ANO I. N. 02 - artigojuridico.com.br · DO TRABALHO desde 1995, Titular da 9a Vara do Trabalho de...
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ANO I. N. 02
Julho / 2017
Julho / 2017
www.artigojuridico.com.br
Revista Artigo Jurídico Publicação trimestral
Ano I, Nº 2
Editor-Chefe Dirley da Cunha Júnior
Corpo Editorial
Brenno Cavalcanti Araújo Brandão, Dirley da Cunha Júnior, Edenildo
Souza Couto, Ilana Martins Luz, João Glicério de Oliveira Filho, Luciano Dorea Martinez Carreiro, Michelle
Cristine Assis Couto, Ricardo Maurício Freire Soares.
Projeto gráfico e diagramação
Francis Barreto Lima.
Ficha catalográfica: Artigo Jurídico: Publicação gratuita e trimestral Endereço eletrônico:www.artigojuridico.com.br/revista ISSN: 2526-0189 1. Ciências sociais aplicadas 2. Direito 3. Artigos Jurídicos
EXPEDIENTE
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CORPO EDITORIALDirley da Cunha Júnior - Editor chefe
Pós-Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de
Lisboa (Portugal). Doutor em Direito Constitucional pela
PUC-SP e Mestre em Direito pela UFBA. Professor de Direito
Constitucional nos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado
na UFBA. Professor de Direito Constitucional e Direitos
Humanos nos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado
na UCSAL e do Curso preparatório Brasil Jurídico (https://
brasiljuridico.com.br). Conferencista. É professor-pesquisador
do CNPQ, liderando o Núcleo de Pesquisa em “Processo
Constitucional e Direitos Fundamentais”, tendo como linhas de
pesquisa “Cidadania e Efetividade dos Direitos” e “Jurisdição
Constitucional e Efetividade dos Direitos Fundamentais”.
Hodiernamente, está desenvolvendo o Projeto de Pesquisa
sobre Cidadania e Efetividade dos Direitos Sociais, do Programa
de Mestrado em Políticas Sociais e Cidadania, da UCSAL. Possui
diversos livros e artigos publicados. É Juiz Federal Titular da
5ª Vara da Seção Judiciária da Bahia, mas já foi Promotor de
Justiça na Bahia (1992-1995) e Procurador da República (1995-
1999).
Ricardo Maurício Freire SoaresPós-Doutor em Direito pela Università degli Studi di Roma La
Sapienza, pela Università degli Studi di Roma Tor Vergata e pela
Università del Salento. Doutor em Direito pela Università del
Salento. Doutor em Direito Público e Mestre em Direito Privado
pela Universidade Federal da Bahia. Professor dos Cursos
de Graduação e Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal da Bahia (Especialização/Mestrado/Doutorado).
Professor da Universidade Católica do Salvador, da Faculdade
Baiana de Direito e da Faculdade Ruy Barbosa. Professor-
visitante em diversas Instituições, tais como: Università degli
Studi di Roma La Sapienza, Università degli Studi di Roma
Tor Vergata, Università degli Studi di Roma Tre, Università
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degli Studi di Milano, Università di Genova, Università di Pisa,
Università del Salento, Universidade Autônoma de Lisboa,
Universidade do Algarve, Universidad de Burgos e Martin-
Luther-Universitat.Professor do Curso Brasil Jurídico, do
Curso Damásio Educacional, da Escola Judicial do Tribunal
Regional do Trabalho, da Escola de Magistrados da Bahia e da
Fundação Faculdade de Direito. Pesquisador e Líder de Grupo
de Pesquisa vinculado ao CNPQ. Diretor e Membro do Instituto
dos Advogados da Bahia. Membro do Instituto dos Advogados
Brasileiros e do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
Palestrante e Autor de diversas obras jurídicas, especialmente,
pela Editora Saraiva. E-mail: [email protected].
João Glicério de Oliveira FilhoPossui graduação em Direito pela Universidade Federal da
Bahia (2002), especialização em Direito pelas Faculdades Jorge
Amado (2005), mestrado em Direito pela Universidade Federal
da Bahia (2008) e doutorado em Direito pela Universidade
Federal da Bahia (2012). Atualmente é professor de Direito
Comercial da Faculdade de Direito da Universidade Federal
da Bahia, professor de Direito Empresarial do Curso Cejus,
EMAB – Escola dos Magistrados da Bahia e ESAD – Escola
Superior de Advocacia Professor Orlando Gomes da OAB/BA,
Advogado, Membro do IBRADEMP – Instituto Brasileiro de
Direito Empresarial. Tem experiência na área de Direito, com
ênfase em Direito Empresarial, atuando principalmente nos
seguintes temas: Direito Empresarial, Societário, Falimentar,
Contratual Empresarial, Bancário e Concorrencial. Professor
da Faculdade Ruy Barbosa – Grupo DevryBrasil. Professor da
UNIJORGE.
