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ANO I. N. 02 Julho / 2017

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Revista Artigo Jurídico Publicação trimestral

Ano I, Nº 2

Editor-Chefe Dirley da Cunha Júnior

Corpo Editorial

Brenno Cavalcanti Araújo Brandão, Dirley da Cunha Júnior, Edenildo

Souza Couto, Ilana Martins Luz, João Glicério de Oliveira Filho, Luciano Dorea Martinez Carreiro, Michelle

Cristine Assis Couto, Ricardo Maurício Freire Soares.

Projeto gráfico e diagramação

Francis Barreto Lima.

Ficha catalográfica: Artigo Jurídico: Publicação gratuita e trimestral Endereço eletrônico:www.artigojuridico.com.br/revista ISSN: 2526-0189 1. Ciências sociais aplicadas 2. Direito 3. Artigos Jurídicos

EXPEDIENTE

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CORPO EDITORIALDirley da Cunha Júnior - Editor chefe

Pós-Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de

Lisboa (Portugal). Doutor em Direito Constitucional pela

PUC-SP e Mestre em Direito pela UFBA. Professor de Direito

Constitucional nos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado

na UFBA. Professor de Direito Constitucional e Direitos

Humanos nos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado

na UCSAL e do Curso preparatório Brasil Jurídico (https://

brasiljuridico.com.br). Conferencista. É professor-pesquisador

do CNPQ, liderando o Núcleo de Pesquisa em “Processo

Constitucional e Direitos Fundamentais”, tendo como linhas de

pesquisa “Cidadania e Efetividade dos Direitos” e “Jurisdição

Constitucional e Efetividade dos Direitos Fundamentais”.

Hodiernamente, está desenvolvendo o Projeto de Pesquisa

sobre Cidadania e Efetividade dos Direitos Sociais, do Programa

de Mestrado em Políticas Sociais e Cidadania, da UCSAL. Possui

diversos livros e artigos publicados. É Juiz Federal Titular da

5ª Vara da Seção Judiciária da Bahia, mas já foi Promotor de

Justiça na Bahia (1992-1995) e Procurador da República (1995-

1999).

Ricardo Maurício Freire SoaresPós-Doutor em Direito pela Università degli Studi di Roma La

Sapienza, pela Università degli Studi di Roma Tor Vergata e pela

Università del Salento. Doutor em Direito pela Università del

Salento. Doutor em Direito Público e Mestre em Direito Privado

pela Universidade Federal da Bahia. Professor dos Cursos

de Graduação e Pós-Graduação em Direito da Universidade

Federal da Bahia (Especialização/Mestrado/Doutorado).

Professor da Universidade Católica do Salvador, da Faculdade

Baiana de Direito e da Faculdade Ruy Barbosa. Professor-

visitante em diversas Instituições, tais como: Università degli

Studi di Roma La Sapienza, Università degli Studi di Roma

Tor Vergata, Università degli Studi di Roma Tre, Università

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degli Studi di Milano, Università di Genova, Università di Pisa,

Università del Salento, Universidade Autônoma de Lisboa,

Universidade do Algarve, Universidad de Burgos e Martin-

Luther-Universitat.Professor do Curso Brasil Jurídico, do

Curso Damásio Educacional, da Escola Judicial do Tribunal

Regional do Trabalho, da Escola de Magistrados da Bahia e da

Fundação Faculdade de Direito. Pesquisador e Líder de Grupo

de Pesquisa vinculado ao CNPQ. Diretor e Membro do Instituto

dos Advogados da Bahia. Membro do Instituto dos Advogados

Brasileiros e do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.

Palestrante e Autor de diversas obras jurídicas, especialmente,

pela Editora Saraiva. E-mail: [email protected].

João Glicério de Oliveira FilhoPossui graduação em Direito pela Universidade Federal da

Bahia (2002), especialização em Direito pelas Faculdades Jorge

Amado (2005), mestrado em Direito pela Universidade Federal

da Bahia (2008) e doutorado em Direito pela Universidade

Federal da Bahia (2012). Atualmente é professor de Direito

Comercial da Faculdade de Direito da Universidade Federal

da Bahia, professor de Direito Empresarial do Curso Cejus,

EMAB – Escola dos Magistrados da Bahia e ESAD – Escola

Superior de Advocacia Professor Orlando Gomes da OAB/BA,

Advogado, Membro do IBRADEMP – Instituto Brasileiro de

Direito Empresarial. Tem experiência na área de Direito, com

ênfase em Direito Empresarial, atuando principalmente nos

seguintes temas: Direito Empresarial, Societário, Falimentar,

Contratual Empresarial, Bancário e Concorrencial. Professor

da Faculdade Ruy Barbosa – Grupo DevryBrasil. Professor da

UNIJORGE.

Luciano Dorea Martinez CarreiroÉ Doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela

Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Direito Privado e

Econômico pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Mestre

em Direito Social pela Universidad de Castilla-La Mancha

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(UCLM – título reconhecido pela USP) e Doutorando em Direito

Social pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM). É

também Especialista em Direito Processual (Orientador J. J.

Calmon de Passos – UNIFACS), em Direito Constitucional do

Trabalho (Orientador José Augusto Rodrigues Pinto, UFBA)

e em Direito Previdenciário (Orientador Fábio Zambitte

Ibrahim, JUSPODIVM) É PROFESSOR ADJUNTO de Direito do

Trabalho e da Seguridade Social da UFBA desde 2010. É JUIZ

DO TRABALHO desde 1995, Titular da 9a Vara do Trabalho de

Salvador. Titular da Cadeira 52 da ACADEMIA BRASILEIRA

DE DIREITO DO TRABALHO desde 2009. Titular da Cadeira 26

da ACADEMIA DE LETRAS JURÍDICAS DA BAHIA desde 2013.

Coordenador da Pós-graduação em Direito Previdenciária

da Universidade Católica do Salvador desde 2015 Professor

convidado em diversos Programas de Pós-graduação (PUCRS,

PUCSP, UCS, USP, entre outros) e em diversas Escolas Judiciais

(ENAMAT e Escolas Judiciais dos TRT´s de Alagoas, Amazonas,

Bahia, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Paraíba, Pernambuco,

Piauí, Rio Grande do Sul, São Paulo e Sergipe). Atua nas áreas

de Direitos Fundamentais, Direito do Trabalho (relações

individuais e coletivas), Processo do Trabalho, Direito da

Seguridade Social e Mediação de Conflitos. É colunista da

seção Empregos do Jornal A Tarde, desde 2005. Autor do livro

“Condutas Antissindicais”, do “Curso de Direito do Trabalho”

e coautor do “Guia Prático da Previdência Social”, todos

publicados pela editora Saraiva. Coordenador e coautor do

Dicionário Brasileiro de Direito do Trabalho, publicado pela

LTr. Autor de diversos artigos jurídicos.

Edenildo Souza Couto

Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da

Bahia (UFBA). Pós-graduado em Direito Processual Civil pelo

Juspodivm. Bacharel em Direito. Laureado na graduação.

Escritor de livros e de vários artigos publicados em revistas

jurídicas. Professor de diversas disciplinas do Direito.

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Atualmente é Assessor de Juiz – Tribunal de Justiça do Estado

da Bahia e Professor de diversas disciplinas do curso de Direito.

Ilana Martins Luz

Doutoranda em Direito Penal pela USP. Mestre em Direito

Público pela UFBA. Especialista em Direito Penal Econômico

pela Universidad Castilla- La Mancha (Toledo, Espanha) e pelo

Instituto Europeu de Direito Penal Econômico. Professora

Adjunta de Direito Penal da UNIFACS. Advogada criminalista.

Michelle Cristine Assis Couto

Professora de Direito Civil em diversas Instituições de Ensino

na Cidade de Salvador. Mestre em Direito Privado pela

Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Direito

do Trabalho pela Fundação de Direito da Bahia. Especialista em

Direito Privado pela Unyanna, com Aperfeiçamento Jurídico

pela Escola de Magistratura da Bahia. Integrante do grupo de

Pesquisa científica :Representações Sociais, Arte e Ideologia do

Programa de Doutorado em Ciências Sociais da UFBA.

Brenno Cavalcanti Araújo Brandão

Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Pós-

graduado em ciências criminais pelo JusPodivm. Professor em

Direito Penal. Advogado e escritor.

Roberta Sobral Varjão Couto

Pós-graduada em direito civil pelo JusPodivm. Graduada em

Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Juíza

Leiga do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (2011-2015).

Advogada.

País: Brasil, Cidade: Salvador-Ba.Contato: [email protected]

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SUMÁRIO

LIBERDADE DE EXPRESSÃO: A PERSEGUIÇÃO NA INTERNET 9Carlos Magno Moulin Lima

APLICAÇÃO HERMENÊUTICA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE 47DA PESSOA HUMANA Milton Silva VasconcellosAna Maria Seixas Pamponet

MATAMOS ROBERT ALEXY COM A APLICAÇÃO DATEORIA DA 65 KATCHANGA?Edenildo Souza Couto

O DESAFIO DA TÓPICA 70Pedro Léo Alves Costa

OS EFEITOS DA DECISÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 145895.759 NA INTERPRETAÇÃO DOS DIREITOS TRABALHISTASEM FACE DA POSSIBILIDADE DE NEGOCIAÇÃO E CONCILIAÇÃO INDIVIDUAL E COLETIVAMurilo Cautiero Abi-Acl

POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA – UM ESTUDO REFLEXIVO 152SOBRE A PERMANÊNCIA DE VIVER SEM SER VISTO PELO ESTADORamani Rodrigues de Araújo Sampaio Ana Maria Seixas Pamponet

A INCONSTITUCIONALIDADE DAS COTAS RACIAIS NAS 175INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE ENSINO SUPERIORAilton Antunes Nogueira Júnior

A CONTAGEM DE PRAZO NO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL 207ESTADUAL, APÓS A VIGÊNCIA DO NOVO CPCEdenildo Souza Couto

REVISITANDO OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS E 215INFORMATIVOS DO PROCESSORenato Pessoa Manucci

A REPARAÇÃO DO DANO NA FASE DE EXECUÇÃO PENAL 251Luiz Flávio Borges D’Urso

CONSIDERAÇÕES SOBRE A PREVISÃO DOS PROCEDIMENTOS 254DE COMPLIANCE NA LEI DAS ESTATAISLuíza Moura Costa Spínola

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LIBERDADE DE EXPRESSÃO: A PERSEGUIÇÃO NA INTERNET

Carlos Magno Moulin Lima - Juiz de Direito-ES, mestre em Direito pela PUC/SP e Doutorando em Direito pela Universidade de Lisboa, Portugal. Professor licenciado da Faculdade de Direito Novo Milênio (Graduação e Pós-Graduação) - Vila Velha-ES. Professor do curso de Graduação em Direito da Universidade de Vila Velha-ES (UVV-ES).

1. INTRODUÇÃO

No campo da liberdade de expressão e das comunicações a sociedade

experimenta, na última década, expansão nunca antes imaginada,

potencializada pelas ferramentas de internet e, principalmente, pelas

redes sociais. A internet estreitou os relacionamentos pessoais e modificou

o modo como interagimos e hoje fala-se, inclusive, em internet das coisas

(IoT – Internet of Things), para conexão de carros, televisores, geladeiras

e outros objetos à rede mundial de computadores o que futuramente, por

certo, possibilitará a interação entre máquinas e seres humanos.

Estima-se que somente a plataforma Facebook tenha 1,5 bilhão de

usuários, o que é impressionante, pois corresponde a aproximadamente

20% da população mundial. Além disso, é comum o registro de usuários em

mais de uma rede social. Não há, portanto, nada mais poderoso em nível de

compartilhamento de informações.

Mas até que ponto isso é positivo? Sob a ótica da utilização das mídias

sociais para aviltamento da honra alheia, da privacidade e da imagem, ao

argumento do exercício da liberdade de expressão, certamente, não há nada

mais nocivo. Principalmente quando essas ferramentas são utilizadas pelos

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stalkers ou perseguidores, exatamente aquelas pessoas que importunam

de forma obsessiva e insistente uma outra pessoa, trazendo prejuízos

morais, psicológicos e até mesmo financeiros. A junção dessa modalidade

de distúrbio psicológico com o meio virtual utilizado para concretização

do ato lesivo fez surgir a figura do cyberstalker ou perseguidor virtual, que

lança mão do vasto reservatório de dados disponíveis na internet, inclusive

das mídias sociais, para obtenção de todas as informações de que necessita

a respeito do alvo a ser atingido.

O mundo virtual ou mundo online é apenas uma continuidade da

realidade off-line, “não é mais do que o prolongamento das capacidades

humanas para uma área onde o espaço deixa de ser um limite

considerável”,[1] onde a informação é facilmente captada e divulgada sem

os obstáculos territoriais.

1.1 EXEMPLO DO PROBLEMA E LIMITAÇÃO DO TEMA

Historicamente a internet tem origem militar. Em 1969, nos Estados

Unidos, a Agência de Pesquisas em Projetos Avançados – ARPA (Advanced

Research and Projects Agency) pretendia interligar as bases militares

e os departamentos de pesquisa do governo americano e por tal razão a

ARPANET é considerada a primeira rede operacional de computadores.

Já no início da década de 70 algumas universidades tiveram

permissão para conexão ao sistema ARPANET e em meados da mesma

década, verificando a inadequação do protocolo de comutação de dados

em virtude do crescimento da rede, a ARPANET começou a utilizar um

novo protocolo chamado TCP/IP (Transmission Control Protocol/Internet

Protocol), sistema que ainda hoje torna possível a conexão da maioria dos

computadores do planeta à rede mundial de computadores.

No início da década de 80 as redes tinham por finalidade a troca e

compartilhamento de dados e informações científicas, mas com o passar

dos anos começaram a surgir os sistemas de trocas de mensagens coletivas e

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os sistemas de mensagens de correio eletrônico. A World Wide Web (www)

surge em 1990, graças ao trabalho incansável do físico britânico, cientista

da computação e professor do MIT, Timothy John Berners-Lee, que em 25

de março de 1989 havia feito a primeira proposta para a sua criação.

No final da primeira metade da década de 90 a web se tornou acessível

à população, expandindo-se de forma incalculável, transformando-se

num universo onde diariamente seres humanos interagem socialmente e

economicamente. E como todo sistema vivo, suscetível ao aperfeiçoamento e

a uma série de situações das mais variadas espécies, demanda a intervenção

do Direito.

Nota-se que na mesma proporção de desenvolvimento da rede

mundial de computadores houve, também, modificação comportamental

de seus usuários. Se no início verificávamos alterações pontuais de

humor em discussões travadas em sistemas de trocas de mensagens, hoje

verificamos uma enorme gama de casos concretos de lesão a direitos de

personalidade. O mundo virtual se tornou ambiente propício aos excessos

e o que faz a internet tão atrativa aos perseguidores virtuais é a ausência

de limites geográficos, permitindo que as vítimas sejam encontradas em

qualquer lugar do mundo, tudo isso aliado a um certo grau de anonimato

e a falsa sensação de que o seu uso é desprovido de qualquer controle por

parte do Estado.

É cediço que a honra, a imagem, a privacidade e a reputação são

bens de personalidade. Por outro lado, a liberdade de expressão constitui

direito de extrema importância. Mas qual é o limite do exercício da

liberdade de expressão na internet, sem que haja colisão com os direitos

de personalidade? É possível reproduzir, nas redes sociais, publicações que

atentem contra a honra, imagem, privacidade, ao argumento do exercício

da liberdade de expressão? No mesmo sentido, é possível a utilização das

redes sociais para externar insatisfações pessoais em face de qualquer

pessoa? E quando essas novas mídias sociais são utilizadas com a finalidade

de ultrajar, de forma reiterada, qual o caminho a seguir?

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É necessário que sejam conciliados, na medida do possível, a

liberdade de expressão e informação, por um lado, e a integridade moral, o

bom nome e reputação, a honra e a imagem por outro. Somente quando essa

equação se revelar inviável ou, havendo colisão desses direitos, deve-se,

em princípio, buscar solução pela prevalência do direito de personalidade.

O objetivo da pesquisa é, portanto, identificar hipóteses que

transbordam ao necessário ponto de estabilidade, resultando em ofensa a

direitos fundamentais e direitos de personalidade, onde a internet é utilizada

como meio para a obtenção do resultado lesivo. Pretende-se, inclusive,

analisar as consequências do stalking no mundo virtual e demonstrar que

o Direito deve se preocupar com esse fenômeno relativamente recente que

é um misto de perseguição e assédio praticados de forma reiterada, com

a utilização de ferramentas de internet, ao argumento, muitas vezes, de

mero exercício da liberdade de expressão.

Ainda que a discussão sobre o stalking cibernético seja relativamente

recente, pode-se afirmar que se trata de um fenômeno social de grande

impacto psicológico, cujas consequências são devastadoras e imprevisíveis,

podendo resultar em limitação da liberdade, suicídio ou até mesmo

em homicídio do perseguidor. Acresça-se aos resultados nefastos da

perseguição virtual a possibilidade de perpetuação da ofensa, haja vista

que as informações online dificilmente são apagadas e, ainda, podem ser

replicadas a exaustão por seus milhares de utilizadores. E mesmo que por

um dado momento a informação seja extirpada do mundo virtual, há a

possibilidade de ter sido armazenada em dispositivos off-line, como pen

drives, hard disks externos, DVD´s, CD´s etc, facilitando sua reinserção na

internet.

2. QUANDO A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET SE

TRANSFORMA EM OFENSA

É a liberdade uma conquista da história humana, sendo impossível

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imaginar o homem sem a liberdade. Como leciona Adriano de Cupis, “a

liberdade não se limita, então, a caracterizar a força jurídica que reveste

um determinado bem, mas assume ela mesma a dignidade de bem sobre o

qual incide a força jurídica do sujeito”.[2] O estabelecimento de limites ao

seu exercício, todavia, não deve ser associado à sua negação; ao contrário,

os limites permitem que o homem escolha entre as diversas possibilidades

existentes e suas respectivas consequências, transformando em fato o que

por essência é pura abstração.

Mas qual é o limite da liberdade de expressão?

É indiscutível que a liberdade de expressão é um dos pilares da

democracia. Assegurada no artigo 19, da Declaração Universal dos Direitos

do Homem de 1948, visa a garantir o direito de expressar, sem qualquer

fronteira, opiniões e pensamentos e, ainda, o direito de receber e difundir

informações e ideias. Mas tal previsão não pode ser objeto de análise

isolada, sob pena de interpretação equivocada e supressão de direitos.

É na mesma Declaração Universal dos Direitos do Homem que nos

deparamos com outras previsões de idêntica importância, que impedem as

intromissões arbitrárias na vida privada e os ataques à honra e reputação,

além de revelarem deveres inerentes a todos os indivíduos, cuja finalidade

exclusiva é promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades

dos outros.

O artigo 10 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem nos

mostra que o direito à liberdade de expressão compreende a liberdade de

opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias. O

mesmo dispositivo legal indica que o exercício destas liberdades pode ser

submetido a certas restrições, com a finalidade de proteção dos direitos de

outrem, especialmente a honra e a moral.

A Convenção Americana de Direitos Humanos (também chamada

de Pacto de San José da Costa Rica), assinada em 22 de novembro de 1969,

baseada na Declaração Universal dos Direitos Humanos que compreende o

ideal do ser humano livre, contempla no artigo 13 a liberdade de pensamento

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e de expressão, destacando que o exercício desse direito não pode estar

sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem

ser fixadas expressamente em lei específica, para assegurar o respeito aos

direitos ou à reputação das demais pessoas ou a proteção da segurança

nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.

A Constituição da República do Brasil, de 1988, assegura a em

seu artigo 220, caput, a impossibilidade de restrição à manifestação do

pensamento, da criação, da expressão e da informação. Todavia, o seu

parágrafo primeiro, ao tratar da liberdade de informação jornalística, a

vincula a outras garantias fundamentais, como a vedação do anonimato, o

direito de resposta proporcional ao agravo, a inviolabilidade da intimidade,

da vida privada, da honra e da imagem das pessoas.

Esse direito é também assegurado no artigo 19, do Pacto Internacional

de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), ratificado por mais de 166 países, que

prevê a possibilidade de submissão a certas restrições expressas, fixadas em

lei, para salvaguarda dos direitos ou da reputação de outrem, da segurança

nacional, da ordem pública, da saúde e da moralidade públicas. Inclusive

esse deve ser o ponto de partida das leis que porventura tenham por escopo

a sua restrição, ou seja, qualquer medida de restrição deve estar em total

sintonia com cada um dos objetivos descritos no PIDCP.

Sobre a discussão relativa à possibilidade de limitação legislativa

da liberdade de expressão é de bom alvitre registrar decisões divergentes

produzidas pela Suprema Corte brasileira. Na Arguição de Descumprimento

de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130, o Exmo. Sr. Ministro Carlos Ayres

Britto sustentou que nenhum limite legal poderia ser instituído em relação

ao mencionado direito, senão aqueles já previstos no texto constitucional,

competindo ao Poder Judiciário as necessárias ponderações em caso de

colisões com outros direitos.[3] Em sentido diverso o Exmo. Sr. Ministro

Gilmar Ferreira Mendes, em sede de Recurso Extraordinário (RE 511.961/

SP) proferiu decisão salientando que as restrições à liberdade de expressão

em sede legal são admissíveis, desde que justificadas pela imperiosa

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necessidade de resguardo de outros valores constitucionais,[4] posição que

se revela em sintonia com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.

A liberdade de expressão, portanto, é espécie de liberdade assegurada

politicamente pelos regimes democráticos pois, a partir de diferentes

perspectivas, vem inscrita em instrumentos políticos por excelência desde

o século XVIII (Declarações de Direitos, Pactos, Constituições, Tratados,

Convenções), sendo de fundamental importância ao exercício dos

direitos individuais por se tratar de garantia ao livre desenvolvimento da

personalidade e à dignidade humana. Não pode ser conceituada apenas

como o direito de divulgar informações e ideias, mas em sua plenitude

abrange o direito de buscá-las e ter acesso a elas, o que possibilita, por

consequência, a interação de cada indivíduo com o seu semelhante, tanto

para externar suas próprias ideias como para ouvir aquelas expostas pelos

outros.

No entanto a liberdade de expressão não constitui um direito

absoluto e o seu exercício pode conflitar, em inúmeras hipóteses, com

outros direitos fundamentais ou bens jurídicos igualmente tutelados. E a

solução desses conflitos, além de estar vinculada às peculiaridades de cada

caso concreto, deve buscar equação que revele ponderação de interesses,

orientada pelo princípio da proporcionalidade.

Os textos legais até o momento analisados evidenciam um modelo

de liberdade de expressão com responsabilidade, pois estabelecem que

aqueles que atuarem de forma abusiva no exercício desse direito, causando

danos a outros, podem ser responsabilizados. E a Constituição Brasileira de

1988 corroborando essa ideia de liberdade com responsabilidade proíbe

expressamente o anonimato, exigindo a identificação do autor de cada

manifestação.

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2.1 A UTILIZAÇÃO DAS REDES SOCIAIS COMO INSTRUMENTOS DE

VIOLAÇÕES AOS DIREITOS DE PERSONALIDADE

Estados Unidos e Brasil são, reconhecidamente, países líderes em

número de usuários de redes sociais, especialmente o Facebook, Twitter

e YouTube. Ocorre que o comportamento desses usuários nem sempre é

pacífico e, em alguns casos, ultrapassa os limites da irresponsabilidade civil,

adentrando muitas vezes em seara regida pelas sanções do Direito Penal.

Mais grave ainda é a utilização desses mecanismos de interação social

com a clara finalidade de violação aos direitos de personalidade. Vejamos

algumas situações fáticas e suas consequências nefastas:

Em 26 de novembro de 2008 um Júri Federal de Los Angeles

condenou uma mulher por ter provocado o suicídio da adolescente Megan

Meier, de 13 anos, pelo envio de mensagens ofensivas por meio de um

perfil falso criado na internet. Lori Drew, de 49 anos, foi acusada de fraude

e conspiração após a criação de um falso perfil de um adolescente de 16

anos na rede social MySpace, para se relacionar virtualmente com a vítima,

que nominou de “Josh Evans”. Segundo a acusação a jovem Megan Meier

suicidou-se em 16 de outubro de 2006, após o adolescente fictício afirmar

que o mundo seria um lugar melhor sem ela. O advogado da mulher

condenada, H. Dean Steward, acusou o governo de exagerar ao processar

sua cliente por algo que as pessoas fazem rotineiramente na internet: criar

falsas identidades.[5]

No Brasil o Facebook foi condenado ao pagamento de indenização

no valor de R$ 13.560,00 (treze mil, quinhentos e sessenta reais) por

não promover a retirada de uma fotografia adulterada de uma usuária,

comparada à dupla de palhaços “Patati Patatá”. A vítima teve uma fotografia

original modificada digitalmente, realçando as cores de sua maquiagem,

com a seguinte frase “maquiagem é uma coisa! Tentar roubar o emprego

do Patati Patatá é outra”. Embora a vítima tenha utilizado o recurso de

denúncia disponível na própria plataforma de rede social, para solicitar

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a remoção da imagem, não teve o seu pedido atendido. As fotografias

foram excluídas após determinação judicial e quando já contabilizavam

mais de 30 mil compartilhamentos. Em sua defesa o Facebook alegou que

a extrapolação dos limites da liberdade de expressão deve ser julgada pelo

Judiciário e não pela rede social. A decisão proferida em sede de recurso de

apelação reconheceu que o Facebook atua como provedor de hospedagem

e possibilita aos usuários a criação de páginas pessoais, armazenando

informações e que por tal razão a sua responsabilidade é de ordem subjetiva

pois, mesmo tendo a autora denunciado a fotografia adulterada por meio de

ferramentas específicas para tal finalidade, não houve o controle posterior,

omitindo-se o réu quanto a ilícito praticado por terceiro, sendo passível

de ressarcimento o dano moral experimentado resultante na violação ao

dever de respeito a direitos inerentes a personalidade de cada ser humano,

especialmente a imagem e a honorabilidade.[6]

Um caso interessante advindo de Portugal diz respeito ao

despedimento de um trabalhador, efetuado em 29/08/2013, em virtude de

uma postagem no Facebook considerada ofensiva à honra do Presidente do

Conselho de Administração de uma empresa. No julgamento do processo o

Tribunal da Relação de Lisboa analisou se a publicação na página pessoal do

autor estava inserida na chamada esfera pessoal ou se, por outro lado, o seu

conteúdo assumiu natureza pública, mesmo estando a publicação restrita

a um grupo fechado de amigos. Concluiu o Tribunal que a divulgação do

conteúdo em causa deve ser considerada como pública, pois mesmo que

inserida em grupo fechado não poderia levar a expectativa minimamente

razoável de reserva na divulgação do conteúdo, ainda mais quando trazia

ao final a expressão “partilhem amigos”. Realçou ainda o Tribunal:

(…) no conceito de ‘amigos’ do Facebook cabem não só os amigos

mais próximos, como também outros amigos, simples conhecidos ou até

pessoas que não se conhecem pessoalmente, apenas se estabelecendo

alguma afinidade de interesses no âmbito da comunicação na rede social

que leva a aceitá-los como “amigos”. Através de um amigo a publicação

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de um conteúdo pode tornar-se acessível aos amigos deste, além de poder

ser copiado para papel e exportado para outros sítios na internet ou

para correios eletrônicos privados e de se manter online por um período

indeterminado de tempo. O recorrente não poderia deixar de levar em conta

todos estes fatores e, logo, não poderia, nem é credível que o tenha suposto,

ter uma expectativa minimamente razoável de reserva na divulgação do

conteúdo.[7]

A decisão, em parte, guarda identidade de conteúdo com outra

proferida no Brasil em data recente e noticiada pelo serviço de comunicação

social do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Trata-se da condenação

de um ex-aluno da Escola Técnica Estadual a indenizar um professor por

danos morais, por postagem em rede social de imagens manipuladas,

vinculando-o ao consumo de álcool e drogas e supostas vantagens na

comercialização de uniforme escolar. Alegou o ex-aluno que as postagens

foram publicadas em grupo fechado (privado) na rede social Facebook, sem

acesso a terceiros. As postagens, segundo testemunhas, foram impressas e

colocadas nas paredes da escola, repercutindo negativamente o fato entre

todos os alunos e professores.[8]

Igualmente reprovável é o caso vivenciado por AliceAnn Meyer

que publicou em seu blogue, em 2014, uma foto do seu filho Jameson com

o rosto coberto de chocolate e marshmallow e agora luta para banir da

internet publicações que comparam o menino (portador de síndrome de

Pfeiffer – uma doença que afeta o formato da cabeça e da face) a um cão da

raça “pug”. Meyer relata que ficou chocada quando encontrou a imagem na

internet e ficou desanimada ao ver quantas vezes foi compartilhada e, ainda,

em diferentes idiomas.[9] Este caso, em especial, revela um outro problema

enfrentado diariamente pelas vítimas de crimes virtuais, principalmente

quando se trata de violação promovida por meio da rede social Facebook,

que é a ausência de providências quando utilizadas as ferramentas da

respectiva plataforma para denúncias, especificamente a mais importante

delas, a necessária retirada do material ofensivo do ambiente virtual, ao

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argumento de que a publicação não viola os padrões comunitários, o que

por certo representa absoluto desprezo a qualquer sistema de proteção a

direitos fundamentais.

Casos como estes são comuns e embora as condutas sejam variadas,

todas convergem para violações a direitos de personalidade. Os exemplos

indicam lesões evidentes à honra e reputação, à privacidade, à imagem,

à dignidade humana e a intenção de exposição das vítimas a situações

vexatórias.

Embora a internet possibilite o acesso a uma infinidade de

informações, o maior desafio tem sido justamente a seleção daquelas que

possam ser consideradas úteis e confiáveis. Os utilizadores estão limitados

a critérios parametrizados pelos motores de busca que, por sua vez,

funcionam por meio de algoritmos que se baseiam na popularidade dos

sites, estabelecida pela quantidade de acessos num determinado período,

o que por vezes permitirá a associação indevida de informações a certas

pessoas. Da forma como funcionam, os motores de busca acabam por

sugestionar o utilizador à compreensão errônea do assunto ou do dado

procurado, facilitando, inclusive, a propagação de falácias ou de agressões

a direitos de alguém em suas variadas formas. E lamentavelmente grande

parte dos utilizadores não é capaz de perceber, nesse universo ruidoso, a

melodia cristalina que rompe da informação verdadeira.

Em entrevista ao jornalista João Céu e Silva, do jornal Diário de

Notícias em Portugal, o escritor Umberto Eco evidenciou que “a informação

banaliza os acontecimentos” e que encontra muitas mentiras sobre si na

internet, como a atribuição de frases célebres de outros ou até mesmo a

divulgação de falecimento de um escritor famoso, o que já não incomoda

“porque acredita na fraqueza da memória das pessoas”. No entanto quando

indagado sobre a necessidade de controlar a internet, respondeu:

Isso é uma situação impossível de fazer nos tempos em que vivemos,

o que se deve é ponderar o que fazer desse universo. Há quem já tenha

dito, e acho que tem razão, que se nos anos 40 houvesse internet não teria

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havido campos de concentração como o de Auschwitz porque toda a gente

teria tido conhecimento. No entanto, no momento em que todos têm direito

à palavra na internet temo-la dada aos idiotas, que de outro modo nunca

seriam lidos noutro sítio.[10]

2.2 STALKING VIRTUAL OU CYBERBULLYING?

Um fenômeno que nos últimos anos tem despertado a atenção de

profissionais das áreas de psicologia, medicina e ciências jurídicas é o

stalking. Expressão derivada do verbo to stalk (perseguir), é prática que

consiste em padrão de comportamentos de assédio persistente ou de

perseguição incessante a alguém (vítima), com obtenções de informações

pessoais e tentativas de controle da sua vida, que podem gerar medo,

ansiedade e até mesmo danos de ordem psicológica.

No final dos anos 80 o stalking começou a surgir em filmes, na

televisão, em revistas, jornais e livros, mas foi o assassinato de Rebecca

Schaeffer, em 1989 nos Estados Unidos, que levou à publicação da primeira

lei anti-stalking na Califórnia, em 1990, tornando-se modelo para outros

sítios estadunidenses, contribuindo, inclusive, para que o Congresso viesse

a publicar leis federais sobre o tema. Foi estabelecido um padrão para

auxiliar os Estados no desenvolvimento de legislações aplicáveis ao tema

e no ano de 2004, em razão do aumento de utilizadores da internet (que

facilitou a proliferação de stalkers, pedófilos e outros predadores online),

vinte e seis Estados já possuíam leis contra a perseguição eletrônica.

É a perseguição virtual um fenômeno de enorme interesse social.

Determinada por um conjunto de comportamentos que, cumulados,

demonstram uma campanha de assédio, apresenta-se como um desafio

tanto para investigadores, como para os legisladores.

Lelio Braga Calhau, citando Damásio de Jesus, aponta que

(…) o stalking é uma forma de violência na qual o sujeito

ativo invade a esfera de privacidade da vítima, repetindo

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incessantemente a mesma ação por maneiras e atos

variados, empregando táticas e meios diversos: ligações

nos telefones celular, residencial ou comercial, mensagens

amorosas, telegramas, ramalhetes de flores, presentes não

solicitados, assinaturas de revistas indesejáveis, recados em

faixas afixadas nas proximidades da residência da vítima,

permanência na saída da escola ou do trabalho, espera de

sua passagem por determinado lugar, frequência no mesmo

local de lazer, em supermercados etc. O stalker, às vezes,

espalha boatos sobre a conduta profissional ou moral da

vítima, divulga que é portadora de um mal grave, que foi

demitida do emprego, que fugiu, que está vendendo sua

residência, que perdeu dinheiro no jogo, que é procurada

pela Polícia etc. Vai ganhando, com isso, poder psicológico

sobre o sujeito passivo, como se fosse o controlador geral

dos seus movimentos.[11]

O passado recente nos mostra que entre os anos de 1995 e 2000 o

acesso a internet aumentou expressivamente e o uso generalizado dessa

tecnologia infelizmente despertou a atenção dos stalkers que encontraram

uma poderosa ferramenta para a perseguição de crianças e adultos. Mais

grave ainda é que a própria internet tem oferecido suporte aos perseguidores,

seja pela facilidade de compartilhar informações, seja possibilidade de

tornar acessíveis verdadeiros manuais online que ensinam o passo a

passo das formas mais cruéis de perseguição e de violações de direitos.

E a gama de problemas virtuais vai aumentando não só em quantidade,

mas em complexidade, à medida que mais pessoas utilizam a internet

em casa, no trabalho, em aparelhos de fácil portabilidade como celulares

e tablets, interagindo em blogues, redes sociais e demais plataformas

de comunicação online que surgiram nos últimos anos. O relatório do

EUROSTAT (Escritório de Estatística da União Europeia), publicado em 08

de fevereiro de 2016, indica que 25% dos utilizadores de internet na União

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Europeia tiveram problemas de segurança online em 2015, tais como vírus,

abuso de informação pessoal, perdas financeiras ou acesso de menores a

sites inapropriados.[12] E quanto menos segurança houver na internet,

mais fértil será o terreno para a ação dos perseguidores virtuais.

Há uma enorme dificuldade em definir a perseguição virtual.

Basta verificar as publicações sobre o assunto para que sejam encontradas

diferentes respostas. Conceitualmente existem poucos elementos

necessários a identificação do stalking eletrônico, podendo ser caracterizado

pelo comportamento negativo, agressivo e reiterado, com a utilização de

equipamentos tecnológicos. Esta tecnologia pode ser um computador,

smartphone, tablet ou qualquer outro dispositivo eletrônico, capaz de enviar

informações ou dados à internet. Há necessidade, por outro lado, que a

vítima seja negativamente impactada pelo incidente, seja emocionalmente,

psicologicamente ou socialmente.

A perseguição eletrônica ou cibernética pode tomar diferentes

formas, algumas das quais de difícil detecção. As formas mais comuns

são: ameaças e intimidações, perseguição, calúnia, difamação e injúria,

exclusão online (quando a vítima é apagada de comunidades virtuais),

roubo de identidade, acesso não autorizado e personificação (criação de

perfil falso), envio ou compartilhamento de informações ou imagens

privadas. A maior particularidade da perseguição virtual, entretanto,

é que um simples incidente pode resultar em múltiplos ataques. É o que

se verifica, por exemplo, quando uma imagem humilhante é postada na

internet e compartilhada por diferentes sites e até mesmo em redes sociais.

É impossível mensurar as consequências desse ato nefasto, pois mesmo que

haja a supressão de determinados links em motores de busca, o conteúdo

pode reaparecer noutros locais e ser novamente detectável por qualquer

interessado.

Embora os termos cyberstalking e cyberbullying guardem

semelhanças pois indicam modalidades de violência e intimidação com a

finalidade de abalo moral e psicológico, entendemos que no cyberbulling

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o sofrimento da vítima é o fim pretendido, ao passo que no cyberstalking

o sofrimento é apenas o meio utilizado pelo perseguidor para alcançar

desígnios não consentidos pela vítima. Necessário compreender, por

conseguinte, que bullying é fim, pois o ato exaure em si mesmo e stalking

é meio, é o que se pode definir como verdadeira “caçada”. Enquanto o

primeiro tem por objetivo a destruição da estrutura psíquica da vítima,

de forma repetida, o segundo é forma de neutralização para que a vítima

faça algo contra a sua vontade, satisfazendo o interesse ou a vontade do

stalker. Utilizaremos, todavia, a definição genérica de perseguição virtual

ou de stalking virtual para a identificação de ambos os fenômenos, pois é

o que representa de maneira adequada a ideia de perseguição na internet.

Os estudos têm mostrado que o stalking é uma espécie de terrorismo

psicológico, pois as vítimas têm a sensação de que estão sob o controle

do stalker, sem condições de fuga, sensação assemelhada à prisão. Além

disso a perseguição gera um desgaste emocional intenso na vítima pois

há sempre a incerteza do que pode vir a ser a próxima agressão, situação

que aumenta o nível de ansiedade e preocupação, inclusive, em relação

aos próprios familiares, o que pode levar a um declínio da saúde física e

emocional. Há registros de depressão, asma, psoríase, pânico e até suicídio

resultante da perseguição sem a interferência devida do poder estatal. O

terror psicológico causado pelo stalking leva à diminuição da concentração

e produtividade no trabalho e pode causar, ainda, medo de sair de casa

para as atividades mais simplórias. Os efeitos negativos do stalking em suas

vítimas, familiares e amigos são traumáticos e não devem ser subestimados.[13]

Por ser um fenômeno relativamente recente, verifica-se que

em território europeu há apenas dez países que editaram leis contra a

perseguição virtual. São eles: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca,

Holanda, Irlanda, Itália, Malta, Portugal e Reino Unido. Essas leis,

embora distintas em conteúdo e providências, levam ao grande público a

preocupação dos respectivos países em relação às sérias implicações do

stalking, mas é preciso que cada nação entenda a importância de investir

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em mecanismos de prevenção, capazes de interromper as agressões antes

que provoquem lesões irreversíveis. E talvez seja esse o maior desafio,

principalmente quando analisado o fenômeno no mundo virtual, dada a

enorme dificuldade de exclusão de dados uma vez insertos na internet.

No Brasil a Lei nº 13.185, de 6 de novembro de 2015, instituiu o

Programa de Combate à intimidação Sistemática (Bullying), contemplando

no parágrafo único do artigo 2º a hipótese de cyberbullying, destacando

que “há intimidação sistemática na rede mundial de computadores, quando

se usarem os instrumentos que lhe são próprios para depreciar, incitar a

violência, adulterar fotos e dados pessoais com o intuito de criar meios de

constrangimento psicossocial”. Embora a referida lei seja a concretização

de iniciativa louvável do Poder Legislativo brasileiro, está muito distante da

realidade experimentada pelas vítimas e com o passar do tempo, sem ações

efetivas (por parte do poder público) que tenham por objetivo o combate

à essa prática nefasta, poderá ser reduzida a apenas uma carta de boas

intenções.

Além disso o texto legal contém alguns equívocos que podem

conduzir a interpretações errôneas. A título de exemplo o artigo 1º, §1º,

conceitua bullying ou intimidação sistemática como todo ato de violência

física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação

evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas,

com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima,

em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas.

Não parece adequada a expressão “sem motivação evidente”, haja vista

que ninguém persegue outra pessoa “sem motivação”, ainda que não

seja “evidente”. Em qualquer ato de perseguição sempre agirá o agressor

motivado por um algum raciocínio de natureza moral ou psicológica, seja

pela inveja, pela necessidade de ganhar popularidade, sentir-se poderoso

ou superior em relação à pessoa agredida.

Mas sem dúvida o ponto que merece maior discussão por parte

da comunidade jurídica é o contido no artigo 4º, inciso VIII, que trata dos

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objetivos do programa. De acordo com o referido preceito é objetivo evitar,

quando possível, a punição dos agressores, privilegiando mecanismos

e instrumentos alternativos que promovam a efetiva responsabilização

e a mudança de comportamento hostil. Certamente não pretendeu o

legislador a utilização de critério que permita desproporção abissal entre a

gravidade do dano e o remédio utilizado para combatê-lo. Na realidade deu

concretude à máxima de que o Estado deve intervir o menos possível na

livre determinação da vida dos seus cidadãos, sem esquecer que as lesões

provocadas pelos perseguidores, sejam reais ou virtuais, redundam em

ofensas a direitos fundamentais e a direitos de personalidade. Em hipótese

alguma a mens legis deve ser considerada como um privilégio ao ofensor;

deve-se realçar que a política legislativa não pode encontrar adequação a

todo e qualquer tipo de conduta, sob pena de tornar-se prolixa.

Estudos demonstram que o pedido de ajuda de uma vítima de

stalking só ocorre quando a mesma já não suporta as agressões e verifica

que sozinha não conseguirá resolver o problema. E há vários motivos

que levam a essa atitude, como a vergonha de dar publicidade ao

acontecimento ou até mesmo o medo de vingança por parte do agressor.

Há também outro dado importante que merece ser analisado com muita

atenção que é a identificação tardia do problema pela vítima. É comum

que as primeiras investidas sejam relevadas, quer por desconhecimento

do que seja o stalking, quer pela ausência de percepção das reais intenções

do agente. Todavia, a intervenção precoce reputa-se necessária para que se

previnam a expansão da frequência das lesões e o incremento na gravidade

das agressões. Igualmente importante é o aconselhamento da vítima de

que essas situações devem ser compartilhadas com aqueles que lhe são

próximos, pois certamente terão pontos de vista diversos de quem vivencia

as agressões e saberão avaliar e identificar situações de menor ou de maior

risco, adotando providências quando necessário.

O auxílio às vítimas não deve ser limitado à identificação do agente

e sua respectiva punição, pois numa ótica simplista isso apenas resolveria

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o problema relacionado a contenção do agressor, mas restariam abertas

as chagas provocadas no corpo e na alma. O interessante é a criação de

centros multidisciplinares, com médicos, psicólogos e profissionais da

área jurídica, para que cada caso possa ser analisado, inclusive, à luz do

sofrimento impingido à pessoa vitimada.

No mundo virtual, outras providências devem ser adotadas.

Iniciado um processo de cyberstalking deve a vítima inicialmente

procurar as informações disponíveis online, em blogues, redes sociais,

postagens existentes e outras mídias e remover qualquer dado que possa

levar à sua identificação pessoal, como endereço, data de nascimento,

locais que frequenta, telefones disponíveis etc. Atenção especial deve ser

dispensada aos dispositivos pessoais, como celulares, tablets, notebooks e

computadores. É necessário manter um antivírus atualizado para reduzir o

risco de infecção por vírus, spywares, trojans, ou qualquer outro programa

malicioso. Também é importante utilizar uma senha pessoal para bloqueio

desses dispositivos, evitando, destarte, o acesso por pessoas não autorizadas.

As redes Wi-Fi domésticas devem estar protegidas por senhas fortes (as que

combinam letras maiúsculas, minúsculas, números e caracteres especiais)

e o acesso a determinados websites deve ser evitado ao utilizar uma rede

Wi-Fi pública ou aberta. Igualmente importante é a utilização de senhas

distintas para blogues, redes sociais, e-mails e dispositivos de conexão a

internet. O nível de privacidade deve ser revisto em todas as mídias sociais

de modo a permitir o compartilhamento de informações somente com

pessoas realmente conhecidas. Fotografias que indiquem a localização

geográfica devem ser evitadas. Da mesma forma devem ser evitadas as

postagens de fotografias com crianças.

De extrema importância coletar o maior número possível de

evidências sobre o assédio virtual, incluindo postagens em redes sociais,

e-mails, detalhes de websites e capturas de telas (print screen ou screen

capture), para posteriormente comunicar a situação à autoridade policial.

Se a agressão envolver a criação de website ou blog para atentar contra

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direitos de personalidade, a vítima deve anotar o URL (Uniform Resource

Locator)[14], que nada mais é que o endereço “www”, disponibilizando-o

da mesma forma à polícia que poderá descobrir detalhes sobre a pessoa

responsável pela publicação e adotar as providências necessárias.

Embora as redes sociais permitam reportar excessos em publicações

ou denunciar publicações de conteúdo ofensivo por meio de espaços criados

para tal finalidade nas respectivas plataformas, dificilmente providências

são adotadas. Há o entendimento generalizado e padronizado pelas empresas

responsáveis por essas mídias de que determinadas ofensas “não violam os

padrões da comunidade”, o que é um verdadeiro absurdo, haja vista que os

padrões comunitários de qualquer ferramenta de internet jamais poderão

se sobrepor a direitos que transcendem a qualquer normatização, como é o

caso dos direitos de personalidade.

3. A TUTELA JURÍDICA E AS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS DA

PERSONALIDADE NA INTERNET

A primeira dificuldade quando analisamos os Direitos de

Personalidade é saber qual é a sua relação com os Direitos Fundamentais e

com os Direitos Humanos. Podemos afirmar, de início, que todos os Direitos

de Personalidade são Direitos Fundamentais, mas nem todos os Direitos

Fundamentais são Direitos de Personalidade. Segundo Anderson Schreiber

Todas essas diferentes designações destinam-se a contemplar

atributos da personalidade humana merecedores de proteção jurídica.

O que muda é tão somente o plano em que a personalidade humana se

manifesta. Assim, a expressão direitos humanos é mais utilizada no

plano internacional, independentemente, portanto, do modo como cada

Estado nacional regula a matéria. Direitos fundamentais, por sua vez, é o

termo normalmente empregado pela designar “direitos positivados numa

constituição de um determinado Estado”. É, por isso mesmo, a terminologia

que tem sido preferida para tratar da proteção da pessoa humana no campo

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do direito público, em face da atuação do poder estatal. Já a expressão

direitos da personalidade é empregada na alusão aos atributos humanos

que exigem especial proteção no campo das relações privadas, ou seja,

na interação entre particulares, sem embargo de encontrarem também

fundamento constitucional e proteção nos planos nacional e internacional.

[15]

Os direitos fundamentais representam criação recente na história

da humanidade e ainda que constituam um modelo jurídico com pretensões

de universalidade, encontram resistência de efetivação em vários países,

onde sequer são reconhecidos.[16] Representam em concomitância um

rol extenso de direitos subjetivos e componentes substanciais da ordem

constitucional objetiva, integrando a estrutura de um Estado Democrático

de Direito.

De acordo com Pedro Pais de Vasconcelos “são notórias na Doutrina

as divisões que têm como base diferentes concepções, objectivas ou

subjectivas, da tutela jurídica da personalidade”.[17] Pode-se falar em

direito objetivo de personalidade e direito subjetivo de personalidade,

todavia, as características de disponibilidade do direito subjetivo não podem

ser verificadas em sua plenitude no domínio da tutela da personalidade.

Há bens que integram a tutela da personalidade como a vida e a

dignidade que não podem ser dispensados pelo titular. E arremata: “uma

construção totalmente objectiva da tutela da personalidade, que prescinda

completamente do direito subjectivo, é redutora e omite a centralidade da

personalidade na pessoa do seu próprio titular”. [18]

As ofensas aos direitos de personalidade são mais lesivas ao ofendido

que à própria sociedade, razão pela qual a tutela da personalidade deve

fundamentar-se mais em questões de ordem pessoal do que em questões

de ordem social.

Entenda-se por direito objetivo de personalidade a previsão

normativa relativa à defesa da personalidade, legitimada pelo direito

cosmopolita, pela regra constitucional ou pela lei ordinária. Observamos

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que a tutela do direito geral da personalidade pode ser também encontrada

na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de

1948, quer no artigo 3º que assevera que “todo ser humano tem direito à

vida, à liberdade e à segurança pessoal”, quer no artigo 12 que estabelece

que “ninguém será sujeito a interferências em sua vida privada, em sua

família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataques à sua honra

e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais

interferências ou ataques”.

Importante acrescentar que o sistema processual português

contempla no Livro V, Título I, do Código de Processo Civil, a tutela da

personalidade (artigos 878º, 879º e 880º), que permite ao ofendido requerer

providências judiciais concretamente adequadas a evitar a consumação

de qualquer ameaça ilícita e direta à personalidade física e moral, ou a

atenuar ou a fazer cessar os efeitos de ofensa já consumada.

Trata-se de procedimento célere que prevê a designação de

audiência no prazo de 20 (vinte) dias após a apresentação do requerimento

que deve estar acompanhado de provas. A contestação é apresentada na

própria audiência e a produção de provas é ordenada na falta de alguma

das partes ou se a tentativa de conciliação restar infrutífera. A sentença

deve ser sucintamente fundamentada e, em caso de procedência, indicar

o comportamento concreto a que o requerido fica sujeito, bem como o

prazo de cumprimento e a sanção pecuniária compulsória por cada dia de

atraso ou por cada infração cometida. A execução da decisão é efetuada

nos próprios autos e é acompanhada da imediata liquidação da sanção

pecuniária compulsória.

O sistema processual brasileiro não contempla, a exemplo do sistema

português, procedimento especial relativo a tutela da personalidade, o que

obriga o ofendido a buscar vias procedimentais demasiadamente lentas,

onde a sanção pecuniária compulsória pode ser revista pelo órgão julgador,

desde que se torne insuficiente ou excessiva. Além disso as demandas

muitas vezes estão limitadas a obrigações de fazer e a indenizações por

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danos morais. A título de ilustração é de bom alvitre registrar que em

recente Recurso Especial analisado pelo Superior Tribunal de Justiça,

a multa cominatória pelo descumprimento de obrigação de fazer que

alcançava R$ 95.324.773,90 (noventa e cinco milhões, trezentos e vinte e

quatro mil, setecentos e setenta e três reais e noventa centavos), foi reduzida

a R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais), entendendo o Exmo. Sr.

Ministro Relator que “é possível, no âmbito do recurso especial, a redução

do montante da multa cominatória quando se revelar exorbitante, em total

descompasso com a razoabilidade e proporcionalidade”.[19]

No Código Civil brasileiro preocupou-se o legislador, por conseguinte,

em apenas pontuar nos artigos 11 a 21 alguns atributos da personalidade

humana de maior impacto nas relações civis, sendo importante destacar

que o rol de direitos ali contemplados não é taxativo ou numerus clausus.

Todavia o sistema brasileiro tem se valido do instituto do dano moral

como instrumento hábil a justificar as pretensões de reparações às lesões

a qualquer dos direitos de personalidade. O que se verifica é que há um

importante esforço para a construção de critérios que permitam distinguir

os interesses que são realmente merecedores da tutela jurisdicional,

evitando-se a banalização do instituto que se tornou o principal instrumento

de proteção da pessoa humana no Brasil: a indenização por dano moral.[20]

Ainda contempla o sistema brasileiro, após a edição da Lei

12.965/2014 (denominada de Marco Civil da Internet) a neutralidade da rede,

consistente em tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem

distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação,

permitindo, ainda, que o provedor de aplicações seja responsabilizado

civilmente por danos causados por terceiros se, após ordem judicial,

não adotar providências para tornar indisponível o conteúdo indicado,

facultando ao lesado, nas ações sobre ressarcimento por danos decorrentes

de conteúdos lançados no meio virtual atentatórios à honra, à reputação

ou a direitos de personalidade, o ajuizamento de demanda reparatória nos

juizados especiais.

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3.1 RETIRADA DE OFENSAS DA INTERNET: O DIREITO DE SER

ESQUECIDO

Efetuada a ofensa ou lesão a direito de personalidade, deve a mesma

permanecer ad eternum na rede mundial de computadores? Há algum

mecanismo que possa minorar os danos causados pela exposição indevida

consistente em compartilhamento de conteúdo ofensivo? Por quanto tempo

uma informação deve ficar disponível?

Diferentemente dos jornais e revistas que são esquecidos com

o passar do tempo, a internet não esquece. As informações lançadas no

mundo online ali são eternizadas.

De acordo com Karl Larenz “a interpretação da norma jurídica

positiva e, por maioria de razão, o desenvolvimento criador do Direito

através da jurisprudência, têm, por isso, de orientar-se, em último termo,

pela ideia de Direito como princípio regulador”,[21] razão pela qual

a contribuição dos tribunais é de extrema importância à solução das

indagações anteriormente formuladas.

Diversas decisões já foram proferidas versando sobre o tema “direito

ao esquecimento”, mas a de maior impacto é a do Tribunal de Justiça da

União Europeia no caso Google (acórdão no processo C-131/12).

Provocado por meio de um mecanismo processual denominado de

“reenvio prejudicial”, o citado Tribunal analisou a aplicação das regras da

Diretiva 95/46/CE, relativa a proteção de dados pessoais. O caso remonta

a 2010, quando o espanhol Mario Costeja González apresentou uma

reclamação contra o jornal espanhol “La Vanguardia Ediciones SL”, Google

Spain e Google Inc., na Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD).

Alegava o autor que quando seu nome era inserido no motor de busca do

grupo Google, a lista de resultados apontava para duas páginas do jornal

“La Vanguardia” de 1998, que anunciavam a venda de um imóvel em hasta

pública, realizada em virtude de dívidas cobradas pela Segurança Social.

Embora a dívida estivesse devidamente quitada e o caso encerrado naquela

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altura, o nome de Mario Costeja Gonzalez era mantido vinculado ao evento,

permitindo a qualquer pessoa o acesso à publicação. A reclamação foi

indeferida pela AEPD, em relação ao jornal, por considerar que o editor

tinha publicado as informações em observância aos preceitos legais. Em

relação ao Google, foi determinada a adoção de medidas necessárias para

retirar os dados do seu índice de buscas, impossibilitando futuras pesquisas.

Em recurso interposto pela empresa Google, foi requerida a anulação

da decisão da AEPD. Três questões fundamentais foram submetidas

ao Tribunal de Justiça da União Europeia: 1) o âmbito de aplicação

territorial das normas de proteção de dados da União Europeia; 2) o papel

e a responsabilidade dos motores de busca na internet; e 3) o direito ao

esquecimento ou o direito de ser esquecido, de forma que o interessado

possa solicitar a remoção de resultados de pesquisa que lhe dizem respeito,

dos motores de pesquisa na internet.

A respeito da aplicação territorial, sustentou a Google que não exercia

qualquer atividade de indexação ou armazenamento de informação em

Espanha e que a Google Spain tem por finalidade a atividade de promoção

e venda de espaços publicitários. Também sustentou que a atividade de

indexação é feita pela Google Inc, com sede nos Estados Unidos, razão pela

qual não poderiam ser aplicadas as normas da União Europeia relativas a

proteção de dados.

Entendeu o Tribunal que a legislação não faz exigência de que o

tratamento deve ser efetuado pelo estabelecimento da empresa na União

Europeia, mas que seja efetuado no contexto de sua atividade e como o

tratamento é efetuado no contexto da atividade comercial e publicitária da

Google em território espanhol, está sujeito à legislação da União Europeia.

Surge então o segundo questionamento: o motor de buscas é

responsável pelo tratamento de dados e sua atividade de pesquisa e

indexação está abrangida no conceito de tratamento de dados? Defendia

a Google que o motor de pesquisa não cria conteúdo, indicando apenas

onde podem ser encontrados conteúdos já existentes, disponibilizados

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por terceiros na internet e que a disponibilização de uma ferramenta de

localização de informação não acarreta a obrigação de controle do conteúdo

dos sítios virtuais que indica.

O Tribunal da União Europeia considerou a possibilidade de

bloqueio de determinados resultados da pesquisa pelos motores de busca,

a exemplo do que já faz em alguns países, promovendo o bloqueio de sites

que violem direitos de propriedade intelectual. E por dispor de mecanismos

técnicos para filtrar o conteúdo, o motor de busca desenvolve atividade de

tratamento de dados, tornando-o responsável pela exclusão de resultados

que disponibilizem páginas que revelem ingerência na privacidade de

algum usuário.

Por fim entendeu o Tribunal que o motor de busca é obrigado a

suprimir da lista de resultados, exibida após a realização de pesquisa a

partir de um nome de uma pessoa, as ligações a páginas de internet que

contenham informações sobre essa pessoa, mesmo quando essa publicação

seja lícita, realçando a prevalência do direito à privacidade sobre o interesse

econômico do operador de busca ou o interesse do público em aceder a

informação, excetuando, apenas, casos justificados pelo interesse público

resultante do exercício de atividade pública.

Mas qual é a origem do direito ao esquecimento? Sua origem é a

anistia, palavra derivada do grego “amnestia”, que significa “esquecimento”,

mesma origem da palavra amnésia.

Paul Ricoeur indica a anistia tem por objetivo a reconciliação entre

cidadãos inimigos, a paz cívica. O modelo mais antigo, por conseguinte,

recordado por Aristóteles em “A Constituição de Atenas”, é extraído

do decreto promulgado em Atenas em 403 a.C., depois da vitória da

democracia sobre a oligarquia dos Trinta. Tratava-se de uma dupla forma

por contemplar o decreto propriamente dito e o juramento proferido

individualmente pelos cidadãos. De um lado a regra “é proibido lembrar

os males”, por outro o juramento “não recordarei os males”, sob pena das

maldições provocadas pelo perjúrio. E Ricoeur arremata:

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As fórmulas negativas são marcantes: não recordar.

Ora, a recordação negaria algo, a saber, o esquecimento.

Esquecimento contra esquecimento? Esquecimento da

discórdia contra esquecimento dos danos sofridos? É nessas

profundezas que será preciso se embrenhar quando chegar

a hora. Permanecendo na superfície das coisas, é preciso

saudar a ambição confessa do decreto e do juramento

atenienses. Finda a guerra, é proclamado solenemente: os

combates presentes, de que a tragédia fala, tornam-se o

passado a não ser recordado.[22]

A conclusão a que chegamos, no caso que envolve a empresa Google

e o espanhol Mario Costeja González, é que ao buscar a efetivação do direito

de ser esquecido por publicações do passado, será lembrado eternamente

pelas publicações advindas da decisão proferida pelo Tribunal da União

Europeia. Um verdadeiro paradoxo!

No Brasil há duas decisões paradigmáticas proferidas pelo Superior

Tribunal de Justiça, aplicando o “direito ao esquecimento”. Ambas registram

como parte a Globo Comunicação e Participações S/A, uma das maiores

empresas de comunicação daquele país (Recursos Especiais 1.334.097-RJ e

1.335.153-RJ). Nelas o Ministro Relator Luis Felipe Salomão, enfatiza que o

ser humano tem um valor em si que supera o das “coisas humanas” e ainda

destaca:

A cláusula constitucional da dignidade da pessoa humana

garante que o homem seja tratado como sujeito cujo valor supera ao

de todas as coisas criadas por ele próprio, como o mercado, a imprensa

e até mesmo o Estado, edificando um núcleo intangível de proteção

oponível erga omnes, circunstância que legitima, em uma ponderação de

valores constitucionalmente protegidos, sempre em vista os parâmetros

da proporcionalidade e razoabilidade, que algum sacrifício possa ser

suportado, caso a caso, pelos titulares de outros bens e direitos.[23]

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Mesmo com essas decisões que deveriam ser padronizadas pelo

sistema judiciário brasileiro, alguns percalços são verificados quando o

assunto é a retirada de publicação ofensiva da internet. Por diversas vezes

as vítimas notificam os provedores que nada fazem, situação verificada,

inclusive, no processo nº 2012/0005748-4 (Recurso Especial nº 1.323.754-

STJ. Neste processo restou decidido que o provedor, uma vez notificado pela

vítima, deve retirar o texto ou imagem de conteúdo ilícito do ar no prazo

de 24 (vinte e quatro) horas, sob pena de responder solidariamente com o

autor direto do dano, em virtude da omissão praticada. Em sua decisão a

relatora Ministra Nancy Andrighi realça:

A questão atinente à responsabilidade civil das redes sociais

virtuais pelo conteúdo das informações veiculadas não é nova no âmbito

desta Turma. Logo que me deparei com o problema, vislumbrei o interesse

coletivo que envolve a controvérsia, não apenas pelo número de usuários

que se utilizam desse tipo de serviço, mas sobretudo em virtude da sua

enorme difusão não só no Brasil, mas em todo o planeta, e da sua crescente

utilização como artifício para a consecução de atividades ilegais. Trata-

se de questão global, de repercussão internacional, que tem ocupado

juristas de todo o mundo. (…) Com efeito, a velocidade com que os dados

circulam no meio virtual torna indispensável que medidas tendentes a

coibir informações depreciativas e aviltantes sejam adotadas célere e

enfaticamente.[24]

O sistema processual brasileiro contempla previsão de multa

diária, independentemente do pedido do autor, para que a determinação

judicial seja devidamente cumprida. A crítica que se faz, todavia, advém

da hipótese de modificação do valor ou da periodicidade da multa quando

se verificar que a mesma se tornou insuficiente ou excessiva. Considerando

que a multa, no Brasil, é revertida em benefício da parte, muitas empresas

preferem investir na tentativa de modificação das decisões judiciais, ao

invés de cumpri-las adequadamente, transformando, destarte, multas

milionárias em valores absolutamente irrisórios diante do dano provocado.

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3.2 O DIREITO DE DELETAR

Outra discussão que tem tomado as atenções dos juristas nos

últimos tempos diz respeito ao “direito de deletar”, ou ao direito de excluir

ou eliminar. Não se trata de derivação do direito ao esquecimento ou

tampouco guarda relação com este, mas trata-se da possibilidade de cada

usuário apagar todos os dados que de alguma forma produz e armazena

na internet, ou informações coletadas e armazenadas por determinadas

empresas. Diz respeito ao controle do dado e não deve ser visto como

caminho para reescrever ou esconder o passado, mas como um direito

básico e pragmático disponível a todos.

É inegável que as pessoas devem ter mais controle sobre seus dados

e devem perceber que realmente possuem esse controle, mas na prática

não é isso o que acontece no mundo virtual onde determinados dados estão

expostos a vulnerabilidades. E para evitar esse problema às vezes só há

um caminho: a exclusão. E a conclusão é lógica pois se o dado existe ele é

vulnerável, não sendo possível atribuir o mesmo sentido àquilo que deixou

de existir ou foi apagado.

O movimento tomou força após declaração do Presidente Executivo

do Google, Eric Schmidt, em 06 de maio de 2013. Na ocasião disse que na

América, há um sentido de equidade que é culturalmente verdadeiro a

todos e que a falta de um botão “delete” na internet é algo significativo,

pois há um momento em que a exclusão é a coisa certa.[25]

É muito simples entender a importância desse direito quando

a análise parte de situação evidente, como por exemplo, de que dados

pertencem a alguém que, por conseguinte, decide a quem os disponibiliza,

de que forma e por quanto tempo. A questão apresenta relevo quando

contrastamos a palavra “dados” com as novas redes sociais. Necessário

indagar a quem pertencem os dados inseridos numa rede social? É o

provedor de conteúdo proprietário ou possuidor desses dados? No momento

em que resolvo deletá-los, pode o provedor de conteúdo preservá-los por

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qualquer finalidade ou até mesmo compartilha-los com terceiros?

As respostas a essas indagações, embora relativamente simples,

podem causar espanto e desconforto quando realizadas após a análise da

situação divulgada em 2011, pelo então estudante de Direito, Max Schrems,

residente em Viena. Na altura era um membro da rede social Facebook

como qualquer outro, quando descobriu que os dados apagados não eram

realmente excluídos. Pretendia, inicialmente, apenas ter conhecimento

do que o Facebook tinha armazenado sobre ele e para tanto utilizou um

formulário online para solicitar seus dados pessoais. Não satisfeito com a

resposta, conseguiu um CD enviado diretamente da Califórnia com um banco

de dados de tudo o que foi coletado em três anos de inscrição, equivalente

a 1.200 páginas impressas. Relata que, inicialmente, ficou surpreso com a

resposta, pois nem a CIA ou KGB já tiveram 1.200 páginas a respeito de

um cidadão comum. Começou a ficar assustado quando descobriu que

os dados coletados eram armazenados em 57 categorias. Na categoria

“mensagens” encontrou algo inesperado: mensagens apagadas há muito

tempo, marcadas como deleted – true, permaneciam armazenadas.

Embora o Facebook realce que a qualquer momento o usuário

pode apagar suas mensagens e seus dados, as mensagens “apagadas” de

Max Schrems permaneciam arquivadas, permitindo encontrar qualquer

informação pela inserção de palavras-chaves na função de pesquisa, como

por exemplo, opção sexual, participação em manifestações, doenças etc.

Nos Estados Unidos prevalece a ideia de que dados obtidos nunca

são cedidos, mas uma empresa que armazena dados em seus servidores

passa a possuir direitos sobre eles.

Em suas pesquisas Max descobriu que desde 2009 o Facebook

mantém uma segunda sede em Dublin, na Irlanda e por tal razão vem

promovendo diversas queixas à Autoridade Irlandesa de Proteção de

Dados. Criou, inclusive, uma página na internet denominada “Europe

versus Facebook” (europe-v-facebook.org), com a finalidade de suscitar o

debate e exigir o cumprimento da lei. Mesmo assim o Facebook desenvolveu

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a ferramenta timeline (linha do tempo) que aumenta a quantidade de

informações recolhidas de seus usuários, organizando-as cronologicamente

numa espécie de diário virtual.

Em resposta às alegações de que os dados não são apagados, o

Facebook respondeu que a respeito dos relatórios de dados apagados que às

vezes aparecem nos arquivos baixados, deve-se dizer que provavelmente

se trata, neste caso, de mensagens que foram removidas de um dado

lugar do Facebook, mas não foram excluídas, ou houve a necessidade de

manutenção da informação por um curto período para investigações.

Quando um dado é removido pelo usuário de qualquer rede social,

necessariamente ele deve desaparecer e o armazenamento injustificado

desses dados pelo Facebook é ilegal. Remoção deve significar exclusão, em

qualquer hipótese.

O exemplo trazido contraria, inclusive, a Declaração de Direitos e

Responsabilidades da mencionada rede social, que consigna que o usuário

é proprietário de todas as informações e conteúdos que publica e pode

controlar o modo como serão compartilhados por meio das configurações

de privacidade e de aplicativos.[26]

Considerando que o Facebook reúne mais de 20% da população

mundial e este número tende a crescer, considerando ainda que há a

possibilidade de preservação indevida de todos os dados inseridos, mesmo

aqueles que foram deletados por seus proprietários, a referida rede social

pode estar exercendo a função de maior instituição privada de informação

pessoal e de espionagem do planeta!

O direito de deletar envolve, ainda, as relações interpessoais e deve

ser aplicado para que se preserve qualquer direito de personalidade. A

decisão judicial mais recente de que se tem notícia em território europeu

foi publicada em 13 de outubro de 2015, no processo VI ZR 271/14, proferida

pelo Bundesgerichtshof (Tribunal de Justiça Federal), na Alemanha. Trata-

se de um caso que envolve um casal de Lahn-Dill, região central daquele

país. O homem, um fotógrafo, durante o período que se relacionou com a ex-

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namorada produziu vários vídeos eróticos e fotografias íntimas, tudo com

o consentimento da mulher. Quando o relacionamento acabou a mulher

solicitou que todo o material fosse apagado. Não logrando êxito em seu

pleito, buscou a via processual. A Corte de Justiça entendeu que os arquivos

contendo as fotografias e os vídeos devem ser deletados ou devolvidos pois

os direitos de personalidade são mais importantes que os direitos de posse

do fotógrafo.[27]

Como se verifica, o leque de violações é imenso e importa refletir

sobre a função do direito e a necessidade de dar validade aos direitos de

personalidade frente aos problemas causados pela utilização indevida da

internet.

A inércia da comunidade jurídica pode, em futuro próximo,

contribuir para que a privacidade, a honra, a moral e outros direitos

inerentes ao homem se transformem em artigos de luxo, extremamente

raros, facilitando o surgimento de uma legião privada de caçadores de

direitos, a exemplo de serviços de internet já disponíveis para medição da

reputação online e comercialização de soluções para melhorá-la.

A peça teatral “Vermelho”, do escritor americano John Logan, que

retrata os dramas filosóficos e artísticos do pintor Mark Rothko,[28] nos

mostra, na primeira cena, a recepção do artista ao assistente que o ajudaria

a concluir os murais do Four Seasons. Olhando para uma tela imaginária

o mestre indaga ao ajudante: “o que você vê?” A contemplação da internet

e seus múltiplos fenômenos não deve prescindir da mesma indagação de

Rothko. Estaríamos vivendo o modelo de sociedade totalitária extasiada

pelo progresso científico, imaginada por Aldous Huxley em “Admirável

Mundo Novo”? Ao consentir que a internet seja um território sem controle

estatal não estaríamos permitindo a implantação de um sistema semelhante

àquele idealizado por George Orwell, na célebre obra 1984, onde o “Grande

Irmão” é capaz de vigiar até mesmo as ideias e os sonhos dos cidadãos?

Portanto, “o que você vê?”.

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4. CONSTATAÇÕES

A internet é instrumento de aproximação, mas quando utilizada

para causar lesões a direitos de personalidade é meio extremamente nocivo

por facilitar a expansão do dano e a eternização dos efeitos do ato lesivo.

– A liberdade de expressão deve ceder espaço a direitos de

personalidade, em qualquer hipótese. O exercício dessa liberdade, sem

responsabilidade, e com a finalidade de macular a honra, a privacidade

e a imagem de outrem é ato de arbítrio, merecendo intervenção estatal

adequada.

– O stalking virtual deve ser entendido como espécie mais gravosa

de cyberbullying. Ambos, todavia, denotam uma campanha de assédio a

alguém com a invasão de sua privacidade e têm por objetivo humilhar,

diminuir, vilipendiar, amedrontar, acarretando danos psicológicos, sociais

e morais.

– Na quantificação pecuniária do dano causado pela ofensa a

direitos de personalidade deve o juiz ou tribunal, quando possível, recorrer

a perícias psiquiátricas para a prova da extensão da chamada “dor de alma”.

– O direito ao esquecimento é instrumento de defesa que deve ser

utilizado com a finalidade de reparar lesões a direitos de personalidade,

como honra, privacidade e imagem. Nenhuma ofensa pode ecoar para

sempre, o que seria equivalente a “punição” eterna.

– Os provedores de serviços de internet que disponibilizam

espaços para denúncia de conteúdos devem revisar suas políticas internas,

adequando-as a critérios rígidos de proteção a direitos fundamentais.

– O sistema Judiciário deve estar atento a essas modalidades de

violações aos direitos de personalidade, analisando não somente a intenção

do agente, mas a extensão da lesão sofrida pela vítima e as respectivas

consequências em seu meio social e profissional. As medidas reparatórias

ordenadas pelo Judiciário devem contemplar, além da indenização

pecuniária, a determinação de exclusão do conteúdo ofensivo lançado na

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internet.

5. REFERÊNCIAS

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edição de Novembro de 2006. Coimbra, Portugal: Almedina, Abril, 2014.

NOTAS

[1] FARINHO, Domingos Soares. Intimidade da Vida Privada e Media no

Ciberespaço. Coimbra, Portugal: Edições Almedina, S.A., Janeiro, 2006, p. 9.

[2] CUPIS, Adriano de. Os Direitos da Personalidade. 2ª edição. São Paulo,

Brasil: Quorum, 2008, p. 104.

[3] Brasil, Supremo Tribunal Federal: ADPF nº 130. Exmo. Sr. Ministro Carlos

Ayres Britto: “Quando é da lógica perpassante dos mesmíssimos preceitos

constitucionais (art. 220 e seus §§ 1º, 2º e 6º) o comando de que os eventuais

abusos sejam detectados caso a caso, jurisdicionalmente (é abusivo legislar

sobre abusos de imprensa, averbo), pois esse modo casuístico de aplicar a

Lei Maior é a maneira mais eficaz de proteção dos superiores bens jurídicos

da liberdade de manifestação do pensamento e da liberdade de expressão

lato sensu”, p. 61.

[4] Brasil, Supremo Tribunal Federal: Recurso Extraordinário – RE 511.961/

SP. Exmo. Sr. Ministro Gilmar Ferreira Mendes: “É certo que o constituinte

de 1988 de nenhuma maneira concebeu a liberdade de expressão como

direito absoluto, insuscetível de restrição, seja pelo Judiciário, seja pelo

Legislativo. A própria formulação do texto constitucional – “Nenhuma

lei conterá dispositivo…, observado o disposto no artigo 5º, IV, V, X, XIII e

XIV” – parece explicitar que o constituinte não pretendeu instituir aqui um

domínio inexpugnável à intervenção legislativa. Ao revés, essa formulação

indica ser inadmissível, tão somente, a disciplina legal que crie embaraços

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à liberdade de informação. O texto constitucional, portanto, não excluiu a

possibilidade de que se introduzam limitações à liberdade de expressão

e de comunicação, estabelecendo, expressamente, que o exercício dessas

liberdades há de se fazer com observância do disposto na Constituição. Não

poderia ser outra a orientação do constituinte, pois, do contrário, outros

valores, igualmente relevantes, quedariam esvaziados diante de um direito

avassalador, absoluto e insuscetível de restrição”, pp. 47/48.

[5] GLOVER, Scott. Guilty verdict on lesser charges in MySpace case.

Disponível em: http://latimesblogs.latimes.com/lanow/2008/11/a-federal-

court.html. Acesso em: 28 de janeiro de 2016.

[6] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Brasil. Apelação Cível nº

0462936-35.2013.8.21.7000. Relator: Des. Jorge Luiz Lopes do Canto.

[7] Portugal, Tribunal da Relação de Lisboa. Processo 431/13.6TTFUN.L1-4.

[8] TJSP – Comunicação Social do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Aluno deve indenizar professor por difamar sua imagem em rede social.

Disponível em: http://www.tjsp.jus.br/Institucional/CanaisComunicacao/

Noticias/Noticia.aspx?Id=30426. Acesso em: 20 de fevereiro de 2016.

[9] GOOD, Dan. Texas mother fights back after photo of son with rare disorder

used in cruel meme. Disponível em: http://www.nydailynews.com/news/

national/texas-mother-fights-back-son-photo-meme-article-1.2518921.

Acesso em: 06 de fevereiro de 2016.

[10] SILVA, João Céu e. Umberto Eco: “No momento em que todos têm

direito à palavra na internet, temo-la dada aos idiotas”. Diário de Notícias,

Portugal. Publicado em 24 de maio de 2015. Disponível em: http://www.

dn.pt/artes/interior/umberto-eco-no-momento-em-que-todos-tem-direito-

a-palavra-na-internet-temola-dada-aos-idiotas-4584352.html. Acesso em:

18 de fevereiro de 2016.

[11] CALHAU, Lélio Braga. Resumo de criminologia. 4ª edição. Niterói, RJ:

Impetus, 2009, p. 110.

[12] Disponível em: http://ec.europa.eu/eurostat/

documents/2995521/7151118/4-08022016-AP-EN.pdf/902a4c42-eec6-48ca-

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97c3-c32d8a6131ef. Acesso em: 17 de fevereiro de 2016.

[13] MOREWITZ, Stephen J. Stalking and Violence. New Patterns of Trauma

and Obsession. New York, USA: Kluwer Academic/Plenum Publishers, 2003,

pp. 39/46.

[14] URL indica o endereço da rede onde é possível encontrar algum recurso

informático. Nas redes TCP/IP, um URL completo possui a seguinte estrutura:

esquema://domínio:porta/caminho/recurso?query_string#fragmento. O

esquema informa ao computador como conectar-se, o domínio especifica

onde conectar-se e os demais elementos do URL especificam o que está

sendo solicitado. Exemplo: http://www.w3.org/Addressing/URL/uri-spec.

html. (Fonte: Wikipedia – https://pt.wikipedia.org/wiki/URL)

[15] SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 3ª edição Revista e

Atualizada. São Paulo, Brasil: Editora Atlas S.A., 2014, p. 13.

[16] ALEXANDRINO, José Melo. Direitos Fundamentais. Introdução Geral.

2ª edição, reimpressão. Cascais, Portugal: Princípia Editora, Lda, Abril,

2015, p. 12.

[17] VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria Geral do Direito Civil. 7ª edição.

Coimbra, Portugal: Edições Almedina S. A., Novembro, 2012, p. 37.

[18] Idem, p. 37.

[19] Superior Tribunal de Justiça, Brasil. Recurso Especial nº 1.488.800 – SP

(2014/0230841-0).

[20] SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 3ª edição Revista e

Atualizada. São Paulo, Brasil: Editora Atlas S.A., 2014, p.16.

[21] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 7ª edição. Lisboa,

Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, pp. 137/138.

[22] RICOEUR, Paul. La Mémoire, L´Histoire, L´Oubli. Paris, France: Éditions

du Seuil, Septembre, 2000, p. 460.

[23] Brasil, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.335.153-

RJ (2011/0057428-0) e Recurso Especial nº 1.334.097-RJ (2012/0144910-7).

Relator: Ministro Luis Felipe Salomão.

[24] Brasil, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.323.754 – RJ

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(2012/0005748-4). Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Recorrente: Google

Brasil Internet Ltda.

[25] TIBKEN, Shara. Google´s Schmidt: The Internet needs a delete button.

Disponível em: http://www.cnet.com/news/googles-schmidt-the-internet-

needs-a-delete-button/. Acesso em: 10 de fevereiro de 2016.

[26] https://www.facebook.com/legal/terms

[27] Bundesgerichtshof, OLG. Koblenz. Disponível em: http://

juris .bundesgerichtshof.de/cgi-bin/rechtsprechung/document.

py?Gericht=bgh&Art=en&nr=73173&pos=0&anz=1. Acesso em: 11 de

fevereiro de 2016.

[28] Mark Rothko (25/09/1903 – 25/02/1970) nascido em Dvinsk, no Império

Russo (atualmente Daugavpils, na Latvia), emigrou para os EUA aos 10 anos

de idade. Foi o maior expoente do expressionismo abstrato que sucedeu

ao cubismo e ao surrealismo depois da Segunda Guerra. É um dos mais

valorizados artistas russos de todos os tempos.

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APLICAÇÃO HERMENÊUTICA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Milton Milton Silva Vasconcellos - Advogado, Mestrando em Políticas sociais e Cidadania (UCSAL), Especialista em Direito Público, Professor universitário (Direito Tributário e Hermenêutica Jurídica). E-mail: [email protected].

Ana Maria Seixas Pamponet - ADoutora em Direitos Humanos e Desenvolvimento (UPO- ES)/ UFPB. Mestre em Administração. Pedagoga - Professora de Direito da Faculdade Ruy Barbosa e Unifacs. Pesquisadora da UCSAL e FCT- PT. E-mail: [email protected].

RESUMO: Este artigo volta-se a valoração hermenêutica do princípio da

dignidade da pessoa humana e surgiu da necessidade de se aferir abordagens

distintas da eficácia deste princípio, concebendo-o como importante instrumento

de hermenêutica aplicada. Para tanto o trabalho desenvolve-se em argumento que

se expressa a partir de seis etapas distintas, valorando-se inicialmente a eficácia

interpretativa do princípio, numa segunda etapa a compreensão da dignidade

humana sob o prisma axiológico, numa terceira etapa valora-se a dignidade da

pessoa humana enquanto fundamento da República, na quinta etapa discorre-se

acerca da dignidade da pessoa humana e sua titularidade e, por fim na última e

sexta etapa compreende-se a temática da dignidade da pessoa humana em sua

relação com os direitos fundamentais. Em cada uma dessas etapas, são sugeridas

aplicações hermenêuticas distintas do princípio da dignidade da pessoa humana,

com vistas assim a concebê-lo para além de sua já conhecida eficácia normativa

para alcançar também uma eficácia interpretativa.

Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana. Interpretação constitucional.

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Hermenêutca Jurídica. Princípio constitucional. Direito constitucional

Abstract: The present work returns to the hermeneutical valuation of the

principle of the dignity of the human person and arose from the need to evaluate

different approaches to the effectiveness of this principle, conceiving it as an

important instrument of applied hermeneutics. For this, the work is developed

in an argument that is expressed from six different stages, initially assessing the

interpretative effectiveness of the principle, in a second stage the understanding

of human dignity under the axiological prism, in a third stage values dignity Of

the human person as the foundation of the Republic, in the fifth stage the dignity

of the human person and its ownership are discussed, and finally, in the last and

sixth stage, the theme of the dignity of the human person in its relation with

fundamental rights is understood. In each of these stages different hermeneutical

applications of the principle of the dignity of the human person are suggested, in

order to conceive it beyond its already known normative effectiveness in order to

achieve an interpretative efficacy.

Keywords: Dignity of human person. Constitutional interpretation.

Hermenêutca Jurídica. Constitutional principle. Constitutional right

1. INTRODUÇÃO

Com o fim da segunda Guerra Mundial e a derrocada da ideologia nazista,

desponta um processo por toda a Europa que viria a sugerir um esgotamento de

um determinado modo de pensar o direito, alçando, dentre outras, o homem como

centro do pensamento[3], com indiscutíveis efeitos para o direito e seu plano

interpretativo.

Dentre outras, com o advento do que a doutrina costuma chamar de

paradigma Pós-Positivista, observa-se um cabedal de alterações, dentre as quais,

a normatização dos princípios, que expressa novos ângulos acerca da eficácia

normativa destes textos constitucionais, seja como fundamento a um direito

pleiteado (eficácia positiva), seja como parâmetro limitador das ações estatais

(eficácia negativa), seja ainda naquilo que a doutrina convencionou chamar de

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“eficácia interpretativa (BARROSO, 2009, p. 379).

Dessa forma, se no exercício de sua eficácia positiva, os princípios ainda

encontram muita divergências – sobretudo face a esse caráter abstrato e de baixa

densidade normativa que estas normas apresentam, o que – para alguns – ameaça

a segurança jurídica (na medida em que tal percepção abstrata permite uma

amplíssima compreensão do conteúdo desta norma), no exercício de sua eficácia

interpretativa entretanto, não restam dúvidas dos efeitos que estas normas

propiciam, oportunizando-se assim abordagem em separado.

Dentre tais normas, destaca-se o princípio da dignidade da pessoa Humana,

alçado a um dos fundamentos da República pelo paradigma constitucional vigente

(art. 1, III, CFRB), exercendo dessa forma papel central na compreensão e aplicação

do nosso Ordenamento Jurídico. Sob essa perspectiva é que se desenvolvem

as considerações sobre o conteúdo normativo da dignidade da pessoa humana

enquanto norma jurídica eficaz e, sobretudo apta a gerar efeitos no plano

hermenêutico.

2. MODALIDADES DE EFICÁCIA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Compreendendo o caráter normativo peculiar a todo e qualquer princípio,

percebe-se a dignidade da pessoa humana como uma norma dotada de plena

e ampla eficácia jurídica a se expressar em diferentes matizes. Nesse sentido,

cumpre destacar que numa percepção jurídica a dignidade é parte integrante

do indivíduo, devendo por isso ser não só reconhecida, mas também protegida e

respeitada. Logo seu caráter normativo impõe o reconhecimento da possibilidade

de produzir efeitos (SARLET, 2001, p.41).

Sabe-se que os princípios apresentam carga normativa e geram variados

efeitos, sendo possível falar-se então em normas dotadas de eficácia como qualquer

outra. Nesse sentido, fala-se em eficácia positiva e negativa, gerando efeitos sobre

o mundo jurídico, bem como sobre a realidade fática.

Concebendo a primeira perspectiva, fala-se em eficácia direta de um

princípio (também chamada de eficácia positiva) quando a utilização deste serve

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de fundamento de um direito pleiteado. Nesse caso, a utilização do princípio se

aproximará da incidência normativa das regras, na medida em que são observados

os fatos em seu enquadramento na proposição jurídica que se deseja.

Visto por outro ângulo e ampliando esta noção, assevera a doutrina:

A eficácia positiva consiste em reconhecer, ao eventual beneficiado pela

norma jurídica enunciadora de direito fundamental, ainda que de suposta eficácia

limitada, o direito subjetivo de produzir tais efeitos, mediante a propositura da

ação judicial competente, de modo que seja possível obter a prestação estatal,

indispensável para assegurar uma existência digna. O Estado está, portanto,

obrigado a concretizar a dignidade da pessoa humana, ao elaborar normas e

formular/implementar políticas públicas. (SOARES, 2015, p. 259)

Dessa forma, além de assegurar direitos subjetivos, tais efeitos impõe

efeitos direitos ao estado que deve considerar tais valores quando da atividade

legislativa e de administração.

Por outro lado, fala-se em eficácia negativa de um princípio quando seu

caráter normativo propicia a falta de eficácia de quaisquer normas ou atos jurídicos

que não se harmonizem com seu conteúdo. Nesse sentido, o exercício da eficácia

negativa de um princípio aproxima-se de um controle de constitucionalidade, na

medida em que o advento de uma norma jurídica que implique em violação a

um princípio constitucional, pode resultar na declaração de inconstitucionalidade

desta norma (BARROSO, 2009, p. 153).

Nesse sentido, pontua a doutrina:

[…] a eficácia negativa confere à cidadania a prerrogativa de

questionar a validade de todas as normas infraconstitucionais

que ofendam o conteúdo de uma existência digna, ferindo

os direitos fundamentais que consubstanciam o respeito ao

princípio constitucional da dignidade da pessoa humana

(SOARES, 2015,p. 259).

Sua compreensão vista por este ângulo empresta assim novo limite ao

estado na medida em que deve abster-se de ingerências na esfera do indivíduo

que represente de qualquer forma uma afronta à sua dignidade. (SARLET, 1998,

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p. 110).

Nesse sentido fala-se que por meio da compreensão e aplicação deste

princípio mostra-se possível alcançar uma noção mais efetiva dos direitos

fundamentais, na medida em que estes tem sua efetivação potencializada por

meio da satisfação da dignidade da pessoa humana, que orienta o Estado a adotar

posturas compatíveis ao respeito e aplicação destas normas, asseverando-se assim,

por exemplo, na fundamentalidade dos direitos sociais de cunho prestacional, ao

tempo que rechaça a “reserva do possível” (SOARES, 2015, p. 262).

Para além das já conhecidas modalidades positiva e negativa do princípio

da dignidade da pessoa humana, concebe-se ainda uma terceira modalidade

de eficácia indicada pela doutrina – a eficácia interpretativa – que permite a

percepção dos princípios também como instrumento de interpretação.

Fala-se assim em eficácia interpretativa com a força normativa que os

princípios exercem no sentido de dar harmonia e unidade ao sistema jurídico.

Em exercício deste tipo de eficácia, os princípios constitucionais operam

limites à determinação do alcance e sentido das demais normas jurídicas

infraconstitucionais. No plano interno do sistema jurídico constitucional, o

exercício da eficácia interpretativa exerce influência sobre as demais normas

constitucionais a fim de que, diante de múltiplas possibilidades interpretativas,

o intérprete escolha aquela que melhor satisfaz o conteúdo axiológico que o

princípio representa (tal situação é muito comum diante de textos normativos

constitucionais composto por conceitos jurídicos indeterminados, atraindo assim

a construção do sentido final da expressão normativa abstrata pelo esforço do

próprio intérprete, que para tanto, deve valer-se de optar pelo sentido que melhor

se aproxima dos valores constitucionais).

Nesse sentido, são oportunas as palavras da doutrina:

A eficácia interpretativa poderá operar também dentro da

própria Constituição, em relação aos princípios; embora

eles não disponham de superioridade hierárquica sobre as

demais normas constitucionais, é possível reconhecer-lhes

uma ascendência axiológica sobre o texto constitucional

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em geral, até mesmo para dar unidade e harmonia ao

sistema. A eficácia dos princípios constitucionais, nessa

acepção, consiste em orientar a interpretação das regras

em geral (constitucionais e infraconstitucionais), para que o

intérprete faça a opção, dentre as possíveis exegeses para o

caso, por aquela que realiza o melhor efeito pretendido pelo

princípio constitucional pertinente. (BARROSO,2009, p. 379)

Em complemento indica a doutrina ao referir-se exclusivamente à

eficácia interpretativa da dignidade da pessoa humana:

[…] no plano hermenêutico, o princípio da dignidade

da pessoa humana ostenta a correta interpretação e

aplicação das regras e demais princípios de um dado

sistema jurídico, a fim de que o intérprete escolha, entre

as diversas opções hermenêuticas aquela que melhor

tutele a ideia de existência digna no caso concreto

(SOARES, 2015,p. 259)

Alcança-se assim a noção de dignidade da pessoa humana um status

exegético que confere unidade valorativa de sentido para a aplicação e

compreensão de todo o sistema normativo que encontra neste supra valor

ao mesmo tempo uma ferramenta ao intérprete e um parâmetro/limite de

atuação do Estado.

3. PLANO SINTÁTICO

A considerar um plano sintático da interpretação debruça-se sobre

a realidade de ser o objeto da Hermenêutica textos jurídicos. Dessa forma, a

considerar o texto normativo da dignidade da pessoa humana, sua previsão

decorre da previsão constitucional do art. 1, III, CF:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada

pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do

Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de

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Direito e tem como fundamentos:

[…]

III – a dignidade da pessoa humana; (BRASIL:1988)

Sabe-se que um princípio tem seu cumprimento em graus variados,

uma vez que podem ser objetos de ponderação, razão pelo qual a doutrina

os situam no âmbito de importância (peso ou valor) e não apenas a

considerar sua validade. São assim compreendidos como mandamentos

de otimização, onde seu cumprimento ocorre na maior medida possível

(CAMARGO, 2007, P. 124)

Sob o prisma hermenêutico, a dimensão da sintaxe, expressa a

interpretação gramatical, lógica e sistemática, tipos de interpretação que

refletem distintas percepções acerca do sentido e alcance das normas

jurídicas.

Nesse sentido, fala-se em método literal ou interpretação gramatical

aquela que, na busca do sentido e alcance do texto normativo considera tão

somente as palavras, em busca do sentido literal que o texto tem a oferecer.

Para Santoa ( 2011) tal interpretação:

[…] o primeiro esforço de quem pretende compreender

pensamentos alheios orienta-se no sentido de entender

a linguagem empregada. Daí se originou o processo

verbal ou filológico, de exegese. Atende à forma exterior

do texto; preocupa-se com as acepções várias dos

vocábulos; graças ao manejo relativamente perfeito e

ao conhecimento integral das leis e usos da linguagem,

procura descobrir qual deve ou pode ser o sentido de

uma frase, dispositivo ou norma. (SANTOS, 2011, p. 88)

Trata-se então de uma técnica que inicia o processo de interpretação,

na medida em que permite ao exegeta conhecer o signo linguístico

utilizado, sem o qual restaria inútil todo e qualquer avanço semântico para

se compreender o sentido e alcance deste texto.

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Face a própria natureza polissêmica (que é inerente às palavras) e

o caráter abstrato comum às normas principiológicas, uma acepção literal

do princípio da dignidade da pessoa humana é algo de imensa dificuldade,

sendo muito mais apropriado falar-se numa interpretação literal apenas

como início do processo interpretativo, sobretudo porque a noção acerca

da dignidade é um valor plural, variando a partir da época e local onde se

insere (o que não impede de se estabelecer um conteúdo universal mínimo

respeitando-se sempre fatores sociais: desenvolvimento social, econômico

e cultural de cada comunidade).

Acerca da interpretação lógica, expressa aquela em que o trabalho

exegético busca determinar a mens legislatoris do texto, extraindo-se assim

as motivações do legislador para o qual a norma foi criada.Nesse sentido

costuma-se apontar a utilidade do manejo da interpretação lógica para

resolver contradições entre termos num mesmo texto normativo, com

vistas a se alcançar um significado coerente. Nestes termos a situação

da polissemia retratada na interpretação literal, poderia ser sanada com

manejo em conjunto deste outro tipo de interpretação (o que endossa o já

afirmado alhures da insuficiência da interpretação literal para se alcançar

um resultado hermenêutico adequado).

Por fim, a interpretação sistemática é aquela em que se busca

interpretar o texto normativo partindo do pressuposto deste enquanto

parte de um todo. Em outras palavras trata-se do trabalho em que o sentido

e alcance do texto normativo é determinado levando-se em conta não o texto

em separado (como uma realidade autônoma), mas sim considerando-o

como parte de um sistema maior.

Destaca-se nesse sentido a posição de Grau ( 2009)

A interpretação do direito é interpretação do direito,

no seu todo, não de textos isolados, desprendidos

do direito. Não se interpreta o direito em tiras,

aos pedaços. A interpretação de qualquer texto de

direito impõe ao intérprete, sempre, em qualquer

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circunstância, o caminhar pelo percurso que se

projeta a partir dele – do texto – até a Constituição.

Um texto de direito isolado, destacado, desprendido

do sistema jurídico, não expressa significado

normativo algum. (GRAU,2009, p. 88)

Por meio desta forma de interpretação, intenta-se ainda a

manutenção da própria integridade do sistema, haja vista que ao buscar a

interpretação considerando o todo do ordenamento, evita-se antinomias.

A compreensão da dignidade da pessoa humana sob um viés

sistemático talvez seja a mais adequada em nível de plenitude e eficácia.

Afirma-se isso, pois a dignidade da pessoa humana foi eleita pelo constituinte

como um fundamento da República, direcionando-se a todas as pessoas,

bem como o próprio Estado.

Em atenção ao que determina o art. 1, III, CFRB, a dignidade da pessoa

humana tem seu reconhecimento expresso como um dos fundamentos da

República. Mas afinal o que isso significa em termos normativos, bem como

em termos hermenêuticos?

Pelo prisma normativo, ao considerar a dignidade como fundamento

de todo o sistema normativo, tem-se neste princípio uma espécie de “meta-

valor” a ser utilizado como solução de conflitos entre normas ou ainda

como fundamento de políticas públicas, representando neste último caso

uma determinação dirigida aos Poderes Públicos. (CAMARGO, 2007, p. 121)

Pelo primeiro prisma interpretativo, ao indicar a dignidade da

pessoa humana como fundamento da República, o constituinte determina

uma espécie de ascensão deste valor ante os demais. Não se interprete por

ascensão nenhum tipo de superioridade normativa, mas sim uma diretriz

hermenêutica a ser utilizada tanto na criação como na interpretação de todas

as demais normas do Ordenamento (constitucionais e infraconstitucionais).

Para alguns autores, a dignidade da pessoa humana, passa a ter

status de “cláusula pétrea implícita”, formando assim o núcleo axiológico

da Constituição convertendo-se assim uma dupla função, ora como

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fundamento, ora como um fim.

Nesse sentido, pontua a doutrina:

A dignidade da pessoa humana figura como primeiro

fundamento de todo sistema constitucional posto

e o último arcabouço da guarida dos direitos

fundamentais, porquanto a busca pela realização de

uma vida digna direciona o intérprete do direito à

necessária concretização daqueles valores essenciais a

uma existência digna. (SOARES, 2010,p. 146)

A compreensão deste princípio em sua acepção hermenêutica por

fim, permite ainda o exercício da interpretação da norma em atenção aos

dois tipos de eficácia que o princípio pode apresentar (eficácia positiva ou

negativa).

Em postura interpretativa de exercício da eficácia negativa, a

dignidade da pessoa humana expressa um dever de respeito, ou seja,

impele a uma determinação de sentido e alcance das normas que regram

o Poder Público a uma acepção que significa abstenção de práticas que

impliquem – de qualquer forma – em violação aos valores de dignidade

(CAMARGO, 2007, p. 121).

A seu turno, o trabalho interpretativo fundado em exercício

da eficácia positiva deste princípio expressa um dever de proteção, ou

seja, impele a uma determinação de sentido e alcance das normas que

representem a proteção do indivíduo por meio da promoção de seus

direitos fundamentais.

4. PLANO AXIOLÓGICO

A compreensão da dignidade humana em um plano axiológico, a

identifica como um “valor autônomo”, dentro do sistema jurídico. Ou seja,

tal valor deixa de ter função meramente acessória dentro da percepção

jurídica (como feita no ideário positivista), passando agora a ter positivação

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expressa e papel fundamental para o direito. (CAMARGO, 2007, p. 116)

Compreender a dignidade da pessoa humana enquanto valor

autônomo, significa que tal situação é uma prerrogativa de todo e qualquer

ser humano, que sempre será um fim em si mesmo. Tal condição, implica

reflexos sob o prisma hermenêutico, sendo um deles a constatação de que

o homem não pode ser concebido como instrumento ou objeto de nada.

Resultando assim desautorizada toda e qualquer interpretação normativa

que não atribua ao homem e sua dignidade tal condição axiológica.

A guisa de exemplo, pode-se imaginar a discussão acerca da

prestação de serviços de saúde suplementar (empresas que vendem

planos de saúde) e limitam sua atuação, com base em regras contratuais

que limitam a cobertura do atendimento. Em tais casos, prevalecerá a

dignidade enquanto valor autônomo, para que se dê sentido jurídico a esta

relação não tendo como base as disposições contratuais, mas sim a vida,

direito fundamental, (ou ameaça a este bem jurídico) que nada mais é do

que um valor conexo à ideia de dignidade da pessoa humana.

5. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SUA TITULARIDADE

Diante das duas possibilidades eficaciais expostas no item anterior,

desdobra-se ao intérprete duas realidades quanto aos integrantes da

relação hermenêutica desenvolvida. Sabe-se que, a noção de dignidade da

pessoa humana tem conteúdo abstrato (como natural das normas jurídicas

do tipo princípio), razão pelo qual mostra-se também difusa a titularidade

do direito à dignidade, sendo pois atributo de todo e qualquer ser humano.

Por tal motivo, a doutrina afasta desta titularidade apenas os órgãos

estatais, pessoas coletivas ou jurídicas pois não dotadas do atributo “ser

pessoa humana”. (CAMARGO, 2007, p. 126)

Em que pese tal incerteza em seu conteúdo, mostra-se possível

delimitar em parte esta ideia e sugerir ao menos uma noção de titularidade

e destinatários do desenvolvimento hermenêutico decorrente do exercício

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da eficácia positiva ou negativa do princípio da dignidade da pessoa

humana.

Se quanto ao conteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana

afastam-se pessoas jurídicas e órgãos estatais, compreensão distinta

será quanto a possibilidade destes entes integrarem a chamada relação

hermenêutica, sendo portanto absolutamente lícita a extensão do

resultado interpretativo decorrente dos dois tipos de eficácia do princípio

da dignidade da pessoa humana a estes órgãos e pessoas jurídicas.

Nesse sentido, a guisa de exemplo, imagine-se o trabalho de

interpretação de uma norma jurídica que trata do funcionamento e

finalidade de um órgão público de fiscalização de vendedores ambulantes.

A interpretação feita pela autoridade administrativa acerca de sua atuação,

não poderá desconsiderar a eficácia negativa da ideia de dignidade da

pessoa humana que veda práticas que impliquem – de qualquer forma –

em violação aos valores de dignidade

Dessa forma, para o desenvolvimento hermenêutico decorrente

do exercício da eficácia negativa do princípio da dignidade da pessoa

humana (abstenção de práticas que impliquem – de qualquer forma – em

violação aos valores de dignidade), a determinação do sentido e alcance

desta norma pelo agente público não poderá jamais legitimar uma atuação

fiscalizatória – ainda que sob a alegação do interesse público – que implique

em violação da dignidade do indivíduo fiscalizado. Nesse sentido o dever

de respeito alcança não apenas pessoas físicas, mas também os órgãos

públicos, pessoas coletivas ou empresas.

De igual forma, será idônea aplicação análoga do desenvolvimento

hermenêutico decorrente do exercício da eficácia positiva do princípio da

dignidade da pessoa humana (dever de proteção do proteção do indivíduo

por meio da promoção de seus direitos fundamentais). A guisa de exemplo,

imagine-se aqui a publicação de edital cujo critério de concorrência

impliquem em exposição vexatória da imagem das empresas. Nesse caso, em

exercício interpretativo destes citados critérios contidos no edital, poderá

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a empresa postular em juízo interpretação destas normas, reduzindo seu

sentido e alcance, de forma a proteger sua imagem.

6. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITOS FUNDAMENTAIS

Finalizando a abordagem acerca da aplicação hermenêutica do

princípio da dignidade da pessoa humana, destaca-se a relação entre

este princípios e os direitos fundamentais. Destaque-se nesse sentido que

dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais não são sinônimos,

sendo também errado considerar a dignidade da pessoa humana como tipo

de direito fundamental. Há entre estas duas ideias uma relação de “meio e

fim”, sendo os direitos fundamentais pressupostos à dignidade da pessoa

humana. (CAMARGO, 2007, p. 116).

Ao deparar-se com o paradigma pós-positivista, altera-se a

compreensão acerca dos princípios, que doravante passam a ter reconhecido

seu caráter normativo e sua eficácia positiva. Os direitos fundamentais

a seu turno, que normalmente são expressos sob forma de princípios

constitucionais, sofrem também reflexos diretos deste novo paradigma, na

medida em que passam a ter aplicação direta e imediata (art. 5, § 1, CFRB),

revisando assim a doutrina tradicional acerca da classificação das normas

constitucionais que concebe a existência de normas programáticas, cujo

teor restringe-se a apontar políticas públicas voltadas aos fins sociais do

Estado (SOARES, 2010,p.151)

Tal percepção voltada aos direitos fundamentais mostra-se

inaceitável, sendo alterada esta realidade com o comando constitucional de

aplicação direta e imediata destas normas, sendo inaceitável condicionar

sua eficácia à existência de normas infraconstitucionais.

Os reflexos hermenêuticos dessa nova percepção propiciam o

surgimento de uma hermenêutica criativa, concretizante e orientada aos

valores tutelados pela Constituição.

Por “hermenêutica criativa”, se quer aqui, fazer menção ao papel

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do intérprete que exerce função ativa na construção do sentido do texto

normativo representativo de direito fundamental.

A respeito do caráter “concretizante” – também citado – se quer

expressar uma postura hermenêutica que busca a efetividade dos valores

constitucionais, ou seja, uma postura hermenêutica que busca determinar

como sentido o efeito concreto (efetivo) do direito fundamental envolvido.

Por fim acerca da percepção de uma hermenêutica orientada aos

valores tutelados pela Constituição, se quer aqui expressar a elaboração

de uma hermenêutica teleológica, cujo sentido e alcance será determinado

por este valores, dos quais os direitos fundamentais se inserem.

Em síntese, pode-se então concluir que a ideia da dignidade da

pessoa humana, da qual as normas que expressam direitos fundamentais

são pressupostos, permite uma reconstrução em sentido e aplicabilidade

destas normas, na medida em que propicia uma postura hermenêutica

diferenciada, de onde o resultado interpretativo irá buscar sempre a

efetividade dos valores constitucionais, dos quais os direitos fundamentais

se inserem.

7. CONCLUSÃO

Os princípios apresentam carga normativa e geram variados efeitos,

sendo possível falar-se então em normas dotadas de eficácia como qualquer

outra. Nesse sentido, fala-se em eficácia positiva e negativa, gerando efeitos

sobre o mundo jurídico, bem como sobre a realidade fática.

Em seu prisma de eficácia positiva, a dignidade da pessoa humana

serve de fundamento de um direito pleiteado. Nesse caso, a utilização do

princípio se aproximará da incidência normativa das regras, na medida em

que são observados os fatos em seu enquadramento na proposição jurídica

que se deseja.

Considerando a eficácia negativa do princípio da dignidade da

pessoa humana, compreende-se que o advento de uma norma jurídica

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violadora de um princípio constitucional, pode resultar na declaração de

inconstitucionalidade desta norma

Citou-se ainda uma terceira modalidade de eficácia indicada do

princípio da dignidade da pessoa humana – a eficácia interpretativa –

que permite a percepção dos princípios também como instrumento de

interpretação. Nesse sentido, o considerar tal eficácia, compreende-se a

força normativa que os princípios exercem no sentido de dar harmonia e

unidade ao sistema jurídico, operando limites à determinação do alcance

e sentido das demais normas jurídicas infraconstitucionais, bem como

exercendo influência sobre as demais normas constitucionais a fim de que,

diante de múltiplas possibilidades interpretativas, o intérprete escolha

aquela que melhor satisfaz o conteúdo axiológico representativos dos

valores constitucionais.

O princípio da dignidade da pessoa humana pode ainda ser

compreendido – dentro deste verniz hermenêutico – a partir de um plano

sintático e axiológico. Acerca do primeiro deles, a considerar um plano

sintático da interpretação, deve-se destacar sobre a realidade de ser o objeto

da Hermenêutica textos jurídicos escritos. Dessa forma, a considerar o texto

normativo da dignidade da pessoa humana e sua previsão constitucional do

art. 1, III, CF, pode-se extrair considerações a partir das formas que, sob o

prisma hermenêutico, a dimensão da sintaxe apresenta-se: a interpretação

gramatical, lógica e sistemática.

A percepção hermenêutica do princípio da dignidade da pessoa

humana sob o viés da interpretação literal (aqui compreendida como

aquela em que se busca o sentido e alcance dos textos normativos a

partir de sua literalidade), mostra-se prejudicada face a própria natureza

polissêmica e o caráter abstrato comum às normas principiológicas. Por

tal razão, uma acepção literal do princípio da dignidade da pessoa humana

expressa apenas o início do processo interpretativo, sobretudo porque a

noção acerca da dignidade é um valor plural, variando a partir da época e

local onde se insere.

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A seu turno, a percepção hermenêutica do princípio da dignidade

da pessoa humana sob o viés da interpretação lógica (aqui compreendida

pelo trabalho exegético que busca determinar a mens legislatoris do

texto) permite extrair as motivações do legislador para o qual a norma

foi criada.Nesse sentido costuma-se apontar a utilidade do manejo da

interpretação lógica para resolver contradições entre termos num mesmo

texto normativo, com vistas a se alcançar um significado coerente. Ao

se considerar por exemplo, a situação da polissemia retratada nos textos

jurídicos, poderia ser minimizada pelo advento da implementação da

interpretação lógica, endossando-se assim a insuficiência da interpretação

literal para se alcançar um resultado hermenêutico adequado do art. 1, III,

CF.

Por fim, a compreensão da dignidade da pessoa humana sob um viés

sistemático mostra-se como – dentro do plano sintático – a mais adequada

modalidade interpretativa em nível de plenitude e eficácia. Para tanto, o

fato de ter sido a dignidade da pessoa humana eleita pelo constituinte

como um fundamento da República, reforça esta conclusão.

Sob o plano axiológico, a compreensão da dignidade humana

é identificada como um “valor autônomo”, dentro do sistema jurídico,

deixando assim de ter função meramente acessória dentro da percepção

jurídica (como feita no ideário positivista), passando agora a ter positivação

expressa e papel fundamental para o direito. Nesse sentido, compreendeu-se

a dignidade da pessoa humana como uma prerrogativa de todo e qualquer

ser humano, o que sob o prisma hermenêutico significa que o homem não

pode ser concebido como instrumento ou objeto de nada, motivo pelo

qual resta desautorizada toda e qualquer interpretação normativa que não

atribua ao homem e sua dignidade tal condição.

NOTAS

[1] Advogado, Mestrando em Políticas sociais e Cidadania (UCSAL),

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Especialista em Direito Público, Professor universitário (Direito Tributário

e Hermenêutica Jurídica [email protected]).

[2] Pós-doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Coimbra (UC–

Coimbra- PT), Doutora em Ciências Jurídicas – UFPB. Coordenadora do

Núcleo de pesquisa em Processos Constitucionais e Direitos Fundamentais-

UCSAL [email protected]

[3] Em verdade, desde a época do Renascimento, o homem já ocupava esse

status, consoante se pode corroborar todo a contribuição do pensamento de

filósofos como Francis Bacon, Descartes e, principalmente Kant (SOARES,

2010, p. 17)

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luis Roberto (org). A Reconstrução Democrática do Direito

Público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

______, Interpretação e Aplicação da Constituição. 7ª edição, São Paulo:

Saraiva, 2009.

BOBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone Editora, 2006.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra,

Almedina, 1993.

CAMARGO, Marcelo Novelino. O Conteúdo Jurídico da Dignidade da

Pessoa Humana. In: Leituras Complementares de Constitucional – direitos

fundamentais. Salvador, Jus Podivm, 2007.

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a interpretação/aplicação do

direito. 5ª edição, São Paulo: Malheiros, 2009.

SARLET, Ingo Wolfang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre:

Livraria do Advogado, 2001.

SANTOS, Carlos Maximiliano Pereira dos. Hermenêutica e Aplicação do

Direito. 20ª edição, São Paulo: Forense, 2011.

SOARES, Ricardo Maurício Freire, Hermenêutica e Interpretação Jurídica.

São Paulo: Saraiva, 2010.

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______, O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, São

Paulo: Saraiva, 2010.

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MATAMOS ROBERT ALEXY COM A APLICAÇÃO DA TEORIA DA KATCHANGA?

Edenildo Souza Couto. - Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Pós-graduado em Direito Processual Civil pelo Juspodivm. Bacharel em Direito pela Faculdade de Tecnologia e Ciências. Laureado pela Instituição supracitada. Escritor de livros e de vários artigos publicados em revistas jurídicas. Professor de diversas disciplinas do Direito. Editor fundador da revista Artigo jurídico. Atualmente é Assessor de Juiz - Tribunal de Justiça do Estado da Bahia e Professor de diversas disciplinas do curso de Direito.

Analisaremos, neste texto, como uma brilhante ideia firmada por

Robert Alexy, muitas vezes, é utilizada no Brasil como fomentadora do

arbítrio em algumas decisões judiciais.

Inicialmente, mister se faz algumas ponderações, a fim de situar o

leitor sobre o fim do presente estudo.

O que é a katchanga[1]?

Pois bem.

Em uma de minhas aulas de Direito Constitucional, ouvi de um

brilhante aluno a seguinte estória:

Um senhor milionário, ao chegar em uma cidade do interior, buscou

uma casa de apostas. Sentou-se sozinho em uma das mesas. Pôs a beber. E

se chafurdou, por horas, sobre as bebidas mais fortes daquele recinto.

A solidão do milionário foi quebrada pelo próprio dono da Casa. É

que o jovem empreendedor, ao perceber que o seu cliente estava tomado

pelo álcool, resolveu oferecer-lhe serviços de apostas. Buscava, sem

qualquer piedade, obter lucros em detrimento do milionário.

E assim, iniciou o diálogo:

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– Boa noite! Sou o dono desta Casa de apostas. Notei que o senhor

tem semblante de ótimo jogador. Um adversário sem igual para mim e para

esta Casa! Proponho-lhe que aceite uma de nossas modalidades de jogo:

roleta, tômbola, draw poker ou blackjack.

– Meu caro, respondeu o senhor milionário, eu só jogo a katchanga.

O jovem, aturdido, perguntou aos seus funcionários, os crupiês, se

aquele jogo era conhecido por algum deles. Ninguém, sequer, tinha ouvido

falar naquele tipo de aposta.

Mas o empreendedor não queria deixar de ter lucros desenfreados

sobre um senhor extremamente embriagado: aposta fácil, pensou, não se

perde!

Foi quando teve a astúcia de determinar que o seu melhor crupiê

jogasse, a fim de entender as regras do jogo.

E assim se sucedeu.

Na primeira partida, o cliente distribuiu as cartas. Do nada, bradou:

– Katchanga!

E em seguida, recolheu todo o dinheiro que estava na mesa.

Na segunda mão, idem:

– Katchanga!

E todo o dinheiro foi para o bolso do senhor milionário!

Outras partidas se sucederam, até que o crupiê, em reservado,

chamou o jovem e lhe disse:

– senhor, já entendi: basta gritar katchanga, antes dele. Muito fácil.

E como ele está bêbado, terei mais habilidade do que aquele senhor. Assim,

sugiro-lhe que aposte valor extremamente elevado.

Acolhendo a sugestão do seu funcionário, o empreendedor propôs

ao cliente que dobrassem o valor de toda a aposta já feita por eles até aquele

momento.

O senhor, com ar embriagado, aceitou sem titubear.

As cartas foram distribuídas; a mesa ficou abarrotada de dinheiro.

Ocorre que, na fração de segundo após o depósito da última carta na banca

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do jogo, o crupiê, vitorioso, gritou:

– Katchanga!

Já estava recolhendo todo o montante acumulado, quando o senhor,

com toda segurança do mundo, tomou-lhe a quantia, ao reverberar:

-Katchanga real!

Eis a primeira premissa!

É de conhecimento geral que Robert Alexy formulou a “teoria dos

princípios”.

Por esta, o escritor, com a destreza que lhe é peculiar, propugna

que os direitos fundamentais possuem caráter de princípios e, nessa

condição, eles eventualmente colidem, sendo assim necessária uma solução

ponderada em favor de um deles[2].

Havendo colisão de princípios, o exegeta da norma deve

aplicar o sopesamento ou a ponderação, técnica que exige uma robusta

fundamentação, calcada em argumentos jurídicos firmes, objetivos e

racionais.

Posta está a segunda premissa.

Ocorre que a Katchanga pode ser utilizada para “destruir” a

ponderação[3]. E esta atecnia é utilizada, com frequência, pelos Tribunais

Pátrios.

Virgílio Afonso da Silva logrou descrever, com brilhantismo, este

fenômeno, no seu texto “O Proporcional e o Razoável”[4].

Ele abalizou vários casos em que o Supremo Tribunal Federal, ao

pálio de que os direitos fundamentais podem ser relativizados com base no

princípio da proporcionalidade, simplesmente invalidou o ato normativo

questionado, sem demonstrar dentro de um conteúdo objetivo, racional e

crítico, as razões que tornavam o ato desproporcional.

Matamos, com nossas katchangadas, Robert Alexy todos os dias!

A técnica do sopesamento, grande ferramenta à disposição da

efetividade dos direitos fundamentais, em diversos casos, vem sendo usada

de forma arbitrária por diversos magistrados do Brasil. Daí a criação, pela

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doutrina, da expressão: “Alexy à brasileira”.[5]

Ocorre que a espécie é de fundamental importância. Trata-se de

uma saída de mestre, diante das inevitáveis e corriqueiras colisões de

normas princípiológicas dos direitos fundamentais.

Todavia, não se pode permitir que a mesma seja usada para

fomentar decisões discricionárias, aos moldes da “katchanga real”: sem

regras nítidas, objetivas e racionais.

O problema exposto no nosso trabalho, qual seja, evitar que matemos

Robert Alexy, de fato, é tarefa árdua. Talvez, impossível de ser obtida.

Todavia, algumas regras, se adotadas, combaterão o uso da katchanga.

Com efeito, com este objetivo, é de imperiosa importância fortalecer

o sistema de precedentes judiciais. Aliás, com o novo Código de Processo

Civil (Lei n. 13.105/2015), ao menos em tese, damos um grande passo neste

sentido.

Além do mais, mister se faz primar por decisões objetivas, lastreadas

em dados objetivos, raciocínio cognitivo coerente e análise empírica

escorreita.

É preciso, ainda, reforçar a necessidade de aplicar, com a devida

fiscalização, o princípio da imparcialidade do juiz. Isto porque, se o

magistrado – ainda que indiretamente, tiver interesse no resultado do

processo, naturalmente, ele tenderá a galgá-lo, mesmo que fazendo uso da

katchanga.

Precisamos, com afinco, fomentar a proteção aos direitos

fundamentais, notadamente, quando houver colisão entre eles, usando o

sopesamento, conforme defendido por Alexy. Contudo, não se pode permitir

o uso da katchanga, sob pena de se verter a ideia do mestre alemão em

argumentos para a discricionariedade.

REFERÊNCIA

ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de

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Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001.

MARMELSTEIN, George. Alexy à Brasileira ou a Teoria da Katchanga.

Disponível em: < http://direitosfundamentais.net/2008/09/18/alexy-a-

brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga/> Acessado em: 07 de janeiro de 2016.

Streck Lenio, “A estória da ‘Katchanga Real’”, por Lenio Streck. Disponível

em: < http://professormedina.com/2012/02/28/a-estoria-da-katchanga-real-

por-lenio-streck/> . Acessado em: 07 de janeiro de 2016.

NOTAS

[1] Com base no texto de MARMELSTEIN, George. Alexy à Brasileira ou

a Teoria da Katchanga. Disponível em: < http://direitosfundamentais.

net/2008/09/18/alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga/> Acessado em:

07 de janeiro de 2016.

[2] ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de

Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001, p.112

[3] Neste sentido, Streck Lenio, “A estória da ‘Katchanga Real’”, por Lenio

Streck. Disponível em: < http://professormedina.com/2012/02/28/a-estoria-

da-katchanga-real-por-lenio-streck/> . Acessado em: 07 de janeiro de 2016.

[4] Citado por MARMELSTEIN, George. Alexy à Brasileira ou a Teoria da

Katchanga. Disponível em: < http://direitosfundamentais.net/2008/09/18/

alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga/> Acessado em: 07 de janeiro

de 2016.

[5] Ibidem.

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O DESAFIO DA TÓPICA

Pedro Léo Alves Costa - Especialista em Direito Notarial e Registral pela Universidade Anhanguera Uniderp, Brasil(2014). Conselheiro Presidente do Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente da cidade de Ara , Brasil.

1. INTRODUÇÃO

Como parte do relatório final da disciplina de Direito Constitucional

do Mestrado Científico com perfil em Direito Constitucional da Universidade

de Lisboa, orientada pelo Professor Doutor Carlos Blanco de Morais, não

seria mais que oportuno poder aduzir um tema tão ínsito e inerente

à hermenêutica constitucional como o é a tópica. E não podendo ser

diferente, já induzindo a proposta ao tema O Desafio da Tópica, tal objeto

de estudo é deveras instigante e dicotômico. A tópica como parte da práxis

constitucional e da filosofia (não só a jurídica) é uma verdadeira faca de dois

gumes, pois sempre trouxe ao debate dos jusfilósofos e con stitucionalistas

mais questionamentos que conclusivas respostas que possam esgotar o

tema de alguma maneira.

Por agora, como forma de interação inicial com a matéria, sabe-

se que tal redação é muito utilizado na área médica que significa o uso

externo de determinado fármaco para tratar uma doença no seu próprio

local, ou seja, ataca o problema naquele ponto exato onde é aplicado. Me

utilizo desta comparação, visto que, sem grande rigor, a tópica possui no

direito a mesma conotação que nesta área da saúde, ou seja, tenta resolver o

problema individualizado, na idiossincrasia e vicissitude do caso concreto.

Desta forma, o vocábulo tem sua matriz do grego topos (singular)

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ou topoi (plural), que corresponde a palavra latina locus pelo qual significa

lugar-comum e a partir dessa premissa glossológica do loci commune, o

presente trabalho foi subdivido, para melhor acondicionamento, em duas

partes: uma primeira no âmbito histórico-conceitual e uma segunda no

aspecto hermenêutico-constitucional.

A primeira parte, como já se pode perceber, resvala na conceituação

da temática, sua ambientação histórica e consequentemente a doutrina

fundamental que tratou de analisar o pensamento tópico-problemático.

Preliminarmente, será abordada a gênese histórica da tópica, passando a

investigar como a matéria se portou desde os campos remotos da filosofia,

no Direito Romano, Idade Medieval e Idade Moderna e averiguando seus

altos e baixos através do tempo (trazendo a baila os programas de algumas

escolas jurídicas que ratificaram o declínio da tópica, com a ascensão do

legalismo positivista tradicional, como a da Exegese na França, Pandectista

na Alemanha, Analítica na Inglaterra e a da Teoria Pura do Direito com

Hans Kelsen).

Ainda nessa parte prima será apreciada a obra dos grandes filósofos

e juristas que trouxeram a tópica em seu cânon, por ordem cronológica,

como o grego Aristóteles, o romano Cícero, Giambattista Vico na Itália e

o maior expoente da era moderna o alemão Theodor Viehweg. Sobre este

último, irão ser sintetizados os aspectos centrais da tópica jurídica em sua

obra Tópica e Jurisprudência, através das fontes originais pelo qual tomou

como paradigma (os autores anteriormente citados) e seu entendimento da

pertinência de aplicação na Jurisprudência (definido por ele como ciência

do Direito).

Decorrida essa seção propedêutica por excelência, a partir desse

subitem é que o tema proposto começa a tomar suas feições mais palpáveis,

e de certa maneira é onde também se iniciam os desafios nos quais constam

no tema. Preliminarmente, o primeiro desafio se transpõe em uma

tentativa subjetiva de conceituação mais concisa da tópica, sem obliterar

da dificuldade de tal atribuição, em virtude da matéria não possuir uma

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definição engessada e com uma carga filosófica valorativa bastante aberta,

o que faz a mesma dispor de diferentes significados e sentidos, em diversas

áreas das ciências e das artes.

O que também será oportuno expor o questionamento que vez

ou outra entorna em caracterizar a tópica como método de interpretação

ou técnica de solução de problemas, apresentando, dessa maneira, o

entendimento comungado nesse estudo.

Já a segunda parte da exposição encontra-se mais relacionada

com a disciplina de Direito Constitucional: qual seja abordar a influição

da tópica na hermenêutica constitucional. Tal atuação será aduzida mais

precisamente na interpretação constitucional, já que o item se subdivide

em explorar a ideia de um sistema constitucional aberto (no qual é

totalmente amalgamada a essa forma de pensar), observando o panorama

da principais observações críticas que foram tecidas contra a tópica, mais

precipuamente objeções da obra de Viehweg, que no geral é feita sob uma

perspectiva sistemática, predominante na atual ciência do direito, em um

prisma formalista e lógico-dedutivo. Essa apreciação será analisada pelas

contidas nos trabalhos Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy,

Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito de

Claus-Wilhelm Canaris e As razões do Direito – Teoria da Argumentação

Jurídica do espanhol Manuel Atienza.

No subitem seguinte será feita uma desconstrução as críticas

proferidas, o que significa uma verdadeira superação dos desafios constantes

nos óbices dos discursos citados anteriormente, através de argumentos

pelos quais possam conter algum embasamento suficiente em tornar as

proposições expostas, em algo um pouco mais etéreo na ciência do Direito,

sem retirar, é claro, o significado e importância destes posicionamentos

para a construção da gnose jurídica tópica como um todo global, contida

em tais teses e suas síncrises.

Valorado ainda nessa segunda parte será a interligação da tópica

no conceito jurídico de equidade e como essa forma de pensar pode ser

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importante para se constatar e colmatar as chamadas lacunas no direito.

De bom alvitre aludir nesse capítulo ainda o uso da tópica pela Justiça

Constitucional, seja de forma inconsciente ou consciente, colacionando

alguns precedentes judiciais da Suprema Corte Brasileira, onde o Pretório

se utilizou da tópica para decidir alguns leading cases, mais pontualmente

na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.289 e na Suspensão de Segurança

315, todos de relatoria do Ministro Gilmar Ferreira Mendes.

Por fim, insta salientar que o presente relatório foi subscrito em

português do Brasil, de acordo com a nova regra ortográfica da língua

portuguesa, se utilizando de pesquisa em doutrinas norte-americana,

inglesa, portuguesa, brasileira, belga, alemã, italiana, alemã e espanhola,

além de obras clássicas das Filosofias grega (principalmente da Escola

Aristotélica) e romana, da jurisprudência brasileira, bem como da legislação

alienígena a partir da observação do Direito Comparado.

I. PRIMEIRA PARTE: ASPECTO HISTÓRICO-CONCEITUAL

2. GÊNESE HISTÓRICA

A contextualização histórica da tópica é de salutar importância, pois

nos mostra como a matéria se portou através dos diversos pensamentos e

pensadores no decorrer do tempo, além de nos fazer compreender como

essa forma de pensar evoluiu até chegar a conceituação e os fundamentos

que nos é trazida hodiernamente. E como não poderia ser diferente, a tópica

teve diversos altos e baixos na sua evolução através das eras.

Ela já existia nos mais remotos campos da filosofia com o nome de

euresis, inventio, ars inveniendi ou algo semelhante [1]. Mas foi Aristóteles

que cunhou o termo tópica, no quinto livro dos seus seis, condensados

no tratado do Organon: a tópica nessa obra ocupa uma posição especial,

visto que supõe um regresso a um estágio anterior, pelo qual só depois se

sobrelevou a Ciência Lógica. [2]

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Teve sua importância realçada no Direito Romano, através da obra

de Marco Aurélio Cícero, no ano de 44 a.C, um ano antes de seu assassinato

e cerca de três séculos depois da obra de Aristóteles [3]. A influência da

tópica pode ser facilmente vislumbrada nesta época, visto que, no direito

romano o espírito prático dos juristas romanos visualiza o papel do direito

como um elemento garantidor da harmonia social, assim as decisões jur&i

acute;dicas advinham da necessidade de oferecer a sociedade soluções

para os problemas e conflitos surgidos naquele meio. [4]

Vindo mais a frente, a tópica pode ser vista facilmente na Idade

Média, como a própria formação cultural desta época evidencia: aqui se

englobava o estudo das chamadas artes liberais (septem artes liberales),

que compreendiam, dentre outras, a gramatica, lógica (ou dialética) e

retórica, desta advindo (essas três disciplinas específicas eram comumente

alcunhadas de trivium). Interessante notar aqui a influência da Universidade

de Bolonha, a mais antiga universidade do mundo ocidental, onde os alunos

ali admitidos já eram graduados e possuíam conhecimentos nessas áreas.

A base de estudo dessa época foi exatamente a tópica de Cícero, a partir do

comentár io de Boécio, filosofo romano [5], porém a tópica Aristotélica foi

igualmente de suma importância no medievo, vindo a influenciar inclusive

Santo Tomás, nos seus comentários (espec. 1 Anal. 1a) de 1270 [6] .

Com o declínio da Idade Média e chegada da Idade Moderna, a

tendência era de negar as ideias cultivadas pela igreja e suas doutrina

teológicas, com a formulação de novos padrões culturais, centrados no

homem e na razão. Assim, o modo de pensar dos juristas medievais que tinha

como referência central a solução de problemas, deu lugar a um modelo

lógico-sistemático, de perfil linear, fundado na existência de sistemas

jurídicos de caráter dedutivo, inspirados pelo modelo da matemática,

que gravita em torno da autoridade do Estado e da preservação de suas

instituições. Inicia-se aí o primeiro decl&ia cute;nio do pensamento tópico,

mas por bem lembrar que essa queda se deu de forma paulatina, foi um

processo que não se cristalizou de um momento para outro, advindo

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exatamente de mudanças políticas, econômicas e intelectuais no Ocidente

de forma geral. [7]

Com a Revolução Francesa, em 1789, houve uma incrível e sensível

mudança no pensamento jurídico, passando a prevalecer o império e a

codificação da lei, [8] que representou mais ainda a consagração dessa

proposta racionalizante, além da proeminência de uma estruturação

juscientífica, subordinação e sujeição desta ao pensamento sistemático [9],

o que cristalizou a ruptura ao pensamento aberto tópico.

De bom alvitre salientar o programa de algumas escolas que

ratificaram, por assim dizer, esse afastamento, em diversos sistemas desde

o romano-germânico até o anglo-saxão.

2.1 ESCOLA DA EXEGESE FRANCESA

A chamada escola da Exegese [10], é a corrente máxima que apôs

o positivismo jurídico na França; considerava o Código Civil Francês um

documento completo, com a capacidade de solucionar qualquer lide,

presentes ou futuras, por meios de preceitos normativos. Foi essa escola

que acabou por firmar o pensamento lógico-dedutivo no campo jurídico

Europeu [11].

Várias são as características que caracterizam a escola francesa,

como por exemplo, uma inversão da relação clássica existente entre o

direito positivo e natural, em que se deu destaque às normas positivadas

pelo Estado, que foram tidas como comandos dotados de racionalidade

intrínseca[12]. No mais, a interpretação dada aos artigos do Código de

Napoleão (ou Código Civil Francês), não vislumbrava a possibilida de em

solução de casos pelo juiz através de direito natural e sim apenas pelo

regramento normativo, sendo esta a fonte única dessas soluções ao caso

concreto.

Outro aspecto salutar da escola da Exegese trata de dotar um

concepção extrema estatal do direito, ou seja, era necessário interpretar

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de forma mais fiel possível à vontade do legislador [13], dessa ideia surgiu

a concepção subjetiva da interpretação do direito, que tem como fonte

principal ao talante do legislador histórico [14]. Importante lembrar que a

escola preconizava ainda o culto excessivo ao texto da lei e o respeito pelo

principio da autoridade [15].

2.2 ESCOLA PANDECTISTA ALEMÃ

Na Alemanha a penetração do positivismo jurídico veio a se

curvar aos esquemas sistemáticos e formais de inspiração jusracionalista

e se deu com Bernhard Windscheid e uma pesquisa aos Pandectas

ou Digesto de Justiniano [16], formando a escola conhecida como

Pandectista (Pandektenwissenschaft) ou da Jurisprudência dos Conceitos

(Begriffsjurisprudenz).

Algumas características dessa escola foi a subsunção, onde tendia a

reduzir a atividade judicial a uma mera tarefa de aplicação dos princípios

jurídicos, além do chamado dogma da plenitude lógica do ordenamento

jurídico, ou seja, ao juiz era proibido, ante a existência de uma lacuna

da lei, a avaliação do caso a ser julgado segundo critérios autônomos de

valoração, devendo estender, por dedução e combinação conceitual, o

sistema normativo, de modo a cobrir o caso sub judice. Também insurgia

a ideia central de que o direito formava um sistema coerente de conceitos,

hauridos no material criado pelo legislador, sendo, pois, o seu sentido, da

do a referência ao sistemático [17].

Assim é fácil notar que a escola adotou a metodologia do direito

lógico-dedutivo despido de referenciais históricos e sociais e orientado pela

afirmação do poder do Estado. A lei, como na escola anterior, era levada

em consideração primeira, sendo o norte do juiz e do operador do direito

nos casos concretos.

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2.3 ESCOLA ANALÍTICA INGLESA

Para ratificar tal influência sistemática até no sistema anglo-saxão é

possível vislumbrar quem se curvasse a tais ideias: semelhante a primeira

escola mencionada, na Inglaterra exsurgiu a conhecida Escola Analítica,

tendo como principal representante John Austin [18], com a obra única A

determinação do campo da jurisprudência: a filosofia do direito positivo.

Austin define o Direito Positivo como aquele emanado diretamente

dos soberanos, reforçando a ideia do poderio estatal que caracterizaram

todas essas escolas. [19] Tendo como característica semelhante a adoração

a codificação do direito [20], deslocando e retirando do meio jurídico as

ideias de abertura do pensamento tópico.

2.4 ESCOLA DA TEORIA PURA DO DIREITO DE HANS KELSEN

O extremo da sistematicidade lógico-formal e do formalismo

aplicada ao direito está presente na quarta escola aqui apresentada, a da

Teoria Pura do Direito do austríaco Hans Kelsen[21], para quem houve a

mais monumental tentativa de fundamentação da ciência Direito como

ciência [22].

Pretendeu o autor trazer de volta a tona o projeto do positivismo

jurídico do século XIX, que ficou aluído pelas críticas conduzidas por

pensamentos ligados as escolas sociológicas do direito ou do direito livre.

A linha condutora dessa da teoria de Kelsen tratava de uma purificação do

direito, onde os juristas deveriam trazer um discurso que se baseasse a si

próprio e que evitasse um contágio ao discurso jurídico com considerações

de ordem político-ideológica ou empírico-sociológica [23], ou seja, leva-se

em primazia apenas o Direito como ciência absoluta, sendo ela o obejto

único de seu estudo. [24]

Kelsen dá primazia a norma, para quem é uma entidade lógico-

hipotética, capaz de construir toda a experiência social, abrangendo o

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ordenamento de forma ampla. O direito é visto como um todo coerente,

em um sistema escalonado e gradativo de normas, como uma escada, que

se apoiam umas nas outras recebendo imbricamente as suas vigências

de uma norma fundamental, suporte lógico da integralidade do sistema

[25], assim cada norma retiraria a sua validade daquela que lhe fosse

imediatamente superior, dando a partir dessa estrutura hierarquizada o

que se denomina de pirâmide normativa, pois a estrutura do ordenamento

partiria de conceitos genéricos inseridos na norma fundamental e deles

seriam retirados conceitos e normas, e conceitos de cunho mais específico [26].

Com isso, Kelsen foi capaz de retirar os valores dos debates

jurídicos, reacendendo uma visão rigorosamente estatalista do direito: as

normas eram válidas não por fazerem justiça, mas sim, por o Estado as

reconhecerem como tal. Para o austríaco, o direito deveria ser uma ciência

do dever-ser (sollen), regido pela imputação, não sendo das ciências do

ser (sein), conduzidas por ideais de causalidade [27], sendo assim, não

se devem ser aplicados a este dogmas das ciências naturais, mas sim, na

autoridade de quem cria as normas a sua base. A escola da Teoria Pura do

Direito criou uma concepção totalmente amoral da ciência do direito, cuja

vertente estava exatamente na proposta de desenvolvimento de uma teoria

do ordenamento jurídico dotada de extremo rigor científico. [28]

Já nos vindouros do século XIX, com a fomentação dada por ideais

de caráter dedutivos e o crescimento do positivismo contida nos ideais

das escolas mencionadas, é de se notar o quase que completo declínio da

tópica, com uma desvalorização em todas as suas formas, até o ponto de

se abandonar por completo as disciplinas que assim se interligavam a ela,

como, por exemplo, a história do direito, filosofia do direito, retórica, direito

natural, teologia do direito, sociologia e antropologia jurídicas. O século

da bomba atômica deixou-se valorizar pelo pensamento sistemático até o

ponto de criar uma espécie de redoma única ao seu redor, que fomentava

de politicamente incorreto tudo que não estivesse em seu enlace. [29]

Com o pós-guerra, uma nova mentalidade emerge: assinalada a um

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certo neo-pluralismo jurídico, econômico, político, social e filosófico, e ao

modo de pensar erradamente batizado de débil, e que melhor seria por

ditar como elástico ou flexível, visto que o anterior tinha feições de rigidez

ao raciocínio geométrico e matemático.[30] Uma rejeição ao normativismo

jurídico puro e a reto mada de alguns parâmetros do direito da Antiguidade

foi facilmente notada. Aqui, vislumbrou-se que apenas o direito positivo e

o rigoroso cientificismo [31] não preenchia a plenitude que a ciência do

Direito realmente fazia jus e necessitava, recorrendo-se, assim, a recursos

técnicos mais abertos como a interpretação e integração normativa.

Dessa maneira, e vindo para se fixar foi Nicolai Hartmann o pensador

que no campo filosófico contrapôs modernamente duas modalidades

fundamentais de pensamento, o aporético (ou problemático) e sistemático,

na sua obra Disseitis von Idealismus und Realismus, abrindo caminho

de tal restauração da tópica agora como importante matéria do saber no

direito [32].

Essa retomada se deu em 1953 com Theodor Viehweg e a obra Tópica

e Jurisprudência. Com ele, o pensamento tópico retorna novamente aos

meios acadêmicos atuais, posicionando a tópica mais uma vez ao patamar

que merece, diante de toda a sua história, que influenciou (e influencia) de

forma incisiva o ordenamento jurídico como se tem hoje.

3. TÓPICA E SEUS GRANDES EXPOENTES

Passada a ambientação histórica da matéria, não mais importante,

é explanar sobre os maiores expoentes do pensamento tópico e como eles

trouxeram esse modo de pensar para a utilização no campo do direito e da

filosofia.

3.1. TÓPICA EM ARISTÓTELES

Os Tópicos de Aristóteles se encontram no Organon, ao lado dos

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demais escritos normalmente conhecidos como Lógicos e mais precisamente

depois dos livros das Categorias, do De Interpretatione e dos Analíticos e

antes das Refutações Sofísticas. Na filosofia grega, o autor buscou retomar

o que já estava quase superado e que foi muitas vezes combatido por

pensadores como Platão e Sócrates: a antiga arte da disputa, domínio dos

sofistas e retóricos [33].

Tendo por base, pois, essas noções, Aristóteles divide em sua obra

quatro tipos de raciocínio [34]: a) o demonstrativo, apodítico ou apodexis:

quando resulta de proposições primordiais e verdadeiras ou de princípios

cognitivos derivados destes. A temática é estudada nos Analíticos Primeiros

e Segundos, explanando o autor o silogismo, a partir do qual de premissas

chega-se a uma conclusão; b) o dialético: aq uele que parte de opiniões

geralmente aceitas por todos ou pela maioria, também conhecidas como

endoxa; a base de estudo dos Tópicos c) o erístico, contencioso ou sofistico:

formado por opiniões tidas como geralmente aceitas, mas que efetivamente

não o são, ou pelas opiniões que e sabem não serem aceitas de forma

majoritária; d) e por fim, o paralogístico ou falacioso: os raciocínios que

não são nem primeiras, nem verdadeiras e muito menos aceitas, por

exemplo, na matemática, algum raciocínio que se baseia em uma descrição

não verdadeira dos semicírculos, este raciocínio é um paralogismo.

Dessa maneira, a tópica para o aluno de Platão estava fundada no

raciocínio dialético, e, consequentemente, na indução e no silogismo como

meios de sua fundamentação. Este raciocínio para ele é o primeiro degrau

da filosofia e para quem se figurava como uma arte da boa discussão,

oferecendo um catálogo de topoi estruturado e capaz de prestar bons e

exitosos serviços a práxis [35] . Essa colet& acirc;nea tem por finalidade o

adestramento na arte de argumentar intelectualmente, de forma casual,

porém sempre dentro da Filosofia, ou seja, no campo intelectivo, os tópicos

ajudaram na gênese de um plano de investigação, que ampara na aceitação

dos argumentos apresentados sobre determinado tema. Já no terreno da

casualidade, o projeto tópico permite que os próprios argumentos com

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quem se esteja discutindo sejam contra ele utilizados e, por fim, no âmbito

filosófico, é possível aduzir problemas e dificuldades em diferentes planos

de um mesmo assunto.

Em realidade, a tópica, para o filosofo, lida com opiniões dominantes,

acreditáveis e verossímeis, que devem contar com aceitação (endoxa), nos

quais estabelecem soluções aos problemas que surgem e destas se cria um

catalogo de topoi (ou uma espécie de biblioteca), passando, assim, a prestar

de base para a solução desses mesmos problemas [36] que venham a surgir

no futuro.

Assim, dada as ideias gerais de sua tópica, Aristóteles nos conduziu

a uma cadeia de pensamentos um pouco difícil de compreender, com

concepções não muito bem ordenadas de ponderações sobre lógica,

psicologia e linguística [37], levando a refletir que a tópica e os topoi estão

ligados as ideias dialéticas e retóricas, dentro de um processo de raciocínio

totalmente indutivo, que partindo do particular para o global infiram

premissas aceitas, possibilitando um raciocínio filosófico adequado ao

problema, pelo qual podem nos levar a verdade (soluções destes problemas).

O pensamento tópico em Aristóteles serviu de base para o pensamento

jurídico medieval e para as vertentes tópicas posteriores no direito.

3.2. TÓPICA EM CÍCERO

A tópica de Cícero foi escrita em dois livros De inventione, dedicada

ao jurista C. Trebacio Testa, a qual teve uma influência histórica maior que

a de Aristóteles, porém de nível inferior que a deste. Aqui não se busca a

arte da disputa como fez o grego, mas um esforço de sistematizar a tópica

daquele, de forma que fosse produzida uma obra prática, compreensível,

como um receituário e não um tratado de filosofia [38].

Ainda que tendo por base a tópica Aristotélica, Cícero foi fiel a

praticidade dos romanos à sua época, buscando trazer o modelo aristotélico

em um catálogos de tópicos, tendo sido este o seu mérito: organizar o conjunto

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das máximas surgidas com fundamento na resolução de problemas, ou

seja, na prática diária. [39]

Ele fixou a seguinte metodologia: topoi referentes ao todo e topoi só

a determinadas relações. No todo, se dá primazia as definições, partes deste

(divisão) e as suas designações (etimologia). Já em determinadas relações,

são estabelecidas conexões entre gênero, espécie, semelhança, diferença,

contraposição, circunstâncias concorrentes (prévias, subsequentes,

contraditórias), causa, efeito e comparação. Cícero queria alcançar todas

as espécies de problemas e a organização de um catálogo de topoi foi um

xeque-mate na busca de resultados, diferente de Arist&oacute ;teles que

buscava essencialmente as causas. [40]

Interessante lembrar que os topoi na sua obra são feitos de forma

ilustrativa, sendo utilizadas exemplos de situações triviais do direito

romano, como casamento, herança, direito dos filhos e etc., o que trouxe

para esta cultura jurídica uma inegável importância, servindo seus estudos

de conexão entre o pensamento aristotélico e a jurisprudência romana. Tal

fato evidencia uma clara vinculação entre as estirpes do legado jurídico

Ocidental.

3.3. TÓPICA EM GIANBATTISTA VICO

Gianbattista Vico [41] escreveu sobre tópica na obra De Nostre

Temporis Studiorum Ratione de 1708. Sua obra é uma verdadeira

conciliação de estudos entre antigo e o moderno (de recentiori et antiqua

studiorum ratione conciliata). O autor se refere a métodos científicos, aos

quais ele subdivide em dois: o antigo como retórico (tópico), que advém da

Antiguidade, transmitido sobretudo por Cícero e o moderno, como o cr ítico

(cartesiano), o modo de pensar de René Descartes.[42]

Buscando estudar de forma comparativa a tópica e o cartesianismo,

dispõe que o método novo possui um ponto de partida o primum verum,

que não pode ser eliminado nem mesmo pela dúvida. Ou seja, podemos

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retirar uma análise matemática, certa, que se dá a maneira da Geometria,

portanto, na medida do possível, através de longas cadeias dedutivas

(sorites). Em sentido contrário há a tópica, o método antigo, tendo como

ponto de partida o senso comum, que manipula o verossímil e trabalha

com uma rede de silogismos. [43]

O Napolitano observava vantagens e desvantagens em ambos

os métodos: o método cartesiano tem a vantagem da agudeza e precisão

(caso o primum verum seja mesmo verum). As desvantagens parecem

que se sobressaem nos estudos do autor, o que se pode perceber um

partidarismo da tópica e uma crítica mais saliente ao método cartesiano.

Elas consistem na transposição, o falecimento da fantasia e da memória,

carência de linguagem, falta de amadurecimento do juízo em uma palavra:

da depravação do humano.[44]

Tudo isso, porém, pode ser afastado pelo método antigo retórico,

e especialmente por sua peça chave a tópica retórica [45], para quem

traduz sapiência e ensina como considerar um estado de coisas de ângulos

diversos, isto é, como descobrir uma trama de pontos de vista. Vico apesar

da predileção veemente sobre a tópica, ressalta a importância da analise

de ambas, em conjunto, devendo-se intercala-los, pois este sem aquele, na

verdade, não se efetiva. [46]

Assim, o tratado tópico de Vico foi um estudo imbricado de

pensamentos, no qual o novo e o antigo se completam, tendo a importância

de unir ambos os pensamentos (sistemático moderno, cartesiano, com a

tópica, o pensamento antigo) de uma forma que os instrumentos pudessem

criar uma noção de conjunto e maior interação do caso a ser regulado.

3.4. TÓPICA EM THEODOR VIEHWEG

Theodor Viehweg, sem dúvidas, é um dos pensadores modernos

que mais trouxeram a tópica a tona para ser analisada na ciência do

direito. [47] Como mostrado, ele trouxe de volta ao ambiente acadêmico

no pós-guerra a análise da tópica através de sua alma mater Topik und

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Jurisprudenz [48] de 1953, ao qual faz o autor um aparato histórico da

tópica, desde a clássica, como simples técnica de argumentação, mostrando

o entendimento de Vico, Cícero e Aristóteles, sua influência no ius civile,

mos italicus e ars combinatoria, até seu imbricamento com a axiomática e

civilística, expondo, desde já, o seu entender atual sobre a matéria.

A tópica para Viehweg pode ser resumida no enfoque em três

paradigmas: a) do ponto de vista de seu objeto: uma técnica do pensamento

problemático, b) do ponto de vista do instrumento com que opera: é a noção

de topois e c) do ponto de vista do tipo de atividade: a tópica é uma busca e

exame que recai em premissas e não em conclusões. [49]

Esmiuçando essas ideias gerais, quanto ao seu objeto, a tópica é

uma técnica do pensamento que se orienta para o problema (techne des

problemdenkens), para quem é todo questionamento que logo de vista

permite mais de uma solução e que necessita necessariamente de um

entendimento inicial, de acordo com o qual toma o aspecto que há que levar

a sério e segundo o qual há que se buscar uma resposta como solução. [50]

Dessa man eira, o raciocínio tópico se insere nas conjunturas de situações

para quem não existe uma solução inicialmente prevista, cabendo àquele

que vai resolver tal problema, oferecer alternativa possível, que possa

inclusive servir de base para a solução de outras situações logo depois. Essa

base será um acumulo de respostas, que acabam por formar um sistema.

O próprio Viehweg começa por investigar o tipo de enfoque

que será acentuado: o do sistema (como um conjunto de problemas) ou

do problema? [51] Se o enfoque for no sistema, os problemas passam a

ter sua importância analisada em razão de terem ou não referência no

catálogo de ilações que formam o mesmo. Assim, os problemas terão a

sua própria realidade determinadas por padrões sistêmicos, ou seja, só é

problema quando o sistema reconhece, em outras palavras, a ênfase no

sistema opera uma seleção de problemas. Em contrapartida, colocando-se

o acento no problema e se em um sistema não houver solução para aquele,

seria necessário buscar em outros sistemas (ou fora do sistema-mãe) essa

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solução, assim, a ênfase no problema opera uma seleção de sistemas. [52]

Viehweg parte, pois, dessa segunda abordagem para explanar que

o problema procede de um nexo compreensivo já preexistente, ou seja, que

pode ser pensado através da tópica. E que a tópica está inserta em uma ordem

que esta sempre por ser determinada, que só pode contar com panoramas

fragmentários (abertos). Dessa ótica, o autor subdivide a tópica como de

primeiro grau, sendo aquela mais rasa, superficial, levada a solução de um

problema de um modo simples, tomando-se através de tentativas, pontos

de vistas mais ou menos casuais, escolhidos arbitrariamente.

O que nos leva ao instrumento com que opera: já se a insegurança

salta à vista e seja necessário se buscar um apoio em um repertório (catalogo

de topoi), a solução está baseada na tópica de segundo grau. [53] Para o

professor, esse catalogo de topoi é variado e não organizados por um nexo

dedutivo (e por isso fáceis de serem ampliados e completados), estando

presente nas mais diversas esferas do conhecimento, de forma gen érica

ou específica, mas apesar das diferenças, o pensar tópico é comum nessas

áreas, sendo exatamente o problema e a busca a uma solução adequada o

elemento unificador.

Quanto ao útimo elemento, que é seu tipo de atividade, a tópica de

Viehweg nos mostra como se acham e se examinam as premissas, e não as

conclusões. Assim a tópica e o seu conjunto de topois devem ser trabalhadas

em premissas compartilhadas que tem uma presunção jure et de jure ou

que, ao menos imponham a carga de argumentação a quem os questiona.

Essa busca de premissas, segundo o autor, prepara pontos de vistas gerais

e catálogos de pontos de vistas para as questões que se podem colocar, o

que se desenvolve em ulterior desenvolvimento do pensamento. Conforme

se pretendia um vínculo lógico, mas com serenidade, pois, a constante

vinculação ao problema s&oa cute; permite conjunto de deduções de curto

alcance. É preciso que se tenha a possibilidade de os romper a qualquer

momento à vista desse problema. O modo de pensar problematico é esquivo

às vinculações. [54]

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De bom alvitre salientar, a importância que Viehweg transporta ao

consenso. Como explicado, a tópica atua no campo da dialética, não lidando

apenas com verdades, mas com opiniões majoritalmente aceitas, que

nascem de procedimentos argumentativos, disto, as mudanças no catálogo

consolidado de topois exsurge da contraposição de teses. O que nos leva a

pensar que os esquemas lógico-dedutivos são inadequados para lidar com

questões que se imiscuam em raciocínios dialéticos, uma vez que estes

estão solidificados ou pelo menos não se submetem aos extremos axiomas

das procuras que são feitas em busca da verdade. [55]

Viehweg nos faz refletir o quão o raciocínio tópico pode ser dificultoso

ao pensador moderno, condicionado que é aos pensamentos dedutivos, que

tem por nascituro os axiomas que não podem ser levados a contrariedade.

Pensar de uma forma problemática exige uma capacidade maior, pois

devemos nos desprender de temáticas sistêmicas e que não deixem de levar

em conta as peculiaridades do caso em estudo. Sem esse envolvimento

duplo podemos deixar a sapiência do problema de lado, tornando o mesmo

incoerente com outros anteriormente analisados por nós, ou por terceiros.

E Viehweg sem dúvidas ao aprofundar o pensamento de Nicolai Hartmann

(apóretico versus sistemático), causou frisson aos operadores do direito,

levando os mesmo a dialogarem de forma independente e não única aos

sistemas tradicionais do direito.

3.4.1. APLICAÇÃO DA TÓPICA NO DIREITO PARA VIEHWEG

A partir do debate anterior das principais características da tópica

em seu maior expoente moderno, não mais importante é trazer como

Viehweg leciona sobre a aplicação desta na Jurisprudência, aqui vista como

ciência do Direito. O autor faz uma abordagem da problemática através dos

institutos jurídicos, desde os romanos, até a doutrina civilística moderna.

Prima facie, para Viehweg os institutos no direito Romano foram

essencialmente tópicos, de caráter problemático. O espirito sistemático

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nessa época, foi de uma desilusão bastante grande, neles raramente se

encontram um conjunto de deduções de longas abrangências: a busca

de uma solução adequada para os problemas, era mais importante que

a elaboração de um sistema conceitual [56]. Para sustentar sua fala, o

autor debate a ius civile, que tinha como características as coleções de

regras (tópicos) não organizados por um caráter dedutivo (por exemplo,

são topoi desse instituto romano: “sobre a impossibilidade de transmitir

mais direitos a outrem do que se tem – nemo plus iuris ad alium transfere

potest, quam ipse haberet”; ou “sobre as garantias reais e suas preferencias

– plus cautiois in re est, quam in persona”, dentre diversos outros) [57] e

que se legitimavam quando eram avalizados por homens de notório saber

jurídico. [58]

É mais que perceptível nesses catálogos a fuga das positivações

na medida do possível. Tudo isso pode ser vislumbrado, como nos mostra

Viehweg, no caso da usucapião no Digesto de Juliano, para quem há um

sentido não sistemático, senão puramente problemático. Nele se oferece

uma série de soluções para um contexto de problemas em relação aquele

tema, buscado em pontos de vistas aceitos (boa fé, interrupção), trazidos de

outra fontes. Desta maneira, o conceito da usucapio vai ser definida por um

encadeamento de convicções prévias, como posse, posse de boa-fé, justo

título para adquirir, etc. O mesmo se sucede com outros muito s textos de

jurisconsultos deste período, consoante os de Ulpiano ou Quintus Mucius e

Gaio. [59]

Em outro tanto, o autor traz a perspectiva da tópica também na

jurisprudência medieval, no que diz respeito aos pré-glosadores e glosadores,

acima de tudo aos comentaristas do mos italicus, todos familiarizados

com essa forma de pensar, conforme sua própria formação cultura já

evidenciava. Para o autor, o ensino na Idade Média se orientava para a

discussão de problemas, onde se aduziam argumentos a favor e contra a

suas possíveis soluções, a falta sistemática de procedimento também era

mais que evidente. Tome-se como exemplo, a glossa ordinária de Accursio

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em Bartole de Sassoferrato, ou o caso prático da escolástica (método

eminentemente pedagó gico, com reflexões na buscas de premissas) na

forma clássica de São Tomas de Aquino e Bartolo num de seus esquemas,

respectivamente: utrum/quaerituran (fixação do problema) => videtur

quod/et videtur quod (pontos de vista próximos) => sed contra/in contrarium

facit (pontos de vistas contrários) => respondeo dicendum/ad solutionem

quaestionis (solução) [60], nota-se aqui, pois, um método tópico.

Dessa forma, nos leva a refletir que tanto o jurista romano quanto

o medieval, pelo ius civile e mos italicus respectivamente, na elucidação

de contendas e problemas, através de seus operadores, se valiam da tópica

como técnica adequada para esse intento. De forma assistemática, despidas

de cadeias dedutivas de pensamento e utilizando meios didáticos, buscando

diversos pontos de vistas e argumentos (o que nos remete ao pensamento

dialético), os operadores e seus institutos iam a procura de um catálogo de

soluções para a resolução desses conflitos.

A partir da época moderna (e anti-tópica), para Viehweg, a cultura

Europeia Ocidental, tinha o afã de conceber a jurisprudência como ciência,

dessa maneira propulsou a uma sistematização progressiva, implantada

através do método axiomático, que foi o oficial por um longo período por

razões de integridade e lógica e que para os seus idealizadores completaria

uma cadeia dedutiva na ciência e formalizaria a aplicação ideal das normas

jurídicas positivadas. Esse método consistia em ordenar, de acordo com

sua dependência lógica, de um lado os enunciados, de outro os conceitos

de uma área qualquer (não lógica). Ou seja, o método axio mático consiste

em criar uma coletânea completa de conceitos básicos e proposições de

onde advirão outros conceitos e outras proposições, simplesmente por

dedução, tal coleção é batizada de sistema de axiomas. Se esse sistema

de axiomas remontarem logicamente, forem compatíveis (sem se excluir

reciprocamente) e independentes dos que advieram anteriormente, haverá

uma completude de axiomas. [61]

Transportando essa lógica, que é quase puramente matemática,

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ao direito, podemos vislumbrar conceitos jurídicos fundamentais como

os axiomas e que serviriam de fundamentação para toda a normatividade

inserida ao sistema. O método axiomático e seu projeto científico, no

entender de Viehweg, não chegou a ser incrementado, pois, muito pode se

questionar sobre o mesmo. O seu julgamento é singularmente idêntico ao de

García Enterría, para quem o direito como sistema, não é de forma alguma

um critério lógico ou axiomático, senão uma conexão entre problemas.

Assim, ainda que soluções de tais problemas tragam um certo conteúdo

de uniformid ade ao conjunto normativo, a aporia da justiça permanece

inabalada. [62]

Em se tratando de jurisprudência, como ciência do direito, não se

pode buscar proposições basilares baseadas em todas as deduções, como

se busca no método axiomático, de tal forma a matemática, que possui

resposta para todas as suas operações, exatamente porque a soluções de

casos particulares, cada qual com a suas nuances próprias, demanda o

inserimento de novos conteúdos normativos, muitas das vezes as quais

estão desembutidos de referenciais prévios. E parece que o referencial

mais justo, para Viehweg, são os catálogos de topoi que estão distantes

de trazer a baila o engessamento e a sistematicidade de uma estrutura

axiomática. Assim, os conc eitos e princípios jurídicos tem no problema a

sua concretização e o limite de seus conteúdos, estando bem longe do perfil

axiomático, que nos ensinou, o cartesianismo, por exemplo. [63]

Viehweg nos faz racionar que a tentativa de retirar a tópica do

ordenamento jurídico não obteve sucesso em sua completude, foi apenas

uma questão de aparência, pois os sistemas jurídicos estão e sempre

estiveram impregnados de valores relacionados com essa forma de pensar,

como inclusive no uso da linguagem natural, a interpretação do simples

estado de coisas e a integração normativa [64]. Ao retomar e resgatar o

pensamento tópico Viehweg n&a tilde;o quis substituir de forma alguma

o pensamento sistemático por este. Na realidade, o mesmo propõe uma

problematização do sistema jurídico [65] , para que a tópica demonstre a

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necessidade da ciência do direito trazer de volta o pensamento problemático,

a romper com a pretensão conceitualista de montar um sistema fechado,

de caráter meramente dedutivo. [66]

4. CONCEITUANDO TÓPICA (E A DIFICULDADE SUBJACENTE A ESSE

INTENTO)

Vislumbradas as ideias principais dos maiores estudiosos da tópica,

seria importante condensar tais lições em algo mais conciso, para trazer

uma aclaramento maior de sua conceituação e já adianto não será uma

tarefa fácil, pois como nos lembra PUY a tópica é algo complexo, pois não é

ciência, senão filosofia. Não é teoria, senão retórica. Não é monólogo, senão

dialética. Não é esquema abstrato sobre o direito, senão direito bruto, real,

bravo. A ciência do direito ensina o direito como se ensina a conduzir uma

máquina, um carro, um barco, um avião. A tópica ensina o direito como s e

ensina a tourear: o touro há que querer, conhecer, esquivar e ser possível

mata-lo antes que mate ao toureiro. [67]

A tópica encontra-se apta a conter em si mesma variados significados

e sentidos, em diversas áreas das ciências e das artes [68]. Há quem entenda

ser um catálogo (rol de tópicos, repertório, acervo de dados jurídicos, que

podem ser de muitos e variados tipo e com diversas outras funções), uma

arte (argumentativa, com a finalidade de persuasão dos envolvidos), método

(interpretativo constitucional, por exemplo), t&eacu te;cnica (de solução de

problemas), doutrina (teorização e perspectiva de organização dos topoi

adquiridos na comunidade, especificamente na comunidade jurídica, ou

científico-congregacional do Direito). [69]

Mas foi no direito que conseguiu ser a mola propulsora de um ideário

mais propenso a comungar a resolução de litígios através dos problemas.

Problemas estes, que são o seu nascedouro, que sempre caminham, assim,

em sua direção.

Desta forma, levando a esse viés solucionador, a tópica pode ser

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conceituada como sendo um meio apto a resolução de problemas práticos,

através de uma catálogo de topoi que são fórmulas, cambiáveis no tempo, no

espaço e nas circunstâncias, utilizadas em um determinado contexto, com

um determinado potencial de persuadir o interlocutor, com caráter plástico,

flexível (por exemplo: os adágios, conceitos, princípios, valores, standards,

critérios de justiça, brocardos jurídicos, recursos metodológicos, entre

tantos outros.). Esses catálogos, buscam trazer um melhor convencimento

de quem vai solucionar a questão , eis o motivo pelo qual os topoi muitas das

vezes podem ser de qualidade (provindo de um argumento ab auctoritatem),

quando avalizados pela doutrina, juristas insignes, jurisprudência pacífica,

ou seja, daqueles caracteres que sustentem a tese aventada. Ou ainda de

quantidade, quando a força do catálogo advém não só de seu renome, mas

também do seu consenso. [70]

Com isso pode-se notar que a tópica não possui uma definição

engessada. Ela traz uma forma de pensar filosófica, que deixa de lado

uma normatização rija do direito e transpõe para sua face mais dinâmica

e elástica, nos levando as ideias de um sistema mais aberto, que se

desenvolve com pontos da retórica/dialética e que se afasta de qualquer

tipo ou estrutura lógico-sistemática/dedutiva. Para melhor entendimento,

vejamos esta tabela [71][72]

– podem ser de qualidade, avalizados por importância ou quantidade,

por consenso.

– podem servir para colmatar lacunas no direito, através da

heterointegração.

à Quanto a solução “!”

– tem que buscar ideários de justiça e equanimidade;

– não pode ser contra legem, ou seja, há que ser norteada pelos

parâmetros legais e pela normatividade.

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5. TÓPICA: MÉTODO DE INTERPRETAÇÃO OU TÉCNICA DE SOLUÇÃO

DE PROBLEMAS?

Ao se embrenhar nas doutrinas que trataram da temática, é possível

perceber uma certa flutuação de entendimentos em designar a tópica

como método de interpretação ou técnica de solução de problemas. Desta

forma, há quem ponha a tópica em um status de método de interpretação

como J. J. Canotilho [73] e Carlos Blanco de Morais [74], ou ainda método

da nova hermenêutica constitucional, como Paulo Bonavides [75] . Há

quem infira ser técnica de busca de premissas, como Robert Alexy [76],

técnica do pensamento, como Theodor Viehweg [77] e Jorge Miranda [78]

ou simplesmente técnica, como Maria Helena Diniz.[79] Já para Tercio

Sampaio Ferraz Jr. [80] é um estilo.

Método é todo conjunto sequencial de regras comuns a qualquer

investigação científica, que coloca a possibilidade da passagem da observação

de fatos à formulação de uma hipótese, que se sujeita à verificação

experimental e que pode tornar-se uma regra. Já técnica é uma habilidade

para usar processos e instrumentos com vista à obtenção de determinado

resultado [81]. É possível presumir que método é mais amplo que técnica,

aquele contém este. Desta maneira, comungo do entendimento que a tópica

esteja mais para técnica, assim como a ponderação, por exemplo, que

permite encontrar meios para resolver os problemas jurídicos, das lacunas

e das contradições das normas, através de um catalogo de topoi e de todos

os elementos anteriormente citados. Só se podendo chamar de método um

procedimento científico que implique critérios de comprovação, ou seja,

lógica e rigorosamente verificável que possa formar um nexo único de

fundamentos, ou seja, um sistema dedutivo, [82] o que desta forma não

poderia se encaixar a tópica por completo.

Mas importante frisar, que apesar dessa percepção, também

reconheço que a tópica, pode igualmente ser usada como paradigma para

o uso em diversos outros métodos da interpretação constitucional, através

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do pensar problemático e o dogma do problema (e é só a observar sob

outro ângulo): este pode ser utilizado como parâmetro para o interprete

buscar aclarar seus anseios quanto a leitura e interpretação das normas

constitucionais, como foi utilizado inclusive por diversos doutrinadores,

conforme se verá no tópico seguinte. O que apenas ressalta o prisma

multiuso em que se traveste a tópica, como esfera filosófica-jurídica dos

constitucionalistas em uma rematerial izada disciplina constitucional.

II. SEGUNDA PARTE: ASPECTO HERMENÊUTICO-CONSTITUCIONAL

6. TÓPICA DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

A teoria tópica sempre encontrou no direito constitucional certas

reticências e dificuldades diante de alguns fatores doutrinários e de uma

certa relativização que foi sobreposto ao texto normativo constitucional.

Porém ela não deixou sobremaneira de ditar sua importância aos cânones

interpretativos a matéria, já que retomou essa modalidade de leitura

normativa constitucional sobre uma nova faceta, não mais apenas através

dos métodos clássicos, como foi, por exemplo, o sistemático, com seu ideário

que sustentava a compreensão racionalista do pensamento e que sem

dúvidas é de longe insuficiente para trazer respostas as complexas dúvidas

hermenêutic as que a atual teoria do direito, em especial a constitucional,

coloca a quem se vai interpretar.

Tanto é assim que se pode observar nos modernos instrumentos

interpretativos influência em suas metódicas do pensar conjuntamente

ao problema. Para corroborar esta fala, inclinaram-se para tópica juristas

da envergadura de Josef Esser, Franz Wieacker, Chaim Perelman, Martin

Kriele, Peter Häberle, Friedrich Muller, Konrad Hesse e Horst Hemke. [83]

Prima facie, foram, por exemplo o caso dos métodos concretizadores,

hermenêutico-concretizador de Konrad Hesse e jurídico-estruturante de

Friedrich Muller.

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Hesse nos faz inferir que a Constituição de uma sociedade não

possui um sistema findo e uniforme, lógico-axiomático ou com uma escala

de valores. Dessa maneira, a interpretação de suas normas não pode ser

equiparada a algo determinado, ela converte-se em problema quando uma

questão jurídico-constitucional deva ser respondida, tanto é assim que esse

exame necessita um procedimento de concretização que corresponda a este

modelo: tendo a norma como guia e limitadora, devem ser encontrados e

atestados ponto de vistas consensuais (topoi), com premissas apropriadas

que possibilitem deduções ou que no mínimo contribuam na busca de

soluções adequadas. Assim, o interprete deve se utilizar tais ponto de

vistas para a concretização [84] que estejam inteiramente interligados ao

problema. [85]

Nessa senda, Hesse [86] também integra a concepção de Friedrich

Muller acerca da norma constitucional enquanto programa normativo

e âmbito normativo. O autor de forma pariforme toma como parâmetro

a tópica para conceber suas ideias, com alguns ajustes até conceber aos

resultados da metodologia ao qual propõe. A primeira etapa da concretização

de Muller corresponde a busca de se interpretar o texto da norma em seu

sentido tradicional, que pode s er feito pelos métodos strictiore sensu,

como a interpretação gramatical, lógica, histórica, genética, sistemática e

teleológica, ou seja os métodos clássicos, bem como por princípios isolados

da interpretação da constituição, em uma formologia mais moderna,

tais como a proporcionalidade, concordância prática ou interpretação

conforme.

O resultado dessa primeira etapa ele aduz de programa da norma

(Normprogramm) e com ela elabora a parte primeira que se integra a norma

jurídica. [87] Já a segunda fase é o fator que fundamenta a normatividade

e de onde se retira o conteúdo fático da esfera regulativa da prescrição, ou

seja, abrange os passos da concretização por meio dos quais são usufruídos

os pontos de vista com teores materiais, que resultam da an&aa cute;lise

do âmbito da norma (Normbereich), área da norma e dos elementos do

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conjunto de fatos principais como os relevantes por via de detalhamentos

recíprocos. [88] Aqui é facilmente cognoscível a influência tópica, pois o

âmbito normativo, em seu sentido lato, é exatamente o problema a ser

resolvido, o consenso jurídico do operador sob a questão analisada que vão

ser trazidas para serem interpretadas sob o bojo constitucional.

Pode-se ver que com essa moderna dinâmica, a tópica assumiu

hoje grande importância para a interpretação jurídica, em especial

a constitucional e com ela métodos que ultrapassaram a fronteira do

positivismo mais cristalino. Não se trata de substituir o pensamento tópico-

problemático pelas abstrações idealizadas por outros meios operantes. Mas

apenas quando estas falharem ou não trazerem as respostas ideais ao qual

o interprete busca: se deve conciliar a tópica com os já existentes e integra-

la, em uma problematização do sistema jurídico, para que se rompa com a

pretensão conceitualista de montar um sistema fechado, de maneira a não

ficar apenas estacionado no dedutivismo lógico que os clássicos apresentam

[89] e nem tão só no isolamento do todo que pode levar a tópica concebida

de forma extrema.

Nessa atual teoria jurídica da interpretação, em dissemelhança com

a doutrina predominante do século passado, a flexibilidade interpretativa

das leis positivadas em oposição ao princípio da interpretação feita de forma

literal, pode ser visto, inclusive, como um topos da hermenêutica hodierna.

No caso do direito, o catalogo de topoi, exsurge, na própria lei, como por

exemplo no ordenamento jurídico brasileiro: o artigo quinto da Lei de

Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei 12.376/2010), a lei das leis,

ao aduzir que na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela

se dirige e às exigências do bem c omum. Tanto o que se pode caracterizar

como fins sociais ou bem comum são noções tópicas, que neste caso, devem

orientar o discurso de aplicação da própria norma, [90] o que só demonstra

a valia desse pensar problemático nessa renovada interpretação legal.

E como mola propulsora certeira nessa nova hermenêutica, foi

fácil notar, assim, que os métodos costumeiros, apesar de sua importância,

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tiveram certa dificuldade em isoladamente acondicionar o que a

sistemática de valor das new Constitutions vieram a trazer pelas regras

interpretativas correspondentes a concepções mais dinâmicas do método

de averiguação dessa nova realidade constitucional [91], como por exemplo

uma nova interpretaç&atild e;o interligada a uma maximização de direitos

fundamentais, sob a égide da dignidade humana e bem estar social.

Talvez a importância da matéria aqui arguida esteja justamente

em encontrar o equilíbrio destas questões, pois estabelece, em caso de

necessidade, conexões por meio de compreensões que sejam aceitáveis e

adequadas, exigidas pelo que se chama estado efetivo de direito, já que o

pensamento interpretativo pode mover-se inserido no estilo tópico. O papel

da interpretação e, por isto, da tópica, torna-se ainda mais penetrante como

provocador da coincidentia oppositorum e harmonizador de diferentes

sistemas. [92]

6.1. TÓPICA DE IDEIA DE SISTEMA ABERTO

Partindo desse pressuposto, quando se fala em Constituição, tem-se

logo em mente que esta é um sistema aberto de regras e princípios, visto

que se traduz em um sistema dinâmico de normas e com uma estrutura

dialógica, ou seja, encontra-se apta através de sua normatividade em

captar as constantes mudanças da realidade, estando abertas às concepções

variáveis da justiça e verdade. [93] Esse entendimento nos faz refletir a

Constitu ição como uma incessante procura, pois o texto Constitucional

não esta nunca finalizado, de maneira que o trato normativo positivado e a

realidade devem perseguir uma completude de modo a que se assevere uma

supremacia e força do que a Carta Política emane. A tópica vem a participar

dessa abertura, como uma espécie de transmissora entre a prática, através

dos problemas, e a norma, de forma que se obtenha a resolução destes, não

apenas de uma lógica tradicional de sistema mas sim pelo trato entre esse

mesmo sistema e o case a ser regulado.

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Desta forma, o pensamento problemático tem como seu caractere

fundamental um posto que reclama sempre an eternal dialectical research

an open system, em um papel precípuo de ampliar o acervo conceitual do

sistema jurídico em uma constante reformulação de conteúdos normativos

deste, que tem no lidar dos problemas um importante fator que acresce a

sua normatividade. A tópica não vai ser entendida se não por em voga a

clara ideia de inclusão em uma ordem que está sempre por ser determinada,

dai se segue que este modo de pensar só vem a contar com panoramas

fragmentários, [94] onde se pode confiar a ela um patamar de importância

louvável na ordem constitucional, exatamente quando essas mesmas

normas que a compõe são de conteúdo aberto e com um leque grande de

interpretações.

É fácil notar que o pensar tópico vem a fagocitar uma concepção de

sistema jurídico que seja imutável, já que pressupõe uma concepção mais

ágil do direito, doravante um sistema elástico que possa oferecer soluções

satisfatórias que se adaptem a sistemática jurídica, tornando-o maleável

e adaptável as vicissitudes da vida. A tópica transforma o pensamento

jurídico, necessariamente aberto, impossível de inserir em uma axiomática

reclusa, revertendo este em um pensamento altamente inventivo. [95]

Além de dar a interpretação constitucional um azo democrático,

pois passa a se cercar de diversos operadores o processo hermenêutico,

em seu sentido lato, como um processo aberto e público como realidade

constituída e altamente publicitada, não sendo possível estabelecer-se

um elemento fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição,

no sentido concretista de interpretação da Constituição aberta de Peter

Häberle, método inclusive que mais foi influenciado pela tópica nos dias

atuais. [96]

Sem obliterar, ainda, que com esta consideração, possa-se

erroneamente pensar que se vai desconsiderar o teor normativo do texto.

A norma, no entendimento ao qual comungamos nesse estudo, na verdade,

é o limite e vetor da tópica, como prelecionado por Hesse. A tópica atua em

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função e em respeito a ela, mas não por subalternidade, caminham lado a

lado de mãos dadas.

Assim, o sistema aberto e a Constituição são campos ideais de

intervenção e aplicação dessa forma de pensar que podem inclusive virem

a ser preenchidos por esta em uma compatibilidade normalizadora, de

modo a possibilitar que seja extraído desta conjugação uma nova teoria

hermenêutica, dinâmica e totalmente pluralista, possível de ser utilizada

pelos mais diversos operadores do direito. Raramente uma Constituição

preenche aquela mera função de ordem e unidade, que faz permissível o

sistema se revelar compossível com o dedutivismo metodológico: sendo a

Constituição aberta, a interpretação também o é. [97]

6.2. ALGUMAS CRÍTICAS AO PENSAMENTO TÓPICO

Mas não se pode aqui expor e mostrar apenas o lado funcional e

ululante da tópica na doutrina esposada. Também não se pode negar que

a quem entenda que esta contém o risco de conduzir a uma pluralidade de

sentidos ou uma casuística pouco fecunda,[98] pois a interpretação pode ser

uma atividade normativamente vinculada que se constitui a constitutivo

scripta um limite ineliminável onde não se aceita o sacrifício em se colo car

primeiro a norma ao invés do problema. [99]

Ou quem vislumbre algum risco do uso da tópica e de outros métodos

em demasia a escolha do interprete, (porém mais por quem o usa, do que

precisamente pela técnica em si mesma), pois os defensores desta forma

de pensar a vista da abertura da normatividade Constitucional, podem

se fazer de uma interpretação particular e diferente da lei, focados em

uma pluralidade fora do sistema de metódicas alternativas postas à essa

faculdade; o que traz uma possibilidade de dissolução da normatividade

tão fundamental ao qual é inerente a Constituição, conduzindo a um

verdadeiro panorama desolador, dissolução que aliás muitas das vezes

nutrem. [100]

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E ainda mais furtivamente, alguns autores, além de ressalvas como

as agora mencionadas, dedicaram em suas obras críticas mais incisivas à

tópica.

6.2.1. OBJEÇÃO EM ROBERT ALEXY

Foi o caso de Robert Alexy, que em sua obra Teoria da Argumentação

Jurídica cita a tópica como uma técnica que busca premissas, onde advoga

a consideração do consenso dos pontos de vista possíveis no qual se

relacionem com a questão em pauta. Sempre que uma argumentação se

originar de algum topoi como ponto de partida, as proposições passam a

ser plausíveis, razoáveis e consensuais. Porém tais proposições, para ele,

são generalizadas demais e não estão a vistas de verdade completa, visto

que não diferencia suficientemente entre as varias premissas necessárias

para o processo de justificação jurídica da s decisões.

Desse ponto de partida, segundo o autor, a tópica é incapaz de

fazer justiça ao caráter autoritário da argumentação jurídica no contexto

da dogmática jurídica institucionalmente perseguida e no contexto de

precedentes, com um núcleo problemático fundamental de ter uma

orientação exclusiva de considerar a estrutura superficial de argumentos

padronizados. [101]

Alexy considera que a teoria tópica no uso das premissas na

justificação de decisões individuais também é adversa, pois exige dela se

considerar todos os aspectos possíveis, mas sem trazer sobre a questão qual

aspecto é o mais decisivo ou fundamental, nem mesmo infere o que se deve

contar como um ponto de vista em primeiro lugar. Conclui assim, que a

tópica subestima a importância da lei, da dogmática e dos precedentes, da

análise insuficiente da estrutura profunda dos argumentos e num conceito

pouco preciso da discussão.[102]

De se notar, pois, que o autor tenta buscar da tópica fundamentos

que a dispam de qualquer ajuda a sua teoria da argumentação jurídica, que

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nada mais é que uma série de regramentos que definem o procedimento

que uma argumentação deve se guiar para ser considerada racional. Tal

fato se descamba diante de uma possível imprecisão, superficialidade e

falta de sistematicidade do pensamento tópico-problemático per si.

6.2.2. OBJEÇÃO EM CLAUS-WILHELM CANARIS

Já Claus-Wilhelm Canaris urdiu sua crítica na doutrina Pensamento

Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito e como dispõe o

próprio nome da obra, esta vem para se opor claramente ao pensamento

tópico.

O autor afirma que sistema jurídico e tópica não são harmonizáveis,

premissa fundamental da sua obra, já que esta não poderia sequer aspirar

à natureza científica, pois é um processo que apenas envolve indícios,

evita compromissos e se apoia na legitimação de suas premissas apenas na

aceitação do interlocutor. [103]

Sistema, para o doutrinador, deve-se desenvolver a partir da função

do todo sistemático, com características fulcrais de ordem e unidade,

onde encontram sua correspondência jurídica nas ideias de adequação

valorativa e unidade interior do Direito. Dessa maneira, é absolutamente

contraditório existir um sistema tópico, pois o antagonismo persiste na não

possibilidade de formação de um processo voltado apenas ao exame do

problema singular, e por isso, todos os conceitos de sistema que não sejam

capazes de exprimir a dicotomia da adequação valorativa e a unidade

interior da ordem jurídica são inutilizáveis, ou pelo menos, de utilização

limitada. < span style=”vertical-align: super;”> [104]

Esse mesmo sistema jurídico é aberto, ou seja, advém da

incompletude do conhecimento científico, da mutabilidade dos valores

jurídicos fundamentais, sendo da essência do Direito ser um fenômeno

situado no processo da história e, por isso, mutável. Desta senda, tal

abertura não pressupõe o raciocínio tópico e este pensamento não traz

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qualquer inovação quando vincula conceitos e proposições jurídicas a

problemas, já que a analise teleológica dos conceitos e proposições jurídicas

não representam uma atividade intelectiva específica da tópica, mas sim

do pensamento sistemático. [105]

Canaris parte de uma crítica que o pensar tópico, naquilo que esta

umbilicalmente ligado a retórica, consequentemente advém da dialética,

e todas estão distantes da verdade, pois ambas seriam uma espécie de

manipulação de linguagem, voltadas apenas para a consecução de certos

fins.

A utilidade da tópica estaria avalizada apenas ao legislador e a

ciência política do que aos operadores do direito, tal ideia baseia-se no fato

que os exemplos constantes no Tópicos de Aristóteles são em boa parte

ética e miram apenas no campo político. Os consensos, campo fundamental

do pensar problemático, se formam socialmente e assim base da criação de

tópicos no ato legislativo (concepção democrática da arte de fazer leis), arte

esta que não faz parte da ciência do direito, o que apenas corroboraria a

tese Canariana que a tópica não é aplicável ao campo jurídico. [106]

O papel da tópica no Direito seria apenas aos casos em que a

norma positiva mostra-se absolutamente insuficiente para a resolução de

determinados problemas: sempre que faltem valorações jurídico-positivas

suficientes concretizadoras, demandando uma necessária concretização

normativa pelo juiz, com base nos valores e instituições jurídicas, culturais

e sociais dominantes, ou seja, em casos de lacunas de leis e das cláusulas

gerais, que originalmente pedem uma complementação valorativa que

demandam uma determinação do aplicador ao caso concreto. Assim,

diante do pensamento sistemático, relega a tópica uma atuação meramente

complementadora, residu al e subsidiária a cumprir. [107]

6.2.3. OBJEÇÃO EM MANUEL ATIENZA

Manuel Atienza Rodriguez, professor catedrático da Universidade

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de Alicante, em sua doutrina As razões do Direito – Teoria da Argumentação

Jurídica, faz uma compilação das teorias da argumentação jurídica no direito

e as vertentes que a influenciaram, como a tópica de Viehweg, nova retórica

de Perelman, teoria da argumentação de Toulmin, teoria integradora da

argumentação de Neil MacCormick e a argumentação jurídica de Robert

Alexy.

Para o autor, incorporando muitas vezes também o professor

Garcia Amado, a tópica na obra de Viehweg foi proposta em termos não

muito claros, equívocos e ingênuos, em virtude do seu caráter esquemático

e impreciso. A noção de problema seria excessivamente vaga, assim como

as de lógica ou sistema, pois Viehweg exageraria na contraposição entre

pensamento tópico e sistemático (ou lógico-dedutivo). A noção de sistema

axiomático ou de dedução seria menos eloquente que as utilizadas pelos

lógicos e estes não parecem ter maior inconveniente em reconhecer a

importância da tópica no raciocínio.

O conceito de topos, segundo o autor, foi historicamente equívoca

inclusive os que englobam nos escritos de filósofos clássicos como

Aristóteles e Cícero, sem terem um sentido certo ou profundo, o que requer

aos topoi várias interpretações ou significados, na qual a tópica não da um

real contributo que faça a jurisprudência (ciência do direito) avançar, a

tornando trivial e muitas vezes irracional. [108]

Atienza, assim como Alexy, afirma que a tópica não permite ver o

papel importante que a lei, a dogmática e o precedente desempenham no

raciocínio jurídico. Ela fica na estrutura superficial dos argumentos padrões

e não analisa sua estrutura profunda, permanecendo num nível grande de

generalidade que esta distante do nível de aplicação como tal no direito.

E termina inferindo que a tópica se limita a sugerir um inventário

de tópicos ou de premissas utilizáveis na argumentação, mas não fornece

critério para estabelecer uma hierarquia entre eles, no qual definitivamente

não proporciona uma resposta, nem sequer o começo de uma, para a questão

central da metodologia jurídica, que não é outra senão a da racionalidade

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da decisão jurídica. [109]

6.3. DESCONSTRUÍNDO CRÍTICAS (SUPERANDO DESAFIOS)

É de se notar que os pensadores que fizeram tais objeções à matéria,

as fizeram em um contexto jurídico envolto num pensamento mais

sistemático e cerrado, afeitos a fórmulas, que mais parecem pender para

a matemática do que para o direito, o que contraria o pensamento tópico.

Parto inicialmente trazendo a desconstrução no que tange à

argumentação e discussão jurídicas. Alexy por exemplo, crítica o uso de

precedentes pela tópica, mas na sua teoria também se utiliza delas para a

busca de uma ideal argumentação, sem lembrar que a tópica possui como

delimitação a lei, e que os argumentos utilizados são postos por quem os

utiliza, diante de um catálogo, se este argumento foi superficial ou fraco,

não foi a tópica que assim o escolheu, mas quem se utilizou dele.

Além do mais, conforme Ferraz Jr., é alva a influição dos topoi, que

são formulas de procura, na orientação da própria argumentação. Esses

catálogos não são dados ou fenômenos, mas sim, construções ou operações

estruturantes, perceptíveis de forma bastante clara no decurso da discussão,

pois possui uma função estimativa em termos da relação de convergência

de comportamentos sintomáticos, marcadamente dubitativa, de onde o

caráter de dubium da questão trata daquelas tomadas a sério, responsáveis,

de maneira pela qual sua alta reflexividade pode nos levar sempre a aporias.

A presen&cce dil;a do topoi, no discurso, dá à estrutura uma flexibilidade

e abertura característica, pois sua função é antes de ajudar a construir

um quadro problemático, mais do que resolver problema. Os topoi na

argumentação jurídica podem ser exprimidos como a imparcialidade

judicial, a noção do interesse, boa-fé, presunção de inocência, etc. [110]

E ainda sem esquecer que a teoria tópica de Viehweg, na década de

50, juntamente com Chain Perelman e a nova retórica e a lógica informal

de Toulmin, foram os percussores da teoria da argumentação jurídica,

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que tem em comum a rejeição da lógica formal dedutiva como suporte e

que serve de base para esta teoria [111], a quem Alexy dedicou uma obra,

porém este nem sequer chega a reconhecer esse fato.

Já Canaris por muitas vezes se limita excessivamente ao método

sistemático, o que torna a premissa de sua obra em geral discutível sob o

enfoque de um paradigma tópico-problemática (e pelo qual é o fundamento

teórico deste trabalho). Não é possível ter apoio que existe apenas um modelo

único de sistematicidade, pois os sistemas são muitos: lineares/circulares,

materiais/formais, estáticos/dinâmicos, etc. Dessa maneira, antes de inferir

que a tópica não se adequa a um pensar sistemático seria importante

delimitar em qual sistema está se harmonizando: se for ao aberto (ao qual

possui espaços de elasticidade das normas, que serão concretizados pelo

inter prete e operador), é de se concluir que este seria um campo residual

claramente do pensar tópico, como se viu anteriormente, o que já contradiz

sua ideia de exclusividade.

Consequentemente, o que se retira da leitura de Canaris é a falta de

um referencial histórico sobre o direito ocidental, já que o sistema jurídico

exposto de forma equidistante de seu historicismo leva a teratológica

conclusão que a tópica não se harmoniza com o ideário de sistema, pois

antes de se englobarem de forma sistemática, esses mesmos institutos

surgiram para oferecer resoluções a problemas (como no direito romano,

por exemplo) objetivo primordial da tópica.

E não é só isso, relativizar essa questão com a fala de que a tópica

não possui os caracteres de unidade e ordem interior, pode de certa maneira

omitir a questão do sistema da common law. Seria aferível afirmar que não

existe um sistema (ordem e unidade) no direito americano ou inglês, por

ser sua normatividade exposta através apenas da solução de litígios? É fácil

perceber que não. [112]

Apesar de Canaris estruturar todo seu magistério com base na

impossibilidade de construção de um sistema tópico no direito, ele mesmo

reconhece a importância dos problemas para o âmbito jurídico. Na realidade

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a crítica Canariana se funda basicamente em uma interpretação do direto

conduzida por parâmetros apenas da tópica, pelo qual seria a exclusiva

forma de manifestação da forma de pensar problemática no direito. [113]

E ssa visão pode nos conduzir a uma limitação clara de ideias, que deixa de

levar, mais uma vez, em conta as motivações históricas para o nascimento

de uma sistematicidade sobre o direito e também sobre das suas origens. O

enfoque problemático de Canaris se volta exclusivamente em incumbência

ao sistema, de forma acessória, como se as próprias leis e normatividade

positivadas não fossem uma evolução social e cultural das instituições.

[114]

Já Chaim Perelman em sua obra já rebate aquele velho argumento

que a retórica, está apenas ligada a dialética e que ambas são uma espécie

de manipulação da linguagem, voltados ao alcance apenas de alguns fins. A

retórica é o estudo de técnicas discursivas que visa a provocar ou ampliar

a adesão das mentes às teses apresentadas a seu assentimento. A nova

retórica, proposta por ele, é muita mais que uma forma de influenciar a

determinado auditório, englobara mais, todo o campo da argumentação,

complementar da demonstração, da prova pela inferência estudada pela

lógica formal, que constitui um valioso instrumento para a formaç&atilde

;o de consensos sociais acerca de causas postas em jogo. [115] O direito

não opera com verdades absolutas, o tempo altera a concepção social e o

entendimento de questionamentos, é o que acontece, por exemplo, com a

evolução jurisprudencial. Desta maneira, inferir que a tópica age ao lado

apenas de ideias filosóficas que falseiam a verdade, é negar esta como parte

do direito e ciência jurídica como mutável.

Quando Canaris afirma que as premissas são determinadas para os

juristas através do direito objetivo, em especial através da lei e que não é

susceptível de uma legitimação via do parceiro da conversa, [116] vemos

uma visão reducionista das coisas e põe o direito como produto feito saído

de uma esteira de produção maquinizada, onde se ignoram os consensos

sociais que agem em determinadas questões e o papel de complement ação

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normativa que os Tribunais exercem através de seus precedentes. Aqui é

fácil perceber uma certa influencia de Kelsen em Canaris, pois restringe

o direito apenas a lei positiva, fazendo uma certa outorga aos valores e

fundamentos históricos, por meio de uma ideia de abertura. [117]

A proposta tópica jamais tende a negar que exista um pensamento

sistemático de direito positivo, mas pretende reformular esse paradigma de

uma ciência do direito, tão interessante e dinâmica, que o tenha como única

referência, pois o próprio Viehweg parece deixar de modo implícito que

a tópica não exclui a sistematização, mas sim que há uma compatilização

entre ambos.

No que toca a restrição de Canaris do uso da tópica apenas ao

legislador e criação de atos normativos com base no pensamento ético

Aristotélico, demonstra apenas uma visão parcial da influencia tópica no

pensamento jurídico: e o influxo no campo prático de Cícero? Onde fica a

proposta comparativa entre a tópica e o pensamento racionalista de Descartes

em Vico? Mais uma em vez é possível notar o ignorar do percurso histórico

que tomou a tópica e sua influência no pensamento de outros autores em

variadas épocas da evolução jurídica. Quando escreve que o direito é uma

ciência hermenêutica e não de ação, com base na compreensão exata dos

símbolos e não em uma atuação correta [118], Canaris põe o juiz em um

papel de mero complementador, ou seja, sua importância se reduz apenas

quando este for necessário ou quando a lei assim tiver falhas ou lacunas.

Falar nesses pontos integrativos como questões meramente formais, nega

que estes derivam da necessidade de transportar ao direito objetivo um

significado idiossincrático, à medida proporcional de cada situação e não

uma mera atuação de encaixar.

Se formos pensar de forma abrangente, os outros métodos, técnicas

ou pensamentos de interpretação, também nos conduzem a falhas, algumas

incertezas, problemáticas e embates, mas todos eles, o que se inclui aqui o

pensamento tópico, possuem sua importância para o operador do direito

ao se utilizarem destes na interpretação das normas constitucionais. A

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tópica é um verdadeiro tronco de árvore que cresce e põe frutos em

diversas direções. Superou um dos seus desafios frente a comunidade

jurídica: quando conseguiu unir, mediante um pensamento filosófico

dialético mais pontual, o direito posto pelo legislador com a realidade da

sociedade, criando pelas estradas ret&oacut e;ricas, argumentativas e cheia

de consensos, guiados pela lei, uma concepção de direito menos fechada,

mais próxima a tentar solucionar problemas, a partir de um catálogo, do

que as direções antecedentes do sociologismo jurídico clássico. [119]

Ela trouxe novamente para o baluarte dos valores sociais o direito e

a realidade, através da resolução de problemas nos casos concretos ou ainda

quando as vias normais de interpretação não satisfazerem por completo

a solução de determinados problemas. Ressurgindo num momento em

que o positivismo já se mostrava incompleto para solucionar de maneira

equânime as lides e as iniquidades tão óbvias. Percebemos claramente uma

atualização de um pré-filosófico estilo de pensar problemático, para que a

prática jurídica, até então excessivamente voltada a lei, pudesse responder

melhor aos anseios de justiça.

A tópica produz uma reorientação básica da doutrina [120] e

ocasiona mais benefícios ao ordenamento jurídico que danos que não

possam ser sanados. Posso afirmar, que o pensamento tópico seduz a quem

se propõe o pesquisar; e ainda mais que grandes nomes do direito, não

estavam errados ao utilizar a tópic a ou apenas suas ideias como forma

de interpretar as normas constitucionais. A tópica é totalmente usual as

realidades sociais e ao direito constitucional, mesmo que muitas vezes com

ressalvas.

Como bem aduz Atienza, apesar das críticas, a obra tópica contém

algo importante, que é a necessidade de se pensar também onde não se

cabem fundamentações conclusivas e estanques. Essa dimensão adquiriu,

nestes últimos anos, grande importância prática, em virtude das modernas

investigações sobre sistemas jurídicos hábeis, ou seja, em face da criação de

programas que reproduzem as maneiras características de raciocinar um

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profissional do Direito. Um sistema jurídico hábil, possui precipuamente

uma base de dados e um motor de inferência, e ambos esses elementos

devem ser dotados de características para que se acomodem num correto

funcioname nto do raciocínio jurídico e comum, que em um aspecto amplo

poderiam serem qualificadas de tópicas. A base de dados, efetivamente,

deve ser flexível, isto é, o sistema hábil deve possuir a capacidade de

modificar sua base de conhecimento, não só com regras de inferência que

são de conhecimento público, quer dizer, aquelas meramente codificadas

textualmente, mas também com regras de experiência que constituem

a alcunhada heurística jurídica, o que apenas denota mais uma vez a

importância da flexibilidade tópica. Essa forma de pensar o problema pode

conter sugestões e estímulos de inegável valor para quem deseja começa a

estudar e a praticar o raciocínio jurídico. [121]

O que só traz a importância ainda de lembrar o importante papel

do interprete em todo este contexto, superando mais um desafio da tópica

em particular. O agente não deve fazer uma má utilização desta, não se

deve deixar cair em certas armadilhas, como o casuísmo e a dissolução da

normatividade. Este há de ser sábio: sabendo conciliar a tópica a outros

métodos ou técnicas e utilizar esta com parcimônia e sapiência, não

transformando essa interessante técnica em uma ferramenta sem limites

e de aplicação a seu bel prazer, construindo e definindo a tópica baseada

na prática jurídica, a partir de suas realidades e possibilidades, sempre

priorizando a fundamentalidade e hierarquia do primado da norma

Constitucional.

7. TÓPICA E EQUIDADE

A equidade sempre foi valorada no direito como um arquétipo de

justeza. Semelhante a tópica, ela esta imanentemente ligada a concepções

jurídico-filosóficas, ou seja, não possui uma definição unívoca, imbricando-

se a diversos paradigmas, muita das vezes relacionados a quem se propôs

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dar a ela uma concepção, e sendo assim, a influiu com teorias filosóficas

pelo qual tal convicção teórica de cada pensador fez parte. Mas essa não é

a primeira similitude, elas são várias.

Para os romanos, a equidade se coadunava ao direito natural e

correspondia a ideia de justiça, de forma que o suprimento desta, contida

na lei, era feito pela equidade.[122] Na Grécia, Aristóteles , falava em

equidade como uma disposição de caráter do homem equitativo, uma

espécie de justiça e não uma diferente disposição desse mesmo caráter: o

que é equitativo é justo, superior mesmo em regra ao justo, não ao justo em

si, mas aquele, em razão da generalidade, que comporta o erro. A equidade

consiste em corrigir a lei, na medida em que ela se mostra insuficiente.

[123] São Tomas de Aquino, une a equidade a razão de justiça e à utilidade

comum, estabelecendo uma ponte entre a razão e as necessidades da vida

social. Era é a norma suprema do direito canônico. [124]

Na Idade Média, pelos idos do século XIV, no sistema da common

law, mais precisamente na Inglaterra, havia um sistema paralelo, ainda que

subsidiário ao principal, chamado de Equity, pelo qual o Lord Chancellor

concederia, ad misericordiam, equitable remedies não assimiláveis à ratio

decidendi dos precedentes judiciais. [125] No sistema jurídico brasileiro,

o uso da equidade só é possível quando autorizado por l ei [126], podendo

este ser visto também na Lei de Arbitragem. [127] De forma semelhante é

no sistema português.[128]

As funções que se ligam a equidade são várias. Perpassando desde

a influência na elaboração legislativa até na interpretação das normas,

podendo neste âmbito, significar o predomínio da finalidade legal sobre

sua letra, aplicada na senda de ajudar a inteligência do texto normativo, em

conformidade com os dados fáticos-sociais que envolveram e o escopo que

tiver; ou ainda, a preferência, entre variadas interpretações possíveis de uma

norma, pela mais digna e humana. Nessa função interpretativa a equidade

aparece no processo histórico-evolutivo, que preconiza a adequação legal

as novas circunstâncias sociais, e do teleológico, que reque r a valoração da

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lei, a fim de que o órgão judicial possa seguir as idiossincrasias da realidade

em cada caso concreto. O sujeito cognoscente (magistrado) aqui, terá que

analisar a aplicação da norma, que, aparentemente, de guarida a esse caso

e que produzirá resultados justos, pelo qual se inspirou sua finalidade. O

emprego da equidade não pode ser resolvido por procedimentos de lógica-

dedutiva, pois não se trata de retirar aferições de normas jurídicas postas.

Pela equidade leva-se em conta os resultados práticos que a aplicação da

lei produziria em certos cases. Se tal resultado concorda com as valorações

inspiradoras da norma em que se baliza, tal preceito deverá ser aplicado;

agora, se ao contrário, esta norma vier a contradizer o que demanda as

valorações, pelo qual se molda a ordem jurídica, cons equentemente essa

norma não pode ser aplicada ao caso concreto. [129]

Desta forma, o que se pode perceber, é que a equidade possui

ideias de natureza ética-social, com a finalidade de propalar equanimente

um padrão da justiça do caso concreto. Essa determinação do justo, tem

se assemelhado ao que se cunhou de aporia fundamental do direito [130],

ou seja, um raciocínio equilibrado da busca de justiça; e a tópica vem

exatamente poder participar na solução desta busca.

Prima facie, porque como se sabe, a consecução primordial da tópica

é a solução do problema. E esta solução há de se pautar impreterivelmente

em um ideário de justiça e equanimidade, dessa maneira, ao utilizar a

técnica da busca pelo problema, passando desde o catálogo de topoi até a

resposta da contenda, o operador deve permitir uma aproximação entre

cada caso que vai ser resolvido e tal aporia do direito, a busca da justiça: a

solução do problema pela tópica há de ser minimamente justa. Remetendo

desde sempre aquela ideia de flexibilidade, tal qual é o trabalho do operador

que usa a equidade como parâmetro, em ajustar a l ei ao caso na busca de

uma resposta mais estável, o agente tópico não deve se redundar em um

atividade cerrada, buscando aquela versatilidade a que ambos os meios

possuem.

A finalidade precípua do direito é a harmonia social procurando

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achar o modo mais profícuo para a solução de conflitos e reestabelecer

tal paz no seio da societas, devendo esse objetivo ser cumprido em

obediência a critérios de justiça, trabalhando o meio jurídico com ideias de

coerência, segurança, especialidade e etc. Por isso, se não fosse exatamente

o empunhamento da balança (e seu equilíbrio), em casos concretos, a

ciência do direito não teria sua necessidade, pois tal harmonia poderia ser

alcançada apenas pela manifestação da autoridade.[131]

Dai a tópica rememora, mais uma vez, que apenas o apego a

sistematicidade do direito (igualmente como citado outrora, em que o uso

da equidade não pode ser solucionado apenas por procedimentos de lógica-

dedutiva), como unidade única, se faz colocar em segundo plano a própria

causa do sistema jurídico, que é exatamente a realização da justiça.

Desta maneira, o pensamento problemático, empreende um contato

de primeiro grau entre os conceitos jurídicos e os seus fundamentos

históricos e valorativos, em busca de uma solução mais justa e equânime

ao problema. Por exemplo, conceitos muito utilizados no direito com

ululantes conteúdos axiológicos, como declaração de vontade, posse justa e

etc., significam uma valoração de fenômenos sociais, que à luz da definição

de justiça, fazem parte integrante do sistema, ou seja, aquilo que a ciência

do direito tratava como mero instrumental de técnica jurídica, se transpõe

exatamente com a busca da equidade, ou a aporia fundamental, a qual é

revelada n o momento da solução de casos concretos. [132]

Segundo, porque com a orientação desses casos concretos, a tópica

vem se ordenar na equidade, ou seja, na tendência da justiça. Ela se transpõe

no processo mais adequado para um problema singular, construído o

mais estritamente possível ou uma argumentação de equidade, pelo qual,

nenhum ponto de vista discutível, ou que seja pelo menos aceitável, se pode

excluir perfunctoriamente como inadmissível, apoiado em uma tendência

um pouco mais generalizadora da justiça. [133]

Essa ligação entre tópica e equidade é de monta salutar, ainda para

mostrar que a tentativa do positivismo clássico em minimizar a importância

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da equidade, no qual a letra fria da lei teria um papel de garantir a

abrangência de todos os fatos que fossem operados por aquela norma,

não deu certo. A lei pura ainda se mostra num mecanismo não tão sempre

completo no que concerne as lacunas da lei, vindo a equidade ser fulcral

nesse papel como elemento de integração, seja quando o legislador deixa

propositadamente omisso (as lacunas voluntárias) ou quando escapam à

previsão do elaborador da norma. A equidade é o recurso intuitivo das

exigências da justiça, em caso de uma omiss&at ilde;o da lei, buscando

efeitos presumíveis das soluções encontradas para aquela lide de interesses

não normado. [134]

Nesse aspecto, por fim, conclui-se, que o papel da equidade,

certas vezes, pode remontar igualitariamente exatamente ao da tópica,

justificando esse raciocínio problemático, ambos ajustando a solução pro

caso, na factualidade do caso concreto.

8. TÓPICA E LACUANS NO DIREITO

A lei, como se pode perceber, apesar de tudo, é importante por

regular as situações da vida social, ainda mais por ter um papel precípuo de

pacificação através do Direito. Porém, haverá sempre nela alguma omissão

ou impotência em regular novas hipóteses que surjam, no qual ainda não

foram abarcadas por atos normativos, em virtude das constantes mutações

sociais que possam ocorrer em uma sociedade e que nem sempre permitem

ao operador da norma se antecipar a estas novíssimas situações a emergir.

Dessa incompletude insatisfatória no seio de um todo, e aplicado

ao Direito, precisamente no seio jurídico, pode-se afirmar que surge uma

lacuna, [135] ou seja, numa situação pela qual a lei ou o sistema regramental

jurídico não contempla determinada situação jurídica concreta, de forma

que seja necessário integrar tal falha por algum meio existente. Uma vez

admitida a existência da lacunas no direito, dois passos sucessivos são

importantes após essa primeira percepção: a sua identificação (constatação)

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e depois o seu preenchimento, praticamente um exercício idêntico ao de

interpretar e integrar, ou seja, de aplicação do direito. [136]

Interessante observar que uma simples falta de norma, não é o

que vai determinar de forma absoluta a existência de uma lacuna, mas

apenas aquela que interesse ao plano do Direito. Para fazer essa análise,

a doutrina coloca essa problemática dentro da atividade interpretativa: a

constatação de uma lacuna resulta de um juízo apreciativo; mas o ponto

de torque desse conjunto não é a subjetividade de analise que o sujeito

cognoscente tem da norma de direito, mas sim pelo processo metodológico

por ele empregado. [137] Assim, o interprete tem que descobrir, mediante

sua apreciação valorativa, se tal conduta que não foi contemplada pelo

ordenamento, realmente, é de alcance do Direito, e assim avaliza, se há

necessidade do segundo passo, o da integração.

Depois dessa detecção, o agente deve colmatar ou preencher as

lacunas, através de diversos meios operantes. Essa fase de preenchimento

assume agora um aspecto pragmático, visto que a questão é de legitimidade,

determinação e natureza metodológica do emprego dos instrumentos

integradores pelo órgão judicante. [138] Sabendo, pois, da necessidade

desse preenchimento das lacunas, por tais meios integrativos, o próprio

legislador prevê na Lei meios que podem fazer esse papel, cito por exemplo

o caso da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, [139] ou dos

Códigos Civis de Portugal, [140] Argentina, [141] Itália, [142] Venezuela,

[143] dentre diversos outros.

Dessa maneira, a grande maioria das legislações identificam

expressamente a existência das lacunas e autoriza o magistrado a preenche-

las, dando os devidos instrumentos e limitando sua atividade integradora.

Nesse ponto, é que no nosso ordenamento, dois são os mecanismos por meio

dos quais se completam, dinamicamente, uma lacuna, pela auto-integração,

o agora exposto, onde se recorre a fonte dominante no direito, que é a lei, e

os meios típicos dessa são a analogia e os princípios gerais do direito; e pela

heterointegração, pelo qual se lança mão de fontes diversas dos preceitos

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legais, cito por exemplo o costume ou equidade, citada anteriormente. [144]

A tópica exsurge nas lacunas do direito, exatamente nas duas etapas:

a da constatação e como forma de integração, sendo basicamente também

uma técnica de preenchimento de heterointegração. Explico.

Primeiro, porque a tópica é uma ars inveniendi, ou seja, é uma arte

de descobrir premissas, os ponto de vistas consensuais ou topoi, que vão

lidar com a solução dos problemas da vida. Assim, quando não for possível

encontrar uma solução para resolver dada questão, como no caso das

lacunas, o magistrado pode se utilizar das topoi, consensos que são não

tão gerais, que no decorrer das eras foram reconhecidos. De maneira que a

constatação dessa lacuna, num processo anterior, representa um processo

inventivo, atuando como um padrão permissivo; assim, todos os momentos

que se deparar com um caso de lacuna o sujeito cognoscente terá que

avaliar o sentido d o direito posto para se chegar a uma solução justa. [145]

Depois de constatada uma lacuna, por meio do processo inventivo, o

juiz poderá ainda preencher a lacuna com as topoi. O que nos faz relembrar

a tópica de primeiro e segundo grau de Viehweg, pois o órgão judicante,

ao resolver qualquer questão que tenha sido posta a este, utiliza-se desses

graus, buscando todos os argumentos possíveis, escolhendo o que mais

parece ser adequado, convincente e de maior credibilidade (primeiro grau),

reforçando depois o seu convencimento na totalidade (segundo grau), para

preencher tal vazio jurídico.

Assim, o conceito de apurar uma lacuna e depois preenche-la, sob

o paradigma do pensamento problemático, se transmute em um recurso

hermenêutico cujo exercício seria permitir um procedimento totalmente

eloquente, que tem como objetivo alcançar uma decisão possível, favorável

e ao mínimo justa sob a ótica de quem está decidindo.

A importância da tópica nessa tarefa das lacunas se assinala quando

se buscam as premissas para atingir uma possível solução para uma questão

em que a norma não alcançou por algum motivo, e depois preenche-las com

os catálogos de topoi, provando, dessa forma, o caráter dinâmico e aberto do

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sistema jurídico, pois se fosse meramente dispensável o raciocínio tópico,

várias soluções sem o emprego de apótemas dos argumentos, ad simili, a

fortiori e a contrario em caso de lacuna, não seriam possíveis. [146]

9. TÓPICA NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: O USO CONSCIENTE E

INCONSCIENTE

Trazendo agora a perspectiva tópica para o uso prático, é inerente

e um campo bastante elucidativo a utilização desta no Judiciário, por

vários motivos. Tanto como pelos recursos argumentativos manuseados

pelos membros das Cortes, visto que a formação colegiada dos tribunais

favorece o desenvolvimento de procedimentos argumentativos a partir da

contraposição de teses entre os seus membros.

Ou então, no que toca a fundamentação das decisões jurisprudenciais,

que representa uma importante fonte para uma análise do pensamento

tópico ao Direito: pois da análise de tais embasamentos de uma sentença

ou acordão, é fácil perceber quais recursos argumentativos escolheu

o julgador, no momento em que tenta realocar uma determinada lei do

sentido concreto a noção de justiça. [147]

Ainda ao relacionar conceitos aos fatos, a partir das provas

produzidas nos autos, em que o julgador contribui para uma certeira

determinação do conteúdo dos próprios conceitos e, indubitavelmente,

para a formação de um significado institucionalmente aceito para a norma

positivada: é a criação de precedentes jurisprudenciais, pelos quais passam

a servir de referencia para o julgamento de casos similares futuramente,

caminhando pela regra da justiça de que estes devem ser julgados

igualmente. [148] Os precedentes são características dos raciocínios

indutivos (e tópicos) e é um poderoso mecanismo de criação das instituições

do sistema jurídico hodierno, como é o caso das súmulas vinculativas no

Brasil, pois estas cortes não possuem competência constitucional para criar

o direito de forma codificada, mas são responsáveis em alicerçar conteúdo

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de conceitos jurídicos contidos nas leis que vigoram no ordenamento, por

meio de precedentes decisórios. [149]

Ou ainda quando o Pretório articula a matéria de fato e a de direito,

por meio de recursos retóricos, em que se torna possível, também, mensurar

a extensão ou restrição do sentido literal da lei, quando necessário, a

aplicação analógica do direito e a busca de sua finalidade social.

E por fim, em qualquer decisão, ainda é possível enxergar a utilização

de conceitos indeterminados, princípios, valores, doutrina, opiniões

externas, standards jurídicos, adágios, ou seja, fórmulas, utilizadas em

um determinado contexto de julgamento e moldável aquele caso concreto,

com um determinado potencial persuasivo, a qual nos remete ao conceito

anteriormente exposto de topois.

Dessa forma, todos esses recursos citados acima e utilizados pelos

tribunais são tópico-problemáticos ou advém da dogmática deste. Sendo

fácil perceber que a utilização desses meios, são muitas vezes empregados

de forma não intencional (imbricados a tópica especificamente) ou mesmo

de forma involuntária, ao qual chamei de uso inconsciente da tópica.

Já o uso consciente da tópica, é quando o próprio julgador sabe que

utiliza desta técnica, afirma que a utiliza e expõe as ideias da tópica em

seu julgado de forma totalmente explicita. No Supremo Tribunal Federal,

apenas o Ministro Gilmar Mendes, salvo melhor juízo, assim o fez, e nas

minhas pesquisas encontrei dois acórdãos, em que o uso informado da

tópica foi feito de forma consciente, são eles:

9.1. ADI 3289

A Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.289, relatada pelo Ministro

Gilmar Ferreira Mendes, em resumo, trata de ação contra a Medida

Provisória 207, de 13 de agosto de 2004, que alterou disposições das Leis nº

10.683/03 e Lei nº 9.650/98, para equiparar o cargo de natureza especial de

Presidente do Banco Central ao cargo de Ministro de Estado. Não pretendo

esmiuçar o acórdão indigitado em sua completude, mas apenas no ponto em

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que a tópica foi utiliza como embasamento do decisum de alguma maneira.

Ao analisar um dos pontos da questão, em forma de preliminar,

de que tal medida provisória não teria seguido o requisito constitucional

da urgência e relevância, constante a dicção do artigo 62 da Constituição

Federal [150], o Ministro, afirma veementemente não haver nenhum

casuísmo na edição de tal medida feita pelo Presidente da Republica àquela

época, rejeita o argumento aduzido, e compartilha o pensamento de G

arcia Amado na sua obra Teorias de La Topica Juridica, para embasar o

parecer, no sentido de que a atividade jurídica, enquanto realização do

Direito histórico, remete-se claramente ao pensamento tópico, e não ao

pensamento sistemático.

Isto porque a produção do Poder Legislativo, não está comprometida

com uma perspectiva essencialista do Direito, ou seja, não se parte de

uma pauta prévia de soluções jurídicas para os problemas do mundo.

Ao contrário, o direito, produto histórico que é, traduz-se mais como um

conjunto de respostas contingentes as questões que se colocam para a

sociedade em cada momento. [151] Registrando ainda após tal citaç&at

ilde;o o reconhecimento na doutrina clássica de Viehweg a natureza tópica

da lei.

Assim, utilizando a ideia tópica, e ratificando todo o pensamento

problemático enquanto realização de um Direito eminentemente histórico,

no julgamento daquele caso concreto, afasta o pensamento sistemático

puro e entende que o requisito da relevância e urgência estavam presentes

na Medida Provisória adotada pelo Chefe do Executivo naquele momento.

Não aceita as teses no sentido contrário e também afasta as eventuais

alegações pelos polos ativos da Ação, de que o ato impugnado seria fruto de

um mero casuísmo. E julga ao final improcedente tal Ação Declaratória de

Inconstitucionalidade, onde a maioria dos Ministros, seguiu o relator.

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9.2. SS 3154

O segundo caso encontrado, trata de Suspensão de Segurança 3.154,

relatado também pelo Ministro Gilmar Mendes, enquanto vice-presidente

daquela Corte, requerida pelo Estado do Rio Grande do Sul em liminar de

Mandado de Segurança deferida pelo Presidente do Tribunal de Justiça

daquele Estado, em que se garantia aos Associados da Brigada Militar, o

pagamento total de remuneração naquele mês corrente. Porém o Estado

alegava a impossibilidade de pagamento total num quadro de força maior,

de extrema e excepcional necessidade, por impedimento financeiro. O

Ministro Gilmar Mendes deferiu o pedido e suspendeu a execução de tal

liminar.

Em suas observações no acordão, para justificar a decisão, o Julgador

se baseia no pensamento do possível, na reflexão de Gustavo Zagrebelsky

sobre o ethos da Constituição na sociedade moderna e sobre o método da

tópica como meio de interpretação inserida nessa reflexão. [152] Afirma

que tal ideia é a que deve ser adotada em sede constitucional, aduzindo logo

após, que talvez seja Peter Häberle o mai s expressivo defensor dessa forma

de pensar o direito constitucional nos tempos hodiernos, entendendo ser o

pensamento jurídico do possível expressão, consequência, pressuposto e

limite para uma interpretação constitucional aberta.

Nessa medida, e essa parece ser uma das importantes consequências

da orientação perfilhada por Häberle, uma teoria constitucional das

alternativas pode converter-se numa teoria constitucional da tolerância.

Daí perceber-se também que alternativa enquanto pensamento possível

afigura-se relevante, especialmente no evento interpretativo: na escolha do

método, tal como verificado na controvérsia sobre a tópica enquanto força

produtiva de interpretação. [153]

Desta forma, o Ministro para decidir se utilizou da tópica como

método de interpretação (aqui entendeu a tópica em sua vertente metódica e

não tecnicista), da ideia de sistema aberto e do pensamento indagativo, para

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a justificar a solução de um hard case que fugia da extrema normalidade

e poderia atingir diversas pessoas, como consequência jurídica daquela

decisão em concreto.

Assim, ao avalizar seu julgado no pensar problemático e suas

interligações dogmáticas, nos mostra o ínsito Julgador o quão necessário

esse meio de pensar, pode ser posto em causa para trazer mais uma opção

a Justiça Constitucional atualmente.

10. CONCLUSÃO E TESES CONCLUSIVAS

Ex positis, é inequívoco perceber o quão relevante é a dimensão e

a monta da tópica no cenário jurídico atual, vindo a influenciar, inclusive,

a doutrina positivista moderna. [154]

Após a superação de concepções classicistas por excelência, do modo

de pensar racionalista, lógico-dedutivo, positivista (em sua forma mais

cristalina) e sem dúvidas formalista, eis que exsurge no pensamento do pós-

guerra uma nova hermenêutica constitucional, onde deixa de dar primazia

apenas as bases tradicionais da interpretação constitucional e acrescem-

se novos dogmas, na intenção de sobrelevar as normas constitucionais

jusfundamentais, como aquelas que sejam inerentes a uma justa aplicação

na busca da aporia fundamental do direito aos casos concretos.

Dentro de um sistema jurídico totalmente afeito a abertura, onde se

verificam princípios e regras, em afinamento ao que dita a Carta Magna de

uma sociedade, a tópica, seja através de uma técnica indutiva de se resolver

problemas com um catálogo, seja como parâmetro do pensar problemático

na interpretação constitucional (realçando o caráter complementador da

temática, em auxiliar e conduzir os outros métodos interpretativos, quando

estes falharem ou serem incompletos no seu expediente), teve salutar

contribuição em todo esse contexto ao atualizar e renovar tal hermenêutica,

não de forma a substituir o sistema lógico-dedutivo por um sistema

puramente problemátic o, mas, de participar enquanto processo mútuo

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de corroboração entre os fatos apresentados e as normas constitucionais

a total consubstanciação das premissas adotadas nas decisões dentro de

construções normativas (sendo a norma sua tutora e guia), inserido em

uma concepção pós-positivista do direito, não deixando em segundo plano

aquilo que representa a própria razão desse mesmo sistema, através do

interprete como manipulador coerente dessa dogmática.

Dessa maneira, a tópica como novo instrumento e opção

aos operadores do Direito (mesmo remorando a sistemas jurídicos

antiquíssimos), trouxe incialmente certas relutâncias doutrinárias, em

virtude de um possível casuística ou falta de apego a normatividade,

mas que se viram mitigadas tais objeções, diante da facilidade pelo qual

transpareceu em aplicar de forma justa a solução buscada a quem possuísse

alguma lide sobrelevante, ratificada, sem dúvida alguma, pelos importantes

estudos de grandes insignes, como foi o de Theodor Viehweg e na aplicação

dessa forma de pensar pelos operadores do Direito.

Por isso hoje é mais que necessário saber lidar com diversas

ramificações jurídicas, em termos articulados, polissêmicos e

interdisciplinares com relevo sobretudo para a Constituição. A interpretação

deve ser vista em pauta com a Norma Maior, com os diversos dados

normativos relevantes e os próprios níveis instrumentais, como o processo.

A especialização dos juristas deve ser complementada com novas sínteses

e conexões que, à realização do Direito, deem todas as suas dimensões.

Devemos estar abertos a novos parâmetros, novas ideias, técnicas e

métodos, e a tópica pode ser um bem útil a essa função, através de s uas

diversas facetas.

O tema em estudo, desta maneira, possui várias nuances que o

deixam de certa forma emaranhada a outras questões, que perpassa desde

a história, filosofia ou sociologia, e sempre vai necessitar de uma análise e

exame mais profundas para o seu completo entendimento. Nunca se quis

aqui esgotar o tema de alguma forma, mas com a pesquisa foi possível

levantar algumas teses conclusivas, com o qual tais desenlaces nos faz

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refletir ainda mais a respeito da temática aduzida, encaminhando-nos a

um possível norte para que se entenda, mesmo que de forma perfunctória

a tópica. São tais teses, que se pode retirar do presente estudo:

I) a tópica sob um paradigma histórico evolutivo já podia ser

vislumbrado desde a pré-filosofia, sob a alcunha de ars inveniendi (ou

inventio);

II) a tópica teve influência no Direito Romano, com o espirito prático

de resolução de contendas desse sistema jurídico e na Idade Média fazia

parte dos estudos das artes liberais, juntamente com a gramatica, lógica e

retórica, vindo a influenciar diversos teóricos de ambas as épocas;

III) na Idade Moderna houve seu primeiro declínio em virtude

do racionalismo e da preeminencia de um modelo lógico-sistemático do

sistema;

IV) com a Revolução Francesa se consagram as fontes do direito

ao pensamento sistemático e a codificação da lei, relegando a tópica a um

segundo plano;

V) algumas escolas ratificaram tal declínio, em virtude da influência

do positivismo, estatalismo e a vontade do legislador, tais como a da Exegese

na França, Pandectista na Alemanha, Analítica na Inglaterra e da Teoria

Pura do Direito de Hans Kelsen;

VI) entre os séculos dezenove e inicio do vinte, houve o maior declínio

tópico e rejeição de todas as disciplinas interligadas a ela, precipuamente

aquelas com feitio social, filosófica ou histórica;

VII) após a Segunda grande Guerra o pensamento se rematerializa

com uma rejeição ao normativismo puro, vindo ao encontro sistemas mais

abertos de interpretação e integração da lei, ressurgindo, assim, o pensar

tópico;

VIII) foi Nicolai Hartmann que trouxe as concepções iniciais do

pensamento problemático versus sistemático, vindo a influenciar Theodor

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Viehweg a conceber em 1953 a obra alma mater Topik und Jurisprudenz,

firmando categoricamente a tópica como matéria essencial ao estudo do

Direito;

IX) Aristóteles quem cunha o termo tópica como se conhece

atualmente, em um dos seus livros do tratado do Organon; este ligava a

tópica ao pensamento filosófico dialético, que é o que parte de opiniões

consensuais, com amalgamas de retórica, em um processo altamente

indutivo adequado ao problema e que pode levar a verdades;

X) Cícero buscava na tópica resultados práticos, com um catálogo

de topoi imbricado a situações da vida prática Romana, tais como herança,

casamento, etc.; o que apenas ratifica o pensamento do jurista àquela época;

XI) Vico utilizou a tópica (pensamento antigo) de forma comparativa

ao cartesiano (pensamento moderno), trazendo as vantagens e desvantagens

de ambos, criando uma noção de conjunto entre os dois com uma maior

interação do caso a ser regulado;

XII) Theodor Viehweg foi sem dúvidas o maior expoente da tópica

sendo sempre relembrado por diversos estudiosos do Direito atuais. Sua

forma de pensar a tópica estava ligada a uma tríade: é uma técnica do

pensamento problemático; operando através de um catalogo de topoi, em

uma atividade de busca e exame de premissas e não em conclusões findas;

XIII) quanto a ser uma técnica de pensar pelo problema, a tópica

parte de situações para quem não se há uma solução facilmente visível,

cabendo ao solucionador deste problema oferecer alternativas a esta

resposta, que possa servir de base para respostas futuras, o que cria uma

espécie de sistema;

XIV) quanto ao catálogo de topoi, Viehweg entende que o mesmo é

amplo, não formado por um sistema lógico-dedutivo, estando presente nas

mais diversas áreas do conhecimento e é utilizado na tópica de segundo

grau, espécie de tópica mais profunda, mais abrangente que a tópica de

primeiro grau, esta mais simples e casual na solução do problema;

XV) a base da atividade da tópica são as premissas e nunca as

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conclusões ou vinculações, dessa maneira, esquemas cerrados, lógico-

dedutivos são inadequados a esta e sua forma de pensar dialética, não

lidando apenas com verdades absolutas, mas com opiniões consensuais,

que exsurgem de procedimentos argumentativos.

XVI) Viehweg vislumbrou o uso da tópica na Jurisprudência

(utilizando esse termo como ciência do direito) em diversos institutos,

desde o ius civile, em Roma até o mos italicus, na época Medieval; na era

Moderna o método axiomático, para o autor, tentou relegar a tópica um

patamar inferior em virtude do positivismo, dedutivismo e sistematização

direito, porém tal tentativa de retirar a tópica do ordenamento não foi

profícua, fazendo com que Viehweg propusesse uma problematização do

sistema jurídico de forma que se rompa com a idealização de se montar um

sistema que seja majoritalmente fechado, de caráter único e dedutivo;

XVII) a tópica por conter conteúdos intrinsicamente conectados a

filosofia, possui um amplo aspectos de sentidos e em múltiplas áreas das

ciências e das artes, podendo significar desde um método até uma forma

de comunicação, mas foi no campo jurídico que a tópica mais se consagrou

ao ser um meio cabalmente apto a solucionar litígios em casos concretos

através de um catalogo de topoi;

XVIII) os topoi tem uma natureza flexível, aberta e se transmitem

em adágios, standarts, princípios, brocardos jurídicos, etc; podem-se se

subdividir em de quantidade, quando sua força advém do consenso ou de

qualidade, quando avalizados pelos operadores jurídicos, que possuam

amplo conhecimento na área;

XIX) de forma gráfica a tópica pode ser resumida em busca de se

chegar a uma solução “!”, que adveio de um problema “?”, através de um

catalogo de topoi “{…}”, resolvida por um ou vários operadores “(W) ou (X,

Y) ou (A, B, C), etc”;

XX) sempre houve divergências doutrinárias em qualificar a

tópica como método de interpretação ou técnica de solução de problemas;

perfilho o entendimento que a tópica esteja mais para técnica de solução de

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problemas, porém o pensar problemático também pode servir de paradigma

para ajudar na interpretação constitucional através dos diversos outros

métodos ;

XXI) a tópica influenciou de sobremaneira a moderna interpretação

constitucional, ao fazer um releitura dos métodos tradicionais, que são

insuficientes de dar respostas completas as dúvidas que a atual teoria do

Direito impõe aos seus estudiosos;

XXII) foi o caso por exemplado da influência no método

hermenêutico-concretizador de Konrad Hesse, onde interpretação se

transforma em problema e guiado pela norma, se busca através dos topoi

as soluções adequada a resolução do problema;

XXIII) no método jurídico-estruturante de Friedrich Muller também

é perceptível a influição do pensar problemático principalmente no que

tange ao âmbito da norma, segunda etapa da concretização, pelo qual é visto

o conteúdo fático da esfera regulariza da prescrição, ou seja, o problema a

ser solucionado, o consenso jurídico sob aquele ponto;

XXIV) a ideia tópica não se reduz em substituir os meios operantes

de interpretação, mas sim conciliar com os já existentes e integra-los com

uma problematização do sistema jurídico quando estes falharem ou forem

insuficientes no trabalho do interprete;

XXV) a tópica também foi capaz de encontrar o equilíbrio das falhas

existentes nos métodos tradicionais, buscando o estado efetivo de direito e

harmonizando os variados sistemas existentes;

XXVI) a ideia de sistema aberto no campo constitucional (como

meio dinâmico e estrutura dialética) esta em comunhão à tópica, no

qual encontra-se numa ordem que está sempre por ser determinada em

panoramas fragmentários, transformando o pensamento jurídico em algo

necessariamente amplo, impossível de estar contido em uma lógica cerrada

e engessada, mas sim em um pensamento altamente inventivo;

XXVII) com essa abertura, a tópica pode dar a interpretação

constitucional um ar democrático, podendo envolver, desta forma, diversos

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interpretes no processo de analise hermenêutico-constitucional; nesse

contexto é nítida a influência no método concretizador de Peter Häberle,

que tem por núcleo central essa temática.

XXVIII) pode-se erradamente supor que a norma não é respeitada

pela tópica, o que não é verdade: esta é o guia do pensar problemático,

devendo ambas sempre estar em sintonia e mútuo respeito, sem um azo de

subalternidade;

XXIX) a tópica sempre foi alvo de diversas críticas e ressalvas,

principalmente por possuir alguma veia de casuísmo ou por se acreditar

que a norma seria deixada de lado com sua aplicação;

XXX) Alexy em sua obra Teoria da Argumentação Jurídica e Atienza

em As razões do Direito – Teoria da Argumentação Jurídica, afirmam que a

tópica subestima a importância da lei, da dogmática e dos precedentes, da

análise insuficiente da estrutura profunda dos argumentos e num conceito

pouco preciso da discussão, retirando desta qualquer ajuda significativa

na busca de uma ideal argumentação jurídica;

XXXI) Claus-Wilhelm Canaris foi o maior crítico da tópica na doutrina

Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Na

obra pode-se inferir que a ideia de sistema e tópica não são harmonizáveis;

que a tópica liga-se a retórica, que consequentemente advém da dialética,

e todas estão distantes da verdade; que a utilidade da tópica estaria certa

apenas ao legislador e a ciência política do que aos operadores do direito;

relegando a tópica um papel residual e subsidiário, apenas no caso de

lacunas de leis e clausulas gerais, que demandem uma complementação

valorativa pelo juiz;

XXXII) mas as críticas podem ser desconstruídas em diversos pontos,

principalmente se levar em conta sob o referencial histórico no qual surgiu

o pensamento problemático, sua influência no discurso, na orientação

da argumentação, em não considerar o método sistemático como o único

paradigma no sistema jurídico e a possibilidade de abertura no campo do

pensamento, em que não se enfoque apenas a tópica como aquele que pode

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atuar no sistema, lendo essa forma de pensar em harmonia com um todo e

equilibrando os meios de utiliza-los na ciência jurídica;

XXXIII) a tópica tem uma importância fulcral no instituto da

equidade, que nada mais é aplicar o direito em uma concepção de justiça

no caso concreto. A influição desta naquela perpassa desde a busca da

solução do problema pela tópica (a solução há de ser justa e equânime), até

pelo empreendimento na tendência mais generalizadora da justiça, ou seja,

sem excluir pontos de vistas ao menos aceitáveis;

XXXIV) quanto as lacunas no direito, que significa a incapacidade

da norma de regular novas situações sociais que venham a surgir no seio

da sociedade, a tópica tem o papel de identificar tais lacunas e depois

preenche-las pelo mecanismo da heterointegração;

XXXV) na prática judicial a tópica pode ser utilizada de duas

formas consciente e inconsciente; uso inconsciente é quando nas decisões

o pensamento tópico ou argumentos interligados a este são utilizados de

forma involuntária pelos Tribunais ou juízes inferiores, como por exemplo,

quando se utilizam de recursos argumentativos, raciocínios indutivos,

conceitos indeterminados, princípios, valores, doutrina, opiniões externas,

standards jurídicos, adágios e etc; já o uso consciente da tópica, é quando o

próprio julgador sabe que utiliza desta técnica, afirma que a utiliza e expõe

as ideias da tópica em seu julgado de forma total mente explicita;

XXXVI) no STF em dois casos relatados a tópica foi usada de forma

consciente, ambas pelo Ministro Gilmar Mendes, que é abertamente afeito

a doutrina de autores que se inclinaram ao pensar problemático, como

Häberle ou Garcia Amado. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.289

em que o Ministro repele uma argumento preliminar da parte afirmando

que enquanto realização do Direito histórico, este se verga ao pensamento

tópico, e não ao pensamento sistemático, remetendo a obra de Viehweg;

e na Suspensão de Segurança 3.154, onde o Julgador suspende execução

de liminar se baseando em ideias de indagação, sistema aberto e a tópica

como força produtiva da interpretação;

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NOTAS:

[1] VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Brasília: Ministério da

Educação co-edição com a EdUnb, 1979, p. 31.

[2] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 23.

[3] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 29.

[4]MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A Tópica e o Supremo Tribunal

Federal. Rio de Janeiro: Renovar Editora, 2003, pp. 104-105.

[5] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 59-60.

[6]PUY, Francisco. Tópica Jurídica. Santiago de Compostela: Imprenta

Paredes, 1984, p. 801. (tradução livre).

[7] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op, cit., pp. 147-148.

[8] Segundo HESPANHA o pensamento codificante foi “um repositório não

do direito voluntário, sujeito às contigencias e às mudanças da vontade

humana, mas do direito natural, imutável, universal, capaz de instaurar

uma época de paz perpétua na convivencia humana. Os códigos d eram

a ideia primeiro, a um nível formal, porque se apresentam como todos

os codigos sistematicos, dominados por uma ordem intrinseca, o que lhes

dá, aos nossos olhos, um aspecto arrumado […] Depois, quanto ao sentido

das suas disposições, porque eles se apresentam como um conjunto de

disposições liberto das contigencias do tempo e, por isso, tendencialmente

eternos” in HESPANHA, António Manuel. Panorama Histórico da Cultura

Jurídica Europeia. Sintra: Forum da História, 1997, p. 162.

[9]CORDEIRO, Antonio Menezes. In Introdução à Edição Portuguesa da

obra Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

de Claus-Wilhelm Canaris. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 4 ed.,

2008, p. LXXXV.

[10] BOBBIO reza que “A escola da exegese deve seu nome à técnica

adotada pelos seus primeiros expoentes no estudo e exposição do Código

de Napoleão, técnica que con siste em assumir pelo tratamento científico

o mesmo sistema de distribuição da matéria seguido pelo legislador e, sem

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mais, em reduzir tal tratamento a um comentário, artigo por artigo, do

próprio Código” in BOBBIO, Norberto. Il Positivismo Giuridico. Turin: G.

Giappichelli Editore. 1979, p. 92.

[11] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op. cit., p. 172.

[12] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op. cit., p. 176.

[13] Cf. BOBBIO, Norberto. Op. cit., pp. 95/97.

[14] Cf. HESPANHA, António Manuel. Op. cit., p. 178.

[15] Cf. BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 99.

[16]BITTAR, Eduardo e ALMEIDA, GUILHERME. Curso de Filosofia do

Direito. São Paulo: Atlas, 2007, 5. ed. p. 348.

[17] Cf. HESPANHA, António Manuel. Op. cit., pp. 191-192.

[18] Ao explicar sobre sua obra, AUSTIN fala sobre suas influências: “De

todas as expressões concisas que examinei mentalmente, ‘filosofia do

direito positivo’ indica da forma mais significativa o objeto e o âmbito do

meu curso. Emprestei tal expressão de um tratado Hugo, célebre professor

de jurisprudencia da Universidade de Gottingen, e autor de uma excelente

história do direito romano. Embora o tratado em questão se intitule ‘o

direito natural’, não diz respeito ao direito natural no significado ordinário

do termo. Na linguagem do autor diz respeito ao ‘direito natural como uma

filosofia do direito positivo’. Apud BOBBIO, Op. cit., p. 116.

[19] Ainda para AUSTIN “toda lei positiva, ou bem de toda lei simples e

estritamente dita, é posta por uma pessoa soberana ou por um corpo

soberano de pessoas a um ou mais membros da sociedade polític a

independente na qual essa pessoal ou esse corpo é soberano ou supremo.

Ou, em outras palavras, essa lei é posta por um monarca ou grupo soberano

a uma ou mais pessoas em estado de sujeição frente a seu autor.” Apud

BOBBIO, Op. cit., p. 121.

[20] Austin aduzia que “é melhor ter um direito expresso em termos

gerais, sistemático, conciso (compact) e acessível a todos, do que um

direito disperso, sepultado num amontoado de detalhes, i menso (bulky) e

inacessível.” Apud BOBBIO, Op. cit., p. 135.

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128 129

[21] Cf. HESPANHA, António Manuel. Op., cit., p. 193.

[22]LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian, 1969, p. 81.

[23] Cf. HESPANHA, António Manuel. Op. cit., p. 194.

[24] Segundo o próprio autor, sua Teoria Pura era “um conhecimento apenas

dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo que não pertença a

seu objecto, tudo quanto se não possa, rigorosamente, determinar como

Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos

os elemen tos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico

fundamental” in KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Coimbra: Armenio

Amada Editor, 1979, p. 17.

[25]REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1957, p. 423.

[26] Cf. LARENZ, Karl, Op. cit., pp. 87-88.

[27] Cf. LARENZ, Karl, Op., cit., pp. 84.

[28] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op. cit., p. 187.

[29]PUY, Francisco. Teoria, Tópica, Retórica e Dialéctica dos Direitos in

Direitos Humanos: teorias e práticas. Coimbra: Almedina, 2003, p. 194.

[30] Idem.

[31] A filosofa HANNAH ARENDT, aduz que a atividade do pensar e a

moderna concepção do mundo em sua introspecção e perda do senso

comum, por virtude do cartesianismo (e consequentemente ao apego

excessivo a ciência) levou o homem a ter um poder de criar e agir, mas que

o fez se “aprisionar nas limitações das configurações que ele mesmo criou.

[…] A razão em Descartes, n&at ilde;o menos que em Hobbes, limita-se a

prever as consequencias, isto é, a faculdade de deduzir e concluir a partir

de um processo que o homem pode, a qualquer momento, desencadear

dentro de si mesmo. […] É esta a faculdade que a era moderna domina

de senso comum; trata-se do jogo da mente consigo mesma, jogo este que

ocorre quando a mente se fecha contra toda a realidade e sente somente a

si própria.” In ARENDT, Hannah. A condição humana. São Paulo: Forense

Universitária, 2007, pp. 296, 299 e 301.

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[32] Para HARTMANN “o pensamento sistemático parte do todo. A concepção

é aqui primordial e permanece dominante. Não há que se buscar o ponto de

vista senão o que presumimos e lhe está adotado desde o princípio e a partir

dele selecionam os problemas. Os conteúdos do problema que n& atilde;o

se conciliam com o ponto de vista serão recusados. São considerados como

uma questão falsamente colocada. Decide-se previamente não sobre a

solução dos problemas, mas sim sobre os limites dentro dos quais a solução

pode mover-se. No que tange ao pensamento aporético esse é enfático ao

aduzir que o modo aporético de pensar em tudo procede de forma diferente.

Os problemas antes de mais nada se lhe afiguram sagrados. Não conhece

nenhum fim da pesquisa que não seja o da investigação do problema

mesmo… O próprio sistema não lhe é indiferente, mas valha para ele

apenas como idéia, como perspectiva. Não põe ele em dúvida a existência

do sistema, apenas encontra o que o determina latente em seu próprio

pensamento. Disso está certo, ainda quando não o compreenda, tem certeza

do seu sistema, ainda que não chegue a ter dele uma concepção.” Apud

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros

Editora, 15. ed., p. 488 e VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 55.

[33] O próprio filosofo leciona que “o objetivo desta exposição é encontrar

um método que permita raciocinar, sobre todo e qualquer problema

proposto, a partir de proposiç& otilde;es geralmente aceites, e bem assim

defender um argumento sem nada dizermos de contraditório. Antes de

mais, portanto, há que explicar o que é um raciocínio dedutivo e quais suas

variedades, a fim de determinar o que é um raciocínio dialético, pois é este

ultimo o que estudamos na presente exposição.” In ARISTÓTELES. Tópicos.

Lisboa: Biblioteca de autores clássicos, v. I, t. V, 2007, p. 233.

[34] Cf. ARISTÓTELES. Op. cit., pp. 233-234.

[35] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 26 e 31.

[36] Quanto aos problemas Aristoteles aduz que eles podem ser universais

(por exemplo, as afirmações: todo prazer é um bem e nenhum prazer é um

bem) ou particulares (algum prazer é um bem e algum prazer não é um

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bem) in ARISTÓTELES. Op. cit., p. 269.

[37]KNEALE, William Calvert e Martha. O desenvolvimento da Lógica.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1972, p. 35.

[38] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 28.

[39] SALVADOR NUÑEZ lembra que “Cuando Cicerón se puso a la tarea de

redactar el ambicioso tratado que iba a ser La invención retórica, i ntento

reflejar el estado de los conocimientos retóricos de la época conservando

una cierta independencia frente a las fuentes griegas y procurando adaptar

los contenidos a la realidad social y cultural romana “in NUÑEZ, Salvador.

Introducción de La Invención Retórica de Cícero. Madrid: Editorial Gredos

in, 1997, p. 14.

[40] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 30-31

[41] Gianbattista Vico foi um eminente professor, jurisconsulto, historiador,

filosofo e pedagogo napolitano. Para BLUNTSHCLI era uma pessoa de

perspicácia genial e segundo MANUEL ANTUNES de uma erudi&ccedi

l;ão histórica e jurídica com dotes de intuição e reflexão que a civilização

ocidental raras vezes tem conhecido in MELO, António M. Barbosa de. In

Prefácio da obra Ciência Nova de Giambattista Vico. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian, 2005. p. V.

[42] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 19-20.

[43] Idem.

[44] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 20-21

[45] Na prática para Vico “o pensamento tópico-retórico surge, assim,

como método adequado a satisfazer o principio regulativo segundo o

qual o decisor publico está obrigado a proceder ao exame completo das

circunstancias que formam o pressuposto material, hipótese ou causa da

decisão jurídica. Não é a analise more geométrico, mas a espessa lição dos

oradores, dos historiadores e dos poetas que permitirá a descoberta da

verdade: estes é que dilatam a mente através da observação dos elos entre

coisas distanciadíssimas que, por qualquer razão comum, a memoria, a

fantasia e o engenho levam a integrar numa mesma unidade de referencia

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apud MELO, António M. Barbosa de. Op. cit., p. IX.

[46] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 21.

[47] Os elogios a importância do autor são evidentes. Para TERCIO SAMPAIO

FERRAZ JR., prefaciador e tradutor da obra Tópica e Jurisprudência no

Brasil: “Viehweg retoma a discuss&ati lde;o do paradigma científico

do direito, a luz da experiência grega e romana, iluminando-a com as

descobertas de Vico e atualizando-a com os instrumentos contemporâneos

da lógica, da teoria da comunicação, da linguística etc.. […] Viehweg realiza,

neste livro, uma investigação histórica, bastante abrangente, com o fito

de demonstrar a sua importância na formação jurídica ocidental. […] Sua

intenção principal está em mostrar que a Ciência do Direito que ele prefere

chamar de Jurisprudência (em oposição a Jurisciência) é constituída por

um estilo de pensamento, o pensamento problemático” in FERRAZ JR.,

Tercio Sampaio. Prefácio do tradutor na obra < b>Tópica e Jurisprudência

de Theodor Viehweg. Op. cit., pp. 1 e 5. Já PAULO BONAVIDES escreve que

“com a tópica inaugurou-se para a hermenêutica contemporânea uma

direção indubitavelmente renovadora. […] A obra de Viehweg causou na

Ciência do Direito sensação igual à de David Easton na Ciência Politica, de

que ambos se tornaram os respectivos renovadores” in BONAVIDES, Paulo.

Op. cit., pp. 488 e 490.

[48] A forma como Viehweg concebeu a obra Tópica e Jurisprudência,

de tão interessante não poderia deixar de ser contada. O autor, aluno da

faculdade de direito de Leipzig e frequentador de seminários de Hartmann,

fora juiz de profissão anteriormente a Segunda Guerra e encontrava-se

desempregado. Para sobreviver, mudou- se para o interior da Alemanha,

perto de Munchen, onde vivia entre os camponeses a agricultores simples.

Perto de sua casa descobrira uma biblioteca muito antiga, totalmente

intacta, dentro de um monastério. Com a autorização dos monges locais

se utilizou do local e começou uma minuciosa pesquisa que teve como

produto essa obra, reflexo de uma clausura e paciência quase que igual

a dos monges que o permitiram os seus estudos para compor a obra in

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VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 6 e 7.

[49]ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: Teoria da Argumentação

Jurídica. São Paulo: Landy Editora, 2006, p. 49.

[50] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 33.

[51] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 34.

[52] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 35.

[53] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 35-36.

[54] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 40-41.

[55] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op, cit., p. 104.

[56] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 45.

[57] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 53.

[58] Cf. ATIENZA, Manuel. Op. cit., p. 50.

[59] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 48.

[60] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 59-65

[61] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 75-77.

[62]ENTERRÍA, Eduardo García de. Reflexiones sobre la Ley y los Principios

Generales del Derecho. Madrid: Civitas, 1984, p. 58. (tradução livre do

espanhol)

[63] Idem.

[64] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 82.

[65] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op, cit., p. 201.

[66] Cf. ENTERRÍA, Eduardo García de. Op. cit., p. 56-57.

[67] Cf. PUY, Francisco. Op. cit., p. 798.

[68] Ela pode estar inclusive em qualquer meio comunicação, não

especificamente o jurídico, o que constituiria uma espécime de vox populi

ou opinião pública/profana e ainda de divulgação, inclusive no meio

literário, por propor um meio de propaganda de soluções iure c onstituendo

ou espelho crítico do existente iure constituto; cite o exemplo na Antígona

de Sofocles para falar de leis injustas e de direito natural na decisão de

Creonte, ou ainda na morosidade processual em Bleak House de Dickens;

o advogado de sucesso mas sem convicções em A Queda, a relação política

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e direito em Os Justos e o fim da juridicidade pela arbitrariedade de um

déspota em Calígula, todos de Camus; a sutileza da argumentação jurídica

contra um litigante de má-fé, em O Mercador de Veneza de Shakespeare; as

relações entre ideologia, paixão e crime nas Mãos Sujas de Sartre, etc, etc. In

CUNHA, Paulo Ferreira da. Dialéctica, Tópica ou Retórica Jurídicas?. Lisboa:

Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, 2002,

V. XVI, Tomo 2, pp. 76 a 78;

Já VIEHWEG lembra que a tópica além de poder estar contida na literatura,

há uma tópica musical e na pintura: “no âmbito dos problemas literários,

os topoi constituem pontos de vista diretivos que retornam continuamente,

temas fixos ou, por assim dizer, clichês geralmente aplicáveis. Não só

proporcionam um determinado modo de entender a vida ou a arte, senão

que ajudam até a construi-lo” in VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 38.

[69] Apud PUY in CUNHA, Paulo Ferreira da. Op., cit., p. 72.

[70]DINIZ, Maria Helena. As Lacunas do Direito. São Paulo: Editora Saraiva,

2000, p. 124.

[71] Apud AMADO, Juan Antonio Garcia. Teorias de la Tópica Jurídica,

Editorial Civitas: Madri, 1988 in MELGARÉ, Plínio. Considerações sobre a

tópica jurídica . Revista da AJURIS (Associação dos Juízes do Rio Grande do

Sul), n. 78, junho de 2000, p. 246

[72]CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.

Lisboa: Almedina, 2002, p. 1.195.

[73] Idem.

[74]MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de Direito Constitucional: teoria da

Constituição em tempo de crise do estado social. Coimbra: Coimbra Editora,

2014, T. II, v. 2, pp. 619-620.

[75] Cf. BONAVIDES, Paulo. Op. cit., pp. 488 e ss.

[76]ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy

Editora, 2001, p. 31.

[77] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 33.

[78]MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra

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Editora, T.II, 2013, p. 317.

[79] Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 122.

[80] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 03.

[81] CASTELEIRO, João Malaca (coord.). Dicionário da língua portuguesa

contemporânea / ed. lit. Academia das Ciências de Lisboa, Fundação

Calouste Gulbenkian. Lisboa : Verbo, 2001, pp. 2.459 e 3.526.

[82] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 71.

[83] Cf. BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 490 e AMADO, Juan Antonio Garcia.

Tópica, Derecho y Método Jurídico. Revista DOXA. n. 04, 1987, p. 161.

(tradução livre)

[84] A concretização para Hesse pressupõe um pré-entendimento do

conteúdo da norma a ser concretizada, ou seja, a atividade concretizadora

trata de reconstruir a atividade jurídica no caso concreto através de um

procedimento racional e argumentativo, ao invés de se procurar meramente

um sentido que seja i nerente a norma in HESSE, Konrad. Elementos de

Direito Constitucional da República Federal da Alemanha (Grundzuge des

Verfassungsrechts der Burdesrepublik Deustchland). Porto Alegre: Fabris,

1998, pp. 63 e ss.

[85] Apesar de CANOTILHO entender que o método hermenêutico-

concretizador afasta-se da tópica, porque enquanto este pressupõe ou aceita

o primado do problema perante a norma, aquele infere no pressuposto do

primado do texto constitucional em face do problema, o que se adota neste

estudo que a tópica não renega o âmbito legal, nem o exclui em face do

problema, mas se serve dele como guia, tendo que partir de topoi guiadas

pela lei e que não sejam contra legem, dessa forma, ambas andam de forma

paritária, respeitando-se mutualmente inCANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit.,

p. 1.212 e nota de rodapé 9.

[86] Cf. HESSE, Konrad. Op. cit, pp. 64-65.

[87]MULLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. Rio

de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 59-60 e 105-106.

[88] Cf. MULLER, Friedrich. Op. cit., pp. 59-60 e 81-83.

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Sob a concretização de MULLER, BLANCO DE MORAIS faz um pertinente

magistério em sua obra, sintetizando três operações que aclaram a temática

proposta: 1) o programa e âmbito normativo; 2) um teste argumentativo

final à solidez da solução interpretativa obtida e 3) a operação subsuntiva

de aplicação da norma à situação problemática, conjugando tal explanação

perfeitamente ao exposto no tópico deste trabalho. In MORAIS, Carlos

Blanco de. Op. cit., pp. 658-662.

[89] Cf. ENTERRÍA, Eduardo García de. Idem.

[90]FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica: ensaio de

pragmática da comunicação normativa. Rio de Janeiro: Editora Forense,

2006, p. 23.

[91] Cf. BONAVIDES, Paulo. Op. cit., pp. 494.

[92] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 80-81.

[93] Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 1.159.

[94] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 35, 36, 50 e 85.

[95] Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 124-125.

[96]HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos

Intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e

“procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Fabris Editor, 2002, pp. 41-

42; BONAVIDES, Pa ulo. Op. cit., pp. 509 e ss. e MIRANDA, Jorge. Op. cit., p.

318.

[97] Cf. BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 495.

[98] Cf. MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 317.

[99] Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 1.212.

[100] Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Op. cit., p. 619.

[101] Cf. ALEXY, Robert. Op. cit., pp. 31-32.

[102] Cf. ALEXY, Robert. Op. cit., p. 33.

[103]CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de

Sistema na Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 4

ed., 2008, p. 16.

[104] Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit., p. 280.

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[105] Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit., pp. 247, 249, 250.

[106] Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit., pp. 257, 262.

[107] Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit., pp. 269-270.

[108]Cf. ATIENZA, Manuel. Op. cit., pp. 52-53.

[109] Cf. ATIENZA, Manuel. Op. cit., p. 55.

[110] Cf. FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Op. cit., pp. 22-23

[111] Cf. ATIENZA, Manuel. Op. cit., p. 14.

[112] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op. cit., pp. 245-247.

[113] Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit., pp. 251.

[114] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op, cit., pp. 254.

Como bem lembra CARLOS BLANCO DE MORAIS lecionando a espeito da

mudança social e cultural sobre a Justiça Constitucional, “em qualquer

caso, é um dado sociológico que os juízes, tendendo a ser conservadores

na interpretação e defesa da Constituição, não são imunes ao seu tempo

já que, como membros da sociedade refletem certos valores e tendências

dominantes. E o facto é que, existindo fortes movimentos políticos e sociais

que impõem num dado momento no panorama político e cultural, os juízes

inclinam-se frequentemente a interpretar as normas constitucionais em

consonância com essa tendência, mesmo contra o legis lador maioritário.”

In MORAIS, Carlos Blanco de. Op. cit., pp. 660-661.

[115]PERELMAN, Chaim. Lógica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2004,

pp. 141 e ss.

[116] Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit., pp. 256.

[117] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op. cit., pp. 255-256.

[118] Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit., pp. 265-266

[119] Cf. BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 499.

[120] Cf. BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 498.

[121] Cf. ATIENZA, Manuel. Op. cit., p. 57.

[122] Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 242.

[123]ARISTOTELES. Ética à Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1991, Livro

V, Caps. X e XI.

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[124] Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 244.

[125]PEREIRA, Alexandre Libório Dias. Da Equidade (fragmentos). Coimbra:

Artigos da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,

2004, p. 7.

[126] RSTJ, 83/68; Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105/2005, Art. 140.

O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade

do ordenamento jur&iac ute;dico. Parágrafo único. O juiz só decidirá por

equidade nos casos previstos em lei.

[127] Lei 9.307/96. Art. 11. Poderá, ainda, o compromisso arbitral conter: II

– a autorização para que o árbitro ou os árbitros julguem por eqüidade, se

assim for convencionado pelas partes;

[128]Artigo 4.º do Código Civil (Valor da equidade). Os tribunais só podem

resolver segundo a equidade: a) Quando haja disposição legal que o

permita; b) Quando haja acordo das partes e a relação jurídica não seja

indisponível; c) Quando as partes tenham previamente convencionado o

recurso à equidade, nos termos aplicáveis à cláusula compromissória.

[129] Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., pp., 252 e ss.

[130] Cf. ENTERRÍA, Eduardo García de. Op. cit., p. 58.

[131] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 88.

[132] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op, cit., p. 210.

[133] Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit., pp. 25, 240, 272, 286, 287.

CANARIS ao fazer tal alusão da tópica e equidade (sendo de importante

valia tal ideia), também reconhece que as cláusulas gerais que faltem de

carecidas concretização têm indubitavelmente uma função totalmente

legítima e opõem-se a uma generalização demasiado rígida, facultando a

inserção da equidade no sentido da justiça do caso concreto.

[134] Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 264.

[135] ENGISH lembra ainda que na determinação das lacunas não se pode

ater apenas à vontade do Poder Legislativo. A mudança das concepções

de vida pode fazer surgir lacunas que anteriormente não haviam sidos

percebidas e que temos de considerar como lacunas do Direito vigente e não

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simplesment e como lacunas jurídico-políticas, assim como não existe apenas

lacunas primárias, aquelas de antemão inerentes a uma regulamentação

legal, mas ainda secundárias, ou seja, lacunas que só supervenientemente se

manifestam, porque entretanto as circustancias foram alteradas. Isto vale,

não só para a modificação das valorações, mas também pelo que tange à

alteração das circunstancias de fato relativas ao objeto da regulamentação:

as regulamentação jurídicas não raro se tornam posteriormente lacunosas

pelo fato de, em razão de fenomenos econômicos inteiramente novos, como

a inflação, ou de progressos técnicos, exemplarmente a aviação, filmes,

discos, televisão, surgirem questões jurídicas às quais a regulamentação

anter ior não dá qualquer resposta satisfatória in ENGISH, Karl. Introdução

ao Pensamento Jurídico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, p.

276.

[136] Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 120.

[137] Idem.

Isto posto que JORGE MIRANDA rememora que não se deve confundir lacuna

com omissão legislativa. Levando esse feito a uma ótica constitucional, o

catedrático aduz que as lacunas são constitucionalmente relevante não

previstas, já as omissões legislativas, reportam em situações previstas, mas

a que faltam as estatuições adequadas a uma plena efetivação das respetivas

normas no programa ordenador global da Constituição. As lacunas

são detetadas pelo interprete e pelos órgãos de aplicação do Direito. As

omissões, se podem ser por eles também detetadas, só podem ser verificadas

especificadas pelos órgãos de fiscalização da inconstitucionalidade por

omissão. O preenchimento de lacunas significa a determinação da regra

para aplicação ao caso concreto e é tarefa do interprete e do órgão de

aplicação. A integração de omissões reconduz-se à edição da lei pelo

legislador, a não ser que se trate de omissões parciais e relativas e seja

possível ao tribunal emitir sentenças aditivas. In MIRANDA, Jorge. Curso de

Direito Constitucional – Estado e Constitucionalismo. Constituição. Direitos

Fundamentais. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2016, v. 1, pp. 214-

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215.

[138] Cf. DINIZ, Maria Helena. Idem.

[139] Art. 4o da Lei 12.376/2010: Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o

caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

[140] Artigo 10.º (Integração das lacunas da lei): 1. Os casos que a lei não

preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos. 2.

Há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas

da regulamentação do caso previsto na lei. 3. Na falta de caso análogo, a

situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se

houvesse de legislar dentro do espírito do sistema.

[141] Art.16.- Si una cuestión civil no puede resolverse, ni por las palabras,

ni por el espíritu d e la ley, se atenderá a los principios de leyes análogas;

y si aún la cuestión fuere dudosa, se resolverá por los principios generales

del derecho, teniendo en consideración las circunstancias del caso.

[142] Art. 12 Interpretazione della legge: Se una controversia non può essere

decisa con una precisa disposizione, si ha riguardo alle disposizioni che

regolano casi simili o materie analoghe; se il caso rimane ancora dubbio, si

decide secondo i princìpi generali dell’ordinamento giuridico dello Stato.

[143]ARTICULO 4.A la Ley debe atribuírsele el sentido que aparece evidente

del significado propio de las palabras, según la conexión de ellas entre sí

y la intención del legislador. Cuando no hubiere disposición precisa de

la Ley, se tendrán en consideración las disposiciones que regulan casos

semejantes o materias análogas; y, si hubiere todavía dudas, se aplicarán

los principios generales del derecho.

[144] Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 138.

[145] Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., pp. 121 e 122.

[146] Cf. PEREIRA, Alexandre Libório Dias. Op. cit., p. 22.

[147] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op. cit., pp. 275, 285.

[148]PERELMAN, Chaim. Ética e Direito. Porto Alegre: Instituto Piaget, 2002,

p. 601.

[149] HABERMAS lembra que a uniformização é absolutamente necessária

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ao aperfeiçoamento do direito. O interesse público na uniformização do

direito destaca uma característica pregnante na lógica da jurisprudência: o

Tribunal tem que decidir cada caso particular, mantendo a coer&ec irc;ncia

da ordem jurídica em seu todo in HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia:

entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 295

[150] Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República

poderá adotar medidas provis&oacu te;rias, com força de lei, devendo

submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.

[151] Conforme o voto ipse literis: A la tópica jurídica se podem ligar tres tipos

diferenciables de desarrollo de la ideia de Derecho, que han sido llevados a

cabo por la doctrina. (…) El primer tipo de teorías parten de rechazar toda

concepción essencialista del Derecho, conforme a la cual éste ea imperativo

puro o d eber incondicionado y la ley simple depósito de soluciones

acabadas para casos meramente subsumiles. Como dice BAUMLIN, el

Derecho es um producto eminentemente histórico, sólo comprensible a

partir de su própria realización. La actividad jurídica, en cuanto relización

del Derecho histórico, remitiría a la tópica, no al pensamiento sistemático. El

Derecho histórico es, para BAUMLIN, el conjunto de respuestas contigentes,

parciales y susceptibles de ser desarrolladas. Cerece de sentido, em opnión

de este autor, contraponer una regulación general y abstracta, por un lado,

y las decisiones, por otro, pues el proceso de concreción es un elemento

conformador de importancia fundamental en el Derecho. Este se ha de

comprender a partir de su nota esencial de estar orientado a constante

realización. Esta realización del Derecho (Rechtsverwirklichung) no puede s

ignificar ejecución de la ley (Gesetzesvollzienhung), sino un nunca acabado

tratamiento y una constante conformácion del Derecho histórico en todos

los niveles de la actividade jurídica. in Juan Antonio Garcia Amado, Teoria

de La Topica Juridica, Madri, Editorial Civitas, Primeira edição, pp. 264/265.

[152]In verbis: As sociedades pluralistas atuais – isto é, as sociedades

marcadas pela presença de uma divers idade de grupos sociais com interesses,

ideologias e projetos diferentes, mas sem que nenhum tenha força suficiente

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para fazer-se exclusivo ou dominante e, portanto, estabelecer a base material

da soberania estatal no sentido do passado – isto é, as sociedades dotadas

em seu conjunto de um certo grau de relativismo, conferem à Constituição

não a tarefa de estabelecer diretamente um projeto predeterminado

de vida em comum, senão a de realizar as condições de possibilidade

da mesma. No tempo presente, parece dominar a aspiração a algo que é

conceitualmente impossível, porém altamente desejável na prática: a não-

prevalência de um só valor e de um só princípio, senão a salvaguarda de

vários simultaneamente. O imperativo teórico da não-contradição – válido

para a scientia juris – n&atilde ;o deveria obstaculizar a atividade própria

da jurisprudentia de intentar realizar positivamente a ‘concordância

prática’ das diversidades, e inclusive das contradições que, ainda que

assim se apresentem na teoria, nem por isso deixam de ser desejáveis na

prática. ‘Positivamente’: não, portanto mediante a simples amputação de

potencialidades constitucionais, senão principalmente mediante prudentes

soluções acumulativas, combinatórias, compensatórias, que conduzam

os princípios constitucionais a um desenvolvimento conjunto e não a

um declínio conjunto. Por isso, conclui que o pensamento a ser adotado,

predominantemente em sede constitucional, há de ser o “pensamento do

possível”. Leio, ainda, esta passagem desse notável trabalho: “Da revisão

do conceito clássico de soberania (interna e ex terna), que é o preço a

pagar pela integração do pluralismo em uma única unidade possível – uma

unidade dúctil, como se afirmou – deriva também a exigência de que seja

abandonada a soberania de um único princípio político dominante, de onde

possam ser extraídas, dedutivamente, todas as execuções concretas sobre

a base do princípio da exclusão do diferente, segundo a lógica do aut-aut,

do ‘ou dentro ou fora’. A coerência ‘simples’ que se obteria deste modo não

poderia ser a lei fundamental intrínseca do direito constitucional atual,

que é, precipuamente, a lógica do et-et e que contém por isso múltiplas

promessas para o futuro. Neste sentido, fala-se com acerto de um ‘modo

de pensar do possível’ (Möglichkeitsdenken), como algo particularmente

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adequado ao direito do nosso tempo. Esta atitude mental ‘possibilista’

representa para o pensamento o que a ‘concordância prática’ representa

para a ação in Zagrebelsky, El Derecho Dúctil. Ley, derechos, justicia. Trad.

de Marina Gascón. 3a ed. Madrid: Trotta; 1999, pp. 13, 16 e 17.

[153]O pensamento do possível é o pensamento em alternativas. Deve

estar aberto para terceiras ou quartas possibilid ades, assim como para

compromissos. Pensamento do possível é pensamento indagativo (fragendes

Denken). Na res publica existe um ethos jurídico específico do pensamento

em alternativa, que contempla a realidade e a necessidade, sem se deixar

dominar por elas. O pensamento do possível ou o pensamento pluralista de

alternativas abre suas perspectivas para “novas” realidades, para o fato de

que a realidade de hoje pode corrigir a de ontem, especialmente a adaptação

às necessidades do tempo de uma visão normativa, sem que se considere

o novo como o melhor. Para o estado de liberdade da res publica afigura-

se decisivo que a liberdade de alternativa seja reconhecida por aqueles

que defendem determinadas alternativas”. Daí ensinar que “não existem

apenas alternativas em relação à realidade, existem também alternativas

em relação a essas al ternativas. O pensamento do possível tem uma dupla

relação com a realidade. Uma é de caráter negativo: o pensamento do

possível indaga sobre o também possível, sobre alternativas em relação à

realidade, sobre aquilo que ainda não é real. O pensamento do possível

depende também da realidade em outro sentido: possível é apenas aquilo

que pode ser real no futuro. É a perspectiva da realidade (futura) que

permite separar o impossível do possível in Häberle, Die Verfassung des

Pluralismus, cit., pp. 3, 6 e 10.

[154] DIMOULIS e MARTINS na obra Teoria Geral dos Direitos Fundamentais

afirmam que para a análise jurídica dos direitos fundamentais, é necessário

o recurso a fontes doutrinárias que apontam problemas, resolvem casos

difíceis e apresentam de forma sistemática e crítica as soluções dadas

em nível de prática jurídica. OBS: mesmo os autores utilizando o termo

sistemático, entendo que a intenção não foi se utilizar dele como método

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lógico-dedutivo puro, mas sim, na acepção organizatória da palavra. O

que também não exclui, pensando da outra maneira, a ideia problemática

precipuamente tópica em lidar com a análise dos direitos fundamentais,

tema global da obra. In DIMOULIS, Dimitri e MARTINS, Leonardo. Teoria

Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Editora Atlas, 2014, pp. 7-8.

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OS EFEITOS DA DECISÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 895.759 NAINTERPRETAÇÃO DOS DIREITOS TRABALHISTAS EM FACE DA POSSIBILIDADE DE NEGOCIAÇÃO E CONCILIAÇÃO INDIVIDUAL E COLETIVA

Murilo Cautiero Abi Acl - Desde 2013 é Analista Judiciário do TRT/MG, atuando como assistente de magistrado e como conciliador na Central de Conciliação de 1ª Instância do TRT/MG. Formado em Direito em 2004 pela Universidade FUMEC, pós-graduado em Direito de Empresa pelo IEC – Instituto de Educação Continuada da Pontífica Universidade Católica/MG. De 2004 a 2013 atuou como advogado nas áreas empresarial, imobiliária e trabalhista.

Resumo: Os efeitos da decisão do Recurso Extraordinário 895.789

são grandiosos no que tange a interpretação dos direitos trabalhistas e

seus princípios correlatos, possibilitando maior alcance das negociações

individuais e coletivas e, consequentemente, prestigiando a conciliação no

âmbito da Justiça do Trabalho.

Palavras-chaves: Recurso Extraordinário 895.789. Interpretação.

Princípios. Negociação. Conciliação.

Abstrac: The effects of the extraordinary appeal decision 895.789

are great when it comes to interpretation of labor rights and its related

principles, allowing a greater range of individual and collective negotiations

and thus honoring the conciliation under the Labour Court.

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Key word: Extraordinary Appeal 895,789. Interpretation. Principles.

Negotiation. Conciliation.

Sumário: Introdução. 1.Evolução do Direito Trabalhista. 2. Recurso

Extraordinário 895.789 e seus reflexos. 3. Disponibilidade das Horas Extras

em uma negociação trabalhista. 4. Ampliação de parâmetros conciliatórios

na Justiça do Trabalho. Conclusão. Referências.

1. INTRODUÇÃO

A Constituição Federal ao dispor, de forma ampla, no artigo 7º

sobre direitos sociais e trabalhistas, influenciou o entendimento de

indisponibilidade/irrenunciabilidade dos mesmos, assim, “o processo do

trabalho teria uma função finalística: a busca efetiva do cumprimento dos

direitos indisponíveis dos trabalhadores” [1].

Difícil trazer a tona quais são os direitos trabalhistas indisponíveis,

se todos ou alguns. E, em face de tamanha tarefa árdua, bem como apoiados

na vulnerabilidade do trabalhador e na interpretação dos princípios

específicos do Direito do Trabalho em prol da classe operária, O Judiciário

não se mostrava favorável a composições extrajudiciais que interferissem

nos referidos direitos subjetivos e, até mesmo, limitavam os termos de um

acordo judicial.

Seja em âmbito individual ou coletivo, os Tribunais Pátrios,

acabavam por restringir as hipóteses daquilo que poderia ser negociado,

estagnando as negociações entre empregador e empregados.

Ressalta-se que a própria Constituição Federal, prevê o

reconhecimento das convenções e acordos coletivos, conferindo aos

Sindicatos representativos da categoria, autonomia de negociação, o que

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não elevava tal possibilidade à supressão de alguns direitos.

2. EVOLUÇÃO DO DIREITO TRABALHISTA

São tempos de crises econômicas em que se percebe maior

necessidade de se discutir tais questões, mas, na verdade e na mesma

toada de qualquer ramo do direito, a evolução social e cultural provocam,

a seu tempo e modo, mudanças advindas do pensamento e comportamento

humano, como ocorreu quando da entrada da mulher no mercado de

trabalho, a evolução tecnológica, a globalização e o trabalho informal,

como causas de tal reflexão.

Assim, desde 1943, ano de vigência da CLT ou mesmo desde a

Constituinte de 1988 as relações trabalhistas evoluíram, bem como as

relações humanas.

A autonomia da vontade, a boa fé objetiva e subjetiva, função social

do contrato, além dos princípios da ordem econômica e os valores sociais

do trabalho e da livre iniciativa, devendo ser sopesados ante a ingerência

Estatal na vida privada e individual do cidadão, o qual é o único que sabe o

que lhe é digno e satisfatório.

Atualmente, o sistema judiciário recebe críticas e se afoga em

preceitos retrógrados que vêem na lide e no Estado Juiz saídas para a

solução de conflitos.

Os meios alternativos de solução de conflito são saídas interessantes

para desafogar o judiciário e construir uma sociedade solidária, mas se

faz imprescindível que a interpretação dos princípios seja revista pelos

aplicadores do direito para acompanhar a evolução e os anseios modernos

e atuais.

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3. RECURSO EXTRAORDINÁRIO 895.789 E SEUS REFLEXOS

Recentemente, os princípios da proteção ao empregado e da

irrenunciabilidade a direitos foram reinterpretados por meio da decisão

monocrática do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascki que

determinou que, um acordo coletivo firmado entre sindicato e empresa

prevaleça sobre uma regra da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Para o Ministro, a decisão do TST, que declarou nula cláusula de

extinção de horas in itinere, ainda que houvessem outras benesses aos

empregados, contraria jurisprudência do STF que, segundo ele, “conferiu

especial relevância ao princípio da autonomia da vontade no âmbito do

direito coletivo do trabalho”.

A decisão do Ministro do STF pode ser entendida em diversas

vertentes, vez que se pode concluir que os Sindicatos são competentes e

possuem margem maior de negociação do que até então fixada pelo TST,

podendo tratar de abolição de alguns direitos trabalhistas desde que criadas

outras cláusulas favoráveis ao empregado, aplicando claramente a teoria

do conglobamento.

Ademais, importa aqui refletir que, sendo as horas in itinere espécie

do gênero horas extras, poderiam as negociações coletivas abranger tal

direito nas suas mais variadas naturezas, levando a conclusão de se tratar

de direito disponível.

4. DISPONIBILIDADE DAS HORAS EXTRAS EM UMA NEGOCIAÇÃO

TRABALHISTA

Neste sentido, seriam apenas os limites constitucionais expressos

no artigo 7º, XIII a XVI, que seriam indisponíveis.

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Nesta quadra, as horas extras passam a ser passíveis de negociação,

não só em âmbito coletivo, mas até mesmo em caráter individual, sem que

houvesse rejeição à homologação pelo magistrado pelo argumento de se

tratar de direito indisponível ou verba de caráter alimentício.

Repisa-se que seriam indisponíveis e inegociáveis apenas os direitos

constitucionais expressos em todo o artigo 7º e não toda e qualquer norma

trabalhista, que, por sua vez, perderia o caráter absoluto, de norma de

ordem pública imperativa, para se aproximar do regramento civil.

Desta feita, exalta-se a autonomia da vontade, a boa-fé e a função

social do contrato, citados anteriormente, assumindo destaque na atual

interpretação do Direito do Trabalho e sobre novo enfoque, mais solidário

e equilibrado entre os dois lados da relação empregatícia.

5. AMPLIAÇÃO DE PARÂMETROS CONCILIATÓRIOS NA JUSTIÇA DO

TRABALHO

A decisão do Ministro Teori Zavascki é tão importante que pode

mexer profundamente com a interpretação dos direitos trabalhistas e sua

aplicação pelo Judiciário, que terá que abdicar da visão marxista, capital

x trabalho, para um conceito de parceria e cooperação entre empregado

e empregador, onde repousa o equilíbrio socioeconômico e a análise

hermenêutica do Direito Econômico do Trabalho.

Neste diapasão, a resolução 174/2016 do CSJT, determinou que os

Tribunais Regionais criem Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais

de Solução de Disputas – NUPEMEC-JT, assim como instituam Centros

Judiciários de Métodos Consensuais de Solução de Disputas – CEJUSC-JT,

visando à pacificação social por meio da conciliação judicial.

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A regulamentação da conciliação no âmbito da Justiça do

Trabalho imporá novos posicionamentos aos juristas, principalmente aos

magistrados, que deverão agir observando, inclusive os precedentes por

eles criados e sua repercussão social e econômica.

A negociação e conciliação individual também deverão ser

repensadas sob a ótica acima exposta, sob pena de se obstaculizar o

propósito da resolução 174/2016 do CSJT, não podendo o magistrado impedir

a manifestação da vontade a uma composição judicial, sob o argumento da

hipossuficiencia do empregado.

A decisão do STF corrobora a iniciativa do CSJT, possibilitando ao

magistrado ampliar a possibilidade de negociação e efetivar a conciliação

sem receio de ferir algum direito subjetivo indisponível, podendo justificar

sua decisão por meio de precedentes judiciais, na forma exposta pelo

NCPC/2015.

Ressalta-se que o precedente judicial oriundo do RE 895.759 pode

ser afastado pelo juiz, desde que utilize métodos para tanto, como overuling

ou distinguishing.

De qualquer forma, a retomada do poder pelos Sindicatos faz

ressurgir a reflexão sobre a ratificação da convenção 87 da Organização

Mundial do Trabalho que versa sobre a liberdade sindical.

6. CONCLUSÃO

Por fim, criticando a posição supracitada de Carlos Henrique Bezerra,

o processo do trabalho, assim como qualquer outro processo, não é fim e

sim meio, instrumento ou método de se buscar a jurisdição, exigindo um

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papel mais ativo do órgão jurisdicional na criação do Direito, expandindo

e consagrando os direitos fundamentais que impõem um conteúdo ético

mínimo, que respeite a dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIAS

ALBINO DE SOUZA,Washigton Peluso. Conferência realizada em 07 de

dezembro de 1995, no TRT da 3ª Região, disponível em: http://as1.trt3.

jus.br/bd-trt3/bitstream/handle/11103/3937/washington_peluso_direito_

economico_do_trabalho.pdf?sequence=1

ALBINO DE SOUZA, Washington Peluso. Primeiras linhas de Direito

econômico. Editora São Paulo: LTr, 1999.

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito processual do trabalho. 8.

ed. São Paulo: LTr, 2010

SARMENTO, Daniel. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais

no direito comparado e no Brasil. Salvador: Editora Jus Podivm.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 8. ed. São

Paulo: LTr, 2009.

DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 9. ed. Bahia: JusPodivm,

2008.

TRABALHO, Academia Brasileira de Direito do. A valorização do trabalho

autônomo e a livre-iniciativa / Coordenação de Yone Frediani. Porto Alegre:

Magister, 2015.

tst.jus.br Tribunal Superior do Trabalho

trt3.jus.br Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região

stf.jus.br Superior Tribunal Federal

cnj.jus.br Conselho Nacional de Justiça

csjt.jus.br Conselho Superior da Justiça do Trabalho

[1] LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito processual do trabalho.

8. ed. São Paulo: LTr, 2010. P.84

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POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA – UM ESTUDO REFLEXIVO SOBRE A PERMANÊNCIA DE VIVER SEM SER VISTO PELO ESTADO

Ramani Rodrigues de Araújo Sampaio - Formanda em Direito da Faculdade Ruy Brabosa Devry Brasil. Autora.

Ana Maria Seixas Pamponet - Doutora em Direitos Humanos e Desenvolvimento (UPO- ES)/ UFPB. Mestre em Administração. Pedagoga - Professora de Direito da Faculdade Ruy Barbosa e Unifacs. Pesquisadora da UCSAL e FCT- PT. E-mail: [email protected].

Resumo: O artigo teve como objetivo discutir a ausência do Estado

quanto aos moradores em situação de rua, apresentando os múltiplos

aspectos que o levaram a tal opção e os impactos no afastamento das famílias.

O direito a moradia como direito fundamental, assegurado na Constituição

Federal não chega às populações excluídas da sociedade, impossibilitando

o fortalecimento de uma conjuntura social, política, jurídica e econômica

que possibilite a saída da extrema pobreza garantindo a segurança, a

defesa física e a proteção à sua existência, que poderia ser favorecida pela

fixação de uma residência como referência ao princípio da cidadania.

A dignidade da pessoa humana, é um valor supremo, não podendo ser

resguardado nessa situação como direito, já que na rua a obscuridade, a

sujeira, insegurança e incerteza fazem parte do cotidiano dessa população.

Assim, sem o Estado, as possibilidades de transformação dos moradores em

situação de rua dificilmente se modificarão, demonstrando que a cidadania

é uma condição que não se pode tirar do ser humano, mas não poderá ser

construída e resguardada que não seja pela via do poder público em oferecer

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um mínimo para garantir a dignidade da pessoa humana. A reflexão é: que

pertencimento como ser humano digno essa população tem para o Estado-

nação?

Palavras-chave: Estado. Direitos Fundamentais. Dignidade Humana.

Cidadania.

This article has as achievement to discuss the absence of attention

of the State to the roofless people, presenting several aspects that have

made them come with this position and the impacts it brings to these

people that live away from their families. The right for a place to live in as

a fundamental right, presented on the Federal Constitution, is not reaching

those who are excluded from the society, making it difficult to bring them

a social, political, juridical and economic juncture which would help them

to have a better life with security, physical defense and protection for their

existence, and it could benefit them, If they had a permanent place to stay

such as a reference for the principle of citizenship. The dignity of a human

being is an important value, it may not be protected considering this present

situation, living on street in the obscurity, dirty, lake of safety and the

uncertainty being part of the quotidian of this population.There by, without

the State, there would hardly be possibilities of change for those people`s

lives, it demonstrates that citizenship is a condition that could not be taken

away from a human being, but won’t be able to be built or protected, as it

supposed to be, if it isn’t through the State authority in offering, at least, the

minimum to guarantee the dignity of people.

The reflexion is: what sense belonging, as dignified human beings,

is this population for the nation – state?

Keywoords: State. Fundamentals right. Human dignity. Citizenship

1. INTRODUÇÃO

Em meio a uma sociedade pautada pela desigualdade e injustiça

social e diante da significativa valorização do capital em detrimento do

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respeito aos Direitos não alienáveis do homem, a população em situação de

rua muitas vezes é classificada como uma das mais tocantes manifestações

do conjunto social, haja vista ,sua posição de total vulnerabilidade e

instabilidade social, sofrendo corriqueiramente práticas de agressividade

e violência que denotam a indiferença que está vigente na sociedade

brasileira nos dias contemporâneos.

A finalidade do artigo, consiste em discutir a situação da população

em situação de rua, sendo esses, considerados como parcela excluída

e discriminada da sociedade e, os reais motivos que os levaram a viver

nessa conjuntura de pobreza, revelando como a moradia é uma questão

fundamental para a vida de qualquer pessoa, sendo considerados invisíveis

perante a sociedade e ao Estado, que não oferecem a esses indivíduos a

devida proteção e garantia de seus direitos, tornando as políticas públicas

precárias e insuficientes em meio a tamanha desigualdade.

O tema escolhido é de interesse social, demonstrando a negligência

da sociedade e do Estado em face da população em situação de rua, que

além de viverem em uma posição precária ainda padecem de preconceito

e extrema agressão.

O Estado materializando a moradia para indispensavelmente todos,

estaria realizando o direito à moradia e consequentemente solidariedade,

fato esse, que não ocorre como política pública.

A população em situação de rua é uma manifestação globalizada

e são cidadãos de ambos os sexos, de diferentes idades, solteiros, casados,

sobrevivendo sozinhos, com amigos ou com familiares vindos de diversas

regiões do país.

Percebe-se que, essa população não é reconhecida como sujeitos

de direitos e valores e residem como seres invisíveis, ainda que deva

ser classificada como sujeitos detentores desses direitos e deveres como

qualquer outra pessoa. Esses indivíduos vivem fora da conjuntura social

e a pobreza e escassez são dois elementos que mais impulsionam para a

instabilidade social.

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A própria natureza esclarece a indispensabilidade de um lar para

o ser humano, pois é de certo que nenhuma criatura vive sem um lugar de

referência. O sujeito que tem sua casa, tem sua individualidade conservada

e por consequência tem mais condições de efetuar um papel digno e

meritório na sociedade.

É de essencial importância um lar para a concretização dos direitos,

pois o mesmo traz ao indivíduo acesso a saneamento, higiene pessoal e

endereço, sendo a moradia uma consolidação dos direitos sociais.

Nesse sentido, temos a habitação como mecanismo fundamental

para a realização da cidadania, e a prestação do direito à moradia propicia

ao ser humano o gozo de uma vida de respeito e desenvolvimento, em

que essa diretriz está intrinsecamente conexa com os demais direitos

fundamentais e particularmente com o princípio da dignidade da pessoa

humana.

A temática a ser delineada, tem por suporte o caráter humano do

direito à moradia partindo da premissa de que, nenhum ser humano pode

desfrutar de uma vida plena sem o seu repleto gozo.

A falta de um teto eleva os riscos de saúde desse grupo, que se

torna um desafio para as políticas públicas, uma vez que as condições de

vulnerabilidade vivenciadas pelas pessoas que vivem nas ruas, vinculadas

às questões psicossociais, acarretam sofrimentos e prejuízos físicos e

emocionais.

Dessa forma discutir a dignidade da pessoa humana e o direito a

moradia, torna-se fundamental para consolidar os questionamentos de

uma sociedade contemporânea que não vê juntamente com o Estado a

situação precária e excludente dessa população.

2. A PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA

Esse grupo se apresenta com certa heterogeneidade e realidades

variadas, porém, com a característica da pobreza como ponto marcante

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na sua existência. Os vínculos familiares geralmente foram desfeitos e a

ausência de uma residência fixa promove um maior distanciamento dele

com a sociedade e a família.

É na rua que consegue seu sustento, com temporalidade definida ou

não e essa realidade demonstra uma total ausência do Estado e expõe de

forma clara os aspectos da exclusão social e a inadequação dessas pessoas

à realidade econômica, já que possuem pouca escolaridade ou qualificação

profissional.

Para Pamponet (2010, p 26): o que se constata é que sem a superação

do capitalismo, a economia e a sociedade não chegarão a se afirmar e se

consolidar, principalmente nas sociedades ditas “periféricas”, constatando-

se assim, que os moradores em situação de rua apresentam poucas chances

de mudança social vivendo nessa realidade.

Francisco (2016, s.p.) faz uma análise dos dados estatísticos em

relação a população em situação de rua no Brasil:

Os municípios brasileiros que possuem mais moradores em situação

de rua são: Rio de Janeiro (4.585), Salvador (3.289), Curitiba (2.776), Brasília

(1.734), Fortaleza (1.701), São José dos Campos (1.633), Campinas (1.027),

Santos (713), Nova Iguaçu (649), Juiz de Fora (607) e Goiânia (563). Entre

a população em referência predominam as pessoas do sexo masculino

(82%), com idade entre 25 e 44 anos (53%) e que nunca estudaram ou não

concluíram o ensino fundamental (63,5%). Em relação à cor, 39,1% são

pardos, 27,9% negros, 29,5% brancos, 1,3% indígenas, 1% amarelo oriental

e 1,2% de cor não identificada.

Para Santos (2009, p. 46) moradores de rua são seres humanos

que vivem afastados da conjuntura social, são vidas sem direito à saúde,

sem direito a médicos, sem remédios e sem direito à moradia, sendo sua

casa a rua. Não contam com saneamento básico, higiene, alimentação, e

consomem qualquer tipo de alimentos, provenientes dos lixões. São pessoas

sem acesso à educação, ao emprego, em sua maioria não tem instrução nem

qualificação, lhes faltando oportunidades. Carecem de segurança, lazer e as

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drogas lhes debilitam e fazem parte do seu cotidiano.

As precárias condições prévias à moradia nas ruas, são maiores do

que se podem prever, tendo em vista um dos problemas sociais que é a

pobreza, fazendo com que as pessoas busquem nas ruas uma saída, um

refúgio para a situação deplorável em que elas vivem.

O corpo do morador de rua além de seu território de circulação,

representa juntamente com seus poucos pertences, sacolas e objetos, seu

território existencial, a marca de sua expressão.

Afirma Vicente (1995, p.25) que:

o mau cheiro de quem não toma banho na situação de

rua é uma estratégia de sobrevivência, é uma couraça

protetora do corpo. (…) o mau cheiro lhes é útil, pois

funciona como defesa e como proteção, afastando as

pessoas. (…) O corpo é o último território que sobrou

para aquela pessoa; ela perdeu, do ponto de vista do

tempo, o passado, porque perdeu o direito de ter uma

raiz, de ter um lugar no mundo. Ela vai perambular de

cidade em cidade ou dentro da mesma cidade por vários

locais e vai perdendo essa coisa fundamental, o direito

de ter memória, de pertencer a uma comunidade.

Normalmente, o que ocorre com o morador de rua é a total

inexistência de um território de proteção, já que a casa é o lugar no

mundo, o primeiro universo, o aconchego e proteção, desde o nascimento

do homem. Sua terra é improvisada à beira da calçada ou sob viadutos e

marquises, demonstrando que as instalações são amplamente precárias,

falta-lhe infraestrutura, redes de esgotamento sanitário, em que os dejetos

se misturam às atividades cotidianas, ocasionando o adoecimento.

Para Santos (2009, p. 25):

viver nas ruas implica em obstáculos cotidianos como

solidão, dificuldades de manutenção da higiene e

falta de privacidade. O indivíduo necessita criar uma

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nova sociabilidade, com estratégias de sobrevivência.

Conversar, tomar banho, usar roupas, comer, dormir

passa a depender de uma rede de sobrevivência a ser

criada. Descobrir locais e horários de distribuição de

comida, onde tem um cano estourado, uma fonte para a

higiene pessoal, qual o melhor bairro para passar o dia

e qual o melhor para dormir, enfim, um aprendizado

que leva tempo.

Há quem pense que as pessoas que vivem nas ruas, vivem cem por

cento do seu tempo sem fazer nada, mas não, muitos indivíduos exercem

atividades, para que o mínimo seja suprido. Muitos são catadores de

materiais recicláveis, são flanelinhas e outros trabalhadores da construção

civil, etc.

Nas ruas os moradores ficam muito expostos e são incessantemente

escravos de violência por parte de outros moradores de rua, por razões

pessoais ou por disputas territoriais.

Para Santos (2009, p. 24):

a mentira é um tanto quanto frequente na vida dos

moradores de rua, que por estarem distanciados

das pessoas que os conhecem e por não conviverem

com as pessoas por muito tempo, podem mentir sem

ninguém para desmentir, em troca de favores, piedade,

misericórdia, simpatia e até mesmo como mecanismo

de defesa e proteção.

É notório que cada caso é um caso único e são inúmeros os fatores

que levam as pessoas a saírem de casa e procurarem as ruas, estando as

causas geralmente interligadas, apresentando motivos de ordem econômica,

afetiva e comunitária”.

Para Escorel (1999, p. 103) “o afastamento da família, elemento

fundamental de apoio material, de solidariedades e de referência no

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cotidiano, permite uma primeira e basilar configuração da população

de rua: é um grupo social que apresenta vulnerabilidade nos vínculos

familiares e comunitários”.

Para compreensão de Santos (2009,p.28) “relacionamentos

familiares são fortes desencadeadores para a situação de rua, no entanto,

os desentendimentos sempre se apresentam difundidos entre violência

doméstica, abusos, desemprego, perda da habitação, álcool e drogas,

problemas psiquiátricos, divórcio, adultério, expulsão de casa, entre

outros”. Esses determinantes sociais impulsionam o desentendimento

familiar, deixando para alguns indivíduos a rua como única alternativa.

Antonelli (2012, s.p.) alega que:

o senso comum aponta as drogas como um fator

preponderante para que parte da população decida

viver na rua, mas os especialistas afirmam que o vício

é consequên cia e não causa, já que as drogas são uma

estratégia de sobrevivência para quem está na rua.

É uma forma de tentar fugir da realidade em que se

encontram, anestesiando a amargura, o frio, a falta de

esperança e a indignidade.

Apesar de serem considerados como um grupo homogêneo, os

indivíduos em situação de rua são pessoas de realidades variadas. Até

mesmo a pobreza que, habitualmente é vinculada ao grupo, não está

vigente em todos os casos.

3. O PAPEL DO ESTADO NA CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS

Os Direitos Fundamentais, são reconhecidos universalmente por

meio de tratados, pactos e declarações tanto nacionais quanto internacionais,

com o objetivo de não ir de encontro as previsões constitucionais e garantir

que esses direitos sejam abarcados a todos os indivíduos. Esses Direitos

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encontram-se em todas as organizações tanto sociais, quanto políticas, e

não poderão ser limitados por nenhuma instituição governamental.

“No âmbito da assim denominada dimensão negativa

ou daquilo que também tem sido chamado de uma

função defensiva dos direitos fundamentais, verifica-

se que a moradia, como bem jurídico fundamental,

encontra-se, em princípio, protegida contra toda e

qualquer sorte de ingerências indevidas. O Estado,

assim como os particulares, tem o dever jurídico de

respeitar e de não afetar a moradia das pessoas, de tal

sorte que toda e qualquer moradia que corresponda

a uma violação do direito a moradia passível, em

princípio, de ser impugnada em juízo, seja na esfera do

controle difuso e incidental, seja no meio do controle

abstrato e concentrado de constitucionalidade, ou

mesmo por intermédio de instrumentos processuais

específicos disponibilizados pela ordem jurídica. É

também precisamente está a dimensão- a função

defensiva do direito a moradia – a que se referem as

diretrizes internacionais acima mencionadas, quando

utilizam os termos “respeitar” e “proteger”, embora a

proteção também envolva ações concretas (normativas

e fáticas) de tutela da moradia contra ingerências

oriundas do Estado ou de particulares, tudo a reforçar

íntima conexão entre a dimensão negativa e positiva

dos direitos fundamentais”. (SARLET, 2008, p.53)

Os direitos são elaborados em um enredo célebre, em momentos

importantes do contexto histórico da nossa sociedade, e quando são dispostos

na Constituição, se tornam Direitos Fundamentais. Eles não caducam, não

se desfazem no tempo, sendo infindáveis e perduráveis e dirigidos a todos as

criaturas humanas, independente de raça, religião, cor, credo, estereótipo,

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nacionalidade e posicionamento político. Não são violáveis, não podendo

ser desacatados, em momento nenhum, por nenhum individuo, nenhuma

autoridade ou lei infraconstitucional. O poder público deve administrar

para que esses direitos sejam executados a todos, sob pena de sansão.

Para Francisco (2016) “a ausência do Estado ao longo dos anos,

em relação a população em situação de rua, fez com que cada vez mais

existissem organizações, instituições religiosas e até mesmo um grupo

independente de indivíduos que realizam ações sociais, para que assim

atuassem, fortemente no intuito de suprir de alguma forma, mesmo que

mínima, as suas necessidades básicas. Sendo assim, quanto mais esses

Direitos Fundamentais são negados pelo Estado a essa parcela mínima

da sociedade, mais existirão indivíduos que vivem nas ruas, pois uma vez

estando nessa condição é quase impossível que seja revertida se não houver

a intervenção do Estado.

A falta de interesse do governo com essa fração, fez com que

influenciasse na conduta da sociedade para com os mesmos, fazendo com

que sejam tratados com piedade, desprezo, violência, repressão, estupidez

e muita agressividade, permitindo que a sociedade se torne cada vez mais

desigual, por causa da omissão do Estado.

Para Souza (2004, p. 65) “o dever do Estado em garantir os direitos

fundamentais, não é apenas para os menos necessitados, e sim, para toda a

população pertencente a nação, pois é necessário igualdade e oportunidade

para todos”. O que aqui faz-se necessário demonstrar é que essa parcela

que vive permanentemente nas ruas, não tem recursos próprios para que

possam efetivar o seu sustendo, como muitos cidadãos de outros níveis

sociais conseguem.

Os Direitos fundamentais que o Estado deveria promover, mas não

o faz, são direitos do homem, sagrado, atemporal, intocável e global.

Assegura Souza (2004, p.65), “que todos os direitos fundamentais são

necessários para uma vida digna do indivíduo, até porque o mesmo pode

ter uma habitação, mas se não tiver educação isso dificultará conseguir um

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emprego que possa se sustentar e sustentar sua família, ficando o mesmo

à mercê da perda dessa moradia. Esses direitos estão intimamente ligados,

e apenas um direito fundamental garantido (no caso a moradia), não é

suficiente.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, diz em

seu artigo 3°, III, como objetivo da Pátria, a extirpação da pobreza, bem

como a diminuição da desproporção e desigualdade social, e a redução da

marginalização presente no nosso país, sendo total dever do Estado garantir

o que assegura a nossa Constituição. Por que não o faz, a população em

situação de rua está cada vez maior na cidade de Salvador. ( BRASIL,1988)

Para que uma sociedade seja livre, justa e igualitária, é necessário

que o Estado cumpra com o seu poder-dever, pois ele existe para consagrar,

proteger e acima de tudo defender o ser humano, proporcionando uma

conjuntura social, política, jurídica e econômica, que faça com que o mesmo

possa atingir as suas finalidades com a mais extensa defesa e proteção,

Preceitua Gonçalves (2015, p. 10):

A complexidade para o Estado desenvolver e aplicar

a política pública habitacional aumenta com o passar

dos tempos, pois para efetivar o direito à moradia

aos cidadãos é preciso um grande trabalho, tanto

do Estado quanto da sociedade, no intuito de, no

mínimo, diminuir as desigualdades sociais criadas

pela política de urbanização. Vez que, o Estado,

juntamente com os Municípios não podem eximir-se

de suas responsabilidades constitucionais, já que a

Constituição, delegou aos Municípios a competência de

criar diretrizes para a implementação de programas

para construções de moradias.

Entendemos, que na atualidade, mais do que em qualquer outra

época, essa problemática da falta de moradia para quem necessita vem

assolando de forma acelerada a sociedade, buscando-se constantemente o

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reconhecimento desses Direitos Fundamentais, que por motivos diversos,

ou até mesmo desconhecidos, não são protegidos e tutelados pelo Estado

Democrático de Direito.

Gonçalves (2015, p.2) afirma que um real planejamento do Estado

e políticas públicas eficazes seria o meio mais viável e capaz, para que

todos os Direitos Fundamentais fossem garantidos para os residentes desta

nação, sem exceção.

4. DIREITO À MORADIA

O direito à moradia apropriada e adequada foi assegurada como um

direito humano, em 1948, na Declaração Universal dos Direitos Humanos,

e logo mais foi convencionada em diversos tratados, sendo cabível a todo

ser humano em qualquer lugar que esse esteja caracterizando direito

fundamental para a vida de qualquer pessoa.

Para Souza (2004, p. 61):

A moradia adequada abarca muito mais do que uma

casa para regressar, ela integra um modelo de vida

adequada, não se limitando apenas a um teto e quatro

paredes, mas sim o direito que todos os homens, todas

as mulheres, todos os jovens, todos os idosos, todas as

crianças e todos os indivíduos sem exceção, tenham

acesso a um lar, com o mínimo de dignidade e paz.

Souza (2004, p.61) certifica que o direito à moradia é um dos direitos

mais importantes, pois morar é tão fundamental quando se vestir, comer,

respirar e se locomover, sendo um Direito conquistado com muita luta, por

muitos e muitos anos. Está assegurado no art. 6° da Constituição da República

Federativa do nosso país, de 1988: “são direitos sociais a educação, a saúde,

o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção

à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta

Constituição”. (Brasil, 1988).

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Para Piovesan (1997, p. 161) o Direito à moradia adequada é um

modo de se tutelar os direitos econômicos e sociais, sendo a privacidade o

direito de reservar a própria vida particular e privada.

Afirma Trombini (2016) que os componentes da moradia adequada

devem englobar vários aspectos, são eles: habitar em uma localidade estável,

que não traga perigo de transferência ou retirada indevida do cidadão

daquele local; ter acesso livre e direto a bens públicos, como saneamento

básico, coleta de lixo e etc.; obtenção a um meio ambiente estabilizado;

habitar em um local conciliável com as condições financeiras da família;

local que seja minimamente habitável no sentido de não trazer riscos da

chuva, sol e outro fenômenos naturais; e por fim, um dos componentes

para a moradia adequada é que ela seja em um local que as pessoas tenham

acesso a transporte público, saúde e escolas.

É de certo que, existe no Brasil, inúmeros indivíduos que pairam pelas

ruas, residindo embaixo de marquises, viadutos, calçadas, se apropriando

de áreas consideráveis inabitável, porém com a falta de escolha, fazem

desses locais, os seus lares e estabelecem as suas moradias.

Gonçalves afirma (2015, p. 9):

Como se vê, ao lado da alimentação, trabalho, saúde,

dentre outros direitos, a habitação figura no rol das

necessidades mais básicas do ser humano. Para cada

indivíduo desenvolver suas capacidades e até se

integrar socialmente, é fundamental possuir morada,

já que trata-se de questão relacionada a própria

sobrevivência, pois dificilmente alguém conseguiria

viver por muito tempo exposto, a todo momento, aos

fenômenos naturais, sem qualquer abrigo.

Sendo assim, a população em situação de rua não está isenta de

riscos, pois na rua eles não estão protegidos de ameaças do vento, da chuva,

do sol e de outros fenômenos climáticos e agentes da natureza, que uma

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residência lhe proporcionaria, trazendo assim total risco a saúde dessas

pessoas. São negados aos mesmos instrumentos básicos de sustentação

física e moral, que lhe é indispensável a todas as diversas fases da vida.

Para Gonçalves (2015, p.2) o “Estado tem como compromisso

implantar políticas públicas eficientes, com uma grande disposição

financeira e realizar ações sólidas totalmente focada a retirada da população

em situação de rua, das ruas”, bem como, não deixar que moradores vivam

em situação de risco e combater à erradicação de favelas, para que cada

vez mais sejam eliminadas. De forma direta e/ou indireta todos devem ter

ingresso a uma moradia digna e adequada.

Já que o Estado não oferece a moradia adequada, no seu conceito

fundamentado, faz-se imprescindível a edificação e distribuição de casas

populares, que sejam construídas e entregues de forma menos oficial e

burocrática, afinal a moradia também é garantia de honra e dignidade para

o cidadão, se não for a maior delas.

A questão da habitação é central por que dela depende várias outras.

Não se tem acesso a saúde ou trabalho sem que se tenha para onde retornar

no fim do dia.

5. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o

conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à

vida.

Para Plácido e Silva (1967, p. 526):

dignidade é a palavra derivada do latim dignitas

(virtude, honra, consideração), em regra se entende a

qualidade moral, que, possuída por uma pessoa serve

de base ao próprio respeito em que é tida: compreende-

se também como o próprio procedimento da pessoa

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pelo qual se faz merecedor do conceito público; em

sentido jurídico, também se estende como a dignidade

a distinção ou a honraria conferida a uma pessoa,

consistente em cargo ou título de alta graduação; no

Direito Canônico, indica-se o benefício ou prerrogativa

de um cargo eclesiástico.

Diante o exposto acima, podemos dizer que a dignidade da pessoa

humana é uma atribuição espiritual e moral pertinente a pessoa, ou seja,

a todo o ser humano é atribuído esse preceito, estabelecendo-se como

princípio maior do Estado Democrático de Direito.

Desta maneira determina Sarlet (2007, p.62) ao conceitualizar a

dignidade da pessoa humana:

[…] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade

intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz

merecedor do mesmo respeito e consideração por parte

do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido,

um complexo de direitos e deveres fundamentais que

asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato

de cunho degradante e desumano, como venham a

lhe garantir as condições existenciais mínimas para

uma vida saudável, além de propiciar e promover

sua participação ativa e corresponsável nos destinos

da própria existência e da vida em comunhão com os

demais seres humanos.

Entende-se que a rua não oferece dignidade a nenhuma pessoa, para

que dali se faça a sua morada, pois não supre nenhuma das necessidades

básicas do cidadão. Os homens que ali vivem se sentem cada vez mais não

possuidores de respeitabilidade, honra, decência e a própria dignidade.

“Com efeito, sem um lugar adequado para proteger

a si próprio e a sua família contra intempéries, sem

um lugar para gozar de sua intimidade e privacidade,

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enfim, de um espaço essencial para viver com um

mínimo de saúde e bem-estar, certamente a pessoa não

terá assegurada a sua dignidade, aliás, a depender das

circunstancias, por vezes não terá sequer assegurado

o direito a própria existência física, e, portanto, o seu

direito a vida. Não é por outra razão que o direito à

moradia, também entre nós – e de modo incensurável

– tem sido incluído até mesmo no elenco dos assim

designados direitos de subsistência, como expressão

mínima do próprio direito a vida (SARLET, 2008, p.45).

O preconceito da população para com as pessoas em situação de

rua, é um dos aspectos fundamentais para que os mesmos não se sintam

com a valoração que merecem, assim como qualquer outra pessoa, pois

em tempo algum e por motivo nenhum o homem esteve desassociado da

sua dignidade. Uma morada para qualquer ser humano resgata de fato

a dignidade humana, que é muito pouco respeitada, para quem não é

proprietário de um lar.

Além de todos os aspectos que o fizeram estar nas ruas e além de

todo sofrimento por não terem um lar para habitar, o aspecto psicológico

das pessoas em situação de rua é também um fator fundamental que os

fazem não se sentirem donos de dignidade. Muitos seres os veem não como

pessoas e sim como números e a tendência, por conta da omissão do Estado

para com essas pessoas, é que evolua cada vez mais.

Para Francisco (2016, s.p.) a sociedade estende a essas pessoas em

situação de rua estereótipos e marcas depreciativas, que os fazem sentir

vergonha de si mesmos e consequentemente negando para si todos os

atributos pejorativos existentes. Ou seja, uma residência, por menor

que seja, os devolve a dignidade que, resgata a esperança da luta pela

sobrevivência.

Pessoas que vivem nas ruas, sejam elas homens, mulheres,

crianças, adolescentes, e/ou idosos, mantem-se na obscuridade, na sujeira,

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na incerteza, na falta de assepsia e além de tudo isso, na total indignidade.

São muito poucas as pessoas que consegue algum tipo de emprego, afinal,

sem o mínimo de dignidade, nenhum indivíduo e nenhuma empresa irá

contrata-los para qualquer que seja o emprego.

6. CIDADANIA

O Direito à cidade estende a habitual perspectiva sobre a melhoria

da qualidade e da capacidade de vida das pessoas, centralizado na moradia

e no bairro, envolvendo também a qualidade de vida dos seus arredores

rurais, como uma forma de proteger essas pessoas que na cidade vivem. A

cidade deve ser um ambiente de produção e realização de todos os direitos

do homem, todas as liberdades fundamentais e todos os direitos humanos.

A cidade deverá assegurar a todos os habitantes, a sua dignidade,

integridade, respeito, bem-estar tanto individual, quanto coletivo, de todos

os seres, em total estado de equilíbrio e igualdade, sendo assim, todo o

indivíduo tem o direito de ter uma cidade sem diferenciação de qualquer

tipo de gênero, sem discriminação de raça, sexo, cor e opção religiosa.

Entendemos que a cidadania pode ser conceituada como condição

do cidadão, que está no pleno exercício dos seus deveres e direitos, que

estão intimamente relacionados e a efetivação destes auxiliam em uma

sociedade estabilizada e igualitária.

Dallari (1998, p. 14) conceitua:

a cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à

pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida

e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está

marginalizado ou excluído da vida social e da tomada

de decisões, ficando numa posição de inferioridade

dentro do grupo social.

Entende que cidadania se constitui no enquadramento do indivíduo,

no sentido de pertencer a sociedade estatal, como possuidor dos direitos

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fundamentais, da honra como ser humano, da agregação participativa, com

a consciência que abraça compromissos e respeito à dignidade da outra

pessoa, afim de auxiliar para o progresso e evolução da totalidade.

Para Piovesan (1999, s.p.) em um Estado Democrático de Direito é

preciso que todos os direitos e deveres presente na Constituição da nossa

República, sejam tutelados, para todos, sem distinção, porque todo nós

somos iguais em direito, e a cidadania é uma condição pertencente do

cidadão que ninguém pode tirar. O que se questiona aqui, não é a falta

de cidadania que esse cidadão tem para com a sua cidade, e sim a falta de

pertencimento a um Estado-nação.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao término desse trabalho, demonstra-se que os direitos

fundamentais são tão essenciais quanto às liberdades individuais, pois,

a perfeita concretização de um está absolutamente associada com a

realização e efetivação do outro. Entende-se que o direito à moradia,

assegurado constitucionalmente dentre os direitos fundamentais, vai

muito além da esfera secundária que lhe é facultada, à mercê do interesse

de quem é responsável por sua aplicação. Este é direito indispensável

para que o indivíduo desfrute de forma plena do princípio da dignidade

humana, na proporção em que a ausência de um mínimo existencial

impossibilite o usufruto de uma vida digna. Sua indispensabilidade consiste

na inevitabilidade que os outros tantos direitos têm em relação à sua

existência, pois, a sua prestação engloba direitos como a vida, a segurança,

educação, transporte, trabalho, meio ambiente, saúde, desenvolvimento,

lazer e dentre diversos outros.

Os direitos fundamentais são sancionados com o propósito de

amparar a dignidade da pessoa humana, sendo estes responsáveis por

desempenhar aspetos específicos da dignidade que agem diante esses

direitos como valor unificante.

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O Estado tem se ausentado em cumprir o mínimo existencial, e

demonstra a sua inércia quanto às políticas públicas voltadas à moradia

como direito fundamental. Percebeu-se que a existência de uma residência

fixa, proporcionaria uma referência social, bem como propicia a segurança,

respeito e acesso aos aspectos mais básicos da existência humana, como:

água, esgoto, luz e relações no sentido social.

O direito à vida, à integridade física, à liberdade e à igualdade, está

intimamente relacionado a dignidade. Enquanto princípio, desempenha

papel de matriz jurídico-positiva dos Direitos fundamentais, atribuindo-

lhes coerência infindável.

Conclui-se que para que o indivíduo tenha uma vida de mínima

dignidade, todos, principalmente as pessoas em situação de rua, que

nada tem, devem receber igual respeito por parte dos demais membro da

coletividade, assim como por parte do Estado, haja vista, que a dignidade

é característica pertinente ao ser humano, mesmo quando este não é

habilitado para exercitar a sua autonomia em potencial.

Constata-se que em relação ao direito à habitação, o Estado está

submetido a quatro níveis de imposições governamentais, sejam elas,

proteger, promover, respeitar e preencher, pois o que vemos na realidade

é que o direito a moradia está muito mais assegurado no papel (na

Constituição Federal do Brasil de 1988) e em outras legislações posteriores,

mas, na prática inexiste tal ação.

Além disso, a moradia é um fenômeno multifacetado e um direito

humano, sendo assim, requer a existência de políticas públicas para ser

respeitada.

A população em situação de rua sofre cotidianamente com a falta

de moradia, considerando-se que quanto maior a desigualdade social, mais

acentuados tendem a ser a problemática da moradia. Além de promover

auxílios e programas residenciais para amparar essas pessoas que vivem

nas ruas, é imprescindível que o governo realize medidas de distribuição

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de renda com o intuito de minimizar essas desigualdades permanentes e o

impacto delas.

Desse modo, define-se que as condições de habitação e de vida

desapropriadas, inadequadas e deficientes, são inevitavelmente e

profundamente relacionadas com as mais altas taxas de mortalidade e

morbidade, sendo ilusório pensar que as causas que levam as pessoas a

habitarem as ruas são singulares.

Sendo assim, a rua requerer maior concentração e atenção dos

agentes públicos e da sociedade civil para com essa questão social. Completa-

se que o cotidiano das ruas deve ser verificado na sua individualidade, e

para tanto é necessário destacar-se a visibilidade das trajetórias que fogem

a superfície do que é constantemente visível para nós, tendo em vista que a

vida não deixa de ser afetada por aquilo que os olhos não veem.

NOTAS:

[1] Formanda em Direito da Faculdade Ruy Brabosa Devry Brasil. Autora.

e-mail: [email protected]

[2] Doutora em Direitos Humanos e Desenvolvimento ( UPO- ES)/ UFPB.

Mestre em Administração. Pedagoga. Professora de Direito da Faculdade

Ruy Brabosa e Unifass. Pesquisadora da UCSAL e FCT- PT. e-mail: Pamponet.

[email protected]

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A INCONSTITUCIONALIDADE DAS COTAS RACIAIS NAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE ENSINO SUPERIOR

Ailton Antunes Nogueira Júnior - Advogado civilista e empresarialista, formado no Centro universitário UNIFAMINAS, autor de diversos artigos científicos sobre direito civil, empresarial, constitucional e eleitoral. E-mail: [email protected].

Resumo: O presente artigo científico tem por intento analisar

e discutir a respeito da real finalidade das cotas raciais de ingresso nas

instituições públicas de ensino superior, analisando referido sistema sob

uma perspectiva discriminatória. Para melhor compreensão do tema

em estudo, será realizada uma abordagem geral e conceitual a respeito

deste processo de seleção, ponderando a existência de contraposição aos

princípios constitucionais básicos.

Palavras-chave: Cotas. Universidades. Vestibular. Discriminação.

Raça.

Abstract: This present article has goal talk about the finality of

racial quotas to ingress in the Brazilian universities, analyzing this system

according a discriminatory perspective. For a better understanding it will

be realized an general study about this selection process and observe the

existence of contraposition to the basic rights guaranteed in the Constitution.

Keywords: Quotas. Universities. Entrance exam. Discrimination.

Race.

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1. INTRODUÇÃO

O presente artigo científico tem como intento realizar um estudo

aprofundado a respeito do processo seletivo nas universidades públicas

brasileiras de ensino superior, tendo como ponto primordial a divisão

dos ingressantes de acordo com sua etnia. Para a elaboração do trabalho

em tela, será ponderado o condão discriminatório do sistema de seleção

vigente, sendo trazidos princípios básicos previstos na Constituição da

República Federativa do Brasil, a opinião crítica de doutrinadores, membros

dos poderes legislativo e executivo, bem como da população brasileira em

geral. Analisando-se o texto Constitucional, visualiza-se que a igualdade

é um dos direitos básicos e fundamentais de qualquer cidadão brasileiro,

seja ele nato ou naturalizado. No Brasil, atualmente, os estudantes que

pleiteiam adentrar nas Universidades federais e estaduais e até mesmo

em algumas faculdades particulares devem realizar o Exame Nacional

do Ensino Médio, popularmente conhecido como ENEM, sendo referido

teste utilizado de maneira variável pelas instituições. Após a realização

do exame supracitado, de acordo com a Lei de Cotas, sancionada no ano

de 2012, as instituições federais de educação superior devem reservar, no

mínimo, cinquenta por cento de suas vagas para estudantes de baixa renda

que tenham cursado o ensino médio em escolas públicas, sendo parte deste

percentual reservado para vestibulandos autodeclarados negros, pardos

e indígenas. A aplicação deste método tem como fulcro gerar igualdade

àqueles que supostamente se encontram em situação de desigualdade para

com os que cursaram o ensino médio em escolas privadas, tal como os

provenientes de raça distinta à caucasiana. Lado outro, é perceptível certa

indignação por grande parte da população brasileira, por entender que,

ao invés de procurar igualar os vestibulandos, o processo implementado

acaba por desigualá-los, mormente no que se refere à separação racial.

Ressalta-se que é quase majoritário o entendimento de que as cotas raciais

não têm alcançado sua real finalidade, que seria a inclusão e a igualdade

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social, sendo certo que as mesmas têm atingido efeito contrário. Imperioso

ressaltar que a Lei 12.711 de 2012, em certo ponto, entra em contrapartida

com os direitos fundamentais previstos no art. 5º da lex matter, posto que

é previsto no aludido dispositivo a igualdade de todos perante a lei, sem

distinção de qualquer natureza. Dito isto, denota-se a suma importância

de um melhor aprofundamento a respeito do tema em questão, fazendo-se

necessária uma observação das benesses e reveses do sistema de separação

por cotas e, sobretudo, analisar se a adoção de tal política seria, de fato,

uma boa maneira para concretizar a integração do negro no meio social.

No intuito de esclarecer melhor as particularidades trazidas pelo tema, o

presente trabalho científico tem como objetivo principal realizar um estudo

crítico a respeito da adoção da política de cotas raciais, sendo elaboradas

análises conceituais e históricas acerca do tema em discussão, ressaltando

em especial o caráter discriminatório no que se remete à separação daqueles

que pleiteiam adentrar nas instituições públicas de educação superior.

2. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS DA PESSOA HUMANA

2.1 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A Constituição da República Federativa do Brasil é o diploma legal

responsável por criar uma série de normas que visa à instituição de um

Estado democrático de direito, assegurando o exercício dos direitos sociais

e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a

justiça e a igualdade como valores de uma sociedade fraterna, pluralista e

sem qualquer tipo de preconceito, conforme descrito em seu preâmbulo.

Neste ínterim, denota-se um artigo dos mais importantes, se não o mais

importante, que elenca os direitos e garantias fundamentais da pessoa

humana, tal qual, o artigo 5º. Em seu caput, este artigo descreve: “Art.

5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a

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inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e

à propriedade…”. Dividido em setenta e oito incisos, que se encontram

subdivididos em alíneas e parágrafos, o artigo 5º descreve uma série de

direitos individuais e coletivos que, conforme disposto no art. 60, §4º, IV do

códex em comento, não podem, em hipótese alguma, serem modificados,

sendo tidos como cláusula pétrea. De tal modo, analisando a Constituição

Federal in totum, é incontestável que o Brasil tem, constitucionalmente, o

objetivo primordial de construir uma sociedade livre, justa e solidária, bem

como promover a redução das desigualdades, sem preconceito de raça, ou

qualquer outro tipo de discriminação, conforme dispõe a própria carta

magna, em seu artigo 3º, inciso IV. A Constituição afirma que todos são iguais

perante a lei, contudo, para que dita igualdade seja de fato efetivada, faz-se

necessário um tratamento de maneira igual aos iguais e os diferentes de

maneira diferente, na proporção de suas desigualdades, para que a justiça

seja efetivada. Neste diapasão, é admitida a adoção de ações afirmativas,

no entanto, quais são os limites de tais ações e como seria a melhor forma

de efetivá-las?

1.2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Dentre os princípios e garantias fundamentais elencados no artigo

5º da Constituição Federal, o princípio da igualdade é tido como um dos mais

importantes. Mesmo que seja um princípio eternizado desde os tempos mais

remotos, o princípio da igualdade ainda é dotado de complexidade, tanto

sob os aspectos filosóficos, políticos, sociais, econômicos e jurídicos. “É o

princípio da igualdade um dos de mais difícil tratamento jurídico. Isto em

razão do entrelaçamento existente no seu bojo de ingredientes de direito

e elementos metajurídicos.” (BASTOS, 1995, p. 164). Nesta senda, pode-se

conceituar o princípio da igualdade como um instrumento de concretude

da justiça social, almejando a concretização efetiva da igualdade real, a

eliminação das desigualdades econômicas, sociais, culturais e raciais. A

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igualdade, também intitulada como isonomia é um direito tão importante,

além de estar prevista no preâmbulo da Constituição Federal, é uma garantia

que também se encontra prevista no caput do dispositivo mais importante

da referida carta, conforme anteriormente transcrito. Nessa linha de

raciocínio, Rousseuau classifica os princípios da liberdade e igualdade

como os maiores de todos os bens existentes no ordenamento jurídico

pátrio. “Se indagarmos em que consiste precisamente o maior de todos os

bens, que deve ser o fim de qualquer sistema de legislação, chegaremos à

conclusão de que ele se reduz a estes dois objetivos principais: a liberdade

e a igualdade.” (ROUSSEAU, 2001, p. 51).

É cediço afirmar que a igualdade, em seu sentido meramente

formal, é caracterizada pelo aspecto jurídico, que se encontra devidamente

positivado na lex matter, sendo classificada simplesmente como a igualdade

perante a lei, que em linhas gerais significa “todos são iguais perante a lei”,

consoante se verifica no artigo disposto alhures.

1.3 IGUALDADE FÁTICA E IGUALDADE JURÍDICA

Conforme salientado alhures, seria absolutamente inviável a adoção

de uma mesma política social para toda a sociedade, haja vista o notório

fato de que algumas pessoas se encontram em condições de desigualdade

perante os demais. Desta feita, torna-se plenamente possível o tratamento

desigual para indivíduos que se encontram em condições desiguais,

surgindo assim a distinção entre igualdade fática e igualdade jurídica,

também classificadas como igualdade formal e material, respectivamente.

A igualdade formal, ou jurídica, já retro citada, é compreendida como a

igualdade prevista na lei, devidamente positivada na Constituição Federal.

Já a igualdade material, também denominada igualdade fática, remete-se a

um sentido sociológico, uma vez que não basta tão somente a existência do

dispositivo para que o direito à igualdade seja efetivado. Para se alcançar a

efetividade do princípio da igualdade, necessária se faz a consideração de

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condições fáticas e econômicas, além de certos comportamentos inevitáveis

da convivência humana, sendo que a mera proibição da discriminação não

é suficiente para garantir a igualdade efetiva. Assim sendo, nasceu a tese

supramencionada de que, em virtude das desigualdades concretas existentes

na sociedade, torna-se possível tratar de modo dessemelhante indivíduos

que se encontram em situações desiguais. A doutrinadora Fernanda Lopes

Lucas da Silva, aprofunda o tema em questão com a seguinte passagem:

Igualdade material não consiste em um tratamento sem

distinção de todos em todas as relações. Senão, só aquilo

que é igual deve ser tratado igualmente. O princípio

da igualdade proíbe uma regulação desigual de fatos

iguais; casos iguais devem encontrar regras iguais e, por

isso não devem ser regulados desigualmente. A questão

decisiva da igualdade jurídica material é sempre

aquela sobre os característicos a serem considerados

como essenciais, que fundamentam a igualdade de

vários fatos e, com isso, o mandamento do tratamento

igual, ou seja, a proibição de um tratamento desigual

ou, convertendo em negativo: sobre os característicos

que devem ser considerados como não essenciais e não

devem ser feitos base de uma diferenciação. (SILVA,

2003, p.42).

Ainda sobre o tema, o jurista Luiz Alberto David Araújo, em sua

obra Curso de direito Constitucional, complementa com a presente liça:

A Constituição da República instituiu o princípio da

igualdade como um de seus pilares estruturais. Por

outras palavras, aponta que o legislador e o aplicador

da lei devem dispensar tratamento igualitário a todos os

indivíduos, sem distinção de qualquer natureza. Assim,

o princípio da isonomia deve constituir preocupação

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tanto do legislador como do aplicador da lei. No mais

das vezes a questão de igualdade é tratada sob o vértice

da máxima aristotélica que preconiza o tratamento

igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida

dessa desigualdade. (ARAÚJO, 2006, p. 131).

Ocorre que, a grande questão que se coloca é saber quais são os

critérios juridicamente legítimos que permitem a diferenciação de pessoas

e situações, ou, ainda, quais seriam essas diferenciações juridicamente

toleráveis. Sobre isto, o jurista alemão Robert Alexy aborda uma alternativa

para a resolução da referida indagação com os seguintes dizeres:

“Uma diferenciação arbitrária ocorre se não é possível encontrar um

fundamento razoável, que decorra da natureza das coisas, ou uma razão

objetivamente evidente para a diferenciação ou para o tratamento igual

feitos pela lei.” (ALEXY, 2012, p.407). Complementando, faz- se necessária

uma razão suficiente para que uma discriminação seja justificada, para que

posteriormente seja dado um tratamento desigual para àquela situação ou

situações específicas. Dado o exposto, permite-se afirmar que o direito de

igualdade, na prática, só pode ser efetivado mediante a adoção de políticas

públicas que reconheçam a situação de desigualdade que certos indivíduos

se encontram em determinadas situações, dando-lhes um tratamento

distinto para que, posteriormente, a igualdade lhes seja garantidas.

1.4 IGUALDADE DE RAÇAS

Dentre as mais variadas espécies e subdivisões do princípio da

igualdade que são constantemente buscadas pelas três esferas do poder

público brasileiro, certamente a igualdade de raças é uma das mais

dificultosas de serem concretizadas. Muito pelos fatos históricos e já

notórios, como o período de escravidão, que perdurou até o ano de 1888

com a sanção da Lei Áurea, o preconceito é algo encravado na sociedade,

sendo um crime árduo de ser combatido, em virtude do lamentável

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ponto no qual a humanidade chegou. De tal modo, tem-se buscado de

maneira incessante o ideal de que a cor e a raça não podem e não devem

ser utilizados como critérios separatistas, não podendo um indivíduo ser

classificado como inferior ao outro em razão de sua cor de pele ou de sua

origem racial. Sobre o assunto, a Constituição Federal, em seu artigo 4º,

VIII assim preceitua: “Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas

suas relações internacionais pelos seguintes princípios: VIII – repúdio

ao terrorismo e ao racismo;” Além da carta magna, existe outro diploma

infraconstitucional que trata da discriminação de raças de maneira

meticulosa. Trata-se do estatuto da igualdade racial. O intento maior deste

estatuto é bridar o discernimento racial e estabelecer políticas intuitivas a

diminuir a desigualdade social predominante entre os diferentes grupos

societários, sendo devidamente preconizado em seu art. 1º o objetivo maior

de garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades,

a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à

discriminação e às demais formas de intolerância étnica. Sancionada no

ano de 2012 pelo então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, a

Lei n.º 12.288 possui 66 (sessenta e seis) artigos subdivididos em 4 (quatro)

diferentes títulos. Entretanto, soa de forma pejorativa a criação da lei em

comento, posto que dita uma séria de garantias à população negra, garantias

estas que em tese já são propiciadas a toda a população brasileira. Assim,

é certo afirmar que referido estatuto, apesar da nomenclatura e do intuito

inicial de estabelecer igualdade entre povos, acaba por diferenciá-los ainda

mais, mesmo que de forma indireta, dada a criação de uma lei especial para

pessoas que possuem as mesmas características que os demais indivíduos,

pertencentes, inclusive, à mesma espécie. Todavia, apesar de tal fato, o que

se verifica é que o governo brasileiro tem se empenhando na criação de

ações afirmativas, objetivando a abolição do preconceito racial, mesmo

não conseguindo lograr total êxito no tocante à criação do referido diploma

legal e das demais campanhas conscientizadoras.

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1.5 DISCRIMINAÇÃO RACIAL

Entrando em contrapartida ao princípio da igualdade racial

e desobedecendo preceitos constitucionais, a atitude praticada por

indivíduo que insulta o outro em referência à sua cor de pele ou etnia é

denominada discriminação racial. Conceituando referido tema, o jurista

constitucionalista José Afonso da Silva, assim a define:

A discriminação é proibida expressamente, como

consta no art. 3º, IV da Constituição Federal, no qual

se dispõe que, entre os objetivos fundamentais da

República do Brasil, está: promover o bem de todos,

sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e

quaisquer outras formas de discriminação. Proibiu-

se também, a diferença de salário, de exercício de

fundações e de critério de admissão por motivo de

sexo, idade, cor, estado civil ou portador de deficiência.

(SILVA, 2005, p. 222).

Infelizmente, um ato tão combatido, não só pela Constituição

Federal, mas também por muitos outros diplomas infraconstitucionais,

encontra-se cada vez mais presente na sociedade em geral, sendo uma

conduta com elevado grau de dificuldade para ser combatida de maneira

justa e eficaz. O racismo é definido como crime, mas apesar de ser previsto

como inafiançável, imprescritível e sujeito à pena de reclusão, de acordo

com a própria Constituição, em seu artigo 5º, XLII, o seu extermínio é algo

que se encontra muito distante, quiçá impossível, dado o preconceito que

pode ser classificado como inerente à certas camadas populacionais. O

Código de Penal aborda de maneira mais pormenorizada o assunto, citando

o crime de injúria, que nada mais é que a exteriorização de um juízo que se

faz de alguém, sendo que este traduz desprezo ou menos valia em relação

ao ofendido, ou seja, pode-se injuriar alguém mediante gestos, palavras ou

escritos. Insta ressaltar que, diferentemente do crime de racismo previsto

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na Constituição Federal, o crime de injúria racial é prescritível, afiançável

e de ação pública condicionada, ou seja, quando o ajuizamento da ação

depende da manifestação do indivíduo injuriado ou por representação

do ministro da Justiça. Mister expor que, conforme previsto no art. 140

do Código Penal, a prática de injúria pode culminar em pena de um a

seis meses, ou multa, dependendo do caso concreto. Ocorre que, quando

o sujeito ofendido deu gênese ao cometimento do crime, provocando de

forma reprovável e de maneira direta a injúria, bem como na situação de

retorsão imediata, que consistia em outra injúria, o magistrado deixará

de aplicar a pena. No parágrafo terceiro do mesmo artigo, o legislador

preconiza que se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por

sua natureza ou pela maneira empregada, se considerem vergonhosas, a

pena de detenção será de três meses a um ano, cominada de multa, além

da pena correspondente a violência empregada. Continuando no art. 140

do mencionado códex, o §3º versa de modo mais específico sobre a injúria

racial, conjuntamente a injúria religiosa, bem como àquelas condicionadas

a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, estabelecendo

pena de reclusão ainda maior que as supracitadas, sendo esta de um a três

anos, cumulativa ao pagamento de multa. Neste diapasão, averigua-se a

distinção dos preceitos da Constituição Federal e do Código Penal, tendo

em vista que o primeiro discorre em lato sensu sobre o crime de racismo,

estabelecendo que este resulta da discriminação, de preconceito racial,

implicando segregação, impedimento de acesso, recusa de atendimento,

dentre outros relacionados a alguém. Já o Código Penal, especifica o crime

de injúria, que se remete a crimes contra a honra, agindo o sujeito ativo

com animus injuriandi, elegendo-se como maneira de execução do ilícito

propriamente a utilização de elementos atinentes à cor, raça, etnia, religião

ou origem do sujeito vitimado.

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2. AÇÕES AFIRMATIVAS

2.1 AS AÇÕES AFIRMATIVAS NO COMBATE AOS DIVERSOS TIPOS DE

DISCRIMINAÇÃO

Conforme anteriormente citado, visando combater o preconceito

racial, inúmeras ações afirmativas têm sido criadas em território nacional.

Para se compreender a real eficácia dessas ações afirmativas na luta

contra este tipo de discriminação em específico, é vital que se faça um

esclarecimento sobre o que seriam ações afirmativas e quais são seus

objetivos fundamentais. Entende-se por ações afirmativas como o conjunto

de medidas especiais destinadas a grupos discriminados ou vitimados

face aos diversos tipos de exclusões sociais ocorridas no passado ou no

presente. O objetivo das referidas ações é nada mais do que eliminar as

desigualdades e segregações, de maneira que não mais se mantenham

grupos elitizados, bem como grupos marginalizados no meio social,

buscando-se uma composição diversificada onde não haja o predomínio de

raças, etnias, religiões, gêneros ou qualquer outra forma de discriminação.

Seguindo a mesma linha de entendimento, o professor Antônio Sérgio

Alfredo Guimarães conceitua as ações afirmativas da seguinte forma:

Ações afirmativas são medidas especiais e temporárias,

tomadas pelo Estado e/ou pela iniciativa privada,

espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de

eliminar desigualdades historicamente acumuladas,

garantindo a igualdade de oportunidade e tratamento,

bem como compensar perdas provocadas pela

discriminação e marginalização, por motivos raciais,

étnicos, religiosos, de gênero e outros. (GUIMARÃES,

1999, p. 147).

Também conceituando as ações afirmativas, o jurista Joaquim

Barbosa Gomes assim as define:

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Um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter

compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas

com vista ao combate à discriminação racial, de

gênero e de origem nacional, bem como para corrigir

os efeitos presentes da discriminação praticada no

passado, tendo por objeto a concretização do ideal de

efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como

a educação e o emprego. (GOMES, 2001, p.40).

Tais ações afirmativas são elaboradas de maneira que propiciem

uma maior participação destes grupos discriminados na educação, na

saúde, na busca por um emprego, na aquisição de bens materiais, em

sistemas de proteção social e de reconhecimento cultural. Conforme

citado na conceituação apresentada por Guimarães, as ações afirmativas

podem ser criadas tanto por iniciativa do poder público, como também

por instituições privadas, desde que tenham por objetivo primordial a

eliminação da desigualdade.

2.2 AS AÇÕES AFIRMATIVAS E A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

O combate à discriminação em função da raça tem sido o principal

ensejo para a criação das ações afirmativas, principalmente as idealizadas

pelo poder público, sendo certo que já foram criadas várias destas no

intento de combater referida modalidade discriminatória. No entanto, uma

destas ações ganhou mais destaque, sendo esta o tema central do estudo em

voga, qual seja a Lei 12.711 de 2012, popularmente conhecida como a Lei de

cotas. Ressalta-se que, apesar de ser compreensível o objetivo no tocante à

criação da Lei de Cotas, a mesma, dependendo da forma de interpretação,

além de não alcançar o resultado prático almejado, pode também gerar

uma espécie de segregação, ao invés de gerar igualdade, tema que será

aprofundado com maior profundidade ulteriormente.

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2.3. ARGUMENTOS PARA UTILIZAÇÃO DE AÇÕES AFIRMATIVAS

No que se refere especificamente às ações afirmativas voltadas para

àqueles que sofrem discriminação racial, o argumento para a criação destas

se baseia na ideia de integrar o negro à sociedade de dominação branca,

mediante políticas públicas ou privadas que favoreçam a igualdade de

oportunidade entre negros e brancos. Contins, no livro Lideranças negras,

define os argumentos para utilização das ações afirmativas, conforme se

segue: “(…) a promoção de oportunidades iguais para pessoas vitimadas por

discriminação. Seu objetivo é, portanto, o de fazer com que beneficiados

possam vir a competir efetivamente por serviços educacionais e por posições

no mercado de trabalho.” (CONTINS, 2002, p. 210). Aludido sistema, visa a

redução da discriminação contra os negros, que remonta aos períodos da

escravidão e que, de maneira menos expressiva, contudo, ainda assim de

forma inaceitável, perdura até os dias atuais. Lado outro, fica a reflexão

sobre até que ponto estas ações afirmativas podem ser benéficas e, em

determinadas situações, como não dizer que as mesmas segregam ao invés

de igualar?

3. LEI 12.711 DE 2012 – LEI DE COTAS

3.1 FORMA DE INGRESSO DOS ESTUDANTES NAS UNIVERSIDADES

PÚBLICAS

Antes de adentrarmos à conceituação da lei de cotas, bem como à

análise dos artigos constantes na mesma, mister se faz um rápido estudo

sobre como se dá o ingresso dos estudantes de ensino médio nas instituições

públicas de ensino superior. Para ingressar nas universidades públicas

brasileiras, o governo brasileiro, por meio do Ministério da Educação criou

no ano de 1998 o Exame Nacional do Ensino Médio, trivialmente conhecido

como ENEM. Inicialmente criado com o intuito de avaliar o desempenho dos

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alunos que cursavam o ensino superior no período retro, o ENEM passou a

ser utilizado no ano de 2009 de maneira consubstanciada aos vestibulares

empreendidos pelas faculdades públicas de ensino. Como a alteração do

sistema, os alunos, após prestarem o exame, se cadastram no Sistema de

Seleção Unificada (SISU) para então pleitearem uma vaga na instituição

almejada, dependendo, para tanto, de suas respectivas pontuações. Para a

aprovação no teste em comento e a posterior introdução nas universidades

públicas, o bom desempenho por si só muitas vezes não é suficiente para

lograr êxito, posto existir uma subdivisão das vagas por meio de cotas,

através da criação da já citada Lei 12.711/2012.

3.2. HISTÓRICO DA LEI DE COTAS

Sancionada pela Presidenta Dilma Roussef, a Lei de cotas possui

nove artigos que dispõem sobre o ingresso nas faculdades públicas, bem

como nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. A Lei de

Cotas fora primordialmente criada no intuito de propiciar igualdade de

condições aos estudantes no ato de ingresso nas instituições criadas pelo

governo, por entender que tão somente o critério de pontuação os deixava

em desigualdade de condições fronte àqueles que frequentaram todo o

ensino médio em colégios particulares. Pondera-se, precedentemente

à sanção presidencial, o Supremo Tribunal Federal decidiu de maneira

unânime que é constitucional reservar vagas nas universidades públicas

para negros, pardos e índios. De tal forma, a partir da decisão do Supremo,

intensificou-se um inacabável debate a respeito da legalidade da aludida

lei.

Como toda política pública, a ação afirmativa deve

cumprir dois requisitos: o da legalidade e o da

moralidade. Por legalidade, devemos entender a

qualidade de se harmonizar a ação afirmativa com o

sistema legal do país onde é implantada, mormente com

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o sistema legal do país onde é implantada, mormente

com a norma constitucional. A despeito de certos

sentidos derrogatórios do termo, por moralidade aqui

se entender a justificação de uma ação com relação

aos valores principais da sociedade onde ela acontece.

Uma iniciativa é moral se está em consonância, ou seja,

pode ser justificada em relação aos valores centrais de

uma comunidade política. (ZONINSEIN, 2008, p.9).

Como se verá ademais, os debates a respeito da legalidade e

constitucionalidade da lei de cotas têm sido cada vez mais comuns e, longe

de se alcançar um entendimento pacificado. Conforme relatado alhures, a

Lei de Cotas fora sancionada no ano de 2012, contudo, a reserva de vagas

nas faculdades públicas de acordo com a etnia dos vestibulandos vem sendo

adotada desde o ano de 2002. A Universidade Estadual do Rio de Janeiro

– UERJ foi uma das primeiras de que se tem notícia a adotar o referido

procedimento, destinando, inicialmente 20% de suas vagas para estudantes

autodeclarados negros. Aludida prática se propagou, tendo sido adotada

posteriormente por outras instituições, como a Universidade Estadual

do Mato Grosso do Sul e a Universidade de Brasília, nos anos de 2003 e

2004, respectivamente. Não obstante, o sistema de cotas ainda apresentava

inúmeras falhas e critérios que eram tidos como injustos, até certo modo.

Cada instituição que optou pela reserva de vagas, implantava uma política

distinta, não sendo certo o número de estudantes que fariam jus a ingressar

nas instituições de ensino por intermédio deste procedimento. Avulta

consignar que cada faculdade que optava pela adoção das cotas possuía

um critério para avaliar a etnia dos estudantes e qual destes faria jus a tal

benesse, sendo este o ponto de maior desaprovação social. Após a propulsão

protagonizada pela UERJ e a proliferação da política de cotas em todo o

território nacional, foi criada a Lei de Cotas no ano de 2012, conforme

antes explanado, cujo objetivo era regulamentar e uniformizar predito

método. A já mencionada Lei impôs a todas as Universidades federais a

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implementação do sistema de cotas, sendo certo que até a criação da mesma,

40 (quarenta) das 59 (cinquenta e nove) instituições públicas de ensino

superior existentes no país já haviam implantado tal política. Contudo,

era axiomática a resistência por parte das demais universidades que não

haviam aderido à política in comento. Atualmente, todas as Universidades

federais e 30 (trinta) das 38 (trinta e oito) universidades estaduais aderem

à reserva de vagas, todavia, algumas destas, como a USP – Universidade

de São Paulo, maior instituição de ensino superior do Brasil, bem como

a UNICAMP – Universidade de Campinas pregam a ideia de meritocracia,

abolindo dito sistema.

3.3. A LEI DE COTAS E A RESERVA DE VAGAS PARA ESTUDANTES QUE

CURSARAM O ENSINO MÉDIO EM ESCOLA PUBLICA

No supramencionado códex, mais precisamente em seu artigo 1º,

denota-se a imposição governamental às faculdades públicas para que

estas reservem, no mínimo, 50% de suas vagas para estudantes que tenham

cursado integralmente o ensino médio em colégios públicos, asseverando

que 50% destes devem ser oriundos de famílias carentes, com renda

inferior ou igual a 1 (um) salário mínimo e meio per capita. O art. 2º da

Lei preconizava que as universidades públicas deveriam selecionar os

alunos provenientes de escolas públicas após análise de seus respectivos

coeficientes de rendimento, obtidos por meio de média aritmética das notas

ou menções obtidas no período. Contudo, o artigo supra fora ulteriormente

revogado, sob a prerrogativa de que tais coeficientes formados a partir de

notas atribuídas no decurso do ensino médio não constitui critério adequado

para avaliar estudantes, visto que não se baseiam em exame padronizado

comum a todos os candidatos, não seguindo parâmetros uniformes para

atribuição de nota. Ocorre que, a certo ponto, o governo brasileiro acaba

por reconhecer a precariedade do ensino público no tocante aos ensinos

fundamentais e médio, por conceder aos estudantes egressos dos colégios

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comunitários um método diferenciado, mais fácil e vantajoso para entrada

nas universidades federais com relação aos alunos provenientes de escolas

particulares.

3.4 RESERVA DE VAGAS PARA NEGROS, PARDOS E INDÍGENAS

Conforme aduzido antecedentemente, além das vagas destinadas

aos colegiais provenientes de instituições públicas de ensino médio, resta

assegurado um percentual destas vagas aos estudantes autodeclarados

negros, pardos e indígenas. O art. 3º da Lei de Cotas predispõe que em

cada universidade federal de educação superior, as vagas tratadas no

art. 1º devem ser preenchidas, por curso e turno, por estudantes de etnia

diversa à caucasiana em proporção, no mínimo, igual à de pretos, pardos

e indígenas na população da unidade de Federação onde se encontra

instalada a instituição, tendo por base o último censo do Instituto Brasileiro

de Geografia e Estatística (IBGE). De tal modo, tomando por base um caso

hipotético de uma cidade situada em um estado, no qual 30% de sua

população é predominantemente formada por indígenas, pardos e negros,

a universidade pública situada no mesmo, ao disponibilizar, por exemplo,

500 (quinhentas) vagas por meio de exame vestibular para estudantes,

deve reservar, no mínimo, 250 (duzentos e cinquenta) vagas para alunos

provenientes de escola pública e destes, 75 (setenta e cinco) para os

estudantes que caracteristicamente se enquadram no perfil fisionômico

discriminado pelo art. 3º da Lei em estudo. Em caso de não preenchimento

de tais vagas, as remanescentes devem ser destinadas aos alunos egressos

de escola pública, conforme dispõe o parágrafo único do referido artigo.

3.5 PRERROGATIVA PARA ADOÇÃO DA POLÍTICA DE COTAS

No ano de 1997, somente 2,2% de pardos e 1,8% de negros na faixa

etária compreendida entre 18 e 24 anos cursavam ou haviam concluído

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um curso superior no Brasil. Em razão deste tacanho índice, algumas

instituições públicas, visando oportunizar condições aos estudantes que

se enquadravam no referido aspecto físico passaram a estudar políticas

que poderiam diminuir este déficit histórico. Após minuciosas pesquisas,

a solução encontrada foi a implementação de ações afirmativas por meio

de reserva de vagas, que ficaram subsequentemente conhecidas como

cotas, sendo tal prática adotada mediante política interna das instituições

educadoras, sem que existam imposições governamentais ou critérios de

obediência formal.

4. AS COTAS RACIAIS E A VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

4.1 OBJETIVO DA POLÍTICA DE COTAS E O RESULTADO PRÁTICO OBTIDO

É manifesto que as cotas raciais foram originalmente criadas no

intuito de gerar direitos iguais aos estudantes negros, pardos e indígenas,

por entender que estes não tinham as mesmas oportunidades que os

brancos no que tange à formação superior. Lado outro, tal política tem

gerado opiniões diversas em âmbito social, ao passo que encontra enorme

resistência por parte de muitos cidadãos que entendem que a mesma

discrimina ao invés de igualar. Nestes termos, depreende-se que a lei de

cotas não atingiu integralmente o seu objetivo, dado o elevado percentual

de opiniões contrárias à aplicação da mesma, onde há a sustentação de que

referido estatuto fere os princípios preconizados na Constituição Federal,

como o da igualdade e o direito universal à educação. Logo, apesar do sistema

cotista ajudar a incluir negros, índios e pardos nas universidades federais,

tendo em vista os baixos índices existentes em momento anterior à sanção

da Lei 12.711, a adoção de tal política não delibera globalmente o problema.

No julgamento da Lei 12.711 pelo Supremo Tribunal Federal, na data de 26

de Abril de 2012, consoante alhures mencionado, os ministros decidiram

por unanimidade a aprovação da referida lei, conquanto, alguns juristas

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se posicionaram de maneira contrária. Posicionando-se contrariamente à

maioria presente no plenário, a jurisconsulta Roberta Kauffman, sustentou

sua tese afirmando que a imposição de um modelo de estado racializado

traz consequências perversas para formação da identidade de uma nação.

Sustenta ainda inexistir racismo bom ou racismo politicamente correto,

aduzindo que todo racismo é perverso e precisa ser evitado. Entretanto,

como é de conhecimento notório, mesmo com posicionamentos contrários,

supracitado diploma legislativo foi aprovado, tendo sido posteriormente

sancionado.

4.2 A INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI DE COTAS

Apesar de o entendimento jurisprudencial ser majoritário acerca da

legalidade da política de cotas raciais, conforme votação no STF, é nítido que

tal sistema acaba por discriminar ainda mais aqueles que lutam por direitos

iguais. Neste ínterim, o princípio da igualdade, garantia fundamental de

qualquer cidadão brasileiro, é claramente infringido ante a separação entre

negros e brancos no que concerne ao ingresso nas instituições educadoras.

Assim sendo, é clarividente que a adoção da política de cotas confronta

diretamente os ditames garantidos na carta magna, não se coadunando com

os princípios constitucionais positivados no art. 5º do retro citado códex.

Grande parte da população leiga e até mesmo um percentual considerável

de doutrinadores e estudiosos tem opinado acerca da inconstitucionalidade

da referida lei, sustentando que a diferenciação jamais será o caminho

para buscar igualdade entre povos. É clarividente que a população negra

sofreu por muitos anos e ainda sofre com certa discriminação racial que

por vezes acabam por reduzir suas oportunidades, contudo, a adoção de

cotas raciais não se apresenta como uma boa política para concretizar a

integração dos afrodescendentes junto ao restante da sociedade, posto

que desiguala iguais quando o objetivo final dos exames vestibulares seria

avaliar o intelecto dos candidatos e não suas aparências fisionômicas.

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Ronald Dworkin salienta ser de vital importância a leitura objetiva da

justificativa utilizada ao implantar qualquer medida compensatória, para

que possa ser posteriormente aceita como Constitucional. Nestes termos,

esclarece:

Os argumentos favoráveis a um programa de admissões,

que discrimine a favor dos negros são ao mesmo

tempo utilitaristas e de ideal. Alguns dos argumentos

utilitaristas baseiam-se, ao menos indiretamente, em

preferencias externas, como a preferência de certos

negros por advogados de sua própria raça; mas os

argumentos utilitaristas que não se baseiam em tais

preferências são fortes e podem ser suficientes. Os

argumentos de ideal não se baseiam em preferências,

mas sim no argumento independente de que uma

sociedade mais igualitária será uma sociedade melhor,

mesmo se seus cidadãos preferirem a desigualdade.

Este argumento não nega a ninguém o direito de ser

tratado como igual. (DWORKIN, 2002, p. 58).

Segundo o jurista Celso Ribeiro Bastos, em sua obra Comentários

à Constituição do Brasil, o acesso às instituições públicas de grupos

desfavoráveis fere o princípio da isonomia, ao passo que a educação superior

é direito de todos, não podendo existir qualquer tipo de discriminação

relativa à sexo, cor e idade. “A educação deve ser dirigida a todas as classes

sociais e a todos os níveis de idade, sem qualquer tipo de discriminação, ou

seja, deve-se considerá-la como sendo privilégio de todo o povo e não de

uma classe social.” (BASTOS, 1998, p. 117). Nestes temos, apesar de possuir

uma finalidade, até certo ponto compreensível, as cotas raciais não têm

alcançado seu objetivo almejado, dado o alto grau de reprovação social.

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4.3 COTAS RACIAIS COMO VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Consoante já classificado e conceituado em momento anterior,

impende ressaltar que o princípio da igualdade prevê a equidade de

aptidões e eventuais possibilidades dos cidadãos de gozar de tratamento

isonômico pela lei, sendo este, um dos princípios de maior grau de

relevância e importância. Dita garantia, que se encontra devidamente

positivada no caput do art. 5º do diploma constitucional, preconiza não ser

possível a distinção de qualquer natureza, garantindo-se à todos o direito

à igualdade. Deste modo, é flagrante inconstitucional tratar de maneira

desigual cidadãos que se encontram sob a mesma égide governamental,

precipuamente no que se refere à separação pela cor da pele para ingressar

nas universidades de ensino superior criadas e administradas pelo Estado.

Em exames que avaliam o conhecimento dos vestibulandos, tal critério

apresenta-se, no mínimo controverso, haja vista gerar iniquidade perante

os demais candidatos que, apesar de conseguirem obter notas maiores em

determinadas situações hipotéticas veem seu objetivo de ingressar em uma

faculdade pública tolhido por outro concorrente que obteve nota inferior

à sua, porém, fora beneficiado por uma política que leva em consideração

a fisionomia do candidato e não necessariamente o seu saber, dadas as

devidas proporções. É sabido que o princípio da igualdade pressupõe que

pessoas colocadas em situações diferentes sejam tratadas de forma desigual,

mas destarte, o que se questiona é se existe diferença na situação estudada,

mormente no que se refere ao grau de intelecto entre afrodescendentes e

arianos. Seguindo a mesma linha de raciocínio, o jurista Nelson Nery Júnior

corrobora com tais argumentos com a seguinte passagem: “Dar tratamento

isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente

os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”. (JÚNIOR, 1999, p.

43). Ocorre que, tomando por base a citação retro, apesar de não ser tão

fácil delimitar em quais situações pessoas podem ser classificadas como

desiguais, no estudo in comento é cediço que inexiste dita desigualdade,

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uma vez que os processos seletivos avaliam tão somente o conhecimento,

não sendo a cor da pele fator preponderante para avaliar que um indivíduo

é intelectualmente inferior ao outro. Urge ponderar que o princípio da

igualdade não se remete tão somente ao caso em voga, assegurando

também direitos iguais entre homens e mulheres, ricos e pobres, dentre

outras situações passíveis de distinção social e legisladora. “O princípio

da igualdade engloba a proibição do arbítrio, que consiste na proibição

de discriminação e privilégios e obrigatoriedade de diferenciação, ou seja,

faz-se necessário o tratamento igual a situações iguais ou semelhantes

e tratamento desigual de situações desiguais ou dissemelhantes.”

(ALBUQUERQUE, 1993, p. 74). Portanto, a Constituição Federal permite

atestar que a referida garantia fundamental prevista em seu artigo 5º

traduz-se em norma de eficácia plena, cuja exigência de indefectível

cumprimento independe de qualquer norma reguladora, endossando a

todo e qualquer cidadão, indistintamente, independentemente de raça,

cor, credo, sexo, orientação, situação econômica, classe social, convicções

políticas, igual tratamento perante a lei. Não se pode afirmar que a lei de

cotas perfaz-se como inconstitucional em sua totalidade, tendo em vista

que a mesma visa primeiramente oportunizar os estudantes de inferiores

classes socioeconômicas a conseguirem o tão almejado diploma de formação

acadêmica, sendo contestada exclusivamente a separação racial prevista

em seu artigo 3º. Sobre a igualdade, o doutrinador alemão Robert Alexy

conclui: “Se não houver uma razão suficiente para a permissibilidade de

um tratamento desigual, então o tratamento igual é obrigatório.” (ALEXY,

2011, p. 408).

4.4 INCLUSÃO OU DIFERENCIAÇÃO SOCIAL?

Consoante às assertivas antecedentemente evidenciadas, aduz

consignar a existência de inúmeras nuances, não apenas com relação

à adoção da política de cotas, como também em relação ao regulamento

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previsto no aludido sistema. Dentro do que fora inteiramente antes

discorrido, faz-se necessária uma reflexão acerca do resultado final da

aplicação do sistema de cotas raciais, indagando se esta acaba por incluir

os negros na sociedade ou diferenciá-los de vez. A respeito disso, Peixoto

Aranha, em seu livro Universidade Pública e inclusão social: experiência e

imaginação, traduz o que de fato ocorre ante a criação de ações afirmativas

em âmbito racial: “Pode-se pensar que políticas de cunho universalista

que reduzam a pobreza contribuem para diminuir a desigualdade racial,

e na recíproca, políticas que favoreçam a igualdade racial diminuem a

desigualdade social.” (PEIXOTO, 2008, p. 156). Apesar de parte de a sociedade

posicionar-se favoravelmente ao governo, o posicionamento contrário vem

ganhando cada vez mais adeptos, sendo crescente a mentalidade social de

que a lei de cotas, apesar da compreensível finalidade, não tem tido o alcance

esperado, dado o alto grau de reprovação social. É notório que a maior parte

dos cidadãos que se posicionam contrariamente a adoção de cotas raciais

não se encontram abarcados pelo aludido sistema, haja vista que a maioria

dessas pessoas é pertencente à população ariana. Não obstante, parte da

população negra, índia e parda discorda da vigência da lei de cotas, por

também entender que esta possui condão discriminatório. Em razão do

exposto, muitos dos estudantes que poderiam ser aclarados por tal benesse,

acabam por optar pela tentativa de ingresso nas instituições públicas de

ensino pelas vias comuns, sem a utilização das cotas, mesmo possuindo

características fisionômicas para tal. Isso só ocorre por demonstrarem a

discordância com relação a tal sistema, corroborando ainda mais com a

assertiva de que tais cotas apenas desigualam indivíduos que se encontram

em situação de igualdade. Nas últimas décadas, vários movimentos negros

tentaram provar que não existe diferenciação por raça, e que ser negro

nada mais é que uma questão relativa a simples pigmentação de pele, no

entanto, desde a criação do sistema de cotas por iniciativa própria das

instituições de ensino e posteriormente com a sanção da Lei 12.711/2012,

percebe-se uma contradição: raça existe e deve ser mostrada. Dentre as

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problemáticas atinentes às cotas raciais ressaltadas inicialmente, impende

relatar que supradito sistema de certa forma afirma que os não brancos

não possuem capacidade de ingressar nas universidades públicas por conta

própria, necessitando de reservas e políticas especiais para conseguir a tão

almejada formação profissional. Dito isto, aduz reiterar que as cotas para

negros nada mais são do que uma demonstração de racismo, haja vista

que através deste sistema o governo segrega ainda mais a população. De

forma a corroborar com os elementos qualificadores de condutas racistas

precedentemente expostas, as cotas raciais se enquadram perfeitamente

à situação que torna o indivíduo negro distinto de outrem, dado o critério

de separação característico em tal política. Ante esta diferenciação, são

corriqueiras as jocosidades impetradas pelos concorrentes aos processos

vestibulares das instituições educadores de módulo superior, onde

aqueles que não se enquadram nas características para a concessão das

cotas proferem gracejos ou até mesmo injúrias àqueles que adentraram

nas referidas entidades por intermédio da política cotista, sendo certo

que os vestibulandos que não lograram êxito em tal empreitada, sendo

desclassificados mesmo obtendo pontuação superior aos estudantes cotistas

se mostram ainda mais indignados com supradito sistema. Assim sendo,

de uma maneira indireta, em determinadas situações cotidianas, além do

critério discriminador, a aplicação de cotas pode acarretar um problema

que foge completamente das razões para sua criação, expondo os cotistas a

momentos angustiantes e vexaminosos.

4.5 IGUALDADE ENTRE INDIVÍDUOS NEGROS E BRANCOS

Seguindo a ordem de sustentação da tese veiculada no presente

estudo, é permitido dizer que negros e brancos não mais se encontram

em condições desfavoráveis no momento atual. É certo que alguns fatos

históricos mancharam em muito a história da humanidade, sendo o

período da escravidão certamente o maior deles. Ocorre que de lá pra

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cá já se passou mais de um século e, por mais que o preconceito ainda

esteja encrostado em grande parte da população mundial, é algo que vem

mudando de maneira gradativa, sendo perfeitamente possível afirmar

que a outra parte da população atingiu um grau de conscientização

elevado, aceitando que todos são iguais e que raça não é fator para definir

absolutamente nada. “Na realidade brasileira, se analisarmos a situação

de brancos e negros que possuem a mesma condição social desfavorável,

não há qualquer diferença no que tange ao acesso à educação de ambos.”

(KAMEL, 2006, p. 82). O que se observa, ao menos no Brasil, é que a lei é

para todos, à exceção de alguns diplomas, como a própria lei de cotas, que

de fato segrega a população. No entanto, sobram argumentos para afirmar

que negros não se encontram em condição desfavorável aos brancos, ao

passo que, ressalvadas as devidas particularidades, ambos têm direito à

saúde, educação, moradia, segurança, dentre outros serviços prestados

pela administração pública. O que se verifica é que cada vez mais cidadãos

negros vêm ocupando os mais importantes cargos políticos e sociais em

todo o mundo, sendo a eleição do então presidente dos Estados Unidos da

América, Barack Obama, o exemplo mais claro de tal afirmativa. Assim

sendo, a existência das particularidades ressalvadas, caso do estatuto da

igualdade racial e, principalmente da lei de cotas, são políticas retroativas,

que faz transparecer que negros são diferentes de brancos e não merecem

tratamento isonômico. Daí a inconstitucionalidade dos referidos diplomas,

ao passo que a única raça existente é a raça humana.

4.6 O SISTEMA DE AUTODECLARAÇÃO

Anteriormente à sanção da Lei 12.711/2012, as instituições federais

de ensino adotavam critérios desuniformes para avaliar o grau étnico dos

estudantes que pleiteavam a entrada nas universidades por meio de cotas.

Conquanto, com a vigência da nova lei, a definição das raças para as cotas

passou a se dar unicamente através de autodeclaração, de acordo com os

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artigos 3º e 5º da mesma, sendo considerado pelo governo como o critério

mais equânime para tal avaliação. Em virtude de variadas tentativas de

fraude de estudantes brancos que tentavam burlar o sistema, algumas das

instituições, além da exigência de autodeclaração, optaram por realizar uma

banca para checagem da informação dada, como é o caso da Universidade

de Brasília – UnB. Apesar de ser considerado o método mais comedido de

avaliação, o mesmo continuamente recebe críticas por parte de juristas,

doutrinadores e demais operadores do direito, além da sociedade de

modo geral, por entender não ser um critério qualificador pertinente. A

priori, tratando-se de um país predominantemente miscigenado como o

Brasil, torna-se extremamente dificultoso definir quem é negro, pardo ou

branco, assim, o sistema de autodeclaração apresenta-se como plenamente

inviável. Isto posto, deve o cotista preencher e assinar um termo escrito,

disponibilizado pela instituição em que deseja adentrar, ficando o mesmo

ciente que caso seja detectada falsidade testemunhal, estará o mesmo

sujeito às penalidades legais. Permite-se afirmar então que, além dos

problemas consequenciais da política de cotas relativos à desigualdade

racial, o regulamento desta ainda apresenta diversas falhas, mesmo com

seu devido aperfeiçoamento desde o período em que a Lei 12.711/2012 fora

sancionada, sendo a fraude nas autodeclarações de negros, pardos e índios

a maior destas.

São inúmeros os casos registrados no país desde a adoção do sistema

cotista, em que estudantes brancos se inscrevem no processo vestibular por

meio deste mecanismo de seleção, sendo que alguns destes logram êxito

no concernente a aprovação nos exames. Um dos exemplos mais claros do

problema em questão ocorreu na Universidade do estado do Rio de Janeiro,

onde uma estudante branca, de olhos azuis, de nome Vanessa Daudt, foi

aprovada como cotista após se declarar “negra ou índia” no vestibular

de 2013. Conforme apurado em investigação apurada pela revista “Veja”,

a estudante do curso de enfermagem conseguiu adentrar na instituição

apesar de ter ocupado o 122º lugar na classificação geral, para um concurso

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com 80 (oitenta) vagas. Apesar da abundância de denúncias, não somente

com relação ao caso supramencionado, como também em muitas outras

situações semelhantes, a direção da referida faculdade ainda não criou

nenhum mecanismo de combate a fraudes, gerando revolta e indignação

por parte dos estudantes que possuem perfil fisionômico qualificável para

o sistema de cotas e que não conseguiram aprovação no exame vestibular.

Outra situação concreta na qual também se deflagrou a falha na sistema de

autodeclaração ocorreu no exame vestibular da Universidade de Brasília

(UnB), situação em que dois irmãos gêmeos univitelinos idênticos, de nomes

Alex e Alan Teixeira, filhos de pai negro e mãe branca não tiveram a mesma

sorte ao se inscrever no sistema de cotas. No caso supramencionado, Alan foi

aceito pelos critérios da instituição e Alex não. Consoante relatado alhures,

a UnB é uma das poucas universidades que, além da autodeclaração, exige

que os estudantes passem por uma banca avaliadora, que decide que é

e quem não é negro, algo que beira o absurdo. Ocorre que, após grande

repercussão em âmbito nacional e após oposição de recurso por parte de

Alex Teixeira, a universidade decidiu reaver a decisão e também aceitou o

mesmo através do sistema de cotas. Aludida situação demonstra o quanto

a política de cotas ainda precisa evoluir, uma vez ser utilizado em uma

sociedade na qual a prática do famoso “jeitinho brasileiro” é cada vez mais

habitual. Nesta senda, o governo determina que as universidades devam

criar políticas internas para dirimir fraudes, muitas destas não se preocupam

com os buracos em seus sistemas, cabendo ao Ministério Público, atuando

como fiscal da lei, intervir nos variados casos já comprovados para evitar a

baderna que subverteu não só os critérios de meritocracia para matrícula

nas instituições educacionais, mas a própria lógica das cotas. À vista disso,

um sistema de cotas que não barra os falsos cotistas prejudica a todos, e

não somente aos que, por lei, por pior que ela seja, teriam acesso legítimo

a tal benefício.

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4.7 MECANISMOS ALTERNATIVOS ÀS COTAS RACIAIS

É certo afirmar que a humanidade deve desculpas aos negros

por todos os acontecimentos históricos envolvendo referida camada

populacional, conforme já fora antes citado, contudo, a aplicação de cotas

não é oportuna, tampouco melhor alternativa para tal, uma vez que o ideal

seria a criação de uma política igualitária, sem a terminologia “preto” ou

“branco”, estabelecendo de forma definitiva que todos são iguais perante

a lei. Consoante pesquisa levantada pelo site de notícias “G1”, estudos

realizados no ano de 2015 pela agência de pesquisas Hello Research

comprovam que o senso comum no território brasileiro é de que há uma

favorabilidade para que o Estado conjuntamente às Universidades públicas

adotem cotas sociais como política de inclusão de alunos ao invés das cotas

raciais. De acordo com o levantamento feito pela supracitada entidade,

48% dos pesquisados apoiam o sistema de cotas sociais, relativas a reserva

de vagas para alunos que frequentaram o ensino público, enquanto

38% aprovam o uso de cotas raciais. Em razão do descontentamento

populacional, a melhor prerrogativa estatal para auferir igualdade e

justiça, não só aos vestibulandos, como também à população negra, parda

e índia em geral, seria a imediata extinção da política de cotas e a criação

de um novo mecanismo capaz de propiciar igualdade aos estudantes, além

de possibilitar a redução do preconceito racial, ao menos no assunto em

estudo.

Neste giro, deveria o Estado aditar gradativamente verbas

relacionadas à educação fundamental e média, que culminaria a melhoria na

qualidade do ensino nas escolas públicas, podendo equiparar-se aos colégios

particulares. Assim sendo, tal progresso resultaria na melhor formação

profissional, mental e educacional do aluno, o que afastaria a necessidade de

aplicação de políticas favorecedoras e separatistas no tocante à entrada nas

universidades federais e estaduais do país. Conclui-se que as cotas raciais

e sociais não representam a solução para a melhoria de oportunidades

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aos estudantes pobres, negros, pardos e índios, ao passo que não inibem

o preconceito racial e social, sendo a melhoria na qualidade do ensino

público no Brasil o escopo substancial para gerar igualdade de condições

a todos. Por fim, para abolir de vez a diferenciação racial predominante

em território nacional, seria também de extrema necessidade a criação

de políticas meramente conscientizadoras à população para resguardar a

dignidade humana, bem como demonstrar que a simples coloração corporal

não significa superioridade ou inferioridade, sendo a qualidade e o interior

de cada ser humano as características individualizantes principais.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em breve relato, pode-se perceber que o tema proposto no presente

estudo trata-se de suma importância não somente para a área jurídica,

mas para toda a população, uma vez que a discussão acerca do preconceito

racial é algo que de maneira direta ou indireta afeta a todos. Conforme

anteriormente transcorrido, a legislação pátria, bem como os operadores do

direito e os membros das esferas da administração pública vêm buscando

a adoção de políticas sociais para alcançar de forma plena a aplicação do

princípio da igualdade na sociedade de modo geral. Dito isto, é sabido que

a igualdade de raças talvez seja a mais árdua de ser alcançada, o que leva à

adoção de ações afirmativas objetivando dirimir o preconceito racial. Uma

destas ações afirmativas foi criada no ano de 2012, tal qual a lei de cotas

raciais para os estudantes que almejam o ingresso nas instituições públicas

de ensino superior. Ocorre que, consoante sustentado no inteiro teor do

presente trabalho monográfico, a aplicação da referida lei mostra-se como

inconstitucional, ao passo que discrimina de forma injustificada indivíduos

que se encontram em situação de igualdade. Apesar de ser permitido e

plenamente aceitável o tratamento desigual para pessoas que se encontram

em situação de desigualdade, dita situação não se mostra presente na

situação in comento, haja vista que a única raça existente é a raça humana,

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sendo certo afirmar que em exames que medem o intelecto do indivíduo, a

cor da pele não deve ser fator preponderante para a aprovação. Nos dias de

hoje, apesar da veiculação de situações nas quais se averigua a prática de

atos injuriosos, o que se verifica é que negros, pardos e indígenas não mais

se encontram em condições desfavoráveis com relação aos brancos. O que

se vê é que hoje existem muitos cidadãos negros sobejamente respeitados,

que representam ou representaram elevado grau de influência no meio

social, como o presidente dos Estados Unidos da América, Barack Obama,

o advogado e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa,

o ex-presidente e ativista Nelson Mandela, dentre muitas outras figuras

públicas que contribuíram de maneira gradativa para a sociedade de modo

geral. Assim sendo, não havendo que se falar em diferença entre raças,

é certo afirmar que um governo que visa conceber a isonomia não pode

segregar pessoas que se encontram sob a mesma situação, havendo uma

clara incompatibilidade com os princípios constitucionais, mormente o

princípio da igualdade, previsto no caput do art. 5º da Constituição Federal.

Neste ínterim, indubitável a afirmativa de que a lei de cotas discrimina ao

invés de igualar. A aplicação da lei em debate não se mostra como a melhor

alternativa para gerar igualdade entre indivíduos no tocante ao ingresso

dos mesmos nas universidades públicas, não tendo alcançado o resultado

prático almejado, tendo em vista o elevado grau de descontentamento

populacional. Nesta senda, conclui-se que a melhor forma de se buscar

a conscientização da população de que todos são iguais perante a lei é

a formação de ações afirmativas que busquem de maneira mais justa

e aceitável a igualdade racial, sendo que no concernente ao aspecto

educacional, a melhoria no sistema público a níveis de ensino fundamental

e médio seria a maneira mais correta de conceder justiça àqueles que

concorrem por uma vaga nas universidades públicas, de forma que

estes possam ter o mesmo nível intelectual em comparação àqueles que

provenientes de escolas privadas. Destarte, se ocorresse de fato um maior

investimento no sistema educacional brasileiro por parte do poder público,

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desnecessária seria a criação de cotas e, consequentemente não mais se

discutiria a respeito do aspecto segregacionista deste sistema.

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A CONTAGEM DE PRAZO NO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL ESTADUAL, APÓS A VIGÊNCIA DO NOVO CPC

Os militantes dos Juizados Especiais Estaduais Cíveis navegavam

em águas, relativamente, tranquilas. É verdade que existiam divergências

pontuais sobre aplicação de um ou outro dos diversos institutos aplicáveis

ao microssistema das causas de menor complexidade.

Certamente, a falta de maiores discussões acaloradas advém

da estabilidade de sua lei de regência, a Lei nº 9.099/95, decorrente,

principalmente, de seus vinte e dois anos de existência, sem que tenha

havido modificações relevantes do seu texto.

Contribui, evidentemente, para a estabilidade de seus institutos

a pequena quantidade de artigos em seu corpo: da porção que regula os

feitos cíveis, contam-se nada mais do que 59 artigos.

Calha lembrar, outrossim, a existência do Fórum Nacional dos

Juizados Especiais, muito conhecido pelo FONAJE. Ele ocorre anualmente.

Reunidos, vários magistrados atuantes neste microssistema, discutem

vários temas controvertidos, tanto de índole processual, quanto de natureza

material. Ao fim do evento anual, aprovam súmulas, que, conquanto não

Edenildo Souza Couto. - Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Pós-graduado em Direito Processual Civil pelo Juspodivm. Bacharel em Direito pela Faculdade de Tecnologia e Ciências. Laureado pela Instituição supracitada. Escritor de livros e de vários artigos publicados em revistas jurídicas. Professor de diversas disciplinas do Direito. Editor fundador da revista Artigo jurídico. Atualmente é Assessor de Juiz - Tribunal de Justiça do Estado da Bahia e Professor de diversas disciplinas do curso de Direito.

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tenham natureza vinculante, servem de norte para juízes de todo o Brasil.

É inegável que, neste sentido, o FONAJE presta relevante serviço

à comunidade jurídica, principalmente porque, até então, não existe nos

juizados estaduais uma turma de uniformização de jurisprudência própria,

ao contrário do que ocorre nos juizados federais[1].

Ocorre que a vigência do novel Código de Processo Civil (CPC),

Lei 13.105/2015, provocou grande rebuliço entre aqueles que lidam com

os processos em trâmite nos Juizados Estaduais Cíveis. Diversos foram os

motivos. Cito, por exemplo, a controvérsia sobre a possibilidade de aplicação

integral das multas previstas no artigo 523, §1º do CPC[2] aos feitos regidos

pela lei de regência do microssistema em cotejo.

Mas neste trabalho, verifica-se outra balbúrdia que passou a

azuretar a vida dos que trabalhavam, sem maiores perrengues, nos juizados

estaduais cíveis: a forma como deve ser contado o prazo processual.

Fato é que desde que a Lei 9.099/95 passou a vigorar em nossas

terras, aplicavam-se, subsidiariamente, as normas do Código de Ritos. E

assim o é por diversos motivos, aqui elencados os mais relevantes.

Consta no artigo 3º, II da lei em apreço que os juizados especiais são

competentes para processar e julgar as causas enumeradas no artigo 275,

II do CPC de 1973.

Dispõe, outrossim, nos artigos 52 e 53, que a execução de título

extrajudicial terá apoio subsidiário das regras encartadas no Código de

Ritos.

Ademais, constava, expressamente, no artigo 273 do CPC revogado

que ao procedimento sumaríssimo (rectius sumariíssimo), deveriam ser-

lhe aplicadas as disposições do rito ordinário, regulado por aquele.

Pois bem.

É imperioso lembrar que os prazos podem ser contados de diversas

formas: em minutos, a exemplo dos 20 minutos para sustentação oral

(artigo 364 do Novo CPC). Pode ser fixado em hora, como ocorre no preparo

do recurso inominado que deve ocorrer em 48 horas da interposição da

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espécie recursal, conforme previsto no §1º do Artigo 42 da Lei 9.099/95.

Pode correr, outrossim, em mês ou, até mesmo, em ano.

Neste opúsculo, a preocupação recai sobre a contagem do prazo

para prática de ato processual, na unidade dia.

Até a vigência do novo CPC, a contagem deste tipo de prazo seguia

a fórmula parametrizada no artigo 184 do seu antecessor, segundo o qual

(sic) “salvo disposição em contrário, computar-se-ão os prazos, excluindo o

dia do começo e incluindo o do vencimento”.

Também em decorrência do dispositivo legal em comento, dava-se

por prorrogado o prazo até o primeiro dia útil, se o vencimento caísse em

dia sem que houvesse expediente no fórum: feriados, finais de semanas,

etc.

Como cediço, no dia 18 de março de 2016, entrou em vigor o atual

CPC.

Juntamente com ele, pairou, sobre os feitos cíveis regidos por aquele

código, nova forma de contar prazos processuais. Isto porque, nos termos

impresso no artigo 219 da lei em análise, na contagem de prazo processual

em dia, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias

úteis.

É oportuno ressaltar que não houve alteração na forma de contagem

do prazo para cumprimento da obrigação determinada judicialmente. Para

este, o prazo continua sendo contado em dias corridos, inclusive férias,

feriados ou outros dias em que não há expediente forense[3].

Mesmo assim, não tardou para que diversas vozes, a exemplo da

entonada por Erik Linhares[4], se levantassem contra a contagem de prazo

processual em dias úteis nos juizados especiais.

Os magistrados integrantes da diretoria e comissões do FONAJE

elaboraram a Nota Técnica 01/2016. Por esta, a contagem em dia útil

constitui “inexplicável distanciamento e indisfarçável subversão ao

princípio constitucional da razoável duração do processo”. Além disto,

sentencia o ato em destaque, a nova contagem de prazo é incompatível com

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o critério informador da celeridade, o que torna imperativo o afastamento

desta regra do Novo CPC nos juizados estaduais cíveis[5].

Esta corrente ganhou tamanha força que conseguiu, no XXXIX

FONAJE aprovar o enunciado 165, segundo o qual “Nos Juizados Especiais

Cíveis, todos os prazos serão contados de forma contínua”[6].

O principal argumento utilizado por esta corrente, consoante já

explicitado pela nota técnica citada alhures, é o de que a nova contagem de

prazo, inaugurada pelo atual CPC fere de morte um dos pilares do juizado

especial que é o princípio da celeridade processual.

Além disto, propugnam que esta vai ao arrepio da razoável duração

do processo, materializado no Artigo art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal.

Contudo, deve-se consignar que, uma vez afastada a contagem de

prazo encartada pelo CPC, seria preciso encontrar uma solução legislativa

para justificar a contagem em dias corridos nos juizados, até porque a Lei

nº 9.099/95 é omissa sobre esta questão.

A solução dada pelos defensores desta corrente foi simplória.

Defenderam que deveria ser aplicada a regra do Artigo 775 da Consolidação

das Leis Trabalhistas (CLT). Isto porque, segundo propugnam, esta guarda

intrínseca relação valorativa com a Lei 9.099/95, a exemplo da capacidade

postulatória das partes, vedação da citação por edital, unicidade da

audiência, obrigatoriedade de comparecimento pessoal das partes à

audiência, admissibilidade de julgamento por equidade, entre outras[7].

Permissa venia, trata-se de posição com a qual não concordamos.

Vejamos:

Primus icutus oculi, é preciso reconhecer que a contagem do prazo

em dias úteis afigura-se importante conquista dos causídicos, aqui incluindo

os defensores públicos, advogados, procuradores, etc. Deveria ser regra em

todo o Ordenamento Jurídico brasileiro. Isto porque diminui a pressão que

um prazo em curso exerce sobre eles, ao excluir, de seu cômputo, os sábados,

domingos e feriados. E ao fazê-lo prestigia-se os princípios constitucionais

da ampla defesa e do contraditório.

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A nova forma de contagem do prazo para prática de atos nos

processos cíveis, em hipótese alguma, fere o princípio da celeridade.

Na verdade, o atraso da tutela jurisdicional decorre da elevada

demanda existente, de um lado; e péssima estrutura do Poder Judiciário,

de outro.

Neste ponto, de nada adianta findar um prazo com brevidade se,

após a protocolização da petição correlata, o processo ficará parado, por

meses, inicialmente, aguardando um servidor fazer a conclusão dos autos

e, posteriormente, muitos outros, talvez anos, até que o juiz, enfim, exare a

análise respectiva.

Tanto é verdade o que aqui se diz que, segundo os dados da Justiça

em Números 2016 do Conselho Nacional de Justiça[8], em 2015, um processo

aguardou em média onze meses para ser sentenciado no juizado especial

estadual. Em média, a fase de conhecimento neste microssistema da justiça

durou quase dois anos; a de execução, quatro anos e três meses.

Não se pode esquecer, outrossim, que nos juizados especiais cíveis

são poucos (e curtos), os prazos previstos na sua lei de regência para

práticas de atos processuais mais corriqueiros: cinco dias para interposição

de embargos de declaração; dez dias para protocolização do recurso

inominado; dez dias para apresentação das contrarrazões ao recurso

interposto; quinze dias para oposição de embargos à execução; outros

quinze para a manifestação do embargado. Nada mais.

Portanto, resta aqui demonstrado que a contagem em dias úteis,

nos Juizados, não fere o princípio da celeridade. Ao contrário, prestigia

Princípios, inegavelmente, de maior carga axiológica, com os da Ampla

defesa e do Contraditório.

Com a mesma tacada, pelos mesmos argumentos ora sustentados,

enterra-se o discurso de que a contagem em dias úteis faz sangrar o

Princípio da Razoável Duração do Processo, previsto no Artigo 5º, LXXVIII

da Constituição Federal.

De mais a mais, é importante ressaltar que nos juizados especiais

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cíveis, mesmo em relação ao módulo de conhecimento, sempre aplicou-se,

subsidiariamente, as regras do Código de Processo Civil. Desde o nascedouro

deste destaque do Poder Judiciário, a receita para contagem de prazo estava

no CPC.

Até a entrada em vigor do novel Código de Ritos, a CLT não era

aplicada subsidiariamente aos Juizados Especiais. E nem tinha razão ser

aplicada, porquanto lei especial, voltada para cuidar dos feitos trabalhistas.

Ora, não se pode agora, mais de duas décadas depois da vigência da

lei atual dos juizados estaduais, do nada, sem qualquer base sólida, alterar

a norma que a colmanta.

Aceitar tal acinte, além disto, traria vários problemas de natureza

prática.

Isto porque, expressamente, consignou-se no artigo 52 da Lei

9.099/95 a aplicação subsidiária do CPC, na execução perante os juizados.

Pois bem.

Ainda que se admitisse a aplicação subsidiária do artigo 775 da CLT,

a mesma somente poderia ser admitida na fase de conhecimento; jamais

na fase de execução, pois haveria de se aplicar a norma do código de ritos.

Ter-se-ia o absurdo de duas formas de contagem de prazos em um mesmo

rito: em dias corridos (artigo 775 da CLT) na fase de conhecimento; em dias

úteis, nos termos do artigo 219 do NCPC.

Mesmo problema ocorreria para contagem do prazo do recurso

extraordinário, nos juizados especiais. Isto porque tal prazo não é fixado

na Lei 9.099/95; mas na seção II do novo código de processo e exige sua

contagem em dias úteis.

Portanto, nunca se admitiu a aplicação subsidiária da CLT nos

Juizados Especiais Estaduais e não pode ser, neste ponto específico de

contagem de prazo, que se pode admiti-la, até porque, consoante visto,

trará mais problemas do que solução.

Conclui-se, portanto, que, no Juizado Especial Cível Estadual, o

prazo para prática de atos processuais deverá ser contado em dias úteis, na

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forma preconizada no artigo 219 do Código de Processo Civil de 2015.

NOTAS.

[1] Após a publicação deste trabalho no Portal Artigo Jurídico, recebi

inúmeros e-mails, com alerta de que existe, nos Juizados Estaduais da Bahia,

Turma de Uniformização de Jurisprudência. Trata-se, todavia, de verdadeira

invenção administrativa, por parte, não apenas do sodalício baiano, mas de

muitos Tribunais de Justiça, sem que exista qualquer previsão legal para

tanto. Não por menos, recentemente, uma medida liminar vergastada pelo

Conselheiro Henrique Ávila, do CNJ, suspendeu o funcionamento de órgãos

que julgam recursos repetitivos, que uniformizam o entendimento, no

âmbito dos juizados especiais de todo o país. Verificar detalhes em: (http://

www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84649-liminar-suspende-recursos-repetitivos-

nos-juizados-especiais).

[2] Sugere-se a leitura do texto “O artigo 523, §1º do Novo Código de Processo

Civil nos Juizados Especiais Cíveis” de Edenildo Couto (2016), disponível

em https://artigojuridico.com.br/2016/08/28/a-aplicacao-integral-da-regra-

do-artigo-523-%c2%a71o-do-novo-codigo-de-processo-civil-nos-juizados-

especiais-civeis/.

[3]Neste sentido, AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do

Novo CPC. São Paulo: RJ, 2015. p. 312.

[4] LINHARES, Erik. A contagem de prazos processuais no novo CPC e os

juizados especiais. Disponível em <http:// http://www.conjur.com.br/2016-

mar-17/erick-linhares-contagem-prazos-juizados-especiais>.

[5] Nota técnica 01/2016 do FONAJE. Disponível em < http://www.amb.com.

br/fonaje/?p=610>.

[6] Enunciados do FONAJE. Disponíveis em: <http:// amb.com.br/

fonaje/?p=32>.

[7] LINHARES, Erik. opcit.

[8] Dados disponíveis em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/

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arquivo/2017/05/4c12ea9e44c05e1f766230c0115d3e14.pdf>

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REVISITANDO OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS E INFORMATIVOS DO PROCESSO

Renato Manucci - Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor Tutor do curso de Pós-Graduação em Direito Processual Civil da Estácio/CERS. Professor Universitário. Membro da Comissão do Advogado Público da 16ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil de Bragança Paulista. Procurador Jurídico da Câmara Municipal de Bragança Paulista. Advogado. E-mail: [email protected]

Resumo: o presente estudo pretende examinar os princípios fundamentais

e informativos do processo com os olhos voltados à nova realidade

processual instaurada com a aprovação do novo Código de Processo Civil,

instituído pela Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Além disso, foram

analisadas as principais questões práticas envolvendo o tema e revisitada a

jurisprudência dos tribunais. Nesse particular, verificou-se, por exemplo, a

superação do entendimento do STF que considerava constitucional a regra

que assegurava foro especial à mulher, além do afastamento das ações

penais originárias em trâmite eletrônico perante o STF do prazo em dobro

para réus com litisconsortes diferentes.

Palavras-chave: princípios fundamentais e informativos. Constituição

Federal. Legislação. Novo CPC.

Abstract: The present study intends to examine the fundamental and

informative principles of the process with a view to the new procedural

reality established with the approval of the new Code of Civil Procedure

established by Law 13.105 of March 16, 2015. In addition, Issues and revisited

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the jurisprudence of the courts. In this particular case, it was verified,

for example, overcoming the understanding of the STF that considered

constitutional the rule that ensured a special forum for women, as well as

the removal of criminal proceedings originating in electronic form before

the STF of the double term for defendants with different litisconsortes.

Keywords: Fundamental principles and information. Federal Constitution.

Legislation. New CPC.

Sumário: 1. Introdução – 2. Processo e Constituição. – 3. Princípios

fundamentais do processo: 3.1 Princípio do devido processo legal; 3.2.

Princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional: 3.2.1 Exaurimento

das vias ordinárias e inafastabilidade do controle jurisdicional; 3.2.2

Arbitragem e inafastabilidade do controle jurisdicional; 3.2.3 Proibição

de concessão de liminares. 3.3 Princípio da igualdade ou isonomia

(paridade de armas): 3.3.1 Benefício de prazo; 3.3.2 Prazo em dobro para

litisconsortes com procuradores diferentes; 3.3.3 Foro especial da mulher;

3.4 Princípio do contraditório; 3.5 Princípio da ampla defesa; 3.6 Princípio

do juiz natural; 3.7 Princípio do duplo grau de jurisdição; 3.8 Princípio da

razoável duração do processo – 4. Princípios informativos do processo:

4.1 Princípio da inércia (ou dispositivo); 4.2 Princípio do impulso oficial;

4.3 Princípio da lealdade e boa-fé processual; 4.4 Princípio da adequação:

4.4.1 Critérios de adequação; 4.4.2 Adequação jurisdicional do processo;

4.5 Princípio da cooperação; 4.6 Princípio da primazia do julgamento de

mérito; 4.7 Princípio da publicidade e da motivação das decisões judiciais –

5. Considerações finais – Referências.

1. INTRODUÇÃO

Um determinado ramo do direito para adquirir autonomia

necessita de princípios próprios, que lhe assegurem mecanismos para sua

aplicação prática. Não é diferente com o processo civil, que é informado

por princípios constitucionais e infraconstitucionais, classificados pela

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doutrina, respectivamente, em princípios fundamentais e princípios

informativos do processo civil.

E o estudo do tema ganhou novos contornos com a moderna teoria

dos princípios, desenvolvida, sobretudo, a partir dos estudos de Robert

Alexy, Ronald Dworkin, Humberto Ávila, dentre outros, Assim, foi revista

a função dos princípios no ordenamento jurídico, abandonando-se a

concepção de que eram apenas meios de colmatação de lacunas. A partir

desta nova realidade, os princípios passaram a integrar o ordenamento

jurídico como espécies de norma jurídica, aumentando a necessidade de

seu estudo.

No âmbito processual, o devido processo legal é o princípio-mãe, do

qual decorrem todos os outros. Aliás, nas palavras de Nelson Nery Junior:

Bastaria a Constituição Federal de 1988 ter enunciado

o princípio do devido processo legal, e o caput e os

incisos do art. 5º, em sua grande maioria, seriam

absolutamente despiciendos. De todo modo, a

explicitação das garantias fundamentais derivadas do

devido processo legal, como preceitos desdobrados nos

incisos da CF 5º, é uma forma de enfatizar a importância

dessas garantias, norteando a administração pública,

o Legislativo e o Judiciário para que possam aplicar a

cláusula sem maiores indagações (NERY JUNIOR, 2009,

p. 85).

Com o presente estudo, destarte, pretende-se examinar os principais

princípios fundamentais e informativos do processo, destacando as

inovações do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 13.105, de

16 de março de 2015 e da jurisprudência sobre o tema.

2. PROCESSO E CONSTITUIÇÃO

A Constituição já foi considerada uma mera carta de intenções, época

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em que era lícita a interpretação de um dado ramo do direito dissociado

das diretrizes constitucionais. “Por isso é que era muito comum, pelo

menos até há bem pouco tempo, interpretar-se e aplicar-se determinado

ramo do direito tendo-se em conta apenas a lei ordinária principal que o

regulamentava” (NERY JUNIOR, 2009, p. 85).

A referida concepção perdeu força desde o desenvolvimento e

difusão da teoria da Força Normativa da Constituição, de Konrad Hasse,

marco a partir do qual houve o reconhecimento da superioridade da

Constituição, a qual não se limita, como outrora, ao seu aspecto formal

(NOVELINO, 2013, p. 34).

Por isso, a interpretação da legislação infraconstitucional deve partir

do texto constitucional. Afinal, a Constituição é a Lei das Leis, fundamento

de validade de toda a ordem jurídica, vale dizer, “é a norma fundamental

que constitui a unidade de uma pluralidade de normas enquanto representa

o fundamento da validade de todas as normas pertencentes a essa ordem

normativa” (KELSEN, 1999, p. 136).

Trata-se de fenômeno que tem sido denominado de

“constitucionalização” dos diversos ramos do direito, dele não escapando,

obviamente, o processual civil. E tal compreensão é acentuada nos Estados

em que a Constituição é analítica, tal qual a Constituição Federal de 1988,

que não se atém aos aspectos fundamentais, tratando de temas estranhos à

estrutura do Estado.

Com base nisso, Cássio Scarpinella Bueno fala na existência de um

modelo constitucional do processo civil, no qual os princípios constitucionais

“[…] ocupam-se especificamente com a conformação do próprio processo,

assim entendido o método de atuação do Estado-juiz e, portanto, método

de exercício da função jurisdicional. São eles que fornecem as diretrizes

mínimas, mas fundamentais, do próprio comportamento do Estado-juiz”

(BUENO, 2012, p. 192).

Não por outra razão que o art. 1º do novo CPC dispõe que “o

processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os

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valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da

República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código”.

É bem verdade que o dispositivo diz o óbvio, mas nossas raízes históricas

justificam a necessidade de reafirmação da principiologia constitucional e

infraconstitucional do processo.

3. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO

3.1 PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

O devido processo legal é a garantia das garantias, na medida

em que dela decorre, praticamente, todas as demais; ou como prefere a

doutrina “princípio-síntese” ou “princípio de encerramento”, pois condensa

“[…] todos os valores ou concepções do que se entende como um processo

justo e adequado, isto é, como representativo suficiente de todos os demais

indicados pela própria Constituição Federal e, em geral, desenvolvidos pela

doutrina e pela jurisprudência” (BUENO, 2012, p. 212).

Para além das garantias formais, que não deixam de ser consectários

do devido processo legal, tais como contraditório, juiz natural, ampla defesa,

duplo grau de jurisdição, dentre outras, a sociedade contemporânea exige

que o processo seja justo e se desenvolva da forma mais célere possível. Tal

preocupação, aliás, justificou a inclusão da razoável duração do processo

como uma garantia fundamental.

Deveras,

Nesse âmbito de comprometimento com o “justo”, com

a “correção”, com a “efetividade” e a “presteza” da

prestação jurisdicional, o due process of law realiza, entre

outras, a função de um superprincípio, coordenando e

delimitando todos os demais princípios que informam

tanto o processo como o procedimento. Inspira e torna

realizável a proporcionalidade e razoabilidade que

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deve prevalecer na vigência e harmonização de todos

os princípios do direito processual de nosso tempo […]

(THEODORO JÚNIOR, 2014, p. 183).

Assim, deve-se estudar o princípio considerando a existência de

duas dimensões: substancial (substantive due process) e formal/processual

(processual due process). Sob o enfoque formal/processual, a tutela

jurisdicional deve ser prestada pelo Estado com a estrita observância às

regras procedimentais previamente estabelecidas, dando concretude aos

direitos de ação e de defesa.

De outro lado, o devido processo legal substancial consubstancia

a necessidade de observância da razoabilidade e da proporcionalidade

na aplicação das normas processuais. A cláusula foi expressamente

reconhecida pelo art. 8º do CPC, que exige do magistrado, ao aplicar o

ordenamento jurídico, o dever de velar pela dignidade da pessoa humana e

observar a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade

e a eficiência.

O novo sistema processual, destarte, prima pela máxima eficiência

da tutela jurisdicional, o que é um corolário do devido processo legal

substancial (processo justo). Com efeito,

O processo justo, na concepção constitucional, não é o

programado para ir além do direito positivado na ordem

jurídica: é apenas aquele que se propõe a outorgar

aos litigantes a plena tutela jurisdicional, segundo

os princípios fundamentais da ordem constitucional

(liberdade, igualdade e legalidade). (THEODORO

JÚNIOR, 2014, p. 189).

3.2. PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE DO CONTROLE JURISDICIONAL

Trata-se de princípio consagrado no inciso XXXV do art. 5º da CF,

segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão

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ou ameaça a direito”. O CPC reproduz no caput do art. 3º o referido princípio,

dispondo que “não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão

a direito”. “Embora o destinatário principal desta norma seja o legislador,

o comando constitucional atinge a todos indistintamente, vale dizer, não

pode o legislador nem ninguém mais impedir que o jurisdicionado vá a

juízo deduzir pretensão” (NERY JUNIOR, 2009, p. 170).

Quanto ao âmbito de abrangência da garantia, verifica-se do

conteúdo dos dispositivos em comento que ela alberga sob seu manto

protetor tanto a tutela preventiva ou inibitória (ameaça de lesão) quanto a

repressiva (pós lesão).

Outrossim, “a Constituição não exige que essa lesão ou ameaça seja

proveniente do Poder Público, o que permite concluir que estão abrangidas

tanto as decorrentes de ação ou omissão de organizações públicas como

aquelas oriundas de conflitos privados” (MENDES; GONET, 2011, p. 438-

439).

O princípio, como todo direito fundamental, não é absoluto,

contemplando-se, excepcionalmente, hipóteses em que é lícita a limitação

do acesso à Justiça. Exemplifica-se com a previsão do § 1º do art. 217, que

condiciona o acesso à Justiça, para discutir questões derivadas de causas

desportivas, ao exaurimento das possibilidades na Justiça Desportiva.

Entretanto, algumas situações são peculiares e como tais suscitam

discussões e controvérsias, merecendo uma atenção especial.

3.2.1 EXAURIMENTO DAS VIAS ORDINÁRIAS E INAFASTABILIDADE DO

CONTROLE JURISDICIONAL

O § 4º do art. 153 da Constituição Federal de 1967, com redação

da Emenda Constitucional 07, de 13 de abril de 1977[1], autorizava a

legislação a exigir, como condição para o ingresso em juízo, o exaurimento

das vias administrativas. A ressalva, contudo, não foi reproduzida no texto

constitucional de 1988, o que, à primeira vista, conduz ao entendimento de

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222 223

que seria vedada restrições de tal espécie.

Não obstante, inúmeras legislações, a exemplo das Leis 11.417/2006

(art. 7º, § 1º) e 9.507/1997 (art. 8º, parágrafo único), ainda exigem, em dadas

circunstâncias, o exaurimento das vias ordinárias para viabilizar o acesso

ao Poder Judiciário. A questão que se coloca, nesse cenário, diz respeito à

conformação das sobreditas legislações aos termos da Constituição Federal

de 1988. Em outros termos, é preciso investigar a compatibilidade das

restrições ao modelo constitucional de processo.

Elucidativas, a propósito do tema, a lição de Gilmar Ferreira Mendes

et al:

[…] Pode-se sustentar que, ao lado da tarefa

conformadora, o legislador não está impedido de

restringir ou limitar o exercício do direito à proteção

judicial, especialmente em razão de eventual colisão

com outros direitos ou valores constitucionais. Resta

claro que o núcleo essencial do direito fundamental à

proteção judicial efetiva não pode ser agredido, porém

a relatividade deste núcleo essencial e a compreensão

segundo a qual as restrições operam externamente

e não internamente permitem que a dimensão a

posteriori deste direito seja menor do que a sua feição

a priori. (MENDES; GONET, 2011, p. 455) .

Para Fredie Didier Jr., os direitos fundamentais podem sofrer

restrições por obra do legislador infraconstitucional, desde que fundadas

em justificativas razoáveis. Fundado nesta premissa, conclui o referido

doutrinador que “pode a lei restringir, em certos casos, o acesso ao

Judiciário; se, porém, revelar-se abusiva, de acordo com circunstâncias

particulares do caso concreto, esta restrição pode ser afastada pelo órgão

julgador” (DIDIER JR., 2015, p. 179-180).

A jurisprudência do STF orienta-se nesse sentido:

Ementa: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO

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222 223

GERAL. PRÉVIO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO E

INTERESSE EM AGIR. 1. A instituição de condições para

o regular exercício do direito de ação é compatível com

o art. 5º, XXXV, da Constituição. Para se caracterizar

a presença de interesse em agir, é preciso haver

necessidade de ir a juízo. 2. A concessão de benefícios

previdenciários depende de requerimento do

interessado, não se caracterizando ameaça ou lesão a

direito antes de sua apreciação e indeferimento pelo

INSS, ou se excedido o prazo legal para sua análise.

É bem de ver, no entanto, que a exigência de prévio

requerimento não se confunde com o exaurimento

das vias administrativas. 3. A exigência de prévio

requerimento administrativo não deve prevalecer

quando o entendimento da Administração for notória e

reiteradamente contrário à postulação do segurado. 4.

Na hipótese de pretensão de revisão, restabelecimento

ou manutenção de benefício anteriormente concedido,

considerando que o INSS tem o dever legal de conceder

a prestação mais vantajosa possível, o pedido poderá

ser formulado diretamente em juízo – salvo se

depender da análise de matéria de fato ainda não

levada ao conhecimento da Administração –, uma vez

que, nesses casos, a conduta do INSS já configura o não

acolhimento ao menos tácito da pretensão. 5. Tendo

em vista a prolongada oscilação jurisprudencial na

matéria, inclusive no Supremo Tribunal Federal, deve-

se estabelecer uma fórmula de transição para lidar

com as ações em curso, nos termos a seguir expostos. 6.

Quanto às ações ajuizadas até a conclusão do presente

julgamento (03.09.2014), sem que tenha havido prévio

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224 225

requerimento administrativo nas hipóteses em que

exigível, será observado o seguinte: (i) caso a ação

tenha sido ajuizada no âmbito de Juizado Itinerante, a

ausência de anterior pedido administrativo não deverá

implicar a extinção do feito; (ii) caso o INSS já tenha

apresentado contestação de mérito, está caracterizado

o interesse em agir pela resistência à pretensão; (iii)

as demais ações que não se enquadrem nos itens (i) e

(ii) ficarão sobrestadas, observando-se a sistemática a

seguir. 7. Nas ações sobrestadas, o autor será intimado

a dar entrada no pedido administrativo em 30 dias,

sob pena de extinção do processo. Comprovada a

postulação administrativa, o INSS será intimado a se

manifestar acerca do pedido em até 90 dias, prazo

dentro do qual a Autarquia deverá colher todas as

provas eventualmente necessárias e proferir decisão.

Se o pedido for acolhido administrativamente ou

não puder ter o seu mérito analisado devido a razões

imputáveis ao próprio requerente, extingue-se a ação.

Do contrário, estará caracterizado o interesse em agir

e o feito deverá prosseguir. 8. Em todos os casos acima

– itens (i), (ii) e (iii) –, tanto a análise administrativa

quanto a judicial deverão levar em conta a data do

início da ação como data de entrada do requerimento,

para todos os efeitos legais. 9. Recurso extraordinário a

que se dá parcial provimento, reformando-se o acórdão

recorrido para determinar a baixa dos autos ao juiz de

primeiro grau, o qual deverá intimar a autora – que

alega ser trabalhadora rural informal – a dar entrada

no pedido administrativo em 30 dias, sob pena de

extinção. Comprovada a postulação administrativa,

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224 225

o INSS será intimado para que, em 90 dias, colha as

provas necessárias e profira decisão administrativa,

considerando como data de entrada do requerimento

a data do início da ação, para todos os efeitos legais.

O resultado será comunicado ao juiz, que apreciará a

subsistência ou não do interesse em agir (BRASIL, STF,

RE 631.240/MG, 2014).

3.2.2 ARBITRAGEM E INAFASTABILIDADE DO CONTROLE

JURISDICIONAL

A arbitragem constitui meio de solução de litígios por

heterocomposição, uma vez que o conflito é resolvido por um terceiro

escolhido pelas partes em conflito, a quem compete buscar uma solução

amigável e imparcial. Não há uma uniformidade na doutrina sobre sua

natureza jurídica, havendo três diferentes concepções.

A primeira delas é no sentido de que a arbitragem só pode ser

considerada um equivalente jurisdicional, na medida em que a jurisdição

é monopólio do Estado. Uma segunda acepção, capitaneada pelo professor

Cássio Scarpinella Bueno, entende que se trata de método paraestatal de

solução de conflitos (BUENO, 2012, p. 70). A terceira posição defende que a

arbitragem tem natureza jurisdicional, dividindo a jurisdição em jurisdição

estatal, que é prestada pelo Estado-juiz, e jurisdição privada, prestada por

meio da arbitragem. Não existe um entendimento que possa ser considerado

majoritário. Tanto é verdade que a jurisprudência do STJ tem precedentes

em ambos os sentidos[2].

Seja como for, para o presente estudo, importa perquirir acerca

da compatibilidade da arbitragem com o princípio da inafastabilidade

do controle jurisdicional. É bem verdade que, para quem considera a

arbitragem típico exercício de atividade jurisdicional por particular, a

questão é irrelevante.

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226 227

Não se pode esquecer, para a abordagem do tema, que nosso

ordenamento jurídico é orientado pela ideia de efetividade da tutela

jurisdicional, que é uma das vertentes do princípio do devido processo

legal. De mais a mais, somente litígios relativos a direitos patrimoniais

disponíveis podem ser submetidos à arbitragem. Logo, é natural que

se assegure a autonomia da vontade das partes na escolha do terceiro

incumbido da resolução do litígio.

Com esse espírito, Nelson Nery Junior assinala:

O fato de as partes constituírem convenção de

arbitragem não significa ofensa ao princípio

constitucional do direito de ação. Isto porque somente

os direitos disponíveis podem ser objeto de convenção

de arbitragem, razão por que as partes, quando o

celebram, estão abrindo mão da faculdade de fazerem

uso da jurisdição estatal, optando pela jurisdição

arbitral. Terão, portanto, sua lide decidida pelo árbitro,

não lhes sendo negada a aplicação da atividade

jurisdicional. (NERY JUNIOR, 2009, p. 172).

E tal panorama, vale registrar, foi estendido pela Lei 13.129, de 26

de maio de 2015, às demandas envolvendo a Administração Pública, desde

que relativa a direitos patrimoniais disponíveis, nos exatos termos do

permissivo do art. 1º, § 1º, da Lei 9.307/1996, alterado pela novel legislação.

3.2.3 PROIBIÇÃO DE CONCESSÃO DE LIMINARES

Outra questão polêmica refere-se à possibilidade de restrição ou

mesmo proibição de concessão de provimentos liminares ou antecipatórios

em determinados procedimentos. Tal medida foi consagrada, especialmente,

no âmbito do mandado de segurança, inicialmente pela Lei 4.348/1964 e

reproduzida na Lei 12.016/2009, cujo § 2º do art. 7º estabelece que “não será

concedida medida liminar que tenha por objeto a compensação de créditos

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tributários, a entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior, a

reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de

aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza”.

Alerta a doutrina que “a proibição genérica de concessão de liminares

pode, porém, afetar a própria proteção judicial efetiva, pois, muitas vezes,

o deferimento da liminar tem em vista a conservação do direito material

postulado” (MENDES; GONET, 2011, p. 458).

A despeito da preocupação expressada pela doutrina, a

jurisprudência do STF (1990) reconheceu a compatibilidade da referida

restrição com o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional,

aplicando-se a mesma lógica do entendimento firmado em relação ao

exaurimento das vias ordinárias (razoabilidade).

3.3 PRINCÍPIO DA IGUALDADE OU ISONOMIA (PARIDADE DE ARMAS)

A fonte primária do princípio da isonomia é o art. 5º, caput, da CF,

mas a “garantia constitucional da isonomia deve, evidentemente, refletir-se

no processo. […]” (BEDAQUE, 2009, p. 97). No plano processual, a isonomia

materializa-se na necessidade de assegurar às partes paridade de armas

(art. 7º, NCPC).

Cuida-se de princípio cujo destinatário principal é o magistrado, a

quem cabe a condução do processo, de modo que deve manter a necessária

equidistância em relação às partes. Nesse sentido reza o art. 9º do Código

de Ética da Magistratura Nacional, aprovado na 68ª Sessão Ordinária

do Conselho Nacional de Justiça, em 06 de agosto de 2008, nos autos do

processo nº 200820000007337, que “ao magistrado, no desempenho de sua

atividade, cumpre dispensar às partes igualdade de tratamento, vedada

qualquer espécie de injustificada discriminação”.

Contudo, a imparcialidade, que deriva justamente da isonomia, “[…]

não significa distanciamento das partes. Ao contrário, sua relação com elas,

a vivência profunda do caso, a assimilação interior de cada drama judicial,

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é fator valioso na conduta do juiz que tem seu fundamento no princípio da

imediação” (NALINI, 2012, p. 99).

Outrossim, o estudo do princípio da isonomia perpassa pela análise

das regras de tratamento e prazo diferenciados asseguradas a determinados

sujeitos processuais. Para tanto, deve-se ter em conta que a igualdade

preconizada pelo ordenamento jurídico, inclusive na nova Codificação, é a

material ou substancial, que recomenda o tratamento igualitário das partes

na medida em que se desigualam.

Só assim é possível concretizar o princípio da dignidade da pessoa

humana e assegurar a efetividade da tutela jurisdicional. Afinal, “a real

igualdade das partes no processo somente se verifica quando a solução

encontrada não resultar da superioridade econômica ou da astúcia de uma

delas […]” (BEDAQUE, 2009, p. 101). Assim, “por mais paradoxal que possa

parecer, o tratamento distinto é, em alguns casos, a principal forma de

igualar as partes” (DIDIER JR., 2015, p. 98).

Fundado nesta premissa, serão analisadas a seguir três situações de

tratamento diferenciado.

3.3.1 BENEFÍCIO DE PRAZO

O art. 188 do CPC de 1973 assegurava ao MP e à Fazenda Pública

prazo em dobro para recorrer e em quádruplo para contestar. O CPC de

2015 manteve a previsão de prazos diferenciados, mas extinguiu o prazo

em quádruplo para recorrer, unificando, destarte, a matéria. Assim, o MP,

a Defensoria Pública e a Fazenda Pública Federal, Estadual ou Municipal

terão prazo em dobro para manifestar-se nos autos (arts. 180, 183 e 186).

O discrimen que autoriza a concessão de tais prazos diferenciados

reside na relevância dos interesses em jogo, além da precária estrutura

de alguns órgãos, especialmente a Defensoria Pública. Para Nelson Nery

Junior, “quem litiga com a Fazenda Pública ou com o Ministério Público

não está enfrentando um outro particular, mas sim o próprio povo, razão

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bastante para o legislador beneficiar aquelas duas entidades com prazos

especiais […] (NERY JUNIOR, 2009, p. 104).

Embora predominante o entendimento, existem vozes contrárias.

Nesse sentido é o posicionamento de Cássio Scarpinella Bueno:

Nada justifica que, no plano do processo, o Estado

tenha prerrogativas (privilégios) que as outras partes

não têm. Mais ainda quando é a Constituição Federal,

sempre a Constituição Federal, que determina a

atuação eficiente da Administração Pública (art. 37,

caput) e, mais ainda, quando é a mesma Constituição

Federal que institucionaliza as advocacias públicas

como órgãos institucionais para a tutela, em juízo e

fora dele, dos interesses e direitos do Estado.

Não convence o entendimento de que o Estado

representa interesses e direitos de uma coletividade e

que, por isto, sua figura impõe tratamento diferenciado

em juízo. É que a se pensar desta forma, estar-se-

ia criando uma imunidade à atuação do Estado, um

protecionismo não autorizado pela Constituição.

(BUENO, 2012, p. 251).

Na prática, contudo, a divergência não tem relevância, porque

a garantia de prazo contínua prevista na ordem jurídica processual,

não havendo notícias de decisões judiciais reconhecendo sua

inconstitucionalidade.

3.3.2 PRAZO EM DOBRO PARA LITISCONSORTES COM PROCURADORES

DIFERENTES

Os litisconsortes com procuradores diferentes terão prazos contados

em dobro para todas as suas manifestações, em qualquer juízo ou tribunal,

independentemente de requerimento (art. 229, caput, CPC). A distinção,

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nesse particular, decorre da dificuldade da realização dos atos processuais

quando as partes são representadas por advogados distintos. Obviamente

que se os vários réus são representados por um único procurador, não

haverá discrimen que autorize o tratamento diferenciado.

A propósito, o CPC de 2015, em boa hora, disciplinou alguns aspectos

objeto de divergência, de modo a garantir maior efetividade ao princípio

da igualdade. Um deles foi positivar a regra de que cessa o prazo em dobro

se, havendo apenas dois réus, é oferecida defesa por um deles (art. 229, §

1º). O referido comando legal baseou-se na orientação do STF constante

da Súmula 641, segundo a qual “não se conta em dobro o prazo para

recorrer, quando só um dos litisconsortes haja sucumbido”. Na mesma

linha, esclareceu-se que a prerrogativa de prazo em dobro não se aplica

aos processos eletrônicos (art. 229, § 2º).

O Supremo Tribunal Federal, inclusive, admitiu a aplicabilidade

da sobredita regra às ações penais originárias ao decidir que o prazo em

dobro para manifestação não valerá mais em ações penais que tramitam

eletronicamente no Supremo Tribunal Federal, pois a regra (artigo 191),

aplicada subsidiariamente, pertencia ao antigo Código de Processo Civil.

Com o novo CPC (Lei 13.105/2015), o artigo 229, parágrafo 2º, alterou essa

previsão por causa do processo eletrônico (BRASIL, STF, Inq. 380-QO, 2016).

3.3.3 FORO ESPECIAL DA MULHER

O art. 100, inciso I, do CPC de 1973 assegurava à mulher foro especial

para as ações de separação, conversão desta em divórcio e anulação de

casamento, as quais deviam ser propostas no foro de sua residência. Com o

advento da Constituição Federal que, além de consagrar igualdade genérica

no caput do art. 5º, estabeleceu como direito fundamental específico a

igualdade de homens e mulheres em direitos e obrigações (art. 5º, inciso

II), passou-se a defender a incompatibilidade do art. 100, inciso I, do CPC de

1973 e, por conseguinte, sua não recepção pela nova ordem estabelecida.

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230 231

A questão foi, inclusive, veiculada em sede de controle difuso de

constitucionalidade, oportunidade em que o STF declarou a recepção do

art. 100, inciso I, do CPC de 1973, por não vislumbrar qualquer ofensa ao

princípio da isonomia (BRASIL, STF, RE 227.114/SP, 2012).

Não foi, contudo, a orientação seguida pelo legislador do novo

CPC, que preferiu estabelecer foros concorrentes para a ação de divórcio,

separação, anulação de casamento e reconhecimento ou dissolução de

união estável. Assim, as referidas demandas, hodiernamente, deverão ser

apresentadas ao foro: (a) de domicílio do guardião de filho incapaz; (b) do

último domicílio do casal, caso não haja filho incapaz; (c) de domicílio do

réu, se nenhuma das partes residir no antigo domicílio do casal.

3.4 PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO

O princípio do contraditório constitui direito fundamental inscrito

no inciso LV do art. 5º da Constituição Federal, que assegura expressamente:

“aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados

em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e

recursos a ela inerentes”. O princípio do contraditório, na feliz observação

de Fredie Didier Jr., “é reflexo do princípio democrático na estruturação

do processo” (DIDIER JR., 2015, p. 178). Pode-se afirmar, portanto, que o

contraditório expressa a necessidade de ciência bilateral dos atos do

processo com possibilidade de contradizê-los (art. 9º, CPC).

Não se limita, porém, à ciência e reação, que são inerentes à dimensão

formal do contraditório. O princípio assegura, igualmente, a oportunidade

de a parte influenciar a decisão jurisdicional, o que corresponde à dimensão

material do contraditório. De fato,

É que o contraditório, no contexto dos “direitos

fundamentais” (v. n. 2.4 do Capítulo 2 da Parte I), deve

ser entendido como o direito de influir, de influenciar,

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na formação da convicção do magistrado ao longo

de todo o processo. Não se deve entendê-lo somente

do ponto de vista negativo, passivo, defensivo. O

Estado-juiz, justamente por força dos princípios

constitucionais do processo, não pode decidir, sem que

garanta previamente amplas e reais possibilidades de

participação daqueles que sentirão, de alguma forma,

os efeitos de sua decisão. (BUENO, 2012, p. 217).

Aliás, o contraditório material foi extremamente valorizado no

CPC de 2015, tanto que será considerada não fundamentada, e passível de

nulidade, a decisão que “não enfrentar todos os argumentos deduzidos no

processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”

(art. 489, § 1º, inciso IV).

Eduardo Cambi e Renê Francisco Hellman, sobre a influência do

contraditório nas decisões judiciais, assinalam:

O tratamento dado ao contraditório já nas primeiras

linhas do novo Código de Processo Civil tem efeito direto

na motivação da decisão judicial, porque se enfatiza o

caráter dialógico do processo e a compreensão de que a

decisão deve decorrer do diálogo entre todos os sujeitos

processuais. (CAMBI; HELLMAN, 2015, p. 427).

Até porque “a norma jurídica é fruto de uma colaboração entre

o legislador e o juiz, de modo que a sociedade civil tem o direito não só

de influenciar no momento de sua formação legislativa, mas também no

momento de sua reconstrução jurisdicional” (MARINONI; ARENHART;

MITIDIERO, 2015, p. 493).

A constatação da existência de um contraditório material, por si só,

exige do magistrado uma maior cautela no trato das questões processuais,

inclusive aquelas cognoscíveis de ofício. Por isso, Nelson Nery Júnior, antes

mesmo das discussões do novo CPC, já sinalizava no sentido de que “o

devido processo (processo justo) pressupõe a incidência […] do direito de

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ser comunicado previamente dos atos do juízo, inclusive sobre as questões

que o juiz deva decidir ex officio, entre outros derivados da procedural due

process clause.” (NERY JUNIOR, 2009, p. 90).

A preocupação da doutrina influenciou o CPC de 2015, cujo art. 10

consagra a vedação à decisão surpresa nos seguintes termos: “o juiz não

pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a

respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar,

ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.

É evidente que a regra restringe a incidência do iura novit curia,

ou seja, o magistrado para conhecer de qualquer fundamento jurídico não

suscitado pelas partes deverá, antes, submetê-la ao crivo dos interessados.

Vale dizer, o brocardo iura novit curia continua plenamente aplicável,

desde que seja aplicado em conjunto com o contraditório. Assim,

Não pode o órgão jurisdicional decidir com base em

um argumento, uma questão jurídica ou uma questão

de fato não postos pelas partes no processo. Perceba:

o órgão jurisdicional, por exemplo, verifica que a

lei é inconstitucional. Ninguém alegou que a lei é

inconstitucional. O autor pediu com base me uma

determinada lei, a outra parte alega que essa lei não se

aplicava ao caso. O juiz entende de outra maneira, ainda

não aventada pelas partes: “Essa lei apontada pelo autor

como fundamento do seu pedido é inconstitucional.

Portanto, julgo improcedente a demanda”. O órgão

jurisdicional pode fazer isso, mas deve antes submeter

essa nova abordagem à discussão das partes.

O órgão jurisdicional teria de, nessas circunstâncias,

intimar as partes para manifestar-se a respeito

(“intimem-se as partes para que se manifestem sobre

a constitucionalidade da lei”). Não há aí qualquer

prejulgamento. Trata-se de exercício democrático e

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cooperativo do poder jurisdicional, até mesmo porque

o juiz pode estar em dúvida sobre o tema. (DIDIER JR.,

2015, p. 82).

Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero,

comentando o novel preceptivo legal, asseveram que esta nova fisionomia

do contraditório assegura, a um só tempo, que a solução do litígio seja

objeto de reflexões aprofundadas e reforça a confiança do cidadão no Poder

Judiciário (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2015, p. 109).

3.5 PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA

O inciso LV do art. 5º consagra ainda o princípio ampla defesa,

que, para alguns, nada mais é do que aspecto substancial do contraditório.

“Atualmente, tendo em vista o desenvolvimento da dimensão substancial

do princípio do contraditório, pode-se dizer que eles se fundiram, formando

um amálgama de um único direito fundamental” (DIDIER JR., 2015, p. 86).

Seja como for, trata-se de princípio que assegura às partes a

possibilidade de deduzir adequadamente suas alegações, de modo que seja

a tutela jurisdicional prestada da forma mais eficiente possível. Corolário

desta principiologia é o direito fundamental à prova, afinal, “de nada

adianta garantir-se a eles [litigantes] com u’a [sic] mão o direito de alegar e

subtrair-lhes, com a outra, o direito de fazer prova das alegações. O direito

à prova, pois, está imbricado com a ampla defesa e dela é indissociável”

(NERY JUNIOR, 2009, p. 244).

3.6 PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL

O princípio do juiz natural é extraído dos comandos dos incisos

XXXVII e LIII do art. 5º da CF, que dispõem in verbis: “XXXVII – não

haverá juízo ou tribunal de exceção” e “LIII – ninguém será processado

nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Significa, em poucas

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palavras, que “[…] a autoridade judiciária que julgará um determinado

caso deverá preexistir ao fato a ser julgado” (BUENO, 2012, p. 227), sendo

vedada a criação ad hoc de tribunais.

Na feliz síntese de Nelson Nery Junior:

A garantia do juiz natural é tridimensional. Significa

que: 1) não haverá juízo ou tribunal ad hoc, isto é,

tribunal de exceção; 2) todos têm o direito de se submeter

a julgamento (civil ou penal) por juiz competente, pré-

constituído na forma da lei; 3) o juiz competente tem

de ser imparcial0 (NERY JUNIOR, 2009, p. 126).

Característica marcante da garantia refere-se à necessidade de

que o órgão jurisdicional preexista ao fato litigioso, além do fato de que o

julgamento da lide seja realizado por juiz competente, previamente investido

da função jurisdicional, de acordo com as regras previstas na Constituição

Federal e nas legislações pertinentes. A última característica do princípio é

inerente à pessoa do magistrado e diz respeito à sua imparcialidade.

Nesse sentido prescreve o art. 8º do Código de Ética da Magistratura

Nacional que “o magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a

verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo

de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o

tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou

preconceito”.

Ademais, em determinadas circunstâncias o legislador proíbe o

ingresso superveniente de litisconsortes a fim de preservar o princípio do

juiz natural. É o que se verifica no procedimento do mandado de segurança,

no qual há um limite temporal para o ingresso de litisconsorte no polo ativo:

o despacho da petição inicial (art. 10, § 2º, Lei 12.016/2009).

3.7 PRINCÍPIO DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO

O duplo grau de jurisdição não é um princípio fundamental explícito,

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o que é causa de controvérsias sobre sua real natureza. Embora haja quem

defenda que não se trata de um princípio fundamental, o entendimento

dominante é no sentido de que o duplo grau de jurisdição é princípio

constitucional implícito, extraível das entrelinhas do texto constitucional,

especialmente em razão da estrutura e da competência recursal dos

Tribunais delineadas na Constituição.

Por outro lado, no âmbito internacional, o duplo grau de jurisdição

é expressamente reconhecido pela Convenção Interamericana de Direitos

Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969, que,

no art. 8º, 2, h, assegura como garantia o “direito de recorrer da sentença a juiz

ou tribunal superior”. Por se referir o Tratado Internacional aos “acusados

de um deleito”, Nelson Nery Junior entende que apenas no processo penal

o princípio pode ser reconhecido como garantia constitucional absoluta.

Não obstante, o Ministro do STF Luis Fux, ao apreciar a

admissibilidade dos embargos infringentes em ação penal originária (Ação

Penal 470/MG – “mensalão”), “[…] registrou que o STF já teria rejeitado o

caráter constitucional dessa prerrogativa, ao afastar sua incidência nos

processos de competência originária dos tribunais superiores […]” (BRASIL,

STF, AP 470-AgR – vigésimo quinto a vigésimo sétimo/MG, 2013)[3].

Sem embargo da controvérsia, não se pode olvidar que o duplo grau

de jurisdição, ainda que não seja considerado um princípio fundamental

do processo, é uma realidade em nosso ordenamento jurídico, pois é

assegurado o direito à impugnação das decisões judiciais pelas vias recursais

cabíveis, forçando o reexame da questão por outro órgão jurisdicional

hierarquicamente superior.

3.8 PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO

A razoável duração do processo foi concebida como princípio

fundamental expresso com o advento da Emenda Constitucional 45/2004

que incluiu no art. 5º o inciso LXXVIII, com o seguinte teor: “a todos, no

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âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do

processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. É preciso

lembrar que antes mesmo da reforma constitucional a razoável duração do

processo já era tida como princípio informador do processo civil.

Ademais, o princípio está previsto no art. 8º, “1”, do Pacto de São José

da Costa Rica, segundo o qual “toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as

devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal

competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei,

na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que

se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista,

fiscal ou de qualquer outra natureza”.

O CPC de 2015, buscando reafirmar a necessidade de celeridade

processual, positivou o princípio em seu art. 4º, o qual estabelece que “as

partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito,

incluída a atividade satisfativa”. O art. 139, inciso II, em complemento,

reserva ao magistrado a importante tarefa de velar pela duração razoável

do processo, evitando manobras protelatórias pelas partes.

Mas, afinal, o que se considera razoável duração de um processo? É

preciso ter em mente que o tempo é indispensável para a prestação de uma

tutela jurisdicional de qualidade. Com efeito,

A natureza necessariamente temporal do processo

constitui imposição democrática, oriunda do direito

das partes de nele participarem de forma adequada,

donde o direito ao contraditório e os demais direitos que

confluem para organização do processo justo ceifam

qualquer possibilidade de compreensão do direito ao

processo com duração razoável simplesmente como

direito a um processo célere. O que a Constituição e

o novo Código determinam é a eliminação do tempo

patológico – a desproporcionalidade entre duração do

processo e a complexidade do debate da causa que nele

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tem lugar. O direito ao processo justo implica direito

ao processo sem dilações indevidas, que se desenvolva

temporalmente dentro de um tempo justo. (MARINONI;

ARENHAR; MITIDIERO, 2015, p. 97).

Trata-se de uma cláusula geral processual e como tal colmatável à luz

das particularidades do caso concreto, não havendo como, abstratamente,

determina-se um prazo razoável para a tramitação dos processos. Por isso,

afirma-se coerentemente que “o processo não tem de ser rápido/célere: o

processo deve demorar o tempo necessário e adequado à solução do caso

submetido ao órgão jurisdicional” (DIDIER JR., 2016, p. 86).

Nada obstante, a Lei 9.504/1997, conhecida como Lei das Eleições,

estabelece como prazo razoável para tramitação dos feitos eleitorais o prazo

de um ano, nele incluído a tramitação em todas as instâncias (art. 97-A).

A concretização do princípio pode ser buscada, inclusive, com

a facilitação da solução consensual dos conflitos, na medida em que

contribui para a diminuição do número de processos. Talvez seja esta uma

das inspirações do novo CPC, que, no § 2º do art. 3º, define que “o Estado

promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”.

Enfim,

O princípio da razoável duração do processo possui

dupla função porque, de um lado, respeita ao tempo do

processo em sentido estrito, vale dizer considerando-se

a duração que o processo tem desde seu início até o final

com o trânsito em julgado judicial ou administrativo, e,

de outro, tem a ver com a adoção de meios alternativos

de solução de conflitos, de sorte a aliviar a carga de

trabalho da justiça ordinária, o que, sem dúvida, viria

contribuir para abreviar a duração media do processo.

(NERY JUNIOR, 2009, p. 314).

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4. PRINCÍPIOS INFORMATIVOS DO PROCESSO

4.1 PRINCÍPIO DA INÉRCIA (OU DISPOSITIVO)

A legislação processual, quer no CPC de 1973 (arts. 2º e 262), quer

no CPC de 2015 (art. 2º, 490 e 492), é orientada pelo princípio da inércia ou

dispositivo, o que significa dizer, o processo tem início por iniciativa da

parte interessada (nemo iudex sine actore; ne procedat iudex ex officio).

Registre-se que a inércia é característica da jurisdição que a

diferencia da função legislativa e administrativa do Estado, na medida em

que estas funções estatais desenvolvem-se de ofício, sendo indiferente para

tanto a provocação dos interessados.

José Roberto dos Santos Bedaque, a propósito do princípio em

estudo, ressalta que a tendência doutrinária converge para o afastamento

ou a mitigação do princípio dispositivo, pois “[…] embora privado o

objeto do processo, a função jurisdicional é pública e como tal deve ser

regulamentada”, isto é, “[…] além dos interesses privados das partes existe

outro, muito mais relevante, que é o interesse do Estado na correta atuação

do ordenamento jurídico mediante a atividade jurisdicional.” (BEDAQUE,

2009, p. 133).

Não é dado, pois, ao magistrado prestar tutela jurisdicional de

ofício, ressalvadas as exceções previstas em lei, em que o ordenamento

jurídico faz concessões ao princípio inquisitivo. No CPC de 1973, o processo

de inventário e partilha constituía exemplo clássico em que era lícito ao

magistrado iniciar ex officio a atividade jurisdicional. Importante lembrar

que o CPC de 2015 não reproduziu idêntica prerrogativa, de modo que o

inventário submete-se à regra geral da inércia da jurisdição.

Hodiernamente, portanto, podem ser citados como exemplo de

concessão ao princípio inquisitivo a possibilidade de instauração de

cumprimento de sentença relativo a obrigação de fazer, não fazer ou dar

coisa distinta de dinheiro (arts. 536 e 538, CPC), bem como do incidente de

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resolução de demandas repetitivas (art. 976, CPC) e conflito de competência

(art. 951, CPC)

4.2 PRINCÍPIO DO IMPULSO OFICIAL

Em sentido amplo o princípio dispositivo consiste em “[…] deixar

para as partes os ônus de iniciação, determinação do objeto, impulso

do processo e produção de provas (iudex secundum allegata et probata

partium judicare debet).” (BEDAQUE, 2009, p. 89). Tal concepção não foi,

porém, abraçada pela legislação brasileira, que é taxativa no sentido de

que, uma vez instaurada a relação jurídica processual por iniciativa da

parte, o processo se desenvolve por impulso oficial.

“A regra do impulso oficial não impede que o autor simplesmente

desista da demanda e, com isso, o processo seja extinto sem exame do mérito

(art. 485, VIII, CPC)” (DIDIER JR., 2015, p. 86). Outrossim, não se pode olvidar

da modificação operada pela nova Codificação em relação ao procedimento

e sua adaptabilidade por convenção das partes. Nesse sentido, reza o art.

190, caput, do CPC que “versando o processo sobre direitos que admitam

autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças

no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar

sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou

durante o processo”.

Assim pensa Teresa Arruda Alvim Wambier et al, para quem “[…] o

NCPC contém um conjunto de regras que alteraram as feições do princípio

do impulso oficial: as que tratam das convenções processuais, previstas no

art. 190 […] (WAMBIER; CONCEIÇÃO; RIBEIRO; MELLO, 2015, p. 58)”

4.3 PRINCÍPIO DA LEALDADE E BOA-FÉ PROCESSUAL

No CPC de 1973, a boa-fé processual constava do art. 14, inciso II,

segundo o qual são deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer

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forma participam do processo proceder com lealdade e boa-fé. O CPC de

2015, por sua vez, aborda o princípio no art. 5º, dispondo que “aquele que

de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com

a boa-fé”.

Em ambas os diplomas, a boa-fé processual é trabalhada como

norma de conduta de todos os sujeitos processuais, incluído o magistrado

(boa-fé objetiva), que devem pautar suas atitudes por parâmetros éticos

mínimos. Não se justifica, pois, a alegação maquiavélica de que “os fins

justificam os meios”.

Destarte, “comporta-se com boa-fé aquele que não abusa de suas

posições jurídicas” (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2015, p. 99).

A boa-fé, nesse particular, é uma cláusula geral processual cuja análise

depende das situações concretas, incumbindo ao magistrado velar pela sua

concretização, aplicando, se for o caso, as sanções por litigância de má-fé

(arts 79 a 81, CPC).

Teresa Arruda Alvim Wambier et al destaca condutas que podem

ser consideradas em conformidade com a boa-fé processual:

No dever de agir com boa-fé se inclui o de dizer a

verdade, o de não criar embaraços ao cumprimento de

decisão judicial, o de exibir documento em seu poder

cujo exame, pelo juiz, seja necessário para decidir o

mérito (e isso diz respeito até a terceiros), quando ao

juiz, deve, por exemplo, declarar-se suspeito quando o

for, respeitando a isonomia entre as partes. (WAMBIER;

CONCEIÇÃO; RIBEIRO; MELLO, p. 62, grifos no original).

4.4 PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO

O princípio da adequação, que é derivado do devido processo legal,

autoriza o juiz a flexibilizar as regras procedimentais para assegurar a

eficiência na prestação da tutela jurisdicional. A adequação é princípio

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que comporta três acepções diferentes: (a) legislativa: informa a produção

legislativas das regras processuais; (b) jurisdicional: faculta ao magistrado

flexibilizar as regras procedimentais para adaptar o procedimento às

particularidades da demanda e (c) negocial: as próprias partes acordam

em flexibilizar as regras procedimentais (DIDIER JR., 2015, p. 114).

4.4.1 CRITÉRIOS DE ADEQUAÇÃO

A adequação legislativa pode ser estudada sob três enfoques

diferentes: objetivo, subjetivo e teleológico.

Sob o aspecto objetivo, o procedimento pode ser flexibilizado ora em

razão da natureza do direito litigioso, prevendo-se procedimentos especiais

diferenciados, a exemplo das ações possessórias, ações de alimentos e busca

e apreensão em alienação fiduciária; ora por força da evidência do direito

material deduzido no processo (exemplo do mandado de segurança, da

ação monitória e da própria tutela antecipada de evidência); ora em vista

da situação de emergência (exemplo da tutela provisória de urgência).

Em relação ao aspecto subjetivo, o processo deve se adequar

aos sujeitos processuais, levando em consideração peculiaridades de

determinados atores da relação jurídica processual. São exemplos de

aplicação prática da adequação subjetiva: (i) intervenção obrigatória do MP

nos processos que envolvam interesse de incapaz; (ii) regras diferenciadas

de fixação de competência (alimentando e entes públicos federais, por

exemplo); (iii) incapacidade processual para litigar em certos procedimentos,

a exemplo da vedação de participação de incapazes nos Juizados Especiais;

(iv) prazos especiais para entes públicos, MP e Defensoria Pública (art. 180,

183 e 186).

A adequação teleológica, por fim, é realizada com base nos objetivos

pretendidos com a flexibilização. Exemplificativamente, o procedimento

dos Juizados Especiais é adequado ao propósito de assegurar a razoável

duração do processo e da efetividade da tutela jurisdicional.

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4.4.2 ADEQUAÇÃO JURISDICIONAL DO PROCESSO

A adequação legislativa é insuficiente para o atingimento dos

propósitos da jurisdição. Mesmo porque é uma análise prévia e abstrata

realizada pelo legislador, havendo situações concretas que escapam às

previsões legais. É imprescindível, pois, assegurar autonomia ao magistrado

para realizar a adequação in concreto do procedimento às peculiaridades

da demanda em julgamento.

O art. 139, inciso VI, do CPC consagra hipótese específica de adequação

do processo, autorizando o magistrado a dilatar prazos processuais e alterar

a ordem de produção das provas, quando entender necessário em razão das

particularidades da causa. Logo se percebe que não houve, efetivamente, a

positivação da adequação genérica jurisdicional do processo.

Outra hipótese em que está o magistrado autorizado a adequar

o procedimento diz respeito à possibilidade de redistribuição do ônus

da prova quando as particularidades do caso concreto demonstrarem a

impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo probatório

ou a maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário.

Não houve, é bem verdade, previsão de adequação genérica do

procedimento. E daí emerge a dúvida: poderia o magistrado valer-se do

princípio independentemente de autorização legislativa? Considerando a

origem do princípio (devido processo legal) e a necessidade de assegurar

a eficiência na prestação da tutela jurisdicional, não há como interditar

a utilização do princípio pelo magistrado, desde que a decisão seja muito

bem fundamentada.

Nesse sentido é o magistério de Fredie Didier Jr.:

Permite-se ao magistrado que corrija o procedimento

que se revele inconstitucional, por ferir um direito

fundamental processual, como o contraditório (se

um procedimento não previr o contraditório, deve o

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magistrado determina-lo, até mesmo ex officio, como

forma de efetivação desse direito fundamental).

Se a adequação do procedimento é um direito

fundamental, cabe ao órgão jurisdicional efetivá-lo,

quando diante de uma regra procedimental inadequada

às peculiaridades do caso concreto, que impede, por

exemplo, a efetivação de um direito fundamental (à

defesa, à prova, à efetividade etc.). (DIDIER JR., 2015,

p. 118).

4.5 PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO

O princípio da cooperação ou cooperativo foi previsto no art. 6º do

CPC, segundo o qual “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si

para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”.

Com isso, o procedimento é estruturado mediante regras que exigem a

ampla participação das partes na construção do provimento jurisdicional,

respeitadas, evidentemente, suas posições no litígio.

Disso surgem deveres de conduta tanto para as

partes como para o órgão jurisdicional, que assume

“dupla posição”: “mostra-se paritário na condução do

processo, no diálogo processual”, e “assimético” no

momento da decisão; não conduz o processo ignorando

ou minimizando o papel das partes na “divisão do

trabalho”, mas, sim, em uma posição paritária, com

diálogo e equilíbrio (DIDIER JR., 2016, p. 125-126).

Em suma, “a colaboração implica revisão das fronteiras concernentes

à responsabilidade das partes e do juiz no processo” (MARINONI;

ARENHART; MITIDIERO, 2015, p. 101). Nesse cenário, fala-se em:

(i) dever de esclarecimento: as partes devem deduzir suas pretensões

de modo claro, objetivo e coerente; em relação ao órgão jurisdicional, cabe-

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lhe aclarar todas as dúvidas das partes relativas a suas alegações e pedidos,

situação presente, por exemplo, no despacho que determina a emenda à

petição inicial, que deverá indicar precisamente o que deve ser corrigido

ou complementado pela parte;

(ii) dever de lealdade: as partes devem comportar-se observando

parâmetros éticos mínimos;

(iii) dever de proteção: uma parte não pode deliberadamente

prejudicar a outra, o que é uma decorrência da boa-fé processual;

(iv) dever de consulta: questões estranhas à lide, ainda que

cognoscíveis de ofício pelo magistrado, somente podem ser objeto de

cognição caso previamente submetidas ao crivo das partes, aspecto já

estudado por ocasião da análise do princípio do contraditório. Do mesmo

modo, a constatação da ausência de algum requisito de admissibilidade

não enseja, de plano, a extinção do processo, a qual fica condicionada a

oitiva das partes sobre a questão;

(v) dever de prevenção: impõe ao magistrado a obrigação de apontar

as deficiências das postulações das partes a fim de sejam supridas e, assim,

seja o processo aproveitado, em homenagem ao princípio da economia

processual,

A nova sistemática, portanto, demonstra que não há preponderância

de qualquer dos sujeitos do processo, sendo a tutela jurisdicional resultado

de uma atuação cooperativa das partes e do órgão jurisdicional.

4.6 PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DO JULGAMENTO DE MÉRITO

O princípio da primazia do julgamento do mérito da demanda

determina o aproveitamento do processo, sempre que possível, para que

seja viabilizado o julgamento de seu mérito. Em outras palavras, deve-se

priorizar o julgamento do mérito da causa, corrigindo-se os vícios sanáveis.

Não deixa de ser, pois, uma decorrência do princípio da instrumentalidade

das formas, que enxerga o processo como meio e não fim em si mesmo.

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O legislador, nesse aspecto, valeu-se da experiência do processo

coletivo, que há muito prega a valorização do julgamento do mérito em

detrimento de questões de admissibilidade do processo. A experiência

demonstra que o princípio conduz “à solução mais inteligente e consentânea

com o princípio da economia processual” (NEVES, 2014, p. 149).

Inúmeros são os exemplos de aplicação prática do princípio no CPC,

tais como as regras dos arts. 4º (razoável duração do processo como direito

à solução integral do mérito); 6º (dever de cooperação para a obtenção de

decisão de mérito justa e efetiva), art. 139, inciso IX (dever do magistrado

de determinar o suprimento dos pressupostos processuais e saneamento de

outros vícios processuais), 282, § 2º (quando o juiz puder decidir o mérito a

favor da parte a quem a aproveite a nulidade, o juiz não pronunciará e nem

mandará repetir o ato ou suprir-lhe a falta), dentre outros.

4.7 PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE E DA MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES

JUDICIAIS

O art. 11 do CPC, na mesma linha do art. 93, inciso IX, da CF, dispõe

que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos,

e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade. Por isso, o

art. 52, § 6º, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que assegurava

julgamento secreto às representações disciplinares de magistrados, não foi

recepcionado pela CF (BRASIL, STF, ADI 4.638-REF-MC/DF, 2012).

O princípio da motivação das decisões judiciais, por sua vez, exige

que o magistrado, ao decidir, decline os fundamentos de fato e de direito que

embasam o seu entendimento, refutando as teses sustentadas pelas partas

capazes de infirmar sua conclusão. Afinal, “sem motivação a decisão judicial

perde duas características centrais: a justificação da norma jurisdicional

para o caso concreto e a capacidade de orientação de condutas sociais.

Perde, em uma palavra, o seu próprio caráter jurisdicional” (MARINONI;

ARENHART; MITIDIERO, 2015, p. 111).

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo civil moderno valoriza a eficiência na prestação da

tutela jurisdicional, afinal, trata-se de um serviço público essencial e

relevante, submetido aos ditames do art. 37, caput, da Constituição, que

consagra os princípios constitucionais da Administração Pública, dentre

eles a eficiência.

Com esse espírito, o novo CPC previu nos doze artigos iniciais

disposições que pretendem dar concretude a todos os princípios do processo,

sejam eles fundamentais ou meramente informativos. Na verdade, seria

suficiente a previsão do devido processo legal e do princípio cooperativo,

na medida em que todos os demais deles derivam. Não obstante, o

exaurimento da matéria não prejudica a sua compreensão; ao contrário,

orienta o intérprete e aplicador do direito.

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Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

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Luiz Fux. Diário de Justiça Eletrônico: 19 maio 2008.

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Nancy Andrighi. Diário de Justiça Eletrônico: 03 abril 2014.

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 631.240/MG, Pleno, rel. Min.

Roberto Barroso. Diário de Justiça Eletrônico: 07 nov. 2014.

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 223-MC/DF, Pleno, rel. Min.

Paulo Brossad, rel. p/ acórdão Min. Sepúlveda Pertence. Diário de Justiça:

29 jun. 1990, p. 1587.

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BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 227.114/SP, 2ª T., rel. Min.

Joaquim Barbosa. Diário de Justiça Eletrônico: 15 fev. 2012.

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AP 470 AgR – vigésimo quinto a

vigésimo sétimo/MG, rel. Min. Joaquim Barbosa, 11 e 12.9.2013

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 4.638-REF-MC/DF, Plenário do

STF, rel. Min. Marco Aurélio, j. 08.02.2012.

BUENO, Cássio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São

Paulo: Saraiva, 2015.

_______. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. Vol. 01: Teoria Geral

do Direito Processual Civil. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

CAMBI, Eduardo; HELLMAN, Renê Francisco. Precedentes e Dever de

Motivação das Decisões Judiciais no Novo Código de Processo Civil. Revista

de Processo nº 241, mar. 2015.

DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 01: Introdução ao

Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 17ª ed.

Salvador: Juspodivm, 2015.

DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil.

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Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. 55ª

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11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

ZANETI JR., Hermes; GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direitos Difusos e

Coletivos. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2012.

NOTAS

[1] Art. 153 […] § 4º Os vencimentos dos juizes vitalícios serão fixados com

diferença não excedente de vinte por cento de uma para outra entrância,

atribuindo-se aos de entrância mais elevada não menos de dois terços

dos vencimentos dos desembargadores, assegurados a estes vencimentos

não inferiores aos que percebam os Secretários de Estado, não podendo

ultrapassar, porém, os fixados para os Ministros do Supremo Tribunal

Federal.

[2] “[…] uma vez convencionado pelas partes cláusula arbitral, o árbitro vira

juiz de fato e de direito da causa, e a decisão que então proferir não ficará

sujeita a recurso ou à homologação judicial, segundo dispõe o artigo 18 da

Lei 9.307/96, o que significa categorizá-lo como equivalente jurisdicional,

porquanto terá os mesmos poderes do juiz togado, não sofrendo restrições

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na sua competência” (BRASIL, STJ, MS 11.308/DF, 2008).

“[…] A atividade desenvolvida no âmbito da arbitragem tem natureza

jurisdicional, sendo possível a existência de conflito de competência entre

juízo estatal e câmara arbitral” (BRASIL, STJ, CC 111.230/DF, 2014).

[3] STF, AP 470 AgR – vigésimo quinto a vigésimo sétimo/MG, rel. Min.

Joaquim Barbosa, 11 e 12.9.2013, informativo 719.

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A REPARAÇÃO DO DANO NA FASE DE EXECUÇÃO PENAL

Luiz Flário Borges D’Urso - Advogado Criminalista, Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP, foi Presidente da OAB/SP por três gestões, Conselheiro Federal da OAB, Presidente de Honra da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – ABRACRIM e Professor Honoris Causa da Faculdade de Direito da FMU. Site: www.durso.com.br.

A importante fase da execução penal tem início com o cumprimento

da pena imposta ao final do processo penal, todavia, admite-se também, a

execução penal provisória, para aqueles que, presos preventivamente, já

tenham cumprido tempo de prisão cautelar, que lhes assegure o direito à

progressão de regime.

Esta fase processual nunca recebeu a atenção necessária dos juristas

e legisladores, e talvez isto se deva à situação de pobreza que se encontra

a quase totalidade da massa carcerária brasileira, refletindo num mercado

de trabalho pouco atrativo economicamente.

Tamanho descaso com a execução penal e com o próprio sistema

prisional tem consequências jurídicas e fáticas que refletem na sociedade

como um todo.

Com o advento da operação Lava Jato, réus de elevado poder

aquisitivo passaram a ser remetidos aos cárceres, quer por decretação

de custódias cautelares (frequentemente prisões preventivas), quer por

decisões condenatórias, que embora não definitivas, levaram à instauração

de execuções provisórias das penas, perante as Varas de Execuções

Criminais.

Diante deste fato, o mercado alterou-se de modo a atrair profissionais

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do Direito para esta área, até então exercida quase que exclusivamente

pelos Defensores Públicos e Advogados nomeados para defesa de réus

pobres.

A matéria que contempla a fase de execução penal é bem ampla e

complexa, reclamando do profissional do Direito, conhecimento específico

de institutos jurídicos só existentes nesta fase.

Uma questão bastante tormentosa reside na obrigatoriedade

da reparação do dano – quando imposta pela sentença penal – para que

o sentenciado possa progredir de regime, passando de um regime de

cumprimento de pena mais grave, para um regime menos severo.

Pela lei brasileira, além do preenchimento das condições objetivas

(tempo de cumprimento de pena) e das condições subjetivas (bom

comportamento carcerário), exige-se – quando imposto pela sentença – que

a reparação do dano seja cumprida, para se conceder a referida progressão.

Neste ponto, apresentam-se alguns problemas, pois o sentenciado

poderá não ter condições financeiras para realizar tal reparação e esse fato

não poderá impedir que a progressão lhe seja concedida.

Isto porque, no Brasil, não se admite manter alguém preso, somente

porque esta pessoa não possui recursos financeiros. Da mesma forma,

não se pode admitir a manutenção de alguém em regime mais gravoso,

somente porque não tem dinheiro para pagar a reparação do dano que lhe

foi imposta.

A impossibilidade de reparação do dano, pode se dar pela constrição

do patrimônio do sentenciado (penhora, arresto, etc.), podendo também

se verificar tal impossibilidade, quando o valor da reparação é superior

à totalidade do patrimônio do condenado. Nestes casos, a progressão não

pode ser vedada.

Mesmo em sede de execução penal provisória, existe uma tendência

de não se admitir a execução somente de parte da pena (exige-se o

cumprimento da pena na sua inteireza), obrigando, também neste caso, a

reparação do dano, salvo quando esta for impossível, como nos exemplos

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indicados anteriormente.

Explico. Se a reparação não pode ser realizada por causa de bloqueios

patrimoniais judiciais, ou ainda, se o patrimônio total do sentenciado

não alcançar o valor a ser reparado, e isto for devidamente provado, não

se poderia impedir a progressão de regime, quando presente os demais

requisitos.

Nesta situação, há que se conceder a progressão de regime, porquanto

o cumprimento da reparação do dano só não ocorreu por condições alheias

à vontade do sentenciado, que se encontra insolvente.

Por fim, tomemos o exemplo da fiança, a qual não pode ser fixada

em valor elevado, tornando-a impagável, pois, dessa forma inviabilizaria

a liberdade do preso, pelo fato deste não dispor de condições financeiras,

mantendo-o encarcerado. Da mesma forma deve ser enfrentada a questão

da reparação do dano, que deve se adequar às condições financeiras

do sentenciado, não devendo a sua insolvência, tornar-se óbice para a

progressão de regime prisional.

Resta lembrar, por derradeiro, que os valores impostos na sentença,

a título de reparação de danos, representam dívida de valor, para as quais

o Estado dispõe de mecanismos de cobrança. Assim, o encarceramento

jamais deve ser utilizado para obrigar tal pagamento.

A progressão de regime prisional é um direito do condenado, de

modo que, preenchidos os requisitos de tempo de cumprimento de pena e

de bom comportamento, a reparação do dano imposta pela sentença, deve

ser paga, desde que o condenado tenha condições para tal.

Caso essa condição de pagamento inexista, mesmo assim, a

progressão deve ser concedida, pois, se negada, estaríamos diante de uma

prisão por dívida, o que é proibido no ordenamento jurídico do Brasil.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A PREVISÃO DOS PROCEDIMENTOS DE COMPLIANCE NA LEI DAS ESTATAIS

Luíza Moura Costa Spínola - Advogada formada pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Ciências Criminais pela Faculdade Baiana de Direito. Especializada em Compliance pela Legal Ethics Compliance (LEC). Especializada em Crime Organizado, Corrupção e Terrorismo pela Universidade de Salamanca.E-mail: [email protected]

Resumo: Este trabalho tem por escopo analisar brevemente os

procedimentos de compliance previstos pela Lei nº 13.303/2016, também

chamada de Lei das Estatais. São previstos mecanismos de compliance

em diversos artigos dessa lei com o intuito de estabelecer diretrizes para

as atividades das empresas públicas e sociedades de economia mista. As

inovações trazidas pela Lei das Estatais quanto à conformidade se mostram

benéficas para a sociedade em geral, uma vez que fomentam as boas

práticas empresariais no cenário brasileiro, promovendo a transparência

nas organizações e combatendo a corrupção.

Palavras-Chave: Direito Administrativo. Compliance. Lei das Estatais. Lei

nº 13.303/2016.

1. INTRODUÇÃO

Antes de abordar os procedimentos de compliance previstos na

legislação brasileira, se faz necessário explicar o significado do termo. Essa

palavra é originária do inglês e significa o dever de estar em conformidade

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com leis, diretrizes e comportamentos externos e internos, com o intuito de

minimizar o risco ligado à reputação e ao risco legal, conforme as lições de

Coimbra e Manzi (2010, p. 2).

É possível considerar que essas regras se deram por conta do

processo de globalização, juntamente com o aumento da corrupção e da

criminalidade econômica, segundo explicam Greco Filho e Rassi (2016, p.

217). Contudo, não foram somente exigências normativas que promoveram

um aumento na demanda de compliance. Há, no âmbito empresarial, uma

crescente preocupação das organizações, tanto públicas quanto privadas,

com a sua imagem, que pode ser prejudicada por envolvimento de seus

funcionários com condutas corruptas.

Apesar de muito se falar sobre compliance atualmente, o tratamento

dos procedimentos de conformidade pela legislação brasileira não é tão

recente quanto muitos pensam. A Lei nº 9.613/1998, chamada popularmente

de Lei de Lavagem de Dinheiro, dispõe acerca da prevenção da utilização

do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta norma. O artigo 9º

da referida lei prevê quais são as pessoas físicas e jurídicas que devem

se submeter às obrigações mencionadas nos artigos 10 e 11. Esses artigos

prevêem alguns procedimentos de conformidade para essas pessoas, tais

como a manutenção de cadastros de seus clientes e o dever de atender às

requisições do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF).

Percebe-se que a Lei de Lavagem de Capitais trata de mecanismos

de compliance, ou seja, de procedimentos que devem ser adotados pela

empresa para estar em conformidade com as regras e diretrizes relativas às

atividades que desempenham. Essa tendência parece estar se expandindo

para outras normas da legislação brasileira.

Outro exemplo mais recente da inclinação do legislador brasileiro

no sentido de fomentar as boas práticas empresariais pode ser encontrado

na Lei nº 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção, que dispõe sobre

a responsabilidade das pessoas jurídicas, nos âmbitos administrativo e civil,

por atos cometidos contra a administração pública nacional ou estrangeira.

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Em caso de sanção, o artigo 7º, VIII, prevê a existência de mecanismos

internos de conformidade como fator a ser levado em conta. O Decreto

nº 8.420/2015, que regulamenta a Lei nº 12.846/2013, conhecida como Lei

Anticorrupção, estabelece em seu artigo 41 quais são os parâmetros de

avaliação de um programa de compliance, como, por exemplo, a existência

de códigos de ética e registros contábeis.

A Lei nº 13.303/2016, chamada de Lei das Estatais, acompanha essa

tendência, uma vez que é possível verificar em seus artigos a previsão

de diversos mecanismos de compliance aplicáveis às empresas públicas,

às sociedades de economia mista e suas subsidiárias. Analisaremos a

seguir alguns deles, bem como teceremos breves explicações sobre os

procedimentos de conformidade que devem ser adotados pelas referidas

organizações no desempenho de suas atividades.

2. DOS MECANISMOS DE COMPLIANCE MENCIONADOS PELA LEI Nº

13.303/2016

Primeiramente, se faz necessário explicar do que se trata um

programa de compliance, para uma melhor compreensão das medidas de

conformidade previstas pela Lei das Estatais. Um programa de compliance,

segundo Sarcedo (2016, p. 45), deve versar sobre criação, implantação e

fiscalização de normas de condutas e posturas internas da empresa, com

o objetivo de conscientizar seus colaboradores sobre deveres e obrigações

na prevenção de riscos legais e regulatórios, bem como deve distribuir as

responsabilidades entre os indivíduos que colaboram na sua administração.

Não apenas empresas privadas, mas também empresas públicas

vêm apresentando certa preocupação com assessoria de compliance

atualmente. A Petrobras, empresa estatal, após os escândalos de corrupção,

buscou consultorias em escritórios de advocacia para realizar programas

de conformidade e investigações com o objetivo de verificar a ocorrência

de práticas ilícitas no âmbito da organização[2].

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A Lei das Estatais prevê, em seu artigo 1º, §7º, que na participação

em sociedade empresarial em que a empresa pública, a sociedade de

economia mista e suas subsidiárias não detenham o controle acionário, essas

deverão adotar, no dever de fiscalizar, práticas de governança e controle

proporcionais à importância, à materialidade e aos riscos do negócio do qual

são partícipes. Nesse sentido, deve haver o controle sobre determinados

elementos relevantes para as atividades da empresa, como documentos e

informações estratégicas do negócio e informe sobre execução da política de

transações com partes relacionadas. Essa necessidade de registro de dados

importantes para a organização pode ser considerada um mecanismo de

compliance, uma vez que essas informações podem ser requisitadas pelos

órgãos regulatórios competentes com a finalidade de verificar a ocorrência

de atos ilícitos por meio de investigações.

O estatuto da empresa deve versar sobre regras de governança

corporativa, de transparência e de estruturas, práticas de gestão de riscos

e de controle interno e composição da administração, segundo o artigo

6º da referida lei. Caso haja acionistas, o estatuto também deve tratar de

mecanismos para sua proteção. Sobre governança corporativa, Candeloro,

Rizzo e Pinho (2015, p. 191) explicam que se trata de um conjunto de

responsabilidades, princípios e práticas utilizados em um modelo de

gestão, com a finalidade de salvaguardar a empresa e manter a harmonia

nas relações entre as partes envolvidas em suas atividades. Sarcedo (2016,

p. 43) destaca que há vários conceitos de governança corporativa, mas que

todos eles possuem pontos em comum, tais como a obediência ao sistema

legal em que a companhia empreende e está inserida, assim como o

aprimoramento das relações interpessoais e de poder na organização.

Os requisitos mínimos de transparência para as empresas

públicas e as sociedades de economia mista estão dispostos no artigo 8º

da Lei das Estatais. Dentre eles está a divulgação tempestiva e atualizada

de informações relevantes, especialmente as relacionadas a atividades

desenvolvidas, estrutura de controle, fatores de risco, dados econômico-

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financeiros, comentários dos administradores sobre o desempenho,

políticas e práticas de governança corporativa e descrição da composição

e da remuneração da administração. Ademais, deve haver a elaboração

e divulgação de política de divulgação de informações, em conformidade

com a legislação em vigor e com as melhores práticas.

Considerando a análise desse artigo, percebe-se que o compliance

precisa atuar em cooperação com diversas áreas da empresa, entre elas

a Alta Administração e o setor de gestão de riscos corporativos O suporte

da Alta Administração é considerado um dos mais relevantes, se não o

mais relevante, pilar do programa de compliance, segundo Serpa (2016).

Para o autor, não se trata apenas de uma questão de alocação de recursos

para o setor de compliance, mas das práticas e exemplos do alto escalão da

empresa, que devem ser os primeiros a entender o conteúdo do programa

de conformidade e as direções relacionadas a ele.

Sobre a gestão de riscos, Coimbra e Manzi (2010, p. 43) esclarecem

que seus objetivos são: compreender quais os riscos que atingem a

missão da organização; obter respostas de forma célere quanto aos riscos

identificados; reduzir surpresas operacionais e perdas. Os autores ainda

explicam que um programa de análise de riscos adequado permite ao setor

de compliance e ao Conselho de Administração ter acesso a informações

sobre o nível de conformidade da empresa.

O artigo 9º da Lei nº 13.303/2016 prevê que tanto a empresa pública

quanto a sociedade de economia mista devem adotar regras de estruturas

e práticas de gestão de riscos e controle interno que envolvam: a ação

dos administradores e empregados, através da implementação frequente

de práticas de controle interno; a área encarregada pela verificação de

cumprimento de obrigações e de gestão de riscos; a auditoria interna e o

Comitê de Auditoria Estatutário.

De acordo com Coimbra e Manzi (2010, p. 41), a auditoria e o

compliance são partes do sistema de controles internos. Os controles

internos englobam sistemas, processos, procedimentos, pessoas e

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tecnologia. A auditoria interna é responsável por verificar a estrutura de

controles internos, sua eficiência e identificar se há fragilidades, realizando

a correção dos pontos de não conformidade, segundo Candeloro, Rizzo e

Pinho (2015, p. 34). Os autores explicam que a abordagem promovida pelo

setor de Auditoria ocorre de forma aleatória e temporal e apenas identifica

a não conformidade após ela ter acontecido, enquanto que o setor de

compliance realiza essa abordagem de forma rotineira e permanente para

prevenir os riscos envolvidos em cada atividade.

Há ainda a necessidade de elaboração de um Código de Conduta

com disposições acerca de certos mecanismos de compliance, consoante o

primeiro parágrafo do artigo 9º. Também chamado de Código de Ética por

algumas organizações, trata-se de um mecanismo utilizado pela instituição

para informar aos seus colaboradores os princípios éticos basilares de

sua atuação e que devem ser observados por todos os seus membros

(CANDELORO; RIZZO; PINHO, 2015, P. 59). Para Serpa (2016), a empresa

não pode exigir que o indivíduo mude seus padrões morais, mas pode

exigir um determinado comportamento de seus funcionários, de modo

que a expressão “Código de Conduta” seria a mais adequada. O inciso I do

referido parágrafo estabelece a necessidade do Código de Conduta conter,

além dos princípios e missão da empresa, orientações acerca de conflitos de

interesses e vedações de atos de corrupção e fraude. Um Código de Conduta

deve ser escrito, preferencialmente, de forma objetiva, para que não dê

margem a interpretações pessoais sobre as normas ali dispostas, devendo

mencionar as sanções do não cumprimento do código, citando, inclusive, a

hipótese de demissão por justa causa, conforme destaca Serpa (2016).

O primeiro parágrafo do artigo 9º prevê ainda, em seu inciso

III, que o Código de Conduta deve dispor sobre canal de denúncias para

viabilizar o recebimento de notificações internas e externas relacionadas

ao descumprimento do Código de Conduta e Integridade e das demais

normas internas de ética e obrigacionais. O inciso seguinte versa sobre a

necessidade de mecanismos de proteção que evitem a retaliação contra

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pessoas que utilizem o canal de denúncias. O sistema de denúncia possibilita

que as vítimas de um ato arbitrário apresentem uma reclamação, sem que

sofram qualquer tipo de represália, de acordo com Coimbra e Manzi (2010,

p. 96). Esse mecanismo evita que situações de não conformidade persistam

e permite a reparação dos danos sofridos.

Na hipótese de violação ao Código de Conduta devem ser aplicadas

sanções, de acordo com o inciso V do primeiro parágrafo do artigo 9º. Já

o inciso VI versa sobre a necessidade de realização de treinamento, ao

menos uma vez por ano, sobre o Código de Conduta e Integridade, para

empregados e administradores, e sobre a política de gestão de riscos, para

administradores. Mecanismos como esses contribuem para a formação de

uma cultura de conformidade, pois esclarecerem para os funcionários que

o desempenho de um programa de compliance, com a concretização de

seus objetivos, é fundamental para o crescimento da organização e que,

por meio do respeito às regras, colaboradores e acionistas podem evitar

riscos (COIMBRA; MANZI, 2010, p. 88). Consoante Alexandre Serpa (2016),

alguns dos pontos relevantes para o treinamento são o rol de treinamentos

“de compliance”, que podem incluir situações de conflitos de interesse e

práticas anticorrupção, bem como o registro e acompanhamento da efetiva

realização do treinamento.

A área encarregada da verificação de cumprimento de obrigações

e de gestão de riscos deverá ser vinculada ao Diretor-presidente e liderada

por Diretor estatutário, consoante o segundo parágrafo do artigo 9º. O

estatuto social deve prever as atribuições da área, bem como estabelecer

mecanismos que assegurem atuação independente. A independência pode

ser considerada um dos princípios da função de compliance e, consoante

Candeloro, Rizzo e Pinho (2015, p. 6), esse conceito envolve quatro elementos

relacionados: status; head of compliance; conflito de interesses; acesso a

informações.

O setor de compliance deve ter status formal na organização para

lhe conferir autoridade e independência e ser definida em um documento

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formal. Nesse documento devem constar: seu papel e responsabilidades;

medidas para salvaguardar sua independência; sua relação com outras

funções de gerenciamento de risco da organização e com a auditoria

interna; seu direito de acesso às informações necessárias ao exercício de

suas funções; seu direito de conduzir investigações; seu direito de acesso

ao Conselho de Administração ou a um Comitê do Conselho (CANDELORO;

RIZZO; PINHO, 2015, p. 6).

Além do status formal com garantia de independência, o compliance

officer pode ou não ser membro da Alta Administração. Caso seja, não

deve ter encargos na linha de negócios. Se não for, deve ter assegurada a

possibilidade de se reportar diretamente a um membro da gerência sênior

que não tenha responsabilidade direta nessa linha. A independência dos

funcionários da área de compliance não deve ser comprometida caso

eles estejam desempenhando uma função na qual haja conflito entre as

atividades de compliance e outras de sua responsabilidade. O compliance

officer ainda deve ter a faculdade de se comunicar com qualquer membro

da organização e ter acesso a registros ou documentos necessários para

desempenhar sua função (CANDELORO; RIZZO; PINHO, 2015, p. 7).

Em conformidade com o pressuposto de que o compliance deve

poder divulgar suas conclusões ao Conselho de Administração ou para uma

Comissão do Conselho está o parágrafo 4º do artigo 9º da Lei nº 13.303/2016.

Segundo esse parágrafo, o estatuto social deverá prever a possibilidade

de que a área de compliance se reporte diretamente ao Conselho de

Administração em situações em que houver suspeita do envolvimento do

diretor-presidente e irregularidades ou quando este se furtar à obrigação de

adotar medidas necessárias em relação à situação a ele relatada. Segundo

Serpa (2016), de nada adianta um programa de compliance de elevada

qualidade, se não houver uma maneira de as informações coletadas por

meio do programa chegarem aos líderes da empresa, que são os responsáveis

pelo êxito do programa, e se as definições acordadas com o profissional de

compliance não forem respeitadas.

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Ainda sobre a função do compliance officer, Sarcedo (2016,

p. 51) destaca que deve haver clareza sobre o escopo e o conjunto de

responsabilidades a ele atribuídas na administração da empresa, uma vez

que ele não é, e nem pode ser confundido com um profissional escolhido

com a simples e única finalidade de assumir todos os riscos da companhia.

O artigo 12 da Lei das Estatais estabelece em seu inciso II que a

empresa pública e a sociedade de economia mista devem adequar, de

maneira constante, suas práticas ao Código de Conduta e Integridade

e a outras regras de boa prática de governança corporativa, na forma

prevista na regulamentação desta lei. A expressão “partes interessadas”

pode ser encontrada frequentemente em sua forma na língua inglesa:

stakeholders. Conforme Coimbra e Manzi (2010, p. 28), esse termo se refere

não apenas aos acionistas ou investidores, mas também pode ser atribuído

aos consumidores, fornecedores, governo, proprietários e trabalhadores.

Em suma: todas as pessoas ou entidades que afetam ou são afetadas pela

organização podem ser consideradas partes interessadas.

O Conselho de Administração, por sua vez, está encarregado de

discutir, aprovar e monitorar decisões envolvendo práticas de governança

corporativa, relacionamento com partes interessadas, política de gestão de

pessoas e código de conduta dos agentes, segundo o inciso I do artigo18.

Ademais, segundo o inciso II do referido artigo, o Conselho deve implementar

e supervisionar os sistemas de gestão de riscos e de controle interno

estabelecidos para a prevenção e mitigação dos principais riscos a que está

exposta a empresa pública ou a sociedade de economia mista, inclusive os

riscos relacionados integridade das informações contábeis e financeiras e

os relacionados à ocorrência de corrupção e fraude. Alexandre Serpa (2016)

reproduz em sua obra a definição de gerenciamento de riscos conforme

o Committee of Sponsoring Organizations of the Treadway Commission

(COSO), uma organização privada norte-americana criada para prevenir

e evitar fraudes nos procedimentos e processos internos da empresa. De

acordo com essa definição, o gerenciamento de riscos corporativos é um

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processo conduzido por uma organização pelo Conselho de Administração,

Direção e outros funcionários, aplicado para identificar na organização

eventos em potencial, capazes de afetá-la e administrar os riscos de forma

a mantê-los compatíveis com o apetite de riscos da organização e permitir

o cumprimento de seus objetivos.

Sobre as práticas anticorrupção, mencionadas também pela Lei

das Estatais, consideramos que, ainda que a incorporação de mecanismos

anticorrupção acarrete custos para a empresa, os prejuízos causados

por condutas ilícitas podem ser bem maiores. Esse pensamento pode ser

sintetizado na frase do advogado norte-americano e ex-procurador-geral

adjunto dos Estados Unidos Paul McNulty: “If you think compliance is

expensive, try non-compliance”. Em tradução livre para a língua portuguesa:

“Se você acha compliance caro, tente não estar em compliance”[3].

O artigo 24 da Lei nº 13.303/2016 prevê que a empresa pública e a

sociedade de economia mista devem possuir em sua estrutura societária

um órgão auxiliar do Conselho de Administração denominado Comitê de

Auditoria Estatutário. Esse órgão é competente para monitorar a qualidade

e a integridade dos mecanismos de controle interno, das demonstrações

financeiras e das informações e medições divulgadas pela organização.

Quanto à aplicação do compliance no procedimento licitatório,

o inciso V do artigo 32 da Lei das Estatais estabelece que nas licitações e

contratos previstos nesta lei se faz necessária a observação da política de

integridade nas transações com as partes interessadas. Entendemos que

nesse artigo está previsto o procedimento de compliance conhecido como

due diligence ou devida diligência, em tradução livre para o português.

Alexandre Serpa (2016) explica que realizar uma boa due diligence significa

empregar esforços razoáveis para verificar o grau de risco que o terceiro

pode trazer para a organização caso seja efetivamente contratado. Esse

procedimento pode requerer uma pesquisa mais ou menos profunda, que

pode ser feita por meio de uma breve busca na Internet ou mesmo através

de uma averiguação pormenorizada, como, por exemplo, investigação

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de informações em fontes públicas, como, por exemplo, situação fiscal e

processos legais em que a empresa esteja envolvida, e entrevistas com ex-

funcionários.

A Lei das Estatais foi regulamentada pelo Decreto nº 8.945/2016,

que esclarece conceitos como empresa estatal e empresa subsidiária. O

decreto reitera ainda que a necessidade de observância de práticas de

conformidade pelas estatais.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se que a Lei das Estatais está em consonância com a

tendência brasileira no cenário legislativo de elaborar normas que busquem

estabelecer um padrão de boas práticas empresariais. Essa inclinação já

havia sido demonstrada pelo legislador no âmbito das empresas privadas,

por meio da Lei Anticorrupção, e, no ano de 2016, atingiu as empresas

públicas.

A Lei das Estatais demonstra que procedimentos de compliance

também devem ser empregados nas empresas públicas, com o intuito

de fomentar uma cultura empresarial de conformidade e transparência.

Mecanismos como o canal de denúncia e Código de Ética são interessantes

para criar novas e melhores práticas no ambiente dessas empresas, ainda

que seja demandada a aplicação de recursos financeiros para promover o

desenvolvimento do setor de compliance. Trata-se de um investimento em

conformidade que renderá bons frutos em médio prazo.

Essa mudança no sentido de buscar uma cultura mais íntegra na

seara empresarial é especialmente benéfica para o Brasil, uma vez que

a realização de negócios poderá transcorrer de uma forma mais segura.

Podemos considerar que os procedimentos de conformidade previsto na

Lei das Estatais são bastante úteis para diminuir a ocorrência de práticas

corruptas, um dos problemas que mais atinge o desenvolvimento das

empresas no país.

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A corrupção deve ser combatida não apenas em virtude de razões

morais, mas porque acarreta prejuízos econômicos e dificulta o crescimento

econômico nacional. Ademais, a corrupção lesa o Estado de Direito, pois as

normas não são aplicadas de maneira justa. Assim, a existência de práticas

de conformidade permeando a legislação nacional pode ser considerada

como um ponto de partida para a melhoria dos hábitos negociais brasileiros

como um todo, uma vez que as medidas de compliance representam uma

forma de coibir atos ilícitos.

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âmbito da União, a Lei no 13.303, de 30 de junho de 2016, que dispõe sobre

o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e

de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e

dos Municípios. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília,

DF, 27 dez. 2016. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_

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_____. Lei nº 9.613/1998, de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de

“lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização

do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho

de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências.

Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 03 mar.

1998. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9613.htm>.

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Acesso em 31 jan. 2017.

______. Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização

administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a

administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências.

Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 1 ago. 2013.

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/

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______. Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016. Dispõe sobre o estatuto jurídico

da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias,

no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 30 jun. 2016.

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/

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[1]Advogada formada pela Universidade Federal da Bahia. Pós-graduanda

em Ciências Criminais na Faculdade Baiana de Direito. Especializada

em Compliance pela Legal EthicsCompliance (LEC) e pelo CEDIN/IAED.

Especializada em Crime Organizado, Corrupção e Terrorismo pela

Universidade de Salamanca.

[2] SPINETTO, J. P. Após escândalos, compliance é a nova palavra de ordem

no Brasil. Economia Uol, 20 jan. 2015. Disponível em: <http://economia.uol.

com.br/noticias/bloomberg/2015/01/20/apos-escandalos-compliance-e-a-

nova-palavra-de-ordem-no-brasil.htm>. Acesso em: 31 jan. 2017.

[3] CORNELIUS, D. McNulty Keynote on a Tale of Two Sectors. Compliance

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