos que passam ou esses entram apressadamente em casa de amigos; ouvem-se aí muitas conversas maliciosas, como em semelhantes ocasiões, também hoje em dia, são bastante comuns, dizem, por exemplo: "Agora Lázaro e a irmã vão ver com quem travaram amizade. Joana Chusa, Suzana, Maria, mãe de João Marcos e Salomé arrepender-se-ão do procedimento que tiveram. Como deve agora Seráfia se humilhar diante do marido, Sirach, que tantas vezes

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a tem censurado por causa das relações com o Galileu! Todo o bando dos partidários deste agitador fanático olhava com compaixão para os que não os acompanhavam, mas agora muitos não saberão onde se esconder. Agora não se apresenta ninguém que lhe estenda mantos e véus ou ramos de palmeira sob os pés do jumento. Esses hipócritas, que sempre querem ser melhores do que os outros, bem merecem cair agora na suspeita, pois todos estão implicados na causa do Galileu. Isto tem raízes mais longas do que se pensa. Eu queria saber como Nicodemos e José de Arimatéia se hão de haver; há muito que se desconfia deles, dão-se muito com Lázaro, mas são uns espertos. Agora há de esclarecer-se tudo, etc. Desse modo se ouve falar muita gente, que tem ódio contra certas famílias, especialmente contra aquelas mulheres que creram em Jesus e desde então lhe manifestaram publicamente a fé. Em outras partes o povo recebe as notícias de maneira mais digna; alguns se assustam e outros choram sozinhos ou procuram ocultamente um amigo que pense como eles, para desafogar o coração. Poucos, porém, se atrevem a manifestar compaixão franca e resolutamente. Não é, porém, em toda a cidade que reina a excitação, mas apenas onde os mensageiros levam a chamada para o tribunal, onde os fariseus procuram as falsas testemunhas e especialmente no entroncamento das ruas que conduzem a Sião. É como se em diferentes partes de Jerusalém se alumiassem faíscas de fúria e raiva que, correndo pelas ruas, se tinissem a outras que encontrassem e, cada vez mais fortes e densas, se derramassem finalmente, como um rio lúgubre de fogo, no tribunal de Caifás sobre Sião. Em algumas partes da cidade reina ainda silêncio, mas também ali já começa a pouco o alarme. Os soldados romanos não tomam parte; mas os guardas estão reforçados e as tropas reunidas; observam atentamente o que acontece. Nos dias da Páscoa estão sempre muito quietos, por causa do grande concurso do povo, mas ao mesmo tempo sempre prontos e de sobreaviso. O povo que percorre as ruas, evita os pontos onde estão os guardas; pois contraria muito aos judeus farisaicos ter de responder ao grito da sentinela. Os Sumos Sacerdotes certamente informaram antes a Pilatos o motivo porque ocuparam Ofel e uma parte de Sião com os seus soldados; mas eles desconfiam uns dos outros. Pilatos também não dorme; recebe informações e dá ordens. A esposa está deitada no leito, dormindo profundamente, mas está inquieta, geme e chora, como opressa por pesadelos; dorme, mas aprende muitas coisas, mais do que Pilatos. Em nenhuma parte da cidade se manifesta tanta compaixão como em Ofel, entre os pobres escravos do Templo e os jornaleiros que habitam essa colina. A dolorosa nova surpreendeu-os tão repentinamente, no meio da noite silenciosa; a crueldade despertou-os do sono: aí passara o santo Mestre, o benfeitor que

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os curara e consolara, passara como uma horrível visão noturna, ferido e maltratado; depois se Ihes concentrou novamente a compaixão na Mãe dolorosa de Jesus, passando pelo meio deles, com as companheiras. Ai! Que espetáculo triste, a Mãe dilacerada pela dor e as amigas de Jesus, obrigadas a percorrer as ruas, inquietas e tímidas, à hora insólita da meia noite, refugiando-se de uma casa amiga à outra! Diversas vezes se vêm obrigadas a esconder-se num canto das casas, para deixar passar um grupo de impertinentes; outras vezes são insultadas como mulheres notívagas; freqüentemente ouvem ditos maliciosos dos transeuntes, raras vezes uma palavra de compaixão para com Jesus. Chegadas afinal ao abrigo, caem abatidas por terra, chorando e torcendo as mãos, todas igualmente desconsoladas e sem forças; sustentam ou abraçam umas as outras, ou sentam-se, em dor silenciosa, apoiando sobre os joelhos a cabeça velada. Batem à porta, todas escutam em silêncio e medo; batem devagar e timidamente: não é um inimigo; abrem com receio: é um amigo ou um criado de um amigo de seu Senhor e Mestre; rodeiam-no, pedindo notícias e ouvem falar de novos sofrimentos; a compaixão não as deixa ficar em casa, saem de novo à rua, para se informar, mas voltam sempre com crescente tristeza. A maior parte dos Apóstolos e discípulos andam vagando medrosos pelos vales em redor de Jerusalém e escondem-se nas caver nas do monte das Oliveiras. Cada um se assusta à aproximação do outro; pedem notícias em voz baixa e cada ruído de passos lhes interrompem as tímidas conversas. Mudam freqüentemente de paradeiro e separadamente se aproximam de novo da cidade. Outros procuram, furtivamente, conhecidos entre os conterrâneos peregrinos, nos acampamentos, para pedir informações ou mandam-nos à cidade, para trazerem notícias. Outros sobem ao monte das Oliveiras, espiando inquietos o movimento das lanternas e escutando o barulho em Sião, interpretam tudo de mil diferentes modos e descem de novo ao vale, para ter qualquer informação certa. O silêncio da noite é cada vez mais interrompido pelo barulho em torno do tribunal de Caifás. Essa região é iluminada pela luz das lanternas e dos archotes. Nos arredores da cidade ressoa o mugido dos numerosos animais de carga ou de sacrifício, que tantos peregrinos de fora trouxeram para os acampamentos; como ressoa inocente e comovedor o balir desamparado e humilde dos inumeráveis cordeiros, que amanhã hão de ser imolados no Templo! Mas um só é imolado, porque Ele mesmo quis e não abre a boca, como a ovelha que é conduzi da ao matadouro; e como um cordeiro, que emudece diante de quem o tosa, assim se cala o Cordeiro pascal, puro e sem mancha, - Jesus Cristo. Sobre todo esse quadro se estende um céu sinistro e singularmente impressionante: a lua caminha ameaçadora, escurecida por estranhas manchas; dir-se-ia estar alterada e horrorizada, como

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se tivesse medo de tomar-se cheia, pois nessa ocasião Jesus já estará morto. Fora da cidade porém, no íngreme vale de Hinon, anda vagando Judas Iscariotes, o traidor, - incitado pelo demônio, chicoteado pela consciência, fugindo da própria sombra, solitário, sem companheiro, em lugares malditos e sem caminhos, em pântanos lúgubres, cheios de lixo e imundícies; milhares de espíritos maus andam por toda a parte, desnorteando os homens e impelindo-os ao pecado. O inferno está solto e incita todos ao pecado: o fardo pesado do Cordeiro aumenta. A raiva de Satanás multiplica-se, semeando desordem e confusão. O Cordeiro tem sobre si todo o fardo; Satanás, porém, quer o pecado e pois que não cai em pecado esse justo, a quem em vão tentou seduzir, quer pelo menos que os inimigos que O perseguem, pereçam no pecado. Os Anjos, porém, vacilam entre tristeza e alegria; desejariam suplicar diante do trono de Deus a permissão de socorrer a Jesus, mas só podem admirar e adorar o milagre da justiça e misericórdia divina, que já existia, desde a eternidade, no Santíssimo do céu e começa a realizar-se agora no tempo, pois também os Anjos crêem em Deus Pai, Todo-Poderoso, Criador do Céu e da terra e em Jesus Cristo, um só seu Filho, Nosso Senhor, o qual foi concebido do Espírito Santo, nasceu de Maria Virgem, que esta noite começará a padecer, sob o poder de Pôncio Pilatos, que amanhã será crucificado, morto e sepultado; que descerá aos infernos, ressurgirá dos mortos ao terceiro dia, que subirá ao céu, onde se sentará à mão direita de Deus Pai Todo-Poderoso e de onde há de vir ajulgar os vivos e os mortos pois também eles crêem no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na Comunhão dos Santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne e na vida eterna. Amém. Tudo isto é apenas uma pequena parte das impressões que necessariamente enchiam um pobre coração pecador de dilacerante angústia, contrição, consolação e compaixão quando, em busca de alívio, se lhe desviava o olhar da cruel prisão do Salvador e se dirigia sobre Jerusalém, nessa hora da meia noite, a mais solene de todos os tempos, na qual a infinita justiça e a misericórdia infinita de Deus, encontrando-se, abraçando-se e penetrando-se uma a outra, iniciaram a santíssima obra do amor de Deus e dos homens: castigar e expiar os pecados dos homens no Homem-Deus pelo Homem-Deus. Tal era a situação geral, quando o nosso querido Salvador foi conduzido à casa de Anás. 5. Jesus diante de Anás Cerca de meia noite chegou Jesus ao palácio de Anás e foi

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conduzido, pelo átrio iluminado, à grande sala que tinha o tamanho de uma pequena Igreja. No fundo, em frente à entrada, estava sentado Anás, rodeado de 28 conselheiros, num terraço, sob o qual podia passar, pelo lado. Em frente havia uma escada, interrompida por patamares, que conduzia a esse tribunal de Anás, no qual se entrava por uma porta própria, do fundo do edifício. Jesus, cercado ainda por uma parte dos soldados que o prenderam, foi puxado pelos soldados alguns degraus da escada para cima e seguro pelas cordas. A outra parte da sala foi ocupada por soldados e gentalha, judeus que insultavam Jesus, criados de Anás, e parte das testemunhas reunidas por este que depois se apresentaram em casa de Caifás. Anás estava esperando impacientemente a chegada de Jesus: tudo nele revelava ódio, malícia e crueldade. Era então presidente de um certo tribunal e reunira ali a junta da comissão, que tinha a tarefa de velar pela pureza da doutrina e de exercer o ofício de procurador geral no tribunal do Sumo Sacerdote. Jesus estava em pé diante de Anás, calado, de cabeça baixa, pálido, cansado, com as vestes molhadas e enlameadas, as mãos amarradas, seguro com cordas pelos soldados. Anás, velho malvado, magro, com pouca barba, cheio de impertinência e de orgulho farisaico, sorria hipócritamente, como se não soubesse de nada e se admirasse de ser Jesus o preso que lhe haviam anunciado. O discurso enfadonho com que recebeu Jesus, não sei repetí-Io com as mesmas palavras, mas era mais ou menos o seguinte: "Olá! Jesus de Nazaré! És tu? Onde estão então os teus discípulos, os teus numerosos aderentes? Onde está o teu reino? Parece que tudo saiu muito diferente do que pensavas! Acabaram agora as injúrias; esperávamos pacientemente até que estivesse cheia a medida das tuas blasfêmias, dos teus insultos aos sacerdotes e violações do Sábado. Quem são os teus discípulos? Onde estão? Agora te calas? Fala, agitador e sedutor do povo? Já comeste o cordeiro pascal de modo insólito, à hora e em lugar fora de costume. Queres introduzir uma nova doutrina? Quem te deu o direito de ensinar? Onde estudaste? Qual é a tua doutrina, que excita a todos? Responde, fala! Qual é a tua doutrina?” Então levantou Jesus a cabeça fatigada e, fitando Anás, disse: "Tenho falado em público, diante de todo o mundo, em lugares onde todos os judeus costumam reunir-se. Não tenho dito nada em segredo. Porque me perguntas a mim? Pergunta àqueles que me ouviam, eles sabem o que tenho falado.” Como o rosto de Anás, a essas palavras de Jesus, manifestasse ódio e raiva, um esbirro infame, miserável e adulador, que estava ao lado de Jesus e que o percebeu, bateu, com a mão de ferro, na boca e face de Nosso Senhor, dizendo: "Assim é que respondes ao Sumo Pontífice?" Jesus, abalado pela veemência da pancada e arrancado e empurrado pelos soldados, caiu sobre a escada de lado e o sangue

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escorreu-lhe do rosto; a sala retumbou de escárnio, murmúrio, insultos e risadas. Levantaram Jesus com brutalidade e Ele disse calmamente: "Se falei mal, mostra-me em que; se eu disse a verdade, porque me feres?” Anás, enfurecido pela calma de Jesus, convidou todos os presentes a dizer, como Ele próprio queria, o que d’Ele tinham ouvido, o que ensinava. Seguiu-se então uma grande vozeria e gritaria daquele populacho: Ele disse que era rei, que era Filho de Deus, que os fariseus eram adúlte ros; Ele agitava o povo, curava no sábado, com auxílio do demônio; o povo de Ofel rodeava-O como dementes, chamava-O seu Salvador e Profeta; Ele se deixava chamar Filho de Deus; Ele mesmo se dizia enviado por Deus, chamava a maldição sobre Jerusalém, falava da destruição da cidade, não guardava o jejum, percorria o país seguido de multidões de povo, comia com ímpios, pagãos, publicanos e pecadores, levava em sua companhia mulheres de má vida, havia pouco tinha dito em Ofel que daria a quem lhe deu água a beber, água da vida eterna e ele não teria mais sede; seduzia o povo com palavras equívocas, desperdiçava o bem alheio, pregava ao povo muitas mentiras sobre seu reino e muitas outras coisas. Todas essas acusações foram proferidas ao mesmo tempo, numa grande confusão. Os acusantes avançavam para Jesus, lançando-Lhe em rosto essas acusações, acompanhadas de insultos e os soldados empurravam-nO para cá e para lá, dizendo: "Fala! responde!" Anás e os conselheiros tomavam também parte, gritando-lhe, com riso sarcástico: "Ora, agora ouvimos a tua doutrina. É boa! Que respondes? É essa então a tua doutrina pública? O país está cheio dela. Aqui não tens nada que dizer? porque não ordenas? oh, rei? Oh, enviado de Deus, mostra a tua missão?” A cada uma dessas exclamações dos superiores, seguiam-se arrancos, empurrões e insultos da parte dos soldados e de outros que estavam próximo, que todos de boa vontade teriam imitado o que Lhe batera na face. Jesus cambaleava de um lado para o outro e Anás disse-Ihe, com impertinência insultante: "Quem és? Que espécie de rei ou enviado? Eu julgava que fosses o filho de um marceneiro obscuro. Ou és acaso Elias, que foi levado ao Céu num carro de fogo? Dizem que ele ainda vive. Sabes também te tornar invisível, assim escapaste muitas vezes. Ou és por acaso Malaquias? Sempre tens feito gala com esse profeta, interpretando-lhe as palavras como se falasse de ti mesmo. Anda também a respeito dele um boato, que não tinha pai, que era um Anjo e não morreu; boa oportunidade para um embusteiro fazer-se passar por ele. Dize, que espécie de rei és? És maior do que Salomão? Esta é também uma afirmação tua. Está bem, não te quero privar mais tempo do título de teu reino.” Anás mandou, pois, trazer uma tira de pergaminho, de 3/4 de côvado

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de comprimento e da largura de três dedos, pô-Ia sobre uma tabuinha, que seguravam diante dele e escreveu com uma pena de caniço uma série de letras grandes, cada uma das quais continha uma acusação contra o Senhor. Enrolou-a depois e pô-Ia numa pequena cabaça, fechando esta com uma rolha e amarrando-a a um caniço, mandou entregar-Lhe esse cetro irrisório e dirigiu-Lhe, com riso satírico, algumas palavras, como: "Eis aqui o cetro de teu reino; contém todos os teus títulos, dignidades e direitos. Leva-os ao Sumo Sacerdote, para que conheça a tua missão e o teu reino e te trate como convém à tua posição. Amarrai-Lhe as mãos e levai este rei ao Sumo Sacerdote." Então amarraram de novo as mãos de Jesus, que antes tinham desligado, cruzando-lhas sobre o peito e pondo nelas o cetro afrontoso, que continha as acusações de Anás. Assim conduziram o Senhor, entre risadas, insultos e brutalidades, da grande sala de Anás para a casa de Caifás. 6. Jesus é conduzido de Anás a Caifás Ao ser conduzido à casa de Anás, Jesus passara já pelo lado da casa de Caifás; reconduziram-nO depois para lá, descrevendo um ângulo. Da casa de Anás à de Caifás haveria talvez a distância de trezentos passos. O caminho, que passa entre muros e pequenos edifícios pertencentes ao tribunal de Caifás, era iluminado por braseiros, colocados em cima de paus e estava cheio de uma multidão clamorosa de frenéticos judeus. Mal podiam os soldados reter a multidão. Aqueles que tinham ultrajado a Jesus na casa de Anás, repetiram então a seu modo as palavras afrontosas desse último diante do povo e Jesus foi maltratado e injuriado em todo o percurso do caminho. Vi criados armados do tribunal afastarem pequenos grupos de pessoas que choravam, lastimando a Jesus, enquanto que deixavam entrar no pátio da casa de Caifás e davam dinheiro a outros que se distinguiam acusando e insultando o Divino Mestre. 7. O Tribunal de Cairás Para chegar ao tribunal de Caifás, passa-se primeiro por um portão a um vasto pátio exterior, depois por outro portão a outro pátio que, com os outros muros, cerca toda a casa. (Nos trechos seguintes daremos a este pátio o nome de "pátio interior"). A casa tem de comprimento mais de duas vezes a largura; a parte dianteira consta de uma sala, chamada vestíbulo ou átrio, lajeada, aberta, no meio, sem teto, cercada por três lados de colunatas cobertas, nas quais se acham também as entradas para o átrio. A entrada principal do átrio é no lado comprido da casa. Entrando ali, vê-se, à esquerda, uma fossa revestida de alvenaria, onde é mantida uma fogueira; dirigindo-se à direita, avista-se, atrás

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de algumas colunas mais altas e num plano alguns degraus mais acima uma sala coberta, que forma o quarto lado do átrio e tem mais ou menos a metade do tamanho desse. Nessa sala, no espaço alguns degraus mais alto, estão os assentos dos membros do conselho, dispostos num semicírculo. O assento do Sumo Pontífice está no meio da sala. O lugar do acusado, com os guardas, achasse no centro do semicírculo; em ambos os lados e atrás dele, até o átrio, o lugar dos acusadores e das testemunhas. A esse estrado semicircular dos juízes, conduzem, no fundo, três entradas que dão para uma sala maior, de forma semicircular, ao longo de cujas paredes há também assentos. Ali têm lugar as sessões secretas. A direita e à esquerda da entrada, vindo do tribunal, há nessa sala portas e escadas, que dão para fora, para o pátio interior, que, seguindo a forma da casa, também é de forma semicircular. Saindo pela porta da sala, à direita e virando-se no pátio à esquerda do edifício, chega-se à porta de uma cadeia subterrânea, que se estende sob a sala posterior, que está num plano mais alto do que o átrio e assim dá lugar para adegas subterrâneas. Há diversos cárceres nesse pátio circular; num deles vi S. Pedro e S. João presos por uma noite, depois de Pentecostes, quando Pedra curou o paralítico na Porta Bela do Templo. No edifício e em redor havia inúmeras lanternas e fachos; estava claro como dia. Além disso concorria também para a iluminação a fossa da fogueira, no centro do átrio; era como um fogão colocado dentro do chão, aberto em cima, onde se lançava o combustível, que me pareceu ser carvão de pedra. Nos lados sobressaiam, à altura de um homem, tubos parecidos com chifres, para deixarem sair a fumaça; no meio, porém, se via o fogo. Soldados, soldados, muita gente do populacho e falsas testemunhas subornadas apinhavam-se em roda do fogo. Também se achavam ali mulheres e raparigas de má vida, que ofereciam aos soldados uma bebida vermelha e coziam-Ihes bolos por dinheiro. Era um movimento como nos dias de carnaval. A maior parte dos conselheiros convocados já estavam reunidos em tomo do Sumo Sacerdote, no semicírculo elevado do tribunal; de vez em quando chegavam ainda alguns. Os acusadores e testemunhas falsas quase enchiam o átrio. Muita gente quis entrar à força, mas era repeli da pelos soldados. Pouco antes da chegada do cortejo de Jesus, vieram também Pedro e João, revestidos dos mantos dos mensageiros do tribunal e entraram no pátio exterior. João, com auxilio do empregado, conhecido seu, pôde mesmo entrar pela porta do pátio interior, a qual, porém, foi fechada atrás dele, por causa do povo impetuoso. Pedro, atrasado pela multidão, já encontrou fechada a porta do pátio interior e a porteira não quis deixá-lo entrar. João disse-lhe que lhe abrisse; mas mesmo Pedra não poderia ter entrado, se não tivessem chegado nesse momento Nicodemos e José

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de Arimatéia, fazendo-o entrar com eles. No pátio interior entregaram os mantos aos tais criados e colocaram-se silenciosos no meio da multidão, à direita, de onde se podiam avistar os assentos dos Juízes. Caifás já estava sentado no meio do semicírculo graduado; em roda se lhe sentavam cerca de setenta membros do Conselho Supremo. Mui-tos deputados comunais, anciãos e escribas estavam em pé ou senta- dos aos dois lados e em tomo deles, muitas testemunhas e patifes. Do pé do tribunal, sob as colunatas, pelo átrio, até à porta pela qual se esperava a entrada de Jesus, foram dispostos soldados; aquela porta não era a que ficava em frente às cadeiras dos juízes, mas uma outra, à esquerda do átrio. Caifás era um homem de aspecto sério, olhar colérico e ameaçador; estava vestido de um longo manto vermelho, ornado de florões e orlas de ouro, atado sobre os ombros, o peito e na frente, por muitas placas brilhantes. Na cabeça trazia um barrete, que na parte superior tinha semelhança com uma mitra; entre as partes anterior e posterior desse, havia aberturas, dos lados, das quais pendiam pequenas faixas de pano, que caiam sobre os ombros. Caifás já convocara havia muito tempo os partidários, entre os membros do Sinédrio; muitos estavam reunidos desde que Judas saíra com a tropa de soldados. Cresceu a tal ponto a impaciência e raiva de Caifás, que desceu do alto assento, correndo, com todo o seu aparatoso ornato, ao átrio e perguntou furioso se Jesus ainda não estava chegando; nesse momento o cortejo vinha se aproximando e Caifás voltou para o assento. 8. Jesus diante de Caifás Entre frenéticos gritos de insulto, com empurrões e arrancos, foi Jesus conduzido pelo átrio, onde a desenfreada fúria do populacho se moderou, reduzindo-se a um sussurro e murmúrio surdo de raiva contida. Da entrada dirigiu-se o cortejo à direita, para o tribunal. Passando por Pedro e João, o querido Salvador, olhou-os, mas sem virar a cabeça para eles, para não os trair. Mal Jesus tinha chegado, por entre as colunas, em frente do tribunal, Caifás já lhe gritou: "Então chegaste" blasfemador de Deus, que nos tens profanado esta santa noite.” Tiraram então o cetro irrisório de Jesus, a cabaça, na qual se achavam as acusações escritas por Anás; depois de ler as acusações, Caifás lançou uma torrente de insultos e acusações contra Jesus, enquanto os esbirros e soldados em roda puxavam e empurravam Nosso Senhor; tinham nas mãos curtos bastões de ferro, em cuja extremidade havia um castão munido de muitas pontas; com esses bastões empurravam a Jesus, gritando: "Responde, abre a boca. Não sabes falar?" Fizeram tudo isso enquanto Caifás, ainda mais assanhado do que Anás, dirigiu um sem número de perguntas

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a Jesus, que, silencioso e paciente, olhava para baixo sem levantar os olhos para Caifás. Os soldados quiseram forçá-Loa falar, davam-Lhe murros na nuca e nos lados, batiam-Lhe nas mãos e picavam-na com sovelas; houve até um vil patife que lhe apertou com o polegar o lábio inferior sobre os dentes, dizendo: "Agora morde!” Seguiu-se a audição das testemunhas. Mas em parte era só uma gritaria confusa do populacho subornado ou então depoimentos de vários grupos dos mais assanhados inimigos de Jesus, entre os fariseus e saduceus de todo o país, reunidos por ocasião da festa. Proferiram de novo tudo o que Ele mil vezes tinha refutado; disseram: "Ele cura e expulsa os demônios pelo próprio demônio; não guarda o sábado; quebra o jejum; os seus discípulos não lavam as mãos; Ele seduz o povo; chama os fariseus de raça de víboras, de adúlteros; prediz a destruição de Jerusalém; tem relações com pagãos, publicanos, pecadores e mulheres de má vida; percorre o país, seguido de grande multidão de povo; faz-se chamar rei, profeta, até Filho de Deus, fala sempre do seu reino; contesta o direito do divórcio; proferiu ameaças sobre Jerusalém; chama-se pão da vida, ensina coisas inauditas, dizendo que quem não Lhe comer a carne e não Lhe beber o sangue, não poderá ser salvo.” Desse modo eram torcidas e viradas ao contrário todas as palavras, doutrina e parábolas de Jesus, para servirem de acusações, sempre interrompidas por insultos e brutalidades. Mas todos contradiziam e se confundiam uns aos outros. Um disse: "Ele se faz passar por rei"; outro: "Não, Ele se deixa apenas chamar assim e quando O quiseram proclamar rei, fugiu." Então gritou um: "Mas Ele diz que é Filho de Deus"; outro, porém, replicou: "Não, Ele não disse isso, chama-se Filho só por fazer a vontade do Pai." Alguns exclamaram que Ele os tinha curado, mas que depois recaíram; as curas eram apenas feitiço." Quase todas as acusações consistiam essencialmente em acusá-Io de feitiçaria. Algumas falsas testemunhas depuseram também sobre a cura do homem na piscina de Betesda, mas mentiram e confundiram-se. Os fariseus de Seforis, com os quais tinha discutido sobre o divórcio, acusaram-na de falsa doutri na e até aquele jovem de Nazaré a quem Ele não quisera aceitar como discípulo, teve a vileza de comparecer ali, para dar testemunho contra Ele. Acusaram-na também de ter absolvido a adúltera no Templo e ter acusado os fariseus. Contudo não eram capazes de encontrar qualquer acusação solidamente provada. Os grupos de testemunhas que entravam e saiam, começaram a insultar Jesus, em lugar de depor contra Ele. Discutiam veemente uns com os outros e nos intervalos Caifás e alguns dos conselheiros continuavam incessantemente a insultar Jesus, gritando-Lhe, entre as várias acusações: "Que rei és tu? Mostra teu poder. Manda vir as legiões de Anjos, das quais falaste

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no horto das Oliveiras. Que fizeste do dinheiro das viúvas e das pessoas que se deixaram enganar? Tantas riquezas que desperdiçaste, que foi feito delas? Responde, fala! Agora que devias falar, diante do juiz, ficas calado; mas onde terias feito melhor em calar-te, diante do populacho e mulherio, aí te abundavam as palavras, etc.” Todas essas perguntas eram acompanhadas de incessantes crueldades dos soldados, que, com pancadas e murros, queriam forçar Jesus a responder. Só por milagre de Deus pôde Jesus agüentar tudo isso, para expiar os pecados do mundo. Algumas testemunhas infames afirmaram que Jesus era filho ilegítimo, mas imediatamente replicaram outros: "É mentira; pois sua mãe era uma moça piedosa do Templo e nós assistimos à cerimônia do seu casamento com um homem muito religioso." Essas testemunhas começaram a discutir. Acusaram também Jesus e os discípulos de não oferecerem sacrifícios no Templo. Eu também nunca vi Jesus ou os Apóstolos, desde que O seguiam, levarem animais de sacrifício ao Templo, a não ser os cordeiros de Páscoa. Essa acusação não era justa; pois também os Essenos não ofereciam sacrifícios, sem por isso merecerem castigo. A acusação de feitiçaria repetiu-se muitas vezes e o próprio Caifás afirmou diversas vezes que a confusão das testemunhas era efeito da arte mágica. Alguns acusaram então Jesus de ter comido o cordeiro pascal já de véspera, contrariamente ao costume e de ter alterado a ordem dessa cerimônia já no ano anterior; por isso começaram de novo a injuriar e insultar Jesus. Mas os depoimentos das testemunhas eram tão confusos e contraditórios, que Caifás e todo o Sinédrio ficaram envergonhados e furiosos, porque não podiam encontrar nada que de qualquer modo pudessem provar. Nicodemos e José de Arimatéia foram também convidados a se justificarem de ter Jesus comido a Páscoa no Cenáculo deles, em Sião. Compareceram diante de Caifás e provaram, com antigos documentos, que os galileus podiam comer o cordeiro pascal um dia antes, conforme um direito imemorial; além disso, acrescentaram, foram observadas as cerimônias prescritas, pois estiveram presentes homens empregados do Templo. Com essa afirmação ficaram as testemunhas muito embaraçadas e o que vexava os inimigos de Jesus, era ter Nicodemos mandado trazer os rolos de lei e provado com estes o direito dos galileus. Além de diversos motivos para esse direito dos galileus, os quais esqueci, foi alegado que seria impossível, com a afluência do povo, acabar as cerimônias no tempo prescrito pela lei do sábado; também haveria inconveniências na volta, pela multidão do povo nos caminhos. Apesar dos galileus nem sempre usarem desse direito, ficara, porém, perfeitamente provado pelos documentos alegados por Nicodemos. A ira dos fariseus cresceu ainda mais, quando Nicodemos terminou o discurso pela observação

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de que todo o Sinédrio se devia sentir ultrajado, diante do povo reunido, por um processo feito com tal precipitação e preconceito, na noite de um dia tão santo e com a confusão e contradição tão aberta de todas as testemunhas, com precipitação e imprudência ainda maior. Depois de muitos depoimentos falsos, vis e mentirosos, se apresentaram mais duas testemunhas, dizendo: Jesus disse que queria destruir o Templo feito pelas mãos de homens e construir em três dias outro, que não seria feito por mãos de homens. Mas também esses dois não estavam de acordo; um disse que Jesus queria construir um templo novo; por isso teria celebrado a Páscoa num outro edifício, porque queria destruir o antigo Templo; o outro, porém, disse que aquele edifício também fora construído por mãos de homens e que portanto não se referia a ele. Caifás chegou então ao auge da cólera; pois as crueldades praticadas para com Jesus, as afirmações contraditórias das testemunhas, a inefável paciência e o silêncio do Salvador, causaram impressão desfavorável a muitos dos presentes. Algumas vezes foram as testemunhas até vaiadas. Muitos ficaram inquietos no coração, vendo o silêncio de Jesus e cerca de dez soldados afastaram-se, sob pretexto de se sentirem indispostos. Esses, passando diante de Pedro e João, Ihes disseram: "Este silêncio do galileu, num processo tão infame, dói no coração, é como se a terra se fosse abrir e tragar-nos; dizei-nos aonde nos devemos dirigir.” Caifás, furioso pelos depoimentos contraditórios e a confusão das duas últimas testemunhas, levantou-se do assento, desceu alguns degraus, até onde estava Jesus e disse: "Não respondes nada a esta acusação?" Indignou-se, porém, de Jesus não o fitar; os soldados puxaram então, pelos cabelos, a cabeça de Nosso Senhor, para trás e bateram-lhe com os punhos por baixo do queixo. Mas o Senhor não levantou os olhos. Caifás, porém, estendeu com veemência as mãos e disse em tom furioso: "Conjuro-Te pelo Deus vivo, que nos digas se és o Cristo, o Messias, o Filho de Deus Bendito!” Acalmara-se a vozeria e seguiu-se um silêncio solene em todo o átrio; Jesus, fortalecido por Deus, disse, com uma voz cheia de inefável majestade, que fazia estremecer a todos, com a voz do Verbo Eterno: "Eu o sou, disseste-o bem. E eu vos digo que em breve vereis o Filho do homem assentado à mão direita da majestade de Deus, vindo sobre as nuvens do céu.” Durante essas palavras vi Jesus como que luminoso e sobre Ele, no céu aberto, Deus Pai Todo-poderoso, numa visão inexprimível; vi os Anjos e as orações dos justos, suplicando e orando em favor de Jesus. Vi, porém, como se a divindade de Jesus falasse simultaneamente do Pai e do Filho: "Se eu pudesse sofrer, queria sofrer; mas porque sou misericordioso, aceitei a natureza humana no Filho, para que nela sofresse o Filho do Homem; pois sou justo

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e ei-Lo que toma sobre si os pecados de todos estes homens, os pecados de todo o mundo.” Por baixo de Caifás, porém, vi aberto todo o inferno, um círculo lúgubre de fogo, cheio de figuras hediondas e ele por cima desse círculo, sustentado apenas como por um crepe fino. Vi-o penetrado pela fúria do inferno. Toda a casa me parecia um inferno agitado por baixo. Quando o Senhor declarou que era o Filho de Deus, o Cristo, foi como se o inferno tremesse diante dEle e fizesse subir a essa casa toda a sua fúria contra o Salvador. Mas como tudo me é mostrado em imagens e figuras (cuja linguagem é para mim também mais verdadeira, curta e clara do que outras explicações, pois os homens também são formas corporais e sensíveis e não somente palavras abstratas), vi o medo e o ódio do inferno manifestar-se sob inúmeras figuras horríveis, que subiam em muitos lugares, como saindo da terra. Entre outras me lembro ainda de bandos de pequenas figuras escuras, semelhantes a cães, que andavam nas patas traseiras, curtas e com garras compridas, mas não me lembro mais que espécie de vicio representavam essas figuras; sabia-o naquele tempo, mas agora só me lembro da forma. Tais figuras horrendas vi entrar na maior parte dos assistentes, ou sentar-se nos ombros ou sobre a cabeça deles. A assembléia estava cheia dessas figuras e a fúria aumentava cada vez mais em todos os maus. Nesse momento vi também muitas figuras hediondas, saindo dos sepulcros. além de Sião; creio que eram espíritos maus. Vi também, perto do Templo, saírem da terra muitas aparições e entre essas, diversas que pareciam arrastar-se com cadeias, como presos; não sei mais se essas últimas aparições eram espíritos maus ou almas condenadas a habitarem certos lugares da terra e que talvez se dirigissem ao limbo, que o Senhor abriu pela sua própria condenação à morte. - Não se podem exprimir exatamente essas coisas, nem quero escandalizar aos que as ignoram, mas ao vê-Ias, sente-se um arrepio. Esse momento tinha algo de horrível. Creio que também João deve ter visto alguma coisa, pois ouvi-o falar disso mais tarde; pelo menos todos os que não eram ainda inteiramente maus, sentiram, com um medo profundo, o horror desse momento; os maus, porém, sentiram-se numa violenta erupção de ódio. Caifás, como inspirado pelo inferno, apanhou a orla do manto oficial, cortou-a com uma faca e rasgou o manto, com um ruído sibilante, gritando: "Ele blasfemou! Para que precisamos de testemunhas? Vós mesmos ouvistes a blasfêmia; que julgais?" Então se levantaram todos quantos ainda estavam presentes e gritaram, com voz terrível: "É réu de morte. É réu de morte.” A esse grito, a fúria do inferno tornou-se naquela casa verdadeiramente terrível: os inimigos de Jesus estavam como embriagados por Satanás e do mesmo modo os servos aduladores e abjetos (7). Era como se as trevas proclamassem o seu triunfo

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sobre a luz. Causou tal horror aos que ainda conservavam um pouco de bom sentimento, que muitos destes saíram furtivamente, envolvidos nos mantos. Também as testemunhas mais notáveis, como não Ihes fosse mais necessária a presença, saíram do tribunal, sentindo remorsos da consciência. Outros, mais vis, vadiavam pelo átrio e em redor da fogueira, onde, depois de recebido dinheiro, começaram a comer e beber. (7) Essa adulaçãó cínica (a modo de cães) é talvez a significação esquecida das figuras demoníacas antes mencionadas. O Sumo Sacerdote disse, porém, aos soldados: "Entrego-vos este rei; prestai a este blasfemo a devida honra." Depois se retirou com os membros do Conselho, à sala circular, situada atrás do tribunal, cujo interior não se podia ver do átrio. João, cheio de profunda tristeza, lembrou-se então da pobre Mãe de Jesus. Receou que a terrível notícia, comunicada por um inimigo, pudesse ferí-Ia ainda mais e por isso, lançando mais um olhar ao Santo dos santos, disse no seu coração: "Mestre, bem sabeis porque me vou em bora" e saiu apressadamente do tribunal, indo à SS. Virgem, como se fosse enviado por Jesus mesmo. Pedro, porém, todo abalado pela angústia e pela dor e sentindo, devido à fadiga, ainda mais o frio penetrante da manhã, ocultava a tristeza e o desespero o mais que podia e aproximou-se timidamente da fogueira no átrio, rodeada pelo populacho, que ali se aquecia. Não sabia o que estava fazendo, mas não podia separarse do Mestre. 9. Jesus é escarnecido e maltratado em casa de Caifás Quando Caifás saiu, com todo o conselho do tribunal, deixando Jesus entregue aos soldados, lançou-se o bando de todos os malvados patifes aí presentes, como um enxame de vespas irritadas, sobre Nosso Senhor, que até então estava seguro com cordas por dois dos quatro primeiros soldados; os outros tinham se afastado antes do interrogatório, para se revezarem com outros. Já durante a audição os soldados e outros malvados arrancaram tufos inteiros do cabelo e da barba do Senhor. Alguns homens bons apanharam parte do cabelo do chão e afastaram-se furtivamente com ele; mas depois Ihes desapareceu. O bando vil dos soldados também já tinham cuspido em Jesus, durante o interrogatório que lhe tinham dado inúmeros murros, batido com paus que terminavam em bulbos munidos de pontas e picado com alfinetes; mas depois descarregaram a raiva de um modo insensato sobre o pobre Jesus. Punham-Lhe na cabeça várias coroas, trançadas de palha e cortiça, de formas ridículas e tiravam-nas novamente, com palavras maldosas de escárnio. Ora diziam: "Ei-Lo, o Filho de Davi, com a coroa de seu Pai!" ora: "Eis aqui está quem

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é mais do que Salomão!" ou: "Este é o rei que prepara as núpcias do filho" e assim escarneciam n’Ele toda a verdade eterna que tinha proferido em ensinamentos e parábolas, para a salvação dos homens... Batiam-Lhe com punhos e paus, empurravam-na, cuspindo n’Ele de um modo nojento. Trançaram ainda uma coroa de palha grossa de trigo, que ali cultivavam, puseram-Lhe na cabeça um boné alto, parecido com uma mitra de um bispo de hoje e em cima a grinalda de palha; já antes O tinham despido da túnica tecida. Lá estava o pobre Jesus, vestido apenas de tanga e escapulário sobre peito e costas; mas também esse último, ainda lha arrancaram e não Lhe foi mais restituído. Jogaram-Lhe sobre os ombros um manto velho, esfarrapado, cuja parte anterior nem Lhe cobria os joelhos e em redor do pescoço lhe puseram uma cadeia de ferro, que, como uma estola, lhe pendia sobre o peito, até os joelhos; essa cadeia terminava em duas argolas largas e pesadas, munidas de pontas agudas, que lhe feriam dolorosamente os joelhos, quando andava ou caia. Amarraram-Lhe de novo as mãos sobre o peito, pondo nelas um caniço e cobriram-Lhe o rosto divino com o escarro nojento das suas bocas imundas. O cabelo de Jesus, a barba, o peito e a parte superior do manto estavam cobertas de imundícies nauseabundas; vendaram-Lhe com um farrapo sujo os olhos, batiam-Lhe com punhos e bastões, gritando: "Grande profeta! Profetiza, quem te bateu." Ele, porém, nada dizia: gemia e orava no íntimo do coração por eles, que continuavam a bater-Lhe. Assim maltratado, disfarçado e sujo, arrastaram-na pela corrente à sala atrás do tribunal. Empurraram-na diante de si, a pontapés e pauladas, com risadas de escárnio, gritando: "Vamos com o rei de palha; ele deve apresentar-se também ao Conselho, com as honras que Lhe temos prestado." Entrando na sala, onde ainda se achavam Caifás e muitos membros do Conselho, começaram de novo a escarnecer do Divino Salvador, com vis gracejos e alusões sacrílegas a santos usos e cerimônias. Assim como no átrio, cuspiram-Lhe e sujaram-na, gritando: "Eis aqui tua unção de profeta e rei! " Aludiram também à unção de Madalena e ao batismo: "Como, gritaram, queres comparecer tão sujo diante do Supremo Conselho? Querias sempre purificar os outros e não estás limpo; mas vamos limpar-Te agora." Trouxeram então uma bacia com água suja e fétida, na qual havia um farrapo grosso e nojento e entre murros, escárnio e insultos, interrompidos apenas por cumprimentos e inclinações derrisórias, uns mostrando-Lhe a língua, outros virando-lhes as costas em posições indecentes, passaram-Lhe o farrapo sujo pelo rosto e os ombros, fingindo limpá-Lo, mas sujando-O ainda mais; depois Lhe entornaram todo o conteúdo nojento da bacia sobre a cabeça e o rosto, gritando: "Aí tens ungüento precioso, água de nardo a trezentos dinheiros, aí tens o teu batismo da piscina de Betsaida.”

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Com essa última palavra escarnecedora compararam-na, sem premeditação, ao cordeiro pascal; pois os cordeiros que nesse dia eram imolados, eram antes lavados no tanque perto da Porta das Ovelhas e depois levados à piscina de Betsaida, onde recebiam uma aspersão cerimonial, antes de serem imolados no Templo. Os soldados, porém, aludiam ao doente de 38 anos, que fora curado na piscina de Betsaida; pois vi-o ali batizar ou lavar; digo, batizar ou lavar" porque não tenho recordação clara disso neste momento. Depois arrastaram e empurraram Jesus, com murros e pancadas, por toda a sala, passando em frente dos membros do Conselho, ainda reunidos, que todos O insultavam e escarneciam. Vi tudo cheio de figuras diabólicas; era um movimento sinistro, confuso e horrível. Mas em redor de Jesus maltratado vi muitas vezes um esplendor luminoso, desde que dissera que era o Filho de Deus. Muitos dos presentes pareciam sentí-Lo também mais ou menos, vendo com certa inquietação que todos os insultos e maus tratos não Lhe podiam tirar a majestade inexprimível. Os inimigos obcecados pareciam sentir esse esplendor somente pela erupção mais forte de sua ira e de seu ódio; a mim, porém, parecia esse esplendor tão manifesto, que não podia deixar de pensar que velavam o rosto de Jesus, só porque o Sumo Sacerdote, desde que ouvira a palavra: "Eu o sou", não podia mais suportar o olhar do Salvador. 10. A negação de Pedro Quando Jesus disse, em tom solene: "Eu o sou", quando Caifás rasgou o próprio manto, quando o grito: "É réu de morte!" interrompeu os insultos e ultraje da gentalha, quando se abriu sobre Jesus o céu da justiça e o inferno desencadeou sua fúria e dos sepulcros saíram os espíritos presos, quando tudo estava cheio de medo e horror; então Pedro e João, que tinham sofrido muito por serem obrigados a ver, em silêncio e inação, o cruel tratamento de Jesus, sem poder manifestar compaixão, não agüentaram mais ficar ali. João saiu, juntamente com muita gente e testemunhas e dirigiu-se apressadamente a Maria, Mãe de Jesus, que se achava com as mulheres piedosas em casa de Marta, perto da Porta do Angulo, onde Lázaro possuía um grande edifício. Pedro, porém, não podia afastar-se, amava demasiadamente a Jesus. Não podia conter-se; chorava amargamente, esforçando-se por esconder as lágri mas. Não quis ficar, pois sua consternação tê-Io-ia traído, nem podia ir a outra parte, sem causar estranheza aos outros. Dirigiu-se por isso ao átrio, ao canto da fogueira, onde se, apinhavam soldados e muitos homens do populacho, que iam e voltavam, para ver escarnecer de Jesus e faziam observações baixas e maliciosas. Pedro conservava-se

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calado, mas esse silêncio e o ar de tristeza do rosto deviam torná-Io suspeito aos inimigos do Mestre. Aproximou-se então também do fogo a porteira e, como todos falassem de Jesus e o insultassem, também entrou na conversa, à maneira das mulheres impertinentes e, olhando para Pedro, disse: "Tu também és um dos discípulos do Galileu!" Pedro tornou-se embaraçado e inquieto e, receando que aquela gente grosseira o maltratasse, disse: "Oh, mulher! Eu não O conheço; não sei e nem compreendo o que queres dizer." Levantou-se e com a intenção de livrar-se deles, saiu do átrio; foi à hora em que o galo, fora da cidade, cantou pela primeira vez; não me lembro de tê-Io ouvido, mas senti que então can tou. Saindo Pedro do átrio, viu-o outra criada e disse a alguns que estavam ali: "Este também tem estado com Jesus" e eles disseram: "Não eras também um dos discípulos do Galileu?" Pedro, assustado e confu so, exclamou, protestando: "Em verdade, não o era, nem conheço esse homem." Depois se afastou depressa do primeiro pátio para o exterior, afim de prevenir do perigo alguns conhecidos, que vira olharem por cima do muro. Chorou e estava tão cheio de angústia e tristeza, por causa de Jesus, que quase não se lembrava da sua negação. No pátio exterior estava muita gente e também amigos de, Jesus, que não foram admitidos ao pátio interior; mas a Pedro foi permitido sair. Aquela gente trepara no muro, para espiar o que se passava e Pedro encontrou entre eles muitos dos discípulos de Jesus, os quais a busca de notícias tinham corrido das cavernas do vale Hinom para lá. Esses se acercaram logo de Pedro, interrogando-o entre lágrimas, a respeito de Jesus; mas ele estava tão abatido e tinha tanto medo de trair-se, que Ihes aconselhou retirar-se, por haver ali perigo para eles. Depois se separou deles, indo tristemente pelos pátios enquanto os outros saíram com pressa da cidade. Estiveram ali cerca de 16 dos primeiros discípulos, entre eles Bartolomeu, Natanael, Saturnino, Judas Barsabas, Simeão, mais tarde bispo de Jerusalém, Zaqueu e Manaem, o profético jovem, cego de nascença e curado por Jesus. Pedro não achou sossego; o amor de Jesus impelia-o ao pátio interior, que cercava a casa; deixaram-no entrar, de novo, porque Nicodemus e José de Arimatéia o mandaram entrar, na primeira vez. Não voltou imediatamente à sala do tribunal, mas dirigiu-se à direita, indo ao longo da casa, para a entrada da sala atrás do tribunal, onde o bando de soldados já estavam conduzindo Jesus em redor da sala, com vaias e insultos. Pedro aproximou-se medroso; posto que se sentisse observado como suspeito, impelia-o a ânsia por Jesus a enfiar-se pela porta, ocupada por gente baixa, que estava assistindo àquela cena de escárnio. Nesse momento estavam arrastando Jesus, coroado com a grinalda de palha, em redor da sala. O Senhor lançou a Pedro um olhar sério de repreensão. Pedro ficou como que esmagado pela dor. Mas, lutando

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com o medo e ouvindo alguns dos circunstantes dizerem: "Quem é este sujeito?", saiu novamente para o pátio, tão abatido e tão confuso pelo medo, que andava cambaleando a passos lentos. Vendo-se, porém, observado, entrou de novo no átrio, aproximou-se da fogueira, ficando ali bastante tempo sentado, até que diversas pessoas, que fora lhe tinham notado a confusão, entraram, começando de novo a provocá-Io, falando mal de Jesus e de suas obras. Um deles, chamado Cássio e mais tarde Longino, disse então: "É verdade, também és daquela gente; és galileu, tua linguagem prova-o". Como Pedro quisesse sair com um pretexto, impediu-o um irmão de Malcho, dizendo: "O que? Não te vi com eles no horto das Oliveiras? Não feriste a orelha de meu irmão?" Tornou-se Pedro então como insensato, pelo pavor que o dominou e livrando-se deles, começou a praguejar (tinha um gênio violento) e jurar que absolutamente não conhecia esse homem e correu do átrio para o pátio interior. Foi à hora em que o galo cantou de novo; os soldados conduziram Jesus, nesse mesmo momento, da sala circular, pelo pátio para o cárcere que ficava sob a sala. Virou-se, porém, o Senhor e olhou para Pedro com grande dor e tristeza; lembrou-se Pedro então da palavra de Jesus: "Antes do galo cantar duas vezes, negar-me-ás três vezes", e essa lembrança pesou-lhe com terrível violência sobre o coração. Fatigado pelas angústias e o medo, tinha-se esquecido da promessa presunçosa de querer antes morrer, do que O negar e do aviso profético de Jesus; mas à vista do Mestre, esmagou-o a lembrança do crime que acabava de cometer. Tinha peca-do; pecado contra o Salvador, tão cruelmente tratado, condenado, inocente, sofrendo tão resignado toda a horrível tortura. Como desvairado de contrição, saiu apressadamente pelo pátio exterior, a cabeça velada e chorando amargamente; não temia mais ser interrogado; teria então dito a todos quem era e que pecado lhe pesava na consciência. Quem se atreveria a dizer, que em tais perigos, angústias, em tal pavor e confusão, numa tal luta entre amor e medo, cansado, insone, prestes a perder a razão pela dor de tantos e tão tristes acontecimentos dessa noite horrível, com uma natureza tão simples como ardente, quem se atreveria a dizer que, em iguais condições, teria sido mais forte do que Pedro? O Senhor abandonou-o às próprias forças; tornou-se então tão fraco como o são todos os que esquecem as palavras: "Vigiai e orai, para não cairdes em tentação". 11. Maria no tribunal de Cairás A SS. Virgem, em contínua e profunda compaixão para com Jesus, sabia e sentia tudo que a Ele faziam. Sofria em contemplação espiritual e, como Ele, continuava em oração pelos carrascos. Mas o coração de mãe também lhe clamava a Deus que não permitisse esses

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pecados e que afastasse essas torturas do santíssimo Filho; durante todo esse tempo tinha o desejo irresistível de estar com o pobre Filho, tão cruelmente tratado. Quando João, depois do grito: "É réu de morte!", saiu do átrio de Caifás, vindo a ela, em casa de Lázaro, perto da porta do Angulo e lhe confirmou com a triste narração e entre lágrimas, todos os terríveis tormentos de Jesus, os quais, em sua compaixão espiritual, já lhe, dilacera-vam o coração, Maria pediu-lhe, como também Madalena, quase desvairada de dor e algumas outras mulheres, que as conduzisse ao lugar onde Jesus sofria. João, que deixara Jesus só para consolar aquela que, depois de Jesus, lhe merecia mais amor, saiu da casa com a SS. Virgem, conduzida pelas santas mulheres; Madalena caminhava-Ihes ao lado, torcendo as mãos. As ruas estavam iluminadas pelo claro luar e viam-se muitas pessoas, que voltavam para casa. Iam veladas as santas mulheres; mas o andar apressado e as exclamações de dor atraíam sobre elas a atenção de vários grupos de inimigos de Jesus que passavam e muitas palavras insultuosas e cruéis, proferidas de propósito em alta voz contra Jesus, renovavam-lhe a dor. A Mãe de Jesus, sempre unida a Ele, na contemplação espiritual do seu suplício, caiu diversas vezes desmaiada, nos braços das companheiras; conservava tudo no coração, sofrendo em silêncio com Ele e como Ele. Quando desse modo caiu nos braços das mulheres, sob uma porta ou arcada da cidade interior, vieram-Ihes ao encontro um grupo de pessoas bem intencionadas, que voltavam do tribunal de Caifás, lamentando a sorte do Mestre. Essas se aproximaram das santas mulheres e, reconhecendo a Mãe de Jesus, demoraram-se algum tempo, cumprimentando-a compadecidamente; "Oh! Mãe infeliz! Oh! Mãe, cheia de tristeza, Oh! Mãe dolorosa do mais Santo de Israel!” Maria, voltando a si, agradeceu-Ihes e continuaram o triste caminho a passo apressado. Avizinhando-se do tribunal de Caifás, passaram para o caminho do lado oposto da entrada, onde apenas um muro cerca a casa, enquanto que o lado da entrada conduz por dois pátios. Ali sobreveio nova dor amarga à Mãe de Jesus e às companheiras. Tinham de passar em frente a um lugar, um pouco elevado, onde estavam homens, sob uma leve tenda, aparando a Cruz de Jesus Cristo, à luz de lanternas. Logo que Judas saíra para trair Jesus, os inimigos haviam ordenado que se preparasse uma cruz, para que, se Jesus fosse preso, Pilatos não tivesse motivo para atrasar a execução; pois já tinham a intenção de entregar Nosso Senhor de manhã cedo a Pilatos e não esperavam que levasse tanto tempo até a condenação. As cruzes para os dois ladrões, os roma nos já as tinham preparado. Os operários amaldiçoavam e insultavam a Jesus, por terem de trabalhar durante a noite por causa d’Ele; todas as machadadas e todas essas palavras feriam e traspassavam o coração da pobre Mãe; mas ainda assim rezava por esses homens tão horrivelmente cegos, que, com

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maldições, preparavam o instrumento de sua redenção e do martírio de seu Filho. Tendo passado em volta da casa e chegado ao pátio exterior, Maria entrou, acompanhada das santas mulheres e de João, dirigindo-se à porta do pátio interior, que estava fechada. Tinha a alma cheia de intensa compaixão para com Jesus. Desejava ardentemente que a porta se abrisse e pudesse entrar, por intermédio de João; pois sentia que apenas essa porta a separava do Filho querido, que, ao segundo canto do galo, estava sendo levado do tribunal à cadeia subterrânea. De súbito se abriu a porta e na frente de algumas pessoas saiu Pedro, correndo para eles, cobrindo com as mãos o rosto velado e chorando amargamente. À luz da lua e das lanternas, conheceu logo a João e a SS. Virgem; parecialhe que a voz da consciência lhe vinha ao encontro, na pessoa da Mãe de Jesus, depois que o seu Divino Filho a tinha despertado. Ah! Como ressoava a voz de Maria na alma de Pedro, quando ela disse: "Oh! Simão! Que fizeram de Jesus, meu Filho?" Ele não podia enfrentar o olhar de Maria, desviou os olhos para o lado, torcendo as mãos e não pôde proferir palavra. Mas Maria não o deixou, aproximou-se-Ihe e perguntou com voz triste: "Simão, filho de Jonas, não me respondes?" Então exclamou Pedro, na sua dor: "Oh, Mãe, não faleis comigo; vosso Filho sofre coisas indizíveis; não me faleis a mim, pois condenaram-nO à morte e eu O neguei vergonhosamente por três vezes." E como João se aproximasse para falar-lhe, fugiu Pedro, desvairado de tristeza e saindo do pátio e da cidade, retirou-se àquela gruta do monte das Oliveiras, na qual as mãos de Jesus se tinham imprimido na pedra. (v. cap. 3, 7 pelo fim). Creio que nessa mesma gruta também nosso primeiro pai Adão fazia penitência, quando veio para a terra amaldiçoada por Deus. A SS. Virgem, sentindo com vaemente compaixão essa nova dor de Jesus, a quem negara o mesmo discípulo que fora o primeiro a reconhecê-Lo como Filho de Deus vivo, caiu, após as palavras de Pedro, sobre a pedra ao lado da porta, onde estava e imprimiram-se-Ihe as formas das mãos e dos pés na pedra, a qual ainda existe, mas não me lembro onde; tenho-a visto em qualquer parte. As portas dos pátios estavam abertas, porque a maior parte do povo se retirara, depois que Jesus fora fechado na cadeia. Maria Santíssima, tendo voltado a si, desejava estar mais perto do Filho querido; João levou-a e as santas mulheres até diante da prisão do Senhor. Ah! Bem sentia Maria, a presença de Jesus e Jesus a de sua Mãe, mas a Mãe fiel quis também ouvir com os sentidos exteriores os gemidos do Filho adorado e ouvia-os e também às palavras insultuosas dos guardas. Não podiam demorar-se ali muito sem ser notadas; Madalena, na veemência da dor, manifestava a comoção e embora Maria conservasse nessa extrema dor uma santa calma, que impunha respeito, devia também ouvir

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nesse curto caminho as palavras amargas e maliciosas: "Não é esta a mãe do Galileu? O filho com certeza há de morrer na cruz, mas naturalmente não antes da festa, a não ser que fosse o homem mais criminoso." Então ela voltou e impeli da pelo coração, foi ainda até à fogueira do átrio, onde havia ainda alguns populares; as companheiras seguiram-na, em dor silenciosa. Nesse lugar de horror, onde Jesus dissera que era Filho de Deus e a raça de Satanás gritara: "É réu de morte!", Maria perdeu de novo os sentidos. João e as santas mulheres levaram-na dali, parecendo mais morta do que viva. A plebe nada disse, calou-se admirada; foi como se um espírito puro tivesse passado pelo inferno. O caminho conduziu-as de novo ao longo do pátio posterior da casa; passaram outra vez por aquele lugar triste, onde alguns homens estavam ocupados em aprontar a Cruz; os operários achavam tanta dificuldade em terminar a cruz, quanto o tribunal em julgar Jesus; foram obrigados a procurar várias vezes outros madeiros, porque os primeiros não serviam ou se fendiam, até que juntaram os diversos madeiros do modo por que Deus o determinara. Tenho tido várias visões a respeito; vi também Anjos impedirem o trabalho, até que tudo foi feito segundo a vontade de Deus; mas como não me lembro mais claramente disso, deixo de contá-Io. 12. Jesus no cárcere A cadeia em que estava Jesus, era um lugar pequeno, abobadado, sob o tribunal de Caifás. Vi que ainda existe parte desse lugar. Dos quatro só dois soldados ficavam com Ele; revezavam-se com os outros várias vezes em pouco tempo. Ainda não tinham restituído a roupa a Jesus, que estava vestido apenas daquele manto rasgado, coberto de escarro e com as mãos novamente amarradas. Ao entrar na prisão, Jesus pediu ao Pai Celeste que aceitasse toda a crueldade e escárnio que sofreu e ainda ia sofrer, como sacrifício expiatório por todos os homens que no futuro pecassem por impaciência e ira, em igual sofrimento. Também nesse lugar os soldados não deixavam descansar o Senhor. Amarraram-nO a uma coluna baixa, no meio do cárcere e não Lhe permitiam encostar-se, de modo que cambaleava com os pés feridos e inchados pelas quedas e pelas pancadas das cadeias, que Lhe pendiam até os joelhos. Não deixavam de insultar e maltratá-Lo e sempre que os dois estavam cansados, eram revezados por outros, que entrando, começavam a fazer-Lhe novas injúrias. Não me é possível contar todas as baixezas que proferiram contra o mais Puro e Santo de todos os Seres; fiquei doente demais e então quase morri de compaixão. Ai! Que vergonha para nós, que por moleza e nojo nem podemos contar ou escutar as crueldades inumeráveis que o Salvador sofreu por nós! Sentimos um terror semelhante ao do assassino a quem mandam pôr a mão nas feridas

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do assassinado. Jesus sofria tudo sem abrir a boca: Eram os homens, que soltavam a fúria contra seu irmão, seu Redentor, seu Deus. Também sou pecadora, também por minha causa Ele teve de sofrer. No dia do Juízo há de manifestar-se tudo. Então veremos que parte nos maus tratos do Filho de Deus tivemos, pelos nossos pecados, que continuamente cometemos e pelos quais consentimos e nos unimos às crueldades perpetradas por aquele bando de soldados diabólicos. Ai! Se considerássemos isso, pronunciaríamos muito mais seriamente aquelas palavras contidas nas fórmulas de contrição: "Senhor! Faze-me antes morrer do que vos ofender mais uma vez pelo pecado.” Estando em pé no cárcere, Jesus rezava continuamente pelos carrascos. Quando esses ficaram enfim cansados e mais calmos, vi Jesus encostado ao pilar e rodeado de luz. Amanheceu o dia, o dia de sua imensa Paixão e expiação; o dia da nossa redenção espiava timidamente por um orifício no alto da parede, contemplando o nosso Cordeiro Pascal, tão santo e maltratado, que tomara sobre si todos os pecados do mundo. Jesus levantou as mãos amarradas ao novo dia, rezando alto e distinto uma oração tocante ao Pai Celestial, na qual agradeceu a missão desse dia, que almejavam os Patriarcas, pelo qual Ele tanto suspirara, desde a sua vinda ao mundo, como disse: "Devo ser batizado com um batismo e quanto desejo que se realize!" Com que fervor agradeceu o Senhor esse dia, em que devia alcançar o alvo de sua vida, nossa salvação, abrir o Céu, vencer o inferno, abrir para os homens a fonte da graça e cumprir a vontade do Pai Celeste! Rezei com Ele, mas não sei mais repetir a oração, pois eu estava extenuada de compaixão e de chorar, vendo-Lhe os sofrimentos e ouvindo-O ainda agradecer os horríveis tormentos, que tomou sobre si também por minha causa; eu suplicava sem cessar: "Ah! Dai me as vossas dores; pertencem-me a mim, pois são a expiação das minhas culpas." Amanheceu o dia e Jesus saudou-o com uma ação de graças tão comovente, que fiquei como aniquilada de amor e compaixão e repeti-Lhe as palavras como uma criança. Era um espetáculo indizivelmente triste, afetuoso, santo e imponente, ver Jesus, depois desse tumulto da noite, amarrado à coluna, no meio do estreito cárcere, rodeado de luz, saudando com palavras de agradecimento os primeiros raios do grande dia de seu sacrifício. Ai! Parecia-me que esse raio Lhe entrou no cárcere, como um juiz vem visitar um condenado à morte, para reconciliar-se com ele antes da execução. E Ele ainda Lhe agradeceu tão docemente! - Os soldados, que de cansaço tinham adormecido um pouco, acordaram surpresos, olhando para Ele; mas não O incomodaram, pois pareciam admirados e assustados. Jesus ficou nesse cárcere pouco mais de uma hora.

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13. Judas aproxima-se da casa do tribunal Judas, tomado de desespero, impelido pelo demônio, vagueara pelo vale Hinom, no lado íngreme, ao sul de Jerusalém, lugar onde se jogava o lixo, ossos e cadáveres; enquanto Jesus estava no cárcere, ele veio aproximar-se da casa do tribunal de Caifás. Rodeava-a, espreitando; ainda lhe pendia, preso ao cinto, o prêmio da traição, as moedas de prata encadeadas num molho. A noite já se tornara silenciosa e o infeliz perguntou aos guardas, que não o conheciam, o que seria feito do Nazareno. Responderam-lhe: "Foi condenado à morte e será crucificado". Ainda ouviu outros falarem entre si que Jesus fora tratado tão cruelmente e sofrera tudo com paciência e resignação; ao amanhecer seria levado outra vez perante o Supremo Conselho, para ser condenado solenemente. Enquanto o traidor colhia cá e lá essas notícias, para não ser reconhecido, amanheceu o dia e já se via muito movimento dentro e em redor da casa. Então, para não ser visto, retirou-se Judas para os fundos da casa; pois fugia dos homens como Caim e o desespero tomava-lhe cada vez mais posse da alma. Mas eis o que se lhe apresentou ante os olhos: - Achou-se no lugar onde tinham trabalhado preparando a cruz; lá estavam as várias peças já arrumadas e entre elas, envolvidos nos coberto-res, estavam os operários dormindo. Por sobre o monte das Oliveiras cintilava a pálida luz da manhã; parecia tremer de horror, ao ver o instrumento da nossa salvação. Judas, ao deparar essa cena, fugiu, preso de horror: vira o madeiro do suplício, para o qual vendera o Senhor. Escondeu-se, porém, nos arredores, esperando pelo fim do julgamento da madrugada. 14. O julgamento de Jesus na madrugada Ao romper do dia, quando já clareara, reuniram-se novamente Anás e Caifás, os anciãos e os escribas, na grande sala do tribunal, para uma sessão perfeitamente legal; pois o julgamento feito durante a noite não era válido e era considerado apenas um depoimento preparatório das testemunhas, porque urgia o tempo, por causa da festa iminente. A maior parte dos membros do conselho passaram o resto da noite na casa de Caifás, seja em aposentos contíguos, seja na própria sala do tribunal, onde foram colocados leitos para esse fim. Muitos, entre eles Nicodemos e José de Arimatéia, chegaram ao romper do dia. Foi uma assembléia numerosa e em cuja ação houve muita precipitação. Como os membros do conselho se incitassem uns aos outros a condenar Jesus à morte, levantaram-se Nicodemos, José de Arimatéia e alguns outros contra os inimigos de Jesus, exigindo que a causa fosse adiada até depois da festa, para não provocar tumultos; também porque não se podia basear um julgamento justo

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sobre as acusações até então proferidas, por serem contraditórios os depoimentos das testemunhas. Os sumos sacerdotes e seu partido forte irritaram-se com essa oposição e deixaram ver claramente aos adversários que estes também eram suspeitos de favorecerem a doutrina do galileu e que por isso naturalmente não Ihes agradava esse julgamento, porque se dirigia também contra eles mesmos; assim decidiram eliminar do Conselho todos que eram a favor de Jesus; esses, porém, protestaram contra tal processo e, declarando-se alheios a tudo que o Conselho ainda decidisse, retiraram-se da sala do tribunal e dirigiram-se ao Templo. Depois desse fato, nunca mais tomaram parte nas sessões do conselho. Caifás, porém, mandou tirar Jesus do cárcere e conduzi-Lo, fraco, maltratado e amarrado, como estava, diante do Conselho e preparar tudo de modo que depois do julgamento, pudessem levá-Io imediatamente a Pilatos. Os soldados correram tumultuosamente ao cárcere, lançaram-se com insultos sobre Jesus, desamarraram-nO da coluna e tiraram-Lhe o manto esfarrapado dos ombros, obrigaram-nO, entre golpes, a vestir sua comprida túnica, ainda coberta de toda a imundície e amarrando-O de novo com as cordas pela cintura, conduziram-nO para fora do cárcere. Isso foi feito, como tudo, com grande pressa e horrível brutalidade. Conduziram-nO como um pobre animal de sacrifício, entre insultos e golpes, através das fileiras dos soldados, que já estavam reunidos diante da casa, à sala do tribunal. Quando Ele, horrivelmente desfigurado pelos maus tratos, pela extenuação e imundície, vestido apenas da túnica toda suja, apareceu diante do Conselho, o nojo aumentou ainda o ódio desses homens. Nesses corações duros de judeus não, havia lugar para a compaixão. Caifás, porém, cheio de escárnio e raiva de Jesus, que estava em pé diante dele, tão desfigurado, disse-Lhe: "Se és o Cristo do Senhor, o Messias, dize-no-Io." Jesus levantou o rosto e disse, com santa paciência e solene gravidade: "Se vo-lo disser, não acreditareis e se vos perguntar, não me respondereis, nem me dareis a liberdade; de hoje em diante o Filho do homem sentará à direita do poder de Deus." Entreolharam-se então e com um riso de desprezo, disseram a Jesus: "És então o Filho de Deus?" Jesus respondeu, com a voz da verdade eterna: "Sim, é como dissestes, eu o sou." A essa palavra de Nosso Senhor gritaram todos: "Que provas precisamos ainda? Ouvimo-Lo nós mesmos da sua própria boca". Levantaram-se todos, cobrindo Jesus de escárnio e insultos, chamando-O de vagabundo, miserável, de obscuro nascimento, que queria ser o Messias e sentar-se à direita de Deus. Deram ordem aos soldados de amarrá-Lo de novo, pôr-Lhe uma cadeia de ferro em redor do pescoço, como aos condenados à morte, para levá-Lo assim ao tribunal de Pilatos. Já antes tinham enviado um mensageiro ao Procurador, avisando-lhe que preparasse tudo para

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julgar um criminoso, porque deviam apressar-se, por causa da festa. Ainda murmuravam contra o governador romano, por serem obrigados a levar Jesus ainda ao tribunal do mesmo; porque, quando se tratava de coisas estranhas às leis da religião e do Templo, não podiam aplicar a pena de morte; querendo, pois, condenar Jesus com mais aparência de justiça, acusaram-nO de crime contra o imperador, mas diante dis so competia o julgamento ao governador romano. Os soldados jáestavam alinhados no adro e até fora da casa e muitos inimigos de Jesus já se tinham reunido diante da casa, com o populacho. Os sumos sacerdotes e parte do conselho abriam o séquito, seguia-se depois o nosso pobre Salvador, entre os soldados e cercado da soldadesca e por fim toda a corja do populacho. Assim desceram do monte Sião à cidade baixa, onde ficava o palácio de Pilatos. Uma parte dos sacerdotes que assistiram ao Conselho, dirigiram-se ao Templo, onde nesse dia tinham muito serviço a fazer. 15. Desespero de Judas Judas, o traidor, que não se tinha afastado muito, ouviu então o barulho do séquito, como também as palavras de algumas pessoas, que seguiam de mais longe; entre outras coisas disseram: "Agora vão leváLo a Pilatos; o Conselho supremo condenou-O à morte; vai ser crucificado; também não pode mais viver, nesse horrível estado em que O deixaram os maus tratos. Tem uma paciência incrível, não diz nada, apenas que é o Messias e se sentará à direita de Deus; outra coisa não disse e por isso vai morrer na cruz; se não o tivesse dito, não O podiam condenar à morte, mas assim deve morrer. O patife que O vendeu, foi seu discípulo e pouco antes ainda comeu com ele o cordeiro pascal; eu não queria ter parte nesta ação; seja como for, o Galileu pelo menos nunca entregou um amigo à morte por dinheiro. Deveras, esse patife de traidor merece também ser enforcado." Então o arrependimento tardio, a angústia e o desespero começaram a lutar na alma de Judas. O demônio impeliu-o a correr. O molho das trinta moedas de prata, no cinto, sob o manto, era-lhe como uma espora do inferno: segurou-o com a mão, para que não fizesse tanto barulho, batendo-lhe na perna ao correr. Correu a toda a pressa, não atrás do cortejo, para lançar-se aos pés de Jesus, pedindo perdão ao Salvador misericordioso, não para morrer com Ele, nem para confessar a culpa diante de Deus; mas para se limpar diante dos homens da culpa e desfazer-se do prêmio da traição; correu como um insensato ao Templo, aonde diversos membros do supremo conselho como chefes dos sacerdotes em exercício e alguns dos anciãos se tinham dirigido, depois do julgamento de Jesus. Olharam-se mutuamente, admirados e com um sorriso desprezível, dirigiram olhares altivos a Judas que, impelido pelo

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arrependimento do desespero e fora de si, correu para eles; arrancou o feixe das moedas de prata do cinto e, estendendo-Ihes a mão direita com o dinheiro, disse, em tom de violenta angústia: "Tomai aqui o vosso dinheiro, com o qual me seduzistes a entregar-vos o Justo; retomai o vosso dinheiro e soltai Jesus; eu rompo o nosso pacto; pequei gravemente, traindo sangue inocente." Mas os sacerdotes mostraram-lhe então todo o seu desprezo; retiraram as mãos do dinheiro que Ihes oferecia, como se não quisessem manchar-se com o prêmio da traição, dizendo: "Que nos importa que pecasses? Se julgas ter vendido sangue inocente, é lá contigo; sabemos o que compramos de ti e julgamo-Lo réu de morte; é teu dinheiro, não temos nada com isso. etc," Disseram-lhe essas palavras no tom que usam os homens que estão muito ocupados e querem livrar-se de um importuno e viraram as costas a Judas. Esse, vendo-se assim tratado, foi tomado de tal raiva e desespero, que ficou como louco; eriçaramse-lhe os cabelos e rompendo com as duas mãos o molho das moedas de prata, espalhou-as com veemência no templo e fugiu para fora da cidade. Vi-o de novo, correndo como louco, no vale de Hinom e o demônio em figura horrível ao seu lado, segredando-lhe ao ouvido, para levá-Io ao desespero, todas as maldições dos profetas sobre esse vale, onde antigamente os judeus sacrificavam os próprios filhos aos deuses. Parecia lhe que todas essas palavras o indicavam com o dedo, dizendo, por exemplo: "Eles sairão para ver os cadáveres daqueles que contra mim pecaram, cujo verme não morre, cujo fogo não se apaga," Depois lhe soou aos ouvidos.: "Caim, onde está Abel, teu Irmão? Que fizestes? O sangue de teu irmão clama a mim; agora, pois, serás maldito sobre a terra, vagabundo e fugitivo." Quando chegou à torrente doe Cedron e olhou na direção do monte das Oliveiras, estremeceu e virou os olhos. Então ouviu de novo as palavras: "Amigo, para que vieste? Judas, é com um beijo que entregas o Filho do homem?" Então um imenso horror lhe penetrou no fundo da alma, confundiram-se-Ihe os sentidos e o inimigo segredou-lhe ao ouvido: "Aqui sobre o Cedron, fugiu também Davi diante de Absalão; Absalão morreu pendurado numa árvore; Davi referia-se também a ti no salmo: "Retribuíram o bem com o mal, ele terá um juiz severo; Satanás estará à sua direita, todo o tribunal o condenará; os seus dias serão poucos; outro lhe receberá o episcopado; o Senhor recordar-se-á sempre da maldade dos seus pais e dos pecados de sua mãe, porque sem misericórdia perseguiu os pobres e matou os aflitos; ele amava a maldição e esta virá sobre ele; revestia-se da maldição como de uma veste, como água lhe entrou ela nos intestinos, como óleo nos ossos; como uma veste o cobre a maldição, como um cinto que o cinge eternamente." Entre esses terríveis remorsos da consciência, chegara Judas a um lugar deserto, pantanoso, cheio de lixo e imundície, a sudeste de Jerusalém, ao pé do monte dos Escândalos,

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onde ninguém o podia ver. Da cidade se ouvia ainda mais forte o tumulto e o demônio disse-lhe: "Agora O conduzem à morte; vendeste-O; sabes o que está escrito na lei? "Quem vender uma alma entre seus irmãos, os filhos de Israel, morrerá. Acaba com isto, miserável, acaba com isto!" Então tomou Judas desesperado o cinto e enforcou-se numa árvore que crescia em vários troncos, numa cavidade daquele lugar. Quando se enforcou, rebentou-se-Ihe o ventre e os intestinos caíram-lhe sobre a terra. 5 Jesus perante Pilatos e Herodes 1. Jesus é conduzido a Pilatos 2. O palácio de Pilatos e os arredores 3. Jesus perante Pilatos 4. Origem da Via Sacra 5. Pilatos e a Esposa 6. Jesus perante Herodes Jesus perante Pilatos e Herodes 1. Jesus é conduzido a Pilatos Conduziram Jesus, entre muitas crueldades, da casa de Caifás à de Pilatos, através do trecho mais populoso da cidade, que nessa ocasião formigava de peregrinos de toda a parte do país, além de uma multidão de estrangeiros. O cortejo dirigiu-se para o norte, descendo do Monte Sião, atravessando uma rua estreita, no fundo do vale, depois pelo bairro de Acra, ao longo do lado ocidental do Templo, até o palácio e o tribunal de Pilatos, que estava situado na esquina noroeste do Templo, defronte do grande Fórum ou mercado. Caifás e Anás e grande número de membros do Supremo Conselho iam em vestes festivas, à frente do cortejo; atrás deles, alguns servos traziam rolos de escritura. Seguiam-se-Ihes muitos outros escribas e judeus, entre eles as falsas testemunhas e os assanhados fariseus, que foram os que mais se empenharam em acusar ao Senhor. A uma pequena distância, seguia nosso bom Senhor Jesus, conduzido pelos soldados com as cordas, cercado de soldados e dos seis agentes que estavam presentes no ato da prisão. De todos os

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lados afluiu o populacho, unindo-se com gritos e zombarias ao cortejo; ao longo de todo o caminho esperavam numerosos grupos de gente do povo. Jesus estava vestido apenas de sua túnica, toda suja de escarro e imundície. Do pescoço pendia-Lhe até os joelhos a longa corrente, de largos anéis, que, ao andar, Lhe batia dolorosamente de encontro aos joelhos. Tinha as mãos amarradas como na véspera e quatro soldados conduziam-na pelas cordas, que Lhe saiam do cinturão. Estava todo desfigurado pelas crueldades, com que O haviam torturado durante a noite; andava cambaleando, cabelo e barba em desalinho, o rosto pálido, inchado e cheio de manchas escuras, causadas pelos socos. Impeliam-nO com pancadas e injúrias. Tinham instigado a muitos do populacho para escarnecê-Lo, imitando-Lhe a entrada triunfal no Domingo de Ramos. Aclamavam-na com todos os títulos de rei, em tom de mofa, jogavam-Lhe diante dos pés pedras, pedaços de madeira, paus, trapos sujos e zombavam, em versos e motejos, de sua entrada festiva. Os soldados conduziam-na aos arrancos, sobre os obstáculos jogados no caminho; era uma crueldade sem fim. Não muito longe da casa de Caifás estava a dolorosa e santa Mãe de Jesus, com Madalena e João, encostados ao canto de um edifício, esperando a aproximação do cortejo. A alma de Maria estava sempre com Jesus, mas quando podia ficar também corporalmente perto dEle, não lhe dava descanso o amor, impelindo-a a seguir-Lhe o caminho e as pegadas. Depois da visita noturna ao tribunal de Caifás, ficara só pouco tempo no Cenáculo, entregue à muda dor; pois, quando Jesus foi tirado do cárcere, de madrugada, para ser apresentado ao tribunal, a Virgem SS. se levantou, cobriu-se com o manto e véu e saindo, disse a João e Madalena: "Sigamos meu Filho à casa de Pilatos, quero vê-Lo com meus olhos." Dando uma volta, chegaram assim em frente do cortejo; a SS. Virgem parara nesse lugar e os outros com ela. A santa Mãe de Jesus sabia bem o que era feito do divino Filho, que Lhe estava sempre ante os olhos da alma; mas com o olhar interior não O podia ver tão desfigurado e maltratado como na realidade estava, pela maldade e crueldade dos homens. De fato via-Lhe sempre os horríveis sofrimentos, mas inteiramente penetrados pela luz da santidade, do amor e da paciência, da vontade que se oferecia vítima pelos homens. Mas nesse momento se lhe apresentou à vista a realidade terrível e ignominiosa. Passaram diante dela os orgulhosos e assanhados inimigos de Jesus, os sumos sacerdotes do verdadeiro Deus, nas vestes santas de gala; passaram com a intenção deicida, representantes da malícia, mentira e maldição. Os sacerdotes de Deus haviam-se tornado sacerdotes de Satanás. Que aspecto horrível! Depois o tumulto e a alegria dos judeus, todos os perju-ros inimigos e acusadores e afinal Jesus, Filho de Deus e do Homem, seu filho, horrivelmente desfigurado e maltratado, amarrado,

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batido, empurrado, cambaleando mais do que andando, arrastado pelas cordas por cruéis carrascos, no meio de uma nuvem de injúrias e maldições. Aí, se ele não fosse o mais pobrezinho, o mais desamparado, o único que se conservava calmo, a rezar no íntimo do coração, cheio de amor, no meio dessa tempestade do inferno desencadeado, a angustiada Mãe não O teria reconhecido, naquele estado, horrivelmente desfigurado. Quando se aproximou, vestido da túnica tão suja, a Virgem Santíssima exclamou, soluçando: "Ai de mim! É esse meu filho? Ai! É mesmo meu filho, oh! Jesus, meu Jesus!" O cortejo passou-lhe em frente; o Senhor volveu a cabeça para aquele lado, lançando um olhar comovente à sua Mãe e ela perdeu os sentidos. João e Madalena levaram-na dali, mas logo que voltou a si, fez-se conduzir por João ao palácio de Pilatos. Jesus tinha de suportar, também nesse caminho, que os amigos nos abandonam na desgraça; pois os habitantes de Ofel estavam todos reunidos num certo lugar do caminho e quando viram Jesus tão humi-lhado e desfigurado, entre os soldados, levado com injúrias e maus tratos, ficaram também abalados na fé; não podiam imaginar o rei, o profeta, o Messias, o Filho de Deus em tão miserável estado. Os fariseus, ao passar, ainda zombaram deles, por causa da afeição que dedicavam a Jesus: "Eis o vosso rei, saudai-O; agora deixais pender a cabeça, agora que Ele vai para a coroação e dentro em pouco subirá ao trono! Acabaram-se-Lhe os milagres, o sumo sacerdote deu-Lhe cabo do feitiço, etc." Aquela boa gente, que vira tantas curas milagrosas e recebera tantas graças de Jesus, ficou abalada na fé, pelo horrível espetáculo que lhe apresentavam as pessoas mais santas do país, o sumo sacerdote e o Sinédrio. Os melhores elementos retiraram-se duvidosos, os piores juntaram-se ao cortejo como podiam; pois a passagem em várias ruas estava impedida por guardas dos fariseus, para evitar qualquer tumulto. 2. O palácio de Pilatos e os arredores Ao pé do ângulo noroeste do monte do Templo (8) está situado o palácio do governador romano, Pilatos, em lugar bastante alto; sobe-se uma escada de mármore de muitos degraus, de onde a vista domina uma vasta praça de mercado, cercada de colunas, sob as quais há acomodações para vendedores. Um posto de guarda de quatro entradas, ao oeste, norte, leste e sul, (onde está o palácio de Pilatos), interrompem essas arcadas do mercado, o qual também é chamado "fórum" e se estende para oeste, além do ângulo noroeste do monte do Templo; desse ponto do fórum pode-se avistar o Monte Sião. O fórum é um pouco mais elevado de que as ruas

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circunvizinhas, que sobem um pouco, até chegar às portas de entrada do edifício; em várias partes se encostam as casas das ruas vizinhas ao extremo da coluna que cerca o fórum. O palácio de Pilatos não está contíguo ao fórum, mas é separado desse por um espaçoso pátio. Esse pátio tem como porta, a leste, uma alta arcada, que abre diretamente para a rua que conduz à porta das Ovelhas, pela qual passa quem vai ao monte das Oliveiras; a oeste, tem como porta outra arcada, que abre para a parte oriental da cidade e conduz a Sião, através do bairro de Acra. 8) Provavelmente Junto ao forte Antônia, cuja situação nesse lugar a vidente descreveu diversas vezes. Da escada do palácio de Pilatos se avista, no norte, através do pátio, o fórum, em cuja entrada há um pórtico e alguns assentos de pedra, virados para o palácio. Os sacerdotes judeus, dirigindo-se ao tribunal de Pilatos, não iam além desses assentos, para não se contaminarem; o limite que não deviam ultrapassar, estava marcado por uma linha traçada (sobre o pavimento do pátio. Perto da arcada da porta oriental do palácio, já dentro do recinto do fórum, havia um grande posto de guarda, que, confinando ao norte com o fórum e ao sul com a arcada da porta do pretório de Pilatos, formava uma espécie de vestíbulo ou adro entre o foro e o pretório. Chamava-se pretório a parte do palácio de Pilatos onde ele pronunciava os julgamentos. O posto de guarda era rodeado de colunatas e tinha no centro um pátio sem teto, sob este se achavam os cárceres, nos quais também os dois ladrões estavam presos. Em toda parte se viam lá soldados romanos. Não longe do posto da guarda, perto das arcadas que o cercavam, estava no fórum a coluna da flagelação; havia ainda outras colunas no recinto do mercado: as que estavam mais perto, serviam para infligir castigos corporais, as que estavam mais longe, para amarrar o gado à venda. Em frente ao posto da guarda, mesmo no fórum, se subia por uma escadaria a um estrado, construído de pe-dras e bem ladrilhado, em que havia assentos de pedra; parecia-se com um tribunal público; desse lugar, que era chamado Gabata, pronunciava Pilatos as sentenças. A escada de mármore do palácio de Pilatos conduzia a um terraço aberto, do qual ele falava aos acusadores, sentados nos bancos de pedra defronte, próximo à entrada do fórum. Falando alto, podia-se fazer entender com facilidade. Atrás do palácio há ainda outro terraço mais elevado, com jardins e um caramanchão. Esses jardins formam a comunicação entre o palácio de Pilatos e a casa da esposa, Cláudia Prócula. Por trás desses edifícios há ainda um fosso, que os separa do monte do Templo; além deste há ainda casas de empregados do Templo. Contígua à parte oriental do palácio de Pilatos, está a casa do

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conselho do tribunal do velho Herodes, em cujo pátio interno foram mortas muitas crianças inocentes. Fizeram depois algumas mudanças; a entrada é agora pelo lado oriental; há também uma entrada para Pilatos, no vestíbulo do palácio. Desse lado da cidade partem quatro ruas em direção ao oeste: três conduzem ao palácio de Pilatos e ao Fórum; a quarta, porém, passa ao lado norte do fórum, em direção à porta que conduz a Betsur. Nesta rua, perto da porta, se acha o belo edifício que Lázaro possui em Jerusalém e no qual também Marta tem uma habitação própria. Das quatro ruas, a que fica mais perto do Templo, vem da porta das Ovelhas, perto da qual, quando se entra, à direita, se acha a piscina das ovelhas; essa fica tão perto do muro da cidade, que nesse se encostam arcadas, que formam uma abóbada sobre as águas. Ela tem um escoadouro, fora do muro, para o vale de Josafá, o que faz com que o solo, por fora da porta, fique encharcado. Em redor dessa piscina há ainda outros edifícios; é nessa piscina que se lavam os cordeiros pela primeira vez, antes de serem levados ao sacrifício no Templo; mais tarde são lavados outra vez e solenemente, na piscina de Betsaida, ao sul do Templo. Na segunda rua há uma casa com pátio, que pertencia a Sant'Ana, Mãe de Maria, onde ela e a família moravam e guardavam os animais para os sacrifícios, quando vinham a Jerusalém. Se me lembro bem, foi também nessa casa que foram celebradas as núpcias de José e Maria. O Fórum, como já dissemos, fica mais alto do que as ruas circunvizinhas e a água corre pelos regos das ruas, para a piscina das Ovelhas. Na encosta do monte Sião há também um fórum semelhante, diante do antigo castelo de Davi; ali perto, ao sudeste, se acha o Cenáculo e ao norte, o tribunal de Anás e Caifás. O Castelo de Davi é agora um forte abandonado e deserto, com pátios, estábulos e salas vazias, que se alugam como albergaria a caravanas e aos estrangeiros e seus animais de carga. Esse edifício já há muito que está abandonado; já o vi nesse estado na época do nascimento de Cristo; nessa ocasião o séquito dos Reis Magos, com numerosos animais de carga, foi conduzido para lá, logo ao entrar na cidade. 3. Jesus perante Pilatos Eram talvez seis horas da manhã, segundo o nosso modo de contar, quando a comitiva dos sumos sacerdotes e dos fariseus, com o nosso Salvador, horrivelmente maltratado, chegou ao palácio de Pilatos. Entre o mercado e a entrada do tribunal havia assentos em ambos os lados do caminho, onde se divertiam Anás e Caifás, e os conselheiros que os acompanhavam. Jesus foi conduzido alguns passos adiante, até a escada de Pilatos, pelos soldados, que o seguravam pelas cordas. Quando láchegaram, estava Pilatos

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deitado sobre uma espécie de leito, na sacada do terraço; tinha ao lado uma mezinha de três pés, em que se viam algumas insígnias de sua dignidade e outros objetos, dos quais não me lembro mais. Cercavam-no oficiais e soldados, que também tinham colocado lá insígnias do poder romano. Os sumos sacerdotes e judeus ficaram afastados do tribunal, porque, aproximando-se mais, se teriam contaminado; segundo a lei havia um certo limite, que não transgrediam. Quando Pilatos os viu chegar tão apressados, com tanto tumulto e gritaria, conduzindo Jesus maltratado, levantou-se e falou em tom tão cheio de desprezo, como talvez algum orgulhoso marechal francês falaria aos deputados de uma cidadezinha: "O que vindes fazer tão cedo? Como pusestes este homem em tão mísero estado? Começais cedo a esfolar e matar." Eles, porém, gritaram aos soldados: "Adiante! Levai-O ao tribunal." Depois se dirigiram a Pilatos: "Escutai as nossas acusações contra este criminoso; não podemos entrar no tribunal, para não nos tornarmos impuros. Depois de exclamarem essas palavras, gritou um homem de estatura alta e forte e figura venerável, no meio do povo apinhado atrás deles no fórum: "É verdade, não podeis entrar neste tribunal, pois está santificado por sangue inocente; só Ele pode entrar, só Ele entre os judeus épuro como os inocentes." Assim dizendo, profundamente comovido, desapareceu na multidão. Chamava-se Sadoc; era homem abastado, primo de Obed, que era o marido de Seráfia, também chamada Verônica; dois dos seus filhinhos tinham sido assassinados, com as crianças inocentes, no pátio do tribunal, por ordem de Herodes. Desde então se tinha retirado do mundo e vivia como um Esseno, em continência com a mulher. Tinha visto Jesus uma vez, em casa de Lázaro e ouvira-O explicar a doutrina; quando viu Jesus tão cruelmente arrastado para a escada de Pilatos, reviveu-Ihe no coração a dolorosa lembrança dos filhinhos assassinados naquele lugar e assim deu em alta voz o testemunho da inocência do Senhor. Os acusadores de Jesus estavam com muita pressa e irritados demais pelo modo desdenhoso de Pilatos e a posição humilhante em que se achavam diante dele, para dar atenção à exclamação de Sadoc. Os soldados puxaram Jesus pelas cordas, escada acima, até o fundo do terraço, de onde Pilatos estava falando aos acusadores. O procurador romano já ouvira falar muito de Jesus. Quando O viu tão horrivelmente maltratado e desfigurado e contudo conservando uma dignidade inabalável, sentiu cada vez mais nojo e desprezo dos sacerdotes e conselheiros judaicos, que lhe tinham já antes prevenido que trariam Jesus de Nazaré, réu de morte, perante o tribunal, fazendo-Ihes sentir que não estava disposto a condená-Lo sem culpa provada. Disse-Ihes, pois, em tom brusco e desdenhoso: "De que crime acusais este homem?" A que responderam irritados: "Se não O conhecêssemos como malfeitor, não vo-Lo

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teríamos entregado." Disse-Ihes Pilatos: "Pois tomai e julgai-O segundo a vossa lei." - "Sabeis, responderam os judeus, que não nos compete o direito absoluto de executar uma sentença de morte.” Os inimigos de Jesus estavam cheios de escárnio e raiva; fizeram tudo com precipitação e violência, para acabar com Jesus antes de co meçar o tempo legal da festa, afim de poderem sacrificar o cordeiro pascal. Mas não sabiam que Ele era o verdadeiro Cordeiro pascal, que eles mesmos conduziam ao tribunal do juiz pagão, servidor de falsos deuses, em cujo limiar não queriam contaminar-se, para poder nesse dia comer o cordeiro pascal. Como o governador os intimasse a proferir as acusações, apresentaram três acusações principais contra Jesus e por cada acusação depuseram 10 testemunhas. Formularam as acusações de modo que apresentavam Jesus como réu de crime de lesa-majestade e assim Pilatos devia condená-Lo; pois em causas que diziam respeito às leis da religião e do Templo, poderiam eles mesmos decidir. Primeiro acusaram Jesus de ser sedutor do povo, perturbador do sossego público e agitador; e apresentaram algumas provas, confirmadas por testemunhas. Disseram mais que andava de um lugar para outro, causando grandes ajuntamentos do povo; que violava o Sábado, curando nesse dia. Nisso Pilatos interrom-peu-os, num tom sarcástico: "Naturalmente não estais doentes, senão estas curas não vos causariam tanta indignação." Eles, porém, continuaram a acusar Jesus, dizendo que seduzia o povo com horríveis doutrinas, pois afirmava que teriam a vida eterna os que Lhe comessem a carne e bebessem o sangue. - Pilatos zangou-se, ao ver a fúria precipitada com que proferiram essa acusação; olhou sorrindo para os seus oficiais e dirigiu aos judeus palavras sarcásticas, como, por exemplo: "Parece mesmo que quereis seguir-Lhe a doutrina e possuir a vida eterna; tenho a impressão de que quereis comer-Lhe a carne e beber-Lhe o sangue.” A segunda acusação era que Jesus instigava o povo a não pagar imposto ao imperador. Pilatos interrompeu-os indignado, como homem cujo cargo era velar por essas coisas e disse, em tom convicto de suas próprias informações: "Isto é mentira grossa; devo sabê-Io melhor do que vós." - Os judeus, porém, gritaram, apresentando a terceira acusação: Que era mesmo verdade, esse homem, de nascimento baixo, duvidoso e suspeito, tinha formado um partido forte e proferido ameaças contra Jerusalém. Também propagava entre o povo parábolas equivocas, sobre um rei que prepara as núpcias do filho. Certa vez já uma grande multidão de povo, reunido em uma montanha, tinha tentado proclamá-Lo rei, mas Ele, achando que era ainda cedo, tinha-se escondido. Nos últimos dias tinha ousado mais: preparou uma entrada tumultuosa em Jerusalém e fez o povo gritar: "Hosana ao filho de Davi! Bendito seja o reino que vemos chegar, do nosso pai Davi. Também se fazia prestar honras régias, pois que ensinava que era Cristo, o

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Unigênito do Senhor, o Messias, o rei prometido dos judeus e assim se fazia chamar." Também essa acusação foi confirmada pelos depoimentos de dez testemunhas. Quando Pilatos ouviu que Jesus se fazia chamar o Cristo, rei dos judeus, tornou-se pensativo. Saindo da sacada, entrou na sala contígua ao tribunal, lançando, ao passar um olhar atento a Jesus e deu ordem à guarda de trazê-Lo à sala do tribunal. Pilatos era pagão supersticioso de espírito confuso e inconstante. Conhecia as lendas obscuras de filhos dos deuses, que teriam vivido na terra; também não ignorava que os profetas dos judeus, desde muito tempo, haviam predito a vinda de um ungido de Deus, de um Redentor e um libertador e que muitos judeus o estavam esperando. Também sabia que uns reis do Oriente tinham vindo ao velho Herodes, para pedir informações sobre um rei recém-nascido dos judeus, a quem queriam prestar homenagens e que depois disso, muitas crianças foram degoladas, por ordem de Herodes. Já ouvira falar da promissão da vinda de um Messias, rei dos judeus, mas como pagão que era, não o acreditava, nem podia compreender que espécie de rei seria; quando muito, podia pensar, como os judeus instruídos e os herodianos daquele tempo, num rei poderoso e conquistador. Tanto mais ridícula lhe parecia por isso a acusação de que esse Jesus que estava diante dele, tão humilhado e desfigurado, pudesse declarar ser aquele Messias, aquele rei. Como, porém, os inimigos de Jesus apresentassem isso como crime contra os direitos do imperador, mandou conduzir o Salvador à sua presença, para interrogá-Lo. Pilatos olhou para Jesus com assombro e disse-Lhe: "És então o rei dos judeus?" - Jesus respondeu: "Dizes isto de ti mesmo ou foram outros que t'o disseram de mim?" Pilatos, indignado de ver Jesus julgá-Io tão tolo, que fosse espontaneamente perguntar a um homem tão pobre e miserável se era rei, disse em tom desdenhoso: "Por acaso sou judeu, para me interessar por tais misérias? Teu povo e seus sacerdotes entregaram-Te a mim, para condenar-Te como réu de crime capital; dize-me, pois, o que fizeste?" Respondeu-lhe Jesus, em tom solene: "O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo, eu teria servidores, que combateriam por mim, para não me deixar cair nas mãos dos judeus; mas o meu reino não é deste mundo." Pilatos estremeceu, ao ouvir essa graves palavras de Jesus e disse pensativo. "Então és mesmo rei?" - Jesus respondeu. "É como dizes, sou rei. Nasci e vim a este mundo para dar testemunho da verdade e todo que é da verdade, atende à minha voz." - Então Pilatos fitou-O e levantando-se, disse: "Verdade? O que é a verdade?" - Falaram-se ainda outras palavras, das quais não me lembro bem. Pilatos saiu outra vez para o terraço; não podia compreender Jesus; mas sabia que não era um rei que quisesse prejudicar ao imperador, nem era pretendente a um reino deste mundo; o

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imperador, porém, não se importava com um reino do outro mundo. Pilatos gritou, pois, da sacada aos sumos sacerdotes: "Não acho nenhum crime neste homem." - os inimigos de Jesus irritaram-se de novo e proferiram uma torrente de acusações contra Ele. O Senhor, porém, permanecia calado e rezava por esses pobres homens e quando Pilatos se Lhe dirigiu, perguntandoLhe: "Não tens nada a responder a todas essas acusações?" Jesus não, proferiu uma só palavra, de modo que Pilatos, surpreso, Lhe disse: "Vejo bem que empregam mentiras contra ti" - (em vez de mentiras usou outra expressão, que, porém, esqueci). Os acusadores continuavam, cheios de raiva, a acusá-Lo, dizendo: "O que? Não achais crime n’Ele? Não é então crime sublevar todo o povo, espalhar sua doutrina em todo o país, da Galiléia até aqui?” Quando Pilatos ouviu a palavra Galiléia, refletiu um momento e perguntou: "Esse homem é da Galiléia, súdito de Herodes?" Os acusadores responderam: "Sim, seus pais moravam em Nazaré e Ele tem domicílio atual em Cafarnaum." Então disse Pilatos: "Pois que é galileu e súdito de Herodes, conduzi-O a este; ele está aqui na festa e pode julgá-Lo." Mandou conduzir Jesus outra vez do tribunal para as mãos dos implacáveis inimigos, enviando também com eles um dos oficiais, para entregar ao tribunal de Herodes o súdito galileu Jesus de Nazaré. Ficou assim satisfeito'de poder livrar-se desse modo da obrigação de julgar Jesus pois essa causa lhe era desagradável. Ao mesmo tempo tinha nisso um fim político, queria dar uma prova de atenção a Herodes, que sempre desejara muito ver Jesus; pois estavam em desavença. Os inimigos de Jesus, furiosos por lhes haver Pilatos negado a demanda e terem de ir ao tribunal de Herodes, fizeram recair toda a raiva sobre Jesus. Cercaram-na de novo de soldados e, irritadíssimos, amarraram-Lhe as mãos e com empurrões e pancadas, conduziram-na a toda pressa, através da multidão que se apinhava no fórum e depois por uma rua, até o palácio de Herodes, que não ficava muito longe. Acompanharam-nos soldados romanos. Cláudia Prócula, esposa de Pilatos, mandara-lhe dizer por um cri-ado, durante as ultimas discussões, que desejava falar-lhe urgentemente. Quando Jesus foi conduzido a Herodes, estava escondida numa galeria alta, olhando com grande angústia e tristeza para o cortejo que passava pelo fórum. 4. Origem da Via Sacra Durante toda a acusação perante Pilatos, a Mãe de Jesus, Madalena e João ficaram no meio do povo, num canto das arcadas do fórum ouvindo com profunda dor a gritaria raivosa dos acusadores..Quando Jesus foi conduzido a Herodes, João voltou com a SS. Virgem e Madalena por todo o caminho da Paixão. Foram até à casa de Caifás e a de Anás, atravessando Ofel, até chegarem a

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Getsêmani, no monte das Oliveiras e em todos os lugares onde Ele caíra ou onde lhes tinham causado um sofrimento, paravam e em silêncio choravam e sofriam com Ele. Muitas vezes a SS. Virgem se prostrava no chão, beijando a terra onde Jesus caíra, Madalena torcia as mãos e João, chorando, consolava-as, levantava-as e continuava com elas o caminho. Foi esse o começo da Via Sacra e da contemplação e veneração da Paixão de Jesus, antes mesmo que estivesse terminada. Foi nessa ocasião que começou, na mais santa flor da humanidade, na Santíssima Virgem Mãe de Deus e do Filho do homem, a devoção da Igreja às dores do Redentor; já naquele momento, quando Jesus ainda trilhava o caminho doloroso da Paixão, a Mãe cheia de graça venerava e regava com lágrimas as pegadas de seu Filho e Deus. Oh! que compaixão! Com que violência lhe entrou a espada no coração, ferindo-o sem cessar! Ela, cujo bem-aventurado seio O trouxera, que concebera, acariciara e nutrira o Verbo, que era desde o princípio com Deus e era mesmo Déus; ela, que em si Lhe tivera e sentira a vida, antes que, os homens, seus irmãos, Lhe recebessem a bênção, a doutrina e a salvação, ela participava de todos os sofrimentos de Jesus, inclusive a sua sede da salvação dos homens, pela dolorosa Paixão e Morte. Assim a Virgem puríssima e Imaculada inaugurou para a Igreja a Via Sacra, para juntar em todos esses lugares os infinitos merecimentos de Jesus Cristo, como se juntam pedras preciosas ou colhê-los como se colhem flores à beira do caminho e oferecê-Ios ao Pai Celeste, por aqueles que crêem. Tudo que tinha havido e haverá de santo na humanidade, todos que têm almejado a salvação, todos que já uma vez celebraram compadecidos o amor e os sofrimentos do Senhor, fizeram esse caminho com Maria, choraram, rezaram e sacrificaram no coração da Mãe de Jesus, que também é terna Mãe de todos os seus irmãos, os fiéis da Igreja. Madalena estava como que alucinada pela dor. Tinha um imenso e santo amor a Jesus; mas quando queria verter a alma aos pés do Salvador, como Lhe vertera o óleo de nardo sobre a cabeça, abria-se um horrível abismo entre ela e o Bem-Amado. O arrependimento dos pecados, como a gratidão pelo perdão, lhe eram sem limites e quando o seu amor queria fazer subir a ação de graças aos pés do Divino Mestre, como uma nuvem de incenso, eis que O via maltratado e conduzido à morte, por causa dos pecados dela, que Ele tomara sobre si. Então se lhe horrorizava a alma, diante de tão grande culpa, pela qual Jesus tinha de sofrer tão horrivelmente; precipitava-se-lhe no abismo do arrependimento, que não podia nem exaurir, nem encher; e de novo se elevava, cheia de amor e saudade, para seu Mestre e Senhor e via-O sofrendo indizíveis crueldades. Assim tinha a alma cruelmente dilacerada, vacilava entre o amor e o arrependimento, entre a sua gratidão e a dolorosa contemplação da ingratidão do povo para com o Redentor; todos esses sentimentos se lhe manifestavam no rosto,

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nas palavras e nos movimentos. João sofria em seu amor; conduzia a Mãe de seu Santo Mestre e Deus, que também o amava e sofria por ele; conduzia-a, pela primeira vez, nas pegadas da Via Sacra da Igreja e lia-lhe na alma o futuro. 5. Pilatos e a Esposa Enquanto Jesus era conduzido a Herodes e lá o cobriam de insultos e escárnio, vi Pilatos ir ao encontro da esposa, Cláudia Prócula. Encontraram-se numa pequena casa, construída sobre um terraço do jardim, atrás do palácio de Pilatos. Cláudia estava muito incomodada e comovida. Era mulher alta e esbelta, mas pálida; vestia um véu, que lhe pendia sobre as costas, contudo viam-se-Ihe os cabelos, dispostos em redor da cabeça e alguns adornos; tinha também brincos, um colar e sobre o peito um broche, em forma de agrafe, que lhe prendia o longo vestido de pregas. Conversou muito, tempo com Pilatos, conjurando-o por tudo que lhe era santo a não fazer mal a Jesus, o Profeta, o mais Santo dos santos e contou-lhe parte das visões maravilhosas que vira, a respeito de Jesus, durante a noite. Enquanto ela falava, vi-lhe grande parte das visões que tivera; mas não me lembro mais exatamente da ordem em que se seguiram. Recordome todavia, que viu todos os momentos principais da vida de Jesus; viu a Anunciação de N. Senhora, o Nascimento de Jesus, a adoração dos pastores e dos Reis Magos, as profecias de Simeão e Ana, a fuga para o Egito, a matança dos inocentes, a tentação no deserto, etc. Viu-Lhe quadros da vida pública, virtudes e milagres; viu-O sempre rodeado de luz e teve visões horríveis do ódio e da maldade de seus inimigos; viuLhe os inúmeros sofrimentos, o amor e a paciência sem limite, a santidade e as dores de sua santa Mãe. Para mais fácil compreensão, eram esses quadros ilustrados com figuras simbólicas e pela diferença de luz e sombra. Essas visões lhe causaram indizível angústia e tristeza; pois todas essas coisas lhe eram novas, penetraram-lhe no coração pela verdade intuitiva; parte das visões mostraram-lhe acontecimentos que se deram na vizinhança de sua casa, como por exemplo a matança das crianças inocentes e a profecia de Simeão no Templo. De minha própria experiência sei bem quanto um coração compassivo sofre em tais visões; pois compreende melhor os sentimentos de outrem quem já os sentiu em si mesmo. Ela tinha sofrido desse modo durante a noite e visto muitas coisas maravilhosas e compreendido muitas verdades, umas mais, outras menos claramente, quando foi acordada pelo barulho da multidão, que conduzia a Jesus. Quando mais tarde olhou para fora, viu o Senhor, objeto de todas as coisas maravilhosas que vira durante a noite, desfigurado e cruelmente maltratado pelos inimigos, que o conduziam através do fórum, ao palácio de Herodes. Esse

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espetáculo, após as visões da noite, encheu-lhe o coração de angústia e terror. Mandou imediatamente chamar Pilatos, a quem contou, com medo e pavor, muitas das coisas que vira, porque não tinha compreendido tudo ou não o sabia exprimir em palavras; mas pedia e suplicava e estreitava-se-Ihe de um modo tocante. Pilatos ficou muito admirado e até sobressaltado pelo que a esposa lhe contou, comparava-o com tudo que ouvia cá e lá sobre Jesus, com a raiva dos,judeus, com o silêncio do Mestre e as firmes e maravilhosas respostas que lhe dera às perguntas; ficou perturbado e inquieto; deixou-se, porém, em pouco vencer pelas insistências da mulher e disse-lhe: "Já declarei que não acho crime nesse homem; não O condenarei, jápercebi toda a maldade dos judeus." Ainda falou sobre as declarações que Jesus tinha feito contra si mesmo e até tranqüilizou a mulher, dandolhe um penhor, como garantia da promessa. Não sei mais se foi uma jóia ou um anelou sinete que lhe deu por penhor. Assim se separaram. Conheci Pilatos como homem confuso, ambicioso, indeciso, orgulhoso e vil ao.mesmo tempo; sem verdadeiro temor de Deus, não recuava diante das ações mais vergonhosas, se delas esperava qualquer lucro e ao mesmo tempo era um vil covarde, que se entregava a toda espécie de ridículas superstições, procurando a proteção dos deuses, quando se achava em situação difícil. Vi-o também nessa ocasião muito perturbado; estava continuamente diante dos deuses, aos quais oferecia incenso, numa sala secreta da casa e dos quais pedia sinais. Também esperava outros sinais supersticiosos, por exemplo, observava como comiam as galinhas; mas todas essas coisas pareciam tão horríveis, tenebrosas e infernais, que recuei tremendo de horror e não as posso mais contar exatamente. Tinha ele as idéias confusas e o demônio suge-ria-lhe ora uma, ora outra coisa. Primeiro opinou que devia soltar Jesus, por ser inocente; depois pensou que os deuses se vingariam, se salvasse Jesus; pois havia estranhos sinais e declarações, que provavam ser o Nazareno um semideus, e sendo assim, podia fazer muito mal aos deuses. "Talvez", disse consigo, "seja uma espécie de Deus dos judeus, que deve reinar sobre tudo; alguns reis dos adoradores dos astros, vindos do oriente, já vieram uma vez a Jerusalém, procurar tal rei; talvez Este pudesse elevar-Se acima dos deuses e do imperador e eu teria uma grande responsabilidade, se Ele não morresse. Talvez a sua morte seja o triunfo dos meus deuses." Mas depois se recordou dos sonhos maravilhosos da mulher, que antes nunca vira Jesus e isso lançou um grande peso na balança oscilante de Pilatos, em favor da libertação do Mestre e decidiu-se de fato nesse sentido. Queria ser justo; mas não o podia, porque tinha perguntado: "O que é a verdade?" e não esperara a resposta: "Jesus Nazareno, o rei dos judeus, é a verdade." Havia tanta confusão nos pensamentos do Procurador romano, que eu não o podia compreender e ele mesmo também não sabia

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o que queria; senão certamente não teria consultado as galinhas. Juntava-se no entanto cada vez mais povo no mercado e na vizinhança da rua pela qual Jesus fora conduzido a Herodes. Havia, porém, uma certa ordem, pois o povo reunia-se em certos grupos, segundo as cidades ou regiões donde vieram à festa. Os fariseus mais encarniçados de todas as regiões onde Jesus tinha ensinado, estavam com os patrícios, esforçando-se por excitar contra Jesus o povo instável e perplexo. Os soldados romanos estavam reunidos em grande número no posto de guarda, diante do palácio de Pilatos, outros tinham ocupado todos os pontos importantes da cidade. 6. Jesus perante Herodes O palácio do Tetrarca Herodes estava situado ao norte do fórum, na cidade nova, não muito longe do palácio de Pilatos. Um destacamento de soldados romanos acompanhou o cortejo, a maior parte oriunda da região entre a Itália e a Suíça. Os inimigos de Jesus, furiosos por ter de fazer tantas caminhadas, não cessavam de ultrajá-Lo e de fazê-Lo empurrar e arrastar pelos soldados. O mensageiro de Pilatos chegou antes do cortejo ao palácio de Herodes, que assim, já avisado, O esperava sentado numa espécie de trono, sobre almofadas, numa vasta sala; rodeavam-no muitos cortesãos e soldados. Os Sumos Sacerdotes entraram pelo peristilo e colocaram-se de ambos os lados; Jesus ficou na entrada. Herodes sentiu-se muito lisonjeado, por Pilatos tê-Lo publicamente declarado competente, diante dos Sumos Sacerdotes, de julgar um galileu. Mostrou-se muito importante e vaidoso; também se regozi-java de ver diante de si, em situação tão humilhante, o famoso Mestre, que sempre tinha desdenhado apresentar-Se-Ihe. João falara d’Ele com tanta solenidade e ouvira os Herodianos e outros espiões e mexeriqueiros falarem de Jesus, que tinha muita curiosidade de vê-Lo; compraziase em sujeitá-Lo, diante dos palacianos e dos Sumos Sacerdotes, a um prolixo interrogatório, pelo qual queria mostrar a ambas as partes quanto estava bem informado. Pilatos tinha-lhe também comunicado que não achara crime em Jesus; e o hipócrita tomou-o como aviso, para tratar os acusadores com certa frieza, o que ainda mais Ihes aumentou a raiva. Proferiram acusações tumultuosamente, logo ao entrarem; Herodes, porém, olhou com curiosidade para Jesus e quando O viu tão desfigurado e maltratado, o cabelo desgrenhado, o rosto dilacerado e coberto de sangue e imundícies, a túnica toda suja de lama, esse rei mole e libertino sentiu dó e nojo. Exclamou um nome de Deus que me soou como "Jeovah", virou o rosto, com um gesto de nojo e disse aos sacerdotes: "Levai-O daqui, limpai-O. Como podeis trazer à minha presença um homem tão sujo e maltratado?" Os soldados levaram então Jesus ao átrio; trouxeram água numa

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bacia e um esfregão e limparam-nO cruelmente; pois o rosto estava ferido e passavam o esfregão com brutalidade. Herodes repreendeu os sacerdotes, por causa dessa crueldade e no modo de tratá-Ios parecia imitar Pilatos; pois também Ihes disse: "Vê-se bem que Ele caiu nas mãos de carniceiros; começastes a imolação hoje antes da hora." Os sumos sacerdotes, porém, insistiam tumultuosamente nas acusações e incriminações. Quando reconduziram Jesus à sala, quis Herodes fingir benevolência para com Ele e mandou trazer-Lhe um cálice de vinho, por estar muito fraco; Jesus, porém, sacudiu a cabeça e não aceitou o vinho. Herodes dirigiu-se então com muita verbosidade e afabilidade, proferindo tudo que sabia dEle. A princípio Lhe fez várias perguntas e manifestou o desejo de vê-Lo fazer um milagre; como, porém, Jesus não respondesse palavra alguma e permanecesse com os olhos baixos, ficou Herodes irritado e envergonhado diante dos presentes, mas não quis mostrá-Io e continuou a fazer-Lhe uma torrente de perguntas. Primeiro procurou lisonjeá-Lo: "Sinto muito te ver tão gravemente acusado; te nho ouvido falar muito de ti; sabes que me ofendeste em Tirza, resgatando sem minha licença, vários presos que eu mandara prender lá? Mas fizeste-O talvez com boa intenção. Agora me foste entregue pelo governador romano para te julgar; o que respondes a todas aquelas acusações? Ficas calado? - Têm-me falado muito de tua sabedoria, dos teus discursos e da tua doutrina; eu desejaria ouvir-Te refutar os teus acusadores. - Que dizes? -É verdade que és o rei dos judeus? - És o Filho de Deus? - Quem, és? - Ouvi dizer que tens feito grandes milagres, prova-o diante de mim, fazendo um milagre. Depende de mim libertar-Te. - É verdade que deste a vista a cegos de nascença? Ressuscitaste dos mortos Lázaro? Saciaste vários milhares de homens com poucos pães? Porque não respondes? - Conjuro-te a operar um dos teus milagres. Seria muito em teu favor." Como, porém, Jesus continuasse calado, Herodes falou com volubilidade ainda maior: "Quem és? - Como chegaste a isto? - Quem Te deu o poder? - Porque não tens mais poder agora? És acaso aquele de cujo nascimento se contam coisas tão estranhas? No tempo de meu pai vieram alguns reis do oriente e perguntaram-lhe por um recém-nascido rei dos judeus, a quem queriam prestar homenagem; dizem que eras Tu aquele menino; é verdade? - Escapaste da matança em que pereceram tantas crianças? - Como foi isto? - Porque não se ouviu falar de Ti tanto tempo? - Ou apenas dizem isto a teu respeito para fazer-Te rei? - Justifica-Te. - Que espécie de rei és Tu? Em verdade, não vejo em Ti nada de real. - Como me dizem, fizeram-Te uma entrada triunfal no Templo. Que significa isto? Fala! Como é que tudo acabou assim?” A toda essa torrente de palavras não obteve resposta alguma de Jesus. Foi-me explicado agora e, já há mais tempo, que Jesus não lhe respondeu, porque Herodes foi excomungado, tanto pelas

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relações adúlteras com Herodíades, como também pelo assassínio de João Batista. Anás e Caifás aproveitaram a indignação que lhe causou o silêncio de Jesus, para de novo proferir as acusações. Entre outras coisas afirmaram que Jesus tinha chamado Herodes de raposa e que, já desde muito tempo, tinha trabalhado para a queda de toda a família de Herodes; que queria fundar uma nova religião e comera o cordeiro pascal no dia anterior. Essa acusação já a tinham produzido perante Caifás, por traição de Judas, mas fora refutado por alguns amigos de Jesus, os quais para esse fim leram alguns trechos de rolos da Escritura. Herodes, ainda que irritado pelo silêncio de Jesus, não se esqueceu dos seus interesses políticos. Não quis condenar Jesus; pois Este lhe inspirava um terror secreto e já era torturado de remorsos, por causa da morte de João Batista; também odiava os sumos sacerdotes, porque não tinham querido desculpar-lhe o adultério e o haviam excluído dos sacrifícios pelo mesmo motivo. Mas o motivo principal era que não queria condenar aquele a quem Pilatos declarara inocente; convinha-lhe aos interesses políticos aplaudir a opinião de Pilatos, diante dos príncipes dos sacerdotes. A Jesus, porém, cobriu de desprezo e insultos; disse aos criados e guardas, dos quais contava uns duzentos no palácio. "Levai para fora este tolo e prestai a este rei ridículo as honras que se Lhe devem; pois é mais um doido do que um criminoso.” Conduziram então o Salvador a um vasto pátio, onde o cobriram de escárnio e indizíveis crueldades. Esse pátio estendia-se por entre as alas do palácio e Herodes, de pé num terraço, assistiu por algum tempo a esse espetáculo cruel. Anás e Caifás, porém, andavam sempre atrás dele e procuravam por todos os meios movê-Io a condenar Jesus; mas Herodes disse-Ihes, de modo que os romanos da escolta o ouvissem: "Seria um crime de minha parte, se O condenasse." Queria certamente dizer: "Seria um crime contra a sentença de Pilatos, que teve a gentileza de mandá-Lo a mim.” Vendo que não conseguiam nada de Herodes, os sumos sacerdotes e os inimigos de Jesus enviaram alguns dos seus, com dinheiro, a Acra, bairro da cidade onde se achavam nessa ocasião muitos fariseus, aos quais mandaram dizer que fossem, com os respectivos partidários, às vizinhanças do palácio de Pilatos; fizeram também distribuir entre o povo muito dinheiro, para levá-Ia a pedir tumultuosamente a morte de Jesus. Outros emissários deviam ameaçar o povo com castigos de Deus, se não conseguisse a morte desse blasfemador sacrílego; também mandaram espalhar entre o povo que se Jesus não morresse, se ligaria aos romanos e seria esse o reino de que sempre falara; e então seriam aniquilados os judeus. Em outra parte espalharam o boato de que Herodes condenara Jesus, mas esperava que o povo manifestasse sua vontade; receava-se a resistência dos adeptos do Nazareno e se esse fosse

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solto, seria perturbada toda a festa; pois então Ele, com seus partidários e os romanos, tirariam vingança. Desse modo fizeram espalhar os boatos mais contraditórios e assustadores, para irritar e sublevar o povo, enquanto outros emissários deram dinheiro aos soldados de Herodes, afim de que maltratassem gravemente a Jesus, mesmo até O fazer morrer, pois antes desejavam que morresse do que Pilatos O soltasse. Enquanto os fariseus estavam ocupados nesses negócios e intrigas, sofreu Nosso Senhor o escárnio e a brutalidade mais ignominiosa da soldadesca ímpia e grosseira, à qual Herodes O tinha entregue, para ser maltratado, como tolo que não lhe quisera responder. Empurraram-nO para o pátio e um deles trouxe um comprido saco branco, que achara no quarto do porteiro e em que, havia tempos, viera uma remessa de algodão. Cortaram com as espadas um buraco no fundo do saco e meteramnO por entre grandes gargalhadas, sobre a cabeça de Jesus; outro trouxe um farrapo vermelho e pôs-Lhe em redor do pescoço, como um colar; o saco caia-Lhe sobre os pés. Então se inclinavam diante d’Ele, empurravam-nO e entre ditos insultantes, cuspiam e batiam-Lhe no rosto, porque não tinha res-pondido ao rei e prestavam-Lhe outras mil homenagens escarnecedoras; atiravam-Lhe lama, davam-Lhe arrancos, como para fazê-Lo dançar; depois o fizeram cair com o longo manto derrisório e arrastaram-nO por um esgoto que passava no pátio, ao longo dos edifícios, de modo que a cabeça sagrada do Salvador batia de encontro às colunas e pedras angulares; depois O levaram e começaram as crueldades de novo. - Havia lá cerca de duzentos soldados e servidores do palácio de Herodes, gente de todas as regiões e cada um dos mais perversos queria fazer honra a seu país e distinguir-se diante de Herodes, inventando um novo ultraje para Jesus. Faziam tudo precipitadamente, empurrando-se uns aos outros, entre escárnios; os inimigos de Jesus tinham pago dinheiro a alguns deles, que no tumulto Lhe deram diversas pauladas na santa cabeça. Jesus fitavaos com os olhos suplicantes, suspirando e gemendo de dor; mas zombavam dele, imitando-Lhe os gemidos; a cada nova brutalidade rompiam em gargalhadas e insultos, não havia nenhum que Lhe mostrasse piedade. Tinha a cabeça toda banhada em sangue e vi-O cair três vezes, sob as pauladas, mas vi também uma aparição como de Anjos, que, chorando, desceram sobre Ele e lhe ungiram a cabeça. Foi-me revelado que sem esse auxílio de Deus, as pauladas teriam sido mortais. Os filisteus, que fizeram o cego Sansão correr na Pista de Gaza, até cair morto de cansaço, não foram tão violentos e cruéis como esses perversos. Urgia o tempo para os Sumos Sacerdotes, porque em pouco deviam ir ao Templo e quando receberam aviso de que todas as suas ordens tinham sido cumpridas, insistiram mais uma vez com Hero des, pedindo-lhe que condenasse Jesus. Mas o tetrarca tinha em vista

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apenas suas relações com Pilatos e mandou reconduzir-Ihe Jesus, vestido do manto derrisório. 6 Jesus é açoitado, coroado de espinhos e condenado à morte 1. Jesus reconduzido a Pilatos 2. Jesus é posposto a Barrabás 3. A flagelação de Jesus 4. Maria Santíssima durante a flagelação 5. Jesus é coroado de espinhos e escarnecido pelos soldados 6. Ecce Homo 7. Reflexão sobre estas visões 8. Jesus condenado à morte na Cruz Jesus é açoitado, coroado de espinhos e condenado à morte 1. Jesus reconduzido a Pilatos Cada vez mais enfurecidos, tornaram os príncipes dos sacerdotes e os inimigos de Jesus a trazê-Lo de novo de Herodes a Pilatos. Estavam envergonhados de não lhe ter conseguido a condenação e ter de voltar novamente para aquele que já O tinha declarado inocente. Por isso tomaram na volta outro caminho, cerca de duas vezes mais longo, para mostrá-Lo naquela humilhação em outra parte da cidade, para poder maltratá-Lo tanto mais pelo caminho e dar tempo aos agentes de concitarem o povo. a agir conforme as maquinações tramadas. O caminho pelo qual conduziram Jesus, era mais áspero e desigual; acompanharam-nO, estimulando os soldados sem cessar a maltratá-Lo. A veste derrisória, o longo saco, impedia o Senhor de andar; arrastavase na lama, várias vezes caiu, embaraçando-se nele e era levantado cada vez com arrancos nas cordas, pauladas na cabeça e pontapés. Sofreu nesse caminho indizíveis insultos e crueldades, tanto daqueles que o conduziam, como também do povo; mas Ele rezava, pedindo a Deus que não O deixasse morrer, para poder terminar a sua Paixão e nossa Redenção. Eram oito horas e um quarto da manhã, quando o sinistro cortejo chegou, vindo do outro lado, (provavelmente de leste) ao palácio de Pilatos, atravessando o fórum. A multidão do povo era enorme; estavam reunidos em grupos, conforme as regiões e cidades de procedência e os fariseus corriam entre o povo, excitando-o.

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Pilatos, lembrando-se ainda da revolta dos galileus descontentes, na Páscoa do ano anterior, tinha concentrado cerca de mil homens, que ocuparam o pretório ou posto de guarda, as entradas do fórum e do palácio. A SS. Virgem, sua irmã mais velha, Maria Helí, a filha desta, Maria Cleofé, Madalena e algumas outras mulheres piedosas (9), cerca de vinte, assistiram aos acontecimentos que se seguiram; ficaram sob as arcadas, de onde podiam ouvir tudo e aproximavam-se furtivamente de vez em quando. João estava a princípio também presente. (9) A vidente esqueceu de mencionar onde todas essas mulheres se tinham reunido e se Maria, voltando do monte das Oliveiras a Jerusalém, pela porta das Ovelhas, se encontrou com o cortejo de Jesus. Mas o "Peregrino" lembra-se de narrativas anteriores, de que Marta, indo ao palácio de Herodes, se encontrou com Jesus e seguiu-O até o tribunal de Pilatos. Jesus, coberto com a veste derrisória, foi conduzido através da multidão, entre os escárnios do populacho; pois a escória e os mais perversos de entre o povo foram colocados na frente pelos fariseus, que Ihes davam o exemplo, ultrajando Jesus. Um palaciano de Herodes já tinha chegado antes, com a mensagem para Pilatos, de que Herodes lhe ficava muito grato pela atenção, que, porém, no afamado sábio galileu encontrara apenas um bobo mudo; que O tinha tratado como tal e mandara reconduzí-Lo novamente a Pilatos. Este ficou satisfeito de saber que Herodes estava de acordo e não condenara Jesus; mandou levar-lhe de novo cumprimentos e assim se tornaram amigos, de inimigos que eram, desde o desabamento do aqueduto. (Vide: Apêndice no. 3). Jesus foi novamente conduzido pela rua ao palácio de Pilatos; empurraram-nO, para subir a escada que conduzia ao terraço; mas pelos brutais arrancos dos soldados, pisou na longa veste e caiu com tal violência sobre os degraus de mármore, que os salpicou de sangue sagrado. Os inimigos do Mestre, que tinham de novo ocupado os assentos, ao lado do fórum e o populacho romperam na gargalhada por essa queda de Jesus e os soldados empurraram-nO a pontapés pelos últimos degraus. Pilatos estava recostado no seu assento, que se parecia com um pequeno leito .de repouso; a pequena mesa estava ao lado; como dantes, estavam também agora com ele alguns oficiais e outros homens, com rolos de pergaminho. Ele se dirigiu ao terraço, do qual falava ao povo e disse aos acusadores de Jesus: "Vós me entregastes este homem cOmo agitador do povo à revolta; interroguei-O diante de vós e não O achei réu do crime de que O acusais. Também Herodes não lhe achou crime algum; pois vos mandei a Herodes e vejo que não foi condenado à morte. Portanto

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mandá-Lo-ei açoitar e depois soltar." Levantou-se, porém, entre os fariseus violenta murmuração e clamor e a agitação e distribuição de dinheiro entre o povo tomou mais intensidade. Pilatos tratou-os com muito desprezo e expressões satíricas; entre outras, disse essa: "Não vereis por acaso correr bastante sangue inocente ainda hoje, na hora dos sacrifícios?” 2. Jesus é posposto a Barrabás Ora, era nesse tempo que o povo vinha, antes da festa da Páscoa, pedir, segundo um antigo costume, a liber,dade de um preso. Os fariseus tinham enviado, justamente por isso, alguns agentes ao bairro de Acra, a oeste do Templo, para dar dinheiro ao povo, instigando-o a que não pedisse a libertação, mas a crucificação de Jesus. Pilatos, porém, esperava que o povo pedisse a liberdade de Jesus e resolveu dar-Ihes a escolher entre Jesus e um terrível facínora, que já fora condenado à morte, para que quase não tivessem que escolher. Esse celerado chamava-se Barrabás e era amaldiçoado por todo o povo; tinha cometido assassinatos durante uma agitação; vi que também tinha feito muitos outros crimes. Houve um movimento entre o povo no fórum; um grupo avançou, com os oradores à frente; esses levantaram a voz e bradaram a Pilatos, que estava no terraço: "Pilatos, fazei-nos o que sempre fizestes, por ocasião da festa! "Pilatos, que só estava esperando por isso, respondeu-lhes: "Tendes o costume de receber de festas a liberdade de um preso. A quem quereis que solte, Barrabás ou Jesus, o rei dos judeus, que dizem ser o Ungido do Senhor?” Pilatos, todo indeciso, chamava-O "rei dos judeus", já como romano orgulhoso, que os desprezava, por terem um rei tão miserável, que tivessem de escolher entre Ele e um assassino; já com uma certa convicção de que Jesus pudesse ser de fato esse rei maravilhoso dos judeus, o Messias prometido; mas também esse pressentimento da verdade era em parte fingimento e mencionou esse título do Senhor porque bem sentia que a inveja era o motivo principal do ódio dos príncipes dos sacerdotes contra Jesus, a quem considerava inocente. Após a pergunta de Pilatos, houve uma curta hesitação e delibera-ção entre o povo e só poucas vozes gritaram precipitadamente: "Barrabás!" Pilatos, porém, foi chamado por um criado da mulher; retirou-se um instante do terraço e o criado mostrou-lhe o penhor que ele dera de manhã à esposa e disse-lhe: "Cláudia Prócula manda lembrarvos vossa promessa." Os fariseus, no entanto, e os príncipes dos sacerdotes estavam em grande agitação; aproximaram-se do povo, ameaçando e instigando-o; mas não precisavam de tanto esforço. Maria, Madalena, João e as outras piedosas mulheres estavam no canto de uma arcada, tremendo e chorando. Embora a Virgem

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Santíssima soubesse que não havia salvação para os homens senão pela morte de Jesus, entretanto, como Mãe, estava cheia de angústia e desejo de salvar a vida do Filho santíssimo; e assim como Jesus, embora escolhesse de livre vontade tornar-se homem e morrer na cruz, todavia sofria, como qualquer homem, todas as dores e os martírios de um inocente horrivelmente maltratado e conduzido à morte, assim também Maria padecia todos os tormentos e angústias de uma mãe vendo o filho maltratado por um povo ingrato. Ela e as companheiras tremiam, entregues, ora à angústia, ora à esperança. João afastava-se de vez em quando, a pouca distância, para ver se podia colher uma boa notícia. Maria implorava a Deus para que não se cometesse esse imenso crime; rezava como Jesus no monte das Oliveiras: "Se é possível, afaste este cálice." Assim esperava ainda a mãe no seu amor; pois enquanto as instigações e ameaças dos fariseus ao povo passavam de boca em boca, chegara também a ela o boato de que Pilatos queria soltar Jesus. Viam-se, não longe, grupos de gente de Cafarnaum, entre os quais muitos que Jesus curara e ensinara; fizeram como se não O conhecessem e olhavam furtivamente para João e as infelizes mulheres, envoltas nos véus; mas Maria pensava, como todos, que esses, pelo menos, rejeitariam Barrabás, para salvar o Benfeitor e Salvador. Mas tal não se deu. Pilatos, lembrando-se, à vista do penhor, da súplica da esposa, devolveu-lho, como sinal de que cumpria a promessa. Voltou ao terraço e sentou-se ao lado da mezinha; os sumos sacerdotes também tornaram a ocupar os respectivos assentos e Pilatos exclamou de novo: "Qual dos dois quereis que eu solte?" - Então se levantou um grito geral por todo o fórum e de todos os lados: "Não queremos Este; entregai-nos Barrabás!" Pilatos gritou mais uma vez: "Que farei então de Jesus, que é chamado o Cristo, o rei dos judeus?" - "Crucificai-O, Crucificai-O!" Pilatos perguntou então pela terceira vez: "Mas que mal tem feito? Eu pelo menos não Lhe acho crime de morte. Mas vou mandá-Lo açoitar e depois soltar." Mas o grito "Crucificai-O! Crucificai-O!" rugia pelo fórum, como uma tempestade infernal e os sumos sacerdotes e fariseus agitavam-see gritavam como loucos de raiva. Então Pilatos lhes entregou Barrabás, o malfeitor e condenou Jesus à flagelação. 3. A flagelação de Jesus Pilatos, juiz covarde e indeciso, pronunciara várias vezes a palavra: "Não lhe acho crime algum; por isso vou mandá-Lo açoitar e depois soltar." A gritaria dos judeus, porém, continuava; "Crucificai-O! Crucificai-O!" Contudo queria Pilatos tentar ainda fazer sua vontade e deu ordem de açoitar Jesus à maneira dos romanos. Então entraram os soldados e, batendo e empurrando a Jesus brutalmente, com os curtos bastões, conduziram nosso

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pobre Salvador, já tão maltratado e ultrajado, através da multidão tumultuosa e furiosa, para o fórum, até a coluna de flagelação, que ficava em frente de uma das arcadas do mercado, ao norte do palácio de Pilatos e não longe do posto da guarda. Os carrascos, jogando os açoites, varas e cordas no chão, ao pé da coluna, vieram ao encontro de Jesus. Eram seis homens de cor parda, mais baixos do que Jesus, de cabelo crespo e eriçado, barba muito rala e curta; vestiam apenas um pano ao redor da cintura, sandálias rotas e uma peça de couro ou outra fazenda ordinária, que lhes cobria peito e costas como um escapulário, aberto dos lados; tinham os braços nus. Eram criminosos comuns, das regiões do Egito, que trabalhavam como escravos ou degredados na construção de canais e edifícios públicos; escolhiam-se os mais ignóbeis e perversos, para tais serviços de carrascos no pretório. Amarrados à mesma coluna, alguns pobres condenados tinham sido açoitados até à morte, por esses homens horríveis, cujo aspecto tinha algo de bruto e diabólico e pareciam meio embriagados. Bateram em Nosso Senhor com os punhos e com cordas, apesar de não lhes opor resistência alguma, arrastaram-nO com brutalidade furiosa, até à coluna da flagelação. É uma coluna isolada, que não serve para sustentar o edifício. É de tamanho tal, que um homem alto, com o braço estendido, lhe pode tocar a extremidade superior, arredondada e munida de uma argola de ferro; na parte de traz, no meio da altura, há também argolas ou ganchos. É impossível descrever a brutalidade bárbara com que esses cães danados maltrataram a Jesus, nesse curto caminho; tiraram-Lhe o manto derrisório de Herodes e quase jogaram nosso Salvador por terra. Jesus trepidava e tremia diante da coluna. Ele mesmo se apressou a despir a roupa, com as mãos inchadas e ensangüentadas pelas cordas, enquanto os carrascos O empurravam e puxavam. Orava de um modo comovente e volveu a cabeça por um momento para a Mãe SS. que, dilacerada de dor, estava com as mulheres piedosas num canto das arcadas do mercado, não longe do lugar de flagelação e disse, voltandose para a coluna, porque O obrigaram a despir-se também do pano que lhe cingia os rins: "Desvia os teus olhos de mim." Não sei se pronunciou essas palavras ou as disse só interiormente, mas percebi que Maria as entendeu; pois a vi nesse momento desviar o rosto e cair sem sentidos nos braços das santas mulheres veladas, que a rodeavam. Então abraçou Jesus a coluna e os algozes ataram-Lhe as mãos levantadas à argola de cima, dando-Lhe arrancos brutais e praguejando horrivelmente todo o tempo; puxaram-Lhe assim todo o corpo para cima, de modo que os pés, amarrados em baixo à coluna, quase não tocavam no chão. O Santo dos Santos estava cruelmente estendido sobre a coluna dos malfeitores, em ignominiosa nudez

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e indizível angústia e dois dos homens furiosos começaram, com crueldade sanguinária, a flagelar-Lhe todo o santo corpo, da cabeça aos pés. Os primeiros açoites ou varas que usaram, pareciam ser de madeira branca e dura; talvez fossem também feixes de tendões secos de boi ou tiras duras de couro branco. Nosso Senhor e Salvador, o Filho de Deus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, contraia-se e torcia-se, como um verme, sob os açoites dos criminosos; ouviam-se-Lhe os gemidos e lamentos, do-ces e claros, como uma prece afetuosa no meio de dores dilacerantes, entre o sibilar e estalar dos açoites dos carrascos. De vez em quando ressoava a gritaria do povo e dos fariseus, como uma nuvem escura de tempestade, abafando essas queixas dolorosas e santas, cheias de bênçãos. As turbas gritavam: "Deve morrer! Crucificai-O!", pois Pilatos estava ainda a discutir com o povo. Quando queria fazer-se ouvir, no meio do tumulto da multidão, fazia soar primeiro um toque de trombeta, para impor silêncio. Nesses momentos se ouviam novamente os açoites, os gemidos de Jesus, o praguejar dos carrascos e os balidos dos cordeiros pascais, que eram lavados na piscina das Ovelhas, ao lado da porta das Ovelhas, a leste do fórum. Depois de lavados, eram levados, com a boca amarrada, até o caminho do Templo, para não se sujarem mais, depois eram conduzidos para o lado de fora, a oeste, onde ainda eram submetidos a uma ablução cerimonial. Esses balidos desamparados dos cordeiros tinham algo de indescritivelmente comovente; eram as únicas vozes que se uniam aos gemidos do Salvador. A multidão dos judeus mantinha-se afastada do lugar da flagelação, numa distância, talvez, da largura de uma rua. Soldados romanos estavam pdstos em diferentes lugares, especialmente pelo lado do posto de guarda; perto da coluna de flagelação havia grupos de populacho, que iam e vinham silenciosos ou zombando; vi alguns que se sentiram comovidos; era como se os tocasse um raio de luz saindo de Jesus. Vi também meninos indignos que, ao lado do pretório, preparavam novas varas e outros que iam buscar ramos de espinheiro. Alguns soldados dos Príncipes dos sacerdotes tinham travado relações com os carrascos e deram-lhes dinheiro; trouxeram-Ihes também um grande cântaro, cheio de uma bebida vermelha, grossa, da qual beberam até ficar embriagados e enraivecidos. Ao cabo de um quarto de hora deixaram os dois carrascos de açoitar Jesus; foram juntar-se a dois outros e beberam com eles. O corpo de Jesus estava todo coberto de contusões vermelhas, pardas e roxas e o sangue sagrado corria-Lhe por terra; agitava-se em movimentos convulsivos. De todos os lados se ouviam insultos e motejos. Durante a noite tinha feito muito frio. Desde a madrugada até essa hora, não clareara o céu e, com grande espanto do povo, caíram algumas curtas chuvas de pedra. Pelo meio dia clareou e

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apareceu o sol. O segundo par de carrascos caiu então com novo furor sobre Jesus; tinham outra espécie de açoites; eram como varas de espinheiro, com nós e esporões. Os violentos golpes rasgaram todas as pisaduras do santo corpo de Jesus; o sangue regou o chão, em redor da coluna e salpicou os braços dos carrascos. Jesus gemia, rezava, torcia-se de dor. Passaram então pelo fórum muitos estrangeiros, montados em camelos; olharam assustados e entristecidos, quando o povo lhes disse o que se estava passando. Eram viajantes, dos quais uns tinham recebido o batismo e outros ouviram o sermão da montanha. O tumulto e os gritos continuavam no entanto, diante da casa de Pilatos. Os dois seguintes carrascos bateram em Jesus com flagelos: eram curtas correntes ou correias, fixas num cabo, cujas extremidades estavam munidas de ganchos de ferro, que arrancavam, a cada golpe, pedaços de pele e carne das costas. Oh! Quem pode descrever o aspecto horrível e doloroso deste suplício? Mas a crueldade dos carrascos ainda não estava satisfeita; desligaram Jesus e amarraram-nO de novo, mas com as costas viradas para a coluna. Como, porém, estivesse tão enfraquecido, que não podia manter-se em pé, passaram-Lhe cordas finas sobre o peito e sob os braços e debaixo dos joelhos, amarrando-O assim todo à coluna; também Lhe ataram as mãos atrás da coluna, a meia altura. Todo o corpo sagrado contraia-se-Lhe dolorosamente, as chagas e o sangue cobriam-Lhe a nudez. Como cães raivosos, caíram-Lhe os carrascos em cima, com os açoites; um tinha uma vara mais delgada na mão esquerda, com que Lhe batia no rosto. O corpo de Nosso Senhor formava uma só chaga, não havia mais lugar são. Ele olhava para os carrascos, com os olhos cheios de sangue, que suplicavam misericórdia, mas redobravam os golpes furiosos e Jesus gemia, cada vez mais fracamente: "Ai!” A horrível flagelação durara cerca de três quartos de hora, quando um estrangeiro, homem do povo, parente do cego Ctesifon, curado por Jesus, se aproximou precipitadamente da coluna, pelo lado de traz e, com uma faca em forma de foice na mão, gritou indignado: "Parai! Não flageleis este homem inocente até morrer!" Os carrascos, meio embria gados, pararam espantados e o homem cortou rapidamente, como de um único golpe, as cordas de Jesus, que todas estavam seguras num prego de ferro, atrás da coluna; depois o estrangeiro fugiu e perdeu-se na multidão. Jesus, porém, caiu desfalecido, ao pé da coluna, sobre a terra empapada de sangue. Os carrascos deixaram-nO lá e foram beber, depois de chamar os auxiliares do carrasco, que estavam no posto de guarda, ocupados em trançar a coroa de espinhos. Jesus torcia-se ainda de dor, ao pé da coluna, as chagas a sangrar; nesse momento vi passar perto algumas raparigas libertinas, com

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as vestes imprudentemente arregaçadas; estavam de mãos dadas e pararam diante de Jesus, olhando-O com repugnância melindrosa; com isso sentiu Jesus ainda mais as feridas e levantou para elas o rosto ensangüentado, com um olhar suplicante; então se afastaram, continuando o caminho e os carrascos e soldados dirigiram-Ihes, entre gargalhadas, palavras indecentes. Vi várias vezes, durante a fIagelação, aparecerem Anjos tristes em redor de Jesus; ouvi a oração que o Senhor dirigia ao Pai eterno, no meio dos tormentos e insultos, oferecendo-se para expiação dos pecados dos homens. Mas nesse momento, quando jazia, banhado em sangue, ao pé da coluna, vi um anjo, que lhe restituía as forças; parecia dar-Lhe um alimento luminoso. Então se aproximaram novamente os carrascos e dando-Lhe pontapés, mandaram-nO levantar-se, dizendo que ainda não tinham acabado com o rei; querendo ainda bater-Lhe, arrastou-se Jesus pelo chão, para alcançar a faixa de pano e cobrir a nudez; mas os perversos celerados empurravam-na com os pés para lá e para cá, rindo-se de ver Jesus em sangrenta nudez arrastar-se penosamente, como um verme esmagado, para alcançar o pano e cobrir o corpo dilacerado. Depois O impeliram, a pontapés e pauladas, a levantar-se sobre as pernas vacilantes; não Lhe deram tempo de vestir a túnica, mas lançaram-lha sobre os ombros e Jesus enxugou nela o sangue do rosto, enquanto O conduziram apressadamente ao corpo da guarda, dando uma volta. Podiam tê-Lo levado por um caminho mais curto, porque as arcadas e edifícios em redor do fórum eram abertos, de modo que se podia enxergar o corredor sob o qual jaziam presos os dois ladrões e Barrabás; mas passaram com Jesus diante dos sumos sacerdotes, que gritaram: "Levai-O à morte! Levai-O à morte!" e viraram a cabeça com nojo. Conduziram-nO para o pátio interior do corpo da guarda. Quando Jesus entrou, não havia lá soldados, mas escravos, soldados e marotos, a escória do povo. Vendo que o povo estava tão agitado, Pilatos mandara vir reforço da cidadela Antônia. Essas forças cercavam em boa ordem o corpo da guarda; podiam falar, rir e insultar a Jesus, mas não sair das fileiras. Pilatos queria com eles manter o povo em respeito. Podia bem haver lá mil homens. 4. Maria Santíssima durante a flagelação Vi a SS. Virgem, durante a fIagelação do Redentor, em contínuo êxtase; via e sofria na alma e com indizível amor e tormento, tudo quanto sofria o Divino Filho. Muitas vezes lhe saíram fracos gemidos da boca; os olhos estavam inflamados de tanto chorar. Jazia velada nos braços da irmã mais velha, Maria Helí, que já era muito idosa e se parecia muito com a mãe, Sant' Ana. Maria, filha de Cleofas e de Maria Helí, estava também presente e segurava sempre o braço de sua mãe. As santas amigas de Maria e

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Jesus, todas veladas e envolvidas em mantos, rode avam a SS. Virgem, tremendo de medo e dor, como se esperassem sua própria sentença de morte. Maria vestia uma longa veste azul e sobre essa, um comprido manto branco de lã e um véu branco-amarelo. Mada lena estava desnorteada e desolada de dor e lamentação; tinha o cabelo em desalinho, sob o véu. Quando Jesus, depois da fIagelação, caíra ao pé da coluna, mandara Cláudia Pr6cula, a mulher de Pilatos, um fardo de grandes panos à Mãe de Deus. Não sei mais se julgava que Jesus ficaria livre e a Mãe do Senhor lhe devia tratar as feridas com esses panos ou se a pagã compadecida mandou os panos para o fim para o qual a SS. Virgem os empregou. Maria, voltando a si, viu passar o Divino Filho dilacerado, conduzi do pelos soldados; Ele enxugou o sangue dos olhos com a túnica, para fitar a SS. Virgem, que Lhe estendeu as mãos, num transporte de dor e Lhe seguiu com a vista as pegadas sangrentas. Logo depois vi a SS. Virgem e Madalena, quando o povo se dirigia mais para o outro lado, aproximarem-se do lugar da fIagelação. Cercadas e ocultas pelas outras santas mulheres e outra gente boa, que se aproximara, prostraram-se por terra, ao pé da coluna da fIagelação e apanharam com os panos todo o sangue de Jesus, por toda a parte onde encontraram algum vestígio. Não vi nessa hora João, junto das santas mulheres, que eram cerca de vinte. O filho de Simeão, o de Obed e o de Verônica, como também Aram e Temeni, os sobrinhos de José de Arimatéia, estavam todos ocupados no Templo, cheios de tristeza e angústia. Foi pelas nove horas da manhã que acabou a fIagelação. Vi hoje as faces da SS. Virgem(lO) pálidas e mortiças, o nariz delgado e comprido, os olhos quase cor de sangue, de tantas lágrimas que derramou; não é possível descrever a impressão que faz a figura de Maria, na sua simplicidade e graça natural. Já desde ontem e durante toda a noite, tem ela vagueado, cheia de angústia e amor, pelo vale de Josafá e pelas ruas de Jerusalém e através do povo e contudo não se lhe vê nenhuma desordem nas vestes; cada prega do vestido da SS. Virgem respira santidade; tudo nela é simples e digno, puro e inocente. Os movimentos, ao olhar em redor de si, são nobres e as pregas do véu, quando vira um pouco a cabeça, são de uma singular beleza e simplicidade. Nos movimentos não se lhe nota agitação e mesmo na mais dilacerante dor, todo o porte se lhe conserva simples e calmo. Tem o manto umedecido pelo orvalho da noite e por inúmeras lágrimas, mas em tudo mais está limpo e bem arrumado. É inefavelmente bela e de uma beleza toda sobrenatural; pois toda sua beleza étambém pureza, simplicidade, dignidade e santidade. Madalena, porém, tem um aspecto inteiramente diferente. É mais alta e mais gorda e chama mais a atenção pelas formas e os movimentos; mas toda a beleza lhe foi devastada pelas paixões,

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pelo arrependimento e excessiva dor; quase causa horror vê-Ia, tanto se tornou desfigurada, pela veemência sem limite de sua dor. Tem as vestes molhadas e sujas de lama, em desarranjo e rasgadas; o longo cabelo cai-lhe solto e em desalinho, sob o véu molhado e amarrotado. Está toda desfigurada e agitada; não pensa senão em sua dor, e parece quase uma alienada. Há muita gente aqui de Magdala e arredores, que a viu dantes, na vida tão suntuosa e depois tão pecaminosa e em seguida tanto tempo retirada do mundo e agora a apontam com o dedo e a insultam, ao ver-lhe a estranha figura; há também gente baixa de Magdala que, ao passar por ela, lhe atira lama, mas Madalena não o nota, tão absorta está na sua dor. * Anna Catharina descreve uma vez Maria Santíssima do modo seguinte: "Madalena é mais alta e mais bonita do que as outras mulheres. Dina, a samaritana, é também bonita, mas muito mais ativa e ágil do que Madalena; é muito viva, amável e serviçal por toda a pane, como uma criada ligeira, prudente e carinhosa e também muito humilde. A Santíssima Virgem, porém, excede todas as outras em maravilhosa beleza. Posto que no porte tenha igual em beleza, e seja superada pela figura de Madalena, com suas maneiras estranhas, entretanto, Maria sempre se distingue entre as outras, pela indescritível modéstia, singeleza, simplicidade, mansidão, dignidade e calma; é tão pura e tão simples, que se tem a impressão de ver nela a imagem de Deus no homem. Não há caráter que se lhe pareça, senão o de seu Filho. O rosto da santfssima virgem, porém, excede em indizível encanto o de todas as mulheres que a acompanham e das que jamais tenho visto. Impressiona pelo pone digno e grave e contudo parece uma criança inocente e singela. É muito séria, silenciosa, muitas vezes triste, mas nunca se mostra desordenada na dor; apenas as lágrimas lhe correm brandamente pelo rosto calmo." Em outra ocasião Anna Catharina diz: "Maria era imensamente simples. Jesus não a distinguia diante dos outros homens, senão tratando-a sempre com muita dignidade. Ela também não procurava contato com os homens, com exceção de doentes e ignorantes e apresentava-se sempre muito humilde, recolhida, muito calma e simples. Todos, até os inimigos de Jesus, a estima vam e contudo ela não procurava ninguém, permanecia silenciosa e sozinha. 5. Jesus é coroado de espinhos e escarnecido pelos soldados Durante a flagelação falou Pilatos ainda várias vezes ao povo, que uma vez até gritou: "Ele deve morrer, ainda que todos nós tam-bém pereçamos." Quando Jesus foi conduzido ao corpo da guarda, para ser coroado de espinhos, ainda gritaram: "Morra! Morra!" pois chegavam cada vez novas turbas de judeus, que pelos

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emissários dos sumos sacerdotes eram incitados a gritar assim. Houve depois uma curta pausa. Pilatos deu ordens aos soldados. Os sumos sacerdotes e os conselheiros, que estavam sentados em bancos, de ambos os lados da rua, à sombra das árvores ou sob lonas estendidas, diante do terraço de Pilatos, mandarem os criados trazer alimentos e bebida. Vi também Pilatos de novo perturbado pela superstição; retirou-se sozinho, para oferecer incenso aos deuses e por certos sinais descobrir-Ihes a vontade. Vi que depois da fIagelação a SS. Virgem e as amigas, tendo enxugado o sangue de Jesus, se afastaram do fórum. Vi-as com os panos ensangüentados, numa pequena casa encostada a um muro; não era longe do fórum; não me lembro mais de quem era. Não me recordo de ter visto João durante a flagelação. Jesus foi coroado de espinhos e escarnecido no pátio interior do corpo da guarda, construído sobre os cárceres, ao lado do fórum. Esse pátio era cercado de colunas e todas as entradas tinham sido abertas. Havia ali cerca de cinqüenta miseráveis patifes, sequazes dos soldados, servos dos carcereiros, soldados e auxiliares dos carrascos, escravos e os criminosos que flagelaram Nosso Senhor; esses todos tomaram parte ativa nas crueldades praticadas em Jesus. No começo o povo tentou entrar, mas pouco depois cercaram mil soldados romanos o edifício. Permaneciam nas fileiras, mas com as zombarias e risos provocavam ainda o cruel exibicionismo dos carrascos para redobrarem as torturas de Jesus, animando-os com as risadas, como o aplauso anima os atores no palco. Rolaram para o meio do pátio o pedestal de uma velha coluna, no qual havia um buraco, que talvez tivesse servido para nele ajustar a coluna. Nesse pedestal colocaram um escabelo redondo e baixo, que por detrás tinha uma espécie de cabo, para o manejar; por maldade cobriram o escabelo de pedregulho agudo e cacos de louça. Arrancaram de novo toda a roupa do corpo ferido de Jesus e impuseram-Lhe um manto de soldado, curto, vermelho, velho e já roto, que nem lhe chegava até os joelhos. Pendiam dele ainda alguns restos de borlas amarelas; jazia num canto do quarto dos verdugos, que costumavam impô-lo aos que tinham açoitado, seja para enxugar-lhes o sangue, seja para escarnecê-los. Arrastaram a Jesus para a coluna e empurraram-na brutalmente, com o corpo despido e ferido, sobre o escabelo coberto de pedras e cacos. Depois Lhe puseram a coroa de espinhos na cabeça. Essa tinha dois palmos de altura, era muito espessa e trançada com arte; em cima tinha uma borda um pouco saliente. Puseram-Lha em redor da fronte, como uma ligadura e ataram-na atrás com muita força, de modo que formavam uma coroa ou um chapéu. Era artisticamente trançada de três varas de espinheiro, da grossura de um dedo, que tinham crescido alto, através dos espessos arbustos. Os espinhos, pela maior parte, foram propositalmente virados para dentro.

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Pertenciam a três diferentes espécies de espinheiros, que tinham alguma semelhança com a nossa cambroeira, o abrunheiro e espinheiro branco. Em cima tinham acrescentado uma borda, trançada de um espinheiro semelhante à nossa sarça silvestre e pela qual pegavam e puxavam brutalmente a coroa. Vi o lugar onde os meninos foram buscar esses espinhos. Puseram-Lhe também na mão um grosso caniço, com um tufo na ponta. Fizeram tudo isso com solenidade derrisória, como se O coroassem de fato rei. Tiravam-Lhe o caniço da mão e batiam com tanta força a coroa, que os olhos de Nosso Senhor se enchiam de sangue. Curvavam os joelhos diante dEle, mostravam-Lhe a língua, batiam e cuspiam-Lhe no rosto, gritando: "Salve, rei dos judeus!" Depois, entre gargalhadas, fizeram-na cair no chão, junto com o escabelo e tornaram a colocá-Lo sobre ele aos empurrões. Não posso relatar todas as torturas e ultrajes que os carrascos inventaram, para escarnecer o pobre Salvador. Ai! Jesus sofreu horrível sede; pois em conseqüência das feridas, causadas pela desumana flagelação, estava com febre e tremia; a pele e os músculos dos lados estavam dilacerados o deixavam entrever as costelas em vários lugares; a língua contraíra-se-Lhe espasmodicamente; somente o sangue sagrado que lhe corria da fronte, compadecia-se da boca ardente, que se abria ansiosa. Mas aqueles homens horríveis tomaram-Lhe a boca divina por alvo de nojentos escarros. Jesus foi assim maltratado por cerca de meia hora e a tropa, cujas fileiras cercavam o pretório, aplaudia com gritos e gargalhadas. 6. Ecce Homo Reconduziram então Jesus ao palácio de Pilatos, a coroa de espinhos sobre a cabeça, o caniço nas mãos amarradas, coberto do manto vermelho. Jesus estava desfigurado, pelo sangue que Lhe enchia os olhos e Lhe escorria na boca e sobre a barba. O corpo, coberto de pisaduras e feridas, parecia-se-Lhe com um pano ensopado de sangue. Andava curvado e cambaleando; o manto era tão curto, que Jesus precisava curvar-se, para cobrir a nudez, porque Lhe tinham arrancado toda a roupa, no ato da coroação de espinhos. Quando o pobre Jesus chegou ao primeiro degrau da escada, diante de Pilatos, até esse homem cruel estremeceu de horror e compaixão. Apoiou-se a um dos oficiais e como o povo e os sacerdotes ainda gritassem e insultassem, exclamou: "Se o demônio dos judeus é tão cruel, então não deve ser bom morar com ele no inferno." Quando Jesus foi puxado penosamente, escada acima e conduzido ao fundo, Pilatos saiu para a sacada; foi dado um toque de trombeta, para chamar a atenção do povo, a que Pilatos queria falar. Disse, pois, aos príncipes dos sacerdotes e a todos os presentes: "Escutai, vou mandá-Lo conduzir mais uma vez para diante de vós, para que

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conheçais que não Lhe achei culpa alguma.” Jesus foi então conduzido pelos soldados à sacada, ao lado de Pilatos, de modo que todo o povo reunido no fórum podia vê-Lo. Era um aspecto terrível, pungente, que primeiro causou no povo horror e penoso silêncio. O Filho de Deus ensangüentado dirigiu os olhos cheios de sangue, sob a coroa de espinhos, para o povo e Pilatos, que, ao lado, indicando-O com a mão, gritou aos judeus: "Eis aqui o Homem!” Enquanto Jesus, com o corpo dilacerado, coberto do manto verme-lho derrisório, abaixando a cabeça traspassada de espinhos e inundada de sangue, segurando nas mãos atadas o cetro de caniço, curvado para cobrir a nudez com as mãos, aniquilado pela dor e tristeza, mas ainda respirando infinito amor e mansidão, estava diante do palácio de Pilatos, como um espectro sangrento, exposto aos gritos furiosos dos sacerdotes e do povo, passaram pelo fórum grupos de forasteiros, homens e mulheres, com as vestes arregaçadas, em direção à piscina das Ovelhas, para ajudar a lavar os cordeiros da Páscoa, cujos balidos tristes se misturavam com os clamores sanguinários da multidão, como para dar testemunho em favor da Verdade, que se calava. Somente o verdadeiro cordeiro pascal de Deus, o revelado, mas não conhecido mistério desse santo dia, cumpriu a profecia e curvou-se em silêncio sobre o matadouro. Os sumos sacerdotes e os membros do tribunal ficaram cheios de raiva pelo aspecto de Jesus, espelho horrível de sua consciência e gritaram: "Morra! Crucificai-O!" Pilatos, porém, exclamou: "Ainda não vos basta? Ele foi tão maltratado, que não terá mais desejo de ser rei." Eles, porém, se tornaram ainda mais furiosos, gritando como dementes e todo o povo repetia: "Deve morrer. Crucificai-O!" Então mandou Pilatos dar outro toque de trombeta e disse: "Pois tomai-O e crucificai-O vós, porque não Lhe acho culpa." Responderam-lhe alguns dos príncipes dos sacerdotes: "Temos uma lei e segundo essa lei Ele deve morrer, porque declarou ser o Filho de Deus!" Pilatos replicou: "Pois se tendes tais leis, segundo as quais este homem deve morrer, eu não queria ser judeu.” Mas o dito dos judeus: "Ele se declarou Filho de Deus" inquietou Pilatos e suscitou-lhe de novo o pavor supersticioso; mandou, pois, conduzir Jesus a um lugar separado, onde Lhe perguntou: "Donde és?" Jesus, porém, não lhe respondeu. Disse-lhe então Pilatos: "Não me respondes? Por ventura não sabes que tenho o poder de crucificar-Te ou de soltar-Te?" E Jesus respondeu: "Não terias poder sobre mim, se não te fosse dado do Céu; por isso comete pecado mais grave aquele que me entregou em tuas mãos.” Cláudia Prócula, que estava muito angustiada pela hesitação do marido, mandou novamente um mensageiro a Pilatos mostrar-lhe o penhor e lembrar-lhe a promessa; ele, porém, lhe mandou uma resposta muito confusa e supersticiosa, da qual me lembro apenas que se referia aos deuses.

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Quando os príncipes dos sacerdotes e os fariseus tiveram conhecimento da intervenção da mulher de Pilatos em favor de Jesus, mandaram espalhar entre o povo: "Os partidários de Jesus subornaram a mulher de Pilatos; se Ele ficar livre, unir-se-á aos romanos e nós todos pereceremos.” Pilatos, na sua indecisão, estava como embriagado; a razão vacilavalhe de um lado para outro. Disse uma vez aos inimigos de Jesus que não Lhe achava culpa. Mas vendo que esses, com mais vigor ainda, exigiram a morte de Jesus e inquietado pelos seus próprios pensamentos confusos, como pelos sonhos da mulher e as palavras significativas de Jesus, queria ouvir mais uma resposta do Senhor, que o pudesse tirar dessa situação penosa. Voltou portanto à sala do tribunal, onde estava Jesus e ficou a sós com Ele. Com um olhar perscrutador e quase medroso, fitou o Salvador desfigurado e ensangüentado, para quem não se podia olhar sem horror e pensou consigo: "Será possível que seja um Deus?" e de repente se Lhe dirigiu com energia, conjurando-O a dizer-lhe se era um deus e não um homem, se era rei, até onde se Lhe estendia o reino, de que espécie era a sua divindade. Se lho dissesse, dar-Lhe-ia a liberdade. - O que Jesus respondeu, posso dizê-Ia só pelo sentido, não com as mesmas palavras. O Senhor falou-lhe com terrível severidade. Fez-lhe ver em que sentido era rei e qual o seu reino; mostrou-lhe o que era a verdade, pois disse-lhe a verdade. Nosso Senhor revelou-lhe, com toda a franqueza, os abomináveis crimes que Pilatos ocultava na consciência; predisse-lhe o futuro, a miséria no exílio, o fim horroroso e que Ele um dia viriajulgá-Io com toda a justiça. Pilatos, meio assustado, meio irritado pelas palavras de Jesus, saiu para a sacada e exclamou mais uma vez que queria soltar Jesus. Então gritaram: "Se o soltares, não és amigo de César; pois quem se declara rei, é inimigo de César." Outros gritaram que o acusariam perante o imperador por perturbar-Ihes a festa; que devia terminar a causa, porque eram obrigados, sob graves penas, a estar no Templo às dez horas. - O grito: "Morra! Crucificai-O!" levantou-se novamente de todos os lados; subiram até sobre os tetos planos das casas em redor do fórum e gritavam dali. Então viu Pilatos que contra essa fúria não conseguiria nada; os gritos e o tumulto tinham algo de terrível e toda a multidão diante do palácio estava em tal estado de agitação, que era para recear uma rebe lião. Pilatos mandou trazer água; o criado derramou-lhe água da bacia sobre as mãos, à vista de todo o povo e Pilatos gritou do pretório à multidão: "Sou inocente do sangue deste justo; vós tendes que responder pela sua morte." Então se levantou um grito horrível, unânime, do povo reunido, no meio do qual havia gente de todos os lugares da' Palestina: "Que o seu sangue caia sobre nós e nossos, filhos!”

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7. Reflexão sobre estas visões Todas as vezes que, nas meditações da dolorosa Paixão de Jesus Cristo, ouço esse grito espantoso dos judeus: "Que o seu sangue caia sobre nós e nossos filhos", o efeito dessa solene maldição me é revelado e tornado sensível, em quadros maravilhosos e terríveis. Vejo acima do povo, que grita, um céu escuro, coberto de nuvens cor de sangue, das quais saem flagelos e espadas de fogo. Vejo como se os raios dessa maldição atravessassem todos até os ossos e neles também os filhos. Vejo o povo como envolvido em trevas e o grito sair-Ihes das bocas como um fogo tenebroso e maligno, unir-se por cima das cabeças e cair de novo sobre eles, entrando mais profundo em alguns, pairando sobre outros. Esses últimos eram aqueles que depois da morte de Jesus se converteram. O número destes não era, porém, pequeno; pois vejo Jesus e Maria, durante todos esses terríveis sofrimentos rezarem sempre pela salvação dos carrascos e todos esses horríveis tormentos não Ihes causaram nenhum ressentimento. Durante toda a Paixão, no meio das mais cruéis torturas dos insultos mais insolentes e ignominiosos, no meio da fúria sanguinária dos inimigos e dos servos destes, à vista da ingratidão e do abandono de muitos fiéis, que Lhe causaram o mais amargo sofrimento físico e moral, vejo Jesus sempre rezando, amando os inimigos, orando pela sua conversão, até o último suspiro; mas vejo que por essa paciência e esse amor ainda mais se inflama a fúria e raiva dos cruéis inimigos; enfurecem-se porque toda a sua brutalidade e crueldade não conseguem arrancar-Lhe da boca uma palavra de protesto ou de queixa, que possa desculpar-Ihes a maldade. Hoje, que na festa da Páscoa matam o cordeiro pascal, não sabem que matam o Cordeiro de Deus. Quando, durante tais visões, dirijo os meus pensamentos para o coração do povo e dos juízes e para as santas almas de Jesus e Maria, tudo que neles se passa me é mostrado em figuras, que as pessoas naquele tempo não viram mas sentiram o que representavam. Vejo então inúmeras figuras diabólicas, cada uma diferente, conforme o vício que representa, em terrível ação entre a multidão; vejo-as correr, instigar a raiva, causar confusão dos espíritos, entrar na boca das pessoas; vejoas sair da multidão, reunir-se em grande número e atiçar a raiva do povo contra Jesus, mas à vista do amor e da paciência do Mestre tremem e desaparecem de novo entre o povo. Toda essa atividade tem algo de desesperado, confuso, contraditório; é um movimento confuso e insensato. Acima e em redor de Jesus e Maria e do pequeno número de santos vejo também se moverem muitos Anjos, cujas figuras e vestimentas variam, conforme as respectivas funções e ação; representam consolação, oração, unção, conforto por comida e bebida e outras obras de misericórdia.

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De modo semelhante vejo freqüentemente vozes consoladoras ou ameaçadoras saírem, como palavras de diferentes cores e luzes, da boca de tais aparições; e se são mensagens, vejo-lhas nas mãos, em forma de tiras escritas. Outras vezes, quando preciso ser instruída a esse respeito, vejo os movimentos d'alma e as paixões dos corações, o sofrimento e o amor, enfim, tudo que é sentimento; vejo-os passar através do peito e de todo o corpo dos homens, em movimentos de diferentes cores, em variações de luz e sombra, de diversas formas, direções e mudanças de forma e cor, de lentidão e rapidez; assim compreendo tudo, mas é impossível exprimí-Io em palavras; pois é um número infinito de coisas e ao mesmo tempo me sinto tão abatida pela dor e tristeza por meus pecados e os de todo o mundo e tão dilacerada pela dolorosa Paixão de Jesus, que até não compreendo como ainda possa juntar o pouco que estou contando. Muitas coisas, especialmente aparições e ações de demônios e Anjos, contadas por outras pessoas, que tiveram visões da Paixão de Nosso Senhor, são fragmentos de tais intuições de movimentos interiores, invisíveis no momento em que se realizaram outrora, as quais variam, segundo o estado d'alma das pessoas videntes e são entremeadas nas narrações. Por isso há tantas contradições, porque esquecem algumas coisas, saltam outras e só uma parte é que contam. Tudo que há de mau no mundo, contribuiu para atormentar Jesus. Tudo que é amor, n’Ele sofreu. Como Cordeiro de Deus, tomou sobre si os pecados do mundo: Que infinidade de coisas, tanto abomináveis como também santas, se podem ver e contar. Se, portanto, as visões e contemplações de muitas pessoas piedosas não concordam em tudo, é porque não tiveram o mesmo grau de graça para ver, contar e fazer-se compreender. 8. Jesus condenado à morte na Cruz Pilatos, que não procurava a verdade, mas apenas uma saída para a dificuldade, estava mais indeciso que nunca. A consciência dizia-lhe: "Jesus é inocente." A esposa mandara dizer-lhe: "Jesus é santo." A superstição dizia-lhe: "É um inimigo de teus deuses." A covardia dizialhe: "É um deus e vingar-se-á." Interroga mais uma vez a Jesus, em tom inquieto e solene e Jesus lhe fala dos seus mais ocultos crimes, prediz . lhe um futuro e uma morte miseráveis e que um dia virá, sentado sobre as nuvens do céu, pronunciar sobre ele um juízo justo, o que deita na falsa balança da justiça de Pilatos um novo peso contra a intenção de soltar Jesus. Ficou furioso por se ver em toda a nudez de sua ignomínia interior diante de Jesus, a quem não podia compreender; sentiu-se indignado daquele que mandara açoitar e que podia mandar crucificar, lhe predizer um fim miserável; dessa boca, que nunca fora acusada de mentira, que não proferira uma só palavra em sua

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própria defesa, ousar, em ocasião extremamente arriscada, citá-Io perante seu justo tribunal, naquele dia futuro. Tudo isso lhe ofendeu profundamente o orgulho; mas como não havia sentimento dominante nesse homem miserável e indeciso, ficou cheio de medo diante da ameaça do Senhor e fez a última tentativa de libertar Jesus. Ouvindo, porém, a ameaça dos judeus de acusá-Io perante o imperador, se soltasse Jesus, foi dominado por outro pavor covarde: o medo do imperador terrestre venceu o receio do rei cujo reino não era deste inundo. O celerado covarde e irresoluto pensava consigo: "Se Ele morrer, morrerá também com Ele o que sabe de mim e o que me predisse." À ameaça dos judeus de acusá-Io perante o imperador, decidiu-se Pilatos a fazer-Ihes a vontade, contrariamente à promessa que fizera à esposa, contrariamente à justiça e à própria convicção. Por medo do imperador, entregou aos judeus o sangue de Jesus, mas para a própria consciência não tinha senão água, que fez derramar sobre as mãos, exclamando: "Sou inocente do sangue deste Justo, respondereis por Ele." - Não, Pilatos, tu és responsável, pois que O dizes Justo e Lhe derramas o sangue; és o juiz injusto, sem consciência. O mesmo sangue de que queria lavar as mãos e de que não podia lavar a alma, os sanguinários judeus chamaram-na sobre si e seus filhos, amaldiçoando-se a si mesmos. O sangue de Jesus, que atrai a misericórdia de Deus sobre nós, fizeram-na chamar a vingança sobre eles, gritando: "Que o seu sangue caia sobre nós e nossos filhos.” Ouvindo esses gritos sanguinários, Pilatos mandou preparar tudo para pronunciar a sentença. Deu ordem para trazer outras vestes solenes e vestiu-as; puseram-lhe na cabeça uma espécie de coroa ou diadema, no qual havia uma pedra preciosa ou outra coisa brilhante; vestiram-no também de outro manto e diante dele levavam um bastão. Foi acompanhado de muitos soldados; oficiais do tribunal iam na frente, transportando uma coisa e seguiam-se escreventes, com rolos de papel e tabuinhas, precedidos por um homem que tocava trombeta. Assim saiu do palácio para o fórum, onde, em frente ao lugar da flagelação, havia um belo assento elevado, construído de pedras, para pronunciar as sentenças; só depois de pronunciadas desse lugar tinham as sentenças vigor legal. Esse tribunal era chamado Gabata e era um estrado circular, para o qual subiam escadas de vários lados; em cima havia um assento para Pilatos e atrás dele um banco, para outros membros do tribunal. Muitos soldados cercavam esse tribunal e em parte ficavam nos degraus das escadas. Muitos dos fariseus já tinham ido do palácio de Pilatos ao Templo. Somente Anás e Caifás, com cerca de vinte e oito outros, se dirigiram ao tribunal no fórum, logo que Pilatos começou a vestir as vestimentas oficiais. Os dois ladrões já haviam sido conduzidos ao tribunal, quando Pilatos apresentou Jesus ao povo, dizendo: Ecce homo! O assento de Pilatos

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estava coberto de uma manta vermelha e sobre essa havia uma almofada azul, com galões amarelos. Jesus, ainda vestido do rubro manto derrisório, com a coroa de espinhos na cabeça, as mãos atadas, foi então conduzido pelos esbirros e soldados que O cercavam, entre as vaias do povo, para o tribunal, onde O colocaram entre os dois ladrões. Pilatos, sentado no tribunal, disse mais uma vez, em voz alta, aos inimigos de Jesus: "Eis aí o vosso rei!" Eles, porém, gritaram: "Fora! Morra! Crucifica-O!" - Pilatos disse: "Devo então crucificar vosso rei?" -Mas os príncipes dos sacerdotes gritaram: " Não temos outro rei senão o César." Então Pilatos não disse mais palavra em favor de Jesus, nem mais Lhe falou, mas começou a pronunciar a sentença. Os dois ladrões tinham sido condenados, já havia mais tempo, à morte na cruz, mas a execução fora adiada para esse dia, a pedido dos Sumos Sacerdotes, porque queriam ultrajar Jesus, crucificando-O entre assassinos ordinários. As cruzes dos ladrões já estavam ao lado deles, no chão, trazidas pelos ajudantes dos carrascos. A Cruz de Nosso Senhor ainda não estava lá, provavelmente porque a sentença ainda não fora pronunciada. A Santíssima Virgem, que se tinha afastado depois da apresentação de Jesus por Pilatos e da gritaria sanguinária dos judeus, abriu caminho, em companhia de algumas mulheres, por entre a multidão e aproximouse do tribunal, para ouvir a sentença de morte, proferida contra seu Filho e Deus; Jesus estava nos degraus da escada, diante de Pilatos, rodeado de soldados e os inimigos lançavam-Lhe olhares cheios de ódio e escárnio. Um toque de trombeta ordenou silêncio e Pilatos pronunciou, com a raiva de um covarde, a sentença de morte contra o Salvador. Senti-me sufocada de indignação, diante de tanta baixeza e duplicidade; o aspecto desse celerado arrogante, do triunfo e ódio sanguinário dos príncipes dos sacerdotes, satisfeitos após tantos esforços fatigantes, o estado lastimoso e os sofrimentos do pacientíssimo Salvador, a indizível angústia e os tormentos da Mãe Santíssima e das santas mulheres, a furiosa ansiedade com que os judeus esperavam a morte da presa, o frio orgulho dos soldados e minha visão das horrendas figuras diabólicas entre a multidão do povo, tudo isso me tinha aniquilado completamente. Ai! Percebi que eu devia estar no lugar de Jesus, meu querido esposo; então a sentença seria justa. Eu estava tão dilacerada pela dor, que não me lembro mais da ordem exata das coisas. Vou contar mais ou menos o que me lembro. Pilatos começou por um longo preâmbulo, em que se referiu com os mais pomposos títulos ao imperador Cláudio Tibério. Depois expôs a acusação contra Jesus, que fora condenado à morte pelos Sumos Sacerdotes e cuja crucificação tinha sido unanimemente exigida pelo povo, por ser um rebelde, perturbador da paz pública, violador da lei judaica, por se fazer chamar Filho de Deus e rei

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dos judeus. Quando, porém, acrescentou ainda que achava essa sentença justa, - ele que por várias horas continuara a declarar Jesus inocente, quase não pude conter-me mais, à vista desse homem infame e mentiroso. Ele disse ainda: "Por isso condeno Jesus Nazareno, rei dos judeus, a ser pregado na Cruz." Depois deu ordem aos carrascos que fossem buscar a cruz. Também me lembro, mas não tenho plena certeza, que ele quebrou uma vara comprida, cuja metade era visível e lançou os pedaços aos pés de Jesus. A essas palavras a Mãe de Jesus caiu por terra sem sentidos e como morta; agora então estava decidida, era certa a morte de seu santíssimo e amantíssimo Filho e Salvador, morte horrível, dolorosa, ignominiosa. As companheiras e João levaram-na para fora da multidão, para que aqueles homens cegos de coração não pecassem, insultando a dolorosa Mãe do Salvador; mas Maria não podia deixar de seguir o caminho da Paixão de Jesus; as companheiras viram-se obrigadas a levá-Ia outra vez de lugar em lugar; pois o culto misterioso de unir-se-Lhe nos sofrimentos impelia a Santíssima Mãe à oferecer o sacrifício de suas lágrimas em todos os lugares onde o Redentor, seu Filho, sofrera pelos pecados dos homens, seus irmãos; e assim a Mãe do Senhor consagrou com as lágrimas todos esses santos lugares e tomou posse deles para a futura veneração pela Igreja, Mãe de todos nós, como Jacó erigiu uma pedra e, ungindo-a com óleo, consagrou-a em memória da promissão, que ali recebera. A sentença foi escrita, mesmo no tribunal, por Pilatos e copiada mais de três vezes, por aqueles que lhe estavam atrás. Enviaram vários mensageiros; porque alguns dos documentos precisavam ser assinados por outras pessoas; não me lembro se esses documentos faziam parte da sentença ou se eram outras ordens. Contudo foram também alguns desses documentos levados a lugares distantes. Havia, porém, ainda outra sentença, escrita por Pilatos mesmo e que lhe provava claramente a duplicidade; pois tinha teor totalmente diferente da sentença que pro nunciara; vi como a escreveu contra a vontade, com o espírito atormentado e um anjo irado a dirigir-lhe a mão. Esse documento, de cujo conteú do tenho apenas uma lembrança vaga, dizia mais ou menos o seguinte: "Compelido pelos Sumos Sacerdotes e o Sinédrio e ameaçado por uma iminente insurreição do povo, que acusavam Jesus de Nazaré de agitação contra a autoridade, de blasfêmia e de desprezo da lei judaica, exigindo-Lhe a morte, entreguei-Ihes o mesmo Jesus, para ser crucificado, não tanto movido pelas acusações, que em verdade não achei fundadas, mas para não ser acusado perante o imperador, de favorecer a insurreição e negar justiça aos judeus. Entreguei-O porque exigiram com violência a morte, como transgressor da lei; e com Ele dois ladrões, já antes condenados, cuja execução fora adiada por maquinações dos judeus, porque queriam que fossem executados junto com Jesus.”

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Nesse documento, pois, escreveu o malvado um relatório totalmente diferente. - Depois escreveu ainda a inscrição da cruz em três linhas, com verniz, sobre uma tabuinha de cor escura. O documento em que Pilatos desculpava a sentença, foi copiado várias vezes e enviado a diversos lugares. Os Sumos Sacerdotes discutiram ainda com Pilatos no tribunal; não estavam contentes com a sentença, queixando-se sobretudo porque tinha escrito que eles haviam exigido o adiamento da execução dos ladrões, para que fossem executados com Jesus; contestaram também o título de Jesus: queriam que escrevesse "que se declarou rei dos judeus" e não simplesmente "rei dos judeus". Mas Pilatos perdeu a paciência, tratou-os com arrogância, gritando furioso: "O que escrevi, fica escrito." Ainda insistiram, dizendo que a Cruz de Jesus não devia ficar mais alta que as dos ladrões; era preciso, porém, fazê-Ia mais alta, porque, por um erro dos operários, ficara mais curta a parte acima da cabeça, não cabendo o título escrito por Pilatos; esse protesto contra o alongamento da cruz era apenas um subterfúgio, para evitar a inscrição, que Ihes parecia injuriosa. Mas Pilatos não cedeu e assim foram obrigados a alongar a cruz, adaptando-lhe uma peça de madeira, à qual se pudesse fixar o título. Assim concorreram várias circunstâncias para dar à cruz aquela forma significativa, que sempre lhe tenho visto, isto é, com os braços um pouco elevados, como os galhos de uma árvore, os quais, ao sair do tronco, se estendem para cima; tinha a forma da letra Y, com a linha do centro alongada por entre os braços. Os dois braços eram mais finos do que o tronco e estavam embutidos nesse, sendo os encaixes reforçados de ambos os lados, por uma cunha fincada por baixo. Como, porém, o tronco acima da cabeça, por um erro, tivesse saído curto de mais para se fixar bem visível a inscrição de Pilatos, foi preciso ajustar mais uma peça ao tronco. No lugar dos pés pregaram um pedaço de madeira, para os sustentar. Enquanto Pilatos pronunciava a sentença injusta, vi Cláudia Prócula, sua mulher, remeter-lhe o penhor e separar-se dele. Na mesma noite fugiu ocultamente do palácio e foi para junto dos amigos de Jesus, que a levaram a um esconderijo, num subterrâneo da casa de Lázaro, em Jerusalém. Vi também um amigo de Jesus gravar, numa pedra esverdeada atrás do tribunal do Gábata, duas linhas, que diziam respeito à sentença injusta de Pilatos e à separação da mulher do Procurador; ainda me lembro das palavras "judex injustus" e do nome "Cláudia Prócula". Mas não me recordo se foi no mesmo dia ou alguns dias mais tarde; lembro-me apenas que nesse lugar do fórum estava um numeroso grupo de homens conversando, enquanto o outro homem, encoberto por eles, gravou aquelas linhas, sem ser visto. Vi que aquela pedra ainda está, desconhecida embora, em Jerusalém, nos alicerces duma casa ou duma Igreja, situada onde antigamente era o Gábata.

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Cláudia Prócula tornouse cristã e depois de se ter encontrado com S. Paulo, tornou-se-Ihe amiga dedicada. Pronunciada a sentença, enquanto Pilatos escrevia e discutia com os Sumos Sacerdotes, era Jesus entregue aos carrascos; antes hou-vera ainda algum respeito ao tribunal, mas depois estava o Divino Mestre inteiramente à mercê desses homens abomináveis. Trouxeram-Lhe a roupa, que Lhe tinham tirado para escarnecê-Lo em casa de Caifás; fora guardada e parece-me que também fora lavada por gente compassiva, pois estava limpa. Creio também que era costume entre os romanos levar os condenados à execução, vestidos de sua própria roupa. Despiram de novo Jesus: desataram-Lhe as mãos, para poder revestí-Lo, arrancaram-Lhe o manto vermelho do corpo chagado, abrindo-Lhe assim muitas feridas. Ele mesmo vestiu, com mãos trêmulas, a faixa em torno da cintura e os carrascos lançaramLhe o escapulário sobre os ombros. Como, porém, a coroa de espinhos fosse muito larga para deixar passar-Lhe pela cabeça a túnica sem costura, que Lhe fizera a Virgem Santíssima, arrancaram-Lhe a coroa e todas as feridas começaram a sangrar, com indizíveis dores. Depois de Lhe porem a túnica sobre as feridas do corpo, vestiram-na da veste larga de Lã branca, que cingiram com a faixa larga e puseram-Lhe finalmente o manto. Feito isso, amarraram-na novamente com o cinturão, munido de pontas de ferro, no qual estavam presas as cordas para conduzí-Lo. Durante todo esse tempo batiam e em-purravam-nO, tratando-O com atroz crueldade. Os dois ladrões estavam um ao lado direito, outro ao lado esquerdo de Jesus; tinham as mãos amarradas e pendia-Ihes, como a Jesus diante do tribunal, uma cadeia de ferro do pescoço. Vestiam apenas um pano na cintura e um gibão semelhante a um escapulário, de fazenda ordinária, sem mangas e aberto nos lados; na cabeça tinham bonés, tecidos de palha, que se pareciam com barretinhas estofadas de crianças. A pele dos ladrões era de um pardo sujo, coberta de cicatrizes, causadas pela flagelação passada. Aquele que se converteu depois, já estava calmo e pensativo; o outro, porém, irritado e impertinente, unindo-se aos carrascos para insultar e amaldiçoar Jesus, que os olhava a ambos com olhos cheios de caridade e desejo de salvá-Ios, oferecendo também por eles todos os seus sofrimentos. Os carrascos estavam ocupados em juntar todas as ferramentas; preparavam-se para a triste e terrível marcha, em que o nosso amado e doloroso Salvador quis carregar o peso dos pecados de nós todos, homens ingratos e para os expiar, ia derramar o santíssimo Sangue do cálice de seu Corpo, transpassado pelos homens mais abomináveis. Anás e Caifás terminaram afinal a discussão acalorada com Pilatos; receberam algumas tiras compridas ou rolos de pergaminho, com cópias dos documentos e dirigiram-se

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apressadamente ao Templo; e só por pouco não chegaram tarde. Então se separaram os Sumos Sacerdotes do verdadeiro Cordeiro pascal; correram ao Templo de pedra, para imolar e comer o cordeiro simbólico e a realização do símbolo, o verdadeiro Cordeiro de Deus, fizeram-na conduzir por vis carrascos ao altar da cruz. Separaram-se ali os dois caminhos, dos quais um conduzia ao símbolo e outro à realização do Sacrifício; abandonaram o Cordeiro de Deus, a pura Vítima expiatória, que tentaram macular exteriormente e insultar com todo o horror da perversidade, entregaram-na a carrascos ímpios e desumanos e correram ao Templo de pedra, para imolar cordeiros lavados, purificados e bentos. Haviam tomado todo o cuidado para não se sujarem exte riormente e tinham as almas todas sujas, transbordantes de ódio, inveja e ultrajes. - "Que o seu sangue caia sobre nós e nossos filhos", tinham exclamado e com essas palavras cumpriram a cerimônia, impuseram a mão de sacrificador sobre a cabeça da vítima. Separaram-se ali os dois caminhos, que conduziam ao altar da lei e ao altar da graça. 7 Jesus leva, a Cruz ao Gólgota 1. Jesus toma a cruz aos ombros 2. A primeira queda de Jesus sob a cruz 3. O encontro de Jesus com a Santíssima Mãe. Segunda queda de Jesus debaixo da cruz 4. Terceira queda de Jesus sob a cruz. Simão de Cirene 5. Verônica e o Sudário 6. A quarta e quinta queda de Jesus sob a cruz. As compassivas filhas de Jerusalém 7. Jesus no Monte Gólgota. Sexta e sétima queda de Jesus e seu encarceramento 8. Maria e as amigas vão ao Calvário Jesus leva, a Cruz ao Gólgota 1. Jesus toma a cruz aos ombros

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Quando Pilatos desceu do tribunal do Gábata, seguiram-no uma parte dos soldados e formaram diante do palácio, para acompanhar o séquito. Um pequeno destacamento ficou com os condenados. Vinte e oito fariseus armados, entre os quais os seis inimigos furiosos de Jesus que estavam presentes quando foi preso no horto das Oliveiras, vieram a cavalo ao fórum, para acompanhar o séquito. Os carrascos conduziram Jesus ao meio do fórum; alguns escravos entraram pela porta ocidental, trazendo o pãtíbulo da cruz e jogaram-no ruidosamente aos pés do Salvador. Os dois braços da cruz, mais finos, estavam amarrados com cordas ao tronco largo e pesado; as cunhas, o cepo para sustentar os pés e a peça ajustada ao tronco para a inscrição, junto com outras ferramentas, eram carregados por alguns meninos a serviço dos carrascos. Quando jogaram a cruz no chão, aos pés de Jesus, Ele se ajoelhou junto à mesma e, abraçando-a, beijou-a três vezes, dirigindo ao Pai celestial, em voz baixa, uma oração comovente de ação de graças pela redenção do gênero humano, a qual ia realizar. Como os sacerdotes, entre os pagãos, abraçam um altar novo, assim abraçou Jesus a cruz, o eterno altar do sacrifício cruento de expiação. Os carrascos, porém, com um arranco nas cordas, fizeram Jesus ficar ereto, de joelhos, obrigandoO a carregar penosamente o pesado madeiro ao ombro direito e com o braço direito segurá-Io, com pouco e cruel auxílio dos carrascos. Vi anjos ajudando-O invisivelmente, pois sozinho não teria conseguido suspendê-Io; ajoelhava-se, curvado sob o pesado fardo. Enquanto Jesus estava rezando, outros carrascos puseram sobre os pescoços dos ladrões os madeiros transversais das respectivas cruzes, amarrando-Ihes os braços erguidos de ambos os lados. Essas travessas não eram inteiramente retas, mas um pouco curvas e na hora da crucifixão eram ajustadas na extremidade superior dos troncos, que eram transportados atrás deles por escravos, junto com outros utensílios. Ressoou um toque de trombeta da cavalaria de Pilatos e um dos fariseus a cavalo aproximou-se de Jesus, que estava de joelhos, sob o fardo e disse-Lhe: "Acabou agora o tempo dos belos discursos"; e aos carrascos: "Apressai-vos, para que fiquemos livres d’Ele. Vamos avante!" Fi-zeram-nO levantar-se então aos arrancos e caiu-Lhe assim sobre o ombro todo o peso da cruz, que nós devemos também carregar para seguíLo, segundo as suas santas palavras, que são a verdade eterna. Então começou a marcha triunfal do Rei dos reis, tão ignominiosa na terra, tão gloriosa no Céu. Tinham atado duas cordas à extremidade posterior da cruz e dois carrascos levantaram-na por meio delas, de modo que ficava suspensa e não se arrastava pelo chão. Um pouco afastados de Jesus seguiam quatro carrascos, segurando as quatro cordas que saiam do cinturão novo, com que O tinham cingido. O manto, arregaçado,

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fora-Lhe atado em redor do peito. Jesus, carregando ao ombro os madeiros da cruz, ligados num feixe, lembrava-me vivamente Isaac, levando a lenha para a sua própria imolação ao monte Mória. O trombeteiro de Pilatos deu então o sinal de partir, porque Pilatos também queria sair com um destacamento de soldados, para impedir qualquer movimento revoltoso na cidade. Estava a cavalo, vestido da armadura e rodeado de oficiais e de um destacamento de cavalaria; seguia depois um batalhão de infantaria, de cerca de 300 soldados, todos oriundos da fronteira da Itália e Suíça. Em frente do cortejo em que ia Jesus, seguia um corneteiro, que tocava nas esquinas das ruas, proclamando a sentença e a execução. Alguns passos atrás, marchava um grupo de meninos e homens das camadas mais baixas do povo, transportando bebidas, cordas, pregos, cunhas e cestos, com diversas ferramentas; escravos mais robustos carregavam as estacas, escadas e os troncos das cruzes dos ladrões. As escadas constavam apenas de um pau comprido, com buracos, nos quais fincavam cavilhas. Seguiam-se depois alguns fariseus a cavalo e atrás deles um rapazinho, segurando sobre os ombros, suspensa numa vara, a coroa de espinhos, que não puseram na cabeça de Jesus, porque parecia impedí-Lo de carregar a cruz. Esse rapazinho não era muito ruim. Seguia então Nosso Senhor e Salvador, curvado sob o pesado fardo da cruz, cambaleando sobre os pés descalços e feridos, dilacerado e contundido pela flagelação e as outras brutalidades, exausto de forças, por estar sem comer, sem beber, nem dormir desde a Ceia, na véspera, enfraquecido pela perda de sangue, pela febre e sede, atormentado por indizíveis angústias e sofrimentos da alma. Com a mão segurava o pesado lenho sobre o ombro direito; a esquerda procurava penosamente levantar a larga e longa veste, para desembaraçar os passos, já pouco seguros. Tinha as mãos inchadas e feridas pelas cordas, com que haviam estado antes fortemente amarradas. O rosto estava coberto de pisaduras e sangue; cabelo e barba em desalinho e colados pelo sangue; o pesado fardo e o cinturão apertavam-Lhe a roupa pesada de lã de encontro ao corpo ferido e a lã pegava-se-Lhe às feridas reabertas. Em redor só havia ódio e insultos. Mas também nessa imensa miséria e em todos esses martírios se manifestava o amor do Divino Mártir: a boca movia-se-Lhe em oração e o olhar suplicante e humilde prometia perdão. Os dois carrascos que suspendiam a cruz, pelas cordas fixadas na extremidade posterior, aumentavam ainda o martírio de Jesus, deslocando o pesado fardo, que alternadamente levantavam e deixavam cair. Em ambos os lados do cortejo marchavam vários soldados, armados de lanças. Depois de Jesus, vinham os dois ladrões, cada um conduzido por dois carrascos, que Ihes seguravam as cordas, presas ao cinturão; transportavam sobre a nuca os madeiros transversais das respectivas cruzes, separados do tronco; tinham

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os braços amarrados às extremidades dos madeiros. Andavam meio embriagados por uma bebida que Ihes tinham dado. Contudo o bom ladrão estava muito calmo; o mau, porém, impertinente, praguejava furioso. Os carrascos eram homens baixos, mas robustos, de pele morena, cabelo preto, crespo e eriçado; tinham a barba rala, aqui e acolá uns tufinhos de pelos. Não tinham fisionomia judaica; pertenciam a uma tribo de escravos do Egito, que trabalhavam na construção de canais; vestiam somente tanga e um escapulário de couro, sem mangas. Eram verdadeiros brutos. Atrás dos ladrões vinham a metade dos fariseus, fechando o cortejo. Esses cavaleiros cavalgavam durante todo o caminho, separados, ao longo do séquito, apressando a marcha ou conservando a ordem. Entre a gentalha que ia na frente do cortejo, transportando as ferramentas e outros objetos, achavam-se também alguns meninos perversos, filhos de judeus, que se lhe tinham juntado voluntariamente. Depois de um considerável espaço seguia o séquito de Pilatos; na frente um trombeteiro a cavalo, atrás dele cavalgava Pilatos, vestido da armadura de guerra, entre os oficiais e cercado de um grupo de cavaleiros; em seguida marchavam os trezentos soldados de infantaria. O séquito atravessou o fórum, mas entrou depois numa rua larga. O cortejo que conduzia Jesus, passou por uma rua muito estreita, pelos fundos das casas, para deixar livre o caminho para o povo, que se dirigia ao Templo, como também para não pôr obstáculos ao séquito de Pilatos. A maior parte da multidão já se pusera a caminho, logo depois de pronunciada a sentença; os demais judeus dirigiram-se às respectivas casas ou ao Templo; pois haviam perdido muito tempo durante a manhã e apressavam-se em continuar os preparativos para a imolação do cordeiro pascal. Contudo era ainda muito numerosa a multidão, composta de gente de todas as classes: forasteiros, escravos, operários, meninos, mulheres e a ralé da cidade; corriam pelas ruas laterais e por atalhos para a frente, para ver mais uma ou outra vez o triste séquito. O destacamento de soldados romanos que seguia, impedia o povo de juntar-se atrás do séquito, assim era preciso correr sempre para a frente, pelas ruas late-rais. A maior parte da multidão dirigiu-se diretamente ao Gólgota. A rua estreita pela qual Jesus foi conduzido primeiro, tinha ape-nas a largura de alguns passos, e passava pelos fundos das casas, onde havia muita imundície. Jesus teve que sofrer muito ali; os carrascos andavam mais perto dEle; das janelas e dos buracos dos muros O vaiava a gentalha; escravos que lá trabalhavam, atiravam-Lhe lama e restos imundos da cozinha; patifes perversos derramavam-Lhe em cima água suja e fétida dos esgotos; até crianças, instigadas pelos velhos, juntavam pedras nas roupinhas

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e saindo das casas e atravessando o séquito a correr, jogavam-nas no caminho, aos pés de Jesus. Assim foi Jesus tratado pelas crianças, que tanto amava, abençoava e chamava bem-aventuradas. 2. A primeira queda de Jesus sob a cruz A rua estreita dirige-se no fim para a esquerda, torna-se mais larga e começa a subir. Passa ali um aqueduto subterrâneo, que vem do Monte Sião; creio que passa ao longo do fórum, onde há também, sob a terra, canais abobadados e desemboca na piscina das ovelhas, perto da porta das ovelhas. Eu ouvia o murmúrio e o correr das águas nos canos. Naquele ponto, antes de subir a rua, há um lugar mais fundo, onde, por ocasião das chuvas, se junta água e lama e há lá uma pedra saliente, que facilita a passagem, como em muitas outras ruas de Jerusalém, as quais, em grande parte, são bastante toscas. Quando Jesus, carregado do pesado fardo, chegou a esse lugar, não tinha mais força para ir adiante; os carrascos arrastavam e empurravam-nO sem piedade; então Jesus, nosso Deus, tropeçando sobre a pedra, caiu por terra e a cruz tombou-Lhe ao lado. Os carrascos praguejaram, puxaram-nO pelas cordas, deram-Lhe pontapés; o séquito parou, formou-se um grupo tumultuoso em redor do Divino Mestre. Debalde estendia a mão, para que alguém O ajudasse a levantar-se. "Ai!" exclamou, "dentro em pouco estará tudo acabado", e os lábios moviam-se-Lhe em oração. Os fariseus gritaram: "Vamos! Fazei-O levantar-se, senão nos morre nas mãos!" Aqui e acolá, dos lados da rua, se viam mulheres a chorar, com crianças, que também choramingavam assustadas. Com auxílio sobrenatural, conseguiu Jesus afinal levantar a cabeça e esses homens abomináveis e diabólicos, em vez de O ajudarem e aliviarem, ainda Lhe impuseram novamente a coroa de espinhos. Levantaram-nO depois brutalmente e puseram-Lhe a cruz de novo ao ombro. Com isso era obrigado a pender para o outro lado a cabeça, torturada pelos espinhos, para assim poder carregar o pesado patíbulo. Com novo e maior martírio subiu então pela rua, que dali em diante se tornava mais larga. 3. O encontro de Jesus com a Santíssima Mãe. Segunda queda de Jesus debaixo da cruz A Mãe de Jesus, transpassada de dor, tinha se retirado do fórum, com João e algumas mulheres, depois de ouvir a sentença que lhe condenara injustamente o Filho. Tinham visitado muitos dos lugares sagrados pela Paixão de Jesus, mas quando o correr do povo e o toque dos clarins e o séquito de Pilatos, com os soldados, anunciaram a partida para o Calvário, Maria não pôde conter-se mais: o amor impelia-a a ver o divino Filho, no seu sofrimento e pediu a João que a conduzisse a um lugar onde Jesus tivesse de

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passar. Eles tinham vindo dos lados de Sião; passaram ao lado do tribunal donde Jesus, havia pouco, fora levado por portas e alamedas que noutros tempos estavam fechadas, mas nessa ocasião abertas, para dar passagem à multidão. Passaram depois pela parte ocidental de um palácio, que do outro lado dá, por um portão, para a rua larga, na qual o séquito entrou depois da primeira queda de Jesus. Não sei mais com certeza se esse palácio era uma ala da casa de Pilatos, com a qual parece estar ligada por pátios e alamedas ou se é, como me lembro agora, a própria habitação do Sumo Sacerdote Caifás; pois a casa em Sião era apenas o tribunal. - João conseguiu de um criado ou porteiro compassivo a licença de passar, com Maria e as companheiras, para o outro lado e o mesmo empregado abriu-lhes o portão para a rua larga. - Estava com eles um sobrinho de José de Arimatéia; Suzana, Joana Chusa e Salomé de Jerusalém seguira a Santíssima Virgem. Quando vi a dolorosa Mãe de Deus, pálida, olhos vermelhos de chorar, tremendo e gemendo, envolta da cabeça aos pés num manto azul-cinzento, passando com as companheiras por aquela casa, sentime presa de dor e susto. Já se ouviam por sobre as casas o tumulto e os gritos do séquito, que se aproximava, o toque da trombeta e a voz do arauto, anunciando nas esquinas das ruas a execução de um condenado à cruz. O criado abriu o portão; o ruido tornou-se mais distinto e assus tador. Maria rezava e disse a João: "Que devo fazer, ficar para vê-Lo ou fugir? Como poderei suportar vê-Lo neste estado?" João disse: "Se não ficardes, arrepender-vos-eis amargamente toda a vida". Então saíram da casa, ficando à espera, sob a arcada do portão; olhavam para a direita, rua abaixo, que até lá subia, mas continuava plana, do lugar onde estava Maria. Ai! Como o som da trombeta lhe penetrou no coração! O séquito aproximava-se, ainda estaria distante uns 80 passos, quando saíram do portão. Ali o povo não andava na frente, mas aos lados e atrás havia alguns grupos; grande parte da gentalha, que saíra por último do tribunal, corria por atalhos para a frente, para ocupar outros lugares, donde pudesse ver passar o séquito. Quando os servos dos carrascos, que transportavam os instrumen-tos do suplício, se aproximaram, impertinentes e triunfantes, começou a Mãe de Jesus a tremer e chorar e torcer as mãos de aflição. Um dos miseráveis perguntou aos que iam ao lado: "Quem é essa mulher, que está ali lamentando?" Um deles respondeu: "É a mãe do Galileu." Ouvindo isso os perversos insultaram-na com palavras de zombaria, apontaram-na com os dedos e um desses homens perversos tomou os cravos, com os quais Jesus devia ser pregado na cruz e mostrou-o à Santíssima Virgem, com ar de escárnio. Ela, porém, torcendo as mãos, olhava na direção de seu Filho e esmagada pela dor, encostou-se ao pilar do portão. Tinha a palidez de um

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cadáver e os lábios roxos. Passaram os fariseus a cavalo; depois veio o menino, com o título da cruz e, ai! alguns passos atrás, Jesus, o Filho de Deus, seu próprio Filho querido, o Santo, o Redentor: lá ia cambaleando e curvado, afastando penosamente a cabeça, com a coroa de espinhos, do pesado fardo da cruz. Os carrascos arrastavam-na pelas cordas para a frente; tinha o rosto pálido, coberto de sangue e pisaduras, a barba toda junta e colada sob o queixo pelo sangue. Os olhos encovados e sangrentos do Salvador, sob o horrível enredo da coroa de espinhos, lançaram um olhar grave e cheio de piedade à Mãe dolorosa e depois, tropeçando, Ele caiu pela segunda vez, sob o peso da cruz, sobre os joelhos e as mãos. A Mãe, na veemência da dor, não via mais nem soldados nem carrascos, via só o Filho querido em estado tão lastimoso e tão maltratado. Estendendo os braços, correu os poucos passos do portão até Jesus, através dos carrascos e abraçando-O, caiu-Lhe ao lado de joelhos. Ouvi as palavras: "Meu Filho!" - "Minha Mãe!" - não sei se foram pronunciadas pelos lábios ou só no coração. Houve um tumulto: João e as mulheres tentavam afastar Maria, os carrascos praguejavam e insultavam-na; um deles gritou: "Mulher, que queres aqui? Se O tivesses educado melhor, não estaria agora em nossas mãos." Vi que alguns dos soldados estavam comovidos; eles afastaram a Santíssima Virgem, nenhum, porém, a tocou. João e as mulheres levaram-na e ela caiu de joelhos, como morta de dor, sobre a pedra angular do portão, a qual suportava o muro; estavam de costas viradas para o séquito, apoiando-se com as mãos na parte superior da pedra inclinada, sobre a qual caíra. Era uma pedra com veias verdes; onde os joelhos de Nossa Senhora tocaram, ficaram cavidades e onde as mãos se lhe apoiaram, deixaram marcas menos profundas. Eram impressões chatas, com contornos pouco claros, semelhantes a impressões causadas por uma pancada sobre massa de farinha. Era uma pedra muito dura. Vi que no tempo do bispo Tiago o Menor essa pedra foi colocada na primeira Igreja católica, que foi construída ao lado da piscina de Betesda. Já o tenho dito várias vezes e digo-o mais uma vez, que vi em diversas ocasiões tais impressões causadas pelo contato de pessoas santas em acontecimentos de grande importância. Isso é tão certo, que há até a expressão: "Uma pedra sentir-se-ia comovida", ou a outra: "Isso faz impressão". A eterna Sabedoria não tinha precisão da arte da imprensa, para transmitir à posteridade testemunhos dos santos. Como os soldados, armados de lanças, que marchavam aos lados do séquito, impeliam o povo para diante, os dois discípulos que estavam com a Mãe de Jesus, reconduziram-na pelo portão, que foi fechado atrás deles. Os carrascos tinham, no entanto, levantado Jesus aos arrancos e puseram-Lhe a cruz de novo ao ombro, mas de outra maneira. Os

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braços da cruz, amarrados ao tronco haviam ficado um pouco soltos e um deles descera um pouco ao lado do tronco; foi esse que Jesus abraçou então, de modo que o tronco da cruz pendia atrás, mais no chão. 4. Terceira queda de Jesus sob a cruz. Simão de Cirene O séquito continuou nessa rua larga, até chegar à porta de um antigo muro da cidade interior. Diante dessa porta há uma praça, em que desembocam três ruas. Ali Jesus tinha de passar sobre outra pedra grande, mas tropeçou e caiu. A cruz tombou para o lado e Jesus, apoiando-se sobre a pedra, caiu por terra e tão enfraquecido estava, que não pôde levantar-se mais. Passaram grupos de gente bem vestida, que iam ao Templo e vendo-O, exclamaram: "Coitado, o pobre homem morre!" Deuse um tumulto; não conseguiram mais levantar Jesus e os fariseus que conduziam o cortejo, disseram aos soldados: "Não chegamos lá com Ele vivo; deveis procurar um homem que Lhe ajude a levar a cruz." Vinha justamente descendo pela rua do meio Simão de Cirene, um pagão, acompanhado pelos três filhinhos; transportava um feixe de ramos secos debaixo do, braço. Era jardineiro e vinha dos jardins situados perto do muro oriental da cidade, onde trabalhava. Todos os anos vinha, com mulher e filhos, para a festa em Jerusalém, como muitos outros da mesma profissão, para podar as sebes. Não pôde sair do caminho, porque a multidão se apinhava na rua. Os soldados, que pela roupa viam que era pagão e pobre jardineiro, apoderaram-se dele e, levando-o para onde estava Jesus, mandaram-lhe que ajudasse o Galileu a transportar a cruz. Simão resistiu e mostrou muita repugnância, mas obrigaram-no à força: Os filhinhos choravam alto e algumas mulheres que conheciam o homem, levaram-nos consigo. Simão sentiu muito nojo e repugnância, vendo Jesus tão miserável e desfigurado e com a roupa tão suja e cheia de imundície. Mas Jesus, com os olhos cheios de lágrimas, olhou para Simão com olhar tão desamparado, que causava dó. Simão foi obrigado a ajudá-Lo a levantar-se; os carrascos amarraram o braço da cruz mais para trás e penduraram-no, com uma volta da corda, sobre o ombro de Simão, que andava muito perto, atrás de Jesus, que deste modo não tinha mais de carregar tanto peso. Finalmente o lúgubre séquito se pôs em movimento. Simão era homem robusto, de 40 anos. Andava com a cabeça descoberta; vestia uma túnica curta, apertada e na cintura uma faixa de pano roto; as sandálias, atadas aos pés e pernas com correias, terminavam na frente em bico agudo. Os filhos vestiam túnicas listadas de várias cores; dois já eram quase moços, chamavam-se Rufo e Alexandre e juntaram-se . mais tarde aos discípulos. O terceiro era ainda pequeno; vi-o ainda menino, em

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companhia de Santo Estêvão. Simão ainda não tinha seguido muito tempo Jesus, carregando o patíbulo e já se sentia profundamente comovido. 5. Verônica e o Sudário A rua em que se movia nessa hora o séquito, era longa, com uma leve curva para a esquerda e nela desembocavam várias ruas laterais. De todos os lados vinha gente bem vestida, que se dirigia ao Templo; ao ver o séquito, uns se afastavam, com o receio farisaico de se contaminarem, outros manifestavam certa compaixão. Havia cerca de duzentos passos que Simão ajudava Jesus a carregar a cruz, quando uma mulher de figura alta e imponente, segurando uma menina pela mão, saiu de uma casa bonita, ao lado esquerdo da rua e que tinha um átrio cercado de muros e de um belo gradil brilhante, onde se penetrava por um terraço, com escadaria. Ela correu, com a menina, ao encontro do cortejo. Era Seráfia, mulher de Sirac, membro do Conselho do Templo, a qual, pela boa ação praticada nesse dia, recebeu o nome de Verônica (de "vera icon": verdadeira imagem). Seráfia tinha preparado em casa um delicioso vinho aromático, com o piedoso desejo de oferecê-Io como refresco a Jesus, no caminho doloroso para o suplício. Já tinha ido uma vez ao encontro do séquito, em expectativa dolorosa; vi-a velada, segurando pela mão uma mocinha que adotara, passar ao lado do séquito, quando Jesus se encontrou com a Santíssima Virgem. Mas, com o tumulto, não achou ocasião de aproximar-se e voltou às pressas para casa, para lá esperar o Senhor. Saiu, pois, velada de casa para a rua; um pano pendia-lhe do ombro; a menina, que podia ter nove anos, estava-lhe ao lado, ocultando sob o manto o cântaro com o vinho, quando o séquito se aproximou. Os que o precediam, tentaram em vão retê-Ia; ela estava fora de si de amor e compaixão. Com a menina, que se lhe segurava, pegando-lhe o vestido, atravessou a gentalha, que ia dos lados e por entre soldados e carrascos, avançou para a frente de Jesus e, caindo de joelhos, levantou para Ele o pano, estendido de um lado, suplicando: "Permiti-me enxugar o rosto de meu Senhor." Jesus tomou o pano com a mão esquerda e apertou-o, com a palma da mão de encontro ao rosto ensangüentado; movendo depois a mão esquerda, com o pano, para junto da mão direita, que segurava a cruz, apertou-o entre as duas mãos e restituiu-lho, agradecendo; ela o beijou, escondendo-o sobre o coração, debaixo do manto e levantou-se. Então a menina ofereceu timidamente o cântaro com o vinho; mas os soldados e carrascos, praguejando, impediram-na de confortar Jesus. A audácia e rapidez dessa ação provocou um ajuntamento curioso do povo e causou assim uma pausa de dois minutos apenas

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na marcha, o que permitiu a Seráfia oferecer o sudário a Jesus. Os fariseus a cavalo e os carrascos irritaram-se com essa demora e mais ainda com a veneração pública manifestada ao Senhor e começaram a maltratá-Lo e empurrá-Lo. Verônica, porém, fugiu com a menina para dentro de casa. Apenas entrara no aposento, estendeu o sudário sobre a mesa e caiu por terra desmaiada; a menina, com o cântaro de vinho, ajoelhou-se-lhe ao lado, chorando. Assim as encontrou um amigo da casa, que entrara para a visitar e a viu como morta, sem sentidos, ao lado do sudário estendido, no qual o rosto ensangüentado do Senhor estava impresso de um modo maravilhosamente distinto, mas também horrível. Muito assustado, fê-Ia voltar a si e mostrou-lhe o rosto do Senhor. Cheia de dor, mas também de consolação, Seráfia ajoelhou-se diante do sudário, exclamando: "Agora vou abandonar tudo, o Senhor deu-me uma lembrança". Esse sudário era de lã fina, cerca de três vezes mais longo do que largo. Costumava-se usar em volta do pescoço; às vezes usavam ainda outro em torno dos ombros. Era uso ir ao encontro de pessoas aflitas, cansadas, tristes ou doentes e enxugar-lhes o rosto; era sinal de luto e compaixão; nas regiões quentes também usavam dá-lo de presente. Verônica guardava esse sudário sempre à cabeceira da cama. Depois de sua morte veio ter, por intermédio das santas mulheres, às mãos da Santíssima Mãe de Deus e dos Apóstolos e depois à Igreja. 6. A quarta e quinta queda de Jesus sob a cruz. As compassivas filhas de Jerusalém O séquito estava ainda a boa distância da porta; a rua descia um pouco até lá. A porta era uma construção extensa e fortificada; passavase primeiro por uma arcada abobadada, depois sobre uma ponte e finalmente por outra arcada. A porta ficava em direção sudoeste; ao sair dela, se via o muro da cidade estender-se para o sul, a uma distância como, por exemplo, da minha casa até a Matriz, (cerca de dois minutos de caminho); depois virava, a uma boa distância, para oeste e voltava novamente à direção do sul, fazendo a volta do Monte Sião. A direita se estendia o muro para o norte, até à porta do Angulo, dirigindo-se depois ao longo da parte setentrional de Jerusalém, para leste. Quando o séquito se aproximou da porta, impeliam-nO os carrascos com mais violência. Justamente diante da porta, havia no caminho desigual e arruinado uma grande poça: os carrascos arrastavam Jesus para frente, apertavam-se uns aos outros; Simão Cireneu procurou passar ao lado da poça, pelo caminho mais cômodo; com isso deslocou-se a cruz e Jesus caiu pela quarta vez sob a cruz

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e tão duramente, no meio do lodaçal, que Simão quase não pôde segurar a cruz, Jesus exclamou em voz fina, fraca e contudo alto: "Ai de ti! Ai de ti! Jerusalém! Quanto te tenho amado! Como uma galinha, que esconde os pintinhos sob as asas, assim queria reunir os teus filhos e tu me arrastas tão cruelmente para fora das tuas portas." - O Senhor disse essas palavras com profunda tristeza, mas os fariseus, virando-se para Ele, insultaram-nO, dizendo: "Este perturbador do sossego público ainda não acabou; ainda tem a língua solta?" e outras zombarias semelhantes. Espancaram e empurraram Jesus, arrastando-O para fora do lodaçal, para o levantar. Simão Cireneu ficou tão indignado com as crueldades dos carrascos, que gritou: "Se não acabardes com essa infâmia, jogarei a cruz no chão e não a carregarei mais, mesmo que me mateis também.” Logo depois de passar a porta, separa-se da estrada, do lado direito, um caminho estreito e áspero que, dirigindo-se para o norte, conduz em poucos minutos ao monte Cal vário. A estrada grande ramifica-se, a pouca distância dali, em três direções: à esquerda, para sudoeste, pelo vale Gihon, em direção à Belém; para oeste, em direção à Emaús e Jope e para noroeste, rodeando o monte Calvário, em direção à porta Angular, que conduz a Betur. Olhando da porta pela qual Jesus saiu, à esquerda, para sudoeste, pode-se ver a porta de Belém. Essas duas portas são, entre as portas de Jerusalém, as menos distantes. No meio da estrada, fora da porta, donde parte o caminho para o monte Calvário, havia uma estaca, com uma tabuleta pregada, na qual estavam escritas as sentenças de morte proferidas contra Jesus e os ladrões, escritas em letras brancas salientes, que pareciam coladas sobre a tabuleta. Não longe dai, na esquina do caminho do Gólgota, estava um numeroso grupo de mulheres, a chorar e lamentar. Em parte eram moças e mulheres pobres, com crianças, vindas de Jerusalém, que se tinham adiantado ao séquito; em parte mulheres vindas de Belém, Hebron e outros lugares circunvizinhos, que tinham chegado para a festa e se juntaram àquelas mulheres. Jesus não caiu ali inteiramente por terra; ia caindo como quem desmaia, de modo que Simão pôs a extremidade da cruz no chão e, aproximando-se de Jesus, segurou-O. O Senhor encostou-se em Simão. Essa foi a quinta queda do Salvador sob a cruz. As mulheres e moças, ao verem Jesus tão desfigurado e ensangüentado, começaram a chorar e lamentar alto, oferecendo-lhe os sudários, segundo o costume entre os judeus, para que enxugasse o rosto. Jesus virou-se-Ihes e disse: "Filhas de Jerusalém, (isso significa também: filhas de Jerusalém e cidades vizinhas), não choreis por mim, mas chorai por vós e vossos filhos; porque sabei que virá tempo em que se dirá: "Ditosas as que são estéreis e ditosos os ventres que não geraram e ditosos os peitos que não deram de mamar." - Então começarão os homens a dizer aos montes:

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"Caí sobre nós!" e aos outeiros: "Cobri-nos". Porque, se isto se faz no lenho verde, que se fará no seco?" Ainda Ihes disse outras belas palavras, as quais, porém, esqueci; entre outras disse que aquelas lágrimas Ihes seriam recompensadas, que doravante deviam seguir outros caminhos, etc. Houve ali uma pausa, pois o séquito parou por algum tempo. Aque-les que levavam os instrumentos do suplício, continuaram o caminho para o Calvário; seguiam-se depois cem soldados do destacamento de Pilatos, o qual tinha acompanhado o cortejo até ali, mas chegado à porta da cidade, voltara para o palácio. 7. Jesus no Monte Gólgota. Sexta e sétima queda de Jesus e seu encarceramento O séquito pôs-se novamente em caminho. Jesus, curvado sob a cruz, impelido a empurrões e golpes, arrastado pelas cordas, subiu penosamente o áspero caminho que segue para o norte, entre o monte Calvário e os muros da cidade; depois, no alto, se volta o caminho tortuoso outra vez para o sul. Lá caiu Jesus, tão enfraquecido, pela sexta vez; foi uma queda dura e a cruz, ao cair, ainda mais o feriu. Os carrascos, porém, espancaram e impeliram-na com mais brutalidade do que antes, até que Jesus chegou ao cume, no penedo do Gólgota e ali caiu novamente com a cruz por terra, pela sétima vez. Simão Cireneu, também maltratado e cansado, estava cheio de indignação e compaixão; quis ajudar Jesus a levantar-se, mas os carrascos, aos empurrões e insultos, fizeram-no voltar pelo caminho, morro abaixo; pouco depois se associou aos discípulos do Mestre Divino. Também os outros que trouxeram os instrumentos ou seguiram o cortejo e de que os carrascos não precisavam mais, foram enxotados do cume. Os fariseus a cavalo subiram o monte Cal vário por outros caminhos, mais cômodos, do lado oeste. Do cume se avistam justamente os muros da cidade. A face superior, o lugar do suplício, tem a forma circular e caberia bem no largo diante da nossa Matriz; é do tamanho de um bom picadeiro e cercado de um aterro baixo, cortado por cinco caminhos. Essa disposição de cinco caminhos encontra-se em quase todos os lugares do país, em lugares de banhos públicos ou de batismo, como na piscina Betesda; muitas cidades também têm cinco portas. Essa disposição acha-se em todas as construções dos tempos antigos e também em mais modernos e assim foram feitas em atenção às antigas tradições. Como em todas as coisas da Terra Santa, há também nisso um profundo sentido profético, cumprido nesse dia, em que se abriram os cinco caminhos de toda a salvação, as cinco sagradas Chagas de Jesus. Os fariseus a cavalo pararam fora do círculo, no lado oriental do monte, onde o declive é mais suave; o lado que dá para a cidade

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e por onde eram conduzidos os condenados, é escarpado e íngreme. Estavam ali também cem soldados romanos, nativos das fronteiras entre a Itália e a Suíça, que estavam distribuídos em parte em vários lugares da execução. Alguns ficaram com os dois ladrões, que, por falta de lugar no cume, não tinham levado para cima, mas fizeram deitar de costas, com os braços amarrados aos madeiros transversais das cruzes, na encosta do monte, um pouco abaixo do cume, onde o caminho vira para o sul. Muita gente, na maior parte das classes baixas, estrangeiros, servos, escravos, pagãos e muitas mulheres, gente que não se importava de contaminar-se, juntavam-se em redor do largo do cume ou formavam grupos, cada vez mais numerosos, nas alturas circunvizinhas, acrescidos de gente que se dirigia à cidade. Para oeste, ao pé do monte Gihon, havia um grande acampamento de forasteiros, vindos para a festa da Páscoa; mui'tos ficavam olhando de longe, outros se aproximavam pouco a pouco. Eram cerca de onze horas e três quartos, quando Jesus, arrastado com a cruz para o lugar do suplício, caiu por terra e Simão foi expulso de lá. Os carrascos levantaram o Salvador aos arrancos das cordas e desligaram os madeiros da cruz, jogando-os no chão, um em cima do outro. Ai! que aspecto terrível apresentava Jesus, em pé no lugar do suplício, abatido, triste, coberto de feridas, ensangüentado, pálido. Os carrascos deitaram-na brutalmente por terra, dizendo em tom de mofa: "á rei dos judeus, devemos tomar medida de teu trono?" Mas Jesus deitou-se de livre vontade sobre a cruz e se a fraqueza lha tivesse permitido, os carrascos não teriam tido necessidade de jogá-Lo por terra. Estenderam-na sobre a cruz e marcaram nesta os lugares das mãos e dos pés, enquanto os fariseus em redor riam e insultavam o Divino Salvador. Levantando-O novamente, conduziram-nO amarrado uns setenta pas-sos ao norte, descendo a encosta do monte Calvário, a uma fossa cava da na rocha, que parecia uma cisterna ou adega; levantando o alçapão, empurraram-nO para dentro tão brutalmente, que se não fosse por auxí lio divino, teria chegado ao fundo duro da rocha com os joelhos esmagados. Ouvi-Lhe os gemidos altos e agudos. Fecharam o alçapão e deixaram uma guarda. Segui-O nesses setenta passos; parece-me lem brar ainda de uma revelação sobrenatural de que os Anjos o socorreram, para que não esmagasse os joelhos; mas a pobre Vítima gemia e chorava de modo que cortava o coração. A rocha amoleceu, ao contato dos joelhos sagrados do Redentor. Os Carrascos começaram então os preparativos. Havia no centro do largo do suplício uma elevação circular, de talvez dois pés de altura, para a qual se tinham de subir alguns degraus: era o ponto mais alto do penedo do Calvário. Nesse cume estavam cavando a cinzel os buracos nos quais as três cruzes deviam ser plantadas; já tinham tomado medida para isso na extremidade inferior das

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cruzes. Colocaram os troncos das cruzes dos ladrões à direita e à esquerda, sobre essa elevação; esses lenhos eram toscamente aparados e mais baixos do que a cruz de Jesus; em cima haviam sido cortados obliquamente. Os madeiros transversais, aos quais os ladrões ainda estavam amarrados, foram depois ajustados um pouco abaixo da extremidade superior dos troncos. Os carrascos colocaram então a cruz de Nosso Senhor no lugar onde O queriam pregar, de modo que a pudessem comodamente levantar e fazer entrar na escavação. Encaixaram os dois braços da cruz no tronco, pregaram a peça de madeira para os pés, abriram com uma verruma os furos para os cravos e para o prego do título, fincaram a martelo as cunhas sob os braços da cruz e fizeram cá e lá algumas cavidades no tronco da cruz, para dar espaço para a coroa de espinhos e as costas, de modo que o corpo ficasse mais suportado pelos pés do que pendurado pelas mãos, que podiam rasgar-se com o peso do corpo e para que Jesus sofresse maior martírio. Ainda fincaram em cima por um madeiro transversal, para servir de apoio às cordas, com as quais queriam puxar e elevar a cruz e fizeram ainda outros preparativos semelhantes. 8. Maria e as amigas vão ao CaIvário Depois do doloroso encontro da SS. Virgem com o Divino Filho, caITegando a cruz, quando Maria caiu sem sentidos sobre a pedra angu lar, Joana Chusa, Suzana e Salomé de Jerusalém, com auxílio de João e do sobrinho de José de Arimatéia, conduziram-na para dentro da casa, impelidos pelos soldados e o portão foi fechado, separando-a do Filho bem-amado, carregado do peso da cruz e cruelmente maltratado. O amor e o ardente desejo de estar com o Filho, de sofrer tudo com Ele e de não O abandonar até o fim, davam-lhe uma força sobrenatural. As companheiras foram com ela à casa de Lázaro, na proximidade da porta Angular, onde estavam reunidas as outras santas mulheres, com Madalena e Marta, chorando e lamentando-se; com elas estavam também algumas crianças. De lá saíram em número de 17, seguindo o caminho doloroso de Jesus. Vi-as todas, sérias e decididas; não se importavam com os insultos da gentalha, mas impunham respeito pela sua tristeza; passaram pelo fórum, a cabeça coberta pelos véus; no ponto onde Jesus tomara ao ombro a cruz, beijaram a terra; depois seguiram todo o caminho da Paixão de Jesus, venerando todos os lugares onde Ele mais sofrera. Maria e as que eram mais inspiradas, procuravam seguir as pegadas de Jesus e a SS. Virgem, sentindo e vendo-lhes tudo na alma, guiava-as, onde deviam parar e quando deviam prosseguir nessa via sacra. Todos esses lugares se lhe imprimiram vivamente na alma; ela contava até os passos e mostrava às companheiras os santos lugares.

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Desse modo a primeira e mais tocante devoção da Igreja foi escrita no coração amoroso de Maria, Mãe de Deus; escrita pela espada profetizada por Simeão; os santos lábios da Virgem transmitiram-na aos companheiros do sofrimento e por esses a nós. Esta é a santa tradição vinda de Deus ao coração da Mãe Santíssima e do coração da Mãe aos corações dos filhos; assim continua sempre a tradição na Igreja. Quando se vêm as coisas como as vejo, parece este modo de transmissão mais vivo e mais santo. Os judeus de todos os tempos sempre veneraram os lugares consagrados por uma ação santa ou por um acontecimento de saudosa memória. Eles não esquecem um lugar onde se deu uma coisa sobrenatural: marcam-no com monumento de pedras e vão em peregrinação, para rezar. Assim também nasceu a devoção da Via Sacra, não por uma intenção premeditada, mas da natureza dos homens e das intenções de Deus para com seu povo, do fiel amor de uma mãe, e, por assim dizer, sob os pés de Jesus, que foi o primeiro que a trilhou. Chegou então esse piedoso grupo à casa de Verônica, onde entraram, porque Pilatos com os cavaleiros e os duzentos soldados, voltando da porta da cidade, lhes vinham ao encontro. Ali Maria e os companheiros viram o sudário, com a imagem do rosto de Jesus e entre lágrimas e suspiros, exaltaram a misericórdia de Jesus para com sua fiel amiga. Levaram o cântaro com o vinho aromático, com que Verônica não conseguira confortar Jesus e dirigiram-se todos, com Verônica, à porta do Gólgota. No caminho se Ihes juntaram ainda muitas pessoas bem intencionadas e outras comovidas pelos acontecimentos, entre as quais também certo número de homens, formando um cortejo que, pela ordem e seriedade com que passou pelas ruas, me fez uma singular impressão. Esse cortejo era quase maior do que aquele que conduziu a Jesus, não contando o povo que o acompanhou. As angústias e dores aflitivas de Maria nesse caminho, ao ver o lugar do suplício, com as cruzes no alto, não se podem exprimir em palavras; a alma amantíssima da Virgem sentia os sofrimentos de Jesus e era ainda torturada pelo sentimento de não poder seguí-Lo na morte. Madalena, toda transtornada e como embriagada de dor, andava cambaleando, como que arremessada de angústia em angústia; passava do silêncio às lamentações, do estupor ao desespero, das lamentações às ameaças. Os companheiros eram obrigados a sustê-Ia, a protegê-Ia, a exortá-Ia e a escondê-Ia da vista dos curiosos. Subiram o monte Cal vário pelo lado mais suave, ao oeste e aproximaram-se em três grupos do aterro circular do cume, a certa distância, um atrás do outro. A Mãe de Jesus, a sobrinha desta, Maria de Cleofas, Salomé e João avançaram até o lugar do suplício; Marta, Maria Helí, Verônica, Joana Chusa, Suzana e Maria, mãe de Marcos, ficaram um pouco afastadas, rodeando Maria Madalena, que

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não podia conter a dor. (*) Um pouco mais atrás estavam ainda sete pessoas e entre os três grupos havia gente boa, que mantinha uma certa comunicação entre eles. Os fariseus a cavalo estavam em diversos lugares em redor do local do suplício, enquanto os soldados romanos ocupavam as cinco entradas. * Os santos Evangelistas Mateus (27, 56) e Marcos (15, 40) mencionam, além da Mãe de Jesus, as seguintes mulheres piedosas: Maria Madalena, Maria, filha de Cleofas e Salomé. - S. João fala das duas primeiras e de Helí. Pelo menos podem as suas palavras ser tomadas nesse sentido: "Estavam ao pé da cruz de Jesus sua Mãe, a innã de sua Mãe. Maria, filha de Cleofas e Maria Madalena." Nem é preciso dizer que a palavra "irmã" pode também significar parenta. Que espetáculo doloroso para Maria: o lugar do suplício, o cume com as cruzes, a terrível cruz do Filho adorado e diante dela, no chão, os martelos, as cordas, os horrendos pregos e os repelentes carrascos, meio nus, quase embriagados, fazendo o horroroso trabalho entre imprecações. Os troncos das cruzes dos ladrões já estavam arvorados, munidos de paus encaixados para subir. A ausência de Jesus ainda prolongava o martírio da Mãe Santíssima; ela sabia que ainda estava vivo; desejava vê-Io, tremia ao pensar em que estado O veria; ia vê-Lo em indizíveis tormentos. Desde a madrugada até às dez horas, quando foi pronunciada a sentença, caíra várias vezes chuva de pedra; durante o caminho de Jesus ao Cal vário clareou o céu e brilhava o sol; mas pelas doze horas começou uma neblina avermelhada a velar o sol. 8 Crucificação e morte de Jesus 1. Os carrascos despem Jesus para a crucificação e oferecem-Lhe vinagre 2. Jesus é pregado na cruz 3. Elevação da cruz 4. A crucificação dos ladrões 5. Os carrascos tiram à sorte as vestes de Jesus 6. Jesus crucificado e os ladrões 7. Primeira palavra de Jesus na cruz 8. Eclipse do sol. Segunda e terceira palavra de Jesus na cruz 9. Estado da cidade e do Templo durante o eclipse do sol 10. Abandono de Jesus. A quarta palavra de Jesus na cruz 11. Quinta, Sexta e Sétima palavras de Jesus na cruz. Morte de Jesus.

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12. O tremor de terra, aparição de mortos em Jerusalém 13. Outras aparições depois da morte de Jesus 14. José de Arimatéia pede a Pilatos o corpo de Jesus 15. O coração de Jesus trespassado por uma lança. Esmagamento das pernas e morte dos ladrões 16. A descida de Jesus aos infernos Crucificação e morte de Jesus 1. Os carrascos despem Jesus para a crucificação e oferecem-Lhe vinagre Dirigiram-se então quatro carrascos à masmorra subterrânea, situada a setenta passos ao norte; Jesus rezava todo o tempo a Deus, pedindo força e paciência e oferecendo-se mais uma vez em sacrifício expiatório, pelos pecados dos inimigos. Os carrascos arrancaram-na para fora e, empurrando, batendo e insultando-O, levaram-na para o suplício. O povo olhava e insultava; os soldados, frios e altivos, mantinham a ordem, dando-se ares de importância; os carrascos, cheios de raiva sanguinária, arrastaram Jesus brutalmente para o largo do suplício. Quando as santas mulheres viram Jesus chegar, deram dinheiro a um homem, que o devia levar, junto com vinho aromático, aos carrascos, para que esses o dessem a Jesus a beber. Mas esses criminosos não Lho deram, mas beberam-no depois. Tinham lá dois vasos de cor parda, dos quais um continha vinagre misturado com fel e o outro uma espécie de vinagre, que afirmavam ser vinho, com mirra e absinto; dessa bebida ofereceram um copo pardo, a Jesus, que apenas o provou, tocando-o com os lábios, mas não bebeu. Estavam no lugar do suplício dezoito carrascos; os seis que O tinham açoitado, quatro que O conduziram, dois que suspenderam a extremidade da cruz pelas cordas e seis que O deviam crucificar. Parte deles estavam ocupados com Jesus, outros com os ladrões, trabalhando e bebendo altemadamente. Eram homens bai-xos, robustos, sujos e meio nus, de feições estranhas, cabelo eriçado, barba rala: homens abomináveis e bestiais. Serviam a judeus e romanos por dinheiro. O aspecto de tudo isso era mais terrível ainda, porque eu via o mal, em figuras visíveis para mim e invisíveis para os outros. Via grandes e hediondas figuras de demônios, agindo entre todos esses homens cruéis; era como se auxiliassem em tudo, aconselhando, passando as ferramentas; havia inúmeras aparições

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de figuras pequenas e medonhas, de sapos, serpentes e dragões de muitas garras, vi todas as espécies de insetos venenosos voarem em redor e escurecerem o ar. Entravam na boca e no coração dos assistentes ou pousavam-Ihes nos ombros; eram homens cujos corações estavam cheios de pensamentos de ódio e maldade ou que proferiam palavras de maldição e escárnio. Acima do Senhor, porém, vi várias vezes, durante a crucifixão, aparecerem grandes figuras angélicas, que choravam e aparições luminosas, nas quais distingui apenas pequenos rostos. Vi aparecer tais Anjos de compaixão e consolo também sobre a Santíssima Virgem e todos os bons, confortando e animando-os. Os carrascos tiraram então o manto do Senhor, que lhe tinham antes enrolado em redor do peito; tiraram-Lhe o cinturão, com as cordas e o próprio cinto. Despiram-na da longa veste de lã branca, passando-a pela cabeça, pois estava aberta no peito, ligada com correias. Depois lhe tiraram a longa faixa estreita, que caia do pescoço sobre os ombros e como não Lhe podiam tirar a túnica sem costuras, por causa da coroa de espinhos, arrancaram-Lhe a coroa da cabeça, reabrindo assim todas as feridas; arregaçando depois a túnica, puxaram-lha, com vis gracejos, pela cabeça ferida e sangrenta. Lá estava o Filho do Homem, coberto de sangue, de contusões, de feridas fechadas ou outras ainda sangrentas, de pisaduras e manchas escuras. Estava apenas vestido ainda do curto escapulário de lã sobre o peito e costas e da faixa que cingia os rins. O escapulário de lã aderira às feridas secas e estava colado com sangue na nova ferida profunda, que o peso da cruz Lhe fizera no ombro e que Lhe causava um sofrimento indizível. Os carrascos arrancaram-lhe o escapulário impiedosamente do peito e assim ficou Jesus em sangrenta nudez, horrivelmente dilacerado e inchado, coberto de chagas. No ombro e nas costas se Lhe viam os ossos, através das feridas e a lã branca do escapulário ainda estava colada em algumas feridas e no sangue ressecado do peito. Arrancaram-Lhe então a última faixa de pano da cintura e eis que ficou de todo nu e curvou-se, cheio de confusão e vergonha; e como estava a ponto de cair, sob as mãos dos carrascos, sentaram-na sobre uma pedra, pondo-Lhe novamente a coroa de espinhos sobre a cabeça e ofereceram-Lhe a beber do outro vaso, que continha vinagre com fel; mas Jesus desviou a cabeça em silêncio. Quando, porém, os carrascos O pegaram pelos braços, com que cobria a nudez e O levantaram, para estendê-Lo sobre a cruz, ouviram-se gritos de indignação e descontentamento e os lamentos dos amigos por essa vergonha e ignomínia. A Mãe Santíssima suplicou a Deus com ardor; já estava a ponto de tirar o véu da cabeça e, abrindo caminho por entre os carrascos, oferecê-Io ao Divino Filho. Mas Deus ouvira-lhe a oração; pois nesse momento um homem, vindo da porta e correndo todo o caminho com as vestes arregaçadas,

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atravessou o povo e precipitou-se ofegante entre os carrascos e entregou um pano a Jesus que, agradecendo-lhe, o aceitou e cobriu a nudez, cingindo-O à moda dos orientais, passando a parte mais comprida por entre as pernas e ligando-a com a outra em redor da cintura. Esse benfeitor do Divino Redentor, enviado para atender à súplica da SS. Virgem, tinha na sua impetuosidade algo de imperioso; ameaçou os carrascos com o punho e disse apenas: "Tomem cuidado de não impedir este homem de cobrir-se." Não falou com ninguém mais e retirou-se tão rapidamente como tinha vindo. Era Jonadab, sobrinho de São José, da região de Belém, filho daquele irmão a quem José, depois do nascimento de Jesus, empenhara o jumento. Não era amigo declarado de Jesus; também nesse dia se tinha mantido afastado e limitara-se a observar tudo de longe. Já quando ouvira contar que Jesus fora despido na flagelação, ficara muito indignado; depois, quando se aproximou a hora da crucifixão, estava no Templo e sentia uma indizível angústia. Quando a Mãe de Jesus, no Gólgota, dirigiu o grito da alma a Deus, sentiu Jonadab de repente um impulso irresistível de correr do Templo ao Calvário para cobrir a nudez do Senhor. Sentia na alma uma viva indignação contra o ato ignominioso de Cam, que rira da nudez de Noé, embriagado pelo vinho e sentiu-se impelido a correr, como um novo Sem, para cobrir a nudez do lagareiro. Os crucificadores eram os Camitas e Jesus pisava as uvas no lagar, para o vinho novo, quando Jonadab veio cobrí-Lo. Essa ação foi o cumprimento de uma figura simbólica do Antigo Testamento e foi mais tarde recompensada, como vi e hei de contar. 2. Jesus é pregado na cruz Jesus, imagem viva da dor, foi estendido pelos carrascos sobre a cruz; Ele próprio se sentou sobre ela e eles brutalmente O deitaram de costas. Colocaram-Lhe a mão direita sobre o orifício do prego, no braço direito da cruz e aí lhe amarraram o braço. Um deles se ajoelhou sobre o santo peito, enquanto outro lhe segurava a mão, que se estava contraindo e um terceiro colocou o cravo grosso e comprido, com a ponta limada, sobre essa mão cheia de bênção e cravou-o nela, com violentas pancadas de um martelo de ferro. Doces, e claros gemidos ouviram-se da boca do Senhor; o sangue sagrado salpicou os braços dos carrascos; rasgaram-Lhe os tendões da mão, os quais foram arrastados, com o prego triangular, para dentro do estreito orifício. Contei as marteladas, mas esqueci, na minha dor, esse número. A Santíssima Virgem gemia baixinho e parecia estar sem sentidos exteriormente; Madalena estava desnorteada. As verrumas eram grandes peças de ferro, da forma de um T; não havia nelas nada de madeira. Também os pesados martelos eram, como

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os cabos, de ferro e todos de uma peça inteiriça; tinham quase a forma dos martelos de pau que os marceneiros usam entre nós, trabalhando com formão. Os cravos, cujo aspecto fizera tremer Jesus, eram de tal tamanho que, seguros pelo punho, excediam em baixp e em cima cerca de uma polegada. Tinham cabeça chata, da largura de uma moeda de cobre, com uma elevação cônica no meio. Tinham três gumes; na parte superior tinham a grossura de um polegar e na parte inferior a de um dedo pequeno; a ponta fora aguçada com uma lima; cravados na cruz, vi-Ihes a ponta sair um pouco do outro lado dos braços da cruz. Depois de terem pregado a mão direita de Nosso Senhor, viram os crucificadores que a mão esquerda, que tinham também amarrado ao braço da cruz, não chegava até o orifício do cravo, que tinham perfurado a duas polegadas distante das pontas dos dedos. Por isso ataram uma corda ao braço esquerdo do Salvador e, apoiando os pés sobre a cruz, puxaram a toda força, até que a mão chegou ao orifício do cravo. Jesus dava gemidos tocantes; pois deslocaram-Lhe inteiramente os braços das articulações; os ombros, violentamente distendidos, formavam grandes cavidades axilares, nos cotovelos se viam as junturas dos ossos. O peito levantou-se-Lhe e as pernas encolheram-se sobre o corpo. Os carrascos ajoelharam-se sobre os braços e o peito, amarraram-lhe fortemente os braços e cravaram-Lhe então cruelmente o segundo prego na mão esquerda; jorrou alto o sangue e ouviram-se os agudos gemidos de Jesus, por entre as pancadas do pesado martelo. Os braços do Senhor estavam tão distendidos, que formavam uma linha reta e não cobriam mais os braços da cruz, que subiam em linha oblíqua; ficava um espaço livre entre esses e as axilas do Divino Mártir. A SS. Virgem sentiu todas essas torturas com Jesus; estava de uma palidez cadavérica e fracos gemidos saiam-lhe da boca. Os fariseus dirigiram insultos e zombarias para o lado onde ela estava; por isso os amigos conduziram-na para junto das outras santas mulheres, que estavam um pouco mais afastadas do lugar do suplício. Madalena estava como louca; feria o rosto de modo que tinha as faces e os olhos cheios de sangue. Havia na cruz, em baixo, talvez a um terço da respectiva altura, uma peça de madeira, fixa por um prego muito grande, destinada a suportar os pés de Jesus, afim de que ficasse mais em pé do que suspenso; de outro modo as mãos teriam sido rasgadas pelo peso do corpo e os pés não poderiam ser pregados sem quebrá-Ios. Nessa peça de madeira tinham perfurado o orifício para o cravo. Tinham também feito uma cavidade para os calcanhares, como também havia outras, em vários pontos da cruz, para que o Mártir pudesse ficar suspenso mais tempo e o peso do corpo não Lhe rasgasse as mãos, fazendo-O cair.

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Todo o corpo de nosso Salvador tinha-se contraído para o alto da cruz, pela violenta extensão dos braços e os joelhos tinham-se-Lhe dobrado. Os carrascos lançaram-se então sobre esses e, por meio de cordas, amarraram-nos ao tronco da cruz; mas pela posição errada dos orifícios dos cravos, os pés ficavam longe da peça de madeira que os devia suportar. Então começaram os carrascos a praguejar e insultar. Alguns julgavam que se deviam furar outros orifícios para os pregos das mãos; pois mudar o suporte dos pés era difícil. Outros fizeram horrível troça de Jesus: "Ele não quer estender-se, disseram, mas nós Lhe ajudaremos." Atando cordas à perna direita, puxaram-na com horrível violência, até o pé tocar no suporte e amarraram-na à cruz. Foi uma deslocação tão horrível, que se ouvia estalar o peito de Jesus, que gemia alto: "Ó meu Deus! Meu Deus!" Tinham-Lhe amarrado também o peito e os braços, para os pregos não rasgarem as mãos; o ventre encolheu-se-Lhe inteiramente, as costelas pareciam a ponto de destacar-se do esterno. Foi uma tortura horrorosa. Amarraram depois o pé esquerdo com a mesma brutal violência, colocando-o sobre o pé direito e como os pés não repousavam com bastante firmeza sobre o suporte, para serem pregados juntos, perfuraram primeiro o peito do pé esquerdo com um prego mais fino e de cabeça mais chata do que os cravos, como se fura a sovela. Feito isso, tomaram o cravo mais comprido que o das mãos, o mais horrível de todos e, passando-o brutalmente pelo furo feito no pé esquerdo, atravessaramlhe a marteladas o direito, cujos ossos estalavam, até o cravo entrar no orifício do suporte e, através desse, no tronco da cruz. Olhando de lado a cruz, vi como o prego atravessou os dois pés. Essa tortura era a mais dolorosa de todas, por causa da distensão de todo o corpo. Contei 36 golpes de martelo, no meio dos gemidos claros e penetrantes do pobre Salvador; as vozes em redor, que proferiam insultos e maldições, pareciam-me sombrias e sinistras. A Santíssima Virgem tinha voltado ao lugar do suplício; a deslocação do corpo do Filho adorado, o som das marteladas e os gemidos de Jesus, causaram-lhe tão veemente dor e compaixão, que caiu novamente nos braços das companheiras, o que provocou um ajuntamento de povo. Então acorreram alguns fariseus a cavalo, insultando-as e os amigos afastaram-na outra vez a alguma distância. Durante a crucifixão e a elevação da cruz, que se lhe seguiu, se ouviam, especialmente entre as mulheres, gritos de compaixão, como: "Porque a terra não traga esses miseráveis? Porque não cai fogo do céu, para os devorar?" - A essas manifes- tações de amor respondiam os carrascos com insultos e escárnio. Os gemidos que a dor arrancava de Jesus, misturavam-se com contínua oração; recitava trechos dos salmos e dos profetas,

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cujas predições nessa hora cumpria; em todo o caminho da cruz, até à morte, não cessa va de rezar assim e de cumprir as profecias. Ouvi e rezei com Ele todas essas passagens e às vezes me lembro delas, quando rezo os salmos; mas fiquei tão acabrunhada com o martírio de meu Esposo celeste, que não sei mais juntá-Ias. - Durante esse horrível suplício, vi Anjos a chorar aparecerem acima de Jesus. O comandante da guarda romana fizera pregar no alto da cruz a tábua, como titulo que Pilatos escrevera. Os fariseus estavam indignados porque os romanos se riam alto do título "Rei dos judeus." Por isso voltaram alguns fariseus à cidade, depois de ter tomado medida para uma outra inscrição, para pedir a Pilatos novamente outro título. Enquanto Jesus era pregado à cruz, estavam ainda alguns homens a trabalhar na escavação em que a cruz devia ser colocada; pois era estreita a cova e a rocha muito dura. Alguns dos carrascos, em vez de dar a Jesus para beber o vinho aromático trazido pelas santas mulheres, be beram-no eles mesmos e ficaram embriagados; queimava-Ihes as entra nhas e causava-Ihes tanta dor nos intestinos, que ficaram desvairados; insultavam a Jesus, chamando-O de feiticeiro e enfureciam-se à vista da paciência do Divino Mestre; desceram várias vezes o Calvário, a correr, para beber leite de jumenta. Havia lá perto algumas mulheres, que per- tenciam a um acampamento de peregrinos, vindos para a festa da Páscoa, as quais tinham jumentas, cujo leite vendiam. Pela posição do sol era cerca de doze horas e um quarto, quando Jesus foi crucificado. No momento em que elevaram a cruz, ouviu-se do Templo o soar de muitas trombetas: Era a hora em que imolavam o cor deiro pascal. 3. Elevação da cruz Depois de terem pregado Nosso Senhor à cruz, ataram cordas na parte superior da mesma, por meio de argolas, lançaram as cordas sobre o cavalete antes erigido no lado oposto e puxaram a cruz pelas cordas, de modo que a parte superior se lhe ergueu; alguns dirigiram-se com paus munidos de ganchos, que fincaram no tronco e fizeram o pé da cruz entrar na cova. Quando o madeiro chegou à posição vertical, entrou na escavação com todo o peso e tocou no fundo com um terrível choque. A cruz tremeu do abalo e Jesus soltou um grito de dor; pelo peso vertical desceu-lhe o corpo, as feridas alargaram-se-Lhe, o sangue corria mais abundantemente e os ossos deslocados entrechocaram-se. Os carrascos ainda sacudiram a cruz, para a por mais firme e fincaram cinco cunhas na cova, em redor da cruz: uma na frente, uma do lado direito, outra à esquerda e duas atrás, onde o madeiro estava um pouco arredondado.

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Foi uma impressão terrível e ao mesmo tempo comovedora, quando, sob os gritos insultuosos dos carrascos e dos fariseus, como também de muitos homens do povo, mais afastados, a cruz se elevou, balançando e entrou estremecendo na escavação; ouviram-se também vozes piedosas de compaixão, as vozes mais santas da terra: a da Mãe Santíssima, de João, das amigas e de todos que tinham um coração puro, saudaram com expressão dolorosa o Verbo eterno, feito carne e elevado sobre a cruz. Estenderam as mãos ansiosamente como para o segurar, quando o Santo dos santos, o Esposo de todas as Almas, pregado vivo na cruz, foi elevado pelas mãos dos pecadores enfurecidos. Quando, porém, o madeiro erguido com estrondo, entrou na respectiva cova, houve um momento de silêncio solene; todo o mundo parecia experimentar uma sensação nova, nunca até então sentida. O próprio inferno sentiu assustado o choque do lenho sobre a rocha e levantou-se contra ele, redobrando nos seus instrumentos humanos o seu furor e os insultos. Nas almas do purgatório e do limbo, porém, causou alegria e esperança: soava-Ihes como o bater do triunfador às portas da Redenção. A santa Cruz estava pela primeira vez plantada no meio da terra, como aquela árvore da vida no Paraíso e das chagas dilatadas do Cristo corriam quatro rios santos sobre a terra, para expiar a maldição, que pesava sobre ela e para fertilizar e a tomar um paraíso do novo Adão. Quando nosso Salvador foi elevado na cruz e os gritos de insulto foram interrompidos por alguns minutos de silencioso espanto, ouviase do Templo o som de muitas trombetas, que anunciavam o começo da imolação do cordeiro pascal, do símbolo, interrompendo de um modo solene e significativo os gritos de furor e de dor, em redor do verdadeiro , Cordeiro de Deus, imolado na cruz. Muitos corações endurecidos foram abalados e pensaram nas palavras do precursor, João Batista: "Eis aí o Cordeiro de Deus, que tomou sobre si os pecados do mundo.” O lugar onde fora plantada a cruz, estava elevado cerca de dois pés acima do terreno em redor. Quando a cruz ainda se achava fora da cova, estavam os pés de Jesus à altura de um homem, mas depois de introduzida na respectiva escavação, podiam os amigos chegar aos pés do Mestre, para os abraçar e beijar. Havia um caminho para essa elevação. O rosto de Jesus estava virado para nordeste. 4. A crucificação dos ladrões Durante a crucifixão do Senhor jaziam os ladrões, de costas, com as mãos ainda amarradas aos madeiros transversais das cruzes, que tinham sobre a nuca, ao lado do caminho, na encosta oriental do Calvário; estava com eles uma guarda. Suspeitos de terem assassinado uma mulher judaica, com os filhos, no caminho de Jerusalém a Jope, foram presos num castelo daquela região, onde

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morava às vezes Pilatos, por ocasião das manobras do exército e onde se apresentaram como ricos negociantes. Tinham estado muito tempo no cárcere, antes do julgamento e da condenação. Esqueci os pormenores. O ladrão do lado esquerdo era o mais velho e grande criminoso, o sedutor e mestre do outro. Geralmente são chamados Dimas e Gesmas; esqueci-Ihes os nomes verdadeiros; vou chamar, por isso, ao bom Dimas e ao mau Gesmas. Ambos pertenciam à quadrilha de salteadores que, nas fronteiras do Egito, tinham dado agasalho à Sagrada Família, com o menino Jesus, na fuga para o Egito. Dimas fora o menino morfético que, a conselho de Maria, fora lavado pela mãe na água em que o menino Jesus se tinha banhado e que ficara curado no mesmo instante. A caridade e a proteção que a mãe proporcionara à Sagrada Família, fora recompensada naquela ocasião pela cura simbólica, que se realizou na cruz, quando foi limpo pelo sangue de Jesus. Dimas caíra em muitos crimes, mas não era perverso; não conhecia Jesus, a paciência do Senhor comoveu-o. Enquanto jaziam por terra, falava sem cessar de Jesus com o companheiro: "Maltratam horrivelmente este Galileu, dizia, o que Ele fez, pregando a nova doutrina, deve ser pior do que os nossos crimes; mas Ele tem grande paciência e poder sobre todos os homens." - Gesmas respondeu: "Que poder tem? Se fosse tão poderoso, como dizem, podia salvarnos todos." Desse modo continuavam a falar e quando a cruz do Senhor foi elevada, vieram carrascos dizer-Ihes: "Agora é a vossa vez" e arrastaram-nos para o lugar do suplício. Desamarraram-nos dos madeiros transversais a toda a pressa, pois o sol já se escurecia e havia um movimento na natureza: como se uma tempestade se aproximasse. Os carrascos encostaram escadas às árvores das cruzes e ajustaram os lenhos transversais em cima, com cavilhas. Foram então colocadas duas escadas junto à cruz, para os carrascos. No entanto deram a beber aos ladrões vinagre misturado com mirra e vestiram-Ihes o gibão já roto, ataram-Ihes cordas nos braços e lançando-as sobre os braços da cruz, puxaram-nos para cima, obrigando-os, a pancadas e pauladas, a subir pelos paus que estavam fincados no tronco das cruzes. Nos madeiros transversais e nos troncos já estavam amarradas as cordas, que pareciam ser feitas de cortiça torcida. Os braços dos condenados foram amar-rados aos madeiros transversais; ataram-Ihes os pulsos e cotovelos, como também os joelhos e os pés à cruz e apertaram-nos com tanta violência, torcendo as cordas por meio de paus, que os ossos estalavam e o sangue Ihes esguichou dos músculos. Os infelizes soltaram gritos horríveis e Dimas, o bom ladrão, disse: "Se nos tivésseis tratado como a este Galileu, não teríeis mais o trabalho de puxar-nos aqui para cima.” 5. Os carrascos tiram à sorte as vestes de Jesus

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Os carrascos juntaram as vestes de Jesus no lugar onde tinham jazido os ladrões e fizeram delas vários lotes, para tirar à sorte. O manto era mais largo em baixo do que em cima e tinha várias pregas; sobre o peito estava dobrado e formava assim bolsos. Rasgaram-no em várias tiras, como também a longa veste branca, aberta no peito, onde havia correias para atá-Ia e distribuíram-nas pelos lotes; assim fizeram também várias partes da faixa de pano que vestia em volta do pescoço, do cinto, do escapulário e do pano com que cobria o corpo; todas essas vestes estavam ensopadas do sangue de Nosso Senhor. Como, porém, não chegaram a um acordo a respeito da túnica sem costuras, que, rasgada em partes, não serviria mais para nada, tomaram uma tabuleta com algarismos e dados em forma de favas, com marcas, que trouxeram consigo e jogando esses dados, tiraram à sorte a túnica. Viu-lhes. porém, um mensageiro de Nicodemos e José de Arimatéia, dizendo-lhe que ao pé do Cal vário havia quem quisesse comprar as vestes de Jesus; juntaram então depressa todas as vestes e, correndo para baixo, venderam-nas; assim ficaram essas relíquias com os cristãos. 6. Jesus crucificado e os ladrões Depois do violento choque da cruz, a cabeça de Jesus, coroada de espinhos, foi fortemente abalada e derramou grande abundância de sangue; também das chagas das mãos e dos pés correu o sangue em torrentes. Os carrascos subiram então pelas escadas e desataram as cordas com que tinham amarrado o santo corpo, para que o abalo não o fizesse cair. O sangue, cuja circulação fora quase impedida pela forte pressão das cordas e pela posição horizontal, afluiu-Lhe então de novo por todo o corpo e as chagas, renovando todas as dores e causando-Lhe um forte atordoamento. Jesus deixou cair a cabeça sobre o peito e ficou suspenso como morto, cerca de sete minutos. Houve um momento de calma. Os carrascos estavam ocupados em repartir as vestes de Jesus; o som das trombetas perdia-se no ar, todos os assistentes estavam exaustos de raiva ou de dor. Olhei, cheia de susto e compaixão, para meu Jesus, meu Salvador, a Salvação do mundo; vi-O imóvel, desfalecido de dor, como morto e eu também estava àmorte; pensava antes morrer do que viver. Minha alma estava cheia de amargura, de amor e dor; minha cabeça, que eu sentia cercada de uma rede de espinhos, fazia-me quase endoidecer de dor; minhas mãos e meus pés eram como fornalhas ardentes; dores indizíveis passavam-me, como milhares de raios, pelas veias e nervos, encontrando-se e lutando em todos os membros interiores e exteriores de meu corpo, tornando-se uma nova fonte de sofrimentos. E todos esses terríveis tormentos não eram senão

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amor e todo esse fogo penetrante de dores era contudo uma noite, em que não via senão meu Esposo, o Esposo de todas as almas, pregado à cruz e contemplava-O com muita tristeza e muita consolação. A cabeça de Jesus, com a horrível coroa, com o sangue que Lhe enchia os olhos, os cabelos, a barba e a boca ardente, meio entreaberta, tinha caído sobre o peito e também mais tarde só podia levantar-se com indizível tortura, por causa da larga coroa de espinhos. O peito do Divino Mártir estava violentamente dilatado e alçado; os ombros, os cotovelos e os pulsos distendidos até saírem fora das articulações; o sangue corria-Lhe das largas feridas das mãos sobre os braços; o peito levantado deixava em baixo uma cavidade profunda; o ventre estava encolhido e diminuído; como os braços, estavam também as coxas e pernas horri-velmente deslocadas. Os membros estavam tão horrivelmente distendidos e os músculos e a pele a tal ponto esticados, que se podiam contar os ossos. O sangue escorria-Lhe em redor do enorme prego que Lhe traspassava os pés sagrados, regando a árvore da cruz. O santo corpo estava todo coberto de chagas, pisaduras vermelhas, manchas amarelas, pardas e roxas, inchaços e lugares escoriados. As feridas reabriram-se, pela violenta distensão dos músculos e sangravam em vários lugares; o sangue que corria, era a princípio ainda vermelho, mas pouco a pouco se tomou pálido e aquoso e o santo corpo cada vez mais branco; por fim. tomou a cor de carne sem sangue. Mas, apesar de toda essa cruel desfiguração, o corpo de Nosso Senhor na cruz tinha um aspecto extremamente nobre e comovedor; na verdade, o Filho de Deus, o Amor Eterno, que se sacrificou no tempo, permaneceu belo, puro e santo nesse corpo do Cordeiro pascal moribundo, esmagado pelo peso dos peca- dos de toda a humanidade. A pele da Santíssima Virgem, como a de N. Senhor, tinha por natureza, uma bela cor ligeiramente amarelada, mesclada de um vermelho trans parente. As fadigas e as viagens do Mestre nos anos anteriores, lhe tinham tornado as faces, sob os olhos e a cana do nariz um pouco tostadas pelo sol. Jesus tinha um peito largo e forte, branco e sem pêlo, enquanto o de João Batista estava todo coberto de pelo ruivo. Tinha ombros largos e os músculos dos braços bem desenvolvidos; as coxas eram nervosas e musculosas, os joelhos fortes e robustos, como os de um homem que tem andado muito e rezado muito de joelhos. Tinha as pernas compridas e a barriga das pernas fortes, de muito viajar em terras montanhosas. Os pés eram belos e bem desenvolvidos, a planta dos pés tinha-se tomado calosa, porque geralmente andava descalço por caminhos rudes. As mãos eram de bela forma, com os dedos longos e delga-dos, não delicados demais, mas também não como as de um homem que as emprega em trabalhos pesados. Não tinha o pescoço curto, mas forte e musculoso. A cabeça tinha boas proporções, não grande

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demais; a testa era alta e larga e todo o rosto de um belo e puro oval. O cabelo, de um castanho avermelhado, não muito grosso, singelamente repartido no alto da cabeça, caia-Lhe sobre os ombros; a barba não era comprida, mas aparada em ponta e repartida sob o queixo. Agora, porém, o cabelo fora arrancado em grande parte, o resto colado com sangue; o corpo era uma só chaga, o peito estava como que despedaçado, o ventre escavado e encolhido; em vários lugares se viam as costelas, através da pele lacerada; todo o corpo estava de tal modo distendido e alongado, que não cobria mais inteiramente o tronco da cruz. O madeiro era um pouco arredondado do lado posterior, na frente liso, com várias escavações; a largura igualava-lhe mais ou menos a grossura. As diversas partes da cruz eram de madeira de diferentes cores, umas pardas, outras amareladas; o tronco era mais escuro, como madeira que tem estado muito tempo na água. As cruzes dos ladrões, trabalhadas mais grosseiramente, foram instaladas do lado direito e esquerdo do cume, a tal distância da cruz de Jesus, que um homem podia passar a cavalo entre elas; estavam um pouco mais baixo e colocadas de modo que olhavam um para o outro. Um dos ladrões rezava, o outro insultava Jesus que, olhando para baixo, disse uma coisa a Dimas. O aspecto dos ladrões na cruz era horrendo, especialmente o do que ficava à esquerda, criminoso enraivecido, embriagado, de cuja boca só saiam insultos e maldições. Os corpos, pendentes da cruz, estavam horrivelmente deslocados, inchados e cruelmente amarrados. Os rostos tornaram-se-Ihes roxos e pardos, os lábios escuros, tanto da bebida, como da pressão do sangue; os olhos inchados e vermelhos, quase a sair das órbitas. Soltavam gritos e uivos de dor, que Ihes causavam as cordas; Gesmas praguejava e blasfemava. Os pregos com que os madeiros transversais foram ajustados ao tronco, forçavam-nos a curvar a cabeça. Moviam-se e torciam-se convulsivamente na tortura e apesar das pernas estarem fortemente amarradas, um deles conseguiu puxar um pé para cima, de modo que o joelho dobrado se lhe ergueu um pouco. 7. Primeira palavra de Jesus na cruz Depois de crucificar os ladrões e de repartir as vestes do Senhor, juntaram os carrascos todos os instrumentos e ferramentas e, insultando e escarnecendo mais uma vez a Jesus, foram-se embora. Também os fariseus, que ainda estavam, montaram nos cavalos e passando diante de Jesus, dirigiram-lhe muitas palavras insultuosas e seguiram para a cidade. Os cem soldados romanos, com os respectivos comandantes, puseram-se também em marcha, pois veio outro destacamento, de cinqüenta soldados romanos,

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ocupar-Ihes o lugar. Esse destacamento era comandado por Abenadar, árabe de nascimento, que mais tarde, no batisrrlo, recebeu o nome de Ctesifon. O oficial subalterno que estava com essa tropa, chamava-se Cassius; era também muitas vezes encarre-gado por Pilatos de levar mensagens; recebeu depois o nome de Longinus. Vieram também a cavalo doze escribas e alguns anciãos do povo, entre os quais os que foram pedir mais uma vez outra inscrição para o título da cruz; Pilatos nem os tinha deixado entrar. Cheios de raiva, andaram a cavalo em redor do lugar do suplício e expulsaram dali a Santíssima Virgem, chamando-a de mulher perdida. João levou-a para junto das outras mulheres, que estavam mais afastadas; Madalena e Marta ampararam-na nos braços. Quando, fazendo a volta da cruz, chegaram diante de Jesus, balançaram a cabeça, dizendo: "Arre! Impostor! Como é que destróis o Templo e o reedificas em três dias? Queria sempre socorrer os outros e agora não se pode salvar a si mesmo. - Se és o Filho de Deus, desce da cruz. Se é o rei de Israel, então desça da cruz e creremos nEle. Sempre confiava em Deus, que Ele venha salvá-Lo agora." Os soldados também zombavam, dizendo: "Se és o rei dos judeus, salva-te agora.” Quando "Jesus ainda pendia desmaiado, disse Gesmas, o ladrão à esquerda: "O demônio abandonou-O." Um soldado fincou então uma esponja embebida em vinagre sobre a ponta de uma vara e chegou-a aos lábios de Jesus, que pareceu chupar um pouco. As zombarias continuavam. O soldado disse: "Se és o rei dos judeus, salva-te." Tudo isso se deu enquanto o destacamento anterior era substituído pelo de Abenadar. Jesus levantou um pouco a cabeça e disse: "Meu Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem"; depois continuou a rezar em silêncio. Então gritou Gesmas: "Se és o Cristo, salva-te a ti e a nós." Escarneciam-nO sem cessar; mas Dimas, o ladrão da direita, ficou muito comovido, ouvindo Jesus rezar pelos inimigos. Quando Maria ouviu a voz de seu Filho, ninguém mais pôde retê-Ia: penetrou no círculo do suplício; João, Salomé e Maria, filha de Cleofas, seguiramna. O centurião não as expulsou. Dimas, o bom ladrão, obteve pela oração de Jesus uma Iluminação Interior, no momento em que a Santíssima Virgem se aproximou. Reconheceu em Jesus e em Maria as pessoas que o tinham curado, quando era criança e exclamou em voz forte e distinta: "O que? É'possível que insulteis Àquele que reza por vós? Ele se cala, sofre com paciência, reza por vós e vós o cobris de escárnio? Ele é um profeta, é nosso rei, é o Filho de Deus." A essa inesperada repreensão da boca de um miserável assassino, suspenso na cruz, deu-se um tumulto entre os escarnecedores; apanhando pedras, quiseram apedrejá-Io ali mesmo. Mas o centurião Abenadar não o permitiu; mandou dispersá-Ios e restabeleceu a ordem. Durante esse tempo a Santíssima Virgem se sentia confortada

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pela oração de Jesus. Dimas, porém, disse a Gesmas, que gritara a Jesus: "Se és o Cristo, salva-te a ti e a nós" - "Também tu não temes a Deus, apesar de sofreres o mesmo suplício que Ele? Quanto a nós, é muito justo, pois recebemos o castigo de nossos crimes; este, porém, não fez mal algum. Pensa nisto, nesta última hora e converte-te de coração." Essas palavras e outras mais disse a Gesmas, pois estava todo comovido e iluminado pela graça; confessou suas faltas a Jesus e disse: "Senhor, se me condenardes, será muito justo; mas tende misericórdia de mim." Respondeu Jesus: "Experimentarás a minha misericórdia." Dimas recebeu, por um quarto de hora, a graça de um profundo arrependimento. Tudo que acabo de contar agora, se deu pela maior parte ao mesmo tempo ou sucessivamente, entre as doze horas e doze e meia, pelo sol, alguns minutos depois da exaltação da cruz. Mas dai a pouco mudaram rapidamente os sentimentos nos corações da maior parte dos assisten tes; pois enquanto o bom ladrão ainda estava falando, eis que se deu na natureza um fenômeno extraordinário, que encheu de pavor todos os corações. 8. Eclipse do sol. Segunda e terceira palavra de Jesus na cruz Até pelas 10 horas, quando Pilatos pronunciou a sentença, caíra várias vezes chuva de pedra; depois, até às 12 horas, o céu estava claro e havia sol; mas depois do meio dia, apareceu uma neblina vermelha, sombria, diante do sol. Pela sexta hora, porém, ou como vi pelo sol, mais ou menos às doze e meia, (a maneira dos judeus de contar as horas é diferente da nossa) houve um eclipse milagroso do sol. Vi como isso se deu, mas infelizmente não pude guardá-Io na memória e não tenho palavras para o exprimir. A princípio fui transportada como para fora da terra; vi muitas divisões no firmamento e os caminhos dos astros, que se cruzavam de modo maravilhoso. Vi a lua do outro lado da terra; vi-a voar rapidamente ou dar um salto, como um globo de fogo; depois me achei novamente em Jerusalém e vi a lua aparecer sobre o monte das Oliveiras, cheia e pálida, - o sol estava velado pelo nevoeiro, - e ela se moveu rapidamente do oriente, para se colocar diante do sol. No começo vi, no lado oriental do sol, uma lista escura, que tomou em pouco tempo a forma de uma montanha, cobrindo-o depois inteiramente. O disco do sol parecia cinzento escuro, rodeado de um círculo vermelho, como uma argola de ferro em brasa. O céu tomou-se escuro; as estrelas tinham um brilho vermelho. Um pavor geral apoderou-se dos homens e dos animais, o gado fugiu mugindo, as aves procuravam um esconderijo e caiam em bandos sobre as colinas em redor do Cal vário; podiam-se apanhá-Ias com as mãos. Os zombadores começaram a calar-se; os fariseus tentavam explicar tudo como fenômeno natural, mas não conse~ guiram acalmar o povo e eles mesmos ficaram interiormente apavorados. Todo o mundo olhava para o céu; muitos batiam no peito e, torcendo

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as mãos, exclamavam: "Que o seu sangue caia sobre os seus assassinos." Muitos, de perto e de longe, caíram de joelhos, pedindo perdão a Jesus, que no meio das dores volvia os olhos para eles. A escuridão aumentava, todos olhavam para o céu e o Cal vário estava deserto; ali permaneciam apenas a Mãe de Jesus e os mais íntimos amigos; Dimas, que estivera mergulhado em profundo arrependimento, levantou com humilde esperança o rosto para o Salvador e disse: "Senhor, fazei-me entrar num lugar onde me possais salvar; lembrai-vos de mim, quando estiverdes no vosso reino." Jesus respondeu-lhe: "Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso.” A Mãe de Jesus, Madalena, Maria de Cléofas, Maria Helí e João estavam entre as cruzes dos ladrões, em redor da cruz de Jesus, olhando para Nosso Senhor. A Santíssima Virgem, em seu amor de mãe, suplicava interiormente a Jesus que a deixasse morrer com Ele. Então olhou o Senhor com inefável ternura para a Mãe querida e, volvendo os olhos para João, disse a Maria: "Mulher, eis aí o teu filho; será mais teu filho do que se tivesse nascido de ti." Elogiou ainda João, dizendo: "Ele teve sempre uma fé sincera e nunca se escandalizou, a não ser quando a mãe quis que fosse elevado acima dos outros." A João, porém, disse: "Eis aí tua Mãe!" João abraçou com muito respeito, como um filho piedoso, a Mãe de Jesus, que se tinha tornado também sua Mãe, sob a cruz do Redentor moribundo. A SS. Virgem ficou tão abalada de dor, após essas solenes disposições do Filho moribundo, que, caindo nos braços das santas mulheres, perdeu os sentidos exteriormente; levaram-na para o aterro em frente à cruz, onde a sentaram por algum tempo e depois a conduziram para fora do círculo, para junto das outras amigas. Não sei se Jesus pronunciou alto todas essas palavras; percebi-as interiormente, quando, antes de morrer, entregou Maria Santíssima, como Mãe, ao Apóstolo querido e este, como filho, a sua Mãe. Em tais con templações se percebem muitas coisas, que não foram escritas; é pouco apenas o que pode exprimir a língua humana. O que lá é tão claro, que se julga compreender por si mesmo, não se sabe explicar com palavras. Assim não é de admirar que Jesus, dirigindo-se à Santíssima Virgem, não dissesse: "Mãe", mas mulher"; pois que ela ali estava na sua digni dade de mulher que devia esmagar a cabeça da serpente, naquela hora em que aquela promessa se realizava, pelo sacrifício do Filho do Homem, seu próprio filho. Não era de admirar lá que Jesus desse João por filho àquela a quem o Anjo saudava: "Ave Maria, cheia de graça", porque o nome de João significa "graça"; pois todos são o que os respectivos nomes significam e João tornara-se filho de Deus e Jesus Cristo vivia nele. Percebia-se que Jesus, naquele momento, dava com aquelas palavras uma mãe, Maria, a todos que, como João,

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O recebem e, crendo nEle, se tornam filhos de Deus, que não foram nascidos do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas do próprio Deus. Sentia-se que a mais pura, a mais humilde, a mais obediente de todas as mulheres, que se tomara a Mãe do Verbo feito carne, respondendo ao Anjo: "Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra!", agora, ouvindo do Filho moribundo que se devia tornar Mãe espiritual de outro filho, dizia, obediente e humilde, as mesmas palavras, no íntimo do coração, dilacerado das dores da separação: "Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra", aceitando assim por filhos todos os filhos de Deus, todos os irmãos de Jesus. Tudo isso parece lá tão simples e necessário, mas aqui é tão diferente, que é mais fácil sentí-Io, pela graça de Deus, do que o exprimir em palavras. 9. Estado da cidade e do Templo durante o eclipse do sol Eram mais ou menos duas horas e meia, quando fui conduzida à cidade, para ver o que lá se passava. Encontrei-a cheia de pavor e consternação; as ruas em trevas, cobertas de nevoeiro; os homens erravam cá e lá, às apalpadelas; muitos estavam prostrados por terra, nos cantos, com a cabeça coberta, batendo no peito; outros olhavam para o céu ou estavam sobre os telhados, lamentando-se. Os animais mugiam e escondiam-se, os pássaros voavam baixo e caiam. Vi que Pilatos fizera uma 'visita a Herodes e que estavam consternados, no mesmo terraço do qual Herodes, de manhã, assistira ao escárnio de que Jesus fora alvo. "Isto não é natural", disseram, "excederam-se nos maus tratos infligidos ao Nazareno." Vi-os depois irem juntos ao palácio de Pilatos, atravessando o fórum; ambos estavam muito assustados, indo a passos apressados e cercados de soldados. Pilatos não ousou olhar para o lado do Gábata, o tribunal donde tinha pronunciado a sentença contra Jesus. O fórum estava deserto; aqui e acolá alguns homens voltavam apressadamente para casa, outros passavam chorando. Juntavam-se também alguns grupos de povo nas praças públicas. Pilatos mandou chamar os anciãos do povo ao palácio e pergun-tou-Ihes o que significavam aquelas trevas; disse-Ihes que as tomava por um sinal de desgraça iminente; o Deus dos judeus parecia estar irado porque haviam exigido à força a morte do galileu, que certamente era profeta e rei dos judeus; enquanto ele, Pilatos, não tinha culpa, lavara, as mãos, etc. Os judeus, porém, ficaram endurecidos, queriam explicar tudo como fenômeno comum e não se converteram. Converteu-se, contudo, muita gente, entre outros também todos os soldados que, na véspera, tinham caído por terra e se levantado, quando prenderam Jesus no monte das Oliveiras.

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No entanto juntou-se uma multidão de povo diante do palácio de Pilatos e onde de manhã tinham gritado: "Crucifica-o! crucifica-o!", gritavam agora: "Fora o juiz injusto! Que o sangue do Crucificado caia sobre os seus assassinos!" Pilatos viu-se obrigado a rodear-se de guardas. Zodóc, que, de manhã, quando Jesus fora conduzido ao pretório, lhe proclamara alto a inocência, agitou-se e falou com tal energia diante do palácio, que Pilatos esteve a ponto de mandá-Io prender. Pilatos, o miserável desalmado, atribuiu toda a culpa aos judeus: disse que não tinha nada com isso, que Jesus era o rei, o profeta, o Santo dos judeus, a quem estes tinham levado à morte e nada tinha com Ele, nem lhe cabia culpa; os próprios judeus é que lhe tinham exigido a morte, etc.". No Templo reinava extremo susto e terror. Estavam ocupados na imolação do cordeiro pascal, quando veio de repente a escuridão. Tudo estava em confusão e aqui e acolá se ouviam gritos angustiantes. Os príncipes dos sacerdotes fizeram tudo para conservar a calma e a ordem: fizeram acender todas as lâmpadas, apesar de ser meio dia, mas a confusão crescia cada vez mais. Vi Anás preso de susto e terror; corria de um canto a outro, para se esconder. Quando tornei a sair da cidade, ouvi as grades das janelas das casas tremerem, sem haver tempestade. A escuridão crescia cada vez mais. Na parte exterior da cidade, ao noroeste, perto do muro, onde havia muitos jardins e sepulturas, desabaram algumas entradas de sepulcros, como se houvesse um tremor de terra. 10. Abandono de Jesus. A quarta palavra de Jesus na cruz Sobre o Gólgota fizeram as trevas uma impressão terrível. A horrorosa fúria dos carrascos, os gritos e maldições na elevação da cruz, os uivos dos ladrões ao serem amarrados ao madeiro, os insultos dos fariseus a cavalo, o revezar dos soldados, a barulhenta partida dos carrascos embriagados, tudo isso diminuíra a princípio um pouco o efeito das trevas. Seguiram-se depois as repreensões do ladrão penitente, Dimas e a raiva dos fariseus contra ele. Mas à medida que crescia a escuridão, tornavam-se mais pensativos os espectadores, afastando-se da cruz. Foi então que Jesus recomendou sua Mãe a João e que Maria foi conduzida a alguma distância do lugar do suplício. Houve um momento de solene silêncio; o povo estava assustado com as trevas; a maior parte olhava para o céu; em muitos corações se levantou a voz da consciência; muitos se arrependeram e, olhando para a cruz, bateram no peito; pouco a pouco se formaram grupos de pessoas que sentiam essas mesmas impressões. Os fariseus, ocultando o terror, ainda procuravam explicar tudo pelas leis naturais, mas baixavam cada vez mais a voz e afinal quase não

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ousavam mais falar; de vez em quando ainda proferiam uma palavra insolente, mas soava um tanto forçada. O disco do sol estava meio escuro, como uma montanha ao luar; estava rodeado de um anel vermelho. As estrelas tinham um brilho rubro; os pássaros caiam sobre o Cal vário e nas vinhas vizinhas entre os homens e deixavam-se pegar com a mão; os animais dos arredores mugiam e tremiam; os cavalos e jumentos dos fariseus apertavam-se uns de encontro aos outros, baixando as cabeças. O nevoeiro úmido envolvia tudo. Em redor da cruz reinava silêncio; todos se tinham afastado, muitos fugiram para a cidade. O Salvador, naquele infinito martírio, mergulhado no mais profundo abandono, dirigindo-se ao Pai celestial, rezava pelos inimigos, impelido pelo amor. Rezava, como durante toda a Paixão, recitando versos de salmos que nEle se cumpriam. Vi figuras de Anjos em redor d’Ele. Quando, porém, a escuridão cresceu e o terror pesava sobre todas as consciências e todo o povo estava em sombrio silêncio, ficou Jesus abandonado de todos e privado de toda a consolação. Sofria tudo quanto sofre um pobre homem, aflito e esmagado pelo absoluto abandono, sem consolação divina ou humana, quando a fé, a esperança e a caridade, privadas de iluminação e consolo, de visível assistência, ficam sozinhas no deserto da provação, vivendo de si mesmas, num infinito martírio. Tal sofrimento não se pode exprimir. Nessa tortura moral, Jesus nos alcançou a força de resistirmos na extrema miséria do abandono, quando se rompem todos os laços e relações com a existência e a vida terrena com o mundo e a natureza em que vivemos, quando se desfazem também as perspectivas que esta vida em si nos abre, para outra existên-cia; nessa provação venceremos, se unirmos nosso abandono com os merecimentos do abandono de Jesus na cruz. O Salvador conquistou-nos os méritos da perseverança, na extrema luta do absoluto abandono e ofereceu por nós, pecadores, a miséria, a pobreza, o martírio, o abandono, que sofreu na cruz, de modo que o homem, unido a Jesus no seio da Igreja, não deve mais desesperar na hora extrema, quando tudo se escurece e toda a luz e consolação acaba. Não temos mais de descer nesse deserto da noite interior, sozinhos e sem proteção. Jesus lançou no abismo desse mar de amargura, o abandono exterior e interior que padeceu na cruz e assim não mais deixou os cristãos desamparados no abandono da morte, quando desaparece toda a consolação. Não há mais para o cristão nem deserto, nem solidão, nem abandono, nem desespero, na hora da morte, no último combate; pois o Salvador, a luz, o caminho e a verdade, também andou por esse caminho tenebroso, derramando bênçãos e vencendo todos os terrores e erigiu sua cruz também nesse deserto. Jesus, inteiramente desamparado e abandonado, ofereceu-se, como faz o amor, a si mesmo por nós, fez até do abandono um riquíssimo

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tesouro; pois se ofereceu, com toda sua vida, seus trabalhos, amor e sofrimento e a dolorosa experiência de nossa ingratidão, ao Pai celestial, por nossa fraqueza e pobreza. Fez testamento diante de Deus e ofereceu todos os seus merecimentos à Igreja e aos pecadores. Pensou em todos; naquele abandono estava com todos, até o fim dos séculos; e assim rezou também por aqueles hereges que afirmam que sendo Deus, não sentiu as dores da Paixão e não sofreu ou sofreu menos do que um homem comum em igual martírio. - Participando dessa oração e sentindo com Ele as angústias, parecia-me ouví-Lo dizer, que: "se devia ensinar o contrário, isto é, que Ele sentiu esse sofrimento do abandono com mais amargura do que um homem comum, porque estava intimamente unido à Divindade, porque era verdadeiro Deus e verdadeiro homem e no sentimento da humanidade abandonado por Deus, bebeu, como Deus- Homem, até o fundo o cálice do abandono completo.” E testemunhou por um grito a dor do abandono, dando assim a todos os aflitos, que reconhecem a Deus por Pai, a liberdade de uma queixa cheia de confiança filial. Pelas três horas, Jesus exclamou em alta voz: "Eli, Eli, lama Sabachtani!", o que quer dizer: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?” Quando esse grito de Nosso Senhor interrompeu o angustiante silêncio que reinava em redor da cruz, os escarnecedores se voltaram novamente para Ele e um deles disse: "Ele chama Elias", e outro: "Vamos ver, se Elias vem ajudá-Lo a descer da cruz." Quando, porém, Maria ouviu a voz do Filho, nada mais pôde retê-Ia; voltou para junto da cruz, seguida por João, Maria, filha de Cleofas, Madalena e Salomé. Enquanto o povo tremia e gemia, vinha passando perto um grupo de cerca de trinta homens a cavalo, notáveis da Judéia e da região de Jope, que tinham vindo para a festa; e quando viram Jesus tão horrivelmente tratado e os sinais ameaçadores que se mostravam na natureza, exprimiram em alta voz o horror que sentiam, exclamando: "Ai! desta cidade abominável! Se nela não estivesse o Templo, devia-se destruí-Ia a fogo, por se ter tomado culpada de tanta iniqüidade.” As palavras desses distintos estrangeiros foram como um ponto de apoio para o povo, que rompeu em murmuração e altos lamentos; os que tinham os mesmos sentimentos, juntaram-se em grupos. Todos os presentes formaram dois partidos: uns murmuravam e lamentavam-se, os outros proferiam insultos e maldições. Os fariseus, porém, ficavam cada vez menos arrogantes; temendo um levantamento do povo, porque também o povo de Jerusalém estava sobressaltado, aconselharam-se com o centurião Abenadar; deram-se ordens para fechar a porta da cidade que dava para o Calvário, cortando assim toda a comunicação; mandaram também um mensageiro a Pilatos, para pedir 500 soldados e de Herodes a guarda real, para impedir uma insurreição. No entanto conseguiu

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o centurião Abenadar, pela energia, restabelecer a ordem e calma, proibindo qualquer insulto a Jesus, para não irritar o povo. Logo depois das três horas, o céu começou a clarear-se; a lua afastou-se gradualmente do sol, para o lado oposto àquele de que viera. O sol reapareceu, sem brilho, ainda vedado pelo nevoeiro vermelho e a lua ia descendo rapidamente para o outro lado, como se caísse. Pouco a pouco o sol readquiriu mais claridade e as estrelas desapareceram; contudo o dia ainda permanecia sombrio. A medida que reaparecia a luz, tornavam-se os inimigos escarnecedores mais arrogantes; foi nessa ocasião que disseram: "Ele chama Elias." Abenadar, porém, impôs-Ihes silêncio e manteve a ordem. 11. Quinta, Sexta e Sétima palavras de Jesus na cruz. Morte de Jesus Quando a luz voltou, surgiu o corpo de Nosso Senhor, pálido, extenuado, como que inteiramente desfalecido, mais branco do que antes, por causa da grande perda de sangue. Jesus disse ainda, não sei se o percebi só interiormente ou se Ele o disse a meia voz: "Sou espremido como as uvas, que foram pisadas aqui pela primeira vez; devo dar todo o meu sangue, até sair água e o bagaço ficar branco; mas não se fará mais vinho neste lugar". Mais tarde vi, numa visão a respeito dessas palavras, que foi nesse lugar que Jafé pela primeira vez pisou as uvas, para fazer vinho, como hei de contar mais tarde, (vide Apêndice no. 5). Jesus consumia-se de sede e disse com a língua seca: "Tenho sede." E como os amigos o olhassem com tristeza,disse-lhes:"Não me podíeis dar um gole de água?" Queria dizer que durante a escuridão ninguém os teria impedido. João, muito incomodado, respondeu: "Senhor, esquecemo-Io mesmo." Jesus disse ainda algumas palavras, cujo sentido era: "Também os amigos mais íntimos deviam esquecer-se e não me dar a beber, para que se cumprisse a Escritura." Mas esse esquecimento Lhe doeu amargamente. Ofereceram então dinheiro aos soldados, para Lhe dar um pouco de água; eles recusaram, mas um deles tomou uma esponja em forma de pera, embebeu-a em vinagre, que havia lá num pequeno barril de casca de árvore e ainda lhe misturou fel. Mas o centurião Abenadar, compadecido de Jesus, tomou a esponja do soldado, espremeu-a e embebeu-a de vinagre puro. Ajustou depois um lado da esponja num pedaço curto de uma haste de hissope, que servia de boquilha para chupar, fincou-o na ponta da lança e levantou-a à altura do rosto de Jesus, aproximando-Lhe dos lábios a esponja. Nosso Senhor ainda disse algumas palavras de exortação ao povo; lembro-me apenas que disse: "Quando minha voz não se fizer mais ouvir, falará a boca dos mortos"; ao que alguns gritaram: "Ainda continua blasfemando." Abenadar, porém, os mandou calar.

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Tendo chegado a hora da agonia, Nosso Senhor lutou com a morte e um suor frio cobriu-lhe os membros. João estava sob a cruz e enxugou-Lhe os pés com o sudário. Madalena, esmagada pela dor, encostava-se à cruz no lado de trás. A Santíssima Virgem estava entre a cruz do bom ladrão e a de Jesus, amparada pelos braços de Maria de Cleofas e Salomé, olhando para o Filho, que lutava com a morte. Então disse Jesus: "Tudo está consumado!" e, levantando a cabeça, exclamou em alta voz: "Meu Pai, em vossas mãos entrego o meu espírito." Foi um grito doce e forte, que penetrou o Céu e a terra; depois inclinou a cabeça e expirou. Vi a alma de Jesus, em forma luminosa, entrar na terra, ao pé da cruz e descer ao Limbo. João e as santas mulheres prostraram-se com a face na terra. O centurião Abenadar, árabe de nascimento, depois, como discípu-lo, batizado com o nome de Ctesifon, desde que oferecera o vinagre a Jesus, ficara a cavalo junto à elevação onde estavam erigidas as cruzes, de modo que o cavalo tinha as patas dianteiras mais no alto. Profundamente abalado, entregue a sérias reflexões, contemplava incessantemente o semblante de Nosso Senhor, coroado de espinhos. O cavalo baixara assustado a cabeça e Abenadar, cujo orgulho estava domado, não puxava mais as rédeas. Nesse momento pronunciou o Senhor as últimas palavras, em voz alta e forte e morreu dando um grito, que penetrou o Céu, a terra e o inferno. A terra tremeu e o rochedo fendeu-se, deixando uma larga abertura entre a cruz do Senhor e a do ladrão à esquerda. O testemunho que Deus deu de seu Filho, abalou com susto e terror a natureza enlutada. Estava consumado! A alma de Nosso Se nhor separou-se do corpo e ao grito de morte do Redentor moribundo estremeceram todos que O ouviram, junto com a terra que, tremendo, reconheceu o Salvador; os corações amigos, porém, foram transpassados pela espada da dor. Foi então que a graça desceu à alma de Abenadar; estremeceu emocionado, cederam-lhe as paixões e o coração orgulhoso e duro, fendeu-se-Ihe como o rochedo do Cal vário. Lançou longe de si a lança, bateu no peito com força e exclamou alto, com a voz de um homem novo: "Louvado seja Deus, Todo-poderoso, o Deus de Abraão e Jacó! Este era um homem justo; em verdade, Ele é o Filho de Deus'" E muitos dos soldados, tocados pela palavra do centurião, fizeram o mesmo. Abenadar, tornado novo homem, salvo pela graça e tendo rendido publicamente homenagem ao Filho de Deus, não quis ficar mais tempo a serviço dos inimigos de Cristo. Dirigiu-se a cavalo ao oficial subalterno, Cássio, também chamado Longinus, apeou-se, apanhou a lança e entregou-lha; disse algumas palavras aos soldados e a Cássio, que então montou a cavalo e tomou o comando. Abenadar desceu do Cal vário e, atravessando o vale de Gihon, dirigiu-se às cavernas do vale de Hinom, onde estavam escondidos os discípulos; anunciou-Ihes a morte do Senhor e voltou de lá à

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cidade, ao palácio de Pilatos. Grande espanto apoderou-se dos assistentes, ante o grito de morte de Jesus, quando a terra tremeu e o rochedo do Cal vário se fendeu. Esse terror fez-se sentir em toda a natureza; pois rasgou-se o véu do Templo, muitos mortos saíram das sepulturas, desabaram algumas paredes do Templo, ruíram muitos edifícios e desmoronaram montes em muitas regiões da terra. Abenadar deu testemunho em alta voz, muitos soldados testemunharam com ele, grande parte do povo presente e também alguns dos fariseus, chegados no fim, se converteram. Muitos bateram no peito e, descendo do monte, voltaram chorando pelo vale para casa; outros rasgaram as vestes e lançaram pó sobre a cabeça. Todo o mundo estava cheio de medo e terror. João levantou-se e algumas das santas mulheres, que até então tinham ficado afastadas, aproximaram-se da cruz; levantaram a Mãe de Jesus e as amigas, conduziram-nas a alguma distância da cruz, para as confortar. Quando Jesus, cheio de amor, Senhor de toda a vida, pagou pelos pecadores a dolorosa dívida da morte; quando entregou, como homem, a alma a Deus seu Pai e abandonou o corpo, tomou esse santo vaso esmagado a fria e pálida cor da morte; o corpo tremeu-Lhe convulsivamente nas últimas dores e tomou-se lívido e os vestígios do sangue derramado das chagas ficaram mais escuros e distintos. O rosto alongou-se, as faces encolheram-se, o nariz ficou mais delgado e pontiagudo, o queixo caiu, os olhos, cheios de sangue e fechados, abriramse, meio envidraçados. O Senhor levantou pela última vez e por poucos momentos a cabeça, coroada de espinhos e deixou-a depois cair sobre o peito, sob o peso dos sofrimentos. Os lábios lívidos e contraídos entreabriram-se, deixando ver a língua ensangüentada. As mãos, antes fechadas sobre a cabeça dos cravos, abriram-se; estenderam-se os braços, as costas entesaram-se ao longo da cruz e todo o peso do santo corpo desceu sobre os pés. Os joelhos curvaram-se, tomando para um lado e os pés viraram-se um pouco em redor do prego que os trespassara. Então se entesaram as mãos da Mãe Dolorosa, a vista escureceu-se-lhe, palidez de morte cobriu-lhe o rosto, os ouvidos deixaram de escutar, os pés vacilaram e ela caiu por terra; também Madalena, João e os outros se prostraram, com a cabeça velada, entregues à dor. Quando ergueram a mais amorosa, a mais desolada das mães, dirigin-do os olhos à cruz, ela viu o corpo do Filho adorado, concebido na virgindade, por obra e graça do Espírito Santo, carne de sua carne, osso de seus ossos, coração de seu coração, vaso sagrado formado no seu seio pela virtude divina, agora privado de toda a beleza e formosura, separado da alma santíssima, entregue às leis da natureza que Ele próprio criara e de que os homens tinham

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abusado pelo pecado, desfigurando-a; viu o corpo do Filho Unigênito esmagado, maltratado, desfigurado, morto pelas mãos daqueles que viera salvar e vivificar. Ai! O vaso de toda beleza e verdade, de todo amor, pendia da cruz, entre dois assassinos, vazio, rejeitado, desprezado, insultado, semelhante a um leproso. Quem pode compreender toda a dor da Mãe de Jesus, rainha de todos os mártires? A luz do sol ainda era sombria e nebulosa. O tremor de terra foi acompanhado de calor sufocante; mas seguiu-se-Ihe depois um frio sensível. O corpo de Nosso Senhor morto, na cruz, causava um sentimento de respeito e estranha comoção. Os ladrões pendiam em horríveis contorções, como embriagados. Ambos estavam no fim calados; Dimas rezava. Era pouco depois das três horas, quando Jesus expirou. Passado o primeiro terror causado pelo tremor de terra, alguns dos fariseus recobraram a anterior arrogância. Aproximando-se da fenda no rochedo do Calvário, jogaram-lhe pedras e atando várias cordas, amarraram uma pedra, fizeram-na entrar na fenda, para medir-lhe a profundidade; quando, porém, não tocaram no fundo, tomaram-se mais pensativos. Também se sentiam inquietos com os lamentos do povo, que batia no peito; e por isso, montando a cavalo, retiraram-se; alguns se sentiam mudados interiormente. O povo também se retirou em pouco tempo, indo pelo vale para a cidade, cheio de medo e terror. Muitos se tinham convertido. Uma parte dos 50 soldados romanos foi reforçar a guarda da porta, até a chegada dos 500, requeridos por Pilatos. A porta tinha sido fechada; alguns soldados ocuparam outros pontos da vizinhança, para impedir ajuntamento e tumulto. Cássio (Longino) e cerca de cinco soldados ficaram no lugar do suplício. Os parentes de Jesus estavam em redor da cruz ou sentados em frente, chorando. Algumas santas mulheres tinham voltado à cidade. Silêncio e tristeza reinavam em volta do lenho sagrado. De longe, no vale e nas alturas afastadas, se via de vez em quando um ou outro dos discípulos, olhando com curiosidade e receio para a cruz, mas retirando-se timidamente, ao aproximar-se alguém. 12. O tremor de terra, aparição de mortos em Jerusalém Quando Jesus, com um grito forte, entregou o espírito nas mãos do Pai celestial, a alma do Salvador, qual forma luminosa, acompanhada de brilhante cortejo de Anjos, entrou na terra, ao pé da cruz; entre os Anjos estava também S. Gabriel. Vi esses Anjos expulsarem grande número de espíritos maus da terra para o abismo. Jesus, porém, mandou muitas almas do limbo para que, retomando os corpos, assustassem os impenitentes, os exortassem a converter-se e dessem testemunho d’Ele.

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O tremor de terra, na hora da morte do Redentor, quando o rochedo do Calvário se fendeu, causou muitos desmoronamentos e desabamen-tos em todo o mundo, especialmente na Palestina e em Jerusalém. Maio povo na cidade e no Templo sossegara um pouco, ao desaparecer a escuridão, eis que os abalos do solo e o estrondo do desabamento dos edifícios, em muitos lugares, espalharam um terror geral e ainda maior do que dantes. O pavor chegou ao extremo, quando apareceram os mortos ressuscitados, andando pelas ruas e admoestando com voz rouca o povo, que fugia, chorando, em todas as direções. No Templo, os príncipes dos sacerdotes acabavam justamente de restabelecer a ordem e recomeçar os sacrifícios, suspensos pelo terror das trevas e triunfavam com a volta da luz, quando de repente tremeu o solo, ouvindo-se um estrondo de muros a desabar, acompanhado de ruido sibilante do véu do Templo, que se rasgou de alto a baixo, causando um momento de mudo terror na imensa multidão, interrompido em diversos lugares por gritos e lamentos. Mas a multidão estava tão habituada à ordem do Templo, o imenso edifício tão repleto de gente, a ida e vinda dos que ofereciam sacrifícios estava tão bem regulada, as cerimônias da imolação dos cordeiros e da aspersão do altar com o sangue se desenrolavam tão regularmente, através das longas fileiras dos sacerdotes, acompanhadas de canto e do alto som das trombetas, que o susto não produziu logo no principio uma confusão e desordem geral. Assim, pois, continuavam os sacrifícios em algumas partes do imenso edifício do Templo, com as inúmeras passagens e salas, quando em outra parte já reinava o espanto e terror e em outros lugares os sacerdotes já conseguiam acalmar o povo; mas ao aparecimento dos mortos, em várias partes do Templo, todo o povo se dispersou e o sacrifício foi interrompido, como se o Templo fosse profanado. Contudo nem isso se deu repentinamente, de modo que a multidão se tivesse precipitado pelos degraus abaixo, empurrando e esmagando-se uns aos outros; mas dissolveu-se gradualmente, saindo em grupos, enquanto outros eram ainda contidos pelos sacerdotes ou estavam em partes separadas do Templo. Todavia, manifestava-se o medo e o terror em toda parte, em diversos graus, de um modo incrível. Pode-se fazer uma idéia da desordem e confusão que reinava, imaginando um grande formigueiro, de tranqüilo movimento, em que se jogam pedras ou se remexe com um pau; enquanto reina confusão num ponto, em outro ainda continua o movimento e a atividade toda regular e mesmo no lugar onde houve desarranjo, logo começa a restabelecer-se a ordem. O sumo sacerdote Caifás e seu partido, com audácia desesperada, não perderam a cabeça. Como um hábil governador de uma cidade revoltada, afastou a confusão, ameaçando aqui, exortando ali, desunindo os partidos, atraindo outros com muitas promessas.

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Devido ao seu endureéimento diabólico e aparente calma, conseguiu impedir uma perigosa perturbação geral, fazendo com que a massa do povo não visse nesses acontecimentos assustadores um testemunho da morte inocente de Je sus. A guarnição do forte Antônia também fez tudo para conservar a ordem; deste modo era o terror e a confusão grande, é verdade, mas cessou a celebração da festa, sem que houvesse tumulto. O povo dispersou-se, ficando ainda com um oculto pavor, que também foi pouco a pouco abafado pela ação dos fariseus. Essa era a situação geral da cidade; seguem-se agora alguns incidentes particulares, de que ainda me lembro: As duas grandes colunas situadas à entrada do Santuário do Templo e entre as quais estava suspensa a magnífica cortina, afastaram-se no alto, a da esquerda para o sul, a da direita para o norte; a verga que suportavam, abaixou-se e a grande cortina partiu-se em duas, de alto a baixo, com um som sibilante e, caindo as duas partes para os lados, abriu-se o santuário. Essa cortina era vermelha, azul, branca e amarela; trazia o desenho de muitas constelações dos astros e também figuras, como, por exemplo, a da serpente de bronze. O santuário estava aberto a todos os olhares. Perto da cela onde Simeão costumava rezar, no muro ao norte, ao lado do santuário, tombou uma pedra grande e a abóbada da cela desabou; em várias salas se afundou o solo, umbrais deslocaram-se e colunas cederam para os lados. No santuário apareceu, proferindo palavras de ameaça, o Sumo Sa-cerdote Zacarias, que fora assassinado entre o Templo e o altar; falou também da morte do outro Zacarias (*) e de João Batista, como em geral da morte dos profetas. Ele saiu pela abertura que ficara, onde caiu a pedra na cela de Simeão e falou aos sacerdotes que estavam no Santo. Dois filhos do piedoso Sumo Sacerdote Simão o Justo, bisavô do velho sacerdote Simeão que profetizara na apresentação de Jesus no Templo, apareceram como espíritos grandes, perto da grande cátedra (cadeira dos doutores), proferindo palavras severas sobre a morte dos profetas e sobre o sacrifício que ia cessar; exortaram a todos a que seguissem a doutrina de Jesus crucificado. Perto do altar apareceu o profeta Jeremias, proclamando em voz ameaçadora o fim do sacrifício antigo e o começo do novo. Essas aparições e palavras, em lugares onde só Caifás e os sacerdotes as ouviram, foram negadas ou ocultadas e foi proibido falar nisso, sob pena de grande excomunhão. Mas ouviu-se ainda um grande ruído; abriram-se as portas do santo e uma voz gritou: "Saiamos daqui!" Vi então Anjos, que se retiraram do Templo. O altar do incenso tremeu e caiu um dos vasos de incenso; o armário que continha os rolos da Escritura, tombou e os rolos caíram fora, em desordem; a confusão aumentou, não sabiam mais que hora do dia era.

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(*) Em 1821 Anna Catharina contemplou o primeiro ano da vida pública de Jesus e, em meados de Setembro, contou muitas coisas sobre as relações do Senhor com um velho Esseno, Eliud, sobrinho de Zacarias pai de João Batista. Eliud morava num lugar situado antes de chegar a Nazaré, onde também Jesus ficou alguns dias antes de ser batizado. Das conversas de Eliud e Jesus, Anna Catharina aprendeu muitos fatos, que se referem aos primórdios da história da sagrada Família. Entre outros contou, a 18 de Setembro, pelas visões que teve, de dez dias antes do batismo de Jesus: "Hoje ouvi o seguinte: no sexto ano de João Batista foi Isabel, sua mãe, viver com ele no deserto. Não podia mais ficar em casa, por causa da tristeza que a acabrunhava: pois Herodes mandara prender o marido, Zacarias, que estava em viagem de Hebron a Jerusalém, para fazer o serviço no Templo: depois de o ter sujeitado a cruéis torturas mandara matá-Io, por não querer revelar o esconderijo do filho. Amigos sepultaram o corpo perto do Templo. Esse não é, porém, aquele Zacarias que fora morto entre o Templo e o altar, a quem vi aparecer depois da morte de Jesus; saiu do muro, ao lado do oratório do velho Simeão e andou pelo Templo; o túmulo em que estava, era no muro e ruiu, como vários outros sepulcros no Templo, etc. Nicodemos, José de Arimatéia e muitos outros abandonaram o Templo e foram-se embora. Jaziam corpos de mortos, em vários lugares; outros mortos ressuscitados andavam no meio do povo, exortando-o com palavras severas; à voz dos Anjos que se afastaram do Templo, também eles voltaram às sepulturas. A grande cátedra, no átrio do Templo, caiu. Vários dos 32 fariseus que tinham ido ao Calvário, mais tarde voltaram, durante essa confusão e, como se tinham convertido ao pé da cruz, ficaram ainda mais comovidos com esses sinais, de modo que censuraram com grande energia a Anás e Caifás, retirando-se depois do Templo. Anás, o verdadeiro chefe dos inimigos de Jesus, que desde muito tempo dirigira todas as intrigas secretas contra o Salvador e os discípulos e que também instruíra os acusadores, estava quase doido de terror; fugia de um canto para outro das salas secretas do Templo; vi-o gritando e torcendo-se em convulsões; levaram-no a um quarto secreto, rodeado de alguns dos partidários. Caifás deu-lhe uma vez um forte abraço, para o reanimar; mas em vão; a aparição dos mortos tinha-o levado ao desespero. Caifás, apesar de estar também cheio de pavor, estava de tal modo possesso do demônio do orgulho e da obstinação, que não deixava perceber nada do susto que sentia. Cheio de raiva e orgulho, ocultava o medo e mostrava uma testa de bronze aos sinais ameaçadores da cólera divina. Quando, porém, apesar de todos os esforços, não pôde mais fazer as cerimônias da festa, deu ordem de guardar silêncio sobre os prodígios e aparições de que o povo

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não tinha conhecimento. Disse e mandou outros sacerdotes também dizerem que esses sinais de cólera divina eram provocados pelos partidários do galileu crucificado, que entraram no Templo sem se terem purificado; que somente os inimigos da santa lei, a qual Jesus também quisera derrubar, tinham causado esse terror. Muito se devia também à feitiçaria do galileu que, como em vida, assim também na morte, perturbava a paz do Templo." Desse modo conseguiu acalmar muitos e intimidar outros com ameaças; muitos, porém, estavam profundamente abalados e ocultavam os sentimentos. A festa foi adiada, até a purificação do Templo. Muitos cordeiros foram imolados; o povo dispersou-se pouco a pouco. O túmulo de Zacarias, sob o muro do Templo, desabara, arrastando consigo as pedras do muro; Zacarias saiu do túmulo, mas não voltou mais para lá, não sei onde depositou de novo os restos mortais. Os filhos ressuscitados de Simeão o Justo, depositaram os corpos novamente, no túmulo, ao pé do monte do Templo, na hora em que o corpo de Jesus foi preparado para a sepultura. Enquanto tudo isso se passava no Templo, reinava o mesmo espan-to em muitas partes de Jerusalém. Logo depois das três horas, ruíram muitos túmulos, particularmente na região dos jardins, ao noroeste, dentro da cidade. Vi lá, nos túmulos, mortos ainda envoltos em panos; em outros jaziam esqueletos, com farrapos apodrecidos, de muitos saia um mau cheiro insuportável. No tribunal de Caifás desabaram as escadas em que Jesus fora escarnecido, também parte do fogão do átrio, onde Pedro começara a negar Jesus. A destruição era tal, que era preciso procurar outra entrada. Ali apareceu o corpo do Sumo Sacerdote Simão o Justo, a cuja descendência pertencia Simeão, que proferiu a profecia, na apresentação do Menino Jesus no Templo. Esse falou algumas palavras ameaçadoras, a respeito do julgamento injusto que se fizera ali. Estavam reunidos alguns membros do Sinédrio. Os criados que no dia anterior deixaram entrar Pedro e João, converteram-se e fugiram para as cavernas onde estavam escondidos os discípulos. No palácio de Pilatos se fendeu a pedra e afundou-se o solo onde Jesus fora apresentado ao povo por Pilatos. Todo o edifício tremeu e vacilou; no pátio do tribunal vizinho se afundou todo o lugar onde estavam sepultados os corpos das inocentes crianças que Herodes mandara assassinar. Em vários ou-tros lugares da cidade se fenderam muros, caíram paredes; mas nenhum edifício foi totalmente destruído. Pilatos, supersticioso e confuso, estava preso de terror e incapaz de desempenhar o cargo; o terremoto abalou-lhe o palácio, o solo tremia-Ule debaixo dos pés, fugia de uma sala para outra. Os mortos mostravam-se-lhe no átrio do palácio, lançando-lhe em rosto o julgamento iníquo e a sentença contraditória. Julgando que fossem os deuses do profeta Jesus, encerrou-se num quarto secreto do palácio, onde ofereceu incenso e sacrifícios aos

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deuses pagãos, fazendo promessas, para que os ídolos impedissem os deuses do Galileu de fazer-lhe mal. Herodes estava no palácio, desvairado de pavor e mandara fechar todas as portas. Foram cerca de cem os mortos, de todas as épocas, que em Jerusalém e arredores se levantaram dos sepulcros destruídos e na maior parte se dirigiram, dois a dois, a diversos pontos da cidade, apresentando-se ao povo, que fugia em todas as direções e dando, em algumas palavras, severo testemunho de Jesus. A maior parte dos túmulos estavam situados na solidão dos vales, fora da cidade; mas havia-os também nos novos bairros da cidade, especialmente na região dos jardins, ao noroeste, entre a porta angular e a do Cal vário; também em redor e debaixo do Templo havia muitos túmulos ocultos ou esquecidos. Nem todos os mortos que pela destruição dos túmulos ficaram à vista, ressuscitaram; havia muitos que se tomaram vivíveis só porque estavam numa sepultura comum com os outros. Muitos, porém, cujas almas Jesus mandara do Limbo à terra, se levantaram, descobriram o rosto e andavam, como pairando, pelas ruas, iam às casas dos parentes, entravam nas casas dos descendentes, censurando-os com palavras ameaçadoras, por terem tomado parte na morte de Jesus. Vi as aparições procurarem juntar-se, conforme as antigas amizades e andar duas a duas pelas ruas da cidade. Não vi o movimento dos pés sob as longas túnicas mortuárias, pareciam pairar sobre o solo, sem o tocar; as mãos ou estavam envoltas em largas faixas de linho, ou escondidas nas largas mangas pendentes e ligadas em redor dos braços; os véus do rosto estavam levantados e postos sobre a cabeça; as faces pálidas, amareladas e secas, destacavam-se das longas barbas; as vozes tinham um som estranho e incomum. Essas vozes eram a única manifestação dos corpos, que passavam de lugar em lugar, sem parar e sem se importar com o que encontravam no caminho; parecia que eram só vozes. Estavam diversamente vestidos, conforme a época da morte e segundo a classe e a idade. Nas encruzilhadas, onde fora promulgada a sentença de morte contra Jesus, paravam, proclamando a glória de Jesus e a maldição dos assassinos. Os homens ficavam longe, escutando-os a tremer e fugiam quando eles continuavam o caminho. No fórum, diante do palácio de Pilatos, ouvi-os proferir palavras ameaçadoras; lembro-me da palavra: "Juiz sanguinário!" - Todo o povo se ocultou nos cantos mais escondidos das casas; havia grande medo e susto na cidade. Pelas quatro horas da tarde voltaram os mortos para os túmulos. Mas depois da ressurreição de Jesus Cristo ainda apareceram muitos espíritos, em vários lugares. O sacrifício foi interrompido; era uma confusão geral; só uma pe-quena parte do povo comeu o cordeiro pascal à noite. 13. Outras aparições depois da morte de Jesus

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Entre os muitos mortos ressuscitados, que dentro e em redor de Jerusalém se contavam cerca de cem, não havia nenhum parente de Jesus. Os túmulos ao noroeste estavam antigamente fora da cidade, mas pelo alargamento da mesma, ficaram depois dentro dos muros. Tive também visões de diversos mortos, que em vários lugares da Terra Santa ressuscitaram, aparecendo aos parentes e dando testemunho de Jesus e da missão que viera cumprir na terra. Assim vi Zadoc, homem muito piedoso, que tinha dado todos os bens aos pobres e ao Templo e fundado a comunidade dos Essenos, perto de Hebron; foi um dos últimos profetas antes de Cristo e esperava e anelava pela vinda do Messias, de quem tinha muitas revelações; tinha também relações com os antepassados da Sagrada Família. Vi esse Zadoc, que viveu uns cem anos antes de Jesus, ressuscitar e aparecer a diversas pessoas, na região de Hebron. Numa visão anterior vi que foi dos que primeiro depositaram novamente o respectivo corpo e depois acompanharam a alma de Jesus. Vi também vários mortos aparecerem aos discípulos do Senhor, escondidos nas cavernas, exortando-os à fé. Vi que as trevas e o terremoto espalharam terror e destruição, não só em Jerusalém e arredores, mas também em outras partes do país, mesmo em lugares longínquos. Ainda me lembro dos seguintes casos: Em Tirza desabaram as torres da cadeia, da qual Jesus resgatara alguns presos e vários outros edifícios. Na terra do Cabul houve desabamentos em muitos lugares. Em toda a Galiléia, onde Jesus tinha vivido e pregado mais tempo, vi desabar, em muitos lugares, edifícios, sobretudo muitas casas de fariseus que tinham perseguido Jesus com mais ódio e que então estavam todos na festa em Jerusalém e cujas mulheres e filhos morreram soterrados sob os destroços das casas. As devastações em redor do lago de Genezaré (mar de Galiléia) eram consideráveis. Em Cafarnaum caíram muitíssimos edifícios; a povoação dos escravos, situada entre Tibérias e os jardins de Zorobabel, Centurião de Cafarnaum, foi quase completamente destruída. O rochedo que formava uma pequena península no lago e fazia parte dos belos jardins do Centurião, perto de Cafarnaum, desmoronou-se todo; o lago entrou pelo vale a dentro e chegou até perto de Cafarnaum, que dantes estava distante quase meia hora. A casa de Pedro e a morada da Santíssima Virgem, entre Cafarnaum e o lago, ficaram intactas. As águas do mar da Galiléia estavam muito agitadas; as margens ruíram em algumas partes e em outras se levantaram. O lago mudou consideravelmente de forma, ficando mais ou menos como está hoje e a configuração das respectivas margens quase não se conhece mais. De maior importância foram as mudanças na extremidade sudoeste do lago, logo abaixo de Tariquéia, onde havia um dique comprido e escuro, que separava o lago de um pântano e dava firme direção às águas do Jordão, ao saírem do lago; todo

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esse dique foi levado pelas águas, causando vastas destruições. No lado oriental do lago, onde os porcos dos Gerazenos se tinham lançado no pântano, afundaram-se muitas terras, como também em Gergesa, Gerasa e em todo o distrito de Corazim. Também o monte da segunda multiplicação dos pães sofreu forte abalo e a pedra sobre a qual fora colocado o pão, partiu-se ao meio. Dentro e em redor de Panéas desabaram também muitas casas. Na Decapolis desapareceram partes inteiras de cidades; muitos lugares na Ásia sofreram grandes prejuízos, como, por exemplo, Nicéa e principalmente muitos lugares a leste e nordeste de Panéas. Também na Galiléia superior vi grande destruição e os fariseus encontraram, ao voltar da festa, muita desgraça em casa. Alguns receberam a notícia já em Jerusalém; foi por isso que os inimigos de Jesus ficaram tão abatidos, até depois de Pentecostes e não ousaram tomar medida alguma importante contra a comunidade do Senhor. No monte Garizim vi ruir grande parte do Templo. Havia lá um ídolo em cima de um poço, num pequeno Templo, cujo telhado, junto com o ídolo, caiu na água do poço. Em Nazaré desabou metade da sinagoga, da qual os judeus expulsaram Jesus; também a parte do rochedo da qual quiseram lançá-Io no abismo, desmoronou-se. Muitas montanhas, vales e cidades sofreram forte destruição. O leito do Jordão mudou-se em várias partes; Pois pelos abalos do litoral do mar da Galiléia e pelas mudanças das correntes dos riachos, formaramse obstáculos e mudou-se a corrente das águas, de modo que o leito do Jordão é hoje muito diferente do que era antes. Em Machérus e em outras cidades de Herodes, ficou tudo calmo e inalterado; essa região estava fora do círculo da penitência e da ameaça, como aqueles homens no horto das Oliveiras, que não caíram e por isso também não se levantaram. Em algumas regiões, aonde havia muitos espíritos maus, vi-os em grande número afundar-se na terra, juntamente com os edifícios e montes destruídos; os tremores de terra recordaram-me então as convulsões dos possessos, quando o demônio sente que é obrigado a sair. No momento em que, perto de Gergesa, se afundou no pântano parte do monte, de onde outrora os demônios se lançaram no pântano, com a manada de porcos, vi imensa multidão de maus espíritos cair, como uma nuvem sinistra e afundar-se com o monte no abismo. Creio que foi em Nicéa que vi um acontecimento, de cujos pormenores me lembro só imperfeitamente. Vi um porto, com muitos navios e numa casa, com uma torre alta, perto do porto, vi um homem; era pagão, o capitão do porto. Tinha por obrigação subir muitas vezes à torre e observar o mar, a ver se chegavam navios ou velar por qualquer acontecimento. Vi que, ouvindo forte estrondo sobre os navios do porto e temendo a aproximação de um inimigo, subiu apressadamente à torre; olhando para os navios,

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viu-Ihes pairar acima grande número de figuras escuras, que, com vozes lamentosas, lhe gritaram: "Se queres conservar os navios, leva-os para fora do porto; pois devemos voltar ao abismo; morreu o grande Pan." É o que me lembro ainda distintamente dessa visão; disseram-lhe outras coisas ainda e deram-lhe muitas ordens, onde e como devia revelar, numa viagem marítima iminente, o que lhe tinham dito; exortaram-no também a receber bem os mensageiros que viriam, anunciando a doutrina e a morte daquele que nesse momento tinha falecido. Os maus espíritos foram desse modo obrigados pelo poder de Deus a avisar esse homem bom, tomando-se assim núncios de sua própria ignomínia. O capitão do porto mandou, pois, pôr a seguro os navios, quando estava iminente uma violenta tempestade; vi então os demôni os se lançarem rugindo no mar e a metade da cidade ficou destruída pelo terremoto. A casa com a torre ficou intacta. O homem fez depois longas viagens em navio, cumprindo todas as ordens que recebera e anunciando a morte do grande Pan, como os demônios tinham chamado ao Senhor; mais tarde chegou também a Roma, onde se admiraram muito daquela narração. Vi ainda muitas outras coisas desse homem, mas esqueci-as; entre outras, vi que uma das suas narrativas de viagens, misturada com os acontecimentos que contei, se propagou muito entre os povos, mas não me lembro mais da conexão, Creio que tinha um nome semelhante a Tamus ou Tramus. 14. José de Arimatéia pede a Pilatos o corpo de Jesus Mal se tinha restabelecido um pouco a calma em Jerusalém, depois de tantos acontecimentos assustadores, quando Pilatos, tão consternado, foi importunado de todos os lados com narrativas do que sucedera. Também o Supremo Conselho lhe mandou, como já resolvera de manhã, um requerimento, pedindo que mandasse esmagar as pernas dos sacrificados, para que morressem mais depressa e tirá-Ios depois da cruz, para que não ficassem pendurados durante o Sábado. Pilatos enviou, pois, os carrascos para esse fim ao Calvário. Pouco depois vi José de Arimatéia entrar no palácio de Pilatos. Já recebera a notícia da morte de Jesus e resolvera, com Nicodemos, sepultar o corpo do Senhor no sepulcro novo que escavara na rocha do seu jardim, não longe do monte Cal vário. Creio tê-Io visto já fora da porta da cidade, onde observou tudo que se passou e deliberou o que se devia fazer; pelo menos vi lá homens que, por ordem dele limpavam o jardim do sepulcro e ainda terminavam algumas obras no interior do mesmo. Nicodemos também foi a diversos lugares, para comprar panos e especiarias para o embalsamamento do corpo; depois esperou a volta de José.

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Esse encontrou Pilatos muito assustado e incomodado; pediu-lhe francamente e sem hesitação licença para tirar da cruz o corpo de Jesus, rei dos judeus, porque queria sepultá-Lo no seu próprio sepulcro. O fato de um homem tão distinto pedir, com tal insistência, licença para prestar a última homenagem ao corpo de Jesus, a quem o juiz iníquo tão ignominiosamente mandara crucificar, abalou-lhe ainda mais a consciência; aumentou-se-Ihe ainda mais a convicção da inocência de Jesus e com ela, o remorso; mas, fingindo calma, perguntou: "Então já está morto?", pois havia poucos minutos apenas que mandara os carrascos matar os crucificados, quebrando-Ihes as pernas. Mandou por isso chamar o centurião Abenadar, que voltara das cavernas, onde falara com alguns dos discípulos; perguntou-lhe se o rei dos judeus já tinha morrido. Então relatou Abenadar a morte do Senhor, às três horas, as últimas palavras e o grito forte de Jesus, o tremor de terra e o abalo que fendeu o rochedo. Exteriormente parecia Pilatos admirar-se apenas que tivesse morrido tão cedo, porque os crucificados em geral viviam mais tempo; mas interiormente estava assustado e amedrontado, pela coincidência desses sinais com a morte de Jesus. Queria talvez disfarçar um pouco a crueldade com que procedera; pois despachou imediatamente uma ordem escrita, entregando a José de Arimatéia o corpo do rei dos judeus, com a licença de tirá-Lo da cruz e sepultá-Lo. Estava satisfeito de poder assim pregar uma peça aos príncipes dos sacerdotes, que teriam visto com prazer Jesus ser enterrado ignominiosamente com os dois ladrões. Mandou também alguém ao Cal vário, para fazer executar essa ordem. Creio que foi o mesmo Abenadar; pois que o vi tomar parte no descendimento de Jesus da cruz. Saindo do palácio de Pilatos, foi José de Arimatéia encontrar-se com Nicodemos, que o estava esperando na casa de uma boa mulher, situada numa rua larga, próxima do beco em que Jesus, logo no começo do doloroso caminho da cruz, fora tão vilmente ultrajado. Nicodemos tinha comprado muitas ervas e especiarias para o embalsamamento, em parte da mesma mulher, que vendia ervas aromáticas, em parte em outros negócios, onde a própria mulher fora comprar as especiarias que não tinha, como também vários panos e faixas, necessárias para o embalsamamento. De todos esses objetos fez-lhe um pacote que pudesse comodamente transportar. José de Arimatéia também foi ainda a outro lugar, para comprar um pano grande de algodão, muito bonito e fino, com seis côvados de comprimento e vários côvados de largura. Os criados foram buscar no armazém, ao lado da casa de Nicodemos, escadas, martelos, ponteiros, odres, vasilhas, esponjas e outros objetos necessários para aquele fim. Colocaram os objetos menores numa padiola, semelhante àquela em que os discípulos levaram o corpo de João Batista, que tinham raptado do castelo forte de Herodes.

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15. O coração de Jesus trespassado por uma lança. Esmagamento das pernas e morte dos ladrões Durante todo esse tempo reinava silêncio e tristeza sobre o Gólgota. O povo assustado dispersara-se, indo esconder-se em casa. A Mãe de Jesus e João, Madalena, Maria, filha de Cleofas e Salomé estavam, em pé ou sentados, em frente à cruz, com as cabeças veladas, chorando. Alguns soldados estavam sentados no barranco, com as lanças fincadas no chão. Cássio, a cavalo, ia de um lado para outro. Os soldados conversavam do alto do Cal vário com outros que estavam mais em baixo. O céu estava nublado e toda a natureza parecia abatida e de luto. Vieram então seis carrascos, subindo o monte Cal vário; trouxeram escadas, pás e cordas, como também pesadas maças de ferro de três gumes, para esmagar as pernas dos executados. Quando os carrascos entraram no círculo do suplício, os parentes de Jesus retiraram-se um pouco. A Santíssima Virgem foi novamente presa de angústia e receio de que os verdugos ainda maltratassem o Corpo de Jesus; pois encostaram as escadas à cruz e subindo, sacudiram o santo Corpo conferindo se apenas se fingia morto. Como, porém, notassem que o corpo já estava inteiramente frio e rígido e João, a pedido das mulheres piedosas, a eles se dirigisse para impedir a crueldade, deixaram provisoriamente o corpo do Senhor, mas não pareciam convencidos de que estivesse morto. Subiram então pelas escadas nas cruzes dos ladrões; dois esmagaram, com as maças cortantes, os ossos dos braços acima e abaixo do cotovelo, um terceiro fez o mesmo acima e nas canelas, abaixo dos joelhos. Gesmas soltou gritos horríveis. Esmagaram-lhe em três golpes o peito, para acabar de matá-Io. Dimas gemeu com a tortura e morreu; foi o primeiro mortal que tornou a ver o Redentor. Os carrascos desataram então as cordas, deixando cair os corpos no chão e arrastando-os depois com cordas, para o vale entre o Cal vário e o muro da cidade, onde os enterraram. Os carrascos ainda pareciam duvidar da morte do Senhor e os parentes de Jesus estavam ainda mais assustados, pela brutalidade com que haviam procedido e com medo de que pudessem voltar. Mas Cássio, oficial subalterno, homem de 25 anos, ativo e um pouco precipitado, cuja vista curta e cujos olhos tortos, juntamente com os ares de importância que se dava, provocavam freqüentemente a troça dos subordinados, recebeu de repente uma inspiração sobrenatural. A crueldade e vil brutalidade dos carrascos, o medo das santas mulheres e um impulso repentino, causado por uma graça divina, fizeram-no cumprir uma profecia. Ajustando a lança, que trazia em geral dobrada e encurtada, firmou-lhe a ponta e virando o cavalo, esporeou-o para subir o cume, onde estava a cruz e onde o cavalo quase não podia virar; vi como o afastou da fenda do

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rochedo. Parando assim entre a cruz do bom ladrão e a de Jesus, ao lado direito do corpo de Nosso Salvador, tomou a lança com ambas as mãos e introduziu-a com tal força no lado direito do Santo Corpo, através das entranhas e do coração, que a ponta da lança saiu um pouco do lado esquerdo, abrindo uma pequena ferida. Quando tirou depois com força a santa lança, brotou da larga chaga do lado direito do Redentor um rio de sangue e água que, caindo, banhou o rosto de Cássio, como uma onda de salvação e graça. Ele saltou do cavalo e, prostrando-se de joelhos, bateu no peito e confessou a fé em Jesus em alta voz, diante de todos os presentes. A Santíssima Virgem e os outros, cujos olhos estavam sempre fixos no Salvador, viram a súbita ação do oficial com grande angústia e acompanharam o golpe da lança com um grito de dor, precipitando-se para a cruz. Maria caiu nos braços das amigas, como se a lança lhe tivesse transpassado o próprio coração e sentisse o ferro cortante atravessá-Io de lado a lado. Cássio, caindo de joelhos, louvava a Deus, pois, iluminado pela graça, ficou crendo e também os olhos do corpo se lhe curaram e desde então via tudo cIaro e distinto. Mas ao mesmo tempo ficaram todos profundamente comovidos à vista do sangue que, misturado com água, se juntara, espumante, numa cavidade da rocha, ao pé da cruz; Cássio, Maria Santíssima, as santas mulheres e João apanharam o sangue e a água em tigelas, guardando-o depois em frascos e enxugando-o da rocha com panos. Cássio estava como que transformado; tinha recobrado a vista perfeita e profundamente comovido, curvava-se diante de Deus, com coração humilde. Os soldados presentes, tocados pelo milagre que se operara nele, prostraram-se de joelhos, batiam no peito e louvavam a Jesus. O sangue e a água corriam abundantemente da larga chaga do lado direito do Salvador, sobre a rocha limpa, onde se juntaram; apanharam-no, com indizível comoção e as lágrimas de Maria e Madalena misturavam-selhe. Os carrascos, que nesse ínterim tinham recebido a ordem de Pilatos de não tocar no corpo de Jesus, que doara a José de Arimatéia, para o sepultar, não voltaram mais. A lança de Cássio, constava de várias peças, que eram ajustadas uma sobre a outra; quando dobrada, parecia apenas um bastão, de pouco comprimento. A parte de ferro que feria, tinha a forma de pêra achatada; quando se queria servir da lança, enfiava-se-Ihe a ponta e abriam-se em baixo duas lâminas de ferro, curvas e movediças. Tudo Isso se passou em redor da cruz de Jesus, logo depois das quatro horas, quando José de Arimatéia e Nicodemos estavam ocupa-dos em juntar as coisas necessárias para o enterro. Os criados de Joséde Arimatéia foram, enviados para limpar o sepulcro e anunciaram aos amigos de Jesus no Gólgota que José recebera de Pilatos licença para tirar da cruz o corpo do Mestre e sepultá-Io

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no seu sepulcro; então voltou João, com as santas mulheres, à cidade, dirigindo-se ao monte Sião, para que a Santíssima Virgem pudesse tomar algum alimento e também para buscar alguns objetos para o enterro. Maria tinha uma pequena habitação nos edifícios laterais do Cenáculo. Não entraram pela porta mais próxima, mas, mais ao sul, pela porta que conduz a Belém; pois a porta para o Cal vário estava fechada e ocupada por dentro pelos sbldados que os fariseus tinham requisitado, com medo de um levante do povo. 16. A descida de Jesus aos infernos Quando Jesus, com um grito forte, rendeu a santíssima alma, vi-a, qual figura luminosa, acompanhada de muitos Anjos, entre os quais também Gabriel, descer pela terra a dentro, ao pé da cruz. Vi, porém, que a divindade lhe ficou unida tanto à alma, como também ao corpo, pregado à cruz. Não sei explicar o modo porque se passou. Vi o lugar aonde se dirigiu a alma de Jesus; era dividido em três partes, parecendo três mundos e eu tinha a sensação de que tinha a forma redonda e que cada um estava separado do outro por uma esfera. Antes de chegar ao limbo, havia um lugar claro e, por assim dizer, mais verdejante e alegre. Era o lugar em que vejo sempre entrarem as almas remi das do purgatório, antes de serem levadas ao céu. O limbo, onde se achavam os que esperavam a redenção, estava cercado de uma esfera cinzenta, nebulosa e dividido em vários círculos. Nosso Salvador, conduzido pelos Anjos como em triunfo, entrou por entre dois desses círculos, dos quais o esquerdo encerrava os Patriarcas até Abraão e o direito as almas de Abraão até João Batista. Jesus penetrou por entre os dois; eles, porém, ainda não O conheciam, mas estavam todos cheios de alegria e desejo; foi como se dilatassem esses páramos da saudade angustiosa, como se ali entrassem o ar, a luz e o orvalho da Redenção. Tudo se deu rapidamente, como o sopro do vento. Jesus penetrou através dos dois círculos, até um lugar cercado de neblina, onde se achavam Adão e Eva, nossos primeiros pais. Falou-Ihes e adoraram-nO com indizível felicidade. O cortejo do Senhor, ao qual se juntou o primeiro casal humano, dirigiu-se então à esquerda, ao limbo dos Patriarcas que tinham vivido antes de Abraão. Era uma espécie de purgatório; pois entre eles se moviam, cá e lá, maus espíritos, que atormentavam e inquietavam algumas dessas almas de muitas maneiras. Os Anjos bateram e mandaram que abrissem; pois havia lá uma entrada, uma espécie de porta, que estava fechada; os Anjos anunciaram a vinda do Senhor, parecia-me ouví-Ios exclamar: "Abri as portas!" Jesus entrou triunfalmente; os espíritos maus, retirando-se, gritaram: "Que tens conosco? Que queres fazer de nós? Queres crucificar-nos também?, etc." - Os Anjos, porém, amarraram-nos e empurraram-nos

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para diante. Essas almas sabiam pouco de Jesus, tinham só uma idéia obscura do Salvador; Jesus anunciou Ihes a Redenção e eles lhe cantaram louvores. Dirigiu-se então a alma do Senhor ao espaço à direita, ao verdadeiro limbo, em frente ao qual se encontrou com a alma do bom ladrão, conduzida por Anjos ao seio de Abraão e com a do mau ladrão que, cercado de espíritos maus, foi preci-pitada no inferno. A alma de Jesus dirigiu-Ihes algumas palavras e entrou então no seio de Abraão, acompanhada dos Anjos, das almas remidas e dos demônios expulsos. Esse lugar parecia-me situado um pouco mais alto; era como se se subisse do subterrâneo de uma igreja à igreja superior. Os demônios amarrados quiseram resistir, não queriam passar; mas foram levados à força pelos Anjos. Neste lugar estavam todos os santos Israelitas, à esquerda os Patriarcas, Moisés, os Juízes, os Reis; à direita os profetas e todos os antepassados e parentes de Jesus, até Joaquim, Ana, José, Zacarias, Isabel e João. Nesse lugar não havia nenhum mau espírito, nem tormento algum, a não ser o desejo ansioso da Redenção, que se realizara enfim. Indizível delícia e felicidade enchia as almas todas, que saudavam e adoravam o Salvador; os demônios amarrados foram obrigados a confessar sua ignomínia diante delas. Muitas dessas almas foram enviadas à terra, para entrar nos respectivos corpos e dar testemunho do Senhor. Foi nesse momento que tantos mortos saíram dos sepulcros em Jerusalém; apareciam como cadáveres ambulantes, depositando depois novamente os corpos, como um mensageiro da justiça deposita o manto oficial, depois de ter cumprido as ordens do superior. Vi depois o cortejo triunfal do Salvador entrar numa esfera mais baixa, uma espécie de lugar de purificação, onde se achavam piedosos pagãos que tinham tido um pressentimento da verdade e o desejo de conhecê-Ia. Havia entre eles espíritos maus, porque tinham ídolos; vi os espíritos malignos forçados a confessar o embuste e as almas adorarem o Senhor com alegria tocante. Os demônios desse lugar foram também amarrados e levados no cortejo. Assim vi o Salvador passar triunfalmente, com grande velocidade, por vários lugares onde estavam almas encerradas, libertando-as e fazendo ainda muitas outras coisas, mas no meu estado de miséria não posso contar tudo. Por fim o vi aproximar-se, com ar severo, do centro do abismo, do inferno, que me apareceu sob a forma de um imenso edifício horrível, formado de negros rochedos, de brilho metálico, cuja entrada tinha enormes portas, terríveis, pretas, fechadas com fechaduras e ferrolhos que causavam medo. Ouviam-se uivos de desespero e gritos de tormento, abriram-se as portas e apareceu um mundo hediondo e tenebroso. Assim como vi as moradas dos bem-aventurados sob a forma de uma cidade, a Jerusalém celeste, com muitos palácios e jardins,

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cheios de frutas e flores maravilhosas, de várias espécies, conforme as inúmeras condições e graus de santidade, assim vi também o inferno como um mundo separado, com muitos edifícios, moradas e campos. Mas tudo destinado, ao contrário, à tortura e às penas dos condenados. Como na morada dos bem-aventurados tudo é disposto segundo as causas e condições da eterna paz, harmonia e alegria, assim no inferno se manifesta em tudo a eterna ira, discórdia e desespero. Como no céu há muitíssimos edifícios, indizivelmente belos, transparentes, destinados à alegria e à adoração, assim há no inferno inúmeros e variados cárceres e cavernas, cheios de tortura, maldição e desespero. No céu há maravilhosos jardins, cheios de frutos de gozo divino; no inferno horrendos desertos e pântanos, cheios de tormentos e angústias e de tudo que pode causar horror, medo e nojo. Vi templos, altares, castelos, tronos, jardins, lagos, rios de maldição, de ódio, de horror, de desespero, de confusão, de pena e tortura; como há no céu rios de bênção, de amor, de concórdia, de alegria e felicidade; aqui a eterna, terrível discórdia dos condenados; lá a união bem-aventurada dos santos. Todas as raízes da corrupção e do erro produzem aqui tortura e suplício, em inumeráveis manifestações e operações; há só um pensamento reto: a idéia austera da justiça divina, segundo a qual cada condenado sofre a pena, o suplí cio, que é o fruto necessário de seu crime; pois tudo que se passa e se vê de horrível nesse lugar, é a essência, a forma e a perversidade do pecado desmascarado, da serpente que atormenta com o veneno maldo so os que o alimentaram no seio. Vi lá uma colunata horrorosa, em que tudo se referia ao horror e à angústia, como no reino de Deus à paz e ao repouso. Tudo se compreende facilmente, ao vê-Io, mas é quase impossível exprimir tudo em palavras. Quando os Anjos abriram as portas, viu-se um caos de contradição, de maldições, de injúrias, de uivos e gritos de dor. Vi Jesus falar à alma de Judas. Alguns dos Anjos prostraram exércitos inteiros de demônios. Todos foram obrigados a reconhecer e adorar Jesus, o que foi para eles o maior suplício. Grande número deles foram amar rados a um círculo, que cercava muitos outros, que deste modo tam bém ficaram presos. No centro havia um abismo de trevas, Lúcifer foi amarrado e lançado nesse abismo, onde vapores negros lhe ferviam em redor. Tudo se fez segundo os decretos divinos. Ouvi dizer que Lúcifer, se não me engano, 50 ou 60 anos antes do ano 2.000 de Cristo, seria novamente solto por certo tempo. Muitas outras datas e números foram indicados, dos quais não me lembro mais. Deviam ser soltos ainda outros demônios antes desse tempo, para provação e castigo dos homens. Creio que também em nossO tempo era a vez de alguns deles e de outros pouco depois do nosso tempo. É-me impossível contar tudo quanto me foi mostrado; são

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muitas coisas e não as posso relatar em boa ordem; também me sinto tão doente e quando falo dessas coisas, elas se me representam novamente diante dos olhos e só o aspecto já é suficiente para nos fazer morrer. Ainda vi exércitos imensos de almas remidas saírem do purgatório e do limbo, acompanhando o Senhor, para um lugar de delícias abaixo da Jerusalém celeste. Foi lá que vi também, há algum tempo, um amigo falecido. A alma do bom ladrão foi também conduzida para lá e viu assim o Senhor no Paraíso, conforme a promessa. Vi que nesse lugar foram preparados banquetes de alegria e conforto, como os tenho visto já muitas vezes, em visões consoladoras. Não posso indicar com exatidão o tempo e a duração de tudo que se passou, como também não posso contar tudo quanto vi e ouvi lá porque eu mesma não compreendo mais tudo, já porque podia ser mal compreendida pelos ouvintes. Vi, porém, o Senhor em lugares muito diferentes, até no mar, parecia santificar e libertar todas as criaturas; em toda parte fugiam os maus espíritos diante d’Ele e lançaram-se no abismo. Vi também a alma do Senhor em muitos lugares da terra. Vi-Q aparecer no sepulcro de Adão e Eva, sob o Gólgota. As almas de Adão e Eva juntaram-se-Ihe novamente; falou-Ihes e com elas Q vi passar, como sob a terra, em muitas direções e visitar os túmulos de muitos profetas, cujas almas se lhe juntaram, próximo das respectivas ossadas e explicou-Ihes o Senhor muitas coisas. Vi-O depois, com esse séquito escolhido, em que seguia também Davi, passar em muitos lugares de sua vida e paixão, explicando-Ihes com indizível amor todos os fatos simbólicos que se tinham dado ali e o cumprimento dessas figuras em sua pessoa. Vi-O especialmente explicar às almas tudo quanto se dera de fatos figurativos no lugar em que foi batizado e contemplei muito comovida a infinita misericórdia de Jesus, que as fez participar da graça de seu santo Batismo. Causou-me inexprimível comoção ver a alma do Senhor, acompanhada por esses espíritos bem-aventurados e consolados, passar, como um raio de luz, através da terra escura e dos rochedos, pelas águas e pelo ar e pairar tão sereno sobre a terra. É o pouco de que me lembro ainda, de minha contemplação da descida do Senhor aos infernos e da redenção das almas dos Patriarcas, depois de sua morte; mas além dessa visão dos tempos passados, vi nesse dia uma imagem eterna de sua misericórdia para com as pobres almas do purgatório. Vi que, em cada aniversário desse dia, lança por meio da Igreja, um olhar de salvação ao purgatório; vi que já no Sábado Santo remiu algumas almas do purgatório, que tinham pecado contra Ele na hora da crucificação. A primeira descida de Jesus ao limbo é o cumprimento de figuras anteriores e, por sua vez, é a figura da redenção atual. A descida aos infernos que vi, referia-se ao tempo passado, mas a salvação

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de hoje é.uma verdade permanente; pois a descida de Jesus aos infernos é o plantio de uma árvore da graça, destinada a administrar os seus méritos divinos às almas do purgatório e a redenção contínua e atual dessas almas é o fruto dessa árvore da graça no jardim espiritual do ano eclesiástico. A Igreja militante deve cuidar dessa árvore, colherlhe os frutos, para os outorgar à Igreja padecente, porque essa nada pode fazer em seu próprio proveito. Eis o que se dá em todos os merecimentos de Nosso Senhor; é preciso cooperar, para ter parte neles. Devemos comer o pão ganho com o suor de nosso rosto. Tudo quanto Jesus fez por nós no tempo, dá frutos eternos; mas devemos cultivá-Ios e colhê-Ios no tempo, para poder gozá-Ios na eternidade. A Igreja é como um bom pai de família; o ano eclesiástico é o jardim mais perfeito, com todos os frutos eternos no tempo; em um ano tem bastante de tudo para todos. Ai! dos jardineiros preguiçosos e infiéis, que deixam perder uma graça, que poderia curar um enfermo, fortalecer um fraco, saciar um faminto: no dia de juízo terão de dar conta até do menor pézinho de erva. 9 A sepultura de Jesus 1. O jardim e o sepulcro de José de Arimatéia 2. O descendimento da cruz 3. O corpo de Jesus é preparado para a sepultura 4. O enterro 5. A volta para casa, depois do enterro; o sábado; prisão de José de Arimatéia 6. A guarda no túmulo de Jesus 7. Os amigos de Jesus no Sábado santo A sepultura de Jesus 1. O jardim e o sepulcro de José de Arimatéia Esse jardim (*) está situado a cerca de sete minutos do monte Calvário, perto da porta de Belém, na encosta que vai subindo até os muros da cidade; é um belo jardim, com grandes árvores e bancos, em lugares com sombra; de um lado se estende até o muro da cidade, no alto da encosta. Quem vem da porta ao norte do vale, entrando no jardim, tem à esquerda o terreno do jardim, que sobe até o muro da cidade; e vê no fundo do mesmo, à direita, um rochedo isolado,

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onde é o sepulcro. Essa porta é de metal, que parece ser cobre e abre em dois batentes que, abertos, se encostam à parede em ambos os lados; não fica perpendicular, mas um pouco inclinada para o nicho e quase tocando o solo, de modo que uma pedra colocada em frente impede de abri-Ia. A pedra destinada a esse fim ainda estava fora da gruta e foi colocada à porta fechada só depois de depositado o corpo de Nosso Senhor no sepulcro. É grande e um pouco arredondada para o lado da porta, porque as paredes laterais também não estão em ângulo reto. Para abrir os batentes da porta não é necessário rolar a pedra para fora da gruta, o que seria bastante difícil, por causa da falta de espaço; mas passa-se uma corrente, que pende da abobada, através de algumas argolas, fixas para esse fim na pedra; puxando pela corrente, levanta-se a pedra, mas mesmo assim, só com esforço de vários homens se a desloca, encostando-a à parede lateral. * Parece-nos necessário mencionar aqui que a piedosa freira, nos quatro anos em que as visões foram escritas, narrou as muitas transformações pelas quais passaram os Santos Lugares de Jerusalém, no correr dos séculos, desde os primeiros tempos. Viu-os alteruadamente devastados e restaurados, mas sempre venerados, seja oculta ou publicamente e ela mesma os venerava nas visões. Viu também muitas pedras e fragmentos de rochedos, testemunhas da Paixão e Ressurreição de Nosso Senhor, que depois da descoberta dos Santos Lugares por Santa Helena, foram reunidos. na Igreja do Santo Sepulcro, por ela construído, na proximidade e sob a proteção da cidade. A narradora venerava nessa Igreja o lugar onde estava a cruz, o túmulo e várias partes da gruta sepulcral, sobre as quais foram edificadas várias capelas; algumas vezes, porém, quando venerava, não tanto o túmulo, mas o lugar onde estivera o túmulo, parecia em espírito procurar esse lugar na vizinhança, mas sempre um pouco mais distante do lugar da cruz. Depois de entrar no jardim, se vira à direita, para chegar à gruta sepulcral que abre para leste e donde cai a vista sobre a encosta e o muro da cidade. A sudoeste e noroeste do mesmo rochedo há ainda duas grutas menores, com entradas baixas. Pelo lado oeste passa um estreito caminho em redor do rochedo. O terreno em frente da entrada da gruta sepulcral é um pouco mais elevado do que a entrada e o solo da gruta. e para chegar à porta, há alguns degraus, que descem como um fosso, nesse lado oriental do rochedo. A entrada exterior está fechada por uma grade de vime. O interior da caverna é tão espaçoso, que quatro homens podem ficar encostados à parede, à direita. e quatro à esquerda, sem embaraçar os movimentos dos que depositam o corpo do morto. Esse espaço alarga-se no fundo da gruta, em frente à porta, formando no lado ocidental um nicho largo, mas pouco alto, que se arredonda

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em cima, formando a abóbada do rochedo sobre o sepulcro. Esse tem a altura de cerca de dois pés e há nele uma cavidade, para receber o corpo envolto nas mortalhas. O sepulcro está junto da gruta. como um altar; do lado dos pés e da cabeça há ainda lugar para um homem ficar em Pé e também em frente do sepulcro se pode ainda permanecer, depois de fechada a porta do nicho. Em frente à entrada da gruta, há no jardim um banco de pedra. Pode-se subir o rochedo do sepulcro e andar sobre a relva de que é coberto; de lá se avista justamente o muro da cidade e também o ponto mais alto de Sião e algumas torres; vê-se também de lá a porta de Belém, um aqueduto e a fonte de Gion. A rocha no interior da gruta é branca, com veios vermelhos e pardos. Toda a obra da gruta foi feita com muito capricho. 2. O descendimento da cruz Enquanto a cruz ficou abandonada, cercada apenas de alguns guardas, vi cerca de cinco homens, que, vindo de Betânia, desceram pelos vales, aproximaram-se do lugar do suplício, olharam para a cruz e afastaram-se furtivamente; creio que eram discípulos. Havia, porém, dois homens, José de Arimatéia e Nicodemos, que vi três vezes nos arredores, examinando e deliberando; uma vez, durante a crucificação, estavam perto, (talvez quando mandaram comprar as vestes de Jesus da mão dos soldados). Mais tarde estavam lá para ver se o povo já se tinha afastado, indo depois ao sepulcro, para fazer alguns preparativos; do sepulcro voltaram à cruz, olhando para cima e em redor, como se estudassem as condições. Fizeram o plano para o descendimento e voltaram à cidade. Começaram então ajuntar todas as coisas necessárias para o embal-samamento do corpo. Fizeram os servos levar as ferramentas para o descendimento do santo corpo da cruz e além disso, duas escadas, que tiraram de uma granja, perto da casa grande de Nicodemos; cada uma dessas escadas constava apenas de uma estaca, atravessada, de distância em distância, por paus, que serviam de degraus; havia nessas escadas ganchos, que se podiam fixar mais alto ou baixo, seja para prendê-Ias em qualquer parte, seja para pendurar neles algum objeto necessário, durante o trabalho. A boa mulher em cuja casa receberam as especiarias para o embalsa-mamento, tinha-Ihes empacotado tudo muito bem, para poderem transportá-Ias comodamente. Nicodemos comprara 100 arráteis de especiarias, que, segundo o nosso peso, equivale aproximadamente a 16 kilos, como me foi revelado várias vezes. Transportavam parte dessas especiarias em pequenos barris de cortiça, que Ihes pendiam do pescoço sobre o peito. Um desses barrizinhos continha um pó. Em bolsas de pergaminho ou de couro levaram pequenos molhos

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de ervas. José levou também um vaso de ungüento, feito não sei de que material; era vermelho e tinha ilm aro azul. Os servos, como acima já mencionamos, tinham levado numa padiola: vasos, odres, esponjas e ferramentas. Levaram também fogo, numa lanterna fechada. Esses servos saíram para o Cal vário antes dos senhores e por uma outra porta, creio que pela de Belém. No caminho pela cidade, passaram pela casa à qual tinha ido a Santíssima Virgem, com outras mulheres e com João, afim de buscar algumas coisas necessárias para o embalsamamento do corpo do Senhor e donde saíram, seguindo os servos a pouca distância. Eram talvez cinco mulheres, algumas das quais transportavam grandes fardos de panos sob os mantos. Era costume das mulheres envolver-se cuidadosamente numa longa faixa de pano, da largura de um bom côvado, quando saiam de noite ou quando queriam fazer secretamente uma obra piedosa. Começavam a enrolar-se por um braço e o pano envolvia-as tão estreitamente, que não podiam dar passos largos; tenho-as visto enrolarem-se assim e o pano chega comodamente para o corpo e o outro braço e ainda para velar a cabeça; nesse dia tinha algo de estranho: era o traje de luto. José de Arimatéia e Nicodemos também tinham se vestido de luto: as mangas, estolas e cinta larga eram pretas; os mantos, que traziam puxados sobre a cabeça, eram longos e largos e de cor cinzenta. Cobriram tudo que transportavam com esses mantos. Ambos se dirigiram à porta do Calvário. As ruas estavam desertas e silenciosas; no terror geral todo o povo se conservava em casa, com as portas fechadas. Muitos estavam prostrados por terra, fazendo penitência; só poucos celebraram as cerimônias prescritas para a festa. Quando José e Nicodemos chegaram à porta, encontraram-na fechada e as ruas vizinhas, como os muros da cidade, ocupados por numerosos soldados; eram aqueles que os fariseus tinham requerido, depois de duas horas da tarde, porque temiam uma insurreição. Os soldados ainda não tinham recebido ordem de retirar-se. José apresentou-Ihes uma ordem escrita de Pilatos para os deixar pas sar; os soldados mostraram-se prontos a obedecer a essa ordem, mas disseram-Ihes que já haviam experimentado em vão abrir a porta, que provavelmente se deslocara em conseqüência do terremoto; por isso foram também os carrascos obrigados a entrar pela porta Angular, depois de quebrar as pernas dos crucificados. Mas, quando José e Nicodemos puseram as mãos nos ferrolhos, abriu-se a porta com toda a facilidade, com assombro de todos. O dia ainda estava sombrio, escuro e nebuloso, quando chegaram ao Cal vário, onde encontraram os servos que tinham mandado adiante, como também as santas mulheres, que estavam sentadas em frente à cruz, chorando. Cássio e vários soldados que se tinham convertido, .estavam como transformados e mantinham-se a alguma

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distância, tímidos e respeitosos. José e Nicodemos falaram com a Santíssima Virgem e João a respeito de tudo que tinham feito, para salvar Jesus da morte ignominiosa e souberam que só com dificuldade se havia impedido que as pernas de Nosso Senhor fossem quebradas e que assim se tinha cumprido a profecia. Falaram também do golpe da lança, com a qual Cássio abrira o peito de Jesus. Depois de ter chegado também o centurião Abenadar, começaram, com muita tristeza e respeito, a obra piedosa do descendimento e embalsamamento do santo corpo do Senhor, Mestre e Redentor. A santíssima Virgem e Madalena estavam sentadas ao pé da cruz, à direita, entre a cruz de Dimas e a de Jesus; as outras mulheres estavam ocupadas em arrumar as especiarias e os panos, a água, as esponjas e os vasos. Cássio também se aproximou, quando viu Abenadar chegar e contou-lhe a miraculosa cura de seus olhos. Todos estavam comovidos, cheios de tristeza e amor, mas graves e silenciosos. Às vezes, quando a pressa e atenção à obra santa o permitiam, se ouvia cá e lá, um gemido abafado ou soluço. Sobretudo Madalena, muito exaltada, abandonavase inteiramente à dor e não se lembrava dos presentes, nem se moderava por qualquer consideração. Nicodemos e José encostaram as escadas por detrás da cruz, levando, ao subir, um pano largo, no qual estavam presas três largas correias, prenderam o corpo de Jesus, sob os braços e joelhos, ao lenho e seguraram os braços de Nosso Senhor, atando-os pelos pulsos aos madeiros transversais. Depois tiraram os cravos, batendo-os por detrás com ponteiros colocados sobre as pontas. As mãos do Senhor não foram muito abaladas pelos golpes do martelo e os cravos caíram facilmente das chagas, que estavam muito alargadas pelo peso do corpo e esse, seguro por meio dos panos, não pendia mais dos cravos. A parte Inferior do corpo que, com a morte, tombara sobre os joelhos, repousava então, em posição natural, sobre um pano, que estava seguro no alto, aos b!aços da cruz. Enquanto José tirava o cravo e deixava cair cuidadosamente o braço esquerdo sobre o corpo, atou Nicodemos o braço direito do mesmo modo ao da cruz, segurando também a cabeça coroada de espinhos em posição natural, pois caíra sobre o ombro direito; tirou o cravo da mão direita e fez descer o braço, com as respetivas ataduras, ao longo do corpo. Ao mesmo tempo o centurião Abenadar tirou, com grande esforço, o longo cravo dos pés. Cássio apanhou respeitosamente os cravos e depositou-os aos pés da Santíssima Virgem. José e Nicodemos colocaram então as escadas no lado da frente, próximo do santo corpo, desataram a correia superior do tronco da cruz e sucessivamente as correias, pendurando-as nos ganchos da escada. Descendo então devagar das escadas e passando as correias de gancho em gancho, cada vez mais para baixo, vinha também o santo corpo descendo gradualmente para os braços do centurião Abenadar, que de pé sobre um escabelo,

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segurou o corpo sobre os joelhos e desceu depois com ele enquanto Nicodemos e José, segurando a parte superior pelos braços, desciam degrau por degrau das escadas, devagar e com todo cuidado, como se transportassem um amigo querido, gravemente ferido. Assim desceu o santo e desfigurado corpo do Salvador da cruz à terra. O descendimento do corpo da cruz foi um espetáculo indizivelmente tocante. Faziam todos os movimentos com tanto cuidado e carinho, como se receassem causar sofrimento ao Senhor; manifestavam ao san to corpo o mesmo amor e respeito que tinham sentido para com o Santo dos santos, durante a vida. Todos que estavam presentes, não desviavam os olhos do corpo do Senhor e acompanhavam todos os movimentos e manifestavam solicitude, estendendo os braços, derramando lágrimas ou por outros gestos de dor. Mas todos guardavam silêncio; os homens que trabalhavam, penetrados de um respeito involuntário, como quem toma parte num ato religioso, só falavam a meia voz, para chamar a atenção ou pedir qualquer objeto. Quando ressoaram as marteladas que fizeram sair os pregos, Maria Santíssima, Madalena e todos que tinham assistido à crucificação, sentiram de novo as dores dilacerantes daquela hora; pois esses golpes lhes lembravam as dores cruéis de Jesus causadas pelas marteladas e todos estremeceram, pensando ou-vir-Lhe novamente os gemidos penetrantes e contudo se afligiam de que a santa boca Lhe houvesse emudecido, no silêncio da morte. Depois de descer o santo corpo, os homens o envolveram dos joelhos até os quadris e depositaram-no sobre um pano, nos braços da Mãe Santíssima, que lhos estendeu, cheia de dor e saudade. 3. O corpo de Jesus é preparado para a sepultura A Santíssima Virgem estava sentada sobre uma coberta, estendida sobre a terra; o joelho direito, um pouco elevado, como também as costas, apoiavam-se-Ihe sobre uma almofada, feita de mantos enrolados; fizeram esse arranjo para facilitar à Mãe, exausta de dor e cansaço, a triste obra de caridade que ia fazer, para com o santo corpo do Filho querido, cruelmente assassinado. A santa cabeça de Jesus, um pouco curvada, estava encostada ao joelho de Maria; o corpo jazia estendido sobre o pano. Igualavam-se a dor e o amor da Virgem Santíssima. Tinha de novo nos braços o corpo do Filho adorado, a quem durante tão longo martírio não pudera testemunhar seu amor; via quanto estava desfigurado o santo corpo, pelas horríveis crueldades, via-lhe de perto as feridas, beijava-lhe as faces sangrentas, enquanto Madalena jazia prostrada por terra, com o rosto sobre os pés de Jesus. Os homens retiraram-se então para um pequeno vale, situado a su-doeste, na encosta do Cal vário, onde tencionavam terminar o embalsamamento e arrumaram tudo quanto era necessário para esse fim. Cássio, com um grupo de soldados que se tinham convertido,

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mantinhase a respeitosa distância; toda a gente inimiga do Mestre tinha já voltado para a cidade e os soldados ainda presentes ficaram para servir de guarda' e impedir que alguém viesse perturbar as últimas honras prestadas a Jesus. Alguns ajudavam, comovidos e humildes, prestando pequenos serviços, quando Ihes pediam. Todas as santas mulheres ajudavam, onde era preciso, passando os vasos com água, esponjas, panos, ungüentos e especiarias ou mantinham-se atentas a certa distância. Entre elas se achavam Maria, filha de Cleofas, Salomé e Verônica; Madalena estava sempre ocupada com o santo corpo; Maria Helí, a irmã mais velha da Santíssima Virgem, senhora já idosa, estava sentada silenciosa, João estava sempre ao lado da Santíssima Virgem, pronto a prestar-lhe qualquer auxílio; era o mensageiro entre as mulheres e os homens; ajudava àquelas e depois prestou também muitos serviços aos homens, durante o embalsamamento. Estava tudo muito bem preparado; as mulheres trouxeram odres de couro, que se podiam abrir e dobrar e um vaso com água, que estava sobre uma fogueira de carvão. Trouxeram a Maria e a Madalena tigelas com água e esponjas limpas, espremendo as usadas e despejavam a água usada nos odres de couro. Creio, pelo menos, que os chumaços redondos que as vi espremerem, eram esponjas. A Santíssima Virgem conservava um ânimo forte, em toda a sua indizível dor; (*) mesmo em sua tristeza não podia deixar o santo corpo no horrendo estado em que o pusera o ignominioso suplício e assim começou, com atividade infatigável, a lavá-Io cuidadosamente. Abrindo a coroa de espinhos pelo lado posterior, tirou-a cuidadosamente da cabeça de Jesus, com auxílio dos outros. Para que os espinhos que entraram na cabeça, não alargassem as feridas, foi preciso cortá-Ios um a um da coroa. Colocaram depois a coroa junto aos cravos, ao lado, e Maria tirou alguns espinhos compridos e fragmentos que tinham ficado na cabeça do Salvador, com uma espécie de pinças curvas e elásticas, de cor amarela e mostrou-os tristemente aos amigos compassivos. Puseram os espinhos junto à coroa; mas é possível que alguns fossem guardados como lembrança. Quase não se podia mais reconhecer o rosto do Senhor, tão desfigurado estava pelas feridas e pelo sangue. O cabelo e a barba, em desalinho, estavam completamente colados pelo sangue. Maria lavou-lhe o rosto e a cabeça, passando esponjas molhadas sobre o cabelo, para tirar o sangue que secara. A medida que lavava, tornavam-se mais visíveis os efeitos do cruel suplício, causando cada vez novas manifestações de compaixão, novos cuidados, de ferida em ferida. Maria limpou-lhe as feridas da cabeça, lavou o sangue dos olhos, das narinas e dos ouvidos, com uma esponja e um pequeno lenço, estendidos sobre os dedos da mão direita; com esse limpou também a boca entreaberta, a língua,

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os dentes e os lábios de Nosso Senhor. Dispôs o pouco que restava da cabeleira de Jesus em três partes, uma para cada lado e uma para o lado posterior da cabeça e depois de alisar os cabelos de ambos os lados, fê-los passar por trás das orelhas. Quando acabou de limpar a cabeça, deu-Lhe um beijo na face e cobriu o santo rosto. Dirigiu então os cuidados ao pescoço, aos ombros, ao peito e às costas do santo corpo, aos braços e às mãos laceradas e sangrentas. Ai! Então se viu toda a horrenda dilaceração do santo corpo. Todos os ossos do peito e todas as articulações estavam deslocadas e tornaram-se inflexíveis; o ombro sobre o qual Jesus transportou a pesada cruz, era uma grande chaga; toda a parte superior do corpo estava coberta de feridas e pisaduras, causadas pela flagelação; no lado esquerdo se via uma ferida pequenina, onde saíra a ponta da lança e no lado direito se abria a larga chaga feita pela mesma lança, que também lhe traspassou o coração de lado a lado. Maria Santíssima lavou e limpou todas essas feridas. Madalena, prostrada de joelhos, ficava-lhe às vezes em frente, para a ajudar, mas quase sempre estava aos pés de Jesus, os quais lavou então pela última vez, mais com as lágrimas do que com água, enxugando-os com o cabelo. * Quando a narradora, na Sexta-Peira Santa, a 30 de Março de 1820, no começo da noite, contemplava o descendimento do Senhor da cruz, caiu de repente num profundo desmaio, na presença de Clemente Brentano. Depois de voltar a si, declarou, no meio de incessantes sofrimentos: "Quando contemplei o corpo de Jesus estendidos sobre os joelhos da Santíssima Virgem, pensei comigo: "Vede, como é forte! Ela nem desmaia." Meu guia repreendeu-me imediatamente por esse pensamento, que era mais expressão de espanto do que uma dor aguda como uma espada, a ponto de eu quase morrer e ainda continuo a senu-Ia. Picou muito tempo com essa dor, que foi também a causa de uma doença grave, que a levou quase às portas da morte. A cabeça, o peito e os pés do Senhor foram assim limpos do sangue e de toda a imundície; o corpo, de um branco azulado, com o brilho de carne exangue, coberto de manchas pardas e de outros lugares verme lhos, onde a pele fora arrancada, repousava sobre os joelhos de Maria, que lhe envolvia os membros lavados e se pôs a embalsamar todas as feridas, começando novamente pela cabeça. As santas mulheres ajoelhavam-se alternadamente diante dela, apresentando-lhe um vaso, do qual, com o indicador e o polegar da mão direita, tirava um bálsamo ou ungüento precioso, com que ungia e untava todas as feridas. Derramou também ungüento sobre o cabelo; vi que, segurando as mãos de Jesus com a mão esquerda, as beijou respeitosamente e encheu as largas chagas dós cravos com o mesmo ungüento ou as mesmas especiarias de que enchera os ouvidos as narinas e a chaga do lado. Madalena estava quase todo

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o tempo ocupada com os pés de Jesus, ora enxugando e untando-os, ora banhando-os novamente com as lágrimas; muitas vezes apoiava neles o rosto. Vi que não despejavam fora a água usada, mas guardavam-na nos odres de couro, nos quais também espremiam as esponjas. Vi diversas vezes que Cássio e outros soldados foram buscar água à fonte de Gion, em odres e jarros, que as mulheres tinham trazido; essa fonte de Gion estava tão perto, que se podia enxergá-Ia do jardim do sepulcro. Quando a Santíssima Virgem acabou de untar todas as feridas, en-volveu a santa cabeça em faixas; mas ainda não pôs o lenço que devia cobrir-lhe o rosto. Fechou-lhe os olhos entreabertos, pousando sobre eles a mão por algum tempo; fechou também a boca do Senhor, abraçou o santo corpo do Filho e, chorando, deixou cair o rosto sobre o de Jesus. Madalena, pelo grande respeito que tinha ao Senhor, não lhe tocou no semblante, mas apenas descansou o rosto sobre os pés do santo corpo. José e Nicodemos já tinham estado por algum tempo perto, esperando, quando João se aproximou da Santíssima Virgem, pedindo que se separasse do corpo de Jesus, para que o pudessem preparar para a sepultura, porque o sábado já estava perto. Maria abraçou mais uma vez, com o maior fervor, o corpo do Filho adorado, despedindo-se dele com palavras comoventes. Então levantaram os homens o santo corpo no pano em que jazia, sobre os joelhos da Mãe Santíssima e levaram-no para o lugar do embalsamamento. A Virgem Santíssima, novamente entregue à dor, para a qual tinha achado alguma consolação nos piedosos cuidados, caiu, com a cabeça velada, nos braços das mulheres; Madalena, porém, seguiu os homens, correndo-Ihes alguns passos atrás, com os braços estendidos, como se lhe quisessem raptar o Amado, mas voltou depois para junto da SS. Virgem. Levando o santo corpo, os homens desceram um pouco do alto do Gólgota, para um lugar, numa dobra da encosta, onde havia uma pedra chata e lisa, própria para esse fim. Ali já tinham feito todos os preparativos para o embalsamamento. Vi primeiro, ali estendido, um pano trabalhado a crivo, semelhante a uma rede, como que feita de rendas; pareciase com o grande pano de fome (*), que se pendura em nossas igrejas. * Pano de fome chama-se no bispado de Münster, na Alemanha, um pano grande, de linho branco, que durante a quaresma é pendurado, por meio de cordões do teto da Igreja ao solo, diante do altar-mor ou entre o coro e a Igreja. Este pano costuma ter partes bordadas a crivo, que representam as cinco Chagas, os instrumentos da Paixão ou outras coisas semelhantes. Sobre as almas sensíveis faz este pano uma impressão séria e sublime, exortando-as à mortificação, sobriedade, piedade e meditação.

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Quando criança, pensava eu sempre, ao ver esse pano, que era o mesmo que vi no embalsamamento do Senhor. Provavelmente tinha o feitio de uma rede, para deixar escorrer a água, ao lavar. Vi mais um pano grande, estendido sobre a pedra. Deitaram o corpo do Senhor sobre o primeiro e alguns seguravam o outro por cima. Nicodemos e José de Arimatéia ajoelharam-se e desataram, sob essa coberta, o lençol em que tinham envolvido o ventre do Senhor, ao descê-Lo da cruz. Depois tiraram também do santo corpo a cinta que Jonadab, sobrinho do pai nutrício do Salvador, lhe trouxera antes da crucifixão. Lavaram então o ventre do Senhor com esponjas, sob o pano com que o cobriam, com piedoso recato e que o tornava invisível aos seus olhos. Coberto ainda com o pano, levantaram-nO depois, por meio de outros panos, passados sob os braços e joelhos e assim lhe lavaram também as costas, sem virar o corpo. Continuavam a lavar, até que a água espremida das esponjas escorria clara e limpa. Depois o lavaram ainda com água de mirra e vi que depuseram o santo corpo sobre a pedra, estendendo-o respeitosamente com as mãos, dandolhe uma posição reta, pois o meio do corpo e as pernas estavam ainda um pouco curvas, entesadas, na posição em que se encolhera, morrendo. Puseram-Lhe então sob os lombos um pano da largura de um côvado e cerca de três côvados de comprimento, enchendo-lhe o seio de molhos de ervas, - como vejo às vezes em banquetes celestes, ervas verdes em pratos de couro, com borda azul, - e de fibras finas e crespas de plantas parecidas com açafrão e sobre tudo isso espalharam um pó fino, que Nicodemos trouxera num vaso. Envolve-ram depois o ventre, com todas essas especiarias, no pano, puxaram uma parte deste, por entre as pernas, para cima e fixaram-na sobre o ventre, fazendo entrar a extremidade do pano por baixo do cinto. Depois de O ter deste modo envolvido, ungiram todas as chagas das coxas, cobriram-nas de especiarias, puseram molhos de ervas entre as pernas, até os pés e enrolaram as pernas junto com as ervas, de baixo para cima. Então foi João chamar a Santíssima Virgem e as outras santas mulheres. Maria ajoelhou-se ao lado da cabeça, colocando sob essa um lenço fino, que recebera de Cláudia Prócula, mulher de Pilatos e que trouxera ao pescoço, sob o manto. Ela e as outras santas mulheres encheram então os espaços entre a cabeça e os ombros, em redor do pescoço, até às faces de Jesus, com molhos de ervas, com as fibras e o pó fino e feito isso, a Santíssima Virgem atou tudo com aquele pano, envolvendo cabeça e ombros. Madalena derramou ainda um frasco inteiro de um líquido aromático na ferida do lado de Jesus e as santas mulheres puseram-lhe ainda ervas e especiarias nas mãos e em redor dos pés. Os homens puseram especiarias nas axilas, na cova estomacal, enchendo todo o espaço em redor do corpo, cruzaram sobre o seio os santos braços

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entorpecidos e envolveram finalmente todo o corpo, junto com as especiarias, no grande pano branco, até o peito, como se enfaixa uma criança; depois fizeram entrar sob um dos braços já enfaixados a extremidade de uma faixa, com a qual enrolaram todo o corpo, levantando-o e começando pela cabeça. Feito isto, puseram-no sobre o pano grande, de seis côvados de comprimento, o qual José de Arimatéia comprara e nele o envolveram. O corpo jazia obliquamente sobre o pano, do qual dobraram uma extremidade dos pés até o peito, a outra, de cima, sobre a cabeça e ombros; com as partes salientes dos lados envolveram o meio do corpo. Todos se ajoelharam então em redor do corpo, para se despedirem, chorando e eis que um milagre comovente se lhes deparou ante os olhos: Toda a figura do santo corpo, com todas as feridas, apare-ceu na superfície do pano que o cobria, desenhado em cor vermelho-escura, como se Jesus quisesse recompensar-Ihes os cuidados cari-nhosos e a tristeza, deixando-Ihes o retrato, através de todo o invólucro. Chorando alto, abraçaram o santo corpo, beijando e venerando a milagrosa imagem. A admiração de que estavam possuídos, era tão grande, que de novo abriram o pano e tornou-se ainda maior, quando acharam todas as faixas e ataduras do corpo brancas como dantes; só o pano exterior trazia a imagem da figura do Senhor. A parte do pano sobre a qual jazia o corpo, mostrava o desenho do dorso do Senhor e os lados do pano que o cobriam, sobrepostos, apresentavam a imagem da frente, porque na frente estava o pano dobrado sobre Ele, com vários cantos. A imagem não dava a impres- são de feridas sangrentas, pois todo o corpo estava envolto espessamente em especiarias, com muitas ataduras; era, porém, uma ima gem milagrosa, testemunho da divindade criadora, que permanecera unida ao corpo de Jesus. Vi também muitos fatos da história posterior dessa santa morta-lha, os quais, porém, não sei mais contar na devida ordem. Ela estava, junto com outros panos, na posse dos amigos de Jesus, depois da ressurreição. Uma vez vi que foi arrancada a uma pessoa, que a levava sob o braço. Vi-a duas vezes nas mãos de judeus, mas também muito tempo em diversos lugares, venerada pelos cristãos. Uma vez houve uma questão por causa dela e para a terminar, jogaram a mortalha no fogo, mas foi milagrosamente levada pelos ares e caiu nas mãos de um cristão. Foram feitas três cópias da santa imagem, por santos homens, que puseram outros panos em cima, com fervorosa oração, reproduzindo assim tanto a figura do dorso, como também a imagem composta da frente. Essas cópias foram consagradas pelo contato na intenção solene da Igreja e em todos os tempos têm sido instrumento de muitos milagres. O original vi uma vez, um pouco estragado, com alguns rasgões, na Ásia, venerado por cristãos não católicos. Es-queci o nome da cidade, que fica situada num vasto país, vizinho

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da terra dos Reis Magos. Vi nessas visões também certas coisas de Turim e da França, do Papa Clemente I e do imperador Tibério, que morreu cinco anos depois da morte de Cristo; mas esqueci-as. 4. O enterro Os homens colocaram o santo corpo sobre a padiola de couro, cobriram-no com uma coberta parda e enfiaram em cada lado um varal, o qual me causou uma viva recordação da Arca da Aliança. Nicodemos e José carregavam as extremidades anteriores dos varais sobre os ombros; atrás seguravam Abenadar e João. Depois se seguiam a Santíssima Virgem, sua irmã mais velha, Maria Helí, Madalena e Maria de Cleofas e após elas, o grupo das mulheres que dantes estavam um pouco mais afastadas: Verônica, Joana Cuza, Maria Marcos (mãe de Marcos), Salomé Zebedaei, Maria Salomé, Salomé de Jerusalém, Susana e Ana, sobrinha de S. José, educada em Jerusalém. Encerravam o séquito Cássio e os soldados. As outras mulheres, por exemplo Maroni, de Naim, Dina, a Samaritana e Mara, a Sufamita, estavam então em Betânia, em casa de Marta e Lázaro. Dois soldados, com fachos torcidos, iam na frente, pois precisavam de luz na gruta do sepulcro. Cantando salmos, em tom triste e baixo, caminharam cerca de sete minutos, através do vale, em direção ao jardim do sepulcro. Vi na encosta, além do vale, Tiago o Maior, irmão de João, olhar o cortejo e voltar depois, para o anunciar aos outros discípulos, refugiados nas cavernas. O jardim irregular, coberto de relva, que ficava diante do rochedo da gruta, na extremidade do jardim, era cercado de uma sebe e além desta tinha na entrada uma cancela, cujas trancas, com gonzos de ferro, estavam fixas em estacas. Defronte da entrada do jardim, diante do rochedo do sepulcro, à direita, há várias palmeiras. A maior parte das outras plantas são arbustos, flores e ervas aromáticas. Vi o cortejo parar na entrada do jardim e abrir a cancela, tirando algumas trancas, das quais se serviram depois, como alavancas, para fazer rolar para dentro da gruta a grande pedra que devia fechar o sepulcro. Chegando ao pé do rochedo, abriram a padiola e tiraram o santo corpo, deitando-o sobre uma tábua estreita, coberta de um largo pano. Nicodemos e José carregaram as duas extremidades da tábua, enquanto os outros dois seguravam o pano. A nova gruta sepulcral fora limpa e perfumada pelos criados de Nicodemos; era bem graciosa e no alto das paredes interiores tinha um friso esculpido. A cova mortuária era, no lugar da cabeça, um pouco mais larga do que no lugar dos pés e havia sido escavada na forma côncava de um cadáver amortalhado, com pequenas elevações no lugar da cabeça e dos pés. As santas mulheres assentaram-se em frente à entrada da gruta. Os quatro homens desceram com o santo corpo do Senhor à gruta,

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onde o depuseram no chão; encheram ainda parte do leito sepulcral de especi arias, estenderam sobre ele um pano, colocando sobre este o santo corpo. O pano pendia ainda dos lados do sepulcro. Manifestando ao santo corpo o seu amor com lágrimas e abraços, saíram da gruta. Entrou então a Santíssima Virgem. Sentou-se à cabeceira de Jesus, à beira do sepulcro, que tinha cerca de dois pés de altura e inclinou-se, chorando, sobre o cadáver do Filho. Depois de Maria Santíssima sair, entrou Madalena, com ramos e flores, que colhera no jardim e que espalhou sobre o santo corpo. Torcendo as mãos e chorando alto, abraçou os pés de Jesus. Como, porém, os homens lá fora insistissem em fechar o sepulcro, voltou para junto das mulheres. Os homens dobraram sobre o santo corpo a parte pendente do pano, cobriram tudo com uma coberta parda e fecharam as portas. Puseram uma barra transversal e uma perpendicular; parecia uma cruz. A grande pedra destinada a fechar as portas do sepulcro e que ainda estava fora da gruta, tinha uma forma semelhante a uma arca * ou um monumento sepulcral; um homem podia deitar-se sobre ela. Era muito pesada e os homens rolaram-na para dentro da gruta, com auxílio das trancas tiradas da cancela do jardim e encostaram-na às portas fechadas do sepulcro. A entrada exterior da gruta foi fechada com uma porta de ramos entrelaçados. * Provavelmente a narradora se refere às antigas caixas ou arcas, nas quais os camponeses de sua terra guardam a roupa. O fundo é menor do que a tampa e deste modo tomam a forma de uma tumba; por isso ela os Compara a um monumento sepulcral. Ela mesma possuía uma tal arca, que chamava o seu baú. Desse modo descreve várias vezes aquela pedra, mas, mesmo assim, não temos ainda uma idéia clara da respectiva forma. Todos os trabalhos dentro da gruta foram feitos à luz de fachos, porque dentro estava muito escuro. Durante o enterro do Senhor, vi vários homens na proximidade do jardim e do Monte Calvário, que, tímidos e tristes, andavam de um lado para outro; creio que eram discípulos, que receberam de Abenadar notícias e, saindo das cavernas, aproximaram-se através do vale e àquela hora estavam voltando. 5. A volta para casa, depois do enterro; o sábado; prisão de José de Arimatéia Já era a hora em que começava o sábado. Nicodemos e José voltaram à cidade, passando por uma pequena porta que havia no muro da cida- de, perto do jardim e que, se bem me lembro, Ihes era concedida por favor particular. Disseram à Santíssima Virgem, a João, Madalena e algumas mulheres que ainda queriam ir ao Monte Cal

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vário, para rezar e bus car algumas coisas ali deixadas, que essa porta, como também o portão para o Cenáculo, Ihes seriam abertos, se batessem. Maria Helí, a irmã já idosa da Santíssima Virgem, foi conduzi da à cidade por Maria Marcos e outras mulheres. Os criados de Nicodemos e José voltaram ao Monte Calvário, para buscar os utensílios que lá tinham deixado. Os soldados reuniram-se àqueles que ocupavam a porta que dava para o Monte Cal vário; Cássio seguiu para o palácio de Pilatos, levando a lança e relatou-lhe tudo que acontecera, prometendo também lhe dar notícias exatas de tudo quanto ainda sucedesse, se o mandasse acompanhar a guarda do sepulcro, a qual os judeus, segundo fora informado, viriam requerer-lhe. Pilatos escutou todas as informações com um ocul to terror, tratou-o, porém, como fanático e com nojo e medo supersticio so da lança que Cássio trouxera consigo, mandou-lhe que a levasse para fora da sala. Quando a Santíssima Virgem e os amigos voltavam com os utensílios do Monte Cal vário, onde ainda tinham rezado e chorado, viram um des tacamento de soldados que Ihes vinha ao encontro; retiraram-se então para os dois lados do caminho, para deixar passar a tropa. Esta se dirigiu ao Monte Cal vário, provavelmente para tirar, ainda antes do sábado, as cruzes e enterrá-Ias. Depois de terem passado, as santas mulheres con- tinuaram o caminho em direção à pequena porta da cidade. José e Nicodemos encontraram-se na cidade com Pedro, Tiago o Maior e Tiago o Menor. Todos estavam chorando. Pedro especialmente estava muito triste, preso de violenta dor; abraçou-os soluçando, acu sou-se a si mesmo, lastimando não ter estado presente à morte do Se nhor e agradeceu-Ihes terem dado sepultura ao corpo sagrado. Todos estavam desvairados de dor. Pediram ainda para serem recebidos no Cenáculo, quando batessem e despediram-se, para procurar ainda ou tros discípulos dispersos. Vi mais tarde a Santíssima Virgem e as amigas baterem à porta do Cenáculo e serem recebidas, como também Abenadar e, pouco a pouco, os demais Apóstolos e vários discípulos. As santas mulheres retiraram-se para a parte onde habitava a Santíssima Virgem; tomaram um pouco de alimento e passaram ainda alguns minutos, recordando com tristeza e dor tudo o que se tinha passado. Os homens revestiram-se de outras vestes e vi-os começarem o sábado de pé, sob um candeeiro. Depois comeram ainda carne de cordeiros, em diversas mesas, no Cenáculo, mas sem cerimônias; pois não era o cordeiro pascal, que já tinham comi-do na véspera. Reinava tristeza e desânimo geral. Também as santas mulheres rezavam com Maria, à luz de um candeeiro. Mais tarde, quando já escurecera totalmente, foram ainda recebidos Lázaro, Marta, Maroni, a viúva de Naim, Dina Sumarites e Maria Sufanites,

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que depois de começar o sábado, vieram da Betânia e a dor renovou-se pela narração de tudo que se passara. Mais tarde saíram José de Arimatéia e alguns discípulos e diversas mulheres do Cenáculo, voltando para casa; iam tímidos e tristes pelas ruas de Sião, quando de repente um grupo de homens armados saiu de uma emboscada, arremessando-se sobre eles e prendendo José de Arimatéia, enquanto os outros fugiram com gritos de terror. Vi encarcerarem o bom José numa torre do muro da cidade, não muito longe do tribunal. Caifás mandara soldados pagãos executarem essa prisão, porque não eram obrigados a guardar o sábado. Os inimigos tinham a intenção de deixar José morrer de fome e não falar nesse desaparecimento. 6. A guarda no túmulo de Jesus Na noite de sexta-feira para sábado vi Caifás e os príncipes dos judeus reunirem-se em conselho, para decidir o que deviam fazer, diante dos acontecimentos milagrosos e da excitação do povo. Depois foram ainda durante a noite, procurar Pilatos e disseram-lhe que se tinham lembrado de que aquele impostor tinha dito, quando ainda vivia, que no terceiro dia após a morte ressuscitaria; pediam-lhe que por isso mandasse guardar o sepulcro até o terceiro dia, para que os discípulos de Jesus não lhe roubassem o corpo, divulgando em seguida que tinha ressusci-tado dos mortos, pois dessa forma seria a segunda impostura pior do que a primeira. Pilatos, porém, não quis intrometer-se mais nessa questão e disseIhes: "Tendes uma guarda; ide guardar o túmulo como entenderdes." Mandou, porém, Cássio acompanhar a guarda e observar e relatar-lhe depois tudo. Vi os doze fariseus saírem da cidade, antes do pôr do sol. Os doze soldados que os acompanhavam, não estavam vestidos à forma romana: eram soldados do Templo e pareciam-me uma espécie de guarda de corpo. Levaram braseiros, fixos sobre hastes, para poder ver tudo durante a noite e para ter luz na escuridão do sepulcro. Ao chegar, certificaram-se da presença do corpo, amarraram uma corda à porta do túmulo, dessa corda fizeram passar uma segunda à pedra, selando essas cordas com um selo semilunar. Depois voltaram à cidade e os guardas sentaram-se defronte da porta exterior do sepulcro. Ficavam alternadamente cinco ou seis homens, indo de vez em quando alguns à cidade, para buscar víveres. Cássio, porém, não deixou o posto; permanecia em pé ou sentado, no fosso em frente à entrada da gruta, de modo que podia ver o lado do túmulo fechado, onde repousavam os pés do Senhor. Recebeu grandes graças interiores e a inteligência intuitiva de muitos mistérios; como não estivesse acostumado a tais estados sobrenaturais, ficava, a maior parte do tempo dessa iluminação

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espiritual, como que embriagado, inconsciente das coisas exteriores. Foi nesse tempo que se converteu inteiramente, tornando-se novo homem; passou o dia em atos de arrependimento, ação de graças e adoração. 7. Os amigos de Jesus no Sábado santo Vi à noite, como já mencionei, os homens reunidos no Cenáculo, cerca de vinte, de vestes longas e brancas e cingidos, celebrando o sábado, à luz de um candeeiro e depois de comer, separaram-se para dormir. Diversos foram para casa. Também hoje os vi reunidos no Cenáculo, na maior parte do tempo em silêncio, rezando e lendo altemadamente e de vez em quando deixando entrar alguns que chegavam. No local onde ficava a Santíssima Virgem, havia uma grande sala e nessa alguns recantos separados por biombos ou tapetes, para servirem de quartos de dormir. Depois que as santas mulheres, voltando do sepulcro, tinham posto todos os utensílios nos respectivos lugares, acendeu uma delas um candeeiro, que pendia no centro da sala. Reuniram-se sob este candeeiro, em roda da Santíssima Virgem, rezando alternadamente, com grande devoção e tristeza. Depois tomaram algum alimento. Entraram na sala Marta, Maroni, Dina e Mara, que depois de começar o sábado, tinham vindo de Betânia, com Lázaro, que se juntou aos homens reunidos no Cenáculo. Contaram chorando aos recém-chegados a morte e a sepultura do Senhor e como já era tarde, alguns dos homens, entre os quais José de Arimatéia, mandaram chamar as mulheres que queriam voltar para suas casas na cidade e despediram-se. Ao voltar este grupo para casa, José foi preso, perto do tribunal de Caifás, como já contei e encarcerado numa torre. As mulheres que ficaram no Cenáculo, separaram-se então, indo para as mencionadas celas de dormir; puseram panos compridos sobre a cabeça e por algum tempo ali permaneceram sentadas no chão, em triste silêncio, encostadas às cobertas, que estavam enroladas ao pé da parede. Depois se levantaram, desenrolaram as cobertas, tiraram as san dálias, cintas e parte do vestuário, velaram-se da cabeça aos pés, como costumam fazer para dormir e deitaram-se para um curto descanso, sobre as cobertas estendidas; pois logo depois de meia noite se levantaram de novo, arrumaram a roupa, enrolaram os leitos e reuniram-se sob o candeeiro, em roda da Santíssima Virgem, para rezarem alternadamente. Tenho visto muitas vezes filhos fiéis de Deus e homens santos, desde que se reza neste mundo, observarem esse costume de orações notur nas, seja inspirados por uma graça pessoal, seja incitados por preceitos divinos e eclesiásticos. Depois da Mãe de Jesus e as amigas terem cumprido esse dever de oração noturna, apesar dos grandes sofrimentos e depois de

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terem tam bém os homens rezado no Cenáculo, à luz do candeeiro, bateu João, com alguns outros discípulos, à porta da sala das mulheres, que se envolveram imediatamente nos mantos e os seguiram, junto com a Santíssima Virgem, ao Templo. Vi a Santíssima Virgem, as santas mulheres, João e outros discípulos chegarem ao Templo, quase ao mesmo tempo em que o sepulcro era selado: cerca de três horas da manhã. Era costume de muitos judeus, de madrugada, depois de ter comido o cordeiro pascal, irem ao Templo, que nessa ocasião já era aberto à meia noite, porque começavam os sacrifícios de manhã muito cedo. Naquele dia, porém, estava tudo em desordem, pela interrupção da festa e pela profanação do Templo. Parecia-me que a Santíssima Virgem, com as amigas, queria somente se despedir do Tem plo, no qual tinha sido educada, adorando o Santíssimo, até trazer no seio o próprio Santíssimo, que agora fora tão cruelmente imolado, como verdadeiro Cordeiro pascal. O Templo estava aberto, segundo o hábito desse dia e iluminado por lampiões e até o átrio dos sacerdotes era acessível ao povo, fora os guardas e empregados, como de costume nessa manhã. Mas, lá não havia nenhum fiel. Tudo estava ainda em desordem e devastado pelas terríveis destruições do dia precedente. O Templo estava profanado pela aparição de mortos e eu não podia deixar de perguntar a mim mesma: "Como poderão reparar tudo isto?” Os filhos de Simeão e os sobrinhos de José de Arimatéia, que estavam muito tristes com a notícia da prisão do tio, encontraram-se com a Santíssima Virgem e os companheiros e conduziram-nos por todas as partes do Templo, do qual eram guardas. Viram silenciosos e assustados toda a destruição, adorando o testemunho divino; só de vez em quando os guias descreviam acontecimentos do dia anterior. Vi em muitos lugares prejuízos causados pelo terremoto da véspera, que ainda não haviam sido consertados. No ponto onde se juntam o átrio e o Santo do Templo, havia tão larga fenda no muro, que um homem podia passar através e havia perigo dos muros caírem. A verga por cima da cortina, diante do Santo, abaixara, as colunas que a suportavam, cederam para os lados e a cortina pendia de ambos os lados, rasgada de cima a baixo, em duas partes. Pela grossa pedra caída do muro norte do Templo, perto da cela de oração de Simeão, também destruída, formarase tão grande abertura, no lugar onde aparecera Zacarias, que as santas mulheres puderam passar sem dificuldade e do outro lado, perto da cátedra em que o Menino Jesus ensinara, ver, através da cortina rasgada, o Santo, o que em outros tempos era proibido. Também se fenderam aqui e acolá os muros, afundaram-se partes do solo, umbrais e colunas saíram do lugar. A SS. Virgem visitou, com os amigos, todos os lugares que lhe eram sagrados, pela lembrança de Jesus. Prostrando-se por terra,

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beijava os santos lugares, chorando e contava as suas reminiscências, em poucas palavras comovedoras. Também as companheiras faziam o mesmo. Os judeus têm grande veneração por todos os lugares onde aconteceu alguma coisa que Ihes parece sobrenatural; tocam e beijam esses lugares e deitam-se por terra, tocando-a com o rosto. Nunca achei nisso coi~a de admirar. Se sabemos, cremos e sentimos que o Deus de Abraão, Isaac e Jacó é Deus vivo e mora no meio do seu povo, no Templo, na sua casa em Jerusalém, devíamos admirar-nos antes, se não o fizessem. Quem crê em Deus vivo, Pai e Redentor e Santificador dos homens, seus filhos, não se admira que Ele esteja com amor vivo entre os vivos e que estes lhe prestem amor, honra e adoração, bem como a tudo quanto se lhe refere, mais do que aos pais terrestres, amigos, mestres, superiores e príncipes. Os judeus sentiam no Templo e nos lugares sagrados o que sentimos diante do SS. Sacramento. Mas também entre os judeus havia cegos e "iluminados", como há também entre nós, que não adoram o Deus vivo e realmente presente, mas se entregam ao culto supersticioso dos ídolos deste mundo. Não se lembram das palavras de Jesus: "Quem me negar diante dos homens, também o negarei diante de meu Pai Celestia!." Tais homens, que servem ao espírito e à mentira do mundo, em pensamentos, palavras e obras, sem interrupção, mas rejeitam todo o culto externo de Deus, dizem às vezes, se por ventura ainda não rejeita ram o próprio Deus, como demasiadamente exterior: "Adoramos a Deus em espírito e verdade"; mas não sabem o que isso significa: no Espírito Santo e no Filho, que nasceu de Maria Virgem, que deu testemunho da verdade e viveu entre nós, que morreu por nós neste mundo e quer ficar presente na sua Igreja, no SS. Sacramento, até o fim dos séculos. A SS. Virgem visitou assim muitos lugares do Templo, venerando-os religiosamente. Mostrou-Ihes onde entrara a primeira vez no Templo, quando menina e onde fora educada, na parte sul do edifício, até o casamento. Mostrou-Ihes onde desposara São José, onde apresentara Jesus, onde Simeão e Ana proferiram a profecia; nesse lugar chorou amargamente, pois a profecia estava cumprida; a espada transpassara-lhe o coração. Mostrou-Ihes onde achara o Menino Jesus ensinando no Templo e beijou respeitosamente a cátedra. Visitaram também a caixa de esmolas, onde a viúva depositara a esmola e o lugar onde o Senhor perdoara à adúltera. Depois de ter deste modo venerado todos os luga res santificados pela presença de Jesus, com recordações, beijos, lágrimas e orações, voltaram a Sião. De volta, ao amanhecer, no Cenáculo de Sião, Maria e as compa nheiras se dirigiram à sua habitação separada, situada à direita do pátio da casa. Na entrada se separaram delas João e outros discípu los e foram juntar-se aos homens que, em número de cerca de vinte, permaneciam reunidos, de luto, no Cenáculo,

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durante todo o sábado, rezando alternadamente, sob a luz do candeeiro. Vi-os também de vez em quando receberem timidamente alguns recém-chegados, conversando com eles e chorando. Todos mostravam íntimo respeito e certa vergonha diante de João, que ficara com Jesus até à morte. João, porém, era benévolo e afetuoso para com todos e simples como uma criança, tratava a todos com humildade. Vi-os também uma vez tomar uma refeição. Fora disso estavam silenciosos e a casa permanecia fechada. Também não podiam ser inquietados ali, pois a casa pertencia a Nicodemos e haviam-na alugado para a refeição pascal. Vi depois as santas mulheres reunidas na sala escura, iluminada apenas pela luz do candeeiro, pois as portas e janelas estavam fecha das. Ora se juntavam em roda da SS. Virgem, para a oração, ora se retiravam para suas celas separadas, cobrindo a cabeça com o véu de luto e sentavam-se sobre caixas chatas, cobertas de cinza, em sinal de luto, ou rezavam, com o rosto voltado para a parede. Sempre que se reuniam para rezar, deixavam o véu de luto nas respectivas celas. Vi também as mais fracas tomarem algum alimento, as outras, porém, jejuavam. Contemplei-as diversas vezes e sempre as vi rezando ou de luto, do modo por que descrevi. Unindo minha contemplação aos pensamentos da SS. Virgem, que estava mergulhada na recordação de Nosso Salvador, vi várias vezes o santo sepulcro e cerca de sete guardas, que permaneciam em frente à entrada, em pé ou sentados. Perto da porta da gruta, no fosso que ali havia, estava Cássio em silêncio e profunda meditação. Vi as portas do sepulcro fechadas e a pedra encostada. Através das portas, porém, vi o corpo do Senhor, jazendo ainda como fora depositado, cercado de luz, entre dois Anjos em adoração. 10 A Gloriosa Ressurreição de Jesus 1. As vésperas da ressurreição 2. José de Arimatéia é posto em liberdade 3. A noite antes da ressurreição de Jesus 4. A Ressurreição do Senhor 5. As santas mulheres no sepulcro. Aparições de Jesus 6. Relatório da guarda do sepulcro 7. Ameaças dos inimigos 8. Ágape após a ressurreição de Jesus

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A Gloriosa Ressurreição de Jesus 1. As vésperas da ressurreição Depois de terminado o sábado, entrou João na sala das piedosas mulheres, chorou com elas e consolou-as. Quando, após algum tempo saiu, entraram Pedro e Tiago o Maior para o mesmo fim, demorando-se também pouco tempo apenas. Retiraram-se então as santas mulheres mais uma vez para a cela, chorando ainda por algum tempo, sentadas sobre a cinza e cobertas do véu de luto. Enquanto a Santíssima Virgem estava sentada, em ardente oração, cheia de saudade de Jesus, vi acercar-se-lhe um Anjo, que lhe disse que saísse pela portinha de Nicodemos, pois o Senhor se aproximava. Encheu-se então o coração de Maria de profunda alegria; envolvendo-se no manto, ela deixou as santas mulheres, sem dizer onde ia. Vi-a dirigirse apressada àquela portinha do muro da cidade pela qual tinham entrado, ao voltar do Sepulcro. Podiam ser cerca de 9 horas da noite, quando vi a Santíssima Virgem parar de repente o passo apressado, num lugar deserto, perto dessa portinha; olhou com radiante amor para o muro da cidade. A alma de Jesus veio voando, resplandecente, sem sinais das chagas, ao encontro de Maria, seguida de um grande número de almas dos patriarcas. Virando-se para os patriarcas e indicando Maria, disse estas palavras: "Maria, minha Mãe" e foi como se a abraçasse; depois desapareceu. Maria, porém, caiu de joelhos e beijou a terra onde Ele pisara; os sinais dos joelhos e pés da Virgem ficaram impressos na pedra. Voltou então, cheia de indizível consolação, para junto das santas mulheres, que encontrou reunidas em redor de uma mesa, preparando ungüentos e especiarias. Não lhes disse o que lhe sucedera; mas estava confortada e consolou a todos e confirmou-as na fé. Quando Maria voltou, vi as santas mulheres em redor de uma longa mesa, de pés cruzados, como um aparador e cuja toalha pendia até o chão. Vi algumas escolherem, misturarem e arrumarem variadíssimos molhos de ervas; tinham também alguns frascos com ungüento e outros com água de nardo, como também várias flores vivas, entre as quais me lembro de ter visto uma íris listrada ou um lírio; embrulharam tudo em panos. Durante a ausência de Maria, tinham ido à cidade Madalena, Maria Cleofa, Salomé, Joana Cuza e Maria Salomé, para comprar tudo. Queriam ir na madrugada do dia seguinte ao sepulcro, para derramar e espalhar tudo sobre o corpo amortalhado do Senhor. Vi os discípulos buscarem uma parte das especiarias em casa daquela merceeira e entregarem-nas à porta da casa das santas mulheres, sem entrar lá.

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2. José de Arimatéia é posto em liberdade Pouco tempo depois do encontro da Santíssima Virgem com a alma do Senhor e da sua volta para junto das mulheres santas, vi José de Arimatéia rezando no cárcere. De súbito vi o cárcere cheio de luz e ouvi chamar-lhe o nome; vi o teto em parte como que levantado do muro e uma figura resplandecente, que desceu um pano, que me fez lembrar do pano em que José envolvera o corpo de Jesus e a figura mandou-o subir pelo pano. José segurou então o pano e apoiando os pés em algumas pedras salientes do muro, subiu até duas vezes a altura de um homem, à abertura que, depois de o ter deixado passar, tomou a fechar-se. Quando José chegou em cima, desapareceu a figura. Eu mesmo não sei se foi o Senhor ou um Anjo que o libertou. Vi-o depois correr sobre o muro da cidade, sem ser notado, até perto do Cenáculo, que está situado perto do muro sul de Sião. Ali desceu e bateu na porta do Cenáculo. Os discípulos ali reunidos tinham fechado as portas e já se entristeciam muito pelo desaparecimento de José; ao receberem a notícia, pensaram primeiro tivesse sido lançado numa fossa. Quando, porém, abriram e o viram entrar, reinou a mesma alegria que mais tarde, quando Pedro, libertado do cárcere, reapareceu entre eles. José contou a aparição que tivera; alegraram-se muito e ficaram consolados; deram-lhe de comer e agradeceram a Deus. José porém, fugiu na mesma noite de Jerusalém, para a cidade natal, Arimatéia; mas recebendo depois notícia de que não havia mais perigo, voltou para Jerusalém. Pelo fim do Sábado vi também Caifás e outros sacerdotes em casa de Nicodemos, conversando com este e interrogando-o hipócritamente a respeito de muitas coisas; não sei mais do que se tratava. Ele, porém, ficou decidido e fiel na defesa do Senhor e os inimigos saíram então. 3. A noite antes da ressurreição de Jesus Pouco depois vi o sepulcro do Senhor. Tudo ali estava quieto e sossegado; cerca de sete guardas estavam sentados ou em pé, defronte e em redor do rochedo. Cássio raras vezes se afastara, durante todo o dia e por poucos instantes; lá estava de novo mergulhado em meditação sobre muitas coisas e em expectativa; pois recebera muitas graças e iluminações e estava interiormente esclarecido e comovido. Era noite e os braseiros diante da gruta sepulcral projetavam uma viva luz em redor; então me aproximei, na minha contemplação, do corpo sagrado, para o adorar: jazia ainda inalterado, envolto nos panos, rode ado de luz, entre dois Anjos, que vi continuamente,

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desde que foi levado à sepultura, do lado da cabeça e dos pés, em silenciosa adoração. Esses Anjos eram como figuras sacerdotais e lembravam-me vivamente os Querubins da Arca da Aliança, pela posição, com os braços cruzados sobre o peito; somente não lhes vi asas. Em geral a sepultura e o túmulo do Senhor me lembravam por diversas vezes extraordinariamente a Arca da Aliança, em várias épocas da história. Talvez que a luz e a prece dos Anjos se tenham tomado até certo ponto visíveis a Cássio e por isso ficasse em contínua contemplação diante do sepulcro fechado, como alguém que adora o SS. Sacramento. Durante a minha adoração, tive a impressão de que a alma do Senhor, com as almas remidas dos patriarcas, entrava pelo rochedo na gruta, fazendo-os conhecer todo o martírio do seu santo corpo. Nesse mesmo momento me parecia que todos os invólucros eram tirados; vi o corpo sagrado cheio de feridas e era como se a divindade, que lhe permanecia unida, o mostrasse às almas de maneira misteriosa, em todos os maus tratos e cruel martírio que padecera. Parecia-me inteiramente transparente e visível todo o seu interior. Podiam-se-Ihe conhecer as feridas, dores e sofrimentos, nas partes mais íntimas. As almas estavam cheias de indizível respeito e pareciam estremecer e chorar de compaixão. Entrei depois numa contemplação, cujo mistério, em toda a extensão, não posso contar claramente. Vi a alma de Jesus entrar-lhe no corpo sagrado, sem lhe restituir a vida pela perfeita união e com ele sair do sepulcro; pareceu-me que os dois Anjos, que adoravam nas duas extremidades do túmulo, levaram o santo corpo martirizado para cima, nu, desfigurado e cheio de feridas, ereto, mas com os membros na posição em que estavam no túmulo. Vi-os subir ao céu, passando pelo rochedo que tremeu; tive uma visão de Jesus, apresentando o corpo martirizado ao trono do Pai Celestial, no meio de inúmeros coros de Anjos em ado-ração, do mesmo modo que as almas de muitos profetas tomaram os respectivos corpos, depois da morte de Jesus, conduzindo-os ao Templo, sem que eles vivessem verdadeiramente e tivessem de morrer de novo; pois foram depois depostos pelas almas sem separação violenta. Nessa contemplação não vi as almas dos patriarcas acompanharem o corpo do Senhor. Também agora não me lembro mais onde ficaram, até que as vi novamente reunidas à alma do Senhor. Notei nessa contemplação um tremor do rochedo do sepulcro; qua-tro dos guardas tinham ido à cidade buscar qualquer coisa, os três que estavam presentes, caíram como que desmaiados. Atribuíram-no a um terremoto, não percebendo a verdadeira causa. Cássio, porém, estava muito comovido e abalado; pois viu algo do que se passou, sem ter entretanto uma clara compreensão. Mas permaneceu no posto, esperando com profundo respeito o que ia acontecer. No entanto voltaram os soldados ausentes.

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Minha contemplação tomou a dirigir-se depois às santas mulheres. Depois de terem terminado a preparação das especiarias, que foram envolvidas em panos e arrumadas para se levarem comodamente, retiraram-se novamente para as celas; não se deitaram, porém, para dormir, encostaram-se apenas nos leitos enrolados, para descansar, porque queriam ir ao sepulcro de Jesus antes de amanhecer. Tinham manifestado várias vezes receios a respeito dessa intenção; pois tinham medo de que os inimigos de Jesus Ihes pudessem fazer mal, se saíssem. Mas a Santíssima Virgem, reanimada desde a aparição de Jesus, consolou-as e disse-Ihes que descansassem um pouco e depois fossem sossegadamente ao sepulcro, que não Ihes sucederia mal algum. Assim foram descansar um pouco. Eram, porém, cerca de onze horas quando a Santíssima Virgem, impelida pelo amor e pela saudade, não achou mais sossego; levantouse, envolveu-se inteiramente no manto cinzento e saiu sozinha de casa. Pensei ainda: "Ah! Como podem deixar sair sozinha nestas condições a santa Mãe, tão angustiada e abatida?" Vi-a, porém, ir cheia de tristeza até à casa de Caifás e dali até ao palácio de Pilatos, o que significava uma longa volta para dentro da cidade. Assim percorreu sozinha toda a via sacra de Jesus, pelas ruas desertas, demorando-se nos lugares onde o Senhor sofrera qualquer dor ou mau trato. Era como se procurasse algo que tivesse perdido. Muitas vezes se lançava por terra, apalpava com as mãos as pedras em redor, tocando depois com a mão a boca, como se tivesse tocado numa coisa sagrada, o sangue do Senhor e o beijasse respeitosamente. Estava, porém, num estado sobrenatural; pelo amor via tudo em redor de si luminoso e claro, estava toda absorta em amor e adoração. Acompanhei-a pelo caminho e senti e fiz, na medida de minhas poucas forças, tudo quanto ela sentiu e fez. Ela seguiu o caminho da cruz até o Monte Calvário. Quando se aproximou deste, parou de repente e vi Jesus, com o santo corpo torturado, aparecer diante da Santíssima Virgem; um Anjo ia à frente, os dois Anjos que o adoravam no sepulcro, iam ao lado, seguindo-se um grande número de almas remidas. O corpo não se movia, era como um cadáver ambulante, rodeado de luz; mas ouvi sair dele uma voz, que anunciou à Mãe Santíssima o que Ele tinha feito no limbo e que em breve ressuscitaria, com corpo vivo e glorificado e viria ao seu encontro; que o esperasse perto da pedra em que caíra, no Monte Calvário. Vi depois essa aparição se dirigir à cidade e a Santíssima Virgem, envolta no manto, prostrando-se de joelhos, rezar no local onde o Senhor a mandara esperar. Já devia ser mais de meia noite, pois Maria gastara muito tempo em seguir a via sacra. Vi, porém, o cortejo do Senhor percorrer também todo o caminho da cruz. Todo o suplício e os padecimentos de Jesus foram

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mostrados às almas e os Anjos colheram, de maneira misteriosa, toda a substância sagrada que lhe fora arrancada, durante a Paixão. Vi que lhes foi mostrado também a crucifixão, a elevação da cruz, o golpe da lança no lado, a descida da cruz e a preparação para a sepultura; a Santíssima Virgem contemplou tudo em espírito e adorou-O com amor. Vi então, na contemplação, o corpo do Senhor jazendo novamente no túmulo e que os Anjos lhe tinham restituído, de maneira misteriosa, tudo quanto lhe fora tirado, durante o suplício. Vi-O de novo envolto na mortalha, rodeado de esplendor e os dois Anjos em adoração, nas extremidades do túmulo, do lado da cabeça e dos pés. Não posso explicar como O vi; são tantas e tão variadas coisas, tão inefáveis, que a nossa inteligência não as pode compreender segundo as leis comuns da natureza. Quando as vejo, é tudo tão claro e compreensível, mas depois se me turva a mente, de modo que não o posso claramente descrever. Quando o céu clareou-se a leste de um alvo rasto luminoso, vi Madalena, Maria Cleofas, Joana Cuza e Salomé, envoltas nos mantos, saírem da habitação, no Cenáculo. Levavam sob os mantos as especiarias, embrulhadas nos panos e uma delas levava também uma lanterna acesa. As especiarias constavam de flores vivas, para serem espalha das sobre o corpo e de suco extraído de plantas, essências e óleos, que queriam derramar sobre ele. Vi as santas mulheres encaminharem-se, com muito receio, em direção à portinha de Nicodemos. 4. A Ressurreição do Senhor Vi a alma de Jesus aparecer, com grande esplendor, entre dois Anjos de figura guerreira, (os Anjos que eu via dantes tinham figura sacerdotal), rodeado de muitas outras figuras luminosas; passando por cima através do rochedo do sepulcro, desceu sobre o santo corpo, como se se inclinasse para ele e com ele se fundisse. Então vi os membros se lhe moverem nos invólucros e o corpo vivo, e resplandecente do Senhor, unido à alma e à divindade, sair, ao lado das mortalhas, como se saísse da chaga do lado. Esta visão me recordou Eva, que saiu do lado de Adão. Tudo estava cheio de luz e esplendor. Nesse momento vi, na minha contemplação, a aparição de uma forma monstruosa, que dos infernos subiu, por baixo do túmulo. Levantou raivosamente a cauda de serpente e a cabeça de dragão contra o Senhor. Além disso, como ainda me recordo, tinha uma cabeça humana. Vi, porém, na mão do Redentor ressuscitado um belo bastão branco e sobre este uma bandeira desfraldada. O Senhor pisou a cabeça do dragão e bateu três vezes com o bastão na cauda da serpente; vi-a encolher-se cada vez mais e afinal desaparecer; a cabeça do dragão foi pisada e esmagada na terra e só a cabeça

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humana lhe ficou ainda. Tenho tido essa visão já por diversas vezes na contemplação da ressurreição e vi também uma serpente semelhante, espreitando à hora da conceição de Nosso Senhor. A forma dessa serpente lembra-me sempre a serpente do paraíso, mas, era ainda mais hedionda. Penso que essa visão se referia à promissão: "A semente da mulher esmagará a cabeça da serpente." Parecia-me um símbolo da vitória sobre a morte; pois enquanto Jesus esmagou a cabeça do dragão, não vi mais o sepulcro, mas vi o Senhor passar resplandecente através do rochedo. Tremeu a terra, um Anjo em figura de guerreiro desceu do céu ao sepulcro, como um relâmpago, levantou a pedra para o lado direito e sentou-se-Ihe em cima. Foi talo tremor de terra, que as lanternas oscilavam e as chamas saiam por todos os lados. A vista disso, caíram por terra os guardas, como que atordoados e jaziam como mortos, com os membros tortos. Cássio viu tudo cheio de luz e esplendor; mas recobrando ânimo, aproximou-se resolutamente do túmulo, abriu um pouco as portas, examinou as mortalhas vazias e afastou-se, para ir relatar a Pilatos o que acontecera. Mas ainda se demorou um pouco na proximidade, esperando que sucedesse mais alguma coisa; pois vira só o terremoto, o Anjo que num instante levantara a pedra e se lhe sentara em cima, o túmulo vazio, mas não vira Jesus. Como também os guardas, foi Cássio um dos primeiros que deram notícia do sucedido aos Apóstolos. No mesmo momento em que o Anjo desceu ao sepulcro e a terra tremeu, vi o Senhor aparecendo à Mãe SS., perto do Monte Calvário. Estava maravilhosamente belo, sério e luminoso. A veste, que lhe envolvia o corpo como um largo manto, flutuava no ar atrás dEle quando caminhava e tinha reflexos de cor branca azulada, como fu maça vista através da luz do sol. As chagas estavam largas e brilhavam; nas chagas das mãos se podia introduzir bem um dedo. Os lábios das chagas tinham a forma de três triângulos eqüiláteros, co incidindo no centro de um circulo. Do meio das mãos saiam raios luminosos para os dedos. As almas dos patriarcas inclinaram-se di ante da Mãe de Jesus, à qual o Senhor disse, em poucas palavras, que me fugiram da memória, que tomaria a vê-Lo. Mostrou-lhe as chagas e quando ela se prostrou por terra, para beijar-lhe os pés, tomou-a pela mão e levantando-a, desapareceu. Vi ao longe o brilhar das lanternas ao lado do sepulcro e a leste de Jerusalém uma luz branca no horizonte - o amanhecer do dia. 5. As santas mulheres no sepulcro. Aparições de Jesus As santas mulheres estavam perto da pequena porta de Nicodemos, quando o Senhor ressuscitou. Nada notaram dos prodígios que nesse momento se deram, nem sabiam que fora posta uma guarda à porta do túmulo; pois na véspera, como era sábado, ninguém fora ao sepulcro e elas tinham ficado de luto, com as

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portas fechadas. Inquietas, diziam umas às outras: "Quem nos tirará a pedra da porta?" Pois no desejo de prestar homenagem ao corpo do Senhor, tinham se esquecido inteiramente da pedra. Tinham a intenção de derramar água de nardo e ungüentos sobre o corpo do Senhor e cobrí-Io de flores e ervas aromáticas, pois não tinham contribuído para as especiarias usadas no embal- samamento, de cujas despesas se encarregara Nicodemos e por isso queriam agora oferecer ao corpo do Senhor e Mestre o que de mais precioso podiam encontrar. Salomé comprara a maior parte; não era a mãe de João, mas outra Salomé, uma senhora rica de Jerusalém, aparentada com S. José. Resolveram que iriam pôr as especiarias sobre a pedra, diante do túmulo e esperar até que porventura viesse um dos discípulos, que Ihes abrisse as portas, no entanto continuavam caminhando para o jardim do sepulcro. Vi os guardas deitados em redor, como mortos e com os membros tortos. A pedra fora colocada do lado direito da gruta, de modo que se podia abrir a porta que, porém, ainda estava encostada. Vi através da porta, no leito sepulcral, os panos em que o corpo de Jesus tinha sido envolto. O pano largo, que cobria todo o corpo, estava inalterado, ape nas vazio e encolhido, continha somente as ervas aromáticas. A faixa com que fora enrolado, estava ao longo do lado anterior do leito Sepulcral mas não fora desenrolada. O pano com que Maria lhe cobrira a cabeça, encontrava-se na cabeceira, à direita, na mesma posição em que lhe envolvera a cabeça, apenas o véu do rosto fora aberto. Vi então as mulheres se aproximarem do jardim. Vendo as lanternas da guarda e os soldados deitados em redor, assustaram-se e deixando de lado o jardim, seguiram alguns passos em direção ao Gólgota. Madalena, porém, esqueceu-se de todo o perigo e entrou apressada no jardim; Salomé seguiu-a a alguma distância. Eram as duas principalmen te que tinham comprado os ungüentos. As duas outras mulheres eram mais tímidas e ficaram fora do jardim. Vi Madalena, deparando com os guardas, correr assustada para trás, ao lado de Salomé; depois avançaram juntas e passando timidamente por entre os soldados, que ainda estavam atordoados, entraram na gru ta. Viram a pedra já afastada; as portas estavam encostadas, como provavelmente Cássio as deixara. Então abriu Madalena, com grande ânsia, uma das portas, olhou assustada para o leito sepulcral e viu todos os panos vazios e separados. Tudo estava cheio de esplendor e um Anjo sentado à direita, sobre o túmulo. Madalena ficou espantada; não sei se ouviu qualquer palavra do Anjo. Correu precipitadamente para fora do jardim, pela pequena porta de Nicodemos, ao encontro dos Apóstolos, reunidos na cidade. Também não sei se Maria Salomé, que não entrara na gruta, ouviu alguma palavra do Anjo; vi-a fugir do sepulcro e do jardim, muito assustada, logo depois de Madalena e juntar-se às mulheres que ficaram fora do jardim, às quais

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anunciou o que sucedera. Tudo isso foi feito com grande pressa e com o espanto de quem viu espíritos. As outras mulheres, ouvindo as notícias de Maria Salomé, assustadas e ao mesmo tempo satisfeitas, não ousaram por algum tempo entrar no jardim. Cássio, porém, depois de sair do sepulcro, demora ra-se algum tempo nos arredores, esperando ver Jesus ou que este apa recesse talvez às mulheres, que se aproximavam; dirigiu-se depois apressadamente à porta da cidade, para levar notícias a Pilatos e passando perto das santas mulheres, contou-Ihes em poucas palavras o que vira, exortando-as a que fossem verificá-Io com os próprios olhos. Então recobraram ânimo e entraram juntas no jardim e tendo entrado com muito medo na gruta, viram diante delas os dois Anjos do sepulcro, em vestes sacerdotais, brancas e resplandecentes. As mulheres, extrema-mente assustadas, estreitando-se uma à outra e cobrindo o rosto com as mãos, inclinaram-se até à terra. Um dos Anjos, porém, falou-Ihes, dizendo que não se assustassem; não procurassem ali o Crucificado, pois estava vivo, tinha ressuscitado e não se achava mais entre os mortos. Mostrou-Ihes também o leito vazio do sepulcro e mandou-Ihes que anunciassem aos discípulos o que tinham ouvido e visto, avisando-Ihes que Jesus os precederia na Galiléia; deviam lembrar-se do que Ihes dissera na Galiléia: "O Filho do homem será entregue nas mãos dos pecadores e crucificado e no terceiro dia ressuscitará dos mortos." Então desapareceram os Anjos e as santas mulheres, com temor e tremendo, olharam para o leito sepulcral e os panos, chorando e ao mesmo tempo cheias de alegria; depois saíram, dirigindo-se à porta da cidade pela qual Jesus saíra para o suplício. Estavam ainda espantadas, não se apressavam, mas paravam de vez em quando, olhando em redor, na esperança de ver Jesus ou que Madalena voltasse. No entanto vi Madalena chegar ao Cenáculo; estava como que desvairada e bateu com veemência à porta. Alguns dos discípulos estavam ainda deitados, dormindo ao longo das paredes; outros já se haviam levantado e estavam conversando; Pedro e João foram abrir. Madalena disse apenas: "Tiraram o Senhor do sepulcro, não sabemos para onde o levaram". Tendo dito isto, voltou ao jardim do sepulcro, correndo com grande pressa. Pedro e João entraram de novo em casa, disseram algumas palavras aos outros discípulos e seguiram-na depois apressadamente, mas João mais ligeiro do que Pedro. Vi Maria Madalena entrar novamente no jardim e correr ao sepulcro, perturbada pela corrida forçada e a tristeza. Estava toda molhada de orvalho, o manto caíra-lhe da cabeça aos ombros e os cabelos tinham se-lhe soltado. Como estava só, teve medo de entrar na gruta, mas ficou no fosso, diante da gruta; ali se inclinou, para olhar para dentro do túmulo, através da porta baixa da gruta. Segurando o longo cabelo com as mãos, viu dois Anjos de vestes

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brancas, sacerdotais, sentados à cabeceira e aos pés do túmulo e ouviu ao mesmo tempo a voz de um deles: "Mulher, por quê choras?" E Madalena exclamou, cheia de tristeza, (pois não pensava senão no corpo de Jesus, que não estava mais ali): "Levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram!" Dizendo isso e vendo só os panos, virou-se logo, como quem procura alguém; pensava que devia encontrá-Lo em qualquer parte e tinha um vago sentimento de sua presença e nem a aparição dos Anjos podia dissuadí-la. Parecia não se lembrar que eram Anjos; pensava só em Jesus, perguntava somente a si mesma: "Jesus não está aqui; onde estará Ele?” Vi-a alguns passos diante da gruta, vagando de um lado para o ou-tro, como quem, com grande perturbação, está procurando alguém. O longo cabelo caía-lhe de ambos os lados sobre os ombros; uma vez o segurou no ombro direito, com ambas as mãos; depois o pegou de ambos os lados e jogou-o para trás, olhando sempre em redor. De súbito viu, a dez passos de distância, a leste do rochedo sepulcral, onde o jardim sobe para o muro da cidade, atrás de uma palmeira, nas moitas, uma figura alta, vestida de branco, à luz do crepúsculo e correndo para lá, ouviu de novo as palavras: "Mulher, por quê choras? A quem procuras?" Julgou que fosse o jardineiro e eu também lhe vi na mão uma enxada e na cabeça um grande chapéu, que se parecia com um pedaço de casca de árvore, para proteger do sol, como vi também o jardineiro na parábola que Jesus contou às mulheres, em Betânia, pouco antes da Paixão. A aparição não era luminosa, mas de um homem vestido de uma longa veste branca, à luz do crepúsculo. Às palavras: "Quem procuras?" Madalena respondeu imediatamente: "Senhor, se O levaste, dize--me onde está e irei buscá-Lo." E ao mesmo tempo olhou em redor, para ver se o achava ali perto. Então lhe disse Jesus, com a voz habitual: "Maria!" Reconhecendo-Lhe a voz e esquecendo a crucificação, morte e sepultura, Madalena virou-se imediatamente e disse-Lhe, como se Ele ainda estivesse vivo: "Raboni (Mestre)!" E caiu de joelhos, estendendo as mãos para lhe abraçar os pés. Jesus, porém, ergueu a mão para a afastar, dizendo: "Não me toques: pois ainda não subi ao meu Pai. Mas vai a meus irmãos e dize-Ihes: "Ascenderei a meu Pai e a vosso Pai, a meu Deus e a vosso Deus." E o Senhor desapareceu. Recebi também a explicação do motivo pelo qual Jesus disse: "Não me toques"; mas não me lembro mais muito bem. Parece-me que o disse, porque Madalena era muito impetuosa e estava dominada inteiramente pela convicção de que Ele vivia como dantes e que tudo era como outrora. Das palavras de Jesus: "Ainda não subi a meu Pai", recebi a explicação de que Ele não se apresentara ainda ao Pai depois da Ressurreição e não lhe agradecera ainda a vitória sobre a morte e a Redenção. Parecia dizer com isso que as primícias da alegria pertenciam a Deus; antes de tudo devia lembrar-se de dar graças a Deus, pelo mistério consumado da Redenção e da

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vitória sobre a morte; pois Madalena queria abraçar-Lhe os pés, como dantes e não pensava senão no Mestre querido e esquecera, no enlevo do amor, o grande milagre da ressurreição. Depois do desaparecimento do Senhor se levantou Madalena e correu mais uma vez ao sepulcro, como para se convencer de que não tinha sonhado. Então viu os dois Anjos sentados à cabeceira e aos pés do túmulo, ouviu o que tinham dito também às outras mulheres, a respeito da ressurreição, viu os panos; convencida do milagre e da visão, saiu correndo, para procurar as companheiras no caminho do Gólgota; pois andavam ainda pelos arredores, indecisas, esperando a volta de Madalena e nutrindo o desejo de ver o Senhor em qualquer parte. Tudo o que se deu com Madalena, durou apenas alguns minutos; podiam ser cerca de duas horas e meia, quando lhe apareceu o Senhor. Ela correra justamente para fora do jardim, quando entrou João e logo após este, Pedro. João ficou na entrada e curvando-se, olhou pela porta meio aberta do sepulcro e viu lá dentro os panos. Então chegou Pedro e entrou na gruta; lá viu as mortalhas dobradas, nas quais estavam em brulhadas as especiarias: tudo enlaçado com faixa de pano, como as mulheres costumam enrolar tais panos para guardar; o véu do rosto, porém, estava dobrado perto da parede, do lado direito. João entrou então também na gruta, aproximando-se do leito sepulcral, viu-o e creu na ressurreição; pois nesse momento se lhes tornou claro o que Jesus tinha dito e o que está escrito na Escritura e a que dantes tinham presta- do pouca atenção. Pedro levou os panos sob o manto. Depois saíram, correndo, pela pequena porta de Nicodemos; João, porém, tomou novamente a dianteira. Vi com eles e também com Madalena, o sepulcro. Ambas as vezes vi os dois Anjos sentados à cabeceira e aos pés, como sempre e durante todo o tempo em que o santo corpo de Jesus esteve no sepulcro. Pareceu-me, porém, que Pedro não os viu. Quanto a João, ouvi-o dizer mais tarde aos discípulos de Emaús que, olhando de fora para dentro, vira um Anjo. Talvez fosse por isso que, assustado, deixou primeiro entrar Pe dro e não o escreveu no Evangelho por humildade, para não ter visto mais do que Pedro. Depois vi os guardas, estendidos por ali, recobrarem os sentidos e levantarem-se. Tomaram as lanças e os braseiros, que ardiam na entrada, em cima de hastes e lançavam luz na gruta, saíram assustados e pertur bados do jardim e voltaram à cidade, pela porta pela qual Jesus fora conduzido à morte. No entanto encontrara Madalena as santas mulheres e contara-Ihes que comunicara a Pedro ter visto o Senhor e os Anjos; as mulheres responderam-lhe que também tinham visto os Anjos. Madalena voltou apressadamente à cidade, pela porta do Calvário; as mulheres, porém, foram novamente na direção do Jardim, esperando talvez encontrar ainda lá os dois Apóstolos. Os guardas

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passaram-Ihes perto e disseram Ihes algumas palavras. Quando as santas mulheres chegaram próximo ao jardim do sepulcro, veio-Ihes ao encontro Jesus, com uma veste larga e branca, que lhe cobria até as mãos e disse: "Deus vos salve!" Elas estreme-ceram e caíram-Lhe aos pés, os quais pareciam querer abraçar; mas não me lembro mais claramente de o ter visto. O Senhor disse-Ihes algumas palavras, apontou com a mão em uma direção e desapareceu. As santas mulheres foram depressa pela Porta de Belém a Sião, para anunciar aos discípulos que tinham visto o Senhor e o que Ele Ihes dissera. Estes, porém, não queriam a princípio Ihes dar fé às afirmações, nem às de Madalena, tomando tudo, até à volta de Pedro e João, por imaginação das mulheres. João e Pedro, que se tornara muito pensativo com o que tinha visto, encontraram-se, ao voltar, com Tiago o Menor e Tadeu, que os tinham querido seguir ao sepulcro. Também esses dois estavam muito comovidos, pois o Senhor Ihes aparecera perto do Cenáculo. Vi, porém, que Jesus tinha passado perto de Pedro e João; pareceu-me que Pedro O viu, pois vi-o de súbito extremamente comovido. Não sei se João também O reconheceu. Nas visões que se referem a esse tempo, vejo muitas vezes, em Jeru-salém e em outros lugares, o Senhor e outras aparições no meio de homens, mas não noto que estes o avistem. Às vezes vejo alguns estremecerem de repente espantar-se, enquanto que outros ficam indiferentes. Parece-me que vejo o Senhor sempre, mas percebo ao mesmo tempo que naqueles dias os homens o viam só de vez em quando. Do mesmo modo tenho visto sempre os dois Anjos sacerdotais na gruta do sepulcro, desde a sepultura do Senhor, mas vi também que as santas mulheres às vezes os viam, outras vezes viam só um e ainda em outras ocasiões viam ambos. Os Anjos que falaram às mulheres, eram os Anjos de aparência sacerdotal. Falou apenas um deles e só um foi visto, porque a porta não estava aberta. O Anjo que desceu do céu como um relâmpago, rolou a pedra para o lado o sentou-se-Ihe em cima, apareceu na figura de um guerreiro. Cássio e os guardas viram-no a princípio sentado na pedra. Os Anjos que falaram ainda depois, eram um ou os dois Anjos do sepulcro. Do motivo porque tudo assim sucedeu, não me lembro mais; quando o vi, não fiquei surpresa; pois lá vemos muito simples e direito e nada parece estranho. 6. Relatório da guarda do sepulcro No entretanto chegara Cássio ao palácio de Pilatos, cerca de uma hora depois da ressurreição. Vi o governador deitado no leito e Cássio apresentar-se-Ihe e relatar-lhe, muito comovido, como o rochedo tremera e um Anjo descera do céu, removendo a pedra e as mortalhas ficaram vazias. Jesus era com certeza o Messias e o Filho de Deus; ressuscitara e não estava.mais no sepulcro. Ainda

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contou outras coisas que vira. Pilatos ouviu tudo com um oculto terror, mas não deixou perceber nada e disse a Cássio: "És um sonhador; fizeste muito mal em colocar-te junto do sepulcro do Galileu; pois os deuses dEle conquistaram poder sobre ti e fizeram-te ver todas essas visões fantásticas. Dou-te o conselho de não falar dessas coisas ao sumo Sacerdote, senão te meterás em maus lençóis." Fingiu também crer que o corpo de Jesus fosse roubado pelos discípulos e que a guarda descrevesse o sucedido de modo diferente apenas para se desculpar, porque havia permitido o roubo ou porque não cumprira com o dever ou talvez porque tivesse sido enfeitiçada. Tendo Pilatos falado ainda mais tempo dessa maneira indecisa, despediu-se Cássio e o governador mandou novamente oferecer sacrifícios aos ídolos. Vieram ainda quatro dos soldados da guarda, dando a mesma informação a Pilatos, que os mandou a Caifás, sem Ihes manifestar opinião. Vi uma parte dos soldados da guarda dirigir-se imediatamente a um vasto pátio perto do Templo, onde estavam muitos anciãos do povo. Vi estes se reunirem em conselho e depois tomarem os soldados de parte e os induzirem, com dinheiro e ameaças, a dizerem que os discípulos tinham roubado o corpo de Jesus, enquanto os guardas dormiam. Como, porém, os soldados replicassem que os camaradas contariam o contrário a Pilatos, prometeram os fariseus arranjar tudo com Pilatos. No entanto chegaram os quatro guardas enviados por Pilatos e persistiam em des crever o sucedido como o tinham contado ao governador. Mas já se espalhara também a notícia da fuga inexplicável de José de Arimatéia do cárcere bem fechado e como os fariseus quisessem lançar suspeitas sobre os guardas, que persistiam em proclamar a verdade, acusando-os de terem combinado com os discípulos o roubo do corpo de Jesus e ameaçando-os violentamente, se não o trouxessem de novo, responderam os guardas que não o podiam fazer, assim como os guardas do cárcere não podiam trazer o fugitivo José de Arimatéia. Responderam valentemente às acusações e não se deixaram induzir por nenhum suborno a guardar silêncio, a respeito dos acontecimentos; até falaram com muita franqueza do falso e odioso julgamento de sexta-feira e da interrupção das cerimônias da Páscoa; então foram presos e lançados no cárcere os outros, porém, espalharam o boato de que os discípulos tinham roubado o corpo de Jesus e os fariseus mandaram propagar esta mentira em todos os lugares e sinagogas do mundo, junto com outros insultos a Jesus. Mas esta mentira lhes foi de pouco proveito; pois após a ressurreição de Jesus, apareceram muitas almas de santos judeus defuntos e comoveram os corações dos descendentes, levando a converterem-se os que ainda eram acessíveis à graça e ao arrependimento. Vi também tais aparições apresentarem-se a

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muitos discípulos que, abalados na fé e desanimados, se tinham dispersado pelo país; consolaram e firmaram nos na fé. A ressurreição dos corpos mortos dos sepulcros, depois da morte de Jesus, não tinha semelhança com a ressurreição do Salvador; pois o Senhor ressuscitou com o corpo glorificado e revivificado, andou na terra vivo e em pleno dia e subiu ao céu com esse mesmo corpo, diante dos olhos dos amigos; esse corpo não era mais sujeito à morte e ao sepulcro. Mas os outros corpos ressuscitados eram apenas cadáveres ambulantes e sem movimento, dados como invólucro às almas, que de novo os depuseram no seio da terra, onde esperam a ressurreição final, como todos nós. Em verdade ressuscitaram menos do que Lázaro, que viveu verdadeiramente e mais tarde morreu segunda vez; pois aqueles foram depostos nos sepulcros, como vestimentas das almas, quando o corpo de Jesus foi sepultado. 7. Ameaças dos inimigos No domingo seguinte, se não me engano, vi os judeus começarem a limpar, a lavar e purificar o Templo. Encheram o chão de flores e cinza de ossos de mortos e ofereceram sacrifícios de expiação; tiraram os escombros, fecharam as aberturas com tábuas e tapetes e fizeram depois as cerimônias da Páscoa, as quais na própria festa não tinham podido completar. Proibiram, porém, todos os boatos e murmúrios, explicando a interrupção da festa e as destruições no Templo como conseqüência do terremoto e da presença de pessoas impuras durante o sacrifício; citaram um trecho de uma visão do profeta Ezequiel, sobre a ressurreição dos mortos, não sei mais como a aplicaram a esse fato. Demais ameaçaram com penas e excomunhão. Assim reduziram todos ao silêncio, pois muitos se sentiam culpados, como cúmplices do crime. Contudo conseguiram acalmar realmente apenas a grande multidão, endurecida no pecado e já perdida; a parte melhor do povo converteu-se silenciosamente nessa ocasião e abertamente na festa de Pentecostes e mais tarde na sua terra, ao ouvir a pregação dos Apóstolos. Os Sumos Sacerdotes tomaram-se por isso cada dia menos arrogantes e o número dos fiéis aumentou, de modo que já nos dias do Diácono Estevão, todo o bairro de Ofel e a parte oriental de Sião não podia mais conter a multidão da comunidade de Jesus Cristo e os cristãos construíram as cabanas e tendas além da cidade, através do vale de Cedron, até Betânia. Vi naqueles dias o sumo Sacerdote Anás como que possesso do demônio; puseram-no em reclusão e não apareceu mais. Caifás estava desvairado de secreto furor. Na quinta-feira depois da Páscoa, vi Pilatos procurar a esposa, mas em vão. Estava escondida em casa de Lázaro, em Jerusalém. Ninguém imaginava que estivesse ali, pois naquela ocasião não se

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encontravam mulheres no edifício, só Estêvão, o discípulo que ainda não era conhecido como tal, entrava e saia de vez em quando da casa, levando-lhe comida e dando-lhe notícias e preparava-a para a conversão. Estêvão era primo de Paulo. Simão de Cirene procurou depois do sábado os Apóstolos, pedindo admissão e o batismo. 8. Ágape após a ressurreição de Jesus Nicodemos, preparou uma refeição para os Apóstolos, as mulheres e uma parte dos discípulos, sob as colunatas abertas, no vestíbulo do Cenáculo. Depois de meio-dia ali se reuniram dez dos Apóstolos; Tomé retraíra-se arbitrariamente, afastando-se um pouco dos outros. Tudo quanto se fez ali, foi para cumprir a vontade de Jesus que na ceia pascal se sentara entre Pedro o João, revelando-Ihes diversos mistérios do SS. Sacramento e fazendo-os depois sacerdotes; ordenou-Ihes também que ensinassem essas verdades aos outros, juntamente com as doutrinas anteriores a esse respeito. Vi primeiro Pedro e João, no meio dos outros oito Apóstolos, comunicando-lhes os mistérios que Jesus Ihes confiara; explicaramlhes também a doutrina do Senhor a respeito do modo de administrar este Sacramento e de ensiná-Io aos discípulos. Vi que, de uma maneira sobrenatural, tudo quanto Pedro ensinou, foi dito também por João. Todos os Apóstolos estavam revestidos das vestes brancas de cerimônia, sobre as quais Pedro e João haviam colocado nos ombros uma estola, cruzada no peito e segura com um gancho; os outros Apóstolos traziam uma estola sobre um ombro, a qual, passando pelo peito e as costas, cruzava debaixo do outro braço e era segura por um gancho. Pedro e João eram sacerdotes, ordenados por Jesus, os outros eram ainda diáconos. Terminada esta explicação, entraram na sala também as santas mulheres, em número de nove; Pedro falou-Ihes e ensinou-Ihes. João, Porém, foi receber na casa do despenseiro, perto do portão, dezessete dos mais provados discípulos, que estiveram mais tempo com Jesus. Entre esses estavam: Zaqueu, Natanael, Matias, Barsabás e outros. João serviu-os no lava-pés e na vestição; vestiram longas vestes brancas c cintas. Depois da explicação da doutrina, Mateus foi enviado por Pedro à Betânia, para ensinar a muitos outros discípulos, durante uma refeição semelhante, em casa de Lázaro e fazer tudo o que os Apóstolos tinham feito no Cenáculo. A refeição foi realmente um banquete. Rezaram em pé e comeram deitados sobre os leitos e durante a refeição Pedro e João ensinaram. No fim do banquete foi colocado em frente a Pedro um pão delgado e estriado, que ele partiu nas partes marcadas e subdividiu cada parte mais uma vez. Depois mandou passar esses

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bocados, em dois pra tos, por ambos os lados da mesa. Passou também de mão em mão um grande cálice, do qual todos beberam. Se bem que Pedro benzesse o pão, não era contudo o SS. Sacramento, mas apenas um ágape; Pedro disse ainda que ficassem unidos, como era um só o pão que os alimentara e o vinho que beberam. Depois se levantaram todos e cantaram salmos. Tiradas as mesas, as santas mulheres formaram um semicírculo, na extremidade da sala; os discípulos colocaram-se de ambos os lados e todos os Apóstolos andavam de Uln lado para outro, ensinando e revelando a esses discípulos mais provados o que Ihes podiam comunicar sobre o SS. Sacramento. Pareceu-me ser a primeira explicação do catecismo depois da morte de Jesus. Vi também que depois apertaram as mãos uns aos outros, declarando ardentemente que queriam ter tudo em comum, dar tudo uns aos outros e ficar todos unidos. Então vi em todos uma grande comoção. Talvez tivessem sentido só interiormente o que vi exteriormente: pois vi-os, no meio de uma luz brilhante, fundirem-se uns nos outros e tudo formou afinal um templo de luz, em que apareceu a SS. Virgem como cume e centro de todos. Até mesmo vi que toda a luz emanava dela para os Apóstolos e destes voltava, pela SS. Virgem, ao Senhor. Era uma imagem das relações recíprocas entre os presentes. 11 Outras aparições de Jesus até a ascensão 1. Jesus aparece aos dois discípulos no caminho de Emaús 2. Jesus aparece aos Apóstolos na sala do Cenáculo 3. Jesus aparece novamente e converte o Apóstolo S. Tomé da descrença 4. A pesca milagrosa. Jesus proclama Pedro supremo Pastor 5. Jesus revela-se a quinhentos discípulos numa montanha 6. As relações de Maria Santíssima com os Apóstolos e com a Igreja. Jesus aparece à sua Santíssima Mãe 7. Outras aparições de Jesus Outras aparições de Jesus até a ascensão 1. Jesus aparece aos dois discípulos no caminho de Emaús Na segunda-feira depois da Páscoa, os dois discípulos Lucas e Cléofas, que era neto do tio de Maria Cleofé, se dirigiram a Emaús. Saíram de Jerusalém por caminhos diferentes e encontraram-se

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novamente fora da cidade. Ambos duvidavam ainda da ressurreição de Jesus e queriam falar mais a miúdo sobre tudo quanto ouviram. O tratamento ignominioso e a crucificação do Mestre lhes eram particularmente uma pedra de escândalo. Pelo meio do caminho se aproximou o Senhor, vindo de um atalho. Por algum tempo os seguiu, depois se lhes juntou e perguntou-Ihes de que estavam falando. "Mas os olhos de ambos estavam como que vendados e não o conheceram", conta S. Lucas no capo 24 do seu Evangelho e o Mestre disse-lhes: "De que estais falando pelo caminho, e porque estais tristes?" E respondendo um deles, chamado Cléofas, disse-Lhe: "És talvez o único forasteiro em Jerusalém, que não sabes o que se tem passado ali nestes últimos dias?" Disse-Ihes Jesus: "O que foi?" E responderam os dois: "O que aconteceu a Jesus Nazareno, que foi um varão profeta, poderoso em obras e em palavras diante de Deus e todo o povo; e como os sumos sacerdotes e os nossos magistrados o fizeram condenar à morte e o crucificaram. Ora, nós esperávamos que Ele fosse aquele que devia salvar Israel e agora, além de tudo, já é hoje o terceiro dia depois que sucederam estas coisas. É verdade que certas mulheres que conosco estavam, nos espantaram, pois na alvorada foram ao sepulcro e, não Lhe tendo achado o corpo, voltaram dizendo que também tinham tido uma v.isão de Anjos, os quais disseram que Ele está vivo. E alguns dos nossos foram ao sepulcro e acharam que era assim como tinham dito as mulheres, mas a Ele não O acharam." Então lhes disse Jesus: "á gente sem inteligência! e tardos de coração para crer tudo o que anunciaram os profetas! Porventura não era preciso que o Cristo sofresse estas coisas e que assim entrasse na sua glória?" E começando por Moisés e discorrendo por todos os outros profetas, explicou-Ihes o que d’Ele estava dito em toda a Escritura.” Chegando perto de Emaús, o Senhor quis separar-se dos dois discípulos. "Eles, porém, conta a piedosa Emmerich, obrigaram-nO a entrar numa casa, que estava situada na segunda fileira das casas de Emaús. Não havia mulheres na casa, que me parecia ser uma casa aberta para celebração de festas; pois se via que fora nela celebrada uma festa; ainda havia restos de ornamentação. O aposento era quadrangular e limpo, a mesa estava posta e os assentos dispostos do mesmo modo que no banquete do dia da Páscoa. Um homem trouxe um favo de mel num vaso trançado, semelhante a um cestinho, um bolo grande quadrado e um pequeno pão ázimo, delgado e transparente, que foi colocado diante do Senhor, como hóspede. O homem que trouxe o bolo, parecia bem intencionado; vestia algo de semelhante a um avental e parecia ser cozinheiro ou despenseiro. Tinha cabelos pretos. Durante o ato solene não estava presente. O bolo tinha a grossura de papelão e era marcado com linhas sulcadas, que o dividiam em partes da largura de dois dedos.

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Depois de terem rezado, Jesus, recostado nos assentos, comeu primeiro com eles do bolo e do mel. Depois tomou o pãozinho estriado, cortou-o com uma curta faca branca de osso e tirou-lhe três partes ainda unidas. Este pedaço colocou sobre um pequeno prato, benzeu-o e levantando-se, elevou-o com ambas as mãos e rezou, olhando para o céu. Os dois discípulos estavam em frente, muito comovidos e como fora de si. Quando Jesus partiu o bocado, aproximaram a boca por cima da mesa e receberam da mão do Senhor o pedaço. Vi, porém, que ao levar com a mão o terceiro bocado à boca, o Senhor desapareceu. Não posso afirmar que comesse realmente o bocado. Os bocados resplandeciam, depois de Jesus os ter benzido. Vi os dois discípulos ficarem ainda algum tempo como que atordoados e depois se abraçarem um ao outro, chorando.” 2. Jesus àparece aos Apóstolos na sala do Cenáculo Os dois discípulos voltaram imediatamente a Jerusalém. No entretanto achavam-se os Apóstolos, com exceção de Tomé, na sala do Cenáculo, junto com muitos discípulos, entre os quais também Nicodemos e José de Arimatéia. As portas da casa e da sala estavam bem fechadas. Três vezes se reuniram para a oração, formando sob o candeeiro um círculo, aberto para o lado do Santíssimo. Todos vestiam longas vestes brancas e cintos; três dos Apóstolos, porém, estavam com vestimentas mais vistosas e entre estes três, era Pedro o primeiro. Num vestíbulo que dava para a sala, assistiram à oração a Santíssima Virgem, Maria Cleofé e Madalena. Apesar de Jesus já ter aparecido a vários Apóstolos, não havia ainda uma fé firme na sua ressurreição. Chegaram então os dois discípulos, anunciando com muito alegria que tinham visto o Senhor e que o reconheceram ao partir o pão. ''Tendo-se reunido de novo para a oração, conta Anna Catharina, viIhes os rostos tomarem-se luminosos, pensativos e felizes e vi o Senhor aparecer na porta, que estava fechada. Vestia também uma longa veste branca, com uma simples cinta. Pareciam ter um sentimento indefinido de sua presença, até que, passando pelo meio deles, parou sob o candeeiro; ao vê-Lo, ficaram todos espantados e comovidos. O Senhor mostrou-Ihes os pés e as mãos e abrindo a túnica, mostrou-Ihes a chaga do lado. Falou-Ihes e, como estavam muito assustados, pediu alguma coisa para comer. Vi que da boca se lhe derramava luz sobre os Apóstolos, que estavam como encantados. Então foi Pedro atrás de um biombo ou tapete, a uma parte separada da sala, onde era guardado o SS. Sacramento, sobre o forno pascal; havia ali também um aposento lateral, onde guardavam a mesa baixa (tinha cerca de um pé de altura), depois de terminada a refeição. Sobre essa mesa se encontrava um prato fundo, oval, coberto com uma toalha branca, o qual Pedro trouxe ao Senhor. Havia nele um

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pedaço de peixe e um pouco de mel; Jesus agradeceu, benzeu a comida e comeu; deu também alguns bocados aos outros, mas não a todos. Ofereceu também à Virgem Santíssima e às outras mulheres, que estavam no vestíbulo. Depois o vi ainda ensinar e distribuir os poderes. Os discípulos formavam-lhe em roda um tríplice círculo, no meio do qual ficaram os dez Apóstolos; Tomé não estava presente. Pareceu-me maravilhoso que parte das palavras e instruções do Mestre só os Apóstolos percebes sem, digo percebessem, pois não O vi mover os lábios. Estava resplandecente, irradiava-se-Lhe luz das mãos, dos pés, do lado e da cabeça, sobre os Apóstolos, como se soprasse sobre eles e essa luz os penetrava; perceberam que podiam perdoar os pecados, que deviam batizar e curar os enfermos, impor as mãos e que podiam beber veneno, sem que lhes fizesse mal. Jesus explicou-Ihes vários trechos da Escritura Sagrada, que se Lhe referem e ao Santíssimo Sacramento e mandou fazer uma adoração ao Santíssimo Sacramento, depois do culto do sábado. Falou também dos ossos e das relíquias dos antepassados e do respectivo culto, para lhes alcançar a intercessão. Também Abraão tinha em seu poder os ossos de Adão e colocava-os no altar, quando oferecia sacri-fícios. Além disso, falou Jesus também do mistério da Arca da Aliança e que esse mistério seria, daí em diante, o seu Corpo e Sangue, que lhes tinha dado para sempre, esse Sacramento. Discorreu também sobre a Sagrada Paixão e ainda algumas coisas maravilhosas de Davi, as quais os discípulos ainda não sabiam. Depois lhes mandou que fossem à região de Sicar, para aí dar testemunho da ressurreição.” 3. Jesus aparece novamente e converte o Apóstolo S. Tomé da descrença Durante a viagem a Sicar, procurou Tomé os Apóstolos, que lhe contaram a aparição do Salvador ressuscitado. Ele, porém, não quis acreditar, antes de Lhe ter tocado nas chagas. Mesmo quando Pedro falou publicamente, na escola de Thaenath-Silo, sobre a ressurreição de Jesus e a seu convite, mais de cem das pessoas presentes levantaram a mão, como testemunhas, pois tinham visto Jesus ressuscitado, Tomé ainda não chegou a crer firmemente. Os Apóstolos e discípulos tornaram a celebrar o sábado na sala do Cenáculo, em Jerusalém. Terminado o sábado, fizeram um grande ágape e reuniram-se depois para a oração. Tomé estava também presente nessa ocasião. Depois que a SS. Virgem e Madalena entraram, fecharam-se as portas. Os Apóstolos oraram primeiro, ajoelhados diante do Santíssimo e cantaram salmos, em coros alternados, depois começaram a conversar. "Mas pouco depois, narra a piedosa freira, se Ihes tomaram os ros-

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tos maravilhosamente felizes e comovidos, pela aproximação do Senhor. Vi Jesus no pátio, resplandecente e vestido de branquíssima veste e cinta. Dirigiu-se à porta do vestíbulo, a qual se abriu diante d’Ele e fechou-se-Lhe após. Os discípulos, que estavam no vestíbulo, viram a porta abrir-se e retiraram-se para o lado, para dar caminho. O Senhor atraves~ou depressa o vestíbulo e entrando na sala, passou entre Pedro e João, que, como todos os Apóstolos, também se afastaram para o lado, enquanto o Senhor ficava no lugar de Pedro. Nesse instante parecia a sala vasta e clara, pois vi o Senhor rodeado de luz. Os Apóstolos retiraram-se apenas desse círculo de luz; parecia-me que do contrário não o teriam visto. Jesus disse primeiro: "A paz seja convosco." Depois conversou algum tempo com Pedro e João e colocou-se sob o candeeiro, acercando-se um pouco mais da roda. Vi que Tomé, ao ver Jesus, ficou muito comovido, recuando timidamente um pouco. Jesus, porém, tomou com a mão direita a mão direita de Tomé e segurando-a pelo dedo indicador, colocou a ponta desse dedo na chaga da mão esquerda. Depois tomou com a esquer-da a outra mão de Tomé e pôs-lhe os dedos na chaga da mão direita; levou a mão direita de Tomé ao peito, sob a roupa, sem descobrir o peito, pondo-lhe o indicador e o médio na chaga do lado. Disse então algumas palavras, que não me recordo mais. Tomé, porém, exclamou: "Meu Senhor e meu Deus!" e caiu desmaiado por terra, enquanto Jesus ainda o segurava pela mão. Os que estavam perto, socorreram-no e Jesus levantou-o pela mão. A princípio não vi as chagas de Jesus, mas quando tomou a mão de Tomé, vi-as, não como chagas sangrentas, mas como pequenos sóis ofuscantes. Os outros discípulos ficaram muito comovidos por esta cena e estendiam as cabeças para a frente, porém, sem avançar muito, para ver o que o Senhor fazia Tomé apalpar. Só Maria vi, durante toda a presença do Senhor, sem movimento exterior, em profunda e silenciosa adoração interior; estava como extasiada. Madalena parecia um pouco mais comovida, mas não tanto exteriormente como os discípulos. Jesus não desapareceu imediatamente; conversou ainda um pouco e pediu também algo de comer. Vi que lhe trouxeram novamente um prato, que continha algo de semelhante a peixe, de que comeu, benzendo-o, dando um bocado primeiro a Tomé e depois o resto a alguns outros. Depois da conversão de Tomé, explicou Jesus ainda porque estava no meio deles, apesar de O terem abandonado e porque não ficava ao lado de alguns que lhe tinham permanecido mais fiéis. Recordou-Ihes também que tinha dito a Pedro que confortasse os irmãos e o motivo por que lhe dissera. Dirigindo-se a todos, disse-Ihes porque quis dar-Ihes Pedro como chefe, embora este O

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tivesse negado, pois o rebanho precisava de um pastor. Falou também do zelo de Pedro. Vi que João entrou no Santuário e ao voltar, trouxe sobre o braço um manto largo, bordado a várias cores e na mão um bordão alto, fino e oco, que em cima era curvo como um cajado de pastor. Pedro ajoelhou-se diante de Jesus, que lhe deu um bocado a comer, como um pequeno bolo luminoso, com o qual Pedro recebeu um poder particular. Jesus aproximou também a boca da boca e depois dos ouvidos de Pedro e infundiuIhes uma força ou um poder. Vi, porém, que não era ainda o Espírito Santo, mas algo que o Espírito Santo, no dia de Pentecostes, devia vivificar plenamente. Impôs-lhe também as mãos e deu-lhe poder e jurisdição sobre os outros. Depois o vestiu com o manto que João, ao lado de Pedro, tinha sobre o braço e pôs-lhe o báculo na mão. Disse-lhe também que esse manto era como para guardar e recolher nele toda a força e todo o poder que lhe tinha dado, indicando-lhe também que devia usar esse manto sempre que quisesse fazer uso do seu poder. Jesus falou também de um grande batismo, depois da vinda do Espírito Santo; disse que Pedro desse o poder que recebera, também aos outros, após oito dias. Ordenou ainda que alguns depusessem a veste branca e vestissem a outra, com um peitoral; outros no entanto deviam vestir as vestes brancas. Era a instituição de graus elevados da hierarquia e das ordens, em que deviam entrar. Depois se agruparam os discípulos, por ordem de Jesus, em sete grupos separados, dos quais cada um recebeu como chefe um Apóstolo. Tiago o Menor e Tomé ficaram ao lado de Pedro. Foi por ordem de Jesus que se agruparam. Pareciam representar sete comunidades ou sete Igrejas; o que representavam os três Apóstolos restantes não sei bem. Pedro, com o novo poder e dignidade, fez uma alocução a todos; parecia um novo homem, cheio de energia. Escutaram-lhe as palavras, chorando e com grande emoção; consolou-os o Apóstolo e falou de muitas coisas, que Jesus sempre predissera e que agora se tinham realizado. Lembrou-Ihes também que Jesus sofrera por dezoito horas o escárnio e a ignomínia do mundo inteiro. Durante o discurso de Pedro desapareceu Jesus. Nenhum susto nem admiração interrompeu a atenção prestada ao discurso de Pedro, que parecia dotado de nova força. Depois cantaram um salmo em ação de graças. Jesus não falara nem com a Virgem Santíssima, nem com Madalena. 4. A pesca milagrosa. Jesus proclama Pedro supremo Pastor Quando o Senhor apareceu na sala do Cenáculo, deu também ordem a Pedro de ir, com os Apóstolos, a Tibérias pescar. Encaminharam-se, portanto, em vários grupos e por caminhos diversos, para o mar da Galiléia.

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Entraram numa casa de pesca fora de Tibérias, a qual Pedro antigamente tivera arrendado, mas já havia três anos que não pescava mais ali. Pedro entrou, com Natanael e Tomé, numa embarcação maior e João, com Tiago, João Marcos e Silas, numa barca menor. Pedro mesmo quis remar; era extraordinariamente humilde e modesto, apesar de Jesus o haver distinguido tanto, diante de todos. Cruzaram durante toda a noite o lago, à luz de archotes, lançando muitas vezes a rede, mas retiravamna sempre vazia. Durante esse trabalho cantavam e rezavam em voz alta. Enquanto os Apóstolos se ocupavam desse modo com a pesca, veio o Salvador, pairando, do vale de Josafá para o lago, acompanhado de muitas almas de Patriarcas, que livrara do Limbo e de outras almas remidas. Na margem do lago havia um lugar, onde se costumava fazer uma fogueira. No momento em que Jesus pensou que aí se devia preparar um peixe, apareceu imediatamente, diante das almas dos Patriarcas, um peixe, fogueira e tudo quanto era necessário. "As almas dos Patriarcas, explica a piedosa freira, tiveram parte na preparação do peixe e no próprio peixe, que significava a Igreja padecente: as almas do purgatório. Por essa refeição foram unidas exteriormente com a Igreja. Jesus deu aos Apóstolos, com essa refeição de peixe, a compreensão nítida da Igreja padecente e militante. Jonas no ventre do peixe simboliza também a estadia de Jesus nos Infernos.” Já estava amanhecendo, quando os Apóstolos, fatigados pelo trabalho, queriam lançar âncora perto da praia. Estavam já vestindo as túnicas, quando viram a figura de um homem, atrás do caniçal da praia. Era Jesus, que exclamou: "Meus filhos, não tendes alguma coisa para comer?" Responderam: "Não". Então disse Jesus que lançasse a rede para o lado oeste da barca de Pedro. Assim fizeram e João tinha de dirigir o seu barco para outro lado da embarcação de Pedro. Mas como sentissem o peso da rede cheia, João reconheceu Jesus e gritou para Pedro, no meio do lago silencioso: "É o Senhor." Então vestiu Pedro imediatamente a túnica, saltou na água e nadou em direção à praia e através do caniçal. ao encontro de Jesus. Quando Já estava com o Mestre, chegou também João. Jesus disse a Pedro que trouxesse os peixes. Puxaram portanto as redes para a praia e vi que Pedro atirou os peixes da rede para. a praia. Eram, porém, 153 peixes, de várias espécies, os quais significavam 153 novos fiéis, que se converteram em Tebes. Achavam-se na embarcação diversos homens, servos do pescador de Tibérias, que ficaram com as barcas e os peixes; os Apóstolos, porém, seguiram Jesus à cabana. Disse-Ihes o Mestre que viessem comer. Ao chegarem, vi que as almas dos Patriarcas tinham desaparecido; os Apóstolos, porém, ficaram muito admirados, ao verem a fogueira e o peixe, que não era dos que haviam pescado e pão e bolos cozidos de mel e farinha. Recostaram-se ao lado de

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um madeiro grosso, que estava diante da cabana e servia de mesa. Jesus deu a cada um, sobre um pão chato, uma porção de peixe da assadeira; não vi. porém, que o peixe diminuísse. Deu-Ihes também do bolo de mel e depois se deitou à mesa e comeu. Tudo se fez em silêncio solene. * Nestes quarenta dias, conta Catharina Emmerich, eu via o Senhor, quando não estava com os discípulos, percorrer os lugares memoráveis de sua vida, acompanha do pelas almas que com Ele tinham mais relações, desde Adão e Eva, até Noé e Abraão e os outros Patriarcas e toda a respectiva tribo; mostrava-Ihes o que por elas tinha feito e padecido, pelo que ficaram todas muito consoladas e purificadas pela gratidão. Ensinou-Ihes nessa ocasião de certo modo todos os mistérios do Novo Testamento, pelos quais foram libertadas das cadeias. Vi-O com elas em Nazaré diante do presépio, em Belém, em todos os lugares onde houve em sua vida um acontecimento notável. Tomé tinha sido o terceiro dos que pressentiram na barca a presença de Jesus. Todos estavam tímidos e acanhados, pois o Mestre estava mais espiritual do que em outras ocasiões e toda a refeição e a hora tinham algo de misterioso. Ninguém se atreveu a fazer pergunta alguma; reinava santo e solene silêncio, que causou assombro a todos. Jesus parecia mais recolhido, não se lhe percebiam as chagas. Após a refeição, vi Jesus levantar-se, como também os discípu los, dirigindo-se à praia, onde passearam; no fim de algum tempo, parou o Divino Mestre e disse, em tom solene, a Pedro: "Simão, filho de Jonas, amas-me mais do que estes?" Pedro respondeu timidamente: "Sim, Senhor, sabeis que vos amo." Jesus disse-lhe: "Apascenta meus cordeiros". No mesmo instante vi uma imagem da Igreja e do Bispo supremo, ensinando e guiando os primeiros cristãos, que ain da eram fracos e vi também batizar e lavar muitos recém-convertidos, como tenros cordeiros. Depois continuaram passeando, às vezes parava Jesus, virando-se para os discípulos, que por seu lado também se volviam todos para Ele. Depois de algum tempo, o Mestre disse novamente a Pedro: "Simão, filho de Jonas, amas-me?" Pedro, muito tímido e humilde, lembrando-se de sua negação, respondeu novamente: "Sim, Senhor, sabeis que vos amo." E Jesus disse mais uma vez, em tom solene: "Apascenta minhas ovelhas." Nesse momento tive a visão da Igreja crescente e da perseguição e vi como o supremo Bispo reunia os cristãos dispersos, cujo número sempre aumentava, como os protegia e Ihes enviava pastores e os governava. Depois de ter andado novamente por algum tempo, disse Jesus, pela terceira vez: "Simão, filho de Jonas, amas-me? Então vi Pedro contristado, pensando que Jesus perguntava tantas vezes por

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duvidar de seu amor; lembrando-se de havê-Io negado três vezes, disse: "Senhor, sabeis tudo; sabeis que vos amo." Vi João pensar consigo: "Oh! que amor deve ter Jesus e quanto amor carece ter um pastor, que três vezes lhe pergun ta pelo amor, àquele a quem quer entregar o rebanho." Jesus disse de novo: "Apascenta minhas ovelhas! Em verdade, em verdade te digo: quando eras mais moço, cingias-te a ti próprio e ias onde querias; mas quando ficares velho, estenderás as mãos e outro te cingirá e levar-te-á aonde não quererás ir. Segue-me.” Virou-se Jesus então para continuar o caminho e João foi com Ele; Jesus disse-lhe uma coisa que só ele ouviu. Vi, porém, que Pedro, ao vê10, apontou para João e perguntou ao Senhor: "Senhor, que se dará com este?" E Jesus, castigando-lhe a curiosidade, disse-lhe: "Se quero que ele fique até que eu venha, que tens com isso? Segue-me tu!" Virou-se, pois e continuou o caminho. Quando Jesus disse pela terceira vez: "Apascenta minhas ovelhas" e que haviam de cingí-Io e conduzi-Io, tive uma visão da Igreja já muito desenvolvida, vi Pedro em Roma, amarrado e crucificado e os tormentos dos Santos em diversos lugares. Vi também que Pedro teve a graça de contemplar tudo isso em espí-rito e conhecer o seu fim e que, olhando para João, viu que este também seguia Jesus em vários sofrimentos; pensou no mesmo momento: "Então este, a quem Jesus tanto ama, porventura não será também crucificado, como ele?" Perguntou, pois, a Jesus, que por isso o repreendeu. Por algum tempo acompanharam ainda Jesus, que Ihes disse o que haviam de fazer, desaparecendo depois diante deles. Dirigiu-se a Gergesa, a leste do lago; os Apóstolos, porém, voltaram a Tibérias". A piedosa vidente viu depois ainda o Salvador e as almas no Paraí-so, que descreve como ainda existente e ligado à terra, porém, inacessível. Jesus visitou ainda, em companhia delas, os campos de grandes batalhas e todas as terras onde os Apóstolos primeiro anunciariam o Evangelho, para as abençoar com sua presença. 5. Jesus revela-se a quinhentos discípulos numa montanha De Tibérias foram os Apóstolos, por um caminho de várias horas, a um lugar onde Pedro ensinou e curou enfermos. Falou com muito entusiasmo e grande mansidão da Paixão e Ressurreição de Jesus e da pesca milagrosa. Quando os Apóstolos partiram do lugar, seguiu-os grande multidão de povo a uma montanha, da qual se podia ver todo o mar de Galiléia. Muitos discípulos e também as santas mulheres já se tinham aí reunido. A Mãe de Deus, porém, ficara em Jerusalém, percorrendo três vezes por dia a Via Sacra. No cume do monte havia uma escavação, em cujo centro se achava uma coluna, que servia de púlpito. Eram cinco os caminhos que

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conduziam ao cume da montanha; para cada atalho mandou Pedro um dos Apóstolos, para ensinar ao povo, que por causa da grande multidão que afluía, não podia ouví-Io. Pedro, estando ao pé da coluna e rodeado dos restantes Apóstolos e discípulos e de muito povo, anunciou a Paixão, a Ressurreição e as aparições do Cristo. "Vi, porém, narra a piedosa freira, Jesus vindo da mesma região da qual viera Pedro. Subiu o monte e as santas mulheres que estavam nesse caminho, prostraram-se diante d’Ele. Passando-Ihes perto, dirigiu-lhes algumas palavras. Quando, porém, resplandecente e luminoso, ia passando pelo meio do povo, estremeceram muitos com medo e todos esses não perseveraram na fé. O Senhor avançou para o centro, até à coluna, onde antes estivera Pedro, que então se lhe colocou em frente. Jesus falou da necessidade de abandonar tudo e de imitá-Lo e da perseguição que teriam de sofrer. Afastaram-se, porém, cerca de duzentas pessoas presentes, ao ouvirem essas palavras. Depois de se terem ido embora, disse o Senhor que tinha falado ainda benignamente, para não escandalizar os fracos. Mas então falou muito claramente aos Apóstolos e discípulos dos sofrimentos e das perseguições que teriam de suportar no mundo aqueles que O seguissem e da recompensa eterna. Disse-Ihes também que ficassem em Jerusalém e que só depois de Ihes ter enviado o Espírito Santo, batizassem em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo; antes deviam fundar uma comunidade de fiéis. Jesus dispôs ainda como se deviam distribuir pela terra e fundar comunidades mais longínquas; depois deviam reunir-se de novo e partir outra vez para terras distantes, que receberiam o batismo de sangue. Enquanto Jesus estava no meio deles falando, ficavam as almas dos Patriarcas em roda da assembléia, mas invisíveis para todos. Jesus, porém, desapareceu, como uma luz que se apaga e muitos se prostraram por terra, tocando com o rosto o chão. Pedro ensinou ainda em seguida e rezou. Foi essa a mais importante aparição de Jesus na Galiléia, onde ensinou e demonstrou a todos a sua ressurreição; as outras aparições eram menos públicas.” 6. As relações de Maria Santíssima com os Apóstolos e com a Igreja. Jesus aparece à sua Santíssima Mãe Os Apóstolos e vinte discípulos estavam novamente reunidos na sala do Cenáculo, em oração. Então falou João aos Apóstolos e Pedro aos discípulos, sobre as relações para com a Mãe do Senhor. "Vi durante essa explicação, que me parecia basear-se numa comunicação de Jesus, a aparição da Santíssima Virgem, pairando sobre eles, vestida de um manto luminoso desdobrado, que, por assim dizer, encerrava todos. Por cima de Maria vi o céu aberto e a Santíssima Trindade, que lhe pôs uma coroa sobre a cabeça.

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Tive a impressão de que Maria era a cabeça verdadeira de todos aqueles fiéis, o Templo que os abrigava. Durante essa visão não vi mais a Santíssima Virgem fora, onde estava rezando. Creio que era uma imagem do que sucedeu à Igreja, por vontade de Deus, durante essa explicação dos Apóstolos; ou era a imagem de um êxtase de Maria, durante a pregação dos Apóstolos.” Seguiu-se uma refeição, na qual a Santíssima Virgem estava sentada entre Pedro e João, à mesa dos Apóstolos. Depois rezou Maria, coberta com o véu, junto com os Apóstolos, na sala do Cenáculo. Abriu-se também o Santíssimo, diante do qual rezaram de joelhos. "Meia noite já podia ter passado, quando a Santíssima Virgem recebeu de joelhos o Santíssimo Sacramento da mão de Pedro, que trouxe os bocados sobre o pratinho do cálice e lhe pós na boca o pedaço que ainda fora partido pelo próprio Jesus. Vi no mesmo momento o Senhor aparecer a Maria e desaparecer de novo, mas invisível para os outros. A Virgem Santíssima estava penetrada de luz e esplendor. Rezaram ainda e depois se separaram. Os Apóstolos manifestaram durante essa cerimô nia ainda mais respeito para com Maria; outrora eram sempre familiares, embora respeitosos.” Depois de ter recebido o Santíssimo Sacramento, retirou-se Maria, com as outras mulheres, para a sua morada, em casa de João Marcos, onde ainda permaneceu mais tempo em oração. Ao amanhecer, entrou Jesus, através das portas fechadas, no quarto da Mãe Santíssima, conversando muito tempo com ela. "Disse-lhe que devia ajudar os Apóstolos e tudo o que Ihes devia ser. Era tudo espiritual e misterioso. Deu-lhe, porém, poder sobre a Igreja, a força, a qualidade de protetora e vi que a luz do Filho de Deus se derramou na Virgem Santíssima, como se Ele mesmo a penetrasse. Não posso descrevê-Io bem. Desapareceu de novo pela porta. Ela, porém, rezou ainda e deitou-se depois, para dormir. Vejo a Santíssima Virgem, desde que comungou, mais vezes com os Apóstolos; são outras agora as relações que tem com eles; Pedem-lhe conselho, é como a Mãe de todos e até como um Apóstolo.” 7. Outras aparições de Jesus O número dos fiéis crescia visivelmente. Muitos, vindos de fora, eram alojados num vasto edifício em ruína, perto do Cenáculo (o castelo de Davi?); outros, mais tarde, numa casa perto da piscina de Betesda na qual ensinavam os Apóstolos. Assombrados pelos numerosos prodígi os e milagres, os judeus ainda não ousavam empregar meios violentos contra a comunidade. Esforçavam-se, porém, por dissimular tudo e ne gar os fatos; fecharam com alvenaria a porta que ligava o monte do Templo ao bairro

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adjacente, de modo que a comunidade ficava isolada; mas, mesmo antes disto, nem os Apóstolos e discípulos, nem os novos aderentes iam ao Templo, pois o Santíssimo achava-se no Cenáculo. Catharina Emmerich viu ali diversas vezes solenes reuniões, com oração e canto de salmos diante do Santíssimo Sacramento; Jesus mesmo instruíra os Apóstolos a respeito. Numa dessas piedosas reuniões, na qual Maria tomava parte, apareceu Jesus de repente no meio deles, anunciando-Ihes que viria no segundo dia depois do sábado seguinte. Antes que se refizessem da surpresa, já tinha desaparecido de novo. Quando depois os Apóstolos foram a Betânia, Jesus caminhou de súbito diante deles, mas desapareceu logo depois. Uma outra vez, quando Pedro, João, Tiago o Menor, Tomé e alguns outros Apóstolos iam, pelo meio-dia, de Betânia aJerusalém, perto do monte das Oliveiras, apareceu-Ihes Jesus de repente e conversou com eles. Mas depois continuaram o caminho, foi como se ficasse atrás, assim desaparecendo. Mais tarde esteve Jesus mais uma vez com eles, durante um ágape no Cenáculo. Comeu só com os Apóstolos, benzeu o pão, partiu-o e ensinou. As mulheres tomaram a refeição na ante-sala, os discípulos nos corredores laterais. Quanto mais se aproximava o dia da separação e ascensão de Jesus ao céu, tanto mais vezes parece ter-se mostrado aos discípulos. Assim narra a piedosa Emmerich: "O Senhor andava com os Apóstolos em muitos caminhos, na vizinhança de Jerusalém, de maneira que muitos judeus viram as aparições. Quando, porém, aparecia, fechavam as casas e escondiam-se. Os Apóstolos e discípulos tratavam-nO com certa timidez, pois manifestava-seIhes muito espiritual. Jesus ensinava muito e censurava também algumas faltas dos Apóstolos. Durante a noite vi o Senhor aparecer e espa lhar a bênção também em outros lugares, como por exemplo, em Belém. Em Nazaré, onde tinha muitos inimigos, apareceu a vários descrentes e principalmente à gente com que Ele e a Virgem Santíssima tiveram antes relações. Ainda em muitos outros lugares O vi aparecer. Os homens que O viram, tomaram-se muito crentes e reuniram-se, no dia de Pentecostes, aos Apóstolos e discípulos. Nos últimos dias se mostrava Jesus continuamente e muito natural para com os Apóstolos. Comia e rezava com eles e ensinava-Ihes. Fazia com eles longos passeios, repetindo-lhes toda a doutrina. Somente durante a noite permanecia em outros lugares, sem que soubessem. 12 A Ascensão e a vinda do Espírito Santo 1. O Senhor despede-se dos seus

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2. Jesus sobe ao céu 3. Preparação dos Apóstolos e discípulos para a vinda do Espírito Santo 4. A vinda do Espírito Santo 5. Sermão e batismo na piscina de Betesda A Ascensão e a vinda do Espírito Santo 1. O Senhor despede-se dos seus Na véspera da ascensão veio Jesus, com cinco discípulos à casa de Lázaro, em Betânia, onde se encontraram com Maria e as outras santas mulheres. Muito povo se reuniu em redor da casa, para ver mais uma vez Jesus e despedir-se d’Ele. O Divino Mestre apareceu à gente de fora, benzeu e distribuiu-Ihes muitos pãezinhos; depois se afastaram. Na casa tomou Jesus, em pé, um refresco com os discípulos, que choravam amargamente, porque ia deixá-Ios. Ele, porém, disse: "Por quê chorais, queridos irmãos? Vede esta mulher, que não chora." Dizendo-o, apontou para a Mãe Santíssima. Jesus despediu-se mais intimamente de Lázaro. Deu-lhe do pão bento a comer, abençoou-o e apertou-lhe a mão. Depois se encaminharam todos, com exceção de Lázaro, que morava escondido em casa, para Jerusalém, onde Nicodemos e José de Arimatéia prepararam uma refeição. "Vi Jesus, com os Apóstolos, -andando por vários caminhos, em redor do Monte das Oliveiras; os outros grupos O seguiam. Às vezes parava Jesus, para Ihes explicar alguma coisa. Todos estavam em grande angústia, alguns choravam; outros estavam muito abatidos. Vi um deles pensando: "Quando Ele for embora, quem será o mestre? E como se cumprirá tudo o que foi prometido a respeito do Messias?" Pedro e João pareciam-me mais calmos e compreendendo tudo melhor. Muitas vezes faziam perguntas ao Senhor e Ele parava, explicando-lhes muitas coisas. Assim andaram até à noite. O Senhor parava freqüentemente, estava muito sério, ao ensinar-Ihes, às vezes desaparecia repentinamente. Então ficavam muito assustados, mas de repente Ihes voltava de novo. Era como se quisesse prepará-los para a próxima separação. Vi-os andando por belas campinas, por caminhos agradáveis e debaixo de árvores. O sol brilhava lindamente à tarde. Quando Jesus e os Apóstolos se aproximaram da casa do banquete, já o sol se tinha posto. Maria, Nicodemos e José de Arimatéia vieramLhe ao encontro em frente à casa. Jesus entrou ao lado de sua Mãe. As outras mulheres vieram mais tarde. Depois de Ihes haver dito algumas palavras e de terem chegado os outros

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discípulos, Jesus entrou na grande sala do banquete. Benzeu o peixe, o pão e as verduras e ofereceu a todos; cada um recebeu um bocado. Durante o banquete, Jesus não deixou de ensinar-Ihes, com palavras muito sérias. Vi as palavras saírem-lhe da boca como raios de luz e entrarem na boca dos Apóstolos, num mais depressa, noutro mais vagarosamente, conforme o grau de desejo ou sede da doutrina de Jesus. No fim da refeição Jesus benzeu também um cálice de vinho, bebeu e ofereceu-o aos outros e todos beberam. Mas não foi o Santíssimo Sacramento. Depois dos discípulos se terem levantado do ágape, reuniram-se os outros, que comeram nas salas laterais, debaixo das árvores, em frente à grande sala; vi Jesus aproximar-se-Ihes, ensinar-Ihes por muito tempo e abençoá-Ios; depois se afastaram. Vi então as outras mulheres, que nesse meio tempo tinham chegado, entrarem no jardim, debaixo das árvores. A Santíssima Virgem estava com elas. Jesus aproximou-se-Ihes e deu a mão a sua Mãe. Falou-Ihes muito sério. Todas estavam muito comovidas e senti que Madalena desejava veemente abraçar os pés do Senhor. Tendo-Ihes falado assim por algum tempo e depois de as haver abençoado, deixou-as Jesus. Choraram muito, mas silenciosamente, abafando a dor; a Santíssima Virgem, porém, não a vi chorar, nessa ocasião. Ao aproximar-se a meia noite, saiu Jesus com os Apóstolos, toman-do o caminho pelo qual viera à cidade no domingo de Ramos. Maria seguiu depois dos Apóstolos e após ela, um grupo de discípulos. Muita gente se Ihes aproximou no caminho e o Senhor falou-Ihes. "Em companhia dos onze Apóstolos, cerca de trinta discípulos, a Santíssima Virgem e algumas mulheres, dirigiram-se ao Cenáculo. Só Jesus, os onze e Maria penetraram na sala interior; os discípu-los entraram nas salas laterais, onde havia bancos de dormir, não sei se dormiram ou rezaram. As companheiras de Maria ficaram no vestíbulo. Foi preparada a mesa da última Ceia e aceso o candeeiro. Havia na mesa apenas um pão ázimo e um pequeno cálice. Os Apóstolos revestiram-se das vestes de cerimônia e Pedro pôs a veste própria de sua dignidade. A Santíssima Virgem sentou-se em frente ao Senhor. Vi Jesus fazer o mesmo que fizera na última ceia: marcar o pão, oferecê-Io a Deus, partir, benzer e dá-Io aos discípulos; depois beberam também do cálice, sem que o enchessem de novo. Vi o Santíssimo Sacramento brilhando, ao pronunciar Jesus as palavras, penetrar como um pequeno corpo luminoso na boca dos Apóstolos. Na consagração do cálice, se lhe derramou a palavra sacramental no cálice como um rubro fulgor de sangue. Madalena, Marta e Maria Cleofé já tinham recebido o SS. Sacramento nos últimos dias. No começo da noite fizeram a oração e cantaram com mais solenidade do que comumente, à luz do candeeiro. Jesus deu mais uma vez a

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Pedro poder sobre os outros. Impôs-lhe mais uma vez o manto, repetindo o que dissera, ao aparecer-Ihes na praia do lago Tibérias e no cume da montanha. Ensinou ainda sobre o batismo e a bênção da água. Durante a oração e a doutrina, já pela manhã, vi ainda cerca de dezessete discípulos, dos mais íntimos de Jesus, atrás da SS. Virgem, na sala do Cenáculo. Antes de saírem de casa, o Senhor apresentou-Ihes a Santíssima Virgem como centro e intercessora dos fiéis. Pedro e os outros inclinaram-se diante dela; Maria, porém, abençoou-os. No momento em que isso se deu, vi Maria revestida, de um modo sobrenatural, de um grande manto, de cor azul celeste, colocada sobre um trono, tendo na cabeça uma coroa. Era um símbolo de sua dignidade.” 2. Jesus sobe ao céu Ao amanhecer do dia, saiu o Senhor do Cenáculo, conduzindo os onze Apóstolos pelas ruas de Jerusalém, por todo o caminho da Paixão. Seguiram-nos Maria e um grupo de discípulos. Onde se dera uma cena da Paixão, demorava-se alguns momentos, explicando-Ihes a significação do lugar ou um trecho dos profetas referente a isso. Onde, porém, os judeus tinham obstruído o lugar, para impedir a veneração dos fiéis, mandou Jesus tirar esses obstáculos. Assim saíram da cidade e vieram a um jardim ou lugar de oração, onde se sentaram à sombra das árvores e Jesus ensinou e consolou-os. Como no entanto começava a amanhecer, tomaram-se-Ihes os corações um pouco mais alegres, na esperança de que Jesus ainda ficasse com eles. Aproximaram-se então muitas turbas de povo. Jesus continuou o caminho para o monte Calvário e dali para o Monte das Oliveiras, onde se sentou novamente num jardim, falando ainda muito tempo com os discípulos, como para terminar a sua obra. Já estava reunida numerosa multidão em redor de Jesus e por toda a redondeza; em Jerusalém correu o boato do grande concurso de povo no Monte das Oliveiras, ao qual se juntaram novos grupos da cidade. Então se dirigiu o divino Salvador ao Horto de Getsêmani e subiu o Monte das Oliveiras. "A multidão caminhava como em procissão, subindo o monte pelos diversos caminhos, de todos os lados e muitos grupos passavam pelas moitas, pelas sebes e cercas. O Senhor, porém, tornava-se cada vez mais resplandecente e ligeiro. Os discípulos seguiam-no, mas não mais podiam alcançá-Lo. Tendo o Senhor chegado ao cume do monte, brilhava como a luz branca do sol. Do céu, porém, desceu sobre Ele um círculo luminoso, que brilhava com todas as cores do arco-íris. Todos os que O seguiam, ficaram parados, em vasto círculo, como que

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ofuscados. O Senhor brilhava ainda mais do que o esplendor que o cercava. Pousando a mão esquerda sobre o peito, abençoou com a direita elevada todo o mundo, virando-se para todos os lados. A multidão ficou imóvel, vi que todos foram abençoados. Jesus não abençoava como os rabinos, com a mão aberta para a frente, mas como os bispos cristãos. Senti com grande felicidade essa bênção sobre todo o mundo. Então se lhe uniu o próprio esplendor à luz do alto e notei que se tornava invisível, a partir da cabeça, dissolvendo-se-Ihe a figura na luz celeste e desaparecia como que subindo. Era como se um sol entrasse no outro ou como uma chama entrando numa luz ou uma centelha numa chama. Era como se se fitasse o sol radioso do meio-dia e ainda mais branco e claro; o pleno dia parecia escuro, em comparação com aquela luz. Quando já não se Lhe via mais a cabeça, ainda se podia distinguir-Lhe os pés resplandecentes, até que desapareceu inteiramente, no esplendor do céu. Inúmeras almas vieram de todos os lados, entrando nessa luz e desapareceram no céu com o Senhor. Não posso dizer que O vi tomar-se cada vez mais pequeno, como algo que voa no ar; mas vi-O desaparecer numa nuvem de luz. Ao aparecer a nuvem luminosa, caiu, por assim dizer, um orvalho de luz sobre todos e não podendo mais suportar essa luz, ficaram todos cheios de espanto e admiração. Os Apóstolos e discípulos achavam-se mais perto de Jesus; estavam em parte deslumbrados e olhavam para baixo; muitos se prostraram por terra. A Santíssima Virgem estava logo atrás dos Apóstolos, olhando tranqüilamente para a frente. Após alguns momentos, quando o esplendor diminuiu um pouco, toda a assembléia, no maior silêncio e nas mais intensas emoções da alma, olhou para a luz do alto, que ainda ficou por algum tempo. Nessa luz vi descer duas figuras, no começo pequenas, crescendo cada vez mais e aparecer, com vestes longas e brancas e um bastão na mão, como profetas, falando à multidão; as vozes soavam alto e forte, como a de trombetas e parecia-me que as deviam ouvir em Jerusalém. Não se moviam, mas estavam inteiramente imóveis, ao dizer as poucas palavras: "Homens da Galiléia, que estais aí olhando para o céu? Esse Jesus que acaba de vos ser arrebatado, para subir ao céu, voltará como o vistes subir ao céu." Tendo dito essas palavras, desapareceram. O esplendor, porém, ficou ainda por algum tempo, até que afinal se desfez, como do dia se passa à noite. Os discípulos estavam fora de si, sabiam agora o que lhes tinha sucedido: O Senhor tinha ido embora para o Pai Celestial. Muitos caíram por terra, de dor e atordoamento. Enquanto desaparecia o esplendor, recobraram ânimo e ergueram-se, cercados pelos outros. Muitos formaram grupos, as mulheres aproximaram-se também e assim se demoraram ainda, olhando para o céu, pensando e falando sobre o sucedido;

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depois voltaram os discípulos a Jerusalém, seguidos pelas mulheres. Alguns dos mais simples choravam como crianças, outros se conservavam recolhidos e pensativos. A Santíssima Virgem, Pedro e João estavam muito tranqüilos e consolados. Vi, porém, também muitos outros que não estavam comovidos, mas descrentes e duvidosos e que se apartaram dos outros e se afastaram; pouco a pouco se dispersou toda a multidão. No lugar onde Jesus subiu ao céu, havia uma grande laje, sobre a qual o Divino Mestre estava ensinando ainda, antes de dar a bênção e desaparecer na nuvem luminosa. As pegadas do Senhor ficaram impressas na pedra e numa outra se imprimiu uma das mãos da Santíssima Virgem. Meio dia já tinha passado, quando toda a multidão acabou de dispersar-se. Os discípulos e a Santíssima Virgem dirigiram-se ao Cenáculo. Sentindo a princípio a separação de Jesus, estavam inquietos e julgavam-se abandonados. Quando, porém, se acharam reunidos no Cenáculo, encheram-se todos de consolação, principalmente pela presença cal ma da Santíssima Virgem no meio deles e, confiando inteiramente na palavra de Jesus, de que Maria lhes seria o centro, a Mãe e intercessora, recuperaram a paz de coração. 3. Preparação dos Apóstolos e discípulos para a vinda do Espírito Santo Os dez dias entre a ascensão do Senhor e a vinda do Espírito Santo passaram-nos os Apóstolos reunidos com a Santíssima Virgem, no Cenáculo. Reuniam-se freqüentemente para a oração, na sala da última Ceia, em que observavam uma ordem mais rigorosa do que o grande número de discípulos e fiéis, também presentes. Demais viviam muito recolhidos, temendo também a perseguição dos Judeus. Um dia Pedro, estando no meio dos Apóstolos, vestido da vestidura episcopal, propôs a eleição de um Apóstolo em lugar de Judas, indicando a José Bársabas e Matias para esse fim. Ambos nunca tinham pensado nisso, nem desejado tal dignidade, enquanto muitos dos discípulos que assistiram à eleição, desejavam ser Apóstolos. Matias, apesar de mais delicado e fraco, por possuir maior fortaleza da alma foi preferido por Deus a Bársabas, que era jovem, na flor da idade. Como a piedosa Emmerich relata em poucas palavras apenas esse acontecimento importante, damos a seguir aqui a bela narração dos Atos dos Apóstolos de S. Lucas (1, 15-26): Naqueles dias, levantando-se Pedro no meio dos Irmãos (e montava a multidão dos que ali se achavam juntos, a quase cento e vinte pessoas), disse: "Irmãos, é necessário que se cumpra a Escritura, em que o Espírito Santo predisse, pela boca de Davi, acerca de Judas, que foi o condutor daqueles que prenderam Jesus; e o qual

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estava entre nós alistado no mesmo número e a quem coube parte deste ministério. E este possuiu de fato um campo do preço da iniqüidade; e depois de se enforcar, arrebentou pelo meio e todas as entranhas se lhe derramaram na terra. E tão notório se fez a todos os habitantes de Jerusalém este fato, que se ficou chamando aquele campo, na língua deles, Hacéldama, isto é, campo de sangue. Porque escrito está no livro dos Salmos: Fique deserta a habitação dele e não haja quem nela habite e receba-lhe outro o seu cargo. Convém, pois, que destes homens, que têm estado juntos na nossa companhia, todo o tempo em que viveu entre nós o Senhor Jesus, começando desde o batismo de João, até o dia em que foi arreba-tado ao céu, que um dos tais seja testemunha conosco da ressurreição. E propuseram dois: José, que era chamado Bársabas, o qual tinha por sobrenome o Justo e Matias. E orando, disseram: Tu, Senhor, que conheces os corações de todos, mostra-nos destes dois a quem escolheste, para que tome o lugar deste ministério e aposto lado, do qual pela prevaricação decaiu Judas, para ir ocupar-lhe o lugar. E a respeito lançaram sortes e caiu a sorte sobre Matias, que foi contado no número dos Apóstolos. 4. A vinda do Espírito Santo Para a santa festa de Pentecostes enfeitaram a sala da última Ceia festivamente, com árvores, grinaldas e flores. Nas vésperas da festa, Pedro benzeu dois pães ázimos, partiu e distribuiu-os aos Apóstolos e à Santíssima Virgem. À cidade, porém, chegaram muitos peregrinos para a festa de Pentecostes, estrangeiros de variadíssimos trajes e costumes estranhos. Os Apóstolos e discípulos passaram a noite antes de Pentecostes, junto com Maria e as santas mulheres, na sala da última ceia, em oração e silenciosa meditação, preparando-se para a vinda do Espírito Santo. Estavam reunidas ao todo mais de cento e vinte pessoas. Todos desejavam ardentemente a vinda do Consolador prometido, que os encheria, segundo a promessa de Jesus, de força celeste. A piedosa serva de Deus descreve esse importante acontecimento com palavras intuitivas: "Percebi, depois de meia-noite, uma maravilhosa intensidade e um movimento misterioso e benfazejo na natureza inteira, que se comunicava a todos os presentes. Pareceu-me também que, pela abertura no teto da sala, se podia ver o céu tornar-se mais claro. Os Apóstolos tinham-se retirado em silêncio do meio da sala para junto das paredes, ficando perto das colunas; por entre eles vi os discípulos nos pórticos laterais, olhando pelas paredes abertas para dentro da sala. Pedro estava diante da cortina atrás da qual se guardava o Santíssimo Sacramento; a Santís sima Virgem, porém, estava na sala, diante da porta do vestíbulo, no

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qual se achavam as santas mulheres. Estando assim todos silenciosos, cheios de veemente desejo, com os braços cruzados sobre o peito, olhos baixos, propagou-se-lhe a calma e o silêncio por toda a casa. Os discípulos, nos átrios laterais, se dirigiram todos aos respectivos lugares e após alguns momentos, reina va o maior silêncio em todo o redor da casa. Pela manhã vi sobre o Monte das Oliveiras, onde Nosso Senhor subira ao céu, se aproximar uma nuvem luminosa, resplandecente, prateada, vindo do céu, em direção à casa dos Apóstolos, em Sião. Vi-a primeiro, a grande distância, como um globo, cujo movimento acompanhava uma doce e ardente brisa. Ao aproximar-se, aparecia cada vez maior a nuvem luminosa, passando como um nevoeiro brilhante sobre a cidade, até que parou sobre Sião e a casa da última Ceia, concentrando-se cada vez mais e tornando-se cada vez mais clara e transparente como um sol brilhante; finalmente desceu, com crescente sussurro, como uma nuvem de trovoada muito baixa. Muitos judeus, que ouviram o bramido e viram a nuvem, correram assustados ao Templo. Toda essa cena tinha alguma semelhança com uma trovoada que se aproxima rapidamente, mas em vez de trovão, ouvia-se o zunido, que se sentia, porém, como uma brisa cálida e profundamente reconfortante. Quando a nuvem luminosa pairava muito baixo sobre o Cenáculo e, a par do crescente ruído, se tomava cada vez mais brilhante, vi também a casa e os arredores banhados numa luz intensa, mas os Apóstolos, discípulos e mulheres, cada vez mais silenciosos e ardentes. Eram cerca de três horas da manhã, antes do nascer do sol, quando vi de repente saírem da nuvem, sussurrante, torrentes de luz branca, que se cruzavam sete vezes e ao cruzarem, se dissolviam em raios e gotas ígneas, que caíram sobre a casa e arredores. O ponto em que as sete torrentes de luz se cruzavam, era cercado como de um arco-íris, onde vi formar-se uma figura luminosa e pairar sobre a casa; parecia-me que essa figura tinha asas estendidas sob os ombros; mas não posso dizer com certeza se eram asas, pois tudo parecia emanação de luz. Nesse momento, porém, toda a casa estava cheia de luz em redor. Não vi mais a luz do candelabro de cinco braços. As pessoas reunidas estavam todas como pasmas e extasiadas; levantaram inconscientemente os rostos, com desejo ardente e vi derramar-se na boca de todos uma torrente de luz, como pequenas línguas de fogo em chamas. Era como se respirassem e recebessem ardentemente esse fogo e como se algo de sua boca, em ardente desejo, fosse ao encontro dessas chamas. O santo fogo derramou-se também sobre os discípulos e as mulheres, no vestíbulo e desta forma se dissolveu a nuvem luminosa gradualmente, como uma nuvem que derrama chuva de luz. As línguas de fogo vieram sobre todos, mas com intensidade e cores

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diferentes. O estrondo semelhante a uma trovoada acordou muitos homens. O Espírito comoveu muitos fiéis e discípulos que moravam nos arredores. Depois de acabada a efusão do Espírito, nasceu alegre coragem em toda a assembléia. Todos estavam comovidos e como embriagados de alegria e confiança. Rodeavam a Santíssima Virgem, única que permane cia toda tranqüila e calma, em seu habitual recolhimento e santo silêncio, apesar de feliz e confortada. Os Apóstolos, porém, abraçavam-se uns aos outros, penetrados de uma jubilosa audácia de falar. Era como se clamassem uns aos outros: Em que estado estávamos? Que foi feito de nós? - Também as santas mulheres abraçavam umas as outras; todos os discípulos, nos corredores, estavam do mesmo modo comovidos. Os Apóstolos correram para eles e em todos havia, por assim dizer, nova vida, cheia de alegria, confiança e coragem. Esse transporte de Iluminação do coração e de conforto terminou em uma ação de graças. Reuniram-se em oração, dando graças a Deus, com profunda comoção. No entanto desapareceu gradualmente a luz. Pedro fez então um discurso aos discípulos e enviou alguns para os acampamentos de peregrinos bem-intencionados, vindos para a festa de Pentecostes. Havia, porém, entre o Cenáculo e a piscina de Betesda diversos barracões e dormitórios abertos, onde os forasteiros que vinham para a festa, dormiam e guardavam os animais. Estavam ali muitos dormindo; outros estavam acordados e receberam também a graça do Espírito Santo; pois passara uma emoção geral pela natureza. Muitos homens bons receberam iluminação e a graça da conversão; os maus, porém, ficaram tímidos, medrosos e ainda mais endurecidos. - A maior parte dessa gente, que estava acampada naqueles arredores, onde se reunira a nascente comunidade, estava já ali desde a Páscoa, porque, pela distância de sua terra, não valia a pena fazer a viagem de ida e volta entre a Páscoa e Pentecostes. Esses, pois, por tudo que ouviram e viram, se tornaram mais familiares e amigos dos discípulos do que os outros. Quando os discípulos enviados por Pedro os procuraram e lhes anunciaram o cumprimento da promissão do Espírito Santo, tornaram-se de diversos modos conscientes de sua própria conversão e, obedecendo à palavra dos discípulos, reuniram-se todos em redor da piscina de Betesda, que ficava próxima. No entanto Pedro no Cenáculo impôs as mãos a cinco Apóstolos, que deviam ajudar a ensinar e batizar na piscina de Betesda. Se me lembro bem, foram esses Tiago o Menor, Bartolomeu, Matias, Tomé e Judas Tadeu. Vi nessa ordenação, que o último tinha uma visão: foi como se o visse abraçar o corpo de Nosso Senhor.

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Antes de Irem à piscina de Betesda, para benzer a água e batizar, vios ainda receber a bênção da SS. Virgem, ajoelhados diante dela; antes da ascensão de Jesus a recebiam em pé. Vi os Apóstolos receberem essa bênção sempre, nos dias seguintes, antes de saírem e depois de voltarem. Nesses atos de bênção e sempre quando comparecia entre os Apóstolos, em sua dignidade, a SS. Virgem vestia um longo manto branco, um véu amarelo sobre o rosto e na cabeça, caindo de ambos os lados até quase ao chão, uma larga faixa de pano azul celeste, dobrada sobre a testa um pouco para trás, enfeitada de bordado e segura na cabeça por uma pequena coroa de seda branca. 5. Sermão e batismo na piscina de Betesda Convidada pelos discípulos, reuniu-se uma grande multidão de povo em redor da piscina de Betesda. Os discípulos contaram com grande alegria o que sucedera. Pedro enviou os cinco Apóstolos antes mencionados, que se colocaram nas cinco entradas da piscina e falaram com entusiasmo ao povo. Esse, porém, se assustou, porque cada um os ouvia falar em sua própria língua. Estavam, pois, todos atônitos e admiravam-se, dizendo: "Porventura não se está vendo que todos estes que falam são galileus? E como os ouvimos falar cada um na língua de nosso país natal? Partos e Medos e Elamitas e os que habitam a Mesopotâmia, a Judéia e a Capadócia, o Ponto e a Ásia, a Frigia e o Egito, várias partes da Líbia, que fica próximo de Cirene e os que vieram de Roma; também Judeus e prosélitos, Cretenses e Árabes, todos nós os ouvimos narrar nas nossas línguas as maravilhas de Deus." Estavam, pois, atônitos e maravilhavam-se, dizendo uns aos outros: "Que quer isto dizer?" Outros, porém, escarnecendo, diziam: "É porque estão embriagados de vinho doce." (Atos 2, 7-13). Pedro, porém, subiu a um púlpito, levantou a voz e disse: "Homens da Judéia e todos os que habitais em Jerusalém, sabei e com ouvidos atentos escutar as minhas palavras. Estes homens não estão tomados de vinho, como pensais, pois é ainda a hora terceira do dia; mas é o que foi dito pelo profeta Joel: E acontecerá nos últimos dias, diz o Senhor, que derramarei meu Espírito sobre toda a carne e profetizarão vossos filhos e vossas filhas e vossos jovens terão visões e os vossos anciãos sonharão. Sim, naqueles dias derramarei meu Espírito sobre os meus servos e sobre as minhas servas e profetizarão; e farei ver prodígios em cima no céu e sinais em baixo na terra, sangue e fogo e vapor de fumo. O sol converter-se-á em trevas e a lua em sangue, antes que venha o grande e ilustre dia do Senhor. E isto acontecerá: Todo aquele que invocar o nome do Senhor, será salvo. Israelitas, ouvi estas palavras: Jesus Nazareno, homem aprovado por Deus entre vós, com

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virtudes e prodígios e sinais, que Deus operou por Ele no meio de vós, como bem o sabeis, depois de vos ser entregue pela decretada vontade e presciência de Deus, vós, crucificando-O por mãos de iníquos, lhe tirastes a própria vida; Deus, porém, o ressuscitou, dissipadas as dores do reino da morte, porquanto era impossível que por este fosse retido. Pois Davi diz dEle: Eu via sempre o Senhor diante de mim, porque está à minha direita, para que eu não seja abalado; por isso se alegrou o meu coração e se regozijou a minha língua e além disto, também a minha carne repou-sará na esperança, porque não deixarás a minha alma no reino dos mortos, nem permitirás que o teu Santo experimente corrupção. Fizeste-me conhecer os caminhos da vida e encher-me-ás de alegria, mostrando-me a tua face. Irmãos, seja-me permitido dizer-vos ousadamente do patriarca Davi que ele morreu, foi sepultado e o seu sepulcro se vê entre nós, até o dia de hoje. Sendo, pois, um profeta e sabendo que com juramento lhe havia Deus prometido que do fruto de seu sangue se assentaria alguém sobre o seu trono, antevendo-o, falou da ressurreição de Cristo, que nem seria deixado no reino dos mortos, nem a sua carne veria a corrupção. Deus o ressuscitou, e todos nós somos testemunhas. Assim é que, depois que subiu à direita de Deus e havendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, O derramou sobre nós, como vedes e ouvis. Pois Davi não subiu ao céu, mas ele mesmo disse: O Senhor disse ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos por escabelo dos teus pés. Saiba portanto toda a casa de Israel, com a maior certeza, que Deus o fez não só Senhor, mas também Cristo, a este Jesus que crucificastes.” Tendo ouvido estas coisas, ficaram compungidos no coração e dis-seram a Pedro e aos mais Apóstolos: "Que devemos fazer, irmãos?” Pedro então Ihes respondeu: "Fazei penitência e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para remissão de vossos pecados e recebereis o dom do Espírito Santo; porque para vós é a promessa e para vossos filhos e para todos os que estão longe e quantos chamar a si o Senhor nosso Deus." Com outras muitíssimas razões o testificou ainda e exortava-os, dizendo: "Salvai-vos dessa geração depravada". (Atos 2, 14-40). Batizaram então durante todo o dia. No entanto ensinavam os Apóstolos, para preparar o povo à recepção dos santos Sacramentos. Cerca de três mil homens receberam no dia de Pentecostes o santo Batismo, inclusive as santas mulheres. Auxiliada por elas, distribuía Maria as vestes brancas aos batizandos. A Mãe de Deus foi batizada depois de Pentecostes, sozinha, na piscina de Betesda, por João, que celebrou antes a Santa Missa, como era celebrada naqueles tempos: consagravam-se a hóstia e o vinho com algumas orações.

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13 A expansão da Igreja cristã na Judéia 1. A cura do paralítico de nascença. Sermão de Pedro no Templo 2. Ensino no Templo. A primeira santa Missa e ordenação de sacerdotes 3. Curas milagrosas pela sombra de Pedro. Encarceramento dos ApóstoIos 4. Comunhão de bens. Crescimento da comunidade 5. Eleição dos sete diáconos. Queixas por causa da distribuição das esmolas 6. As obras do diácono S. Felipe 7. Perseguições 8. Estêvão é interrogado e apedrejado 9. A conversão de Saulo 10. Herodes manda decapitar Tiago o Maior e lançar Pedro no cárcere 11. Outras provações da Igreja de Jerusalém A expansão da Igreja cristã na Judéia 1. A cura do paralítico de nascença. Sermão de Pedro no Templo A pequena comunidade dos fiéis recebera um forte incremento no dia de Pentecostes. Com toda a razão se dá a este dia o nome de data de fundação da santa Igreja. Na sala do Cenáculo cabia só um número relativamente pequeno de fiéis; já tinham começado a instalar uma Igreja na velha sinagoga, situada na vizinhança da piscina de Betesda. Esses trabalhos estavam então terminados e Pedro, seguido dos Apóstolos, dos discípulos, de Maria e das santas mulheres, levou o Santíssimo Sacramento, em solene procissão, do Cenáculo para essa primeira Igreja cristã e colocou-O no tabemáculo, sobre o altar. Não muito tempo depois foram Pedro e João, com alguns discípulos, ao Templo. "Estavam, porém, alguns homens levando um paralítico numa padiola, para a porta do Templo. Pedro e João, ao subirem a escada, lhe disseram algumas palavras. Depois falou Pedro por algum tempo com grande ardor ao povo, no átrio do Templo. Durante esse sermão foram as saídas do Templo ocupadas por soldados e os sacerdotes conferenciavam de vez em quando uns com os outros. Então vi Pedro e João, ao dirigirem-se ao Templo, passarem perto do paralítico, que lhes pediu uma esmola. Estava deitado diante

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da porta, todo encolhido, apoiando-se sobre o cotovelo esquerdo e segurando com a direita uma muleta, com a qual debalde procurava levantar-se um pouco. Pedro disse-lhe: "Olha para nós!" E como ele o fizesse, disse Pedro: "Ouro e prata não tenho, mas o que tenho, dou-te: Em nome de Jesus Cristo de Nazaré, levanta-te e anda." E tomando-lhe a mão direita, levantou-o e João segurou-o sob o braço. Então ficou o homem em pé, alegre e forte e vi-o curado, saltando, com gritos de alegria e correndo pelo Templo. Pedro e João, porém, foram ao átrio e num lugar onde o Menino Jesus ensinara na idade de doze anos, subiu Pedro à cátedra. Muito povo da cidade e numerosos forasteiros o rodearam; também o paralítico curado estava neste círculo. Pedro, porém, falou da cátedra ao povo: "Homens israelitas! porque vos admirais disto ou porque pondes os olhos em nós, como se por nossa virtude ou poder tivéssemos feito andar este homem? O Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó, o Deus de nossos pais glorificou seu Filho Jesus, a quem entregastes e negastes perante Pilatos, julgando este que se Lhe devia dar a liberdade. Mas vós renegastes o Santo, o Justo e pedistes que se vos desse um assassino. E assim matastes o autor da vida, a quem Deus ressuscitou dentre os mortos, do que somos testemunhas. E pela fé em seu Nome foi que seu Nome curou a este, que vedes e conheceis; e a fé que Ele nos comunicou, foi que lhe deu inteira saúde, à vista de todos vós. Entretanto, irmãos, sei que o fizestes por ignorância, como também os vossos magistrados. Mas Deus cumpriu assim o que já dantes anunciara, por boca de todos os profetas: que o Cristo padeceria. Portanto, arrependei-vos e convertei-vos, para que os vossos pecados vos sejam perdoados; para que venham os tempos do refrigério diante do Senhor, quando enviar o mesmo Jesus Cristo, sobre o qual vos foi pregado. Por ora certamente é necessário que o céu O receba, até aos tempos da restauração de todas as coisas, de que Deus falou, por boca dos santos profetas, desde o princípio do mundo. Moisés, de fato, disse: "Porquanto o Senhor, vosso Deus, vos suscitará um profeta dentre vossos irmãos, semelhante a mim; a este ouvireis em tudo o que vos disser. E isto acontecerá: Toda a alma que não ouvir aquele profeta, será exterminada do meio do povo. E todos os profetas, desde Samuel e quantos depois falaram, anunciaram estes dias. Vós sois os filhos dos profetas e da aliança que Deus estabeleceu com nossos pais, dizendo a Abraão: E na tua descendência serão abençoadas todas as gerações da terra. Deus, ressuscitando seu Filho, vo-Lo enviou primeiramente a vós, para que vos abençoasse; afim de que cada um se aparte da maldade." (Atos 3,12 - 26). "Então muitos daqueles que tinham ouvido a pregação, creram nela e chegou o número destes a cinco mil pessoas." (Atos 4, 4.) Tendo Pedro ensinado com grande entusiasmo até a meia noite, foi

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preso, junto com João e o paralítico curado, pelos soldados do Templo e metido num cárcere, no tribunal de Caifás. No outro dia foram levados, com murros e pancadas, à sala do tribunal, onde se tinham reunido Caifás e o Conselho Supremo. E mandando-os apresentar, perguntavam-Ihes: "Com que poder e em nome de quem fizestes isto?" Então Pedro, cheio do Espírito Santo, lhes respondeu: "Príncipes do povo e vós, ánciãos, ouvi-me. Se hoje se nos pede razão do benefício feito a um homem enfermo, com que virtude este foi curado, seja notório a todos vós e a todo o povo de Israel, que em nome de nosso Senhor Jesus Cristo Nazareno, a quem crucificastes e a quem Deus ressuscitou dos mortos, é que este se acha curado, em pé diante de vós. Jesus Cristo é a pedra que foi reprovada por vós, arquitetos e que se tornou a pedra fundamental; e não há salvação em nenhum outro, porque abaixo do Céu nenhum outro nome foi dado aos homens, que possa salvar-nos.” Ora, vendo a firmeza de Pedro e João e sabendo que eram homens ignorantes e simples, admiravam-se e conheciam que eram aqueles que tinham estado com Jesus. Vendo também em pé, ao lado deles, o homem que havia sido curado, não podiam dizer nada em contrário. MandaramIhes, pois, que saíssem para fora da sala do conselho e conferenciavam entre si, dizendo: "Que faremos a estes homens? Porquanto fizeram, na verdade, um milagre, notório a todos os habitantes de Jerusalém; é manifesto e não o podemos negar. Todavia, para que não se divulgue mais entre o povo, ameacemo-los, para que no futuro não falem mais a ninguém neste nome". E chamando-os. Intimaram-nos a que absolutamente não falassem mai~, nem ensinassem no nome de Jesus. Mas Pedro e João, respondendo-lhes, disseram: "Se é justo diante de Deus ouvir antes a vós do que a Deus, julgai-o vós mesmos; porque não podemos deixar de falar das coisas que temos visto e ouvido." Então, ameaçandoos, os deixaram ir livres, não achando pretexto para os castigar, por medo do povo, porque todos celebravam o milagre que se fizera, no fato que tinha acontecido". (Atos 4, 7-21). 2. Ensino no Templo. A primeira santa Missa e ordenação de sacerdotes Pedro ensinou novamente, com grande poder, no Templo, onde também se reuniram os outros Apóstolos e discípulos, confirmando as ex-plicações de. Pedro. Então se dirigiram, com os batizados e recém-convertidos, em procissão, dois a dois, ao Cenáculo, em Sião. Chegados aí, Pedro e João conduziram a SS. Mãe de Jesus, que vestira as vestes festivas e rezara ajoelhada diante do SS. Sacramento, à porta do vestíbulo. Pedro fez uma alocução aos

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recém-convertidos, entregando-os à proteção de Maria, a Mãe comum. Apresentou-lhos em grupos de vinte; a Virgem Santíssima, porém, abençoou cada grupo, dirigindo-lhes algumas palavras. Pedro celebrou então a santa missa no cenáculo. Vi fazer-se tudo como Jesus fizera na instituição do SS. Sacramento: oferecer, depositar vinho no cálice, lavar as mãos e consagrar. O vinho e a água foram depositados de lados diferentes. Num lado do altar havia rolos da Escritura. Pedro, após ter comungado, deu também o SS. Sacramento e cálice aos dois que ajudavam. João deu a sagrada Comunhão também aos outros; Maria foi a primeira que a recebeu, depois os Apóstolos e mais seis discípulos, que em seguida receberam ordens e ainda muitos outros. Aqueles que comungavam, tinham diante de si uma toalha, uma faixa comprida de pano, que dois seguravam dos lados. Não vi, porém, que todos recebessem o cálice. Os seis discípulos que então receberam as santas ordens, avançaram do lugar dos discípulos para o dos Apóstolos, mais para o coro. Maria trouxe-lhes as vestes, pondo-as sobre o altar. Eram: Zaqueu, Natanael, José Bársabas, Barnabas, João Marcos e Eliú, filho do velho Simeão. Ajoelhavam-se dois a dois diante de Pedro, que lhes dirigia a palavra e rezava, lendo num pequeno rolo da Escritura. João e Tiago tinham velas na mão; pousavam-lhes a mão sobre os ombros e Pedro sobre a cabeça. Pedro cortou-lhes o cabelo, pondo-o sobre um prato no altar, ungiu-lhes a cabeça e as mãos com óleo de um vaso que João segurava. Depois lhes puseram também as vestes e estolas, que cruzavam em parte debaixo do braço, em parte sobre o peito. No fim da solenidade Pedro abençoou a comunidade com o grande cálice da última Ceia, no qual era conservado o SS. Sacramento.” Acabada a cerimônia, dirigiram-se todos à piscina de Betesda, onde os recém-convertidos, homens e mulheres, foram batizados. Catharina Emmerich descreve em outro lugar a cerimônia da Missa: "Pedra rezava diante do altar e dois Apóstolos ao lado lhe acompanhavam a oração e os atos. Vi que levantou o pão e o vinho no cálice, oferecendo-os, depois partiu o pão em bocados, benzeu-os e pronunciou as palavras da consagração sobre o pão e o vinho, depois do que começaram a luzir. Quando elevou o pão e o cálice, oferecendo-os, vi aparecer uma mão resplandecente por cima do altar, como saindo de uma nuvem; quando benzeu e disse as palavras da consagração, moveu-se também essa mão, benzendo; só desapareceu quando todos se afastaram. Não vi que Pedro o notasse também. Depois da consagração, Pedro tomou primeiro um bocado e encheu então o vaso, que era tão largo, que muitos dos bocados ali cabiam, uns sobre os outros. Então se aproximaram os Apóstolos que estavam presentes e receberam na boca o SS. Sacramento, da mão de Pedro;

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depois vieram também os outros assistentes, recebendo o SS. Sacramento, como da primeira vez. Acabando os bocados no vaso, Pedro voltou ao altar, para encher de novo com os que restavam no prato e continuou distribuindo a Santa Comunhão. Como na sala não cabiam todos e muitos ficavam fora, saíram os primeiros, depois de terem recebido o Sacramento e os outros entraram. Os que comungavam, não se ajoelhavam, mas inclinavam-se respeitosamente, ao receber o SS. Sacramento. Tendo saído os últimos, entraram de novo os primeiros. Quando Pedro consagrou o vinho, não rezou tanto tempo como da primeira vez; vi-o falar sobre ele palavras que luziam. Depois bebeu e deu também aos Apóstolos para beberem. Os Apóstolos ofereceram o cálice ainda aos outros.” 3. Curas milagrosas pela sombra de Pedro. Encarceramento dos Apóstolos Pedro foi ao Templo, com João e os outros sete Apóstolos que ficaram em Jerusalém. "Já no caminho fora da cidade, no vale de Josafá, havia muitos enfermos, deitados em redor do Templo, no átrio dos gentios e até na escadaria do Templo. Vi que era principalmente Pedro que curava; os outros curavam também, é verdade, mas era mais para auxiliar a Pedro. Este curava só aqueles que acreditavam em Jesus e se queriam unir à comunidade dos cristãos. Onde havia uma dupla fila de doentes, vi a sombra de Pedro cair sobre a segunda fila, enquanto curava e os enfermos saravam pela vontade dele. A muitos se negou a curar. Ensinou também no Templo, defronte do altar dos holocaustos, à direita e também num lugar elevado, com degraus, na sala lateral, à esquerda de quem entrava no Templo. Ninguém os estorvava; o povo era-lhes muito dedicado.” Os Atos dos Apóstolos, cap. 5, continuam a narração: Assim, pois, concorriam multidões de homens das cidades vizinhas de Jerusalém, trazendo os enfermos e os cativos de espíritos imundos, os quais eram todos curados. Mas, levantando-se o príncipe dos sacerdotes e todos os que com ele estavam (a seita dos saduceus), encheram-se de inveja e de ciúme e fizeram prender os Apóstolos e metê-los na cadeia pública. Mas o Anjo do Senhor, abrindo de noite as portas do cárcere e tirando-os para fora, disselhes: "Ide e apresentai-vos no Templo, pregai ao povo todas as palavras de vida." Tendo ouvido isto, entraram ao amanhecer no Templo e se puseram a ensinar. Mas, chegando o príncipe dos sacerdotes e os que com ele estavam, convocaram o conselho e todos os anciãos dos filhos de Israel e mandaram buscar os Apóstolos no cárcere. Mas tendo lá ido os agentes e como, aberto o cárcere, não os achassem, voltaram e deram a notícia: "Achamos o cárcere fechado com toda a diligência e os guardas diante das portas; mas,

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abrindo-as, não achamos ninguém dentro." Quando, porém, ouviram esta novidade, o magistrado do Templo e os príncipes dos sacerdotes ficaram perplexos sobre o que teria sido feito deles. Mas ao mesmo tempo chegou alguém, que Ihes deu esta notícia: "Olhai que aqueles homens que metestes no cárcere, estão no Templo, ensinando o povo." Então foi o magistrado com os agentes e trouxe-os sem violência, porque temia ser apedrejado pelo povo. E logo que os trouxeram, apresentaram-nos ao conselho e o príncipe dos sacerdotes fez-Ihes a seguinte pergunta: "Não vos ordenamos, com expresso preceito, que não ensinásseis neste nome? E não obstante, tendes enchido Jerusalém da vossa doutrina; e quereis lançar sobre nós o sangue desse homem." Mas Pedro e os Apóstolos, respondendo, disseram: "Importa mais obedecer a Deus do que aos homens. O Deus dos nossos pais ressuscitou Jesus, a quem destes a morte, pendurando-O num madeiro. A Este elevou Deus com sua destra, como príncipe e como Salvador, para dar a contrição a Israel e a remissão dos pecados. E somos testemunhas destas palavras e também o Espírito Santo, que Deus deu a todos os que lhe obedecem." Quando isto ouviram, enraiveceram-se e planejaram matá-Ios. Mas, levantando-se no conselho um fariseu, por nome Gamaliel, doutor da lei, homem de respeito em todo o povo, mandou que saíssem para fora aqueles homens, por um breve espaço de tempo. E disse: "Homens israelitas, refleti bem no que haveis de fazer acerca destes homens. Porque, em tempos passados, se levantou um certo Teodas, que dizia ser um grande homem, a quem aderiu o número de quatrocentos homens; o qual foi morto e todos que nele acreditavam foram desfeitos e reduzidos a nada. Depois deste se levantou Judas Galileu, nos dias em que se fazia o arrolamento do povo e levou-o após si, mas pereceu e foram dispersos todos quantos se lhe acostaram. Agora, pois, vos digo: não vos metais com estes homens, deixai-os; porque, se este conse-lho ou esta obra vem dos homens, há de desvanecer-se; se, porém, vem de Deus, não podereis desfazê-Ia, para que não pareça que resistis até a Deus." Seguiram-lhe o conselho e, tendo chamado os Apóstolos, depois de os haverem feito açoitar, mandaram-Ihes que não falassem mais no nome de Jesus e soltaram-nos. Os Apóstolos, porém, saíram da presença do conselho verdadeiramente contentes, por terem sido achado dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus. E todos os dias não cessavam de ensinar e de pregar Jesus Cristo, no Templo e pelas casas." (Atos 5) 4. Comunhão de bens. Crescimento da comunidade Dos primeiros cristãos diz a Escritura Sagrada a bela palavra: "da multidão dos que criam, o coração era um e a alma uma; e nenhum dizia pertencer-lhe coisa alguma das que possuía, mas tudo entre eles era comum." (Atos 4,32.)

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Já depois do ágape, no domingo da Páscoa, os Apóstolos e discípulos propuseram esta resolução. Os recém-convertidos concordaram com a proposta. "Pedro ensinava que nenhum devia possuir mais do que o outro, que deviam repartir tudo e cuidar dos pobres que se reuniam à comunidade. Vi que no pátio do Cenáculo matavam rezes, trinchavam ovelhas e cabras, distribuindo tudo aos necessitados. As peles eram entregues a um homem, para as preparar. Os pobres recebiam também cobertores, pano de lã para roupa e pão. Tudo era distribuído. Reinava sempre boa ordem na distribuição; as mulheres recebiam sua parte da mão de mulheres e os homens da mão de homens.” Aos recém-convertidos foram destinadas também as casas de Marta e Madalena; Lázaro distribuiu toda a fortuna pela comunidade. Do mesmo modo entregou Barnabas todo o dinheiro recebido pela venda de seus bens, na ilha de Chipre. Juntou-se-Ihes também um judeu rico, de nome Ananias, com a mulher, Safira, moradores da Betânia. Ananias trouxe panos, ovelhas e jumentos, donativos para a comunidade e pediu o batismo. Antes de ser admitido, trouxe ainda o produto da venda de um campo; mas, com o consentimento da mulher, guardara parte do dinheiro para si. Quando, porém, veio pôr o dinheiro aos pés de Pedro, na presença dos Apóstolos e de todos os recém-convertidos, repreendeu-o este por causa da mentira e logo caiu Ananias morto. A mesma sorte teve também Safira. Esse acontecimento é narrado mais extensamente nos Atos dos Apóstolos, cap. 5: "Um varão, pois, por nome Ananias, com a mulher, Safira, vendeu um campo e com fraude usurpou certa porção do preço do campo, com consentimento da mulher; e levando uma parte, depositou aos pés dos Apóstolos. E disse Pedro: "Ananias, porque tentou Satanás o teu coração para que mentisses ao Espírito Santo e reservasses parte do preço do campo? Porventura não te era livre ficar com ele e ainda depois de vendido, não era teu o preço? Como assentaste, pois, em teu coração fazer tal? Sabe que não mentiste aos homens, mas a Deus." Ananias, porém, ouvindo estas palavras, caiu e expirou. E infundiu-se um grande temor em todos os que o ouviram. Levantando-se então uns mancebos, carregaram-no e levando-o dali para fora, enterraram-no. E passado que foi o espaço de três horas, entrou também a mulher, não sabendo o que tinha acontecido. E Pedro disse-lhe: "Dize-me, mulher, se vendeste por tanto a herdade?" e ela disse: "Sim, por tanto." Pedro então lhe disse: "Porque assim combinastes, para tentar o Espírito do Senhor? Eis aí estão à porta os pés daqueles que enterraram teu marido e te levarão a ti." No mesmo instante lhe caiu Safira aos pés e expirou e os moços, entrando, acharam-na morta e levando-a, enterraram-na junto do marido. E difundiu-se

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um grande temor por toda a Igreja e entre todos os que ouviram narrar este acontecimento. Os cômodos da casa perto da piscina da Betesda, daí há pouco, não bastavam mais para a multidão dos recém-convertidos. Os Apóstolos entraram, pois, em negociações com os magistrados judeus, para conseguir outros terrenos para habitações. Foram-Ihes indicados três terrenos apropriados, perto de Betânia. O povo mudou para lá e puseram tendas leves em redor de uma tenda maior, na qual morava um discípulo e se guardavam as provisões comuns. Assim se formaram três comunidades novas de fiéis. Os Apóstolos, porém, procuravam também os velhos amigos, que moravam em lugares mais afastados, para lhes informar sobre os acontecimentos após a última Páscoa, para lhes ensinar e os batizar. Assim mandou Pedro a Tomé, Filipe e Matias, cada um com mais um discípulo, a Samaria, Tebez e Tibérias. Mas também Pedro e os outros Apóstolos se espalharam por toda a Judéia; apenas Tiago o Menor, com alguns discípulos, ficou em Jerusalém e na Igreja de Betesda. 5. Eleição dos sete diáconos. Queixas por causa da distribuição das esmolas Nesse tempo se ouviram queixas das viúvas e dos órfãos sobre a distribuição das esmolas. Reuniram-se por isso novamente todos os Apóstolos no CenáciIlo, em volta de Pedro, a quem todos se submetiam e que lhes deu a santa Comunhão. Depois o conduziram, vestido do ornato episcopal, ao vestíbulo da casa, onde dirigiu a palavra aos numerosos discípulos e recém-convertidos, para promulgar ordens a respeito da distribuição das esmolas. "Entre outras coisas, ouvi dizer que não era conveniente abandonar a pregação da palavra de Deus, para cuidar de alimentos e roupa. Assim, por exemplo, não convinha mais que Lázaro, Nicodemos e José de Arimatéia administrassem, como até então, os bens terrestres da comunidade, por se terem tornado sacerdotes. Depois falou ainda sobre a ordem na distribuição das esmolas, sobre a administração das casas, dos órfãos e das viúvas. Então se apresentou Estêvão, um belo moço, esbelto, oferecendo-se para esse serviço. Entre os outros reconheci também a Parmenas, que era um dos mais velhos. Mas havia entre eles também mouros, que eram ainda muito moços e não tinham recebido o Espírito Santo. Pedro impôs as mãos a todos, cruzando-Ihes a estola do lado, sob o braço; sobre aqueles que ainda não tinham recebido o Espírito Santo, se derramou então uma luz.” A esses sete diáconos foram então entregues os bens e as provi-sões da comunidade. José de Arimatéia, porém, cedeu-lhes a sua casa. Faziam distribuir as esmolas em três lugares: diante do Cenáculo, em Betânia e na praça da estalagem, no caminho de Belém.

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Nesse último lugar se levantaram de novo queixas, mas os queixosos não tinham tanta razão. Por isso enviaram Estêvão e os outros diáconos mensageiros aos Apóstolos que, depois de nomear os diáconos, se tinham espalhado por todo o país. Pedro voltou, com André, da região de Jope a Jerusalém, Tomé, com Felipe, da Samaria; compareceram também outros Apóstolos, para terminar essa questão. Mas antes de chegarem, os descontentes já se tinham dirigido, com a queixa, ao conselho dos sacerdotes em Jerusalém, por intermédio de Saulo e Gamaliel e Estêvão foi citado perante o conselho. Mas este, acusado e interrogado por muitos fariseus e judeus excitados, se defendeu tão bem e com tanta seriedade, que foi absolvido.) Tendo, porém, Pedro se reunido no Cenáculo com os outros Apóstolos, mandou chamar os queixosos à sua presença e resolveu tudo, fazendo separar muitos da comunidade e acomodar em outras casas. 6. As obras do diácono S. Felipe Apesar dos Samaritanos não terem comunhão com os judeus, não deviam ficar privados do Evangelho, como também os gentios, pois já o Salvador ensinara muitas vezes nas regiões de Samaria, depois de ter tido aquela piedosa conversação com a mulher samaritana, no poço de Jacó. Entre os sete primeiros diáconos se achava também Felipe que, depois de Estêvão, era o mais respeitado. Felipe dirigiu-se à Samaria e pregou ali o Evangelho do Cristo. "E o povo estava atento ao que Felipe lhe dizia, escutando-o com o mesmo ardor e vendo os prodígios que fazia, porque os espíritos imundos saiam de muitas pessoas, dando grandes gritos e muitos paralíticos e coxos eram curados; pelo que se originou uma grande alegria naquela cidade. Havia lá, porém, um homem, por nome Simão, o qual antes tinha ali exercido a magia, enganando o povo Samaritano, dizendo que era um grande homem, a quem todos davam ouvidos, desde o maior até o menor, dizendo: Este é a virtude magna de Deus. E obedeciam-lhe, porque, com as artes mágicas, por muito tempo Ihes havia perturbado o espírito. Mas depois que creram o que Felipe Ihes anunciava do reino de Deus, foram-se batizando homens e mulheres, em nome de Jesus. Então creu também o mesmo Simão e depois que foi batizado, ligou-se a Felipe. Vendo os prodígios e grandíssimos milagres que se faziam, todo cheio de pasmo se admirava. Os Apóstolos, porém, que se achavam em Jerusalém, tendo ouvido que Samaria recebera a palavra de Deus, mandaram lá Pedro e João, os quais, quando chegaram, fizeram oração pelos Samaritanos, afim de receberem o Espírito Santo, que ainda não tinha descido sobre nenhum dos recém-convertidos, mas tinham sido apenas batizados em nome do Senhor Jesus. Então Ihes

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impunham as mãos e recebiam o Espírito Santo. E quando Simão viu que se dava o Espírito Santo por meio da imposição da mão dos Apóstolos, ofereceu-Ihes dinheiro, dizendo: "Dai-me também este poder, de que qualquer a quem eu impuser as mãos, receba o Espírito Santo." Mas Pedro disse-lhe: "O teu dinheiro pereça contigo; uma vez que te persuadiste de que o dom de Deus se pode adquirir com dinheiro, não tens parte nem herança alguma neste ministério; porque o teu coração não é reto diante de Deus. Faze, pois, penitência desta tua maldade e roga a Deus que, se é possível, te seja perdoado este pensamento do teu coração; porque vejo que estás num fel de amargura e preso nos laços da iniqüidade". E respondendo Simão, disse: "Roga por mim ao Senhor, para que não me suceda nada do que disseste". Depois de terem dado este testemunho e anunciado a palavra do Senhor, voltaram para Jerusalém e pregaram em muitos lugares da Samaria. E o Anjo do Senhor disse a Felipe: "Levanta-te e dirige-te para o sul, ao caminho que vai de Jerusalém a Gaza, o qual se acha deserto." E, levantando-se, partiu. E eis que um homem etíope, eunuco, servo de Candace, rainha da Etiópia, de cujos tesouros era superintendente, tinha vindo a Jerusalém para fazer oração e voltava, sentado na sua carruagem, lendo o profeta Isaías. Então disse o Espírito a Felipe: "Vai e aproxima-te deste carro". E correndo logo Felipe, ouviu que o eunuco lia o profeta Isaías e disse-lhe: "Compreendes porventura o que estás lendo?" o etíope respondeu-lhe: "Como o poderei entender, se não houver alguém que mo explique?" E rogou a Felipe que subisse e se lhe sentasse ao lado. Ora a passagem da Escritura que lia, era esta: "Como ovelha foi levado ao matadouro e como cordeiro mudo diante de quem o tosquia, assim ele não abriu a boca. Na sua humilhação foi abolido o Julgamento. Quem poderá contar-lhe a geração, pois que sua vida será tirada da terra?" E respondendo o eunuco a Felipe, disse: "Rogo-te que me digas de quem disse isto o profeta: de si mesmo ou de algum outro?" E abrindo Felipe a boca e principiando por esse trecho da Escritura, anunciou-lhe Jesus. E continuando o caminho, chegaram a um lugar onde havia água e disse o eunuco: "Eis aqui água; o que impede que eu seja batizado?" E res-pondeu-lhe Felipe: "Se crês de todo o coração, podes". E respon-dendo, disse o etíope: "Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus". E mandou parar o carro e descerem os dois para a margem do rio, onde Felipe o batizou. E tanto que saíram da água, arrebatou o Espírito do Senhor a Felipe e o eunuco não mais o viu; continuou, porém, o caminho, cheio de prazer. Mas Felipe achou-se em Azot e passando além, pregava o Evangelho em todas as cidades, até que veio a Cesaréia". (Atos 8, 6 - 40). 7. Perseguições

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Era inevitável que os fiéis fossem cada vez mais perseguidos pelo ódio dos judeus. Pedro dissera-lhes abertamente que assim se devia mostrar quem possuía o Espírito Santo enviado por Jesus; começara o tempo de agir e sofrer perseguição. Mas para que não se levantasse logo uma perseguição violenta contra os recém-convertidos, os Apóstolos julgavam prudente afastaremse de vez em quando das vizinhanças de Jerusalém. A primeira vez foram todos para a respectiva terra natal. A segunda vez, depois da eleição dos diáconos, mudaram de lugar. Desta vez se encaminhou Tomé para a Samaria, Zaqueu para Bedar, João para Éfeso, na Ásia Menor, Pedro, porém, com Silvano, para a região de Jope. "Pedro fazia mais milagres do que todos os outros, diz Catharina Emmerich. Expulsava demônios e ressuscitava mortos; vi até que um Anjo o precedia, mandando o povo fazer penitência e pedir socorro a Pedro. O centurião Comélio também já ouvira falar nele, mas naquele tempo não se convertera ainda. Antes de Estêvão ser apedrejado, todos os Apóstolos mais uma vez se reuniram em Jerusalém e depois de se dispersarem de novo, Pedro voltou a Jope e então se efetuou a conversão de Cornélio. Maria e todas as santas mulheres, inclusive Verônica, estavam em Betânia. Também vi Saulo em Jerusalém, já muito ativo. Dirigia todo o ódio dos judeus. Vi-o percorrer a cidade e agitar o povo, com incrível ódio, convencido de ter o direito ao seu lado. Conhecia muitos discípulos, procurava-os de propósito e discutia com eles. Também se esforçava por perturbar e destruir a nova colônia dos cristãos. Incitava também o ódio dos saduceus e ficou furioso ao ouvir narrar que Simão Mago, em Samaria, se convertera. Este, porém, apostatou e juntou-se em Jerusalém a Saulo, cujo ódio crescia cada vez mais. Saulo pediu aos sacerdotes judeus cartas, com poderes especiais e ia a muitos lugares, para perseguir os cristãos". Depois de Pedro e os Apóstolos haverem resolvido a questão havida em Jerusalém, todos se retiraram novamente para regiões onde os judeus não lhes podiam fazer mal. Pedro dirigiu-se novamente a Jope e arredores. Durante a estadia em Lídia, morreu em Jope uma piedosa mulher cristã, de nome Tabita. Então enviaram os discípulos alguns mensageiros a Jope, para chamar Pedro. Quando este chegou à casa da morta, aproximou-se do cadáver e disse: "Tabita, levanta-te." Então abriu a morta os olhos e levantou-se do féretro, com espanto de todos que estavam presentes. "Simão Mago está na cidade, juntamente com Saulo, incitando todos contra a comunidade cristã. Os fiéis estão em grande aflição. Muitos dos Apóstolos estão longe, mas os fiéis mandaram chamálos. Os judeus destroem as casas dos cristãos, até nos lugares que eles

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mesmos lhes tinham destinado. Os cristãos que moram na estrada de Belém, estão saindo para Salém, onde João batizava. Ali estão construindo cabanas e uma capela; têm consigo um sacerdote e também o SS. Sacramento, numa cápsula. Serviu de pretexto à perseguição o fato de Pedro, viajando de Samaria a Jope, batizar no caminho muita gente, inclusive certo homem, cuja conversão provocou grande discussão em Jerusalém. Estêvão defendeu essa causa com tanta firmeza, que o prenderam. A comunidade aflita mandou chamar Pedro e os outros Apóstolos. 8. Estêvão é interrogado e apedrejado A perseguição mencionada não se dirigia tanto contra os Apósto-los, mas contra os recém-convertidos, que fOflnavam comunidade em redor de Jerusalém. Estêvão era um dos que governavam essas comunidades. Era, como diz a Escritura, cheio de graça e fortaleza e fazia grandes prodígios e milagres entre o povo. Alguns da sinagoga se levantaram a disputar com Estêvão, mas não podiam resistir à sabedoria e ao Espírito que nele falava. Então subornaram alguns homens, que agitaram o povo. Levaram-no ao conselho e apresentaram falsas testemunhas, que disseram: "Este homem não cessa de proferir palavras contra o lugar santo e contra a lei." (Atos 6, 8-13). Ele, porém, disse: "Irmãos e pais, escutai. O Altíssimo não habita em edifícios construídos por mãos de homens, como diz o profeta: "O céu é o meu trono e a terra o escabelo dos meus pés. Que casa me edificareis?" diz o Senhor, "ou qual é o lugar do meu repouso? Não fez porventura a minha mão todas estas coisas?" Homens de dura cerviz e de corações e ouvidos incircuncisos, vós sempre resistis ao Espírito Santo; assim como agiram vossos pais, assim o fazeis também! A qual dos profetas não perseguiram vossos pais? E mataram até os que anunciavam a vinda do Justo, do qual agora fostes traidores e homicidas, vós que recebestes a lei por ministério dos Anjos e não a guardastes." Ao ouvir, porém, tais palavras, enraiveceu-se-lhes o coração e rangiam os dentes contra Estêvão. Mas como estava cheio do Espírito Santo, olhando para o céu, viu a glória de Deus e Jesus à destra de Deus. E disse: "Eis que estou vendo os céus abertos e o Filho do Homem à direita de Deus." Então, levantando uma grande gritaria, taparam os ouvidos e, todos juntos, arremeteram com fúria contra o santo diácono e, tendo-o lançado para fora da cidade, apedrejaram-no; e as testemunhas depuseram os mantos aos pés de um moço, que se chamava Saulo. E apedrejaram Estêvão, que invocava Jesus e dizia: "Senhor Jesus, recebei o meu espírito." E pondo-se de joelhos, clamou em alta voz, dizendo: "Senhor, não lhes imputeis este pecado." E tendo dito isto, adormeceu no Senhor. E Saulo consentiu no

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homicídio de Estêvão." (Atos 7, 48-60) Estêvão sofreu o martírio mais ou menos um ano depois da crucificação de Cristo. A piedosa Emmerich narra o seguinte: "Vi Estêvão, sem se lembrar do apedrejamento, rezando apenas pe-los carrascos e olhando para o céu aberto. O martírio deu-se fora da porta, ao norte, ao lado de uma estrada. Era um lugar aberto, circular, em cujo centro se achava uma pedra, sobre a qual se ajoelhou o santo moço, rezando, com as mãos ergui das. Vestia uma longa veste branca, arregaçada, sobre a qual pendia, no peito e nas costas, uma espécie de escapulário, com duas fitas transversais; creio que era uma parte das vestes sacerdotais. Procederam no apedrejamento em certa ordem; em volta do lugar haviam juntado pedras, ao pé de cada um dos apedrejadores. Vi também Saulo, homem extraordinariamente sério e zeloso, que arranjara tudo o que era necessário para a lapidação e os lapidantes depositaram os mantos aos seus pés. Estêvão levantara as mãos, rezando e não se movia, sob as pedradas; era como se não as sentisse. Também não fazia movimentos espontâneos para se proteger; parecia extasiado, olhava para o alto e o céu estava aberto acima dele; via Jesus e com Ele, Maria, sua Mãe. Finalmente uma pedra lhe bateu na cabeça, prostrando-o morto. Era um moço alto e belo, de cabelo castanho e liso. Saulo não causava uma impressão repugnante, pelo grande zelo com que preparara a lapidação, como acontecia com os outros, que eram cheios de inveja e hipocrisia; pois o fazia impelido por um falso zelo, mas que julgava justo, pela lei judaica; foi por isso também que Deus o iluminou.” Os ossos do santo mártir Estêvão foram mais tarde milagrosamente encontrados, em conseqüência de uma Visão, junto com os corpos de Nicodemos, Gamaliel e seu filho Abidon. "O corpo de Estêvão, que jazia numa posição natural, foi levado a Jerusalém, a uma Igreja situada no monte em que estivera o Cenáculo. Esses ossos foram depois várias vezes distribuídos e levados a vários lugares e muitos milagres se deram com eles. Lembro-me que uma cega tocou o caixão das relíquias com flores, por meio das quais recobrou de novo a vista. Em outro lugar se converteram muitos judeus. Em certa região o demônio, assumindo a forma de um homem muito respeitável, pediu uma parte das relíquias de S. Estêvão, mas quando o bispo pediu a luz de Deus, para saber se o suplicante o merecia, fugiu o demônio, rugindo e tomando um aspecto horrível. De tais milagres vi muitos e também que parte das relíquias foram levadas para Roma e depositadas junto ao corpo de S. Lourenço. Deu-se então um fato milagroso: O corpo de S. Lourenço mudou de posição, cedendo lugar às relíquias de Santo Estêvão.” Com a morte de Estêvão a perseguição não terminou absolutamente, pois S. Lucas acrescenta à narração do apedrejamento de S. Estêvão

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estas palavras: "Saulo, porém, assolava a Igreja, entrando pelas casas e tirando com violência homens e mulheres, fazia com que os metessem no cárcere. Entretanto os que se tinham dispersado, iam de um lugar para outro, anunciando a palavra de Deus." (Atos 8, 3-4). Assim servia essa perseguição ao plano de Deus, não só para provar e purificar os eleitos, mas também para propagar a doutrina de Jesus em outras regiões e aumentar o número de fiéis. 9. A conversão de SauIo Um acontecimento sumamente importante para ajovem Igreja cristã foi a conversão de um homem, que até então tinha sido abertamente inimigo e se propusera a destruí-Ia, mas que mais tarde se tornou um dos seus mais árduos defensores e com a pregação e o seu sangue confirmou a fé no Filho de Deus crucificado. Depois de ter visto Estêvão expirar. sob as pedradas dos judeus, encaminhou-se para Damasco, com o fim de trazer presos para Jerusalém todos os partidários de Jesus que encontrasse. "Seguia pelo caminho, conta a Escritura Sagrada, aproximando-se de Damasco, quando subitamente o cercou uma luz vinda do céu e caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: "Saulo, Saulo, porque me persegues?" Ele replicou: "Senhor, quem és?" E respondeu-lhe a voz: "Eu sou Jesus, a quem persegues. Duro te é recaIcitrar contra o aguilhão." Então, tremendo e atônito, disse: "Senhor, que queres que eu faça?" O Senhor respondeu-lhe: "Levanta-te e entra na cidade e aí se te dirá o que te "cumpre fazer." Os homens que o acompanhavam, estavam espantados, !ouvindo a voz, mas sem ver ninguém. Levantou-se, pois, Saulo do solo e tendo os olhos abertos, nada via. Os companheiros, porém, conduzin do-o pela mão, levaram-no a Damasco, onde esteve três dias sem ver e não comeu nem bebeu. Ora, em Damasco havia um discípulo, de nome Ananias e o Senhor, numa visão, lhe disse: "Ananias." E ele acudiu, dizendo: "Eis-me aqui, Senhor!" E o Senhor tornou-lhe: "Levanta-te e vai à rua que se chama Direita e procura em casa de Judas um homem chamado Saulo de Tarso, porque eis que está rezando." E Saulo viu também um homem, por nome Ananias, que entrou e lhe impôs as mãos, para que recebesse a vista. Respondeu, pois, Ananias: "Senhor, tenho ouvido muitos falarem a respeito deste homem, quanto mal fez aos teus santos em Jerusalém; e ele tem poder dos príncipes dos sacerdotes para prender todos que invocam teu nome." Mas o Senhor disse-lhe: "Vai porque este é para mim um vaso escolhido, para levar meu nome perante os gentios e os reis e os filhos de Israel. Porque eu lhe mostrarei quanto lhe cumpre sofrer pelo meu nome." E Ananias foi e entrou na casa e impondo-lhe as mãos, disse: "Saulo, irmão, o

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Senhor Jesus, que te apareceu no caminho por onde vinhas, enviou-me, para que recobres a vista e fiques cheio do Espírito Santo." E no mesmo instante lhe caíram dos olhos umas escamas, e assim recuperou a vista; e levantando-se, foi batizado. E depois que tomou alimento, recobrou as forças. Alguns dias esteve então com os discípulos que se achavam em Damasco e logo começou a pregar nas sinagogas que Jesus é o Filho de Deus. E pasmavam todos que o ouviam e diziam: "Pois não era este quem perseguia em Jerusalém os que invocavam este nome e que veio prendê-Ios, para os levar aos príncipes dos sacerdotes?" Saulo, porém, esforçava-se cada vez mais e confundia os judeus que habitavam em Damasco, afirmando que Jesus é o Cristo. E passados muitos dias, os Judeus se reuniram em conselho, resolvendo matá-lo. Saulo, porém, foi advertido das ciladas. Guardavam-lhe as portas dia e noite, para o eliminar. Os discípulos, porém, tomando-o de noite, desceram-no pela muralha, metido numa cesta. Tendo chegado a Jerusalém, procurava Saulo reunir-se aos discípulos, mas todos o temiam, não crendo que fosse discípulo. Então Barnabé, levando-o consigo, o apresentou aos Apóstolos e contou-Ihes como tinha visto o Senhor no caminho e lhe tinha falado e como depois em Damasco agira com toda franqueza em nome de Jesus. E Saulo estava com eles em Jerusalém, entrando e saindo e falando corajoso em nome do Senhor. Falava também com os gentios e disputava com os gregos, mas tratavam de matá-lo. Sabendo disto, os irmãos acompanharam-no até Cesaréia e enviaram-no a Tarso. Estava então em paz a Igreja por toda a Judéia, Galiléia e Samaria e se estabelecia, caminhando no temor de Deus e estava cheia do Espírito Santo." (Atos 9, 3-31). Anna Catharina dá do santo Apóstolo Paulo esta descrição: "Paulo não era alto, mas baixo e robusto. Tinha uma alma forte, procurando a justiça, mas sem obstinação nem orgulho. Depois da conversão era humilde e amável, mas era dotado de muita seriedade, perseverança e firmeza.” 10. Herodes manda decapitar Tiago o Maior e lançar Pedro no cárcere No quinto ano depois da morte de Jesus Cristo se levantou nova perseguição contra a comunidade; por isso levou João a SS. Virgem para a região do Éfeso, onde já se formara nova comunidade de cristãos. Em Éfeso a visitou Tiago o Maior, ao voltar da Espanha para Jerusalém. Chegando ali, trabalhou e pregou ainda algum tempo, depois foi preso e condenado à morte por Herodes. "Tiago foi conduzido para fora da cidade, em direção ao Monte Calvário, conta a serva de Deus, e no caminho continuava pregando e ensinando, convertendo ainda muitos. Quando lhe ataram as mãos, disse: Podeis amarrar-me as mãos, mas não a bênção e a língua."

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Um paralítico estava sentado à beira do caminho e dirigindo-se a Tiago, pediu que lhe desse a mão e o curasse. Tiago respondeu: "Vem a mim e dá-me a mão." O paralítico levantou-se, tomou as mãos amarradas do Santo Apóstolo e foi curado. Vi também o homem que o atraiçoou, chamado Josias, correndo para ele, arrependido, pedindo-lhe perdão. Confessou a fé em Cristo e foi também executado. Tiago perguntou-lhe se queria receber o batismo e como afirmasse que sim, abraçou-o o Apóstolo e, beijando-o, disse: "Serás batizado no teu sangue." Vi ainda uma mulher, que correu com o filho cego para junto de Tiago, no lugar do suplício, pedindo e alcançando-lhe a vista. Tiago e Josias foram primeiro colocados juntos num lugar elevado, sendo-Ihes proclamado em alta voz o "crime" e a sentença de morte. Depois se sentou Tiago numa pedra, à qual lhe foram atadas as mãos; vendaram-lhe os olhos e assim o decapitaram. No entanto tinham também encerrado Tiago o Menor na própria casa; além dele, estavam em Jerusalém Mateus, Natanael, Cased e Natanael, o noivo de Caná. Mateus morava em Betânia. A casa de Lázaro e todas as suas propriedades na Judéia estavam, havia muito tempo, na posse da comunidade cristã; o palácio na cidade, porém, tomaram-lhe os Judeus. Durante o suplício de Tiago o Maior, se levantou um grande tumulto e muitos se converteram.” Para agradar aos judeus, Herodes fez também prender Pedro e lançá--lo no cárcere, com intenção de apresentá-Io ao povo depois da Páscoa. Entretanto a Igreja orava a Deus por ele sem cessar. Mas quando Herodes estava para o apresentar, nessa mesma noite, Pedro foi posto em liberdade por um Anjo. "Vi Pedro dormindo, num cárcere bastante vasto, entre dois solda-dos, que estavam deitados a uma certa distância e também dormindo. Jazia num lado perto da parede; tinha os pés encerrados num cepo, ambos os braços, porém, estavam amarrados aos guardas, que dormiam à direita e à esquerda. Vi aparecer do alto um esplendor e nele um Anjo, que tocou em Pedro, que acordou; as cadeias soltaram-se-Ihe, à direita e à esquerda, das mãos; caíram sem barulho e sem movimento de sua parte e estavam ainda da mesma forma que tinham dantes, quando lhe atavam as mãos. O Anjo disse-lhe uma coisa, então tirou Pedro os pés do cepo, sem abrí-Io, pós as sandálias, que ainda estavam ligadas às pernas, e levantando-se, cingiu a túnica larga, vestiu o manto com que se tinha coberto e seguiu o Anjo, que passou diante dele pela porta, sem que essa se abrisse; era como se lhe passassem através. Por fim chegaram a um grande portão de ferro, o qual se abriu. Vi em tudo isso que havia luz só no espaço onde passavam. Entraram então numa rua; lá desapareceu o Anjo e vi que Pedro estava muito espantado. Até então tinha pensado que sonhava; só agora notara que estava em liberdade. Passou por uma porta e atravessando um riacho, veio a um lugar que parecia fora da cidade; mas não posso dizê-Io com

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certeza, pois Jerusalém era muito dividida por colinas; afinal vi que a casa da mãe de João Marcos não estava na própria cidade, mas isolada e fora de uma porta. Vi, porém, nessa casa muitos discípulos e fiéis, reunidos numa sala, rezando, à luz de um candeeiro. Conservavam-se muito quietos e silenciosos, cobrindo as janelas com panos, para que a luz não fosse vista. Vi que Pedro batia na porta do átrio e que uma criada estava escutando por dentro. Quando Pedro pediu que abrisse a porta, correu ela apressadamente à sala, anunciando-o alegremente aos outros, mas esses não queriam acreditar; vi, porém, que Pedro continuava batendo e que alguns saíram para abrir; Pedro entrou e eles o abraçaram, felizes e contentes. Mas não se demorou muito; fez-Ihes um sinal para ficarem quietos, contou umas coisas e saiu da casa. O castigo de Deus caiu pouco depois sobre Herodes. Numa festa se lhe arrebentou o ventre, num teatro, diante de todo o povo. Levaram-no a uma grande sala, onde estava o trono e onde cabiam cerca de 500 pessoas. Estava como doido de raiva e dor e tão asqueroso, que não o posso descrever. Ocultaram sua morte por algum tempo.” 11. Outras provações da Igreja de Jerusalém Tiago o Menor governava como bispo a Igreja de Jerusalém, para a qual, segundo uma velha tradição, fora eleito pelo próprio Salvador. Foi o único que ficou na cidade, pois os outros partiram para terras longínquas a fim de pregar o reino de Deus. Nasireu por causa de suas virtudes e piedade era muito estimado, não só entre os Apóstolos e discípulos, mas também entre os judeus, de modo que lhe deram o apelido de "justo." Apesar disso, devia também morrer mártir, alguns anos depois de Tiago o Maior. "Vi quando o levaram, durante sete dias, de um tribunal ao outro e cada dia o maltratavam durante uma hora. Depois de o terem lançado do pináculo do Templo abaixo, apedrejaram-no ainda e afinal o mataram a pauladas.” Como os partidários de Tiago resistissem, levantou-se um tumulto, no qual foram mortos três discípulos, entre os quais também um filho do velho profeta Simeão. Depois da morte de Tiago o Menor, a Igreja de Jerusalém ficou 5 anos sem bispo. Mais tarde foi nomeado bispo Simeão, que era filho de Maria, filha de Cléofas. No entanto era a Igreja administrada por Joas, parente de Pedro. Antes da destruição de Jerusalém, pelo general romano Tito, no ano 70, Simeão saiu com os cristãos da cidade e só voltou doze anos mais tarde. No ano 87 foi crucificado, na idade de 120 anos. É provável que já antes de Simeão, tivesse sido martirizado em Jerusalém o santo Apóstolo Matias. A piedosa Emmerich viu-o, é

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verdade, duas vezes no país dos Reis Magos (Armênia), pregando a fé, mas diz depois que foi morto a pauladas na cabeça, com um longo pau, depois da morte de Tiago o Menor. A história eclesiástica, narra mais extensamente: O Apóstolo pregou o santo Evangelho, com zelo incansável, na Judéia e Galiléia, durante 33 anos. Como o número dos cristãos aumentasse dia a dia, foi levado perante o Conselho supremo e ameaçado de morte pelo Sumo Sacerdote Ananias, se não deixasse de pregar o Crucificado. Matias, porém, demonstrou que Jesus é o Filho unigênito de Deus, o Messias prometido, que ressuscitou dos mortos. Por esta corajosa profissão de fé, foi con "de nado pelo Sumo Sacerdote à morte por lapidação. O corpo do santo Apóstolo foi sepultado em Jerusalém. Santa Helena, porém, levou-o para Roma e deu-o a santo Agrítio, que o levou a Treves, para onde fora nomeado Bispo. A piedosa Emmerich teve também uma visão, em que viu os judeus, sob o reinado do imperador Juliano o Apóstata, quando S. Cirilo era Bispo de Jerusalém, no ano 362, tentarem reedificar o Templo, para desse modo provar a falsidade da profecia de Jesus Cristo. "Vi que uma tempestade levou grande quantidade de cal e materiais de construção, cobrindo e obstruindo estradas inteiras. Da terra saiu fogo, destruindo as ferramentas; grandes abóbadas caíram, matando muitos homens e na roupa dos operários apareceram nódoas pretas, em forma de cruzes. Vi também alguns operários caírem numa adega, cuja abóbada ruíra e aí acharem uma grande pia de pedra, que continha mui tos rolos escritos; uma voz mandou-lhes que levassem alguns destes. Esses operários foram depois socorridos e salvos, a maior parte. Aqueles rolos continham muitos documentos sobre o bom ladrão e sobre a infância de Jesus, verdade e ficção. Vi também, naquele tempo, uma grande cruz luminosa aparecer do Monte das Oliveiras até o Monte Calvário e muitos se converteram.” 14 Os últimos anos e a morte gloriosa de Maria Santíssima 1. Maria em Éfeso 2. Viagens de Maria a Jerusalém 3. Reunião dos Apóstolos, por ocasião da morte de Maria, em Éfeso 4. Os últimos dias de vida de Maria 5. A morte gloriosa da Santíssima Virgem 6. Embalsamamento e enterro de Maria 7. A Assunção de Maria 8. Abertura do sepulcro de Maria

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Os últimos anos e a morte gloriosa de Maria Santíssima Antes de passarmos a descrever a propagação do reino de Deus entre os gentios, pelos Apóstolos, juntamos aqui a narração da piedosa Emmerich sobre a maravilhosa e gloriosa morte da Mãe de Jesus. Assim seguimos também a cronologia, pois a Santíssima Virgem morreu antes dos Apóstolos e estes estiveram presentes por ocasião da sua morte. 1. Maria em Éfeso Depois da ascensão do Filho querido, viveu Maria, segundo a narração de Catharina Emmerich, três anos em Jerusalém e depois outros três anos em Betânia, em casa de Lázaro. São João, que sempre a acompanhava, levou-a para Éfeso. afim de a salvar da perseguição e ali viveu ainda nove anos. "Maria não morava propriamente em Éfeso, mas numa região onde já se tinham refugiado algumas das santas mulheres, suas amigas. A habitação de Maria achava-se numa colina, à esquerda do caminho de Jerusalém a Éfeso, cerca de três horas e meia de viagem, antes de chegar a Éfeso; a colina tinha uma subida suave, para o lado da cidade. Era uma região deserta, com muitas colinas férteis e belas, com grutas limpas, entre pequenas planícies arenosas; era deserta, mas não inabitável; havia muitas árvores isoladas, de troncos lisos e copas sombrias, em forma de pirâmide. Quando João trouxe a Santíssima Virgem para uma casa que lá mandara construir, já ali moravam várias famílias cristãs e algumas das santas mulheres, seja em grutas dos montes ou em subterrâneos, tornados habitáveis com alguma construção de madeira, seja em frágeis tendas; só a casa de Maria era de pedra. A Santíssima Virgem morava ali com uma jovem empregada. Viviam recolhidas em paz e sossego. João não morava na mesma casa; passava a maior parte do tempo em Éfeso ou arredores; fez também várias viagens à Palestina. Dava-lhe sempre a Santa Comunhão, rezava com ela a Via Sacra, dava-lhe a bênção e recebia-lhe também a bênção materna. No último tempo da estadia ali, vi Maria tornar-se cada vez mais recolhida no amor de Deus; quase não tomava mais alimento. Era como se só exteriormente estivesse na terra e com o espírito no outro mundo. Parecia não notar o que lhe acontecia em redor. Vi-a, nas últimas semanas antes da morte, já muito idosa e fraca e a criada a guiá-Ia às vezes pela casa. Uma vez vi João entrar lá. Tirou o cinto e vestiu outro, que tirou sob o manto e que era ornado de letras. No braço pôs uma espécie de manípulo e no peito uma estola. A Santíssima Virgem veio saindo

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do quarto de dormir, revestida toda de uma veste branca, apoiando-se sobre o braço da criada. Tinha o rosto branco como a neve e como que transparente. A saudade parecia trazê-Ia como que suspensa entre o céu e a terra. Desde a ascensão de Jesus, todo o seu ser tinha a expressão de uma saudade infinita e sempre crescente, que parecia consumi-Ia. Dirigiu-se, com João, ao lugar de oração. Puxou uma fita ou correia; então se virou o tabernáculo na parede e a cruz que lá estava, apareceu. Depois de terem ambos rezado, ajoelhados, por algum tempo, levantou-se João e tirou do peito um vaso de metal; abriu-o de um lado, tirou de lá um invólucro de lã fina e deste, um lenço dobrado, de estofo branco, do qual retirou o Santíssimo Sacramento, em forma de um pedacinho de pão branco. Depois disse algumas palavras solenes e sérias e deu à Santíssima Virgem a Sagrada Comunhão. Por trás da casa, até certa distância, na encosta da montanha, Maria Santíssima fizera para si uma Via Sacra. Enquanto morava em Jerusalém nunca deixara, desde a morte do Senhor, de percorrer-lhe o caminho da Paixão, chorando de saudade e compaixão. De todos os lugares do caminho onde Jesus sofrera, ela tinha medido a distância a passos; o amor imenso de Mãe extremosa não lhe podia viver sem a contínua contemplação desse caminho doloroso. Pouco tempo depois de chegar àquela região, eu a via diariamente caminhar até certa distância, subindo a colina atrás da casa, nessa meditação da Paixão e morte do Filho amado. A princípio ia sozinha, medindo pelo número de passos que tantas vezes contara, as distâncias dos lugares onde Jesus sofrera certos tormentos. Em todos esses lugares erigia uma pedra ou, se havia ali uma árvore, marcava-a. O caminho conduzia a um bosque onde, numa elevação, marcou o Monte cal vário e numa gruta de outra colina, o sepulcro de Jesus Cristo. Depois de ter medido desse modo as doze estações da Via Sacra, percorria-a, em silenciosa meditação, acompanhada da criada; em cada estação da Paixão se sentavam, recordando no coração o mistério do respectivo sofrimento e louvando ao Senhor por seu Infinito amor, com lágrimas de compaixão. Depois arranjaram as estações ainda melhor e vi que a Santíssima Virgem escrevia com um buril, na pedra assinalada, a significação do lugar, o número dos passos, etc. Vi também, depois da morte da Santíssima Virgem, os cristãos percorrerem esse caminho, prostrando-se por terra e beijando o chão.” 2. Viagens de Maria a Jerusalém "Depois do terceiro ano da estadia em Éfeso, Maria sentiu profundo e veemente desejo de ir a Jerusalém. João e Pedro levaram-na, pois. Se bem me lembro, estavam ali reunidos vários Apóstolos;

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vi Tomé; creio que era um ,Concílio e Maria assistiu-Ihes com os conselhos maternais. No dia da chegada, ao cair da noite, antes de entrar na cidade, eu a vi visitar o Monte das Oliveiras, o Calvário, o santo Sepulcro e outros lugares sagrados, em redor de Jerusalém. A Mãe de Deus estava tão triste e tão comovida pela paixão, que só com extremo esforço podia ficar em pé e Pedro e João levaram-na dali, segurandoa pelos braços. Ela viajou mais uma vez de Éfeso a Jerusalém, ano e meio antes da morte. Vi-a então visitar também de noite os santos lugares, acompanhada pelos Apóstolos. Estava indizivelmente triste e gemia apenas, exclamando "Ó, meu Filho, meu Filho! Quando chegou à porta posterior, daquele palácio, onde se encontrara com Jesus caindo sob a cruz, tombou por terra, desmaiada, comovida pela lembrança; os companheiros julgavam que morresse. Levaram-na ao Cenáculo, em Sião, onde morava. Ali esteve a Santíssima Virgem, durante alguns dias, tão fraca e doente e teve tantos desmaios, que várias vezes lhe esperaram a morte e já pensavam em preparar-lhe o sepulcro. Ela mesma escolheu para este fim uma gruta no Monte das Oliveiras e os Apóstolos mandaram um escultor cristão fazer ali um belo sepulcro. Entretanto o povo espalhava várias vezes falsas notícias da mor-te de Maria SS. e esse boato de ter morrido e sido sepultada em Jerusalém propagou-se também em outros lugares. Mas quando o sepulcro ficou pronto, ela já se restabelecera e tinha força bastante para voltar para casa em Éfeso, onde, após ano e meio, faleceu realmente. O sepulcro preparado no Monte das Oliveiras foi sempre venerado e guardado, construindo-se depois sobre ele uma Igreja e João Damasceno escreveu também, baseado nesse boato, que Maria morreu em Jerusalém e ali foi sepultada. Deus permitiu que as notícias da morte, sepultura e assunção ao céu da Virgem SS. se conservassem apenas numa incerta tradição, para não alimentar no cristianismo o sentimento pagão daqueles tempos; pois muitos talvez a tivessem adorado como deusa.” 3. Reunião dos Apóstolos, por ocasião da morte de Maria, em Éfeso Algum tempo antes da morte, rezou a SS. Virgem, para que nela se cumprisse o que Jesus lhe prometera no dia antes da ascensão, em casa de Lázaro, em Betânia. Foi-me mostrado em espírito, que quando ela lhe suplicou que depois da ascensão não a deixasse muito tempo neste vale de lágrimas, Jesus lhe disse vagamente quais as obras espirituais que ela devia ainda fazer na terra até a morte e, atendendo-lhe à súplica, prometeu-lhe que os Apóstolos e vários discípulos lhe assistiriam a morte; recomendou-lhe o que Ihes devia então dizer e como os devia abençoar. Quando a SS. Virgem implorou que os Apóstolos se reunissem em

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torno dela, vi, em regiões muito diferentes e opostas, chegar o chamado aos Apóstolos; neste momento só me lembro do seguinte: Os Apóstolos já tinham construído pequenas Igrejas, em vários lugares, onde tinham pregado; embora algumas dessas Igrejas não fossem construídas de pedra, mas apenas de vime trançado e rebocadas de barro, todavia tinham sempre, todas que tenho visto, na parte posterior, a forma circular ou triangular, como a casa de Maria em Éfeso. Nessas Igrejas tinham altares e celebravam o santo sacrifício da Missa. Vi que todos foram chamados, Inclusive os que estavam nas terras mais longínquas, recebendo por aparições a ordem de ir ver a SS. Virgem. Em geral não foi sem milagroso auxílio que os Apóstolos fizeram as longuíssimas viagens. Creio que freqüentemente faziam as viagens de uma maneira sobrenatural, sem eles mesmos saberem; pois muitas vezes os tenho visto passar no meio de grandes multidões de homens, sem serem vistos. Quando o chamado do Senhor se, fez ouvir aos Apóstolos, para irem a Éfeso, Pedro e se bem me lembro, também Matias, se achavam na região de Antioquia. André, que vinha de Jerusalém, onde fora perseguido, não se achava longe. Judas Tadeu e Simão estavam na Pérsia. Tomé encontrava-se na Índia, quando recebeu a ordem de partir; mas já resolvera ir à Tartária, mais para o norte e não pode decidir-se a abandonar esse projeto. Assim continuou o caminho para o norte, atravessando parte da China, até chegar à região onde agora é a Rússia; ali foi chamado pela segunda vez e partiu então às pressas para Éfeso. João estava mesmo na vizinhança de Éfeso; Bartolomeu a leste do Mar Vermelho, na Ásia. Paulo foi chamado. Foram chamados apenas os que eram parentes ou amigos da Sagrada Família. 4. Os últimos dias de vida de Maria "Eu tinha muita convivência com a Mãe de Deus em Éfeso, conta Catharina Emmerich, a 7 de Agosto de 1821. Fui com ela e cerca de cinco outras santas mulheres, percorrer a Via Sacra. Estava lá também a sobrinha da profetiza Ana e a viúva Mara, sobrinha de Santa Isabel. A SS. Virgem ia à frente de todas. Vi-a já muito idosa, mas não tinha outro sinal de velhice na aparência, senão o da intensa saudade, que a levava à união com o Filho, à glorificação. Maria era indizivelmente séria; nunca a vi rir, mas apenas sorrir de modo tocante. Estava emagrecida, mas não lhe vi rugas, nem sinal algum de velhice. Estava como que espiritualizada. Parecia ser a última vez que fazia a Via Sacra. Enquanto assim caminhava, parecia-me que João, Pedro e Tadeu já tinham chegado. Vi (a 9 de Agosto) Maria deitada num leito estreito e baixo coberto por um dossel, em forma de tenda, do qual pendiam brancas

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cortinas, à direita do quarto, atrás do fogão. A cabeça repousava-lhe sobre uma almofada redonda. Estava muito fraca e pálida e como abrasada de saudade. A cabeça e todo o corpo lhe estava envolto num longo pano. Um cobertor de lã parda cobria-a. Vi umas cinco mulheres, uma depois da outra, entrarem e saírem do quarto; pareciam despedir-se da moribunda. As que saiam, faziam com as mãos gestos de comovedora tristeza ou de oração. Vi novamente entre elas a sobrinha de Isabel, que tinha visto durante a Via Sacra. Maria disse uma vez a Maria de Agreda: "Se eu tivesse querido afastar de mim a morte, o Altíssimo ter-me-ia concedido esta graça: pois como o pecado não tinha parte em mim, também a morte, castigo do pecado, não podia ter parte em mim. Como, porém, meu Santíssimo Filho, que muito menos ainda podia merecer a morte, quis voluntariamente sofrer e morrer, para dar satisfação à justiça divina pelas culpas do mundo, assim também escolhi para mim a morte, para ficar por minha vontade unida a meu Filho, na morte como na vida. Como recompensa desta minha escolha, Deus Nosso Senhor me concedeu, em favor dos filhos da Igreja, o privilégio, para mim tão caro, de dar minha proteção especial na hora da morte, contra os assaltos do inimigo das almas, como também meu auxílio e minha intercessão perante o tribunal da divina misericórdia, a todos que me veneram, se me invocarem na hora da morte, para os socorrer, pelos méritos de minha morte voluntária. O Senhor concedeu-me para isso poder particular e a promessa expressa de que dará aos meus devotos abundantes auxílios da graça, para uma boa morte e verdadeira reforma da vida, se me invocarem, em memória do mistério da minha morte.” Com toda razão acrescentou portanto a Igreja à saudação do Anjo e de Santa Isabel, que tantas vezes rezamos no rosário, as outras palavras: "Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amém.” Depois vi seis Apóstolos já reunidos na sua casa, Pedro, André, João, Tadeu, Bartolomeu e Matias, como também um dos sete diáconos, Nicanor, que era sempre tão serviçal e amável. Os Apóstolos estavam reunidos em oração na parte anterior da casa, à direita, onde tinham preparado um oratório. Hoje (a 10 de Agosto) vi entrar ainda dois Apóstolos, com as vestes arregaçadas, como viajantes, Tiago o Menor e Mateus. Os Apóstolos celebraram ontem, à noite e hoje de manhã o ofício divino, na parte anterior da casa. Diante do altar havia uma estante coberta, da qual pendia um rolo da Escritura. Sobre o altar havia candeeiros acesos e na mesa um vaso em forma de cruz, feito de uma substância que brilhava como madrepérola. Tinha apenas um palmo de altura e outro tanto de largura e continha cinco vasos fechados, com tampa de prata. No do meio se achava o SS.

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Sacramento. Nos outros, porém, crisma, óleo, sal e fibras (talvez algodão) e outras coisas santas. Os vasos foram feitos e estavam fechados de tal maneira, que não se podia derramar nada. Os Apóstolos costumavam transportar essa cruz nas viagens, pendente sobre o peito, debaixo do manto. Assim eram mais do que o Sumo Sacerdote, quando trazia sobre o peito o Santo do Antigo Testamento. Pedro, revestido do ornato sacerdotal, estava diante do altar, os outros atrás, em coro. As mulheres assistiam em pé, no fundo da casa. Vi chegar um novo Apóstolo (a II de Agosto) foi Simão. Ainda faltavam Felipe e Tomé. Houve novamente ofício divino. Depois deu Pedro à SS. Virgem a Sagrada Comunhão. Levou-lha naquele vaso em forma de cruz. Os Apóstolos formaram duas fileiras, do altar até ao leito, inclinando-se profun damente, quando Pedro passou por entre eles com o SS. Sacramento. As cortinas do leito da SS. Virgem foram abertas de todos os lados. Diante do leito de Maria havia um banquinho baixo, triangular e sobre este, um pratinho, com uma colherzinha parda e transparente. Vi novamente (a 12 de Agosto) o divino ofício; foi celebrada a Missa. O quartinho de Maria estava todo aberto. Uma mulher estava ajoelhada ao lado do leito, levantando e amparando de vez em quando a Santíssima Virgem. Vi fazê-Io também durante o dia e oferecer-lhe uma colher de suco de fruta do pratinho. Maria tinha um crucifixo sobre o leito, em forma de Y, tendo quase meio braço de comprimento; ela recebeu o SS. Sacramento. Vi hoje (a 13 de Agosto) o ofício divino, como de costume e a Santíssima Virgem, durante o dia, sentada no leito, tomando várias vezes al gum alimento, com a colherzinha. Vi os Apóstolos chegarem na maior parte muito fatigados. Ao entrar, abraçavam os que já estavam presentes, muito comovidos; alguns choraram de alegria e também de tristeza, pelo motivo tão doloroso daquele encontro. Aproximavam-se do leito de Maria, saudando-a respeitosamente; ela, porém, só poucas palavras lhes podia dizer. Vi também cinco discípulos e lembro-me mais vivamente de Simão, o Justo e de Barnabé. 5. A morte gloriosa da Santíssima Virgem O ano 48 depois do nascimento do Cristo é o ano da morte de Maria; morreu 13 anos e dois meses depois da ascensão de Jesus. A morte da SS. Virgem foi um acontecimento cheio de tristeza, mas também de consolação. Já na véspera, pelo meio-dia, reinava grande

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tristeza e angústia em casa de Maria; a criada estava completamente desolada. A Santíssima Virgem descansava, silenciosa e como próximo da morte, sobre o leito. Estava toda envolta, até os próprios braços, num lençol branco. O véu do rosto estava dobrado sobre a testa; falando aos homens, puxava-o sobre o rosto. As próprias mãos só estavam descobertas quando ficava sozinha. Nos últimos dias não a vi tomar outro alimento, senão, de vez em quando, uma colherzinha de suco de uns frutinhos amarelos, semelhantes à uva, que a criada lhe espremia no pratinho, ao pé do leito. Quando a Santíssima Virgem, ao cair da tarde, sentiu aproximar-selhe o fim, quis despedir-se dos Apóstolos, discípulos e mulheres presentes e dar-lhes a bênção, conforme a vontade de Jesus. As cortinas do leito foram abertas para todos os lados. Maria estava sentada no leito, como que transparente, de uma alvura resplandecente, Rezou e abençoou um por um, com as mãos postas em forma de cruz, tocando a testa de cada um. Depois falou ainda com todos e fez tudo quanto Jesus lhe recomendara em Betânia. A João disse como devia sepultar-lhe o corpo e distribuir-lhe a roupa entre a criada e uma outra moça pobre da vizinhança, que às vezes viera lhe prestar serviços. Depois dos Apóstolos, se acercarem do leito da Santíssima Virgem os discípulos presentes e receberam-lhe também a bênção do mesmo modo. Os homens retiraram-se então para o quarto anterior da casa e prepararam-se para o ofício divino, enquanto as mulheres presentes se aproximavam do leito da Santíssima Virgem, se ajoelhavam e recebiam a bênção. Vi que uma delas, inclinando-se sobre Maria, recebeu dela um abraço. Nesse ínterim foi preparado o altar e os Apóstolos vestiram-se para o ofício divino, com as longas vestes brancas, cingindo-se com as cintas ornadas de letras. Cinco deles, que funcionavam no ato solene do sacrifício, como o vi celebrar por Pedro, após a ascensão de Jesus, primeiro na Igreja nova, perto do tanque de Betesda, revestiram-se das grandes e belas vestes sacerdotais. O ofício divino já estava adiantado, quando chegaram Felipe e um companheiro do Egito. Dirigiu-se imediatamente à Mãe do Senhor recebeu-lhe a bênção, chorando copiosamente. No entanto Pedro acabara o santo sacrifício; tinha consagrado e recebido o Corpo do Senhor, dando-o também aos Apóstolos e discípulos presentes. A Santíssima Virgem não podia avistar o altar; mas estava sentada no leito, durante a santa cerimônia, sempre em profundo recolhimento. Depois de Pedro ter comungado deu a Santa Comunhão também aos outros Apóstolos e levou-a então à SS. Virgem. Todos os Apóstolos o acompanharam, em procissão solene. Tadeu ia à frente, com um incensório, Pedro levava o Santíssimo

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Sacramento no vaso cruciforme, sobre o peito. Seguia-se-Ihe João, que trazia um pequeno prato, sobre o qual estavam o cálice, com o preciosíssimo Sangue e alguns vasos. A Santíssima Virgem estava deitada de costas, tranqüila e pálida, com olhar fixo para cima; não falava com ninguém e estava como em contínuo êxtase; resplandecia de saudade. Pedrb aproximou-se e administrou-lhe o santo Sacramento da Extrema Unção, quase do mesmo modo como se faz hoje. Depois lhe deu o Santíssimo Sacramento. Sem se recostar, a Virgem sentou-se para o receber e caiu depois de novo sobre o leito. Os Apóstolos rezaram durante algum tempo e depois ela recebeu o cálice da mão de João, levantando-se um pouco menos. Vi como um fulgor penetrar em Maria, quando recebeu a Sagrada Comunhão e depois caiu em êxtase sobre o leito e não mais falou. Mais tarde se reuniram os Apóstolos novamente em roda do leito, rezando. O rosto de Maria estava risonho e fresco como na juventude. Dirigia os olhos com santa alegria ao céu. Vi então uma visão maravilhosa e comovedora. O teto por cima do quarto de Maria desaparecera; o candeeiro estava suspenso no ar; vi, pelo céu aberto, a Jerusalém celeste. Desciam dois planos brilhantes, como nuvens luminosas, nas quais apareciam muitos rostos de Anjos. Entre essas nuvens se derramava uma torrente de luz sobre Maria, acima da qual vi uma encosta resplandecente, que subia até a Jerusalém celeste. A Virgem estendia os braços, com infinita saudade e vi-lhe o corpo sagrado, com tudo o que o envolvia, erguer-se-Ihe acima do leito, enquanto a alma, como uma puríssima forma luminosa, lhe saia do corpo, com os braços estendidos, erguendo-se na torrente de luz que, qual montanha resplandecente, se elevava céus acima. Os dois coros de Anjos, nas nuvens, se lhe uniram atrás da alma, separando-a do santo corpo, que no momento da separação recaiu sobre o leito, cruzando os braços sobre o peito. Seguindo a alma com o olhar, vi-a entrar, pela estrada de luz, na Jerusalém celeste e chegar ao trono da Santíssima Trindade. Vi muitas almas, entre as quais reconheci muitos patriarcas: Joaquim, Ana, José. Isabel, Zacarias e João Batista, lhe vieram ao encontro, com respeito e alegria. Ela passou, po-rém, no meio de todos, dirigindo-se ao trono de Deus e de seu Filho que, excedendo ainda com o esplendor das chagas a luz de toda a aparição, a recebeu com amor divino e lhe entregou algo como um cetro, mostrando-lhe o globo terrestre, como para lhe confiar um poder. Assim a vi entrar na glória do céu, esquecendo-me totalmente dos que lhe rodeavam o corpo na terra. Alguns dos Apóstolos, por exemplo, Pedro e João, devem tê-Io visto também, pois tinham o olhar dirigido para o céu. Os demais estavam de joelhos e inclinados profundamente. Tudo estava cheio de luz e esplendor, como na ascensão do Senhor.

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Vi com grande alegria, numerosas almas remidas do purgatório seguirem a alma de Maria, quando entrou no céu e também hoje, na festa da Assunção, vi entrar muitas almas no céu, entre as quais algumas que conheci. Foi-me dada a consoladora informação de que anualmente, no aniversário da morte da Santíssima Virgem, muitas almas que lhe tiveram devoção, participariam dessa graça. Quando tornei a olhar para a terra, vi o corpo de Maria resplandecente, com o rosto fresco, os olhos fechados, os braços cruzados sobre o peito, deitado sobre o leito. Os Apóstolos, os discípulos e as mulheres estavam de joelhos em roda do leito e rezavam. Enquanto eu via tudo isso, era como se soasse uma música deliciosa na natureza, que parecia comovida, como o tinha percebido na noite de Natal. Expirara, como observei, depois da nona, à hora em que morrera também o Senhor. As mulheres estenderam uma coberta sobre o corpo sagrado; depois cobriram a cabeça e velaram o rosto, sentando-se juntas no chão, no quarto do vestíbulo, onde fizeram a lamentação fúnebre, ajoelhandose e sentando-se alternadamente. Os Apóstolos, porém, e os discípulos retiraram-se para a parte anterior da casa, cobriram a cabeça e celebraram um ofício fúnebre. Revezavam-se dois a dois, de joelhos, aos pés e à cabeceira do santo corpo. Mateus e André percorreram a Via Sacra da Santíssima Virgem, até à última estação, a gruta que representava o sepulcro de Jesus. Levaram consigo ferramentas, para escavar um pouco mais o leito sepulcral; pois ali devia ser depositado o corpo de Maria. Havia cerca de meia hora de caminho, da casa até a gruta. 6. Embalsamamento e enterro de Maria Quatro vezes vi os Apóstolos se revezarem, fazendo guarda de hon-ra ao corpo sagrado e rezando. Hoje vi chegar algumas mulheres, entre as quais me lembro ainda da filha de Verônica e da mãe de João Marcos, que vieram preparar o corpo para a sepultura. Trouxeram lençóis e especiarias, para o embalsamar à moda judaica. Cortaram os caracóis mais belos da Santíssima Virgem, como lembrança e enrolaram o corpo, dos tornozelos até o peito, em lençóis e faixas de pano, bem apertados. Os Apóstolos assistiam, nesse ínterim, ao sacrifício solene celebrado por Pedro, recebendo com ele a sagrada Comunhão; depois vi Pedro e João, ainda revestidos dos grandes mantos episcopais, entrar pelo vestíbulo e aproximar-se do santo corpo. João levava um vaso com ungüentos e Pedro, imergindo o dedo da mão direita no vaso, ungiu a testa, o meio do peito, as mãos e os pés da Santíssima Virgem, orando. Não era a Extrema Unção, que já recebera ainda viva. Pedro passou o ungüento sobre os pés e as mãos; a fronte e o peito, porém, assinalouos com o sinal da cruz.

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Creio que foi para prestar homenagem ao corpo sagrado, como o fizeram também ao sepultar o corpo do Senhor. Depois dos Apóstolos terem saído, continuaram as mulheres o embalsamamento. Puseram tufos de mirra sob os braços, nas axilas e no epigástrio;encheram também com a mesma os espaços entre os ombros, ao redor do pescoço e do queixo e as faces. Os pés estavam também cobertos de tais tufos de ervas aromáticas. Depois lhe cruzaram os braços sobre o peito, envolveram o corpo na grande mortalha e enrolaramno com a faixa sob o braço, como uma grande boneca. Sobre o rosto lhe estenderam um sudário transparente, através do qual se lhe podiam ver as faces alvas e resplandecentes, por entre os tufos de ervas. Depois deitaram o corpo sagrado num caixão, semelhante a uma cesta comprida e sobre o peito de Maria uma grinalda de flores de cor branca, encarnada e azul celeste, como sinal de virgindade. Então entraram todos os Apóstolos, discípulos e outros presentes, para ver mais uma vez o santo e querido semblante, antes de ser coberto. Ajoelharam-se, por entre muitas lágrimas e em silêncio, em roda da SS. Virgem, tocaram-lhe as mãos já enfaixadas sobre o peito, despedindo-se e depois saíram. As santas mulheres despediram-se então também, cobriram-lhe depois a santa face e colocaram a tampa sobre o caixão, que fecharam, atando-o nas duas extremidades e no meio com faixas cinzentas. Depois vi que puseram o caixão sobre uma padiola e Pedro e João transportaram-no sobre os ombros para fora da casa. Devem ter-se revezado, pois mais tarde vi que seis Apóstolos o transportavam. Parte dos Apóstolos e discípulos precediam, outros e as mulheres seguiam o caixão. Já estava anoitecendo: levavam quatro lanternas sobre paus. Assim seguiu o cortejo pelo caminho da Via Sacra de Maria, até a última estação e, passando em frente à pedra que a assinalava, sobre a colina, chegaram ao lado direito da gruta sepulcral. Ali depuseram o santo corpo; quatro levaram-no para dentro da gruta e puseram-no no leito escavado na pedra. Todos os presentes entraram ainda um por um, espalhando flores e ervas aromáticas e ajoelharam-se, oferecendo com lágrimas as suas orações; a tristeza e o amor fê-Ios demorar ainda. Já era noite, quando os Apóstolos fecharam a porta do sepulcro. Cavaram um fosso diante da entrada estreita da gruta e plantaram uma sebe de vários arbustos verdes, dos quais parte estava florescente e parte já tinha brotos e que haviam sido transplantados de outro lugar, junto com as raízes, de maneira que não se podia ver sinal da entrada, tanto mais quanto fizeram passar um pequeno córrego em frente dessa sebe. Não se podia mais entrar na gruta senão passando pelo lado, por trás dos arbustos. “

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7. A Assunção de Maria Os Apóstolos, discípulos e mulheres voltaram separados, demorando-se ainda aqui e acolá, rezando nas estações da Via Sacra; alguns ficaram também velando em oração perto do sepulcro. Ao voltar, viram de longe, por cima do sepulcro de Maria, uma luz maravilhosa e ficaram muito comovidos, sem saber o que era. Vi ainda vários Apóstolos e algumas santas mulheres rezar e cantar no pequeno jardim, diante do sepulcro. Descia, porém, uma larga faixa de luz do céu até o rochedo do sepulcro e nela vi um esplendor de três círculos, de Anjos e almas, que rodeavam a aparição de Nosso Senhor e da alma gloriosa de Maria. A aparição de Jesus Cristo, com os sinais resplandecentes das chagas, pairava diante dela. Em redor da alma de Maria vi, no círculo interior de luz, figuras de crianças, no segundo círculo pareciam meninos de seis anos e no círculo exterior jovens adultos. Vi-Ihes distintamente os rostos; o resto vi apenas como formas luminosas. Quando esta aparição chegou até o rochedo, tornando-se cada vez mais clara, vi dali até Jerusalém celeste uma estrada de luz. Depois vi a alma da SS. Virgem, que seguia a aparição de Jesus, passar para a frente e entrar através da rocha no sepulcro, do qual pouco depois saiu unida ao corpo glorificado de Maria, muito mais clara e res-plandecente e voltou com o Senhor e todo o glorioso séquito, para a Jerusalém celeste. Depois desapareceu todo o esplendor e se via de novo a luz pálida do céu estrelado, que se estendia sobre a região. Se os Apóstolos e as santas mulheres, que rezavam diante do sepulcro, também o viram, não o sei; mas vi que todos olhavam para cima, orando cheios de admiração; outros, porém, atônitos se prostraram, tocando com o rosto a terra. Vi também alguns que voltavam para casa, levando consigo a padiola, entoando cânticos e orações no caminho da Via Sacra e demorando-se diante das estações, olharem com grande emoção e fervor para a luz que surgira acima do sepulcro. Assim não vi a SS. Virgem morrer e subir ao céu de modo comum; mas primeiramente se lhe tirou da terra a alma e depois também o corpo. Mais tarde, regressando à casa, os Apóstolos e discípulos tomaram algum alimento e depois se deitaram para dormir. 8. Abertura do sepulcro de Maria Hoje, à noite (15 de Agosto), permaneciam ainda os Apóstolos em oração e pranto, na sala. As mulheres já se tinham deitado. Então vi chegarem o Apóstolo Tomé e dois companheiros. Um desses tinha o nome de Jonatan e era parente da Sagrada Família. Oh! como ficaram aflitos, ao ver que tinham chegado tarde! Tomé chorou como

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uma criança, quando ouviu narrar a morte de Maria. Os discípulos lavaram-lhes os pés e deram-lhes de comer. Nesse ínterim acordaram as mulheres e se levantaram e depois de terem saído do quarto, conduziram Tomé e Jonatan ao aposento onde a SS. Virgem morrera. Ali se ajoelharam os recém-chegados, regando o lugar com as lágrimas. Tomé ficou ainda muito tempo de joelhos, rezando diante do pequeno altar de Maria. Comoveu-me indizivelmente a sua tristeza. Os Apóstolos, que não tinham interrompido a oração, depois de acabarem, saíram todos, para dar as boas vindas aos recém-chegados. Tomando nos braços Tomé e Jonatan, levantaram-nos, dois ainda estavam de joelhos e abraçando-os, levaram-nos à sala anterior da casa, onde Ihes ofereceram pãezinhos e mel; beberam também de pequenos jarros e cálices. Rezaram mais uma vez juntos e abraçaram-se. Depois manifestaram Tomé e Jonatan desejos de ver o sepulcro da SS. Virgem. Os Apóstolos acenderam lanternas, firmadas sobre paus e todos foram pelo caminho da Via Sacra de Maria, em direção ao sepulcro. Falavam pouco; demoravam-se algum tempo diante das estações, recordando-se do caminho da cruz do Senhor e do amor compassivo da Mãe SS., que ali pusera as pedras comemorativas e tantas vezes as regara com lágrimas. Chegados ao rochedo do sepulcro, ajoelharam-selhe todos em volta. Tomé e Jonatan, porém, correram à entrada; João seguiu-os. Dois dos discípulos afastaram um pouco os arbustos diante da entrada e eles entraram e ajoelharam-se respeitosamente diante do túmulo da Santíssima Virgem. João, porém, aproximou-se do leve caixão em forma de cesta, que sobressaia um pouco do leito sepulcral, desatou as três faixas, que lhes fechavam a tampa e colocou esta ao lado. Então fizeram convergir a luz para dentro e viram, com grande espanto e comoção, os lençóis mortuários vazios, ainda na mesma posição em que lhe tinham envolvido o corpo. Sobre o rosto e o peito estavam abertos. Os envoltórios dos braços estavam um pouco soltos, mas ainda com as dobras; o corpo glorificado de Maria, porém, não estava mais na terra. Admirados, de mãos erguidas, olhavam para o alto, como se o santo corpo nesse momento houvesse aparecido e João bradou para fora da gruta: "Vinde e admirai, ela não está mais aqui!". Então entraram todos, dois a dois, na estreita gruta, viram os lençóis vazios no caixão e, saindo, ajoelharam-se todos e, olhando, com os braços estendido, para o céu, choravam e rezavam, louvando o Senhor e sua querida Mãe glorificada, que Ihes era também uma boa e fiel Mãe. Louvavam-na como filhos piedosos, exaltando-a com doces palavras de amor, como o Espírito Ihes inspirava. Então se lembraram bem daquela nuvem luminosa, que viram de longe, ao voltar do enterro e que descera sobre o rochedo do sepulcro e depois subira ao céu. João, porém, tirou respeitosamente do caixão as mortalhas da

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Santíssima Virgem, dobrou e enrolou-as, para as levar consigo; depois colocou novamente a tampa sobre o caixão, atando-a com as faixas, como dantes. Saíram da gruta, fechando de novo a entrada com os arbustos. Rezando e cantando salmos, voltaram pelo caminho da Via Sacra, para a casa de Maria. Fecharam completamente a entrada do sepulcro da Virgem Santíssima, chegando mais os arbustos e firmando-os com terra; alargaram tam bém o fosso. Limparam o pequeno jardim diante do sepulcro e omaramno; cavaram também uma passagem para a parede posterior do sepulcro e ali abriram com cinzel uma janelasinha no rochedo, pela qual se podia ver o túmulo, onde tinha jazido o corpo da Mãe Santíssima, à qual o Salvador, morrendo na cruz, os entregara todos e sua Igreja, na pessoa de João. Oh! eram filhos fiéis, obedientes ao quarto mandamento e muito tempo viveriam na terra, guardando o seu amor. A maior parte dos discípulos presentes já se haviam despedido. Também os Apóstolos se separaram. Bartolomeu, Simão, Judas Tadeu, Felipe e Mateus foram os primeiros que, após uma despedida comove-dora, voltaram ao campo de ação. Os restantes, fora João, que ainda ficou mais tempo, dirigiram-se juntos à Palestina, onde depois também se separaram. Estavam lá muitos discípulos; também várias mulheres viajaram com eles de Éfeso para Jerusalém. Parece-me que o sepulcro de Maria ainda existe debaixo da terra; há de descobrir-se um dia." Guiados pelas informações da piedosa serva de Deus, foram feitas várias vezes, desde 1891, pesquisas para achar a casa de Maria, perto de Éfeso. Foi encontrada sobre o monte "dos rouxinóis" Uma Velha ruína, chamada: Panágia-Kapuli, isto é, "Porta da SS. Virgem". Os restos mais antigos dos muros pertencem, segundo a afirmação de peritos, aos primeiros séculos da era cristã. A forma e divisão da casa concorda com a descrição feita por Catharina Emmerich. Foram também feitas escavações, pelas quais se achou igualmente a Via Sacra feita por Maria e várias pedras das estações, mostrando ainda inscrições. O próprio sepulcro de Maria ainda não fora encontrado, até 1906. É ainda digno de nota que se conservou a tradição, entre os habitantes da povoação próxima: Kirkinsche, que Maria viveu no monte "dos rouxinóis" e ali também morreu. Desde tempos imemoráveis se fazem, duas ou três vezes por ano, especialmente na festa da Assunção de Maria, romarias à ruína de Panágia-Kapuli, onde um sacerdote oferece o santo sacrifício da Missa. Vide: "Panágia-Kapuli", a casa perto de Éfeso, recentemente descoberta, onde viveu e morreu a SS. Virgem Maria; por João Niessen. Laumansche Buchhandlung, Duelmen, 1906.

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15 Ação dos Apóstolos e discípulos de Jesus entre os gentios 1. Vocação dos gentios. Conversão do Centurião Comélio 2. O Concílio dos Apóstolos em Jerusalém 3. Fundação da Igreja de Roma por S. Pedro 4. Viagens e trabalhos apostólicos de S. Paulo 5. Santo André, Apóstolo da Grécia 6. S. Tiago o Maior, Apóstolo da Espanha 7. São João Evangelista em Roma e na Ásia Menor 8. Viagens apostólicas e trabalhos de São Tomé, principalmente na Índia 9. Trabalhos apostólicos de S. Bartolomeu na Ásia e especialmente na Abissínia, (África) 10. Os santos Apóstolos Simão e Judas Tadeu na Pérsia 11. Trabalhos apostólicos e tribulações dos santos Apóstolos Felipe, na Frigia e Mateus, na Etiópia 12. Os santos Evangelistas Marcos, em Roma e no Egito e Lucas, na Grécia 13. S. Barnabé, S. Timóteo e S. Satumino 14. S. Lázaro, Marta e Madalena no sul da França Ação dos Apóstolos e discípulos de Jesus entre os gentios 1. Vocação dos gentios. Conversão do Centurião Cornélio (Atos 10) É verdade que o divino Salvador chamou primeiro o povo escolhido, os judeus, para entrar no seu reino; mas nem por isso pretendia excluir os povos gentios. É que já se deduz da vocação dos Reis Magos e de seu séquito, vindo dos países pagãos do Oriente ao presépio de Belém e também da viagem de Jesus àqueles países e ao Egito. Os judeus, na verdade, entregavam-se ao sonho ilusório de que só eles, com exclusão de todos os outros povos, eram destinados ao reino de Deus. Também os Apóstolos por muito tempo nao conseguiram desfazer-se desta opinião errônea. Por isso o próprio Deus ensinou esta verdade a Pedro, Vigário de Jesus Cristo e Chefe da Igreja. Pedro estava ainda em Jope, quando um pagão piedoso, de nome Comélio, em Cesaréia, teve a visão de um Anjo de Deus, que lhe assegurou que as suas orações e esmolas eram aceitas por Deus, e que devia mandar chamar Pedro, em Jope. Comélio enviou dois servos e um soldado a Jope. Quando chegaram próximo da cidade,

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subiu Pedro ao terraço da casa, para rezar. Como, porém, sentisse fome, viu descer do céu aberto uma grande toalha, onde se achavam toda a espécie de animais quadrúpedes e répteis da terra e aves. Uma voz alta intimou-o: "Levanta-te, Pedro, mata e come". Pedro respondeu: "Oh! não, Senhor; nunca comi coisa alguma vil e impura". A voz disse-lhe: "Não chames de impuro o que Deus purificou". Três vezes se deu o mesmo. Logo depois desapareceu a visão. Enquanto Pedro ainda meditava a respeito, já perguntavam os três mensageiros, à porta da casa, se ali morava um certo Pedro. Este recebeu do Espírito de Deus a ordem: "Aí estão três homens à tua procura. Levanta-te e vai com eles sem medo; pois fui eu que os mandei". Pedro fez como lhe fora mandado, e pôs-se, com alguns discípulos, a caminho de Cesaréia. Cornélio os estava esperando e tinha já reunido os parentes e amigos. Pedro disse-Ihes: "Sabeis que é abominável para um Judeu juntar-se ou unir-se a um estrangeiro: mas Deus mostrou-me que a nenhum homem chamasse vil ou imundo. Por isso vim, sem vacilar, logo que fui chamado. Pergunto, pois: Porque me chamastes?" E disse Cornélio: "Hoje fazem quatro dias que eu estava orando em minha casa, à hora nona e eis que surgiu diante de mim um homem vestido de branco e disse-me: Cornélio, a tua oração foi atendida e as tuas esmolas foram lembradas na presença de Deus. Manda, pois, alguém a Jope e faze vir um certo Simão, que tem por sobrenome Pedro e está hospedado em casa de Simão, curtidor de peles, à beira-mar." Em conseqüência disto mandei logo te buscar e fizeste bem em vir. Agora, porém, estamos todos em tua presença, para ouvir o que o Senhor ordenou que nos dissesses.” Então Pedro, abrindo a boca, disse: "Tenho na verdade aprendido que Deus não faz acepção de pessoas; mas que em toda a nação aquele que o teme e obra o que é justo, esse lhe é aceito. Deus enviou o seu Verbo aos filhos de Israel, anunciando-Ihes a paz, por meio de Jesus Cristo. (O Senhor de todos). Sabeis o que se passou por toda a Judéia, começando desde a Galiléia, depois do batismo que João pregou; como Deus ungiu com o Espírito Santo e a virtude a Jesus de Nazaré, que passou fazendo o bem e sarando todos os oprimidos do demônio, porque Deus estava com Ele. E nós somos testemunhas de tudo quanto fez na terra dos judeus e em Jerusalém; eles, porém, O mataram, pregando-O num madeiro. Mas Deus O ressuscitou ao terceiro dia e quis que se manifestasse, não a todo o povo, mas às testemunhas que havia previamente predestinado; a nós, que comemos e bebemos com Ele, depois que ressuscitou dentre os mortos. E mandou-nos pregar ao povo e dar testemunho de que é Ele quem por Deus foi constituído juiz dos vivos e dos mortos. DEle dão testemunho todos os profetas e todos os que nEle crêem, recebem perdão dos pecados por meio do seu Nome." Estava Pedro ainda proferindo estas palavras, quando desceu o Espírito

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Santo sobre todos os que o ouviam. E espantaram-se os fiéis que eram da circuncisão e que tinham vindo com Pedro, de ver que a graça do Espírito Santo fora também derramada sobre os gentios; pois ouviam-nos falar diversas línguas e engrandecer a Deus. Então disse Pedro: "Porventura pode alguém recusar a água, para que sejam batizados estes que receberam o Espírito Santo, do mesmo modo que nós?" E mandou que fossem batizados em nome do Senhor Jesus Cristo. Então lhe rogaram que ficasse com eles por alguns dias. 2. O Concílio dos Apóstolos em Jerusalém Alguns dos discípulos tinham vindo a Antioquia, falando ali tam-bém aos gentios e recebendo-os no seio da Igreja. Como se convertessem muitos, foi enviado lá Barnabé, da Igreja de Jerusalém. Este procurou Paulo e com ele trabalhou com tanto sucesso em Antioquia que os partidários de Jesus foram ali chamados, pela primeira vez, cristãos. Surgiu, porém, ali uma disputa, quando alguns, vindo da Judéia, ensinavam que a circuncisão, e com esta também a observação de toda a lei mosaica, era necessária para a salvação. Paulo e Barnabé eram contrários a essa doutrina e foram, com alguns outros, enviados pela comunidade de Antioquia a Jerusalém, para propor esta questão, de tamanha importância, aos Apóstolos e anciãos, para a decidirem. Esta foi a causa do primeiro Concílio da Igreja. Catharina Emmerich apenas nos informa que a Mãe de Jesus veio de Éfeso para assistir a este concílio e dar seus conselhos aos Apóstolos. Tiramos a narração do Concílio dos Atos dos Apóstolos, (15,4-32). Tendo (Paulo e Barnabé, com os companheiros) chegado a Jerusalém, foram recebidos pela Igreja e pelos Apóstolos e presbíteros, aos quais referiram quão grandes coisas Deus tinha operado neles. Mas levantaram-se alguns da seita dos fariseus que haviam abraçado a fé, dizendo: "É necessário, pois, que os gentios sejam circuncidados e também que observem a lei de Moisés." Congregaram-se, pois, os Apóstolos e presbíteros, para examinarem este ponto. E depois de fazer a respeito um grande estudo, levantando-se Pedro, lhes disse: "Irmãos, sabeis que desde os primeiros dias ordenou Deus que da minha boca ouvissem os gentios a palavra do Evangelho e que a cressem. E Deus, que conhece os corações, declarou-se por eles, dando-Ihes o Espírito Santo, como também a nós; e não fez diferença alg~ma entre nós e eles, purificandolhes pela fé os corações. Logo, porque tentais agora a Deus, impondo um jugo aos discípulos, que nem nossos pais nem nós podemos suportar? Mas cremos que pela graça do Senhor Jesus Cristo somos salvos, assim como eles também o foram.” Então toda a assembléia se calou e escutavam a Barnabé e

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Paulo, que lhes contava quão grandes milagres e prodígios fizera Deus, por intervenção deles, entre os gentios. E depois que se calaram, entrou a falar Tiago, dizendo: "Irmãos, ouvi-me. Simão tem contado como Deus primeiro visitou os gentios, para fazer deles um povo para o seu nome. E com isto concordam as palavras dos profetas, como está escrito: Depois disto voltarei e edificarei de novo o tabernáculo de Davi, que caiu, e reparar-lhe-ei as ruínas e levantá-Io-ei, para que o resto dos homens e todas as gentes sobre as quais tem sido invocado o meu nome, busquem a Deus, diz o Senhor, que faz estas coisas. - Pelo Senhor é conhecida a sua obra desde a eternidade. Pelo que julgo que não se devem inquietar os que dentre os gentios se convertem a Deus, mas que se lhes deve somente prescrever que se abstenham das contaminações dos ídolos e da fornicação e das carnes sufocadas e do sangue. Porque Moisés, desde tempos antigos, tem em cada cidade homens que o pregam, nas sinagogas, onde é lido todos os sábados.” Então pareceu bem aos Apóstolos e presbíteros e a toda a Igreja eleger dentre eles varões e enviá-Ios a Antioquia, com Paulo e Barnabé; enviaram Judas, que tinha o sobrenome de Barsabas e Silas, muito conceituados entre os irmãos e pelos quais enviaram a seguinte epístola: "Os Apóstolos e presbíteros irmãos, aos irmãos convertidos dos gentios que se acham na Antioquia e na Síria e na Cilícia, saúde. Tendo ouvido narrar que alguns que têm saído de nós, transtornando os vossos corações, vos têm perturbado com palavras, sem Ihes termos mandado tal: Aprouve-nos a nós, congregados em Concílio, escolher homens e enviá-Ios a vós, com os nossos mui amados Barnabé e Paulo, que têm exposto a vida pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Enviamos, portanto, Judas e Silas, que até verbalmente vos exporão as mes mas coisas. Porque pareceu bem ao Espírito Santo e a nós, não vos impôr mais encargos do que os necessários, que são os seguintes: que vos abstenhais do que tiver sido sacrificado aos ídolos e do sangue e das carnes sufocadas e da fornicação, do que fareis bem de vos guardar. Deus seja convosco.” Assim enviados, foram a Antioquia e tendo congregado a multidão dos fiéis, entregaram a carta. Depois de a ter lido, se encheram de contentamento, pela consolação que Ihes causou. E também Judas e Silas, como profetas que eram, consolaram com muitas palavras os irmãos e os confirmaram na fé. 3. Fundação da Igreja de Roma por S. Pedro S. Pedro parece ter se dirigido, logo depois de ser libertado do cárcere de Jerusalém, para Antioquia, onde teve parte essencial na fundação daquela Igreja, que governou durante sete anos. A 18 de Janeiro, porém, do ano 44, como narra a piedosa Emmerich,

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chegou Pedro a Roma, com os dois discípulos Martialis e Apolinaris e o criado Marcion. De Antioquia veio primeiro a Jerusalém, depois a Roma, passando por Nápoles e várias outras cidades. Foi recebido mui carinhosamente, com os companheiros, por Léntulo, um dos mais distintos romanos, a quem fora anunciada a sua chegada. Muitos romanos que haviam ido ao batismo de João, também tinham ouvido falar do Messias e dos milagres que fazia. Léntulo procurou essa gente e escutou-Ihes avidamente as narrações. Cresceu-lhe tanto a saudade e o amor a Jesus, que mandou um sudário fino para tocar no Divino Mestre, no aperto da multidão e guardou-o depois com grande reverência. Léntulo tinha também grande desejo de pintar a figura de Jesus e por isso pedia continuamente a Pedro que lhe contasse muitas coisas sobre o Salvador. Muitas vezes tentava pintar o retrato de Jesus, mas Pedro sempre lhe dizia que ainda não lhe era semelhante. Um dia adormeceu Léntulo durante a oração e ao acordar, encontrou o retrato verdadeiro terminado milagrosamente. Léntulo tornou-se um dos primeiros cristãos de Roma. Pedro mora-va, porém, em casa de Pudens, a qual consagrou como primeira Igreja de Roma e para a qual Léntulo contribuiu com muitos donativos. De Roma veio Pedro a Éfeso, por ocasião da morte de Maria e na volta visitou Jerusalém. Pedro ocupou a cadeira episcopal de Roma durante 25 anos. Foi crucificado no ano 69, na idade de 99 anos. 4. Viagens e trabalhos apostólicos de S. Paulo Quando Paulo e Barnabé trabalhavam em Antioquia, foram escolhidos pelo Espírito Santo para o aposto lado entre os gentios. Sendo ordenados bispos, cumpriram depois fielmente a tarefa que Ihes fora dada. São Paulo empreendeu três grandes viagens missionárias. A primei-ra fê-Ia com Barnabé. De Antioquia se dirigiram primeiro à ilha de Chipre, onde se converteu o governador da ilha de Pafos: Sérgio Paulo. Depois continuaram a viagem até Antioquia, na Pisídia. Mas como ali os judeus contradiziam ao que Paulo ensinava, disseram Paulo e Barnabé: "Éreis os primeiros a quem se devia anunciar a palavra de Deus; mas porque a rejeitais e vos julgais indignos da vida eterna, desde já nos vamos daqui, para os gentios." (Cap. 13, 46). Alegraram-se os gentios, dos quais muitos aceitaram a palavra de Deus. Em Icônio o povo quis maltratar e prejudicar os dois missionários, que por isso fugiram para Listra. Paulo curou nessa cidade um homem que nascera coxo e o povo quis por isso os adorar como deuses; eles, porém, o impediram; mas pouco depois vieram os judeus, agitando o povo; Paulo foi apedrejado e deixaram-no

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como morto. No dia seguinte pôde partir com Barnabé para Derbe, donde voltaram para Listra, Icônio e Antioquia, na Pisídia. "Confirmaram os corações dos discípulos, exortando-os a perseve-rar na fé, e ensinando-Ihes que por muitas tribulações nos é necessário entrar no reino de Deus. Por fim, tendo-Ihes ordenado em cada Igreja presbíteros e feito orações com jejum, os deixaram encomendados ao Senhor, no qual tinham crido." (Cap. ]4,21-22). Passando por Perge e Átila, voltaram para Antioquia, onde tinham começado a viagem e pouco depois se encaminharam para Jerusalém, afim de tomar parte no Concílio dos Apóstolos (no ano 50), cuja decisão levaram depois à comunidade de Antioquia. São Paulo fez a segunda viagem acompanhado pelo discípulo Silas. Visitaram primeiro as Igrejas da Síria e Cilícia, que ficavam no caminho de Listra, onde Timóteo se lhes juntou. Dali viajaram pela Frigia, Galícia e Mísia, para Troas. "E à noite teve Paulo esta visão: Achava-se ali em pé um homem macedônio, que lhe rogava e dizia: "Parte para a Macedônia e ajudanos!" (Cap. 16, 6.) Embarcaram, pois, sem demora, depois de Lucas se lhes ter juntado, em Troas. Em Filipos se converteu uma mulher, por nome Lídia, que comerciava em púrpura. Paulo livrou também uma escrava do demônio, pelo que foi acusado e, juntamente com Silas, açoitado e lançado no cárcere. "Mas à meia-noite, postos em oração, Paulo e Silas louvavam a Deus e os que estavam na prisão, os ouviam. E subitamente se sentiu um terremoto tão grande, que se moveram os fundamentos do cárcere. E abriram-se logo todas as portas e foram soltas as prisões de todos. Tendo, pois, despertado o carcereiro e vendo abertas as portas do cárcere, tirando da espada, queria matar-se, achando que tinham fugido os presos. Mas Paulo bradou-lhe em voz forte: "Não te faças mal algum, porque todos nós aqui estamos". Então, tendo pedido luz, entrou lá dentro o carcereiro e, todo tremendo, se lançou aos pés de Paulo e Silas e tirando-os para fora, disse-lhes: "Senhores, que é necessário que eu faça para me salvar?" E eles disseram: "Crê no Senhor Jesus e serás salvo, tu e a tua família." E pregavam-lhe a palavra do Senhor e a todos de casa. E tomando-os naquela mesma hora da noite, o carcereiro lavoulhes as chagas e imediatamente foi batizado, com toda a família. (Cap. 16, 25-33). Posto em liberdade, dirigiu-se Paulo à Tessalônica, anunciando Jesus, ressuscitado dos mortos; mas, prevendo uma perseguição, logo que chegou a noite continuaram a viagem e foram a Beréa. Como também ali os judeus agitassem contra eles o povo, Paulo deixou nessa cidade Silas e Timóteo, encaminhando-se para Atenas. Ali, em pé no meio do areópago, anunciou aos filósofos gentios o Deus desconhecido:

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"Homens atenienses, em tudo e por tudo vos vejo um pouco excessivos no culto da vossa religião. Pois passando e vendo os vossos ídolos, achei também um altar, em que estava.escrito: Ao Deus desconhecido. Pois esse Deus que adorais sem o conhecer, é de fato O que vos anuncio. Deus que fez o mundo e tudo o que nele há, sendo o Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos pelos homens, nem é servido por mãos de homens, como se necessitasse de alguma criatura, quando Ele mesmo é o que dá a todos a vida e a respiração e todas as coisas. Ele fez de um só casal todo o gênero humano, para que se espalhasse por toda a face da terra e regulou e determinou a ordem dos tempos e os limites da existência humana, para que os homens buscassem a Deus, se porventura o pudessem tocar ou achar, ainda que não esteja longe de cada um de nós. Pois n’Ele vivemos e nos movemos e existimos, como ainda disseram alguns dos vossos poetas: porque somos também de sua linhagem. Sendo, pois, linhagem de Deus, não devemos pensar que a Divindade seja semelhante ao ouro ou à prata ou à pedra lavrada por arte e indústria do homem. Deus, dissimulando por certo os tempos desta ignorância, comunica agora aos homens que todos, em todo o lugar, façam penitência. Pois determinou um dia em que há de julgar o mundo, conforme a justiça, por aquele Homem que destinou para juiz, do que dá certeza a todos, ressuscitando-O dentre os mortos.” Ouvindo-o, porém, falar da ressurreição dos mortos, uns faziam zombaria e outros disseram: "Outra vez te ouviremos sobre este assunto." Assim se retirou Paulo. Todavia, alguns homens, agregando-se-lhe, abraçaram a fé; entre estes não foi só Dionísio, areopagita, mas também uma mulher por nome Dámaris e com eles, outros. (Cap. 17, 22-34.) Paulo partiu de Atenas e chegou a Corinto, onde procurou primeiro converter os judeus e depois os gregos à fé de Jesus Cristo. Converteuse aí Crispo, que era o príncipe da sinagoga. Depois de uma estadia de um ano e meio em Corinto, voltou a Antioquia, passando por Éfeso, Cesaréa e Jerusalém. Ali pouco tempo apenas se demorou o Apóstolo, partindo depois para a terceira viagem apostólica. Atravessando primeiro a Galácia e Frigia, chegou a Éfeso, de onde foi à Acaia, na Grécia e passando por Corinto, voltou a Éfeso, onde passou mais de dois anos, pregando e fazendo muitos milagres. "E muitos dos que tinham crido, vinham confessando e anunciando as suas obras. Muitos também dos que tinham seguido as artes vãs, trouxeram os livros e ajuntando-os, queimaram-nos diante de todos; e ca1culando-lhes o valor, acharam que montava a cinqüenta mil dinheiros. Deste modo a palavra de Deus crescia muito e tomava novas forças." (Cap. 19, 18-20). Como, porém, o culto da deusa Diana cada vez mais diminuísse, o ourives de prata, Demétrio, amotinou o povo contra o Apóstolo,

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que por isso partiu para a Macedônia e Grécia, voltando dali a Trôade, onde ressuscitou dos mortos o mancebo Euticho. Chegado a Mileto, fez diante dos bispos da Ásia Menor um belo sermão de despedida, no qual disse: "E agora, eis que, levado pelo Espírito, vou para Jerusalém, não sabendo o que ali me há de acontecer, senão o que o Espírito Santo me assegura por todas as cidades, dizendo que me esperam em Jerusalém prisões e tribulações. Nada disto, porém, temo nem considero a minha própria vida mais preciosa do que eu mesmo, contanto que acabe a minha carreira e o ministério da palavra, que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do Evangelho da graça de Deus... Tende cuidado convosco e com todo o rebanho de que o Espírito vos constituiu bispos, para governardes a Igreja de Deus, que Ele adquiriu com seu próprio sangue. Porque sei que depois da minha partida hão de penetrar entre vós lobos arrebatadores, que não pouparão o rebanho." (Cap. 20, 22-29.) Partindo de Mileto, viajou Paulo, por Chipre e Tiro, para Jerusalém. Mas quando estava no templo, alguns amotinaram o povo. Lançaramlhe as mãos e, arrastando o para fora, tê-Io-iam matado, se não fosse o comandante romano, Lísias, que o arrebatou das mãos do povo. O Apóstolo defendeu-se em seguida diante do Conselho Supremo e foi depois retirado de novo do tumulto pelos soldados e levado à Torre Antônia. Mais de quarenta judeus fizeram, porém, o juramento que não haviam de comer nem beber, enquanto não matassem Paulo. Mas Lísias, tendo-o sabido, mandou levá-I o, com uma escolta militar, para Cesaréia e entregá-lo ao governador Félix, que o guardou dois anos preso. Paulo defendeu-se também diante de Festo, sucessor de Félix, como também diante do rei Agripa. Mas, sendo cidadão romano, apelou para o imperador e foi assim enviado a Roma. Viajando no alto mar, desencadeou-se um furioso temporal, pondo-Ihes o navio e a vida em perigo, durante 13 dias, como Paulo mesmo predissera. Próximo da ilha de Malta se despedaçou o navio de encontro a um rochedo, mas todos os passageiros chegaram sãos e salvos à praia. O Apóstolo curou o homem mais eminente da ilha, de nome Públio; e, tendo-o mordido uma víbora, nada sofreu. No fim de três meses, se puseram de novo em viagem. Em Roma a prisão de Paulo era pouco rigorosa e ele pôde até converter algumas pessoas da corte de César. É provável que ainda fizesse uma viagem apostólica à Espanha e depois à Ásia Menor e à Grécia. Depois de ter estado nove meses no cárcere Mamertino, o incansá-vel Apóstolo foi degolado, fora da cidade de Roma, na estrada de Óstia, a 29 de Junho de 67 (segundo Catharina Emmerich). Narra-nos a tradição que a santa cabeça, depois de cortada pelo carrasco, ainda saltou três vezes e onde tocou no chão, nasceu uma fonte. Hoje ainda existem essas três fontes, na Igreja de Tre Fontane. S. Paulo mereceu, com toda a justiça, o nome de Apóstolo dos

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gentios, pelos seus trabalhos apostólicos em tantos países pagãos. As quatorze Epístolas que escreveu, reconhecidas pela Igreja, cheias de sublimes doutrinas da fé, continuam-lhe o apostolado até o fim dos séculos. O zelo pela glória do nome de Jesus, na salvação das almas, manifesta-se-Ihe nas palavras: "Fiz-me tudo para todos, para salvar todos." (1Cor.9, 22) E chega ao apogeu nesta exclamação: "Desejara atéser anátema por Cristo, por amor de meus irmãos." (Rom. 9, 3) Toda a chama de amor se lhe patenteia, porém, na mesma carta aos romanos (8, 35): "Quem nos separará, pois, do amor de Cristo? será a tribulação? ou a angústia? ou a fome? ou a nudez? ou o perigo? ou a perseguição? ou a espada? Porque estou certo de que nem a morte, nem a vida, nem as coisas presentes, nem as futuras... nem criatura alguma nos poderá apartar do amor de Deus, que está em Jesus Cristo, Senhor nosso." O Apóstolo mostrou esse amor a Jesus também pela ação, sofrendo pelo nome de Jesus muitíssimas dores e tribulações, de que ele mesmo escreve: "Dos Judeus recebi cinco quarentenas de açoites, menos um; três vezes fui açoitado com varas, uma vez fui apedrejado, três vezes naufraguei, uma noite e um dia estive no fundo do mar; em jornadas, muitas vezes me vi em perigo de rios, em perigo de ladrões, em perigo dos da minha nação, em perigo dos gentios, em perigo da cidade, em perigo do deserto, em perigo no mar, em perigo entre falsos irmãos; em trabalho e fadiga, em muitas vigílias, com tome e sede, em muitos jejuns, em frio e desnudez; fora estes males, que são exteriores, me combatem as minhas ocorrências de cada dia, o cuidado que tenho de todas as Igrejas." (2Cor. 11,24 - 28). Em todas as tribulações S. Paulo não carecia de consolações celestiais, de modo que podia dizer: "Nado em alegria em toda a minha tribulação." (2Cor. 7,4). Depois de tantos trabalhos e lutas, cheios de sacrifícios, pôde, com todo o direito, escrever: "Combati o bom combate, acabei a minha carreira, guardei a fé. Quanto ao mais, me está reservada a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia.” (2Tim. 4, 7 - 8). 5. Santo André, Apóstolo da Grécia Depois da divisão dos Apóstolos, S. André trabalhou primeiro na Scítia, depois no Epiro e na Trácia e finalmente na região da Acáia, na Grécia. Dali foi chamado por uma visão para junto do Apóstolo Mateus, que estava preso, com outros discípulos e sessenta cristãos, numa cidade da Etiópia. Os pagãos tinham-lhe derramado veneno nos olhos, o que lhe causava dores horríveis. André apressou-se a chegar junto de Mateus e curou-o, livrando-o, com os companheiros, da prisão. Pregou também o Evangelho nessa cidade, até que foi preso por gente amotina da e arrastado pela cidade, com os pés amarrados. André, porém, rezava pelos

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carrascos, que por isso ficaram tão comovidos, que lhe pediram perdão e se converteram. Depois voltou para a Acaia, onde curou um possesso cego e ressuscitou um menino. Viajou também para Nicéa, ordenando um bispo nessa cidade. Na Nicomédia ressuscitou outro rapaz e aplacou uma tempesta de no Helesponto. Uma vez em que foi ameaçado pelos Trácios selvagens, ficaram estes assustados com uma luz resplandecente do céu e prostraram-se por terra. Outra vez foi atirado às feras, mas ficou ileso. Foi em Patras, cidade da Acaia, que o Apóstolo sofreu o martírio; por ter confessado com grande franqueza a fé diante do procônsul Egéas, mandou este que o lançassem no cárcere. O povo, que lhe era muito afeiçoado, queria libertá-Io; ele, porém, pediu que lhe não impedissem de alcançar à tão almejada coroa do martírio. O juiz condenou-o à morte na cruz. Ao ver de longe a cruz, André exclamou: "ó boa cruz, há tanto tempo almejada, tão ardentemente amada e sem cessar procurada! Tira-me de junto dos homens e restitui-me ao meu Mestre, para que por ti me receba, quem por ti me remiu," Por dois dias esteve suspenso vivo, na cruz, pregando ao povo a fé de Jesus Cristo. A piedosa Emmerich viu-o morrer, rodeado de Anjos, sendo o corpo embalsamado por Maxila, tia de Saturnino. Segundo a serva de Deus, teve lugar a morte de Santo André no ano 93. 6. S. Tiago o Maior, Apóstolo da Espanha Partindo de Jerusalém, Tiago o Maior dirigiu-se, pelas ilhas gregas e pela Sicília, à Espanha, onde desembarcou em Gades. Como ali não fosse bem recebido, mudou-se para outra cidade. Mas também lá não foi tratado melhor; prenderam-no e teria sido morto, se um Anjo não o tivesse livrado milagrosamente. Deixou na Espanha cerca de sete discípulos e, acompanhado de dois outros, voltou por Massília, no sul da França, a Roma. Mas voltou depois à Espanha, dirigindo-se de Guedes, por Toledo, a Saragoça. "Ali, diz Catharina Emmerich, se converteu muita gente, ruas inteiras creram no Senhor, com exceção apenas dos que ainda aderiam ao paganismo. Vi Tiago correr também muitos perigos. Soltavam contra ele víboras, as quais tomava tranqüilamente nas mãos e não lhe faziam mal, mas viravam-se contra os idólatras que o cercavam e estes, vendo o milagre, começavam a temê-Io. Vi também que em Granada, onde apenas começara a pregar, foi preso com todos os discípulos e cristãos. Tiago invocou no coração o socorro e a proteção da Santíssima Virgem, que nesse tempo ainda vivia em Jerusalém e Maria salvou-o, com todos os seus discípulos, por intermédio de Anjos. A Virgem Santíssima mandou-lhe por um Anjo a ordem de ir à Galícia, pregar ali a fé e depois voltar.

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Vi Tiago, após a volta, em grandes tribulações, por causa de uma iminente perseguição e provação da comunidade cristã de Saragoça. Rezava numa noite à beira do rio, fora dos muros da cidade, junto com alguns discípulos, pedindo a Deus conselho, se devia ficar ou fugir. Lembrou-se também da Santíssima Virgem e suplicou-lhe que o ajudasse a pedir luzes e auxílio do Filho, que certamente não lhe negaria. Então vi subitamente aparecer por cima do Apóstolo um esplendor no céu e Anjos que entoavam um magnífico canto e transportavam uma coluna resplandecente, que da base projetava um raio fino de luz sobre um lugar, alguns passos distante de Tiago, como para indicar esse ponto. A coluna tinha um brilho vermelho, era atravessada por muitas veias, muito alta e delgada, terminando em cima como um lírio, que se abre em línguas de luz, das quais uma raiava longe, em direção a Compostela, a oeste, as outras, porém, para as regiões próximas. Nessa flor de luz, vi a figura da Santíssima Virgem em pé, como sempre ficava em vida na terra, durante a oração, toda branca e transparente, com um brilho mais belo e suave que o da seda branca. Estava de mãos postas, uma parte do longo véu cobria-lhe a cabeça, a outra parte, porém, envolvia-a até os pés, de modo que com os pés delicados e pequenos estava sobre as cinco pétalas da flor de luz. Era um quadro indizivelmente doce e belo. Vi que Tiago, orando de joelhos, levantou os olhos e recebeu interiormente de Maria a ordem de, sem demora, construir nesse lugar um templo, em que a intercessão de Maria se firmasse como uma coluna. Ao mesmo tempo lhe anunciou a Virgem Santíssima que, depois de acabar a construção da Igreja, devia ir a Jerusalém, Tiago levantou-se, chamou os discípulos, que já tinham visto a luz e correram para junto dele e comunicou-Ihes a aparição milagrosa e todos seguiam com os olhos o esplendor que ia desaparecendo. Tendo executado em Saragoça a ordem de Maria, Tiago constituiu uma comissão de doze discípulos, entre os quais também homens doutos, que deviam continuar a obra, que começara com tantas dificuldades e tribulações. Em seguida partiu de Espanha para Jerusalém, como lhe ordenara a Virgem. Nessa viagem visitou em Éfeso Maria, que lhe predisse a morte próxima, em Jerusalém, consolando e confortando-o. Tiago despediu-se de Maria e do irmão e continuou a viagem para Jerusalém, onde foi decapitado. (Veja cap. 13, no. 10). O corpo do Apóstolo esteve algum tempo num sepulcro perto de Jerusalém. Quando, porém, se levantou uma nova perseguição, levaram-no alguns discípulos, entre os quais José de Arimatéia e Saturnino, para a Espanha. Mas a perversa rainha Lupa, que já antes perseguira S. Tiago, não quis permitir que o sepultassem ali. "Os discípulos tinham posto o santo corpo sobre uma pedra, que sob ele formou então uma cavidade, como um sepulcro. Sucedeu

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também que outros cadáveres, sepultados ao lado, foram lançados fora da terra. Lupa acusou os discípulos perante o rei, que os mandou prender; mas escaparam milagrosamente e o rei que os perseguia com cavalaria, passou sobre uma ponte, que desabou, morrendo ele com todos os companheiros. Lupa assustou-se tanto com esse fato, que mandou dizer aos discípulos que prendessem e atrelassem touros bravos num carro; onde estes levassem o corpo, ali poderiam construir uma Igreja. Esperava que os touros bravos destruíssem tudo. Um dragão opôs-se na região deserta aos discípulos, mas morreu fulminado, quando fizeram o sinal da cruz; os touros bravos, porém, tornaram-se mansos, deixaramse atrelar ao carro e levaram o santo corpo ao castelo de Lupa. Ali então foi sepultado e o castelo transformado em Igreja, pois Lupa converteuse, confessando a fé cristã, com todo o povo". No sepulcro do santo Apóstolo aconteceram muitos milagres. Mais tarde lhe foram transferidos os ossos para Compostela, que se tornou um dos mais afamados lugares de peregrinação. S. Tiago pregou cerca de quatro anos na Espanha. 7. São João Evangelista em Roma e na Ásia Menor Os cristãos podiam viver em Éfeso, sem ser incomodados; todavia era João guardado por algum tempo como preso. Podia, porém, sair, acompanhado por dois soldados; e visitava muitas vezes gente boa. Uma vez se encontrou, num tal passeio, com um grupo de estudantes, cujo professor falara contra João. Como o Apóstolo tinha pregado o desprezo das riquezas terrestres, compraram ouro e pedras preciosas, que quebraram em pedaços, espalhando-os por escárnio no caminho de João; queriam mostrar-lhe que os pagãos podiam também desprezar a riqueza, sem por isso serem necessariamente cristãos. João, porém, disse-Ihes que isso era desperdício, mas não a virtude do desapego. Um dos rapazes desafiou-o então a apanhar os pedaços das pedras e restaurar-Ihes a forma anterior, que creriam no seu Deus. João disse-Ihes que as apanhassem e lhas trouxessem. Assim fizeram; João rezou e restituiu-Ihes então tudo em estado perfeito. Prostraram-se então os jovens diante dele, deram as jóias aos pobres e tornaram-se cristãos. "Dois dos que tinham dado os bens aos pobres e seguido a João, conta Catharina Emmerich, vendo os escravos bem vestidos, arrependeram-se de ter seguido a Cristo. Vi João apanhar ramos do mato e pedras na praia do mar, convertendo-os pela oração em varas de ouro e pedras preciosas e; dando-Ihes, disse que comprassem de novo as riquezas. Estava ainda a repreendê-Ios por causa da queda, quando passou diante deles o cadáver de um jovem e muita gente que o transportava; imploraram, chorando, ao Apóstolo que lhe restituísse a vida. Orando, ressuscitou-o e mandou-lhe dizer aos

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discípulos irresolutos o que sabia do estado de suas almas. O ressuscitado falou-Ihes do outro mundo, exortando-os a fazer penitência. Arrependeram-se então os jovens e o Apóstolo mandou-os jejuar, recebendo-os depois novamente na Igreja; o ouro, porém, tornou-se de novo em ramos e as pedras preciosas con-verteram-se novamente nas pedras anteriores e foram lançadas ao mar. Vi que muitos se converteram e que João foi preso. Um sacerdote dos ídolos disse que creria em Jesus e o libertaria, se João bebesse um cálice de veneno, sem morrer. Fizeram-no conduzir a um largo, perante o juiz e grande multidão de homens. Vi também que dois condenados à morte foram forçados a beber o veneno e caíram mortos em pouco tempo. João rezou e pronunciou algumas palavras sobre o cálice. Então saiu deste um negro vapor e uma luz desceu sobre ele. João bebeu tranqüilamente e o veneno não lhe fez mal algum. O sacerdote pagão exigiu ainda que João ressuscitasse os dois mortos. O Apóstolo deu-lhe o manto para o estender sobre os mortos e disse-lhe o que devia dizer então. Feito isso, levantaram-se os dois mortas; à vista deste milagre, quase toda a cidade se converteu e deram liberdade a João. Vi também desabar um templo em Éfeso, quando queriam obrigar João a sacrificar aos ídolos. Era como se uma tempestade caísse sobre o templo; ruiu o teto, poeira e vapor saiam de todas as aberturas e os ídolos fundiram-se. Um judeu convertido, que ainda era catecúmeno, caiu, na ausência de João, em grande pobreza e dívidas e era por isso muito perseguido. Então lhe disse um judeu maldoso que tomasse veneno, pois teria de ficar até à morte no cárcere dos devedores insolventes. Vi então o pobre homem, cheio de angústia, beber três vezes uma taça de bronze, cheia de veneno, mas como S. João lhe tivesse ensinado a fazer o sinal da cruz sobre tudo quanto comesse ou bebesse, o veneno não lhe fez mal, apesar de querer envenenar-se. Nesse ínterim voltou João àquele lugar. O homem confessou-lhe o ato que praticara e, repreendido, reconheceu o crime, manifestando grande arrependimento. João fez o sinal da cruz sobre a taça de veneno, a qual se converteu em ouro e mandou-lhe pagar com isso as dividas. Esse homem tornou-se discípulo de João e bispo daquela cidade onde João achou o menino que mais tarde encontrou como membro de um bando de bandidos. João achou-o apascentando um rebanho fora da cidade. Conversando com o menino, conheceu-lhe os bons talentos, apesar de grande falta de educação. Mandou que chamasse os pais, dos quais João pediu e recebeu o menino, para o educar. Tinha este 10 anos de Idade. João levou-o ao bispo de Beréa, para o educar e disse a este que mais tarde viria pédí-Io. No princípio tudo ia bem; depois se descuidaram do menino, que afinal se juntou a uma quadrilha de salteadores. Quando João, na volta, perguntou pelo

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menino, soube que se achava nas montanhas, entre os salteadores. Então montou numjumento e seguiu para lá. Erajá idoso e o caminho da montanha muito íngreme. Tendo achado o moço, suplicou-lhe de joelhos que se convertesse. O jovem tinha então cerca de vinte anos. João levou-o consigo, depôs o bispo e impôs uma penitência ao moço, que se tornou mais tarde também bispo. O bispo demitido era, aliás, um homem bom, mas faltara ao dever para com o moço. Ficara apenas seis anos bispo; era mais o vigário geral de João. Chama-se Áquila e morreu de morte natural. Oh! como chorou, ajoelhando-se diante de João, quando este o repreendeu pelo descuido! Quando João foi atirado no óleo fervente, tinha ensinado na Itália, onde fora também preso. De Patmos, onde era muito benquisto e tinha convertido muitos, viajava às vezes, com os guardas, mesmo até Éfeso. As revelações do Apocalipse, não as recebeu de uma só vez, nem as escreveu ao mesmo tempo, mas com intervalos; somente três anos antes da morte foi que escreveu o Evangelho, no Interior da Ásia. - Tive várias visões do martírio deste Apóstolo, em Roma. Vi-o num pátio circular, cercado de um muro simples, onde o despiram e açoitaram; estava já muito velho, mas ainda tinha um aspecto delicado e juvenil. Vi-o também conduzido por uma porta para fora da cidade a um largo vasto e circular, onde havia uma caldeira alta e um pouco estreita, colocada sobre um fogão circular de pedra, o qual tinha aberturas embaixo, para entrar o ar. João vestia um manto largo, abotoado no peito, quase como o Senhor, quando foi escarnecido depois da coroação de espinhos. Havia em roda muita gente a olhá-lo. Tiraram-lhe o manto e vi o corpo sangrento pela flagelação. Dois homens levantaram João, que subia também. O óleo estava fervendo; embaixo faziam fogo com lenha curta, de cor escura, que traziam em feixes. Tendo João estado dentro da caldeira por algum tempo, sem sinal de dor ou queimaduras, tiraram-no; todo o corpo conservava-se ileso e renovado, pois todas as feridas feitas pelos açoites, tinham-se curado. Muita gente que o viu, precipi-tou-se para a caldeira, sem medo, enchendo pequenos jarros com o óleo e eu ficava admirada de que não se queimassem. João, porém, foi reconduzido à cidade. De Roma veio João de novo a Éfeso vivendo ali alguns dias escondido. Só de noite visitava as moradas dos cristãos e também celebrou o santo sacrifício em casa de Maria. Depois mudou, com alguns discípulos, para Kedar, onde três anos antes da morte escreveu o Evangelho, na solidão. Os discípulos não estavam presentes quando escrevia; moravam um pouco afastados e só de vez em quando iam levar-lhe alimen to. Vi que escrevia deitado sob uma árvore e que, quando chovia, em cima do Apóstolo permanecia o céu claro e não o molhava. Viveu ali mais tempo, ensinando também e convertendo muita gente nas cidades. De lá voltou novamente a Éfeso.

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Os partidários principais dos reis Magos, depois de recebido o ba tismo das mãos de São Tomé, dirigiram-se à Ilha de Creta; o resto espalhara-se por outras regiões. São Tomé instituíra na Arábia vários bispos, pertencentes às tribos dos Reis Magos. Estes bispos não conseguiram mais governar os fiéis da região, os quais sempre recaiam na idolatria. Por isso escreveram a São João, que Ihes mandasse dois discípulos, ambos irmãos de Fidélis, os quais receberam no batismo os nomes de Macário e Caio e já eram homens. Esses, porém, tanto tempo lho pediram, que afinal, embora em idade avançada, fez essa viagem. Moravam ainda mais longe do que o acampamento de Mensor. Vi João num lugar onde habitavam os cal deus, que possuíam no seu templo o jardim fechado de Maria. O templo não existia mais; tinham uma Igreja pequena, em forma da casa de Maria em Éfeso, com terraço, como tenho visto todas as Igrejas nos primeiros tempos do cristianismo. Ali se reuniram também os bispos, pedindo a João que escrevesse a vida de Jesus, pois que lhe contariam tudo quanto sabiam. Disse-lhes, porém, o Apóstolo que já tinha escrito a vida de Jesus e tudo quanto podia escrever de sua Divindade neste mundo; que, enquanto escrevera, quase sempre havia estado no céu, não podia escrever mais outra coisa. Disse-Ihes que um dos discípulos que acompanhara Jesus, de nome Eremenzear, mais tarde chamado Hermes, tinha escrito a respeito; Macário e Caio deviam completá-lo. Vi também que estes assim fizeram e que a obra de Macário se perdeu, mas a de Caio ainda existe. João partiu dali para Jerusalém, depois para Roma, donde voltou para Éfeso. Tive também uma bela visão da morte de São João. Estava já muito velho, mas tinha o rosto ainda belo, delicado e juvenil. Vi-o partir e distribuir o pão divino, creio que por três dias em seguida, numa Igreja de Éfeso. Lembro-me que Jesus lhe tinha aparecido, anunciando-lhe a morte; recordo-me só obscuramente, mas vi muitas vezes Jesus lhe aparecer. Depois o vi ensinar ao ar livre, sob uma árvore, fora da cidade, rodeado pelos discípulos; dirigiu-se em seguida, acompanhado apenas por dois discípulos, a um belo lugar num bosque, atrás de uma pequena colina. Havia ali uma linda relva e podia-se ver o mar azul no horizonte. Mostrou-Ihes uma coisa no chão; era que deviam cavar ou acabar-lhe a cova. Creio que era para acabar, pois pouco depois tudo estava tão bem preparado, que o trabalho principal devia ter sido feito já anteriormente. As pás ainda estavam lá. Vi-o voltar para junto dos outros, ensinandoIhes com amor, rezando e exortando-os a se amarem uns aos outros. Os dois voltaram também e um deles disse: "Ai! meu Pai, cremos que nos quereis abandonar." Comprimiam-se-Ihe todos em roda e prostravam-se por terra, chorando; João exortou-os, rezou e abençoou-os. Depois mandou que ficassem ali; e acompanhado por cinco dentre os discípulos, foi ao lugar do sepulcro, que não era

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muito profundo, mas bem revestido de relva; tinha uma tampa de vime e sobre esta puseram depois, se bem me lembro, relva e uma pedra. João, em pé à beira da cova, rezou com os braços estendidos; depois colocou dentro o manto, entrou e, sentando-se, ainda rezava. E veio-lhe um grande esplendor, enquanto ainda falava; os discípulos estavam prostrados por terra, chorando e rezando. Vi depois uma coisa maravilhosa: Quando João caiu vagarosamente deitado e expirou, vi no esplendor que o encimava, uma figura resplandecente, semelhante a ele, sair-lhe do corpo, como de um invólucro grosseiro e desaparecer com a luz. Depois vi também os outros discípulos, que se aproximavam e se prostravam em roda do sepulcro, sobre o corpo sagrado, que foi coberto em seguida. Vi também que o corpo do Apóstolo não está mais na terra, mas entre norte e leste, num lugar resplandecente como o sol; vi que lá era como um intermediário, recebendo alguma coisa de cima e levando-a para baixo. Vi esse lugar como ainda pertencente à terra, mas elevado acima dela e inacessível.” 8. Viagens apostólicas e trabalhos de São Tomé, principalmente na Índia Havia cerca de três anos depois da morte de Jesus, quando Tomé, com o Apóstolo Tadeu e quatro discípulos, partiu para o país dos Reis Magos. Batizou os dois reis, já muito idosos, Mensor e Teokeno e pouco a pouco foram batizados todos os habitantes do país. Tomé enviou Tadeu, com uma carta, ao rei Abgar, para o curar; soubera, por uma revelação divina, da enfermidade do rei. "Por todo o caminho, conta a piedosa Emmerich fazia Tomé grandes milagres, instituía catequistas e deixava também um discípulo. Continuou a viagem até a Báctria. Foi também ao extremo norte, além da China, onde começa o território da Rússia, entre tribos muito selvagens. Na Báctria e entre os povos que seguem a doutrina de Zoroastro, teve muito bom êxito. Chegou também ao Tibet. Mais tarde vi São Tomé, não só na Índia, mas também numa ilha, entre gente de cor e também no Japão; ouvi-lhe também profecias sobre a sorte futura da religião nesse último país. Tomé tinha pouca vontade de ir para a Índia. Antes de partir para lá, teve muitos sonhos, nos quais construía belos e grandes palácios na Índia. Não o compreendia a princípio, não dando importância a esses sonhos, porque nada sabia de arquitetura. Mas continuavam a repetirse tais avisos interiores, de ir à Índia para converter muitos homens e ganhar muitas almas, porque isso significaria a construção dos grandes palácios. Aconselhou-se com Pedro, que o exortou a partir para a Índia. Então seguiu ao longo do Mar Vermelho e passou também pela Ilha de Socotora, onde

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ensinou, mas não por muito tempo. Foi a segunda cidade da Índia onde Tomé chegou, encontrando o povo a preparar-se para uma grande festa. Ensinou e curou enfermos; o rei e muito povo o escutavam. Foram tantos os que lhe aderiram, que um jovem sacerdote dos falsos deuses lhe criou um profundo ódio e uma vez, durante o sermão, lhe bateu no rosto. Tomé, porém, permaneceu calmo e humilde e, agradecendo-lhe, ofereceu também a outra face. Vendo-o, o rei e todo o povo ticaram muito comovidos, estimando depois Tomé como um homem muito santo; o sacerdote idólatra converteu-se. A mão tinha-se-Ihe coberto inteiramente de lepra. Tomé, porém, curou-a e o jovem convertido se tornou o mais fiel dos discípulos. Tomé conver teu também a filha do rei e o marido, que era possesso de um demônio; depois saiu da região, continuando a viagem mais para leste. Tendo a filha do rei dado à luz um filho, ela e o marido tizeram voto de castidade, dando todos os bens aos pobres. O pai indignou-se muito e afirmou que Tomé era feiticeiro; mas a filha e o genro perseveraram no seu propósito e propagavam por toda a parte a doutrina singela de Jesus Cristo, como a tinham recebido, convertendo muitos. o próprio pai atinal ticou como vido e mandou um mensageiro a Tomé, pedindo-lhe para voltar. O Apóstolo voltou, pois, na despedida Ihes dissera: "Em pouco tempo nos tornaremos a ver." O rei e uma grande multidão de povo pediram o batismo e o próprio rei tornou-se mais tarde diácono e foi juntar-se aos seis Magos. Tenho ainda a lembrança vaga de que se tornou sacerdote e o filho construiu uma igreja. Vi Tomé numa outra cidade, à beira do mar e notei que tencionava deixar a Índia; creio que não era longe da região, onde mais tarde pregou São Francisco Xavier. Apareceu-lhe, porém, Jesus, que o mandou viajar para o interior da Índia. Tomé não queria, por habitar ali um povo muito selvagem; então lhe apareceu Jesus, pela segunda vez, dizendo-lhe que lhe estava fugindo diante dos olhos, como Jonas; que fosse para lá, pois não o abandonaria; grandes prodígios se fariam por suas mãos. No dia do juízo Tomé havia de estar a seu lado, como testemunha de quanto Ele fizera pelos homens. Vi São Tomé, caminhando com muito povo, curando enfermos, ex-pulsando demônios e batizando numa fonte. Veio vê-Io também um homem muito distinto, douto e piedoso, que sempre estava estudando nos livros e se tornou zeloso discípulo do Apóstolo. Esse homem tinha uma sobrinha, casada com um parente do rei. Era extremamente bela e riquíssima. Tendo ouvido falar dos milagres de Tomé, sentia grande desejo de ouvir-lhe a doutrina. Passando através do povo, até chegar junto dele, prostrou-se-Ihe aos pés e pediu-lhe que lhe ensinasse. Tomé ensinou-lhe e abençoou-a; a moça ficou muito comovida, chorava, rezava e jejuava dia e noite. O marido, que a amava muito, tornou-se muito triste e procurava

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distraí-Ia. Ela, porém, lhe pediu que a deixasse ainda algum tempo recolhida. Ia diariamente à doutrina de Tomé e tornou-se zelosa cristã. O marido, zangado, apresentou-se em vestes de luto ao rei, acusando Tomé. Tendo levado o Apóstolo amarrado ao rei, este o mandou açoitar e encarcerar. Foi o primeiro martírio de São Tomé, em todas as suas viagens; ele, porém, louvava a Deus. A mulher convertida cortou o cabelo, chorava e rezava, deu tudo aos pobres e não usava mais enfeites. De noite, na ausência do marido, subornava os guardas e ia com outros ao cárcere, para ouvir a doutrina de Tomé. Levava consigo a ama de leite e pediram o batismo. Tomé mandou preparar tudo em casa para o batismo, e saindo do cárcere, foi à casa das recém-convertidas e batizou-as, com muitos outros. Os guardas dormiam, por efeito da Providência Divina e Tomé voltou ao cárcere. Como, porém, até da família real alguns mudassem de vida e seguissem a doutrina do Apóstolo, mandou o rei trazê-Io à sua presença e como Tomé lhe explicasse a doutrina, sem que o rei quisesse crer, propôs-lhe o Apóstolo pedir a Deus um sinal de que ele dizia a verdade. Então mandou o rei colocar-lhe em frente lanças em brasas e Tomé andou sobre as mesmas sem se queimar; no lugar onde foram colocadas, nasceu uma fonte. Tomé narrou também ao rei o que anunciava em toda a parte; que tinha visto, durante três anos, os milagres feitos por Jesus e contudo tinha duvidado muitas vezes; que agora cria e era obrigado a propagar a verdade entre os infiéis. Acusava-se sempre de seu pecado. O rei mandou ainda aquecer uma sala de banho, para o fechar lá dentro e fazê-Io morrer pelo vapor quente; mas era impossível aquecê-Ia e havia dentro só ar. Depois quis forçá-Io a sacrificar aos ídolos e Tomé disse: "Se Jesus não quebrar os teus ídolos, então sacrificarei." Então prepararam uma grande festa e dirigiram-se com pompa ao templo. O ídolo, colocado num carro, era todo de ouro. Mas, à oração de Tomé, caiu como fogo do céu, fundiu o ídolo e muitos outros ídolos caíram. Levantou-se um grande tumulto entre o povo e os sacerdotes dos ídolos e Tomé foi novamente lançado no cárcere. Deste cárcere foi libertado como Pedro, dirigindo-se a uma ilha, onde ficou longo tempo. Deixou catequistas nesse país e partiu para o Japão, onde se demorou meio ano. Depois que voltou, converteram-se ainda muitas pessoas da família real. Os sacerdotes idólatras guardavam-lhe veemente ódio. Um deles tinha um filho enfermo e pediu a Tomé que o curasse; depois, porém, estrangulou o filho, acusando Tomé do assassínio. Este, entretanto, mandou trazer o cadáver e ordenou-lhe, em nome de Jesus, que dissesse quem o matara. O cadáver levantou-se e disse: "Foi meu pai." Em conseqüência deste milagre se converteram ainda muitos. Vi que Tomé costumava rezar fora da cidade, à grande distância

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do mar, ajoelhado sobre uma pedra, a qual conservava as impressões dos joelhos. Um dia predisse que, se o mar, que estava muito distante, chegasse até aquela pedra, viria um homem de uma terra longínqua, para pregar a doutrina de Jesus. Então eu não podia imaginar como o mar pudesse chegar até ali. Mas nesse lugar foi erigida uma cruz de pedras por Francisco Xavier, quando desembarcou. Vi S. Tomé, de joelhos sobre essa pedra, rezando em êxtase; aproximaram-se traiçoeiramente sacerdotes idólatras, que o atravessaram com uma lança. O corpo do Apóstolo foi transportado para Odessa, onde ainda tenho visto celebrarem-lhe a festa. No lugar em que morreu, ficoulhe, porém, uma costela e a lança que o transpassou. Ao lado da pedra havia uma oliveira, que foi salpicada com o sangue de Tomé e que exsudava óleo todos os anos, no dia do martírio do Santo e quando isso não acontecia, esperavam os habitantes da região um ano mau. Vi que os idólatras em vão tentavam desarraigar esse arbusto, que sempre de novo crescia; vi também ali uma Igreja e quando, na festa do Apóstolo, se rezava a Missa, o arbusto exsudava ainda óleo. A cidade tem o nome de Meliapur; agora a situação não é favorável, mas a fé cristã há de firmar-se ali de novo. Foi-me dito que Tomé chegou à idade de noventa e três anos. Estava queimado pelo sol e muito magro; tinha o cabelo ruivo. Ao morrer, apareceu-lhe o Senhor, dizendo-lhe que ia sentar-se-Ihe ao lado, no dia do juízo. Se não me engano, na ordem de suas freqüentes viagens, depois da divisão dos Apóstolos, foi primeiro ao Egito, depois à Arábia e, chegando ao deserto, mandou um discípulo ao Apóstolo Tadeu, para que visitasse o rei Abgar. Depois batizou os reis Magos e percorreu a Báctria, a China, o Tibet, e ao norte, o território russo, voltando dali a Éfeso, para assistir à morte de Maria; da Palestina partiu para a Itália, atravessando depois uma parte da Alemanha, Suíça e França, embarcou para a África e passando pela terra de Judit, pela Abissínia e Etiópia, foi à Socotora; dali foi à Índia e Meliapur, de onde, libertado do cárcere pelo Anjo, se dirigiu, por uma parte da China, ao extremo norte, que agora pertence à Rússia. Dali veio à ilha ao norte do Japão.” 9. Trabalhos apostólicos de S. Bartolomeu na Ásia e especialmente na Abissínia, (África) O Santo Apóstolo Bartolomeu pregou primeiro na longínqua Índia, onde deixou muitos discípulos e convertidos. Dali partiu para o Japão e voltando, seguiu através da Arábia e do Mar Vermelho, para a Abissínia. Ali converteu o rei Polímio e ressuscitou um morto. Na capital desse país muitos enfermos tinham sido curados por

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um ídolo; mas desde que Bartolomeu chegara, emudecera o ídolo. Havia na mesma cidade uma casa, em que habitavam muitas mulheres possessas do demônio. Bartolomeu curou-as todas, ensinou e batizou-as, depois de terem publicamente renunciado a idolatria. "O Apóstolo conversava muitas vezes com o rei Polímio, que lhe fazia perguntas muito profundas e o deixava freqüentemente, para consultar grandes rolos escritos. O Apóstolo tinha consigo um rolo escrito, o Evangelho de S. Mateus e dele lia as respostas. Disse-lhe também que o ídolo fazia os homens adoecerem e depois os curava, para os confir mar na idolatria. Mas agora o demônio fora amarrado pelo nome de Jesus e não podia mais agir por meio do ídolo. Prová-Io-ia, se o rei deixasse consagrar o templo ao verdadeiro Deus e recebesse o batismo, com todo o povo. O rei convocoU todo o povo ao templo e quando os sacerdotes pagãos quiseram sacrificar, gritou-Ihes o demônio do ídolo que não o fizessem, porque estava amarrado pelo Filho de Deus. Bartolomeu ordenou-lhe que manifestasse todas as falsas curas que fizera e o demônio confessou tudo pelo ídolo. Depois pregou Bartolomeu diante do templo e mandou a Satanás que se mostrasse na sua verdadei ra forma, para que o povo visse qual deus tinha adorado. Então este apareceu como horrendo monstro preto, desaparecendo diante deles na terra. O rei mandou destruir todos os ídolos. Bartolomeu, porém, consa grou o templo para servir de Igreja e batizou o rei e a família e pouco a pouco todo o exército. Ensinava, curava os enfermos e era benquisto por todo o povo. Depois recebeu Bartolomeu do céu a ordem de ir visitar a SS. Virgem. No entanto dirigiram-se os sacerdotes idólatras a Astíages, irmão de Polímio, acusando Bartolomeu de feiticeiro. Quando este, pois, voltou da reunião dos Apóstolos àquela terra, não chegou até lá, mas foi preso por emissários de Astíages e levado à presença deste, que lhe disse: "Seduziste meu irmão a adorar o teu Deus; eu te ensinarei agora a sacri ficar ao meu." Bartolomeu replicou: "Deus, que me deu o poder de mos trar a teu irmão, Satanás e expulsá-Io diante dele para o Inferno, há de dar-me também a força de esmagar os teus ídolos e de forçar-te a aceitar a fé." Logo depois veio um mensageiro, anunciando que o ídolo do rei caíra despedaçado. Então rasgou o rei a roupa com raiva e mandou açoitar Bartolomeu, que foi amarrado a uma árvore e esfolado vivo, mas neste martírio não deixou de pregar em alta voz, até que lhe atravessaram o pescoço com uma espada. Esfolaram-no, começando pelos pés e entregaram-lhe a pele nas mãos. Depois da morte lançaram o santo cor po às feras, mas alguns convertidos pobres tiraram-no de noite. Vi que Polímio o buscou, com muito povo e sepultou. Construíram-lhe uma capela sobre o sepulcro. O rei pagão, porém, e os sacerdotes idólatras que tinham acusado Bartolomeu,

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endoideceram, após treze dias e fugi ram para o sepulcro do Apóstolo, pedindo socorro em alta voz; o rei converteu-se; os sacerdotes, porém, morreram de uma morte horrível.” 10. Os santos Apóstolos Simão e Judas Tadeu na Pérsia Os dois irmãos Simão e Tadeu, depois da separação dos Apóstolos, viajaram algum tempo juntos; depois se dirigiu Simão ao Mar Negro e à Scítia; Tadeu, porém, ao Oriente, onde provavelmente se encontrou com S. Tomé, ficando com este. Depois foi incumbido por Tomé de levar uma carta ao rei Abgar. Quando Tadeu chegou ao palácio do rei, este viu ao lado do Após-tolo a figura resplandecente de Jesus, diante da qual se inclinou profundamente. O Apóstolo curou o rei da lepra, pela imposição das mãos. Tendo curado em Edessa muitos enfermos e convertido muitos infiéis, percorreu, com o companheiro Silas, os países que Jesus já visitara e veio pela Arábia até o Egito. Nessa viagem conseguiu batizar muita gente; povoações inteiras aceitaram a fé cristã. Simão dirigiu-se, depois da morte de Maria, ao país dos Persas. Tinha por companheiros o discípulo Abdias e alguns outros. Guiados pela Providência Divina, os dois irmãos encontraram-se novamente num acampamento militar e chegaram depois a uma grande cidade (Babilônia). "Ali foram bem sucedidos; vi acontecerem muitas coisas, das quais não me lembro mais. Somente me recordo de que, numa assembléia, em presença do rei, sacerdotes pagãos se levantaram contra os Apóstolos; alguns tinham em ambas as mãos feixes de cobras, do comprimento de um braço, outros tinham em cada mão duas ou três. Essas cobras eram mais redondas e mais delgadas do que enguias; tinham cabeças redon das e pequenas, com a boca sempre aberta, vibrando as línguas como flechas. Os sacerdotes idólatras soltaram as víboras contra os Apóstolos; mas vi-as lançarem-se, voando como setas, contra aqueles que as trouxeram, enrolando-se-Ihes e mordendo-os, de modo que fugiram, com gritos estridentes, até que os Apóstolos ordenaram às víboras que os deixassem. Vi que muitos habitantes da cidade e o próprio rei se tornaram cristãos. Partiram depois para outra cidade, onde moravam em casa de um homem que era cristão. Amotinou-se o povo da cidade, e vi que os dois Apóstolos foram levados, junto com o cristão que os hospedava, a um templo, no qual havia ídolos de ouro e prata, colocados sobre carros. Estava reunida, dentro e fora do templo, uma imensa multidão de povo. Lembro-me que os ídolos se quebraram e várias partes do templo desabaram e que os dois Apóstolos foram arrastados no aperto da multidão, sem se defenderem e foram mortos, com toda a espécie de armas, pelos sacerdotes e o povo. Vi que a um deles, creio que a Tadeu, foi fendida a cabeça, cortada

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pelo meio do rosto, com o machado que o povo trazia à cintura. Vi sobre eles celestes aparições.” Os corpos dos dois santos Apóstolos jazem na catedral de São Pe-dro em Roma. 11. Trabalhos apostólicos e tribulações dos santos Apóstolos Felipe, na Frigia e Mateus, na Etiópia. Sobre os trabalhos do santo Apóstolo Filipe, relata Catharina Emmerich apenas o seguinte: "Depois de Pentecostes, foram Felipe e Bartolomeu a Gessur, nas fronteiras da Síria. Felipe curou logo uma mulher da cidade; era muito benquisto pelo povo, mais tarde, porém, foi perseguido.” A história eclesiástica conta que Felipe chegou também à Frigia, convertendo numerosos pagãos à fé cristã. Em Hierápoli, cidade desta província, foi arrastado pelos pagãos perante um ídolo do deus Marte, para lhe sacrificar. Dizem que saiu por debaixo do altar uma cobra enorme, que matou dois tribunos e o filho de um sacerdote idólatra. O santo Apóstolo ressuscitou todos os três, mas foi açoitado e crucificado. Quiseram tirá-Io da cruz ainda vivo, mas pediu que o deixassem morrer na cruz, como o divino Mestre e Senhor. Foi atendido este pedido, pois o apedrejaram pendendo da cruz. O martírio deste Apóstolo teve lugar no ano 81. Do santo Apóstolo Mateus conta a piedosa Catharina Emmerich que estava preso numa cidade da Etiópia e que S. André o curou do veneno que os pagãos lhe tinham derramado nos olhos. Segundo a tradição, S. Mateus pregou durante 23 anos na Etiópia, convertendo grande multidão de povo à fé cristã, entre outros também o rei Egipo e toda a família. A filha do rei, Efigênia, fez o voto de guardar a virgindade e neste propósito foi confirmada pelo santo Apóstolo. Sabendo disto o tio, que depois da morte do pai usurpara o trono e queria desposá-Ia, mandou matar o santo Apóstolo. São Mateus foi atravessado por uma lança, no altar, durante a celebração do Santo Sacrifício. 12. Os santos Evangelistas Marcos, em Roma e no Egito e Lucas, na Grécia São Marcos veio a Roma, com o príncipe dos Apóstolos, S. Pedro. No seu Evangelho escreveu o que lhe ditou S. Pedro. Quando irrompeu em Roma uma epidemia de peste, erigiu-se, por ordem de Marcos, uma Via Sacra. Cristãos e pagãos que rezavam, percorrendo esta Via Sacra, ficavam livres ou curados da peste. Muitos pagãos, vendo esse milagre, se converteram. De Roma se dirigiu São Marcos para o Egito, para pregar ali o Evangelho. "Vi-o primeiro em Alexandria; não foi com muito gosto que partiu

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para lá. Na viagem cortou tão desastrosamente o dedo da mão direita, que o teria perdido, se não fosse curado por uma aparição celeste, com a qual muito se assustou, como S. Paulo. Em volta do dedo lhe ficou toda a vida uma marca vermelha. Ao entrar em Alexandria, rasgou-se-Ihe a sandália e deu-a a um sapateiro, de nome Aniano, para a remendar. Este se feriu na mão, durante o trabalho; Marcos, porém, curou-a com um ungüento preparado de pó e saliva. Vendo-o, converteu-se Aniano e Marcos foi morar-lhe em casa. Aniano possuía uma casa vasta, muitos escravos, mulher e dez filhos. Numa sala, pertencente à casa entregue a Marcos, se celebravam as primeiras reuniões dos convertidos. Os Apóstolos não celebravam o santo Sacrifício numa nova comunidade, antes desta ter sido bem instruída e confirmada. Seguiamjá um rito certo na distribuição da sagrada Comunhão, durante o Santo Sacrifício. Três dos dez filhos de Aniano tomaram-se mais tarde sacerdotes. O pai foi sucessor de S. Marcos. O Apóstolo esteve também em Heliópoli. Havia ali um oratório, instituído quando morava ali a sagrada Família; desse oratório foi construída uma igreja e ao lado, mais tarde um pequeno convento. Os que Marcos ali batizou, eram na maior parte judeus. São Marcos foi preso e lançado num cárcere em Alexandria e morreu estrangulado com uma corda. Quando estava no cárcere, vi Jesus aparecer-lhe, tendo na mão uma patena e dando-lhe um pequeno pão redondo. Vi também que o corpo do mártir foi levado mais tarde para Veneza.” Como nos conta a piedosa Emmerich, esteve S. Lucas primeiro com São João, em Éfeso, depois com Santo André. Na terra pátria travou conhecimento com Paulo, a quem depois acompanhou nas viagens. "Escreveu o Evangelho, a conselho de Paulo e porque circulavam livros apócrifos da vida do Senhor. Escreveu-o 25 anos depois da Ascensão de Jesus, redigindo-o na maior parte com as informações de testemunhas oculares, que procurava por toda a parte. Já no tempo da ressurreição de Lázaro o vi visitar os I,ugares onde O Senhor operava milagres e informar-se de tudo. Tinha também amizade com Barsabas. Foi-me também revelado que Marcos escreveu o Evangelho só com informações de testemunhas oculares e que nenhum dos Evangelistas conhecia nem aproveitou na sua obra a dos outros. Também me foi dito que teriam inspirado menos fé se tivessem escrito tudo e que não escreveram os milagres, muitas vezes repetidos, por motivo da extensão do livro. Vi que Lucas pintou vários retratos da Santíssima Virgem, alguns de modo milagroso. O busto de Maria, que não conseguia acabar, encon trou terminado, ao voltar a si de um êxtase, em que caíra durante a oração. Esse retrato é ainda conservado em Roma, na Basílica de Santa Maria Maior, por cima de um altar, na capela do Presépio, à direita do altar-mor. Não é, porém, o original,

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mas apenas uma cópia. O original foi antigamente encerrado num muro junto com muitas outras coisas sagradas, por ocasião de uma perseguição; nesse muro, que foi convertido em um pilar, há também relíquias de santos e documentos de muita antiguidade. A Igreja tem seis pilares; é o do meio, à direita, de modo que o sacerdote, dizendo a Missa no altar da imagem de Maria, ao dizer: Dominus vobiscum, indica com a mão direita esse pilar. Lucas pintou também o retrato inteiro de Maria, vestida de noiva; mas não sei onde se acha agora esse quadro. Outro, em vestes de luto, corpo inteiro, creio tê-Io visto numa Igreja, onde se guarda o anel nupciaI de Maria. (Peruzia, na Itália) Lucas pintou também Maria, como indo ao descendimento de Cristo da cruz; deu-se isto de um modo milagroso: Depois que todos os Apóstolos e discípulos tinham fugido, vi Maria, ao crepúsculo a caminho do Calvário, creio que acompanhada de Maria, filha de Cléofas e Salomé. Vi que Lucas estava ao lado do caminho e comovido diante daquela inconsolável dor, estendeu-lhe um lenço, com o desejo de que nele lhe ficasse impressa a imagem. Achou realmente o retrato no lenço, como uma sombra a passar e conforme essa imagem, pintou o quadro, contendo duas figuras: ele, com o lenço e Maria, passando-lhe em frente. Não sei se Lucas estendeu o lenço só com o desejo de receber o retrato ou seguindo o costume de estender um lenço aos tristes ou porque dese jasse praticar para com Maria o ato de caridade que Verônica fizera para com Jesus. Creio ter visto esse quadro de S. Lucas guardado por um povo estranho, que vive entre a Síria e a Armênia. Não são verdadeiros cristãos, crêem em João Batista, têm um batismo de penitência, que recebem todas as vezes que se querem purificar dos pecados. Lucas pregava o Evangelho nessa região, operando muitos milagres por meio desse quadro. Perseguiram-no e faltou pouco para o lapidarem; o quadro, porém, ficou lá. Lucas levou consigo doze homens desse povo, os quais tinha convertido. Aquela tribo morava numa montanha, cerca de doze horas de caminho a leste do Líbano. No tempo de S. Lucas contava apenas algumas centenas de almas. A Igreja local era como uma gruta na montanha; para entrar nela, era preciso descer; olhando para cima, viam-se cúpulas, nas quais havia janelas, como se vêem nas abóbadas das nossas Igrejas. Tenho visto esse quadro de S. Lucas naquela região, em tempos mais recentes; não sei se foi em nosso tempo, mas é possível; pois no tempo de S. Lucas tudo era muito simples. Mas agora a Igreja parecia maior; o povo parecia ter também muitas cerimônias diferentes; o sacerdote estava sentado diante do altar, debaixo de um arco, o quadro pendurado no alto da abóbada e diante dele ardiam muitas lâmpadas; já estava enegrecido e indistinto. Recebem muitas graças por meio do quadro e veneram-no, porque têm visto milagres feitos por ele. Lucas foi supliciado como bispo, em Tebas, se não me engano. Vi-

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o amarrado com uma corda a uma árvore e morrer a golpes de dardos. Um desses lhe transpassou o peito e o corpo caiu-lhe para a frente; então o amarraram de novo, lançando-lhe depois mais dardos. De noite foi sepultado secretamente. O remédio, de que S. Lucas se serviu, no seu tempo de médico, era resedá, misturado com óleo de palma benta. Ungia com esta mistura a testa e os lábios em forma de cruz; usava também, às vezes, resedá seco, com infusão de água. 13. S. Barnabé, S. Timóteo e S. Saturnino Como já mencionamos, foi Barnabé enviado pela Igreja de Jerusalém a Antioquia, onde, junto com S. Paulo, pregou durante um ano o santo Evangelho, com grande êxito, até que o Espírito Santo deu, pela boca dos profetas dessa Igreja, a ordem: "Separai-me Paulo e Bamabé para a obra, para a qual os destinei." Depois de terem recebido a consagração episcopal, S. Bamabé acompanhou S. Paulo por algum tempo. Tendo-se separado dele, fez ainda algumas viagens apostólicas. Diz a tradição que chegou até Milão, sendo o primeiro que nessa cidade anunciou a fé cristã. Foi lapidado pelos judeus, na ilha de Chipre, sua terra natal, sendo-lhe o corpo lançado numa fogueira, que, porém, não o queimou; os discípulos sepultaram-no. Quando o acharam, no tempo do imperador Zeno, encontraram-lhe sob o peito uma parte do Evangelho de S. Mateus. Barnabé também escreveu alguma coisa. Timóteo, discípulo de S. Paulo, estava preso na ilha de Quios, ao mesmo tempo que S. João se achava no cativeiro, na ilha de Patmos. "Vi-o: era um homem alto, com cabelo e barba preta, magro e pálido. Nas viagens vestia um manto cinzento, preso ao meio do corpo pela cinta; como bispo, usava um longo manto, de cor parda-escura, bordado grosseiramente de grandes florões de ouro, com fio grosso como barbante, mas produzindo belo efeito; revestia-se também de uma estola no peito, uma cinta, sobre a cabeça uma mitra baixa. Todos o amavam; tinha em Quios uma comunidade de convertidos; até os soldados da guarda aderiram à fé. Havia ali uma mulher cristã rica, que caíra numa vida pecaminosa. Um dia, quando Timóteo estava para dizer a santa Missa numa capelinha e já se achava diante do altar, viu em espírito aquela infeliz, que se aproximava da Igreja. Então lhe foi ao encontro na porta, repreendeu-a pela vida pecaminosa e excomungou-a. Em conseqüência disso se levantou uma perseguição contra Timóteo, que foi desterrado para a Armênia, mas posto em liberdade antes de S. João voltar de Patmos. Paulo mandou-o, como bispo, a Éfeso, onde foi assassinado pelos pagãos, por ocasião de uma festa, em que percorriam a cidade com máscaras, carregando ídolos em triunfo. S. Timóteo tinha pregado veementemente contra esses

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costumes pagãos.” Saturnino, que era como André um dos primeiros que seguiram a Jesus, depois do Batismo, pregou em Tarso, depois da morte de Jesus. Ali teria sido morto a pancadas e pedradas, mas um vento forte lançou tanta poeira e areia nos olhos dos perseguidores, que pôde fugir. Esteve também em Roma, com S. Pedro e foi enviado por esse à Gália. Esteve em Arelat, Nimes e muitos outros lugares desse país. Em Toulouse ficou mais tempo, convertendo muita gente, entre outros também uma mulher, que curara da lepra. Ali também morreu mártir. Num monte, em cujo cume havia um templo pagão, Saturnino foi amarrado a um touro. Aguilhoando o touro, fizeram-no correr na ladeira íngreme para baixo; o touro, enraivecido, caiu e pisando, esmagou a cabeça do Santo. Celebra-se-Ihe a festa a 29 de Novembro. 14. S. Lázaro, Marta e Madalena no sul da França Três ou quatro anos depois da morte de Jesus os judeus prenderam Lázaro, Marta e Madalena e abandonaram-nos numa pequena embarca-ção, que já fazia água e sem remos nem velas, no alto mar; puseram na mesma barca o discípulo Maximino, um cego de nascença curado por Jesus, de nome Cheliônio e duas meninas. Com o auxílio de Deus escaparam da morte; pois a barquinha foi impelida sobre o mar com velocidade sobrenatural e aportou à costa meridional da França, perto da cidade que hoje se chama Marselha. Quando chegaram a esta cidade, estava o povo justamente a celebrar uma festa idólatra. "Os sete estrangeiros - conta Catharina Emmerich - sentaram-se sob as arcadas de uma praça pública, diante de um templo. Ficaram assim sentados por muito tempo; tendo-se reconfortado um pouco, com alimento tirado de pequenas vasilhas que trouxeram consigo. Começou Marta a falar ao povo, que se lhe juntava em roda e disse-Ihes como tinham chegado ali. Falou também de Jesus em tom muito vivo e comovido. Mais tarde vi que alguns Ihes jogavam pedras, para os afastar dali; mas as pedras não os feriam e eles ficaram tranqüilamente sentados, até a manhã seguinte. No entanto começaram os outros também a falar e já Ihes aderiam várias pessoas. Na manhã seguinte vieram uns homens de uma casa grande, que eu tomei pela câmara municipal; interrogaram-nos acerca de muitas coisas. Ainda ficaram um dia inteiro sob a arcada, falan- do com os transeuntes, que se Ihes juntavam em roda. Ao terceiro dia foram todos conduzidos àquela casa e apresentados ao prefeito da cidade e depois separados. Os homens ficaram com o prefeito, na câmara; as mulheres foram conduzidas a outra casa da cidade; tratavam-nos bem e davam-Ihes de comer. Vi que ensinavam em qualquer parte que chegavam e que o prefeito mandou proclamar por toda a cidade que ninguém fizesse mal a essa gente. Dentro em pouco muitos pediram o santo batismo; Lázaro batizava numa grande pia

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que havia na praça pública, diante do templo, o qual em pouco tempo estava quase abandonado. Creio que o prefeito da cidade também se deixou batizar. Vi também que não ficaram muito tempo juntos; Lázaro, como bispo, continuou a pregar a doutrina.” Marta, com as duas meninas, suas criadas, dirigiu-se a uma região deserta, montanhosa, perto da cidade moderna de Aix, onde habitavam algumas escravas pagãs, que se converteram e onde construíram mais tarde um convento e uma Igreja. Havia, porém, no rio daquela região um monstro, que dava grandes prejuízos. Marta encontrou-o à ribeira, devorando justamente um homem. Ela venceu o monstro, lançando-lhe o cinto em roda do pescoço, em nome de Jesus e estrangulou-o e o povo, acorrendo, acabou de matá-Io. "Marta pregava o Evangelho muitas vezes diante de grande multi-dão de povo, na campina e à margem do rio. Costumava para isso construir um púlpito de pedras, com auxílio das companheiras; colocavam as pedras em forma de escada; por dentro era como uma abóbada. Em cima colocavam uma pedra larga, sobre a qual ela pregava. Ela sabia fazer essa construção melhor do que um pedreiro, pois era muito ativa e empreendedora. Uma vez estava ensinando sobre o tal montão de pedras, à margem do rio, quando um jovem tentou atravessar o rio a nado, para a ouvir; a corrente, porém, levou-o e ele morreu afogado. Injuriaram-na por isso os habitantes da região, acusando-a também de ter convertido aquelas escravas. Tendo o pai do rapaz afogado encontrado o cadáver do filho, trouxe-o na presença de muito povo e, colocandoo aos pés de Marta, disse que creria no seu Deus, se ela desse novamente vida ao filho. Vi que Marta ordenou ao cadáver, em nome de Jesus, que voltasse à vida e que se levantou vivo. O ressuscitado, o pai e muito povo tornaram-se cristãos. Outros, porém, perseguiram Marta como feiticeira. Um dos companheiros, que com ela viera da Palestina, vinha visitá-Ia e dava a ela a sagrada Comunhão. Marta trabalhava e ensinava, convertendo muitos.” Quando Madalena se separou de Marta, retirou-se sozinha para uma região deserta, bem longínqua, onde vivia numa gruta. Maximino ia às vezes lá, encontrando-a em meio caminho, para dar-lhe a sagrada Comunhão. Morreu pouco antes de Marta e foi também sepultada no convento de Santa Marta. Sobre a gruta construiu Maximino uma Igreja. 16 Glorificação de Jesus pelos Santos 1. O santo Papa Clemente. Morto em 101 D.C. 2. Santo Inácio de Antioquia. 107 D.C. 3. S. Dionísio Areopagita

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4. Santa Inês. (21 de Janeiro) 5. Santa Ágata. (5 de Fevereiro) 6. Santa Dorotéa (6 de Fevereiro) 7. Santa Apolônia (9 de Fevereiro) 8. Santa Cecília (22 de Novembro) 9. Santa Catarina de Alexandria. (25 de Novembro) Glorificação de Jesus pelos Santos Em honra de Nosso Salvador crucificado seguem aqui algumas informações da piedosa Serva de Deus, sobre alguns discípulos dos Apóstolos e algumas Virgens mártires da primeira era cristã, que por amor ao esposo celestial sacrificaram alegremente os bens da vida. Segundo o dito afamado de Tertuliano: "O sangue dos mártires é a semente de que brotam novos cristãos", colaboraram os mártires de modo especial na propaganda do reino de Cristo. Por isso podemos considerar os santos cuja vida e martírio contamos nas páginas seguintes, como cooperadores na instituição da santa Igreja e que seguirão logo após os Apóstolos, no séquito triunfal do divino Portador da cruz. O leitor poderá reconhecer, ao mesmo tempo, que as visões da religiosa privilegiada de Dülmen confirmam a maior parte das legendas desses santos. 1. O santo Papa Clemente. Morto em 101 D.C.. É altamente como vente o que a piedosa freira conta do santo Papa Clemente, cuja festa a Igreja celebra a 23 de Novembro. "Não vi São Clemente junto com São Paulo, mas sim freqüentemente c6m Barnabé, também com Timóteo, Lucas e Pedro. Era romano; os avós, porém, eram judeus, oriundos da região fronteira do Egito. Era casado, mas recebeu uma iluminação do céu para viver em continência; a mulher que, se bem me lembro, morreu também mártir, consentiu em fazer o mesmo. Foi o terceiro Papa, depois de Pedro. Vi São Clemente como Papa, pouco antes da perseguição. Estava indizivelmente magro e pálido; tinha quase um aspecto tão lastimoso como Nosso Senhor na cruz: as faces abatidas, a boca contraída pela tristeza por causa da cegueira e falsidade do mundo. Vi-o ensinar numa sala, sentado numa cadeira. Os ouvintes estavam muito diferentemente dispostos: alguns tristes e comovidos, outros apenas se fingiam tristes, escondiam a alegria de saber dos sofrimentos iminentes do Pontífice; outros ainda vacilavam nos sentimentos. Vi então entrar soldados romanos, prendendo São Clemente. Arrastando-o para fora, puseram-no num carro. Na parte posterior desse carro havia um assento coberto, onde se sentava Clemente; na parte anterior havia mais lugares,

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mas sem coberta. Seis soldados seguiram no carro com ele; outros acompanhavam o carro, dos dois lados. Os cavalos eram menores que os de hoje e estavam também atrelados de modo diverso; não havia tantas correias. Vi o santo viajando no carro dia e noite. Estava muito paciente e triste. Quando chegaram ao mar, foi embarcado no navio e o carro voltou. Depois tive uma visão do país para onde foi levado. Era uma região pobre, deserta e estéril, onde havia muitas minas profundas. Tudo era de um aspecto triste e sinistro. Clemente foi conduzido a uma casa, com duas salas, das quais uma se encostava no centro da outra; cada ala era cercada de arcadas; por uma dessas entrou Clemente e foi conduzido à parte da casa onde moravam os diretores; depois foi levado à outra, onde se achavam os presos. Vi São Clemente num deserto, pedindo água em oração. Então veio um raio de luz do céu, que se estendeu como um porta-voz e deste raio saiu um cordeirinho que, com um dos pés, entregou uma vara afiada embaixo como uma flecha. Na terra, embaixo, estava deitado outro cordeiro. Clemente tomou a vara e fincou-a na terra e imediatamente brotou água do orifício. Os dois cordeiros desapareceram no mesmo instante. Clemente tinha rezado ao Santíssimo Sacramento do Altar. Todos quantos bebiam dessa água, sentiam vivo desejo do Santíssimo Sacramento. Clemente converteu e batizou muitos. Vi que foi lançado numa fossa cheia de víboras, perto do mar; depois fizeram enchê-Ia de água. Mas Clemente saiu por meio de uma escada. Vi que o levaram ao mar alto, num barco e com uma âncora presa ao pescoço e o lançaram ao mar. No lugar onde o corpo tocou no fundo, formou-se na rocha um sepulcro que, ao reflexo do mar, se tomava visível. Os cristãos formaram do rochedo uma capela em redor do sepulcro, a qual muitas vezes ficava coberta pelo mar.” 2. Santo Inácio de Antioquia. 107 D.C. De Santo Inácio, bispo de Antioquia, conta-nos Anna Catharina Emmerich, o seguinte: "Vi Jesus, com os discípulos, diante de uma casa de uma pequena cidade, mandando um dos discípulos à casa em frente, para chamar uma mulher com o filhinho, a qual, vindo, lhe trouxe o filho, que podia ter três ou quatro anos. Tendo o menino chegado diante do Senhor, fechou-se o círculo dos Apóstolos, que se abrira para deixar o menino entrar. Jesus falou a respeito deste, impôs-lhe as mãos, abençoou-o e apertou-o ao coração. Depois o reconduziram à mãe, que se tinha retirado. Esse menino não era outro senão o futuro Santo Inácio. Era um menino muito bom e ficou inteiramente mudado pela bênção

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de Jesus. Vi-o freqüentemente no lugar onde Jesus o abençoara e beijando o chão, dizia: "Aqui estava o varão santo." Vi-o, brincando com outros meninos, escolher apóstolos e discípulos e passear com eles, ensinando-Ihes à moda infantil, imitando assim em tudo o Senhor. Vi-o também reunir os outros meninos no lugar da bênção, contando-Ihes o que lhe acontecera e mandando que beijassem também o chão. Os pais viviam ainda, vi-os muito comovidos pelos modos do menino; converteram-se depois e tornaram-se cristãos. Mais tarde, já moço, juntou-se aos discípulos do Senhor, particularmente a João, a quem era afeiçoado e que o ordenou sacerdote. Quando João esteve pela primeira vez no exílio, acompanhou-o lnácio, que não o quis abandonar. Morto Evódio, que era sucessor de Pedro em Antioquia, foi lnácio sagrado bispo dessa cidade, creio que por João ou por Pedro. Vi passar pela cidade um Imperador, a quem Inácio foi apresentado. O Imperador perguntou-lhe se era ele que, como um mau espírito, causava tantas discórdias. Inácio respondeu, perguntando-lhe como podia chamar de mau espírito ao portador de Deus, que trazia Jesus no coração? O Imperador perguntou-lhe então se sabia quem ele era e o santo replicou: que era o primeiro enviado hoje pelo demônio. O Imperador condenou-o então à morte em Roma e Inácio agradeceu-lhe alegremente. Vi o preso conduzido a uma outra cidade, onde embarcou. Acompanhavam-no sol dados, que o tratavam muito mal. Depois o vi desembarcar novamente e por onde passava lhe vinham ao encontro muitos bispos e cristãos, que o saudavam e lhe pediam a bênção. Em Smirna morava em casa do bispo Policarpo, que dantes tinha sido seu condiscípulo; estavam todos reu nidos com alegria e Inácio exortava e consolava a todos. Escreveu também cartas ali. Ouvi que disse e também escreveu que rezassem por ele, para que as feras o mastigassem e os dentes das mesmas fossem como mós de moinho, que o triturassem, para ficar qual farinha de trigo, afim de se tornar um pão puro de Jesus Cristo, para o sacrifício. Também os cristãos de Roma lhe vieram ao encontro, ajoelharam-se, chorando, diante dele e pediram-lhe a bênção. Inácio repetiu que queria ser triturado para o sacrifício do Senhor. A multidão dos cristãos formava como um cortejo triunfal. Vi que foi logo conduzido ao lugar do suplício, onde rogou a Deus que os leões o deixassem rezar ainda um pouco e depois o devorassem inteiramente; apenas o coração e alguns ossos deixassem, para que aumentassem ainda mais a glória de Cristo na terra. Por ocasião desta súplica, me foi feita uma exortação, a respeito da importância e do valor das relíquias. Como pedira, assim sucedeu: os leões lançaram-se-Ihe com grande fúria; mataram-no num instante, devorando-o rapidamente e lambendo-lhe o sangue; em breve não restava mais que alguns ossos grandes e o coração.

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Vi que os leões foram retirados da arena, os espectadores também se retiraram; os cristãos, porém, correram ao lugar, esforçando-se para obter algo das relíquias. Todos olhavam para o coração, no qual se tinham formado as letras do nome de Jesus, como tinha sido escrito no título da cruz, em cor azul, pela dilatação de nervos e veias." A festa de Santo Inácio celebra-se a 1º. de Fevereiro. 3. S. Dionísio Areopagita Dionísio, apelidado o Areopagita, era filho de pais gentios, mas estudava muito, recomendando-se a um Deus mais perfeito. Avisado de noite por uma aparição, fugiu da casa paterna, atravessando a Palestina, onde ouviu muitas coisas sobre Jesus e depois estudou no Egito a astronomia. Ali, observando o eclipse do sol por ocasião da mort~ de Jesus, disse: "Isso não é fenômeno natural; ou está morrendo um Deus ou o mundo perece.” "Por muito tempo não podia compreender a idéia de um Deus crucificado. Depois da conversão, viajou muito tempo com Paulo e esteve também com ele em Éfeso, para ver Maria. O Papa S. Clemente enviou-o a Paris. Vi que consolava os companheiros no cárcere e que Jesus lhe apareceu, dizendo-lhe: "Segue magnanimamente o teu caminho do martírio, que te leva a mim; olha que eu também percorro o meu caminho de dores em ti." Vi-lhe também o martírio. Tomou a cabeça cortada, segurando-a com os braços cruzados sobre o peito e andou em volta do monte. Todos os carrascos fugiram; irradiava-se dele uma luz clara. Uma mulher sepultou-o. Era muito idoso, tinha muitas visões celestes e tam-bém Paulo lhe contou o que tinha visto em êxtase. Escreveu muitos e belos livros, dos quais ainda existe grande parte. O livro dos Sacramentos não acabou de escrever; fê-Io outro, em seu lugar." Em outra ocasião, conta Catharina Emmerich: "Vi o livro de Dionísio com muitas letras de ouro, mas tão estragado e maltratado, que me entristeceu na verdade." A sua festa é celebrada a 9 de Outubro. 4. Santa Inês. (21 de Janeiro) "Vi uma virgem jovem e graciosa, arrastada no meio de soldados. Vestia uma longa veste de lã, de cor parda; um véu cobria-lhe a cabeça, que o cabelo envolvia em tranças. Os soldados arrastavam-na, segurando-a pelos lados do manto, de modo que a veste ficava muito distendida. Seguia muito povo, entre o qual também algumas mulheres. Levaram-na pela porta de um muro alto, através de um pátio quadrado, a um quarto. Empurrando a virgem para dentro, puxaram-na para todos os lados, arrancando-lhe o

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manto e o véu. Com sua mansidão e inocência era como um cordeiro nas mãos dos carrascos. Tomando o manto, abandonaramna. Inês ficou em pé, num canto, no fundo do quarto, olhando para cima e com as mãos postas, rezando tranqüilamente. Entraram primeiro dois ou três jovens. Avançando furiosos para ela, arrancaram-lhe o vestido do corpo. Nesse momento lhe caíram os longos cabelos e vi aparecer-lhe por cima, voando, um jovem resplandecente (um Anjo) e derramar-lhe em redor uma onda de luz, como uma veste. Os homens assustados deitaram a fugir. Então entrou correndo, um jovem impertinente, que a tinha perseguido com seu amor, rindo-se da covardia dos outros. Quis tocá-Ia, mas Inês segurou-lhe as mãos e empurrou-o para trás. Ele caiu, mas levantou-se no mesmo momento e arremessou-se furioso contra a virgem. Esta, porém, o atirou novamente para trás, até a porta do quarto, onde caiu por terra, imóvel. Inês, porém, tranqüila como dantes, rezava, resplandecente, na flor da mocidade; o rosto era-lhe como uma rosa luminosa. Aos gritos dos outros, acorreram alguns homens, entre os quais também um que parecia ser o pai do moço que jazia por terra. Estava indignado e furioso, falando em feitiçaria; ouvindo-a, porém, dizer que conseguiria restituir-lhe a vida, se a pedisse em nome de Jesus, acalmou-se e pediu-lhe que o fizesse. Então falou Inês ao morto e este se levantou e foi conduzido pelos outros para fora, ainda cambaleando. Passando algum tempo, vi de novo soldados, que entraram no quarto, trazendo-lhe um vestido de cor parda, aberto nos lados e atado com um cordão e um véu ordinário, como os recebiam sempre os mártires. Vestiu-os, enrolou o cabelo em volta da cabeça e foi assim conduzi da ao lugar do suplício. Era um pátio, cercado de muralhas grossas, nas quais havia cárceres e quartos. Podia-se subir por este muro e olhar para o largo; havia gente lá em cima. Foram levadas também outras pessoas ao suplício, vindas de uma cadeia situada não muito longe do lugar onde Inês fora maltratada; creio que eram um avô, os dois genros e os filhos destes; estavam amarrados uns aos outros com cordas. Quando chegaram diante do Juiz, que estava sentado num assento alto, de pedra, no pátio quadrado, foi Inês conduzida perante o magistrado, que a interro- gou e exortou amavelmente; depois interrogou e exortou também os outros. Estes tinham sido trazidos para serem interrogados e para assistirem ao martírio de Inês. As mulheres desses homens ainda eram pagãs. Depois de interrogados vários presos, um após outro, foi Inês conduzida novamente ao juiz e assim por três vezes. Depois foi conduzida a um posto, subindo três degraus e onde a quiseram amarrar; ela, porém, não o permitiu. Em roda havia um montão de lenha, que foi acesa. Vi, porém, de novo, pairando sobre Inês uma figura, que derramou sobre ela uma torrente de luz, formando um escudo, pelo que as chamas da fogueira, desviando-se,

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se lançaram contra os carrascos, ferindo vários deles. Ela, porém, ficou ilesa. Os carrascos tiraram-na e levaram-na novamente ao juiz. Foi colocada sobre um cepo ou uma pedra; quiseram atar-lhe as mãos, mas não o quis; pousou-as no regaço. Vi uma figura resplandecente diante dela, segurando-lhe os braços. Então lhe pegou um dos carrascos no cabelo e decepou-lhe a cabeça, como tinham feito a Cecília; a cabeça pendia-lhe ainda num dos ombros. Lançaram-lhe o corpo, assim mesmo vestido, à fogueira. Vi durante o julgamento amigos da mártir, de longe e chorando. Parecia-me muitas vezes um milagre que tais amigos compassivos, que socorriam e consolavam os mártires, não fossem maltratados. O corpo e, creio, até o vestido, não se queimaram. Eu lhe tinha visto a alma sair do corpo, branca como a lua e subir ao céu. A execução teve lugar, se bem me lembro, antes do meio-dia e ainda durante o dia lhe tiraram os amigos o corpo da fogueira e sepultaram-no honrosamente. Muitas pessoas assistiram ao enterro; estavam todas veladas, talvez para não serem conhecidas. Creio que vi o jovem curado por ela, no lugar do suplício; ainda não se convertera. Vi, fora da visão, ao meu lado, a aparição de Santa Inês, luminosa e resplandecente, com a palma na mão. O esplendor que a cercava, era de cor vermelha no centro e por fora se tornava azul. Consolou-me alegremente nas minhas, veementes dores, dizendo: "Sofrer com Jesus, sofrer em Jesus é doce". 5. Santa Ágata. (5 de Fevereiro) "Os pais de Ágata moravam em Palermo; a mãe era ocultamente cristã, o pai era pagão. Vi que a mãe lhe ensinava às escondidas a doutrina cristã. Tinha duas alas. Desde os primeiros anos da infância, alimentava grande intimidade com Jesus. Vi-a muitas vezes sentada no jardim e junto dela um menino belíssimo e resplandecente, com quem falava e brincava. Preparava-lhe um assento cômodo na relva e de mãos postas o ouvia pensativa. Brincavam com flores e pauzinhos. O menino parecia crescer junto com ela. Vinha vê-Ia também mais tarde, quando mais crescido, à proporção que ela crescia, mas quando estava sozinha. Vi como Ágata se tornou maravilhosamente pura e forte de coração; cooperava sempre com a graça, negando consentimento mesmo às me- nores impurezas e imperfeições e castigava-se a si mesma pelas últimas. Ao deitar-se, à noite, estava o Anjo da guarda muitas vezes ao lado, lembrando-lhe o que tinha esquecido e ela con-ia a fazê-Io. Era uma oração ou esmola ou qualquer coisa referente ao amor, pureza, humilda de, obediência, misericórdia, vigilância contra o pecado. Desde criança, se esgueirava muitas vezes furtivamente, com esmolas e alimentos para os pobres. Era uma

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alma belíssima e muito querida de Jesus, mas em contínua luta. Vi-a açoitar-se e beliscar-se, para punir a concupiscência e as menores faltas. Com todas essas severidades, permanecia entretanto sempre franca, corajosa e desembaraçada. Quando tinha cerca de oito ou nove anos, vi-a levada com algumas outras meninas, num carro, a Catânea. Ia por vontade do pai, que queria que recebesse uma educação livre pagã. Foi entregue a uma mulher impertinente, que tinha ainda cinco filhas em casa. Estas faziam todo o esforço possível para desviar Ágata da virtude. Vi-as passearem com ela em belos jardins, mostrando-lhe lindos vestidos e jóias; mas a menina conservava-se sempre a mesma, sem manifestar nenhum interesse por tais coisas. Vi o menino celeste ainda muitas vezes junto dela e a menina tornava-se cada vez mais séria e firme. Era muito bonita, não muito alta, mas de formas perfeitas. Tinha o cabelo preto, grandes olhos escuros, o nariz de forma bonita, o rosto de um belo oval; tinha um gênio suave, mas firme, manifestando em todo o seu ser uma admirável fortaleza da alma. Vi que a mãe morreu de tristeza e saudade, durante a ausência da filha. Em casa da mulher vi como Ágata combatia com coragem e fiel perse- verança a sua natureza, resistindo a todas as tentações. Quintiano, que a condenou mais tarde ao martírio, vinha freqüentemente a esta casa. Não gostava da esposa, era um homem repugnante, de um gênio baixo e orgulhoso, andava a espreitar em toda a cidade, para depois atormentar ou intrigar as pessoas. Vi-o com aquela mulher e olhando às vezes para Ágata, como se olha uma menina bonita; não a tratava, porém, de modo inconveniente. Vi então ao lado de Ágata o Esposo celeste, visível só para ela. Mostrava-lhe os instrumentos do martírio, creio mesmo que brincavam com estes. Mais tarde a vi novamente na cidade natal após a morte do pai. Tinha cerca de treze anos. Confessava em público a fé cristã e vivia com gente boa. Vi que foi tirada de casa por homens enviados por Quintiano; veio de novo para a casa daquela mulher, onde tinha novamente aparições do Esposo celeste. Vi também como a mulher tentava de todos os modos seduzir Ágata, com lisonjas, prazeres e divertimentos; ouvi como Ágata uma vez lhe respondeu conforme a doutrina do Esposo divino; quando a mulher quis seduzí-Ia com palavras para uma licenciosidade, respondeu-lhe: "O teu corpo e sangue são criaturas de Deus, como a serpente também o é; mas o que fala em ti é o demônio." Vi as freqüentes visitas de Quintiano à casa dessa mulher e conheci-lhe muito também dois amigos. Depois vi Ágata ser lançada no cárcere, interrogada e açoitada. Cortaram-lhe os seios. Vi muitas vezes nos martírios o instrumento com que o fizeram e com o qual arrancavam grandes pedaços de carne dos corpos dos santos. Mas estes sentiam um auxílio milagroso de Jesus, que muitas vezes vejo refrigerá-Ios.

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Assim não desfaleciam, quando outros teriam caído desmaiados. Vi Ágata depois no cárcere, onde lhe apareceu um ancião, dizendo que viera curar-lhe os seios. A donzela respondeu, agradecendo, que nunca usara remédios terrenos e que tinha o seu Senhor Jesus Cristo, que a poderia curar, se quisesse. Disse-lhe o ancião: "Sou cristão e já muito velho, não tenhas medo de mim." Ágata, porém, respondeu-lhe: "As minhas feridas não têm nada que ofenda a castidade. Jesus curarme-á, se for sua vontade; Ele criou o mundo e pode também criar os meus seios." Então vi o ancião sorrir, dizendo: "Pois sou o servo d’Ele, eis que os teus seios já estão curados" - e então desapareceu. Ágata foi conduzida mais uma vez ao martírio. Num quarto abobadado havia fogões, sob os quais faziam fogo; tinham o feitio de caixotes profundos e nos lados interiores havia muitas pontas agudas e cortantes. Estavam ali muitos desses caixões, um ao lado do outro. As vezes eram diversos homens que neles eram torturados. Podia-se passar por entre os caixões, sob os quais ardia o fogo e assim eram assados vivos os que neles estavam deitados sobre cacos cortantes. Quando Santa Ágata foi lançada "num tal caixão, tremeu a terra, um muro desabou, matando os dois amigos de Quintiano. O povo amotinou-se, ameaçando Quintiano, que fugiu. A santa Virgem foi levada novamente ao cárcere, onde morreu. Quanto a Quintiano, morreu afogado num rio, quando estava fazendo uma viagem para confiscar os bens de Ágata. Vi também, numa época posterior, que um monte vomitava fogo e que o povo fugia diante da massa ardente, para o sepulcro de Ágata, opondo a tampa do sepulcro ao fogo, que se extinguiu.” Santa Ágata, Santa Petronila e Santa Tecla foram as três virgens mártires mais heróicas, segundo diz a piedosa vidente. Santa Petronila, que era enteada de São Pedro, contribuiu muito para a propagação do reino de Cristo; comemora-se-Ihe a festa no dia 31 de Maio. Santa Tecla era discípula de S. Paulo; celebra-se-Ihe a festa a 23 de Setembro. 6. Santa Dorotéa (6 de Fevereiro) "Vi uma cidade importante, situada numa região montanhosa, (Cesaréia, na Capadócia) e no jardim de uma casa de estilo romano, vi brincando três meninas, de 5 a 8 anos. Seguravam-se umas às outras pelas mãos, ora dançando em roda, ora parando, cantavam e colhiam flores. Depois de ter brincado por algum tempo, vi as duas meninas mais velhas separarem-se da mais nova, afastando-se com as flores, que depois desfolharam. A pequena parecia afligir-se muito, vendo as outras se afastarem para o outro lado do jardim. Vi que a menina abandonada ficou com uma profunda dor no coração, da qual eu compartilhava. O rosto empalideceu-lhe e ao mesmo tempo o vestidinho se lhe tornou branco como a neve e

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ela caiu como morta no chão. Então ouvi uma voz no coração: "Esta é Dorotéa." Vi no mesmo instante se lhe aproximar a aparição de um menino resplandecente, que tinha na mão um ramalhete de flores, levantou-a e conduzindo-a ao outro lado do jardim, entregou-lhe o ramalhete e desapareceu. A menina ficou muito contente e corren-do para as duas outras, mostrou-Ihes as flores, contando quem lhas tinha dado. Estas se admiraram muito, abraçaram a pequena, parecendo arrepender-se da ofensa, de modo que a paz se restabeleceu entre elas. A vista disso, nasceu no meu coração o desejo de receber também mais uma vez tais flores, para me confortar. Apareceu-me então de repente Dorotéa, como virgem, exortando-me com belas palavras a fazer uma boa preparação para a Santa Comunhão e disse-me: "Como é que desejas tanto as flores, recebendo tantas vezes a flor das flores?" Explicou-me também a significação daquela visão das meninas, que se referia àapostasia e conversão das duas meninas mais velhas. Depois tive uma visão da morte da mártir. Vi-a, com as duas irmãs, num cárcere e vi que tinham uma questão. As duas irmãs negavam-se a morrer por Cristo e foram postas em liberdade. Depois vi Dorotéa diante do juiz, que a mandou levar às duas apóstatas, na esperança de fazê-Ia seguir-lhe o exemplo e ser seduzida pelas palavras das pecadoras. Mas ao contrário, Dorotéa fê-Ias voltar à fé cristã. Foi então amarrada a um poste. Rasgaram-lhe a carne com ganchos, queimaram-lhe os lados com fachos e afinal foi degolada. A vista disto, vi converter-se um jovem (Teófilo), que a tinha escarnecido no caminho do suplício e a quem ela respondera algumas palavras. Vi diante dele a aparição de um menino resplandecente, trazendo flores e frutas. O moço arrependeu-se e con fessou abertamente a fé cristã; sofreu também o martírio e foi decapitado. Junto com Dorotéa, foram muitos outros torturados e queimados.” 7. Santa Apolônia (9 de Fevereiro) "A cidade em que Apolônia sofreu o martírio, estava situada sobre uma ponta de terra. Os numerosos ramos pelos quais o Nilo se derrama no mar, não ficam mui longe dali. É uma cidade vasta e bela (Alexandria), na qual se achava a casa paterna de Apolônia, cercada de pátios e jardins, num largo elevado. Presenciou-lhe o martírio uma viúva idosa, de estatura alta. Os pais eram pagãos; ela, porém, já fora instruída desde criança na doutrina cristã e batizada pela ama, que era uma cristã oculta. Depois de crescida, foi casada pelos pais com um pagão, com quem vivia na casa paterna. Tinha muito que sofrer e a vida matrimonial era-lhe uma penitência penosa. Via se prostrada por terra, banhada em lágrimas, rezando e cobrindo a cabeça de cinza. O

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marido era um homem alto e magro e muito pálido; morreu muito antes dela. Apolônia viveu ainda cerca de trinta anos após a morte do esposo, como viúva sem filhos. Fazia muitas obras de misericórdia aos pobres cristãos e era a consolação e esperança de todos os necessi tados. A ama sofreu também o martírio, um pouco antes dela. Foi por ocasião de um tumulto, em que foram saqueadas as casas dos cristãos e destruídas pelo fogo, sendo mortos também muitos cristãos. Vi Apolônia mais tarde, presa em casa, por ordem do Juiz, conduzi da ao tribunal e depois lançada no cárcere. Vi que foi conduzida repetidas vezes para diante do juiz, sendo cruelmente maltratada, por causa das palavras severas e decididas com que confessava a fé cristã. Era um espetáculo que feria o coração e eu não podia deixar de chorar amargamente, ao passo que podia ver outros martírios, muito maiores, com grande calma. Talvez fosse a idade e o aspecto venerável da mártir o que me comovia. Davam lhe pancadas com maças, batiam-lhe no rosto e na cabeça com pedras. Esmagaram-lhe o nariz, o sangue corria-lhe da cabeça, as faces e a boca estavam rasgadas, os dentes tinham-lhe saltado fora, com as pancadas. Vestia a veste branca, com os lados abertos, com a qual tantas vezes tenho visto os mártires. Por baixo tinha uma camisa de lã. Estava sentada num assento de pedra sem encosto, as mãos amarra-das atrás na pedra e também os pés atados. Tinham-lhe arrancado o véu, o longo cabelo pendia-lhe solto em redor da cabeça. O rosto estava todo desfigurado e coberto de sangue. Um dos carrascos segurava-a por detrás, puxando-lhe a cabeça, outro lhe abria a boca ferida, introduzindo-lhe à força na mésma um pedaço de chumbo. Depois lhe arrancou o carrasco um dente após outro com um grosso tenaz, quebrando-lhe ainda pedaços da mandíbula. Durante essa tortura, em que Apolônia sofreu até cair desmaiada, vi que Anjos, almas de santos mártires e também a aparição de Jesus a consolavam e confortavam e que implorou e recebeu a graça de tornar-se protetora contra dores de dentes, de cabeça e do rosto. Como não deixava de louvar a Jesus e desprezar os sacrifícios dos ídolos, mandou o juiz que fosse conduzida à fogueira e se não mudasse de convicção, lançada ao fogo. Vi que não podia mais andar sozinha; estava já semi-morta. Dois carrascos levantaram-na pe-los braços e arrastaram-na a um lugar elevado e plano, onde ardia uma fogueira, numa fossa. Diante da fogueira, parecia pedir uma coisa. Não podia mais levantar a cabeça. Os pagãos julgaram que quisesse negar Jesus ou que vacilasse na fé e soltaram-na. Ela, porém, caiu por terra moribunda. Rezou, mas de repente se levantou e deitou-se nas chamas. Durante todas as torturas vi muita gente pobre, à qual Apolônia socorrera, durante tantos anos: torciam as mãos, choravam e lamentavam. Por si mesma não teria podido lançar-se no fogo, recebeu a força e inspiração de Deus. Vi que

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não foi consumida pelo fogo, mas assada. Depois que morreu, os pagãos abandonaram o lugar. Os cristãos aproximaramse ocultamente, tiraram o corpo sagrado e sepultaram-no num lugar abobadado.” 8. Santa Cecília (22 de Novembro) "A casa paterna de Cecília estava situada num lado de Roma. Tinha o mesmo feito da casa de Santa Inês, com pátios, arcadas e um chafariz. Os pais não os vi muitas vezes. Vi Cecília, muito bonita, meiga e viva, de faces vermelhas e rosto delicado, quase como Maria. Vi-a brincar com outras crianças nos pátios. Quase sempre estava com ela um Anjo, na figura de um menino gracioso; falava-lhe e o via, mas as outras crianças não o viam. Proibira-lhe de falar dele. Muitas vezes eu via junto dela crianças, à cuja aproximação o Anjo se afastava. Tinha cerca de sete anos. Vi-a também sozinha no quarto e o Anjo ao lado, ensinando-a a tocar um instrumento de música, colocando-lhe os dedos nas cordas ou segurando uma folha de papel. Ora tinha uma caixa encordoada sobre os joelhos e o Anjo pairava-lhe em frente, segurando um rolo de pergaminho, para o qual ela olhava; ora tinha um instrumento parecido com o violino, encostado ao ombro e ao pescoço; com a mão direita tangia as cordas e cantava para dentro do instrumento, que tinha uma abertura coberta como de uma pele. Produzia um som suavíssimo. Vi também muitas vezes com ela um menino, de nome Valériano e o irmão mais velho, como também um homem vestido de um longo manto branco, que morava perto e julgo ser aio do menino que brincava com Cecília e parecia ser educado com ela e destinado a ela. Vi, porém, uma ama de Cecília, que era cristã e por intermédio da qual travou conhecimento com o Papa Urbano. Vi Cecília e as companheiras encherem muitas vezes de víveres e frutas as dobras das vestes, que arregaçavam depois do lado e cobriam com os mantos. Assim carregadas, saiam juntas furtivamente pela porta, para que ninguém notasse coisa alguma. Vi o Anjo de Cecília acompanhá-Ia sempre, o que era um quadro muito gracioso. Vi as crianças irem a um edifício, cercado de grandes torres, muros e diques. Dentro desses muros e em subterrâneos abobadados, viviam cristãos encarcerados. Não me lembro com certeza se estavam encarcerados ou apenas escondidos; parecia-me, porém, que os pobres que moravam nas estradas, eram guardas ou cuidavam do esconderijo. Lá vi as crianças repartindo entre os pobres o que tinham trazido; faziam-no furtivamente. Vi que Cecília prendia as saias às pernas por meio de uma fita e assim deslizava pelo íngreme aterro abaixo. Ali a deixavam entrar nos subterrâneos e uma vez a fizeram penetrar, por uma abertura redonda, num subterrâneo, onde um homem a levou a Santo Urbano. Vi que este

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lhe ensinava, lendo rolos e que ela levava e também trazia tais rolos de escritura, sob o manto. Tenho também uma lembrança vaga de que foi batizada lá embaixo. Vi uma vez Valériano, já moço, com o preceptor, entre as moças que brincavam; quis abraçar Cecília durante o brinquedo, mas esta o repeliu. O jovem queixou-se ao preceptor, que o contou aos pais da donzela. Não sei o que estes lhe disseram, mas castigaram Cecília, proibindo-lhe de sair do quarto. Lá vi sempre o Anjo com ela, ensinando-a a tocar o instrumento e cantar. Finalmente tive também uma visão dos esponsais de Cecília. Vi os pais de ambos e muitos outros homens, mulheres, meninos e meninas numa sala, onde se viam belas estátuas. Cecília e Valériano estavam adornados de grinaldas e vestes festivas, de cor. Havia também uma mesa baixa, carregada de iguarias. O Anjo ficava sempre entre Cecília e o noivo. Depois os vi a sós num quarto. Cecília disse que era sempre acompanhada por um Anjo e como Valériano quisesse vê-Io, respondeu que não o podia sem ser batizado. Quando o mandou procurar Santo Urbano, já seguira com o esposo para outra casa.” Em outra ocasião conta Catharina Emmerich: "Vi a Santa sentada num quarto muito s\~ples, quadrangular. Tinha sobre os joelhos uma caixa triangular, da (altura de algumas polegadas, encordoada, na qual tocava com ambas as mãos; erguia os olhos e sobre ela se via um esplendor e pairavam entes luminosos, como Anjos ou crianças bem-aven turadas, cuja presença Cecília parecia sentir. Vi-lhe também ao lado um Jovem, sumamente puro e delicado; era mais alto do que ela, mas sujeitava-se-Ihe humilde, obedecendo-lhe às ordens. Creio que era Valériano, pois mais tarde o vi amarrado com outro (Tibúrcio) a um poste, flagelado com açoites e decapitado. Não se realizou este martírio na praça grande do suplício, mas num lugar mais deserto. Vi também o martírio de Santa Cecília, num pátio circular, diante da casa. A casa era quadrangular, com terraço, sobre o qual se podia passear; nos quatro cantos havia quatro esferas de alvenaria e no centro, creio que uma estátua. No pátio tinham colocado uma caldeira grande, aquecida por uma forte fogueira e na qual vi sentada a virgem, com os braços estendidos, vestida de branco, resplandecente e alegre. Um Anjo, irradiando uma luz vermelha, estendia-lhe a mão, outro segurava-lhe uma coroa de flores sobre a cabeça. Tendo uma lembrança obscura de ter visto um animal cornudo, que parecia uma vaca brava, mas não como as vacas de nosso tempo; foi conduzido pela porta do pátio e através deste a um buraco escuro. Cecília foi depois tirada da caldeira e três vezes golpeada no pescoço, com uma espada curta e larga. Mas não vi senão a espada. Vi-a também viva ainda, apesar de ferida e falar com um sacerdote velho, que eu já tinha visto antes, em casa da mártir. Mais tarde vi a casa transformada em Igreja; vi lá

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conservadas muitas relíquias, inclusive o corpo da Santa, do qual, porém, de um lado, tinham sido tiradas muitas partes. Havia Missa nessa Igreja.” Santa Cecília apareceu na sua festa de 1819 à piedosa serva de Deus, para a consolar na perseguição que contra ela se levantara. "Pedi a Santa Cecília que me consolasse e no mesmo momento tive a aparição. Era comovente. A cabeça, separada por uma larga ferida do pescoço, estava inclinada sobre o ombro esquerdo. Não era alta, tinha cabelos e olhos pretos, cútis branca, era bela e delicada. Vestia uma veste branca, mas não branqueada, com grandes e grossos florões dourados, com a qual provavelmente foi martirizada. Disse-me mais ou menos o seguinte: "Tem paciência. As tuas faltas Deus as perdoará, se te arrependeres. Não fiques tão abatida por ter dito a verdade aos teus perseguidores. Quem é inocente, pode falar com toda a franqueza aos inimigos. Também falei com severidade aos meus inimigos e quando me falaram da flor da mocidade e das flores de ouro do meu vestido, respondi-Ihes que as estimava tão pouco como o pó de que eram feitos os seus ídolos e que queria ouro em troca desse lodo. Vê, com esta ferida ainda vivi três dias e gozei do consolo do servo de Jesus Cristo. Trouxe-te a paciência, a menina de verde roupagem; ama-a, que ela te auxiliará.” 9. Santa Catarina de Alexandria. (25 de Novembro) "O pai de Santa Catarina chamava-se Costa. Era descendente de estirpe real; pois um dos seus antepassados era Hazael, que fora ungido rei da Síria por Elias, por ordem de Deus. Do lado materno descendia Catarina da família de Mercúria, sacerdotisa pagã, convertida por Jesus na ilha de Salamina. Catarina era filha única de Costa. Tinha, como a mãe, cabelo loiroclaro, era muito viva e corajosa, tendo sempre alguma coisa que sofrer ou disputar. Tinha uma ama e desde muito cedo recebeu mestres masculinos. Via-a fazer brinquedos de cortiça para crianças pobres. Já mais crescida, escrevia muito sobre lousas e rolos, dando-os depois a outras meninas, para as copiar. Vi também que se dava muito com a ama de Santa Bárbara, que era cristã ocultamente. Catarina possuía em alto grau o dom de profecia dos antepassados de sua mãe e aquela profecia a respeito do grande profeta foi-lhe mostrada também numa visão, quando tinha apenas seis anos. Contou-a durante o jantar aos pais, que não ignoravam a história de Mercúria. O pai, homem muito severo e reservado, encerrou-a por castigo num subterrâneo. Vi que ali os ratinhos e outros animais se lhe mostravam muito familiares, brincando diante dela. Havia uma luz em redor de Catarina. Desejava de toda a sua alma o Salvador dos homens, pedindo que a tocasse também e tinha muitas visões e iluminações. Desde aquele tempo nutria

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um ódio invencível contra todos os ídolos; escondia, enterrava ou quebrava todas as pequenas estátuas de falsos deuses, que podia apanhar e por isso e por motivo dos discursos estranhos e profundos que proferia contra a idolatria, era muitas vezes encerrada no cárcere do pai. Contudo era também instruída em todas as ciências; vi que andando, escrevia na areia e nas . paredes do palácio e que as companheiras a imitavam. Quando tinha cerca de oito anos, partiu com o pai para Alexandria, onde o futuro noivo a conheceu. O pai voltou com ela a Chipre. Ali não havia mais judeus, mas de vez em quando se encontravam um escravo judeu e poucos cristãos ocultos. Catarina foi instruída interiormente por Deus e rezava com ardente desejo do Batismo, que recebeu aos dez anos. Foi quando o bispo de Dióspoli mandou, às ocultas, três sacerdotes a Chipre, para consolar os cristãos. Recebeu uma ordem interna de mandar batizar também Catarina, que estava então novamente no cárcere, onde tinha por guarda um cristão disfarçado. Este a levou de noite àreunião secreta dos cristãos, num subterrâneo fora da cidade, onde ela foi repetidas vezes e lá, junto com outros, foi instruída na fé e batizada pelos sacerdotes. Vi que o batizante lhe derramou sobre a cabeça água de uma taça. Catarina recebeu, com o batismo, uma inefável sabedoria. Falava de coisas maravilhosas, mas ainda ocultava a fé cristã, como todos os cristãos faziam. Como, porém, o pai não lhe suportasse mais a aversão pela idolatria, as palavras e profecias, levou-a a Pafos, mandando encerrá-Ia num cárcere, julgando que ali não poderia travar relações com pessoas da mesma convicção religiosa. Contudo Catarina era tão bela e inteligente, que o pai a amava ternamente. As criadas e guardas eram mudadas freqüentemente, porque havia entre elas muitas vezes ocultas cristãs. Já dantes gozara da aparição de Jesus, o Esposo celeste, no qual sempre pensava e de outro esposo não queria saber. De Pafos voltou novamente para casa e o pai quis dá-Ia em matrimônio a um jovem de nome Maximiliano, descendente de uma antiga família real e sobrinho do governador de Alexandria, que não tinha filhos e o fizera seu herdeiro. Mas Catarina não o queria absolutamente. Antes deste noivado, quando tinha doze anos, lhe morrera a mãe nos braços. Catarina confessou à mãe que era cristã e instruiu-a, induzindo-a a receber o batismo. Vi que Catarina derramou água de uma taça de ouro, com um ramo, sobre a cabeça, testa, boca e peito da mãe. Havia sempre muito tráfego entre Alexandria e Chipre e o pai man-dou Catarina à casa de parentes, esperando que afinal se afeiçoasse ao noivo. Tinha naquele tempo treze anos. Em Alexandria morava com o pai do noivo, numa vasta casa, com várias salas. O noivo morava também lá, mas separado dela; estava como desvairado de amor e mágoa. Ela, porém, falava sempre do outro noivo, a quem amava; por isso pensaram em mudar-lhe os sentimentos

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pela sedução. Mandavam também homens sábios e doutos, para a desviar da fé cristã, mas Catarina confundia a todos. Naquele tempo era Teonas Patriarca de Alexandria, o qual conseguiu, com grande brandura, que os cristãos não fossem perseguidos pelos pagãos. Mas eram sempre muito oprimidos e tinham de suportar tudo calados e de evitar qualquer campanha contra a idolatria. Nessas circunstâncias se formou uma perniciosa convivência tolerante com os gentios, causando grande indiferença entre os cristãos e por isso dispôs Deus que Catarina despertasse muitos da frouxidão, pelas suas luzes e seu ardente zelo. Vi Catarina em casa de Teonas. Este lhe deu o Santíssimo Sacramento, que ela levou para casa, transportando-o numa cápsula de ouro sobre o peito. Não recebeu o Preciosíssimo Sangue. Vi naquele tempo em Alexandria muitos pobres homens presos, com a aparência de eremitas, que eram horrivelmente torturados nos trabalhos pesados de construções, transportando ou carregando pedras. Creio que eram judeus convertidos à fé cristã, que tinham formado uma colonia ao pé do monte Sinai, sendo depois presos e levados a Alexandria. Vestiam vestes de cor parda, tecidas de cordas da grossura de um dedo e um pano pardo na cabeça, que pendia sobre os ombros. Vi que também receberam o Santíssimo Sacramento às escondidas. Catarina voltou também uma vez a Chipre, quando o noivo fez uma viagem de Alexandria à Pérsia e ela esperava ficar livre dele. O pai estava muito enfadado de a ver ainda solteira. Teve de voltar para Alexandria e lá insistiram ainda mais para que se casasse. Mais tarde a levou o pai ainda uma vez à Salamina, onde foi solenemente recebida por moças pagãs e levada a muitos divertimentos e festas; mas não conseguiram mudar-lhe a decisão. De volta a Alexandria, insistiam ainda mais em lhe tirar a fé. Vi uma grande festa pagã. Catarina foi obrigada pelos parentes pagãos a ir ao templo pagão; mas não se deixou induzir a sacrificar aos ídolos. Ao contrário, quando estavam os pagãos no meio das esplêndidas cerimônias do sacrifício, avançou Catarina, inspirada de zelo sobrenatural, para os que sacrificavam e derrubando os altares de incenso e os vasos, começou a pregar em alta voz contra o pecado abominável da idolatria. Levantou-se grande tumulto, apoderaram-se dela, declarando-a louca; repreenderam-na no átrio do templo, mas ajovem começou a falar ainda com mais veemência. Então a prenderam, mas a caminho do cárcere, chamou todos os cristãos para se reunirem a ela e darem o sangue por Aquele que os salvara com seu Sangue divino. Foi encarcerada, açoitada com escorpiões e lançada às feras. Eu pensava comigo que não era permitido procurar assim à força o martírio. Mas há exceções desta regra e instrumentos da vocação de Deus. Catarina tinha sido sempre impelida à idolatria e ao odioso matrimônio; logo depois da morte da mãe, o pai a levara

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muitas vezes às indecentes festas de Vênus; lá, porém, nunca abrira os olhos. Em Alexandria afrouxara o zelo dos cristãos. Agradava muito aos gentios que o patriarca Teonas consolasse os maltratados escravos cristãos e os exortasse a servirem fielmente aos cruéis senhores; mostravam-se tão amigos de Teonas, que muitos cristãos fracos na fé pensavam que a idolatria não fosse condenável. Por isso Deus mandou esta virgem de espírito forte, corajosa e inspirada, para converter pelas palavras, pelo exemplo e o martírio muitos que, sem isto, teriam perecido. Cuidara sempre tão pouco de ocultar a fé, que visitava os escravos e operários cristãos, nas praças públicas, consolando-os e exrórtando-os à perseverança na fé; pois sabia quantos se tornavam indiferentes, pela tolerância e apostatavam da fé. Vira também tais apostatas no templo, tomando parte nos sacrifícios; por isso lhe era tão veemente a dor e indignação. As feras, às quais foi lançada depois da flagelação, lambiam-lhe as feridas, que saravam de repente, por milagre, quando foi novamente levada ao cárcere. Chegou o pai de Salamina e, tirando-a do cárcere, levou-a de novo para a casa do noivo. Ali empregaram todos os meios de tentação, para a induzir à apostas ia. Mas as moças pagãs, que a deviam persuadir à idolatria, eram convertidas por ela para Cristo e também os filósofos que vieram disputar com ela, aderiram-lhe. O pai ficou furioso, atribuiu tudo à feitiçaria e mandou açoitar Catarina de novo e lançá-Ia no cárcere. A mulher do tirano (Maximino) visitou-a no cárcere e converteu-se, junto com um oficial (Porfírio). Quando entraram no cárcere, um Anjo pôs-lhe uma coroa sobre a cabeça e outro lhe ofereceu uma palma. Não sei se a mulher o viu. Catarina foi então levada ao circo e colocada sobre um estrado, entre duas rodas largas, munidas de pontas de ferros cortantes, como relhas de arado. Quando quiseram fazer girar as rodas, foram quebradas pelos raios lançados no meio dos pagãos, dos quais cerca de trinta ficaram feridos ou mortos. Desencadeou-se uma violenta tempestade, com saraivada; ela, porém, ficou sentada tranqüilamente, com os braços estendidos, entre os destroços das rodas. Conduziram-na novamente ao cár cere e por vários dias tentaram persuadí-la à idolatria. Alguns homens quiseram violá-Ia, mas Catarina repeliu-os com a mão e eles ficaram rígi-dos como estátuas e sem força para se mover. Outros se atiraram sobre ela, mas a donzela afastou-os, mostrando-Ihes os que se tinham tornado como petrificados. Tomavam tudo por feitiçaria e Catarina foi de novo conduzida ao lugar do suplício. Ajoelhou-se diante de um cepo, volvendo a cabeça um pouco para o lado e assim foi degolada, com um ferro das rodas destruídas. Correu tanta quantidade de sangue, que todos se admiraram; esguichava com força e tornou-se finalmente claro como água. A cabeça caiu por terra. Atiraram o corpo sobre uma fogueira, mas as chamas

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arremessaram-se contra os carrascos; o corpo ficou envolto numa nuvem de fumaça. Tiraram-no então e lançaram-no a algumas feras esfomeadas, para que o despedaçassem. Mas estas não o tocaram e no dia seguinte os carrascos atiraram o corpo da santa virgem numa fossa cheia de excrementos, debaixo de sabugueiros. Na noite seguinte vi nesse lugar dois Anjos, em vestes sacerdotais, que envolveram o corpo resplandecente numa coberta de entrecasca e o levaram, voando. Os dois Anjos transportaram o corpo da virgem para o cume inacessível do monte Sinai. Vi a superfície do cimo, era pouco extensa, de tamanho de uma pequena casa; constava de uma rocha de diversas cores, na qual se achavam impressas formas de plantas. Colocaram cabeça e corpo de bruços sobre a rocha, que parecia mole como cera, pois o corpo se lhe imprimiu inteiro, como numa forma. Vi que os lados superiores das mãos estavam perfeitamente desenhados na pedra. Os Anjos colocaram sobre a pedra, que se elevava um pouco acima do solo, uma coberta brilhante. O santo corpo ficou nesse lugar, durante vários séculos, inteiramente oculto, até que foi mostrado por Deus, numa visão, a um eremita, perto do monte Horeb. Ali viviam vários eremitas, sob a direção de um abade. O eremita revelou ao abade a visão, que várias vezes tivera e verificou-se que ainda outro dos confrades tinha tido a mesma visão. O abade ordenouIhes, sob obediência, que trouxessem o santo corpo, o que de modo natural era impossível; pois o cume era inteiramente inacessível, inclinado e fendjdo. Vi-os abrirem numa noite caminho, para o qual precisavam de vários dias; estavam num estado sobrenatural. Era noite escura, mas em redor Ihes brilhava uma luz. Vi que ambos foram levados por Anjos ao cume escarpado; vi os Anjos abrirem o sepulcro, entregando a um a cabeça, ao outro o corpo envolto, que já se tomara pequeno e leve e carregando as relíquias assim nos braços, foram levados novamente para baixo pelos Anjos, que os seguravam pelos braços. Vi ao pé do Sinai a capela onde descansa o corpo sagrado: é construída sobre doze colunas. Os monges pareciam ser gregos. Vestiam hábito de uma fazenda grossa, que ali mesmo fabricavam. Vi as relíquias de Santa Catarina num pequeno caixão. Mas restava apenas o alvíssimo crânio e um braço inteiro; mais não vi. Tudo está em ruína. Vi também no monte, ao lado da sacristia, um pequeno subterrâneo cujas paredes contém, em cavidades, santas relíquias, que na maior parte estão envoltas em pano de lã ou seda e bem conservadas. Há entre elas também restos de profetas, que antigamente viveram ao pé do mon te e que já eram venerados nas grutas do monte pelos Essenos. Vi ali também ossos de Jacó, de José e da família, que os israelitas trouxeram consigo, quando saíram do Egito. Essas santas relíquias pareciam ser desconhecidas; mas são às vezes veneradas por piedosos monges. A Igreja encosta-se ao lado do

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monte que dá para Arábia. Mas de tal modo, que se lhe pode ainda passar por detrás. Catarina tinha dezesseis anos, quando morreu mártir, no ano 299. Das numerosas virgens que a acompanharam chorando, ao lugar do suplício, apostataram algumas mais tarde; a mulher do tirano, porém, e o oficial sofreram com firmeza a morte e o martírio". 17 Glorificação da Santa Cruz 1. Vitória e conversão de Constantino 2. Descoberta da Cruz 3. O Triunfo da santa Cruz Glorificação da Santa Cruz 1. Vitória e conversão de Constantino Entre perseguições e sofrimentos, propagavam os Apóstolos e discípulos de Jesus a doutrina do Filho de Deus crucificado, a qual era "um escândalo para os judeus e uma tolice para os gentios"; propagavam-na pelos países longínquos, provavam-na por milagres e confirmavam-na pelo sangrento martírio. E como eles, muitos outros fiéis pastores e nobres filhos da Igreja, de ambos os sexos e todas as idades e classes, sofreram pela santa fé as mais atrozes torturas e a morte mais cruel, perseguidos sem trégua por pagãos e judeus, durante três séculos. Imenso era o número dos mártires no vasto império romano, onde os imperadores pagãos faziam todos os esforços para exterminar inteiramente a doutrina cristã. Mas não conseguiram este fim de modo algum; ao contrário, a Igreja tornava-se cada vez mais forte nas prisões em que a tinham metido e a honra e glória do Filho de Deus, morto no madeiro da ignomínia, propagava-se cada dia mais. Afinal chegou o tempo em que a Igreja devia achar a paz tão almejada. O imperador romano Constantino alcançou, com o exército, uma brilhante vitória sobre o rival Maxêncio, no ano 312. O exército de Constantino combatia sob a bandeira da Cruz, que lhe aparecera nas nuvens do céu, com a inscrição: "In hoc signo vinces" isto é, - Por este sinal vencerás. No ano seguinte proclamou o célebre edito de Milão, que concedeu aos cristãos plena liberdade de religião e aos pagãos liberdade de abraçarem a fé cristã. É verdade que o imperador não se tornou logo cristão fervoroso e a liberdade da Igreja deixava de ser perfeita. "Constantino tinha sem dúvida grande confiança no sinal da santa cruz, em conseqüência de várias aparições, diz a serva de Deus,

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e mandou, com grande veneração, levar a santa insígnia como uma bandeira, na frente do exército, mas fazia-o mais por simples superstição, como hoje muitos andam com amuletos, sem por isso serem piedosos. Acreditava que o sinal da cruz o auxiliava e considerava Cristo como um deus, entre os outros deuses pagãos. Deste modo fazia muito mal, apesar da boa vontade; também perseguia em muitas coisas os cristãos, porque se deixava enganar e venerar a Cruz apenas como sinal de vitória e de boa sorte. Também o Papa Silvestre e muitos sacerdotes eram obrigados a esconder-se-lhe; procuraram um esconderijo na caverna de um monte. Assim continuou, até que Deus o castigou; tomou-se morfético e os sacerdotes pagãos aconselhavam-lhe banhar-se em sangue de crianças. Horrorizado, mandou chamar à sua presença o Papa Silvestre, para instruí-Io na sua doutrina cristã. Aceitou uma penitência de sete dias e depois vi que o Papa Silvestre o batizou. Desceu com o corpo inteiro na água e saiu perfeitamente curado da lepra. Conhecendo assim bem a doutrina cristã e o respectivo valor, mandou um mensageiro, com uma carta, à mãe, anunciando-lhe que se tornara cristão e fora curado da lepra; que viesse, para se tornar também cristã. A mãe, Helena, pouco sabia da fé cristã. Tendo ouvido que o Filho de Deus descera à terra para a salvação dos judeus, tinha grande veneração e desejo do Messias; por isso tinha o povo judeu por um povo escolhido e travou relações com judeus sábios. Quando Ihes anunciou que o imperador se tornara cristão, muito assustados, começaram a lamentar alto. Respondeu por isso ao filho que se estava resolvido a abandonar o paganismo, teria sido melhor abraçar a religião dos judeus. O imperador disse-o ao Papa, que o aconselhou a mandar vir a mãe, com sábios judeus, a Roma, para disputar com ele. Constantino escreveu-lhe e ela, percorrendo o país, procurou os mais sábios judeus e embarcou, com dois dos mais sábios, para Roma. Além destes, assistiram muitos judeus a essa disputa e dois filósofos pagãos como juízes. Vi, porém, que Silvestre Ihes refutou todas as objeções e que Helena e os dois judeus se tornaram cristãos e voltaram a Jerusalém, para procurar a santa Cruz.” 2. Descoberta da Cruz Já antes da Ascensão do Senhor os judeus procuraram maliciosamente destruir todos os lugares que os cristãos consideravam sagrados pela Paixão de Jesus. "Nos lugares do caminho da cruz onde Jesus caíra, abriram fossos através do caminho. Os jardins e as relvas amenas, onde Jesus ensinara ou estivera mais vezes, tornaram inacessíveis, fechando-os com cercas. Em alguns lugares fizeram até buracos ocultos, para que aqueles que ali fossem venerar a memória do

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Senhor, neles caíssem. Mas vi que alguns judeus malignos ali caíram. Também mandaram obstruir com fossos e estacadas os caminhos do Cal vário e do Santo Sepulcro, porque muitos para lá peregrinavam e se davam vários prodígios e milagres. Vi-os também aplanarem o cimo do Cal vário e espalharem a terra, como se espalha estrume, sobre os caminhos e as relvas cordiformes, formadas por esses caminhos, no lugar, do suplício. Depois de terem tirado a terra, ficou no cimo uma pedra branca descoberta, tendo ,no meio um buraco quadrangular, de cerca de um côvado de profundidade, no qual estivera a Cruz. Vi que trabalhavam penosamente com alavancas, para tirar a pedra; mas não o conseguiram, a pedra entrava cada vez mais na terra. Então cobriram o lugar com terra. O Santo Sepulcro, como propriedade de Nicodemos, ficou intacto. Mais tarde esses santos lugares foram profanados ainda mais injuriosamente. "O jardim do Santo Sepulcro descia suavemente da altura da gruta. Vi, porém, que aplanaram a eminência, enchendo com a terra o jardim, cobrindo e obstruindo tudo. Hoje de noite vi, na visão, toda a região do Calvário e do Sepulcro transformada e tornada quase irreconhecível. Muitos caminhos estavam cobertos e cruzados por outros. O Calvário, em redor do qual havia dantes outras colinas e entre estas, lugares bonitos e agradáveis, era agora mais baixo e o cimo mais largo. Os dois judeus que se tornaram cristãos e vieram com Helena a Jerusalém, tinham de fingir-se judeus, para indagar a situação dos santos lugares; tendo sabido pelos judeus vizinhos a situação do Calvário e do sepulcro de Jesus, encontrou a imperatriz um templo de Vênus, com ídolos pagãos, construído sobre o Santo Sepulcro. No ,cimo do Calvário estava a estátua de Adônis. Os judeus não quiseram, porém, mostrar onde estava a Cruz de Cristo, indicando como conhecedor dessas coisas um velho judeu. Vi uma mulher alta, majestosa, apesar da idade avançada, ainda muito ligeira (Sta. Helena), que tinha na cabeça uma pequena coroa e trazia um véu; vi-a entrando e saindo de míseras cabanas e sinistras espeluncas, situadas perto do muro da cidade, fazendo pesquisas. Notei que também um velho judeu, pequeno e magro, de barba comprida, fugindo de uma dessas casas para outra, para escapar à interrogação dessa mulher. Outra vez vi que mandou chamar muitos judeus a uma reunião. Depois vi que a matrona foi com o velho judeu e dois outros judeus, que levavam um longo furador, ao lugar onde jazia a santa Cruz. O templo pagão já tinha sido demolido; o velho judeu também não sabia muito exatamente o lugar; furaram primeiro em redor, estreitando cada vez mais o círculo, até que acharam com o furador um sinal, que não sei qual foi. Ali começaram a cavar. Vi a imperatriz entrar nesse lugar,

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depor a coroa e soltar o cabelo; tirou também uma coisa do pescoço e do peito, descalçou os sapatos, colocando tudo numa pedra branca, que estava perto. Foi preciso cavar uma fossa profunda, até acharem alguma coisa. Primeiro encontraram a cruz de um dos ladrões, depois, não muito longe, a de Jesus e finalmente a terceira. A cruz do Senhor fora desmontada, mas as partes estavam juntas. A tabuinha, com uma inscrição em pergaminho, estava um pouco afastada; sob um dos braços da cruz estavam juntos os três cravos, dos quais o dos pés tinha um palmo e meio de comprimento, os outros dois um palmo apenas. Santa Helena enviou o cravo comprido ao filho. Nunca pude compreender a afirmação de que não podiam distinguir a santa Cruz das outras; pois eu a tenho visto sempre diferente. As cruzes dos ladrões vi feitas de madeiros redondos, sobre os quais eram fixos os madeiros transversais por uma cunha, que sobressaia da cruz. A cruz do Senhor, porém, fora feita de madeiros quadrangulares, mais targos que grossos e bem aparados; os braços estavam encaixados. Tinha também uma tábua, para pôr os pés, pregado com um prego grande, que eu julgava arrebitado pelo lado posterior. Vi esta tábua virada, quando acharam a cruz. Vi como levantaram a santa cruz e como Helena a abraçou. Separaram as outras cruzes e deixaram-nas como madeira comum; eu, na minha simplicidade, sempre pensei que se podia ter conservado pelo menos a cruz do bom ladrão. Juntou-se grande multidão de povo; era preciso os soldados mante-rem a ordem no caminho.” 3. O Triunfo da santa Cruz "Vi que levaram a santa Cruz numa grande procissão e que traziam coxos e enfermos, conduzindo-os pelos braços ou transportando-os em padiolas e que foram todos curados, ao passar a santa Cruz. Creio que o povo não tomava esses milagres como sinais para distinguir a cruz das outras, mas apenas como confirmação de que era realmente a Cruz do Senhor. O velho judeu tomou-se também cristão e grande venerador da san-ta Cruz; trazia sempre o sinal da cruz sobre o lado direito do manto; mais tarde se tornou bispo de Jerusalém. Vi que Helena pediu e recebeu o santo Batismo e mandou demolir o templo pagão sobre o Santo Sepulcro. No princípio recusavam os judeus começar o trabalho; mas desencadeou-se uma tremenda tempestade, que levou todo o entulho e virou muitas das casas dos judeus construídas em redor. Os judeus, porém, tomados de veemente terror, começaram todos a trabalhar com todo o esforço. A primitiva entrada do Sepulcro não foi mais aberta, mas outra ao lado. Vi depois Santa Helena, que naquele tempo contava cinqüenta anos, ocupada em dirigir a construção de uma grande

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Igreja (a Igreja do Santo Sepulcro); a Igreja cristã fora até então a de Sião, onde havia sido instituído o Santíssimo Sacra-mento.” Helena mandou pôr uma parte da santa Cruz num relicário precioso e entregou-a a Macário, então bispo de Jerusalém. Quando, no ano 614, o rei da Pérsia, Cosroes II, conquistou Jerusalém, levaram os vencedores essa parte da Cruz, como espólio, para a Pérsia. Só após uma guerra de doze anos, em que o imperador Heráclito venceu os persas, voltou a santa Cruz à Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém. - Outra parte da Santa Cruz foi levada pela Santa para Roma, onde foi entregue à Igreja da Santa Cruz, edificada por Santa Helena, na qual esta santa relíquia ainda hoje é conservada e venerada. A Cruz, outrora sinal de ignomínia e de desprezo, tomara-se sinal glorioso do triunfo e da vitória que o cristianismo alcançara sobre o paganismo e que depois se estendeu aos países do sul da Europa e do norte da África e mais tarde também ao norte e leste da Europa. Armados com a Cruz venturosa, partiam nos séculos seguintes, até o nosso tem po, inúmeros missionários, cheios de amor de Deus e zelo pelas almas, indo a toda a parte da terra, até aos povos mais longínquos da África, Ásia, América e Austrália, para Ihes levar o Evangelho da fé e granjear para o Salvador do mundo novos servos, que O adorassem, amassem e glorificassem. Assim contribuíam e contribuem para o cumprimento da palavra de São Paulo: "Ele (o Salvador) humilhou-se a si mesmo, feito obediente até a morte e morte de cruz; pelo que Deus também o exaltou e lhe deu um nome que é sobre todos os nomes, para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, na terra e nos infernos; e toda a língua confesse que o Senhor Jesus Cristo está na glória de Deus Pai." (Fil. 2, 8-11). Nesta glória viu São João ao Salvador: "o Cordeiro de Deus imolado", como ele narra no livro do Apocalipse, 5, 11 - 17: "E olhei e ouvi a voz de muitos Anjos ao redor do trono e dos animais e dos anciãos; e era o número deles milhares e milhares, que diziam em alta voz: "Digno é o Cordeiro, que foi morto, de receber a virtude e a divindade e a sabedoria e a fortaleza e a honra e a glória e a bênção. E toda a criatura que há no céu e sobre a terra e debaixo da terra e as que há sobre o mar e quantas há nele, ouvi dizer a todas: "Ao que está sentado no trono e ao Cordeiro, bênção e honra e glória e poder por todos os séculos.” APÊNDICE No capítulo seguinte damos, com as próprias palavras de Anna Catharina Emmerich, alguns suplementos da história da Paixão de Nosso Senhor. Como estes devem ser considerados menos essenciais,

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não quisemos dá-Ios antes, para não interromper o fio da narração; não os queremos, porém, eliminar inteiramente, por causa das informações interessantes neles contidas. 1. O cálice da última Ceia O cálice que os Apóstolos receberam em casa de Verônica, era um vaso maravilhoso e misterioso. Muito tempo fora guardado no Templo, entre outros objetos preciosos, de grande antiguidade, cuja origem e emprego tinham sido esquecidos, como acontece também na Igreja cristã, na qual muitos objetos preciosos pela beleza e antiguidade, caíram em esquecimento no correr do tempo. Muitas vezes escolhiam no Templo os vasos antiquados, de uso desconhecido ou jóias antigas, vendiam-nos e mandavam-nos restaurar ou remodelar. Assim aconteceu também, por permissão de Deus, a esse santo vaso; foi encontrado por sacerdotes daquele tempo no tesouro do Templo, numa caixa, junto com outros objetos antigos e esquecidos e como, por ser de matéria desconhecida, nunca se pôde fundir, venderam-no a amadores de antiguidades. O cálice, com todos os acessórios, fora comprado por Seráfia e já fora usado algumas vezes por Jesus, em festividades; desde então se tornou propriedade permanente da santa comunidade de Jesus Cristo. Nem sempre estivera no estado atual; não me lembro mais quando foi feita a adaptação das diversas partes de que constava e se o foi por ordem do Senhor; pois que se juntou ao cálice um aparelho portátil, para servir na instituição do Santíssimo Sacramento. Sobre uma bandeja, da qual se podia tirar ainda uma tabuinha, estava o grande cálice e em roda dele, seis copinhos; não me lembro mais, se a tabuinha continha coisa sagrada. Dentro do grande cálice havia outro vaso pequeno, sobre o qual se achava um pratinho ou patena e sobre este, uma tampa convexa. No pé do cálice era guardada uma colher, que se podia facilmente tirar. Todos estes vasos, cobertos de linho fino, estavam debaixo de uma capa de couro, se não me engano, que em cima tinha um botão. O cálice grande constava da taça e do pé, que deve ter sido acrescentado mais tarde, pois estas duas partes eram de material diferente: A taça era de um metal pardacento e bem polido, em forma de pêra; mas estava revestida de ouro e tinha duas argolinhas, pelas quais se podia segurar o cálice, pois era bastante pesado. O pé era de ouro escuro, artisticamente trabalhado, ornado na parte inferior de uma serpente e de um pequeno cacho de uvas. Também era ricamente adornado de pedras preciosas. No pé se achava a colherzinha. O cálice grande ficou na Igreja de Jerusalém, com S. Tiago o Menor; agora o vejo ainda guardado em outro lugar. Há de reaparecer, como reapareceu dessa vez. Outras Igrejas dividiram entre si os copinhos que cercavam o cálice; um desses

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está em Antioquia, outro foi para Éfeso; cada uma das sete Igrejas tinha o seu. Esses copinhos pertenciam aos Patriarcas, que deles bebiam a bebida misteriosa, quando recebiam e davam a bênção, como tenho visto e narrado várias vezes. O cálice grande já tinha estado com Abraão; Melquisedec trouxera--o da terra de Semíramis, onde já se tinha perdido e levara-o para a terra de Canaã, quando fora fundar vários edifícios, no lugar da futura Jerusalém. Empregou-o no sacrifício, em que ofereceu pão e vinho na presença de Abraão e depois o cedeu a esse Patriarca. Já tinha sido propriedade de Noé, que o guardara no alto da arca. "Eis que vêm homens, gente distinta de uma bela cidade, construída em estilo antigo; adora-se ali tudo que se encontra, até peixes também. O velho Noé, com uma estaca ao ombro, está ao lado da arca; a madeira de construção está amontoada em redor, tudo no lugar. Não, não são criaturas humanas, deve ser algo de mais nobre, pois são tão belos e claros. Entregam a Noé o cálice, que deve ter caído, em algum lugar, em esquecimento; não sei mais o nome desse lugar. Há dentro do cálice um grão semelhante ao trigo, maior, porém, do que o nosso; é como um grão de girassol; há nele também um raminho de videira. Dizem a Noé que ele é um homem tão afamado, que lhe trazem uma coisa misteriosa, que deve levar consigo. Eis que ele introduz o grão de trigo e o raminho de videira numa maçã amarela e põe tudo no cálice. Este não tem tampa, porque o conteúdo deve crescer para fora. O cálice foi feito segundo um modelo que, como creio, saiu da terra em qualquer parte, de maneira miraculosa. Há nisto um mistério, mas foi modelado segundo aquela forma. É também o cálice que vi no lugar da sarça ardente, naquela grande parábola. Os homens que trouxeram a Noé o cálice e os tesouros nele contidos, usavam longas vestes brancas e pareciam-se com os três homens que procuraram Abraão e lhe prometeram um filho. Pareceu-me que trou-xeram da cidade uma coisa santa, que não devia ser destruída; a cidade, porém, pereceu no dilúvio, com tudo que continha. O cálice esteve também com uma tribo fiel a Deus, perto de Babilônia, eram descendentes de Noé, detidos na escravidão por Semíramis. Melquisedec conduziuos à terra de Canaã, levando consigo também o cálice. Vi que tinha uma tenda perto de Babilônia, na qual benzia e repartia entre eles o pão, sem o qual não teriam tido força para o seguirem. Esse povo tinha um nome que soava como "Samanéos"; serviu-se dele e de alguns Cananeus, que viviam em caravanas, quando começou a construir edifícios, nas colinas desertas dáftItura Jerusalém. Fez alicerces muito profundos, onde depois estava o Cenáculo e o Templo, como também para o lado do Calvá-rio. Plantou também trigo e vinhas. Depois do sacrifício de Melquisedec, ficou o cálice com Abraão; foi levado ao Egito e também Moisés o possuiu. O material da taça do cálice era compacto

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como o de um sino; era como um produto da natureza e não trabalhado como metal. Vi através dele; só Jesus sabia de que material era feito. Quando Nosso Senhor, por ocasião da instituição do SS. Sacramento, tomou o cálice, tive subitamente outra visão do Velho Testamento. Vi Abraão de joelhos diante de um altar; à distância vi muito povo guerreiro caminhar, com animais de carga e camelos. Vi avançar para Abraão um homem majestoso, que colocou sobre o altar o mesmo cálice que Jesus naquela ocasião tinha nas mãos. Esse homem tinha algo de semelhante a asas nos ombros; não as tinha realmente, mas era só para fazer saber que era um Anjo. Foi a primeira vez que vi asas num Anjo. Aquele homem, porém, era Melquisedec. Atrás do altar de Abraão se levantaram no ar três colunas de fumaça; a do meio era reta e alta, as outras duas mais baixas. Depois vi duas séries de figuras, que acabavam em Jesus. Davi e Salomão achavam-se entre elas. Era a estirpe de Jesus (esqueceu de dizer se era a linha dos possuidores do cálice ou a dos sacrificadores ou dos ascendentes de Jesus). Vi nomes acima de Melquisedec, de Abraão e de alguns reis e deste modo voltei à visão de Jesus e do cálice. O sacrifício de Melquisedec teve lugar sobre uma colina, no vale de Josafá; agora não acho mais esse lugar. O cálice estava já com Melquisedec. Abraão deve ter sabido daquele sacrifício, porque já tinha construído um belo altar, mais belo e forte do que os que vi em outras ocasiões. Por cima do altar havia como uma tenda de folhagem e dentro se achava uma espécie de tabernáculo, no qual Melquisedec colocou o cálice. Os copos de que deu a beber, pareciam pedras preciosas. Havia um orifício sobre o altar, provavelmente para o sacrifício. Abraão trouxera consigo um soberbo rebanho. Já muito antes, quando Abraão recebera o mistério da promissão, lhe fora revelado que o sacerdote do Altíssimo celebraria diante dele o sacrifício, que devia ser instituído pelo Messias e durar por todos os séculos. Quando, portanto, Melquisedec anunciou a sua chegada por dois correios, dos quais se serv.ia muitas vezes, Abraão esperou-o cheio de respeito e esperança e construiu o altar e a tenda de folhagem com muito cuidado. Vi também Abraão colocar sobre o Altar alguns ossos de Adão, como sempre fazia nos sacrifícios; Noé já os guardara na Arca. Diante deles pe'diram a Deus o cumprimento da promessa do Messias, a qual fora feita a Adão. Abraão desejava vivamente a bênção de Melquisedec. A campina em redor estava coberta de homens e animais, de cargas e bagagens; o rei de Sodoma estava com Abraão debaixo da tenda. Tudo estava silencioso e em expectativa. Melquisedec veio do

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lugar onde depois se construiu Jerusalém; tinha ali cortado o mato e lançado os fundamentos de vários edifícios; uma construção semicircular estava meio terminada e um palácio ainda no começo. Trouxe um animal de carga cinzento; não era camelo, nem como o nosso jumento: tinha o pescoço curto e grosso e era bom corredor. Estava carregado pesadamente; num lado trazia uma vasilha grande de vinho, achatada para o lado do animal; do outro lado vinha um caixote, em que se achavam uma fileira de pães chatos e diversos vasos. Os copos, que tinham a forma de pequenos barris, eram transparentes como pedras preciosas, não como ouro ou prata. Abraão foi ao encontro de Melquisedec. Vi este entrar na tenda por trás do altar e, elevando nas mãos pão e vinho, oferecer, benzer e distribuir o mesmo. A cerimônia tinha semelhança com a santa Missa. Abraão recebeu pão mais branco do que os outros e bebeu do cálice de que Jesus se serviu na Instituição da S. Eucaristia (ainda não se lhe tinha acrescentado o pé). Entre os mais distintos assistentes distribuíram depois vinho, em pequenos copos e bocados de pão. Este não era consagrado, - Anjos não podem consagrar - mas era bento e vi-o brilhar; todos os que o receberam, sentiram-se fortificados e elevados a Deus. Abraão foi também abençoado por Melquisedec: vi que era um símbolo da ordenação dos sacerdotes, como para o consagrar sacerdote; pois Abraão já recebera a promissão de que o Messias nasceria dele, em carne e sangue. Tive diversas vezes a explicação de que Melquisedec fez saber a Abraão, nesta bênção, que no futuro seriam ditas a respeito do Messias e de seu sacrifício as palavras proféticas: "O Senhor disse ao meu Senhor: Sentai-vos à minha direita, até que eu reduza os vossos inimigos a servir-vos de escabelo. O Senhor jurouo e não se arrependerá: Sois sacerdote eternamente, segundo a ordem de Melquisedec." Vi que também Davi, ao escrever estas palavras do salmo, teve uma visão da bênção dada por Melquisedec e Abraão. Vi, porém, que Abraão profetizou, depois de ter tomado o pão e o vinho, dizendo mais ou menos o seguinte: "Então acabará o que Moisés dá aos Levitas." Entendi que falava profeticamente de Moisés e dos Levitas. Agora não sei mais se o próprio Abraão ofereceu também esse sacri-fício. Deu depois os dízimos dos rebanhos e dos seus bens. Creio que Melquisedec distribuiu tudo de novo. . Melquisedec não parecia velho; era esbelto e alto, cheio de suave seriedade. Trazia uma longa veste, tão branca, como jamais vi na terra; parecia mesmo resplandecer e ao lado dela, a vestimenta branca de Abraão parecia escura. Por ocasião do sacrifício se cingiu de uma cinta, na qual estavam bordadas algumas letras e pôs uma mitra branca dobra da, como depois a usavam os sacerdotes. O cabelo era longo, de um louro claro, sedoso; tinha barba em ponta, branca, curta, repartida na ponta;

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o rosto resplandecia-lhe. Todos o tratavam com muito respeito; em sua presença todos se tomavam sérios e silenciosos. Foi-me dito que era um Anjo sacerdotal e mensageiro de Deus. Foi enviado para estabelecer várias Instituições santas; conduzia povos, transferia tribos, fundava cidades. Vi-o em diversos lugares, antes do tempo de Abraão; depois não o vi mais. 3. A inimizade de Pilatos e Herodes. A causa da inimizade entre Pilatos e Herodes foi, segundo as meditações da narradora, a seguinte: Pilatos empreendera a construção de um grande esgoto das águas do templo, passando do lado Leste do monte do Templo, sobre o barranco, no qual desemboca o tanque de Betesda; por intermédio de um astuto herodiano, membro do Sinédrio, cedeu-lhe Herodes materiais de construção e 18 arquitetos, que também eram herodianos. Herodes tinha a intenção de malquistar Pilatos com os judeus, pelo malogro dessa obra. Os arquitetos tinham o propósito de fazer ruir a construção e quando a obra grandiosa estava quase terminada, trabalhando ainda muitos operários de Ofel em tirar os andaimes sob os arcos, estavam os 18 arquitetos reunidos sobre uma torre, na região de Síloa, que ficava próxima, esperando o efeito final. O edifício desabou, mas também a parte onde eles estavam. 93 operários morreram e também os 18 mestres de obra. O desabamento deu-se antes-de 8 de Janeiro (20 de Tebet), do segundo ano da pregação de Jesus, no dia em que João Batista foi degolado no castelo de Macheronte e começou a festa do aniversário de Herodes; por causa do desastre não foi nenhum oficial do exército romano a essa festa, embora o próprio Pilatos fosse convidado, hipócritamente. A narradora viu que a notícia do desastre foi levada no mesmo dia, 8 de Janeiro (20 de Tebet), por um discípulo, a Timat-Será, na Samaria, onde Jesus pregava. Quando Jesus foi dali a Hebron, para consolar os parentes de João Batista, Anna Catharina o viu, a 13 de Janeiro (25 Tebet), em Ofel, fora de Jerusalém, curando muitos dos ope rários, feridos no desastre, cuja gratidão é mencionada no cap. 4, no. 2. A inimizade entre Herodes e Pilatos cresceu ainda, pela vingança que este tomou dos partidários de Herodes, em parte por causa desta pérfida construção. Algumas notas tomadas das meditações da Serva de Deus podem esclarecer-nos a respeito. A 25 de Março, (7 Nisan) do segundo ano da vida pública de Jesus, preveniu Lázaro ao Senhor e aos seus, que estavam na margem da lagoa de Betúlia, que havia perigo na festa de Páscoa, pois que estava iminente uma insurreição de Judas Gaulornita contra Pilatos. A 28 de Março (10 Nisan) decretou Pilatos um imposto do Templo em Jerusalém, para pagar as despesas com a reconstrução do muro destruído do Templo; e levantou-se um tumulto entre os galileus, partidários de uma

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luta pela liberdade, propagada por Judas de Gaulon, que com todo o seu partido era, sem o saber, um instrumento dos herodianos. Os herodianos eram uma sociedade, como hoje a maçonaria, "vejo-as muitas vezes como sendo a mesma coisa". A 30 de Março (12 Nisan), estava Jesus com 30 discípulos no Templo de Jerusalém; ensinava pelas 10 horas da manhã, vestido do manto pardo, que os galileus usam. Nesse dia se deu a insurreição de Judas Gaulomita contra Pilatos; os amotinados libertaram os 50 camaradas, presos dois dias antes; vários romanos foram mortos. A 6 de Abril (19 Nisan) mandou Pilatos soldados romanos disfarçados ao Templo, que caíram sobre os galileus, durante o sacrifício e os mataram. Judas morreu também nessa ocasião. Desse modo se vingou Pilatos de Herodes, matando-lhe os súditos e partidários, por causa do desabamento do aqueduto. Essa inimizade acabou na Sexta-Feira Santa hipócritamente; Pilatos mandou Jesus, o galileu, a Herodes, para que o julgasse, como seu súdito, para assim lhe dar uma satisfação por lhe haver mandado assassinar no Templo tantos súditos, no ano anterior. 4. Seráfia (Verônica) e o sudário. Seráfia era prima de João Batista; pois o pai era filho do irmão do pai de Zacarias. Era natural de Jerusalém. Quando Maria foi levada à comunidade das virgens do Templo, ain-da menina de 4 anos apenas, vi Joaquim e Ana entrarem na casa paterna de Zacarias, não longe do mercado de peixe. Morava ali um velho parente de Zacarias; talvez fosse o tio do mesmo e avô de Seráfia, a qual vi nesse tempo já muito mais velha do que Maria; podia ter cinco anos mais. Também na festa dos esponsais de Maria e José, a vi mais velha do que a SS. Virgem. Era também parente do velho Simeão, que profetizou no Templo, por ocasião da Apresentação de Jesus e desde a infância era amigo dos filhos do venerando ancião, os quais tinham, já há muito tempo, como o pai, ardente desejo da vinda do Messias, como também Seráfia. Esta esperança de salvação conservava-se entre muitos homens bons daquele tempo, como um secreto amor; os contemporâneos não o pressentiam absolutamente. Quando Jesus, então menino de doze anos, ficou em Jerusalém, para ensinar no Templo, vi Seráfia mais velha do que a Mãe de Jesus e ainda solteira. Mandava comida para Jesus, a um albergue fora de Jerusalém, onde Ele se hospedava, nas horas em que não estava no Templo. Essa hospedaria, situada a quinze minutos de caminho na direção de Belém, era a mesma em que Maria e José ficaram um dia e duas noites, com um casal de velhos, quando, depois do nascimento de Jesus, foram de Belém ao Templo, para apresentar o Menino Jesus. Aquele casal de velhos eram Essênios, a mulher era parente de Joana Cuza. Conheciam a Sagrada Família e Jesus. Essa albergaria era um estabelecimento

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destinado aos pobres; Jesus e os discípulos alojavam-se muitas vezes ali e vi que nos últimos tempos da vida terrena do Salvador, quando estava ensinando no Templo, Seráfia mandava várias vezes comida para lá. Mas naquele tempo eram outros os proprietários do albergue. Seráfia casou-se tarde; o marido, Sirach, descendente da casta Suzana, era membro do Conselho do Templo. Como, a princípio, tinha prevenção contra Jesus, Seráfia tinha muito que sofrer por causa das íntimas relações que mantinha com Jesus e as santas mulheres. Até foi várias vezes presa pelo marido num subterrâneo, durante bastante tempo. Convertido por Nicodemos e José de Arimatéia, diminuiu essa aversão e permitiu à mulher que seguisse a doutrina de Jesus. Diante do tribunal de Caifás, deu com Nicodemos, José de Arimatéia e outros bem intencionados, o voto a favor de Nosso Senhor e abandonou com eles o Sinédrio. Seráfia era ainda uma bela e forte mulher, mas já devia ter mais de 50 anos. Na entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, que celebramos no Domingo de Ramos, eu a vi com uma criança ao colo, entre outras mulheres, tirando o véu da cabeça e estendendo-o com respeito e alegria no caminho. Era o mesmo pano que apresentou ao Senhor, num outro cortejo mais triste, mas também mais vitorioso, para lhe aliviar os padecimentos; o mesmo véu que deu à compassiva dona o nome novo e triunfal de Verônica e que é agora objeto de veneração pública na Igreja. No terceiro ano depois da ascensão de Jesus, mandou o imperador romano um dos seus homens a Jerusalém, para juntar todos os testemunhos e boatos sobre a morte e a ressurreição de Jesus. Esse homem trouxe consigo a Roma Nicodemos, Seráfia e um parente do Joana Cuza, o discípulo Epafras. Este último era um criado muito singelo dos discípulos, que antes tinha sido empregado e moço de recados dos sacerdotes no Templo. Vira Jesus, logo depois da ressurreição, junto com os Apóstolos, no Cenáculo, nos primeiros dias e também muitas vezes, em outras ocasiões. Vi Verônica no palácio do imperador, que estava doente. O leito imperial era elevado alguns degraus acima do assoalho, tinha uma grande cortina. O quarto era quadrangular, mas não muito espaçoso; não vi janelas, mas a luz entrava no quarto pelo teto, do qual pendiam cordões, pelos quais se podiam abrir e fechar válvulas e ventiladores. O imperador estava só; os criados estavam na antecâmara. Vi que Verônica tinha consigo, além do sudário, ainda uma mortalha de Jesus e que estendeu o sudário diante do imperador. Era uma faixa longa e estreita, que antiga-mente usava como mantilha na cabeça e no pescoço. O retrato do rosto de Jesus achava-se na extremidade do véu. Quando o apresentou ao imperador, segurou com a mão a parte mais longa, que pendia para baixo. O rosto de Jesus não era como uma simples pintura, mas impresso no pano com sangue; também era mais largo

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que num retrato comum, porque o pano cobria todo o rosto. Na mortalha que Verônica trouxera consigo, vi a impressão do corpo flagelado de Jesus; creio que era um dos panos sobre os quais fora colocado, antes de ser sepultado. Não vi que o imperador tocasse ou fosse tocado com esses panos. Mas recebeu a saúde só de os ver. Queria que Verônica ficasse em Roma; queria dar-lhe como recompensa uma casa, campos e bons empregados; mas a piedosa cristã só desejava voltar para Jerusalém e morrer onde Jesus morrera. Vi também que voltou, com os companheiros, para Jerusalém e que na perseguição dos cristãos, quando Lázaro e as irmãs foram expulsos para o exílio, fugiu com algumas outras mulheres, mas foi presa e lançada num cárcere. Aí morreu de fome, como mártir da verdade, por Jesus Cristo, a quem tantas vezes alimentara com pão terrestre e que a alimentara com sua Carne e seu Sangue para a vida eterna. Lembro-me mais em geral de ter visto uma vez, já há algum tempo, que o sudário de Verônica ficou com as santas mulheres, após a morte dela e que o discípulo Tadeu o levou consigo para Edessa e lá, como também em outros lugares, fazia milagres por meio dele, que também veio para Constantinopla e depois, por intermédio dos Apóstolos, se tornou propriedade da Igreja. Creio ter visto uma vez que está em Turim, onde também está a mortalha de Jesus; mas naquele tempo vi a história de todos os panos santos, que se me confundiu na memória. Também hoje vi ainda muita coisa de Verônica ou Seráfia, o que, porém, não conto, porque não tenho uma recordação clara.” Outra vez narra Catharina Emmerich: "A respeito do sudário, vi que era um pano como naquele tempo costumavam usar no pescoço e às vezes um segundo sobre os ombros. Verônica tinha um igual sobre os ombros, no caminho da cruz. Oferecer um tal pano, era sinal de compaixão e de tomar parte na tristeza ou no luto. Verônica, vendo o Senhor tão machucado e sangrento, correu para lhe enxugar o rosto, que se lhe imprimiu num lado do pano, com o sangue das feridas da testa e de todo o rosto. Verônica nunca esteve pessoalmente em Roma. O sudário ficou com as santas mulheres; quando Marta e Madalena foram exiladas para Massília, recebeu-o a Mãe de Deus, da qual veio, por meio dos Apóstolos, para Roma. - Nessa perseguição de Lázaro e das irmãs, também Verônica, que era uma bela e esbelta mulher, junto com outras mulheres, foi muito perseguida. Fugiram, mas foram alcançadas e presas e Verônica morreu de fome no cárcere. 5. Cruz e lagar Considerando aquelas palavras ou a meditação de Jesus na cruz: "Sou pisado como as uvas que aqui pela primeira vez no mundo foram lagaradas; tenho de dar todo o meu sangue, até que venha a água

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e o bagaço se tome branco; mas aqui não haverá mais lagar", foi-me mostrada como explicação outra visão do Calvário. Vi, lopgo tempo depois do dilúvio, que a região montanhosa não era mais tão deserta e inculta; havia em redor vinhas e pastos. Ali e em direção a leste, acampava o patriarca Jafé, homem idoso, alto, trigueiro, com os descendentes e muitos rebanhos, morando em cabanas escavadas na terra e cujo teto era coberto de relva, na qual cresciam ervas e flores. Nos arredores se encontravam muitas videiras; o lagar ficava no cimo do Calvário, onde espremiam o suco das uvas de uma maneira nova e Jafé assistia-o também. Vi também como bebiam antigamente o vinho e preparavam e em geral muitas coisas a respeito do vinho, das quais me lembro ainda do seguinte: Nos primeiros tempos comiam apenas as uvas; depois espremiam as uvas em domas de pedra, por meio de cepos; mais tarde em grandes gamelas de pau, por meio de pilões. Mas depois vi que inventaram um novo lagar, que se parecia muito com a cruz de Jesus. Havia plantado ali um tronco grosso, oco; na abertura de cima penduravam um saco cheio de uvas, fixado com pregos. Comprimia--o um pilão, aumentado pelo peso de um cepo. Em ambos os lados do tronco havia um orifício, nos quais se introduziam paus grossos que, movidos para cima e para baixo, pisavam as uvas no saco. O suco espremido saia por cinco aberturas no pé do tronco, correndo para uma doma escavada na rocha, e desta por um cano, feito de duas metades de casca de árvore, cobertas de pauzinhos delgados e unidos com emplastos de resina, para o mesmo subterrâneo rochoso no qual Jesus foi lançado antes da crucifixão e que naquele tempo era uma cisterna limpa. Vi aquele cano inteiramente coberto de relva e pedras, para não se estragar. Diante da embocadura do cano, ao pé do lagar e da doma, havia cobertores, feitos de pêlo, para reter o bagaço, que era sempre posto de lado. Depois de terem aprontado o lagar, enchiam o saco de uvas, que estavam amontoadas na cisterna, penduravam-no e pregavam-no no tronco oco, punham o pilão, com o pesado cepo, na abertura do saco e começavam' a puxar e trabalhar com as duas alavancas de pau nos lados do tronco, que apertavam o saco contra o pilão, até que todo o suco era espremido. Vi também um homem sobre o cepo, no alto, impedindo que o conteúdo do saco saísse por cima. Tudo me lembrava, pela semelhança do lagar com a cruz, a cena da crucifixão. Tinham também um longo caniço, com 'cabeça espinhosa, como um ouriço; talvez fosse a cabeça de um grande cardo; passavam este caniço pelo tronco e o cano, quando estavam entupidos, o que me recordava a lança e a esponja. Vi em redor do lagar odres e vasos de cortiça, calafetados com resina. Muitos meninos e rapazes trabalhavam ali, vestidos apenas de uma tanga, como Jesus na cruz. Jafé já estava muito velho, de longa barba, coberto de peles. Olhava com alegria para o novo modo de

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lagares. Era uma festa! Imolaram sobre um altar de pedras animais que pastavam na vinha: jumentinhos, cabras e ovelhas. Não foi nesse lugar que vi Abraão a imolar Isaac; talvez fosse sobre o Moriá. Infelizmente esqueci muitos ensinamentos que dizem respeito ao vinho, por exemplo, sobre o vinagre, os bagaços, certas separações para o lado direito e esquerdo; pois também a menor circunstância tinha uma significação profunda e misteriosa. Se Deus quiser que eu diga essas coisas, mostrar-mas-á de novo. 6. A compaixão de Jonadá com Nosso Senhor é recompensada. Jonadá que, impelido por íntima angústia, correu do Templo ao Calvário, para oferecer a Jesus o sudário, para lhe cobrir a nudez, era da região de Belém e sobrinho de S. José, pai nutrício do Salvador. Do Gólgota voltou correndo ao Templo. Vendo, porém, a imolação do cordeiro pascal perturbada pela escuridão, o terremoto e o aparecimento dos mortos, voltou apressadamente para sua terra; pois a mãe e a mulher estavam doentes e tinha filhos ainda pequenos. Vi esse bom homem voltar para casa inteiramente mudado de coração; antes não mostrava nenhum interesse pela vida e doutrina de Jesus, porque também o pai creio que era apenas irmão consangüíneo de S. José e não tinha muita afeição a Jesus. Foi o irmão a quem José, quando o visitou alta noite na gruta do nascimento, empenhou o jumento supérfluo por dinheiro, afim de comprar algumas coisas necessárias para receber os Reis Magos, cuja vinda a SS. Virgem lhe predissera. Vi, porém, que, com grande admiração de Jonadá, a mãe, a mulher e os filhos lhe vieram ao encontro até o meio do caminho, sãos e fortes. Não acreditava no que via, pois deixara-as muito doentes em casa. Abraçaram-no, contando-lhe que haviam recobrado a saúde de um modo milagroso. Pouco depois de meio-dia lhes entrara em casa uma mulher majestosa que, aproximando-se-Ihes da cama, disse: "Levantai-vos e ide ao encontro de Jonadá; ele cobriu a nudez de um desnudado." Então tinham sentido um bem estar em todo o corpo e levantando-se, queriam homenagear e agradecer à mulher maravilhosa. Mas, querendo oferecerlhe de comer e beber, não a viram mais; desaparecera, deixando-as fartas e restabeleci das e toda a casa cheia de agradável perfume. Então tinham se encaminhado para lhe ir ao encontro e pediram-lhe que narrasse quem era o desnudado, que tinha vestido. Jonadá contou-lhes, entre lágrimas, a crucificação de Jesus e que esse filho de José e Maria era o profeta, o Cristo, o Santo de Israel. Então se encheram todos de luto, rasgaram as vestes, chorando; contudo louvavam a Deus pelo grande benefício feito por um tão pequeno ato de caridade: falavam dos terríveis prodígios vistos no céu e na terra nesses dias e voltaram comovidos para

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casa. Quando a mulher contava o sucedido ao marido, vi a aparição da mulher em casa de Jonadá, como num quadro. Quem foi a aparição, não posso mais dizer com certeza; parece-me que foi a SS. Virgem. Vi também que Jonadá, depois de ordenar as coisas em casa, se juntou à comunidade do Senhor. Quando a SS. Virgem, cheia de angústia, dirigiu uma ardente súplica a Deus, para que afastasse o escândalo da nudez de Jesus na cruz, vi que essa oração foi atendida, pois meu olhar se dirigiu para Jonadá, no Templo, e vi-o, impelido pela mesma angústia, correr do Templo ao Gólgota, através da cidade e levar o sudário a Jesus. Enquanto a SS. Virgem, com profunda gratidão, pedia a bênção de Deus para Jonadá e a família, por esse ato de caridade, foi-me mostrado o cumprimento dessa súplica, vendo Jonadá inspirado pela fé do Senhor e a família doente socorrida milagrosamente pela aparição. Muitas graças semelhantes recebemos por meio de nossa oração ou de outros; mas como não vemos claramente a relação entre a oração e a graça, não nos parecem tão milagrosas. As vezes se vê que tais graças e efeitos da oração são realizados por intermédio de Anjos e é por isso que almas contemplativas, que meditam sobre a vida de Jesus e Maria, dizem: "A SS. Virgem tinha a seu serviço e para proteção, tantos e tantos Anjos; mandou Anjos ali e acolá, etc., para esse ou aquele serviço." Tais expressões só estranham os que não são conduzidos neste caminho da contemplação; às almas contemplativas, porém, parece muito natural ver a rainha do céu rodeada de Anjos servidores, como os gran des da terra vivem cercados de criados e guardas. Quem crê que Deus éPai, não se admira de ver os mensageiros do Pai celestial e tem também a coragem de dar-lhes recados, que servem para a maior glória de Deus. Acontece-me freqüentemente que, rezando por outros, suplico a meu Anjo da guarda que procure, por amor de Jesus Cristo, o Anjo de outra pessoa, para lhe dizer isso ou aquilo. Faço-o do mesmo modo como se enviasse um amigo ou criado íntimo a realizar um negócio importante; vejo-o também ir cumprir o recado. Na minha infância pensava que assim faziam todos os cristãos; mas quando soube que a maior parte não os via assim, nem por isso supus que essas visões fossem uma superioridade minha, pois bem sabia: "Bem-aventurados os que não vêem e crêem.” Segundo as intenções secretas de Deus e conforme o estado da alma, chegam as inspirações da oração de diversos modos àqueles, aos quais foram enviadas. Jonadá foi impelido ao Cal vário por uma angústia d'alma e uma repentina compaixão para com Jesus; outros, tocados pela graça de Deus, se vêm exortados por um Anjo a fazerem uma certa ação. Se conviesse às intenções de Deus e ao estado d'alma de Jonadá, uma aparição da SS. Virgem, ter-lhe-ia suplicado: "Corre e cobre a nudez de meu Filho", assim como a

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família viu a aparição de Maria, em atenção à gratidão pela caridade de Jonadá. Do mesmo modo vi uma vez a SS. Virgem aparecer, sobre uma coluna, ao Apóstolo Tiago o Maior, quando este, numa perseguição, lhe pediu auxílio; enquanto a vi ao mesmo tempo, no quarto em Éfeso, em êxtase na oração, rezando por Tiago e correndo-lhe espiritualmente em socorro. Apareceu-lhe sobre uma coluna, porque ele lhe implorou a intercessão como amparo ou coluna da Igreja na terra e assim lhe foi apresentada ao olhar espiritual; pois uma coluna também se apresenta como tal. 7. Fragmento sobre Longino. (Veja Cap. 8, no. 11) Hoje de noite (a 15 de Março de 1821), vi muitas coisas acerca de Longino; mas devido à minha fraqueza, só de pouco me poderei lembrar. Longino nem era só soldado, nem só cortesão; ocupava ambas as posições no palácio de Pilatos. Entrava e saia, fazendo variadíssimos serviços, observava tudo, trazia informações de tudo, andando sempre a indagar as coisas. Era homem ativo e sempre afável e serviçal, mas antes da conversão, lhe faltava a verdadeira seriedade e caráter firme. Fazia tudo com precipitação e, como era míope, tornava-se muitas vezes objeto de mofa dos outros. Hoje de noite o vi muitas vezes e por ele, toda a Paixão de Cristo: de manhã eu não sabia como tinha chegado a vê-Ia, até que me lembrei que foi por causa de Longino. Como soldado, era oficial inferior, mas como ajudante de ordens de Pilatos, estava em toda a parte onde acontecia alguma coisa, dando depois informações ao governador. Na noite em que Jesus foi conduzido ao tribunal de Caifás, andava Longino pelo átrio, no meio dos soldados e do populacho, ora num, ora noutro lugar. Uma vez o vi na escada, perto do Senhor, quando este compareceu diante dos juízes e vi que Jesus lhe tocou o coração pela graça. Desceu depois e voltou de novo para o meio do povo. Quando Pedro estava junto à fogueira, apertado pelas palavras da criada, foi Longino que lhe disse igualmente: "Tu também és partidário dele, etc." Quando Jesus foi conduzido à morte no Gólgota, Longino acompanhou o cortejo, como emissário de Pilatos e foi comovido por um olhar do Salvador. Vi-o também depois no Gólgota, no meio dos soldados; ali estava a cavalo e armado de uma lança. Depois da morte de Jesus, esteve também com Pilatos, falando-lhe muito comovido e pedindo que não fossem quebradas as pernas de Jesus. Vi-o depois, cavalgando depressa, de volta ao Gólgota. Aqui parece que Cássio (Longino) foi uma vez, depois da morte de Jesus, ao palácio de Pilatos, o que a narradora ou esqueceu, ao contar a história da Paixão ou não o disse bem claro com as palavras; "Cássio ia e vinha a cavalo.” A lança encurtava-se, metendo-se-Ihe uma parte na outra; puxando

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as partes, podia-se alongá-Ia três vezes. Tinha botões nas juntas, a ponta era ajustada em cima, quando se queria usar a lança. Vi que o oficial a preparou assim, antes de trespassar repentinamente o lado do Senhor. Esteve também presente no enterro de Nosso Senhor, pois queria informar-se de tudo. Converteu-se já no Gólgota, confessando a féno Senhor. Quando o vi depois, no palácio de Pilatos, a quem tudo relatou, externou também em presença do juiz a convicção de que Jesus era o Filho de Deus. Pilatos tratou-o como um fanático e tendo o oficial colocado a lança na sala, deu-lhe o governador a ordem de levá-Ia para fora do quarto, por nojo e superstição. Pouco depois falou Longino com Nicodemos, que pediu a Pilatos a lança, que lhe foi cedida. Vi que Nicodemos desmontou a lança, para poder guardá-Ia mais facilmente. A princípio a guardava numa bainha de couro; mais tarde a vi escondida numa pia de pedra. Vi muitas coisas acerca da história da santificada lança. Depois de ter observado, ao guardar o sepulcro, os milagres do Senhor e de ter relatado tudo a Pilatos, entregou-lhe as armas e abandonou o serviço militar. Viu também o Senhor depois da ressurreição. Tornou-se partidário dos discípulos e com dois outros soldados, convertidos também ao pé da cruz, foi um dos primeiros que foram batizados, depois da festa de Pentecostes. Vi Longino e soldados, vestidos de longas vestes brancas, viajarem para sua terra, onde depois viviam no campo, numa região estéril. Havia ali territórios pantanosos e outros pedregosos, na proximidade de uma pequena cidade daquele país, onde morreram os quarenta santos Mártires. Vi que não era sacerdote, mas percorria o país como diácono, pre gando a doutrina de Cristo e narrando-lhe a Paixão e Ressurreição, de que fora testemunha. Converteu muitos à fé curava muitos enfermos, pelo contato com uma parte da santa lança, que sempre levava consigo, colocada dentro de um bastão curto. Tinha também consigo parte do precioso sangue, colhido ao pé da cruz. Os judeus estavam enfurecidos contra ele e os companheiros, porque propagavam por toda a parte a verdade da ressurreição do Senhor, publicando a crueldade dos judeus e as mentiras e a corrupção das testemunhas. Por instigação deles, partiram soldados romanos para a terra de Longino, com a ordem de prender e executá-Io como desertor e agitador. Vi-o trabalhando no campo, quando os soldados passaram. Convidou-os a entrar e regalou-os. Não o conheceram e quando lhe explicaram as ordens que tinham, mandou chamar os companheiros, que viviam com ele numa espécie de comunidade de eremitas, não na mesma casa, mas na vizinhança. Depois que chegaram, revelou aos soldados que ele e dois companheiros eram os cristãos que estavam procurando. Era a mesma situação que a do santo jardineiro, Focas. Esta revelação entristeceu muito os soldados, pois já lhe haviam tomado afeição. Vi então que foram conduzidos à pequena cidade

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vizinha, onde foram interrogados; não ficaram no cárcere. Andaram alguns dias livres pela cidade, como presos por livre vontade, apenas marcados no ombro como prisioneiros. Vi-os depois sobre uma colina, entre a cidade e a casa de Longino; ali foram degolados e também enterrados. Creio que essa colina era propriedade dele e que pediu ser ali executado e sepultado. Os soldados levaram a cabeça de Longino, sobre uma lança, a Jerusalém, como prova da ordem cumprida. Tenho uma lembrança incerta de que esse fato se deu poucos anos depois da morte de N. Senhor. Tive ainda uma visão de um tempo posterior, de uma mulher cega, que fez com o filho uma peregrinação da terra de S. Longino a Jerusalém, na esperança de obter a cura da vista na cidade santa, onde Longino também fora curado da doença dos olhos. Fazia-se guiar pelo menino; mas este morreu e a pobre cega ficou inteiramente desamparada e desconsolada. Vi depois que teve uma aparição de S. Longino, que lhe disse que recobraria a vista, se lhe tirasse a cabeça da fossa, na qual os judeus a tinham lançado. Era uma fossa de alvenaria, na qual muitos canais descarregavam imundícies. Alguns homens conduziram a mulher ao lugar. Entrou até ao pescoço no horrível lodaçal e tirou a cabeça do santo. Vi que recobrou a vista e que os companheiros guardaram a santa cabeça, fazendo conduzir a mulher para sua terra. É tudo de que me lembro. 8. Fragmento sobre o centurião Abenadar. Abenadar, que depois recebeu o nome de Ctesifon, era oriundo de uma terra situada entre a Babilônia e o Egito, a ditosa Arábia, à direita da última residência de Jó. Numa montanha ondulosa há casas quadrangulares, encostadas umas às outras; ali é que nasceu. Os homens andam sobre os telhados, que são planos. Há muitas árvores pequenas ali: estava brumoso o tempo, quando ali estive. A gente dessa região colhe incenso dessas árvores e também cultivava ervas de bálsamo em latadas. Estive na casa de Abenadar: era um edifício esquisito, semelhante a um conjunto de caixas quadrangulares, planas em cima; era vasto e espaçoso, como as casas dos homens abastados dessa região, mas de pouca altura. Abenadar alistara-se como voluntário, na tropa que estava aquartelada no forte Antônia, em Jerusalém. Entrara a serviço dos romanos, para se exercitar nas belas artes, pois era homem douto. Era de cor trigueira, de estatura baixa, mas forte, homem firme e resoluto. Foi por um dos primeiros sermões de Jesus e por um milagre, não me lembro mais qual, que se sentiu comovido. Convencido de que a salvação provinha dos judeus, aceitou a lei mosaica, mas ainda não se tornou discípulo de Jesus; nunca, porém, se mostrou maldoso ou cheio de ódio contra Jesus; ao contrário, tinha-lhe compaixão

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e um oculto respeito. Era homem muito sério e revezando com o destacamento a guarda no Gólgota, conservou a ordem e calma ao redor da cruz, até que a verdade o venceu e publicamente, diante de todo o povo, deu testemunho de Jesus, ao vê-Io morrer. Sendo rico e voluntário, podia abandonar imediatamente o posto, o que fez realmente. Mostrou-se logo tão fiel e serviçal no descendimento da cruz e na sepultura do Senhor, que se mostrou íntimo amigo dos discípulos de Jesus e foi batizado entre os primeiros, depois de Pentecostes, no tanque de Betesda, recebendo o nome de Ctesifon. Tinha ainda um irmão da Arábia. Ctesifon narrou-lhe todos os prodígios que vira e exortou-o a abraçar a salvação. O irmão dirigiu-se, pois, em seguida a Jerusalém, com todos os seus bens, foi batizado, sob o nome de Cecílio, tornando-se, com Ctesifon, o auxiliar dos diáconos na nova comunidade do Senhor. Ctesifon acompanhou, com alguns outros discípulos, o Apóstolo Tiago o maior à Espanha e com ele voltou a Jerusalém. Mais tarde foi enviado mais uma vez pelos Apóstolos à Espanha, levando para lá o corpo de Tiago o Maior, que morrera mártir em Jerusalém. Tornou-se bispo e residia numa espécie de ilha ou península, não longe da França, onde também esteve e tinha muitos discípulos e era benquisto pelo povo. O nome da cidade soa como Vergi. Essa região desapareceu depois, destruída e levada pela água. Creio que não sofreu o martírio; senão eu não o teria esquecido. Escreveu alguns livros, nos quais se refere também à Paixão de Jesus Cristo. Mas foram também editados livros de autores sob o nome de Ctesifon e alguns livros deste sob outros nomes; assim foram alguns escritos de sua autoria condenados pela Igreja, junto com os outros não escritos por ele. Um dos guardas do sepulcro de Cristo que não se deixara subornar, era conterrâneo de Ctesifon, a quem dedicava especial afeição. O nome soava-lhe como Sulei ou Suleji. Este foi preso e depois de recuperar a liberdade, viveu sete anos escondido numa caverna do monte Sinai, continuamente socorrido pelos amigos de Ctesifon. Este homem recebeu grandes graças e escreveu um livro, com profundas meditações, semelhantes aos escritos de Dionísio Areopagita. Um escritor dos tempos posteriores aproveitou partes desse livro, as quais assim chegaram ao nosso tempo. Eu mesma li uma vez certas coisas no convento, que agora sei que provinham deste escritor. Eu o sabia muito claramente, como também o título do livro; mas pelas contrariedades e pela falta de sossego, esqueci-o. Esse conterrâneo de Ctesifon veio visitá-Io mais tarde, na Espanha. Entre os companheiros de Ctesifon na Espanha, estavam seu irmão Cecílio, também um Intalécio, Hesício e Eufrásio. Converteu-se também, nos primeiros tempos, um Árabe de nome Sulima. Não me lembro mais das circunstâncias; mais tarde, no tempo dos diáconos, se tornou cristão outro conterrâneo de

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Ctesifon, cujo nome soava como Sulensis. Clemente Brentano junta a esta informação de Catharina Emmerich as seguintes anotações: No verão de 1832, nove anos depois da morte da narradora, leu o autor no 3º. tomo da "Viage literário e Ias Iglesias de Espana" de D. J. L. Villanueva. (10 tomos, Madrid, 1805-23) a notícia que damos aqui em resUlpo. Pelo ano de 1595 foram feitas escavações em Granada e descobertos documentos, relíquias e chapas de chumbo, que continham os nomes de Ctesifon e Hiscius, discípulos de Tiago o Maior, etc. Este achado foi declarado por várias pessoas, especialmente pelo D. J. B. Perez, bispo de Savoia, uma impostura premeditada para provar assim que o sepulcro daqueles dois discípulos, como o de Cecílio, estavam em Granada. Perez diz que o impostor teve essa idéia pela crônica falsa, afamada naquele tempo, sob o nome de FI. L. Dexter; pois esta menciona como discípulos de Tiago o Maior: Ctesifon, Hiscius e Cecílio. Um velho pergaminho gótico citava os seguintes propagadores do cristianismo, que desembarcaram em Cadix e dali percorreram o país: Torquato teria ficado em Acci (Cadix), Hesichius (Hiscius) fora para Carcesa (Garzorla), Intalesion para Ursi (Almeria ou Orco, perto de Galera), Secundo, para Abula (Avilla), Cecílio para Eliberri (Sierar Elvira, perto de Granada), Eufrásio para Iliturgi (Andujar), Ctesifon para Berge, que alguns tomavam por Verja, na Aragonia, outros por Verga, perto de Granada e outros ainda por Vera, situada à beira-mar, entre Cartagena e Capo di Gata. Nesses lugares teriam pregado e também morrido e ali lhes seriam veneradas as relíquias. Mas, diziam, esses discípulos eram enviados pelos Apóstolos de Roma e apenas um documento, sabidamente falso, sob o nome de Papa Calixto lI, falando da transladação do corpo do santo Apóstolo Tiago o Maior para a Espanha, os chamava discípulos deste. Mas os discípulos deste Apóstolo eram, segundo a história da Espanha, escrita por Pelágio, bispo de Oviedo: Calosero, Basílio, Crisógno, Teodoro, Arcanásio e Máximo. Como prova principal da impostura, alega Perez que essas chapas de chumbo mencionam que Ctesifon, antes do Batismo, era chamado Abenadar, mas os outros sete tinham nomes gregos ou latinos; como podia se lhes juntar um nome árabe? Naquele tempo não havia ainda Árabes; e depois, porque abandonou o nome árabe? etc. Também afir-mam esses documentos falsos que Ctesifon tinha escrito um livro em língua árabe, com letras salomônicas. Por quê? se não havia naquele tempo Árabes na Espanha, etc? Depois critica ainda o bispo Perez as tais chamadas letras salomônicas e pergunta: Por quê escreveu árabe em letras salomônicas? Em Maio de 1833 achou o autor em "Mariana de rebus Hispanicis", que a lenda conta, entre os discípulos acima mencionados, ainda um Atanásio e um Teodoro, que teriam sido guardas do sepulcro de

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Jesus; e no dia seguinte achou nos "Actis Sanctorum", tomo lI, para o dia 1º. de Fevereiro, um comentário sobre S. Cecílio e os companheiros na Espanha, que contém, além de muitas coisas sobre aquele achado falso, também o documento da rigorosa condenação do Papa Urbano VIII dos escritos e chapas de chumbo descobertos em Granada e falsamente atribuídos a Cecílio e aos companheiros, como também uma lista desses documentos condenados, tirada do "Aparatus sacer" de Possevino e outra diferente, do comentário de Bivário sobre a crônica atribuída a Dexter. Nestas listas se encontram, entre outros, esses capítulos: do reino e da morada do inferno, da infinita providência, da misericórdia, da justiça, de tudo quanto Deus criou e da criação dos anjos, da glória e dos milagres de Cristo, N. Senhor e de sua Mãe, desde a encarnação do Verbo, até a Ascensão, etc., títulos que bem podiam lembrar as meditações, acima mencionadas, de Sulei, amigo de Ctesifon, o qual viveu no monte Sinai e escritas à maneira de Dionísio Areopagita. Em geral têm esses documentos tanta analogia com o fragmento da narradora, que lemos acima, que deixamos o leitor verificar se participa da nossa surpresa. Teriam existido obras daqueles discípulos árabes, que foram depois falsificadas, com intenções sectárias, como aconteceu à história dos Apóstolos de Abdais e às obras de Dionísio Areopagita? A narradora falou diversas vezes da falsificação das obras do último e mencionou também que foram cometidas falsificações nas obras de Ctesifon e assim algumas tinham sido condenadas. Infelizmente a narração ficou neste ponto tão incompleta, que mal podemos adivinhar. 9. O nome de CaIvário. Pensando no nome do rochedo da crucifixão, Gólgota, Calvário, que significa lugar da caveira, entrei numa contemplação muito completa sobre esse lugar, desde Adão até Jesus Cristo. Vi Adão na gruta do monte das Oliveiras, onde Jesus suou sangue; foi depois da expulsão do Paraíso; vi que Set foi prometido a Eva na gruta de Belém, onde também nasceu; Eva viveu também nas grutas perto de Hebron, onde depois havia o convento Masfa dos Essenos. Após o dilúvio, vi a região de Jerusalém muito mudada. Tornara-se rochosa, sinuosa e sinistra; sob o rochedo do Calvário, muito profundamente (no dilúvio lhe caiu um rochedo em cima), me foi mostrado o sepulcro de Adão e Eva. Faltava uma caveira e o lado de um esqueleto. A outra caveira jazia muito profundamente, dentro do esqueleto ao qual não pertencia. Já tenho visto muitas vezes que as ossadas de Adão e Eva não ficaram todas no sepulcro. Noé guardou alguns ossos na arca e esses passavam de uma geração de patriarcas à outra. Noé e Abraão colocavam sempre alguns ossos no altar, ao oferecerem um

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sacrifício, recordando deste modo a Deus a promissão. Quando Jacó deu a José a túnica de diversas cores, vi que também lhe deu, como coisa sagrada, uns ossos de Adão. José trazia-os sempre sobre o peito; com os seus próprios. ossos, foram também colocados na Arca Santa, que os israelitas levaram consigo do Egito. Vi muitas dessas coisas, mas em parte as esqueci, em parte não tenho tempo de contá-Ias agora. A respeito do nome de Cal vário ou lugar da caveira, vi o seguinte: Vi o monte Cal vário nos tempos do profeta Eliseu. Não tinha a mesma forma que no tempo de Jesus. Era uma colina cheia de muros e sepulcros semelhantes a grutas. Vi o profeta Eliseu descer ao fundo, não sei se foi corporal ou espiritualmente, e tirar uma caveira de uma tina de pedra, na qual havia muitos ossos. Vi ao lado uma pessoa, creio que era a aparição de um Anjo, que lhe disse: "Esta é a caveira de Adão". O profeta quis levá-Ia consigo, mas a pessoa não lho permitiu. Nessa caveira havia em diversas partes ainda, cabelos finos, amarelos. Soube também que, pela narração do profeta, o lugar recebeu o nome de Cal vário, lugar da caveira. Vi que a Cruz de Jesus estava perpendicularmente sobre a caveira de Adão e foi-me revelado que esse ponto era o centro da terra e como explicação me foram dadas medidas e números em todas as direções do mundo, os quais, porém, esqueci, como muitas singularidades e também a conexão de tudo. Vi, porém, esse centro, olhando de cima; vê-se assim muito mais claro do que num mapa; vêem-se países, montanhas, desertos, mares, rios, cidades e lugarejos, estejam perto ou longe, com a mesma clareza. 10. Fragmento sobre José de Arimatéia. José era natural de um lugar situado a cerca de seis milhas romanas ou a algumas horas de distância, ao oeste de Jerusalém, no caminho de Nazaré. Se bem me lembro, havia perto dali uma espécie de fosso ou leito seco de um rio. Tinha montanhas íngremes, donde tiravam pedras brancas. Essa pedreira pertencia a José. Este se separara dos dois irmãos, que ali moravam e mudara-se para Jerusalém, no princípio da vida pública do Senhor. Era homem calmo e prudente e contudo simples, que fazia tudo silenciosamente; hoje o chamaríamos melancólico. Era solteiro e morava não longe de João Marcos, numa pequena casa. Na vizinhança havia armazéns abobadados e pátios cercados de muros, nos quais estavam amontoadas muitas pedras brancas da pedreira. Negociava nessas pedras, esculpia ou fazia esculpir por canteiros, por exemplo: pias grandes, tinas, vasos em forma de navios e também grandes chapas, nas quais havia figuras de homem deitado, do tamanho natural, em baixo relevo. Eram provavelmente leitos sepulcrais. Era amigo íntimo de Nicodemos, que também esculpia em pedra. Faziam várias empresas de sociedade. Um destes dias vi que

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Nicodemos estava trabalhando numa pedra, à luz de um candeeiro, num subterrâneo, quando vieram vê-Io alguns discípulos. Vi-o esculpir na pedra a figura de uma criancinha enfaixada, de rosto oval, como se representa o sol; talvez fosse o leito sepulcral de uma criança. Vi-os também Juntos, trabalhando no sepulcro no qual depois o corpo do Senhor foi depositado. Nicodemos era viúvo e tinha dois filhos. José não tinha família; comia alternadamente em casa dos amigos, mais vezes com Nicodemos, muitas vezes também com o marido de Verônica, etc. Eis tudo quanto me lembro hoje, das muitas coisas que vi, a respeito de José.