Luciano Dorea Martinez CarreiroÉ Doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela
Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Direito Privado e
Econômico pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Mestre
em Direito Social pela Universidad de Castilla-La Mancha
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(UCLM – título reconhecido pela USP) e Doutorando em Direito
Social pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM). É
também Especialista em Direito Processual (Orientador J. J.
Calmon de Passos – UNIFACS), em Direito Constitucional do
Trabalho (Orientador José Augusto Rodrigues Pinto, UFBA)
e em Direito Previdenciário (Orientador Fábio Zambitte
Ibrahim, JUSPODIVM) É PROFESSOR ADJUNTO de Direito do
Trabalho e da Seguridade Social da UFBA desde 2010. É JUIZ
DO TRABALHO desde 1995, Titular da 9a Vara do Trabalho de
Salvador. Titular da Cadeira 52 da ACADEMIA BRASILEIRA
DE DIREITO DO TRABALHO desde 2009. Titular da Cadeira 26
da ACADEMIA DE LETRAS JURÍDICAS DA BAHIA desde 2013.
Coordenador da Pós-graduação em Direito Previdenciária
da Universidade Católica do Salvador desde 2015 Professor
convidado em diversos Programas de Pós-graduação (PUCRS,
PUCSP, UCS, USP, entre outros) e em diversas Escolas Judiciais
(ENAMAT e Escolas Judiciais dos TRT´s de Alagoas, Amazonas,
Bahia, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Paraíba, Pernambuco,
Piauí, Rio Grande do Sul, São Paulo e Sergipe). Atua nas áreas
de Direitos Fundamentais, Direito do Trabalho (relações
individuais e coletivas), Processo do Trabalho, Direito da
Seguridade Social e Mediação de Conflitos. É colunista da
seção Empregos do Jornal A Tarde, desde 2005. Autor do livro
“Condutas Antissindicais”, do “Curso de Direito do Trabalho”
e coautor do “Guia Prático da Previdência Social”, todos
publicados pela editora Saraiva. Coordenador e coautor do
Dicionário Brasileiro de Direito do Trabalho, publicado pela
LTr. Autor de diversos artigos jurídicos.
Edenildo Souza Couto
Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da
Bahia (UFBA). Pós-graduado em Direito Processual Civil pelo
Juspodivm. Bacharel em Direito. Laureado na graduação.
Escritor de livros e de vários artigos publicados em revistas
jurídicas. Professor de diversas disciplinas do Direito.
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Atualmente é Assessor de Juiz – Tribunal de Justiça do Estado
da Bahia e Professor de diversas disciplinas do curso de Direito.
Ilana Martins Luz
Doutoranda em Direito Penal pela USP. Mestre em Direito
Público pela UFBA. Especialista em Direito Penal Econômico
pela Universidad Castilla- La Mancha (Toledo, Espanha) e pelo
Instituto Europeu de Direito Penal Econômico. Professora
Adjunta de Direito Penal da UNIFACS. Advogada criminalista.
Michelle Cristine Assis Couto
Professora de Direito Civil em diversas Instituições de Ensino
na Cidade de Salvador. Mestre em Direito Privado pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Direito
do Trabalho pela Fundação de Direito da Bahia. Especialista em
Direito Privado pela Unyanna, com Aperfeiçamento Jurídico
pela Escola de Magistratura da Bahia. Integrante do grupo de
Pesquisa científica :Representações Sociais, Arte e Ideologia do
Programa de Doutorado em Ciências Sociais da UFBA.
Brenno Cavalcanti Araújo Brandão
Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Pós-
graduado em ciências criminais pelo JusPodivm. Professor em
Direito Penal. Advogado e escritor.
Roberta Sobral Varjão Couto
Pós-graduada em direito civil pelo JusPodivm. Graduada em
Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Juíza
Leiga do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (2011-2015).
Advogada.
País: Brasil, Cidade: Salvador-Ba.Contato: [email protected]
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SUMÁRIO
LIBERDADE DE EXPRESSÃO: A PERSEGUIÇÃO NA INTERNET 9Carlos Magno Moulin Lima
APLICAÇÃO HERMENÊUTICA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE 47DA PESSOA HUMANA Milton Silva VasconcellosAna Maria Seixas Pamponet
MATAMOS ROBERT ALEXY COM A APLICAÇÃO DATEORIA DA 65 KATCHANGA?Edenildo Souza Couto
O DESAFIO DA TÓPICA 70Pedro Léo Alves Costa
OS EFEITOS DA DECISÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 145895.759 NA INTERPRETAÇÃO DOS DIREITOS TRABALHISTASEM FACE DA POSSIBILIDADE DE NEGOCIAÇÃO E CONCILIAÇÃO INDIVIDUAL E COLETIVAMurilo Cautiero Abi-Acl
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA – UM ESTUDO REFLEXIVO 152SOBRE A PERMANÊNCIA DE VIVER SEM SER VISTO PELO ESTADORamani Rodrigues de Araújo Sampaio Ana Maria Seixas Pamponet
A INCONSTITUCIONALIDADE DAS COTAS RACIAIS NAS 175INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE ENSINO SUPERIORAilton Antunes Nogueira Júnior
A CONTAGEM DE PRAZO NO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL 207ESTADUAL, APÓS A VIGÊNCIA DO NOVO CPCEdenildo Souza Couto
REVISITANDO OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS E 215INFORMATIVOS DO PROCESSORenato Pessoa Manucci
A REPARAÇÃO DO DANO NA FASE DE EXECUÇÃO PENAL 251Luiz Flávio Borges D’Urso
CONSIDERAÇÕES SOBRE A PREVISÃO DOS PROCEDIMENTOS 254DE COMPLIANCE NA LEI DAS ESTATAISLuíza Moura Costa Spínola
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LIBERDADE DE EXPRESSÃO: A PERSEGUIÇÃO NA INTERNET
Carlos Magno Moulin Lima - Juiz de Direito-ES, mestre em Direito pela PUC/SP e Doutorando em Direito pela Universidade de Lisboa, Portugal. Professor licenciado da Faculdade de Direito Novo Milênio (Graduação e Pós-Graduação) - Vila Velha-ES. Professor do curso de Graduação em Direito da Universidade de Vila Velha-ES (UVV-ES).
1. INTRODUÇÃO
No campo da liberdade de expressão e das comunicações a sociedade
experimenta, na última década, expansão nunca antes imaginada,
potencializada pelas ferramentas de internet e, principalmente, pelas
redes sociais. A internet estreitou os relacionamentos pessoais e modificou
o modo como interagimos e hoje fala-se, inclusive, em internet das coisas
(IoT – Internet of Things), para conexão de carros, televisores, geladeiras
e outros objetos à rede mundial de computadores o que futuramente, por
certo, possibilitará a interação entre máquinas e seres humanos.
Estima-se que somente a plataforma Facebook tenha 1,5 bilhão de
usuários, o que é impressionante, pois corresponde a aproximadamente
20% da população mundial. Além disso, é comum o registro de usuários em
mais de uma rede social. Não há, portanto, nada mais poderoso em nível de
compartilhamento de informações.
Mas até que ponto isso é positivo? Sob a ótica da utilização das mídias
sociais para aviltamento da honra alheia, da privacidade e da imagem, ao
argumento do exercício da liberdade de expressão, certamente, não há nada
mais nocivo. Principalmente quando essas ferramentas são utilizadas pelos
10 11
stalkers ou perseguidores, exatamente aquelas pessoas que importunam
de forma obsessiva e insistente uma outra pessoa, trazendo prejuízos
morais, psicológicos e até mesmo financeiros. A junção dessa modalidade
de distúrbio psicológico com o meio virtual utilizado para concretização
do ato lesivo fez surgir a figura do cyberstalker ou perseguidor virtual, que
lança mão do vasto reservatório de dados disponíveis na internet, inclusive
das mídias sociais, para obtenção de todas as informações de que necessita
a respeito do alvo a ser atingido.
O mundo virtual ou mundo online é apenas uma continuidade da
realidade off-line, “não é mais do que o prolongamento das capacidades
humanas para uma área onde o espaço deixa de ser um limite
considerável”,[1] onde a informação é facilmente captada e divulgada sem
os obstáculos territoriais.
1.1 EXEMPLO DO PROBLEMA E LIMITAÇÃO DO TEMA
Historicamente a internet tem origem militar. Em 1969, nos Estados
Unidos, a Agência de Pesquisas em Projetos Avançados – ARPA (Advanced
Research and Projects Agency) pretendia interligar as bases militares
e os departamentos de pesquisa do governo americano e por tal razão a
ARPANET é considerada a primeira rede operacional de computadores.
Já no início da década de 70 algumas universidades tiveram
permissão para conexão ao sistema ARPANET e em meados da mesma
década, verificando a inadequação do protocolo de comutação de dados
em virtude do crescimento da rede, a ARPANET começou a utilizar um
novo protocolo chamado TCP/IP (Transmission Control Protocol/Internet
Protocol), sistema que ainda hoje torna possível a conexão da maioria dos
computadores do planeta à rede mundial de computadores.
No início da década de 80 as redes tinham por finalidade a troca e
compartilhamento de dados e informações científicas, mas com o passar
dos anos começaram a surgir os sistemas de trocas de mensagens coletivas e
10 11
os sistemas de mensagens de correio eletrônico. A World Wide Web (www)
surge em 1990, graças ao trabalho incansável do físico britânico, cientista
da computação e professor do MIT, Timothy John Berners-Lee, que em 25
de março de 1989 havia feito a primeira proposta para a sua criação.
No final da primeira metade da década de 90 a web se tornou acessível
à população, expandindo-se de forma incalculável, transformando-se
num universo onde diariamente seres humanos interagem socialmente e
economicamente. E como todo sistema vivo, suscetível ao aperfeiçoamento e
a uma série de situações das mais variadas espécies, demanda a intervenção
do Direito.
Nota-se que na mesma proporção de desenvolvimento da rede
mundial de computadores houve, também, modificação comportamental
de seus usuários. Se no início verificávamos alterações pontuais de
humor em discussões travadas em sistemas de trocas de mensagens, hoje
verificamos uma enorme gama de casos concretos de lesão a direitos de
personalidade. O mundo virtual se tornou ambiente propício aos excessos
e o que faz a internet tão atrativa aos perseguidores virtuais é a ausência
de limites geográficos, permitindo que as vítimas sejam encontradas em
qualquer lugar do mundo, tudo isso aliado a um certo grau de anonimato
e a falsa sensação de que o seu uso é desprovido de qualquer controle por
parte do Estado.
É cediço que a honra, a imagem, a privacidade e a reputação são
bens de personalidade. Por outro lado, a liberdade de expressão constitui
direito de extrema importância. Mas qual é o limite do exercício da
liberdade de expressão na internet, sem que haja colisão com os direitos
de personalidade? É possível reproduzir, nas redes sociais, publicações que
atentem contra a honra, imagem, privacidade, ao argumento do exercício
da liberdade de expressão? No mesmo sentido, é possível a utilização das
redes sociais para externar insatisfações pessoais em face de qualquer
pessoa? E quando essas novas mídias sociais são utilizadas com a finalidade
de ultrajar, de forma reiterada, qual o caminho a seguir?
12 13
É necessário que sejam conciliados, na medida do possível, a
liberdade de expressão e informação, por um lado, e a integridade moral, o
bom nome e reputação, a honra e a imagem por outro. Somente quando essa
equação se revelar inviável ou, havendo colisão desses direitos, deve-se,
em princípio, buscar solução pela prevalência do direito de personalidade.
O objetivo da pesquisa é, portanto, identificar hipóteses que
transbordam ao necessário ponto de estabilidade, resultando em ofensa a
direitos fundamentais e direitos de personalidade, onde a internet é utilizada
como meio para a obtenção do resultado lesivo. Pretende-se, inclusive,
analisar as consequências do stalking no mundo virtual e demonstrar que
o Direito deve se preocupar com esse fenômeno relativamente recente que
é um misto de perseguição e assédio praticados de forma reiterada, com
a utilização de ferramentas de internet, ao argumento, muitas vezes, de
mero exercício da liberdade de expressão.
Ainda que a discussão sobre o stalking cibernético seja relativamente
recente, pode-se afirmar que se trata de um fenômeno social de grande
impacto psicológico, cujas consequências são devastadoras e imprevisíveis,
podendo resultar em limitação da liberdade, suicídio ou até mesmo
em homicídio do perseguidor. Acresça-se aos resultados nefastos da
perseguição virtual a possibilidade de perpetuação da ofensa, haja vista
que as informações online dificilmente são apagadas e, ainda, podem ser
replicadas a exaustão por seus milhares de utilizadores. E mesmo que por
um dado momento a informação seja extirpada do mundo virtual, há a
possibilidade de ter sido armazenada em dispositivos off-line, como pen
drives, hard disks externos, DVD´s, CD´s etc, facilitando sua reinserção na
internet.
2. QUANDO A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET SE
TRANSFORMA EM OFENSA
É a liberdade uma conquista da história humana, sendo impossível
12 13
imaginar o homem sem a liberdade. Como leciona Adriano de Cupis, “a
liberdade não se limita, então, a caracterizar a força jurídica que reveste
um determinado bem, mas assume ela mesma a dignidade de bem sobre o
qual incide a força jurídica do sujeito”.[2] O estabelecimento de limites ao
seu exercício, todavia, não deve ser associado à sua negação; ao contrário,
os limites permitem que o homem escolha entre as diversas possibilidades
existentes e suas respectivas consequências, transformando em fato o que
por essência é pura abstração.
Mas qual é o limite da liberdade de expressão?
É indiscutível que a liberdade de expressão é um dos pilares da
democracia. Assegurada no artigo 19, da Declaração Universal dos Direitos
do Homem de 1948, visa a garantir o direito de expressar, sem qualquer
fronteira, opiniões e pensamentos e, ainda, o direito de receber e difundir
informações e ideias. Mas tal previsão não pode ser objeto de análise
isolada, sob pena de interpretação equivocada e supressão de direitos.
É na mesma Declaração Universal dos Direitos do Homem que nos
deparamos com outras previsões de idêntica importância, que impedem as
intromissões arbitrárias na vida privada e os ataques à honra e reputação,
além de revelarem deveres inerentes a todos os indivíduos, cuja finalidade
exclusiva é promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades
dos outros.
O artigo 10 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem nos
mostra que o direito à liberdade de expressão compreende a liberdade de
opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias. O
mesmo dispositivo legal indica que o exercício destas liberdades pode ser
submetido a certas restrições, com a finalidade de proteção dos direitos de
outrem, especialmente a honra e a moral.
A Convenção Americana de Direitos Humanos (também chamada
de Pacto de San José da Costa Rica), assinada em 22 de novembro de 1969,
baseada na Declaração Universal dos Direitos Humanos que compreende o
ideal do ser humano livre, contempla no artigo 13 a liberdade de pensamento
14 15
e de expressão, destacando que o exercício desse direito não pode estar
sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem
ser fixadas expressamente em lei específica, para assegurar o respeito aos
direitos ou à reputação das demais pessoas ou a proteção da segurança
nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
A Constituição da República do Brasil, de 1988, assegura a em
seu artigo 220, caput, a impossibilidade de restrição à manifestação do
pensamento, da criação, da expressão e da informação. Todavia, o seu
parágrafo primeiro, ao tratar da liberdade de informação jornalística, a
vincula a outras garantias fundamentais, como a vedação do anonimato, o
direito de resposta proporcional ao agravo, a inviolabilidade da intimidade,
da vida privada, da honra e da imagem das pessoas.
Esse direito é também assegurado no artigo 19, do Pacto Internacional
de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), ratificado por mais de 166 países, que
prevê a possibilidade de submissão a certas restrições expressas, fixadas em
lei, para salvaguarda dos direitos ou da reputação de outrem, da segurança
nacional, da ordem pública, da saúde e da moralidade públicas. Inclusive
esse deve ser o ponto de partida das leis que porventura tenham por escopo
a sua restrição, ou seja, qualquer medida de restrição deve estar em total
sintonia com cada um dos objetivos descritos no PIDCP.
Sobre a discussão relativa à possibilidade de limitação legislativa
da liberdade de expressão é de bom alvitre registrar decisões divergentes
produzidas pela Suprema Corte brasileira. Na Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130, o Exmo. Sr. Ministro Carlos Ayres
Britto sustentou que nenhum limite legal poderia ser instituído em relação
ao mencionado direito, senão aqueles já previstos no texto constitucional,
competindo ao Poder Judiciário as necessárias ponderações em caso de
colisões com outros direitos.[3] Em sentido diverso o Exmo. Sr. Ministro
Gilmar Ferreira Mendes, em sede de Recurso Extraordinário (RE 511.961/
SP) proferiu decisão salientando que as restrições à liberdade de expressão
em sede legal são admissíveis, desde que justificadas pela imperiosa
14 15
necessidade de resguardo de outros valores constitucionais,[4] posição que
se revela em sintonia com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
A liberdade de expressão, portanto, é espécie de liberdade assegurada
politicamente pelos regimes democráticos pois, a partir de diferentes
perspectivas, vem inscrita em instrumentos políticos por excelência desde
o século XVIII (Declarações de Direitos, Pactos, Constituições, Tratados,
Convenções), sendo de fundamental importância ao exercício dos
direitos individuais por se tratar de garantia ao livre desenvolvimento da
personalidade e à dignidade humana. Não pode ser conceituada apenas
como o direito de divulgar informações e ideias, mas em sua plenitude
abrange o direito de buscá-las e ter acesso a elas, o que possibilita, por
consequência, a interação de cada indivíduo com o seu semelhante, tanto
para externar suas próprias ideias como para ouvir aquelas expostas pelos
outros.
No entanto a liberdade de expressão não constitui um direito
absoluto e o seu exercício pode conflitar, em inúmeras hipóteses, com
outros direitos fundamentais ou bens jurídicos igualmente tutelados. E a
solução desses conflitos, além de estar vinculada às peculiaridades de cada
caso concreto, deve buscar equação que revele ponderação de interesses,
orientada pelo princípio da proporcionalidade.
Os textos legais até o momento analisados evidenciam um modelo
de liberdade de expressão com responsabilidade, pois estabelecem que
aqueles que atuarem de forma abusiva no exercício desse direito, causando
danos a outros, podem ser responsabilizados. E a Constituição Brasileira de
1988 corroborando essa ideia de liberdade com responsabilidade proíbe
expressamente o anonimato, exigindo a identificação do autor de cada
manifestação.
16 17
2.1 A UTILIZAÇÃO DAS REDES SOCIAIS COMO INSTRUMENTOS DE
VIOLAÇÕES AOS DIREITOS DE PERSONALIDADE
Estados Unidos e Brasil são, reconhecidamente, países líderes em
número de usuários de redes sociais, especialmente o Facebook, Twitter
e YouTube. Ocorre que o comportamento desses usuários nem sempre é
pacífico e, em alguns casos, ultrapassa os limites da irresponsabilidade civil,
adentrando muitas vezes em seara regida pelas sanções do Direito Penal.
Mais grave ainda é a utilização desses mecanismos de interação social
com a clara finalidade de violação aos direitos de personalidade. Vejamos
algumas situações fáticas e suas consequências nefastas:
Em 26 de novembro de 2008 um Júri Federal de Los Angeles
condenou uma mulher por ter provocado o suicídio da adolescente Megan
Meier, de 13 anos, pelo envio de mensagens ofensivas por meio de um
perfil falso criado na internet. Lori Drew, de 49 anos, foi acusada de fraude
e conspiração após a criação de um falso perfil de um adolescente de 16
anos na rede social MySpace, para se relacionar virtualmente com a vítima,
que nominou de “Josh Evans”. Segundo a acusação a jovem Megan Meier
suicidou-se em 16 de outubro de 2006, após o adolescente fictício afirmar
que o mundo seria um lugar melhor sem ela. O advogado da mulher
condenada, H. Dean Steward, acusou o governo de exagerar ao processar
sua cliente por algo que as pessoas fazem rotineiramente na internet: criar
falsas identidades.[5]
No Brasil o Facebook foi condenado ao pagamento de indenização
no valor de R$ 13.560,00 (treze mil, quinhentos e sessenta reais) por
não promover a retirada de uma fotografia adulterada de uma usuária,
comparada à dupla de palhaços “Patati Patatá”. A vítima teve uma fotografia
original modificada digitalmente, realçando as cores de sua maquiagem,
com a seguinte frase “maquiagem é uma coisa! Tentar roubar o emprego
do Patati Patatá é outra”. Embora a vítima tenha utilizado o recurso de
denúncia disponível na própria plataforma de rede social, para solicitar
16 17
a remoção da imagem, não teve o seu pedido atendido. As fotografias
foram excluídas após determinação judicial e quando já contabilizavam
mais de 30 mil compartilhamentos. Em sua defesa o Facebook alegou que
a extrapolação dos limites da liberdade de expressão deve ser julgada pelo
Judiciário e não pela rede social. A decisão proferida em sede de recurso de
apelação reconheceu que o Facebook atua como provedor de hospedagem
e possibilita aos usuários a criação de páginas pessoais, armazenando
informações e que por tal razão a sua responsabilidade é de ordem subjetiva
pois, mesmo tendo a autora denunciado a fotografia adulterada por meio de
ferramentas específicas para tal finalidade, não houve o controle posterior,
omitindo-se o réu quanto a ilícito praticado por terceiro, sendo passível
de ressarcimento o dano moral experimentado resultante na violação ao
dever de respeito a direitos inerentes a personalidade de cada ser humano,
especialmente a imagem e a honorabilidade.[6]
Um caso interessante advindo de Portugal diz respeito ao
despedimento de um trabalhador, efetuado em 29/08/2013, em virtude de
uma postagem no Facebook considerada ofensiva à honra do Presidente do
Conselho de Administração de uma empresa. No julgamento do processo o
Tribunal da Relação de Lisboa analisou se a publicação na página pessoal do
autor estava inserida na chamada esfera pessoal ou se, por outro lado, o seu
conteúdo assumiu natureza pública, mesmo estando a publicação restrita
a um grupo fechado de amigos. Concluiu o Tribunal que a divulgação do
conteúdo em causa deve ser considerada como pública, pois mesmo que
inserida em grupo fechado não poderia levar a expectativa minimamente
razoável de reserva na divulgação do conteúdo, ainda mais quando trazia
ao final a expressão “partilhem amigos”. Realçou ainda o Tribunal:
(…) no conceito de ‘amigos’ do Facebook cabem não só os amigos
mais próximos, como também outros amigos, simples conhecidos ou até
pessoas que não se conhecem pessoalmente, apenas se estabelecendo
alguma afinidade de interesses no âmbito da comunicação na rede social
que leva a aceitá-los como “amigos”. Através de um amigo a publicação
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de um conteúdo pode tornar-se acessível aos amigos deste, além de poder
ser copiado para papel e exportado para outros sítios na internet ou
para correios eletrônicos privados e de se manter online por um período
indeterminado de tempo. O recorrente não poderia deixar de levar em conta
todos estes fatores e, logo, não poderia, nem é credível que o tenha suposto,
ter uma expectativa minimamente razoável de reserva na divulgação do
conteúdo.[7]
A decisão, em parte, guarda identidade de conteúdo com outra
proferida no Brasil em data recente e noticiada pelo serviço de comunicação
social do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Trata-se da condenação
de um ex-aluno da Escola Técnica Estadual a indenizar um professor por
danos morais, por postagem em rede social de imagens manipuladas,
vinculando-o ao consumo de álcool e drogas e supostas vantagens na
comercialização de uniforme escolar. Alegou o ex-aluno que as postagens
foram publicadas em grupo fechado (privado) na rede social Facebook, sem
acesso a terceiros. As postagens, segundo testemunhas, foram impressas e
colocadas nas paredes da escola, repercutindo negativamente o fato entre
todos os alunos e professores.[8]
Igualmente reprovável é o caso vivenciado por AliceAnn Meyer
que publicou em seu blogue, em 2014, uma foto do seu filho Jameson com
o rosto coberto de chocolate e marshmallow e agora luta para banir da
internet publicações que comparam o menino (portador de síndrome de
Pfeiffer – uma doença que afeta o formato da cabeça e da face) a um cão da
raça “pug”. Meyer relata que ficou chocada quando encontrou a imagem na
internet e ficou desanimada ao ver quantas vezes foi compartilhada e, ainda,
em diferentes idiomas.[9] Este caso, em especial, revela um outro problema
enfrentado diariamente pelas vítimas de crimes virtuais, principalmente
quando se trata de violação promovida por meio da rede social Facebook,
que é a ausência de providências quando utilizadas as ferramentas da
respectiva plataforma para denúncias, especificamente a mais importante
delas, a necessária retirada do material ofensivo do ambiente virtual, ao
18 19
argumento de que a publicação não viola os padrões comunitários, o que
por certo representa absoluto desprezo a qualquer sistema de proteção a
direitos fundamentais.
Casos como estes são comuns e embora as condutas sejam variadas,
todas convergem para violações a direitos de personalidade. Os exemplos
indicam lesões evidentes à honra e reputação, à privacidade, à imagem,
à dignidade humana e a intenção de exposição das vítimas a situações
vexatórias.
Embora a internet possibilite o acesso a uma infinidade de
informações, o maior desafio tem sido justamente a seleção daquelas que
possam ser consideradas úteis e confiáveis. Os utilizadores estão limitados
a critérios parametrizados pelos motores de busca que, por sua vez,
funcionam por meio de algoritmos que se baseiam na popularidade dos
sites, estabelecida pela quantidade de acessos num determinado período,
o que por vezes permitirá a associação indevida de informações a certas
pessoas. Da forma como funcionam, os motores de busca acabam por
sugestionar o utilizador à compreensão errônea do assunto ou do dado
procurado, facilitando, inclusive, a propagação de falácias ou de agressões
a direitos de alguém em suas variadas formas. E lamentavelmente grande
parte dos utilizadores não é capaz de perceber, nesse universo ruidoso, a
melodia cristalina que rompe da informação verdadeira.
Em entrevista ao jornalista João Céu e Silva, do jornal Diário de
Notícias em Portugal, o escritor Umberto Eco evidenciou que “a informação
banaliza os acontecimentos” e que encontra muitas mentiras sobre si na
internet, como a atribuição de frases célebres de outros ou até mesmo a
divulgação de falecimento de um escritor famoso, o que já não incomoda
“porque acredita na fraqueza da memória das pessoas”. No entanto quando
indagado sobre a necessidade de controlar a internet, respondeu:
Isso é uma situação impossível de fazer nos tempos em que vivemos,
o que se deve é ponderar o que fazer desse universo. Há quem já tenha
dito, e acho que tem razão, que se nos anos 40 houvesse internet não teria
20 21
havido campos de concentração como o de Auschwitz porque toda a gente
teria tido conhecimento. No entanto, no momento em que todos têm direito
à palavra na internet temo-la dada aos idiotas, que de outro modo nunca
seriam lidos noutro sítio.[10]
2.2 STALKING VIRTUAL OU CYBERBULLYING?
Um fenômeno que nos últimos anos tem despertado a atenção de
profissionais das áreas de psicologia, medicina e ciências jurídicas é o
stalking. Expressão derivada do verbo to stalk (perseguir), é prática que
consiste em padrão de comportamentos de assédio persistente ou de
perseguição incessante a alguém (vítima), com obtenções de informações
pessoais e tentativas de controle da sua vida, que podem gerar medo,
ansiedade e até mesmo danos de ordem psicológica.
No final dos anos 80 o stalking começou a surgir em filmes, na
televisão, em revistas, jornais e livros, mas foi o assassinato de Rebecca
Schaeffer, em 1989 nos Estados Unidos, que levou à publicação da primeira
lei anti-stalking na Califórnia, em 1990, tornando-se modelo para outros
sítios estadunidenses, contribuindo, inclusive, para que o Congresso viesse
a publicar leis federais sobre o tema. Foi estabelecido um padrão para
auxiliar os Estados no desenvolvimento de legislações aplicáveis ao tema
e no ano de 2004, em razão do aumento de utilizadores da internet (que
facilitou a proliferação de stalkers, pedófilos e outros predadores online),
vinte e seis Estados já possuíam leis contra a perseguição eletrônica.
É a perseguição virtual um fenômeno de enorme interesse social.
Determinada por um conjunto de comportamentos que, cumulados,
demonstram uma campanha de assédio, apresenta-se como um desafio
tanto para investigadores, como para os legisladores.
Lelio Braga Calhau, citando Damásio de Jesus, aponta que
(…) o stalking é uma forma de violência na qual o sujeito
ativo invade a esfera de privacidade da vítima, repetindo
20 21
incessantemente a mesma ação por maneiras e atos
variados, empregando táticas e meios diversos: ligações
nos telefones celular, residencial ou comercial, mensagens
amorosas, telegramas, ramalhetes de flores, presentes não
solicitados, assinaturas de revistas indesejáveis, recados em
faixas afixadas nas proximidades da residência da vítima,
permanência na saída da escola ou do trabalho, espera de
sua passagem por determinado lugar, frequência no mesmo
local de lazer, em supermercados etc. O stalker, às vezes,
espalha boatos sobre a conduta profissional ou moral da
vítima, divulga que é portadora de um mal grave, que foi
demitida do emprego, que fugiu, que está vendendo sua
residência, que perdeu dinheiro no jogo, que é procurada
pela Polícia etc. Vai ganhando, com isso, poder psicológico
sobre o sujeito passivo, como se fosse o controlador geral
dos seus movimentos.[11]
O passado recente nos mostra que entre os anos de 1995 e 2000 o
acesso a internet aumentou expressivamente e o uso generalizado dessa
tecnologia infelizmente despertou a atenção dos stalkers que encontraram
uma poderosa ferramenta para a perseguição de crianças e adultos. Mais
grave ainda é que a própria internet tem oferecido suporte aos perseguidores,
seja pela facilidade de compartilhar informações, seja possibilidade de
tornar acessíveis verdadeiros manuais online que ensinam o passo a
passo das formas mais cruéis de perseguição e de violações de direitos.
E a gama de problemas virtuais vai aumentando não só em quantidade,
mas em complexidade, à medida que mais pessoas utilizam a internet
em casa, no trabalho, em aparelhos de fácil portabilidade como celulares
e tablets, interagindo em blogues, redes sociais e demais plataformas
de comunicação online que surgiram nos últimos anos. O relatório do
EUROSTAT (Escritório de Estatística da União Europeia), publicado em 08
de fevereiro de 2016, indica que 25% dos utilizadores de internet na União
22 23
Europeia tiveram problemas de segurança online em 2015, tais como vírus,
abuso de informação pessoal, perdas financeiras ou acesso de menores a
sites inapropriados.[12] E quanto menos segurança houver na internet,
mais fértil será o terreno para a ação dos perseguidores virtuais.
Há uma enorme dificuldade em definir a perseguição virtual.
Basta verificar as publicações sobre o assunto para que sejam encontradas
diferentes respostas. Conceitualmente existem poucos elementos
necessários a identificação do stalking eletrônico, podendo ser caracterizado
pelo comportamento negativo, agressivo e reiterado, com a utilização de
equipamentos tecnológicos. Esta tecnologia pode ser um computador,
smartphone, tablet ou qualquer outro dispositivo eletrônico, capaz de enviar
informações ou dados à internet. Há necessidade, por outro lado, que a
vítima seja negativamente impactada pelo incidente, seja emocionalmente,
psicologicamente ou socialmente.
A perseguição eletrônica ou cibernética pode tomar diferentes
formas, algumas das quais de difícil detecção. As formas mais comuns
são: ameaças e intimidações, perseguição, calúnia, difamação e injúria,
exclusão online (quando a vítima é apagada de comunidades virtuais),
roubo de identidade, acesso não autorizado e personificação (criação de
perfil falso), envio ou compartilhamento de informações ou imagens
privadas. A maior particularidade da perseguição virtual, entretanto,
é que um simples incidente pode resultar em múltiplos ataques. É o que
se verifica, por exemplo, quando uma imagem humilhante é postada na
internet e compartilhada por diferentes sites e até mesmo em redes sociais.
É impossível mensurar as consequências desse ato nefasto, pois mesmo que
haja a supressão de determinados links em motores de busca, o conteúdo
pode reaparecer noutros locais e ser novamente detectável por qualquer
interessado.
Embora os termos cyberstalking e cyberbullying guardem
semelhanças pois indicam modalidades de violência e intimidação com a
finalidade de abalo moral e psicológico, entendemos que no cyberbulling
22 23
o sofrimento da vítima é o fim pretendido, ao passo que no cyberstalking
o sofrimento é apenas o meio utilizado pelo perseguidor para alcançar
desígnios não consentidos pela vítima. Necessário compreender, por
conseguinte, que bullying é fim, pois o ato exaure em si mesmo e stalking
é meio, é o que se pode definir como verdadeira “caçada”. Enquanto o
primeiro tem por objetivo a destruição da estrutura psíquica da vítima,
de forma repetida, o segundo é forma de neutralização para que a vítima
faça algo contra a sua vontade, satisfazendo o interesse ou a vontade do
stalker. Utilizaremos, todavia, a definição genérica de perseguição virtual
ou de stalking virtual para a identificação de ambos os fenômenos, pois é
o que representa de maneira adequada a ideia de perseguição na internet.
Os estudos têm mostrado que o stalking é uma espécie de terrorismo
psicológico, pois as vítimas têm a sensação de que estão sob o controle
do stalker, sem condições de fuga, sensação assemelhada à prisão. Além
disso a perseguição gera um desgaste emocional intenso na vítima pois
há sempre a incerteza do que pode vir a ser a próxima agressão, situação
que aumenta o nível de ansiedade e preocupação, inclusive, em relação
aos próprios familiares, o que pode levar a um declínio da saúde física e
emocional. Há registros de depressão, asma, psoríase, pânico e até suicídio
resultante da perseguição sem a interferência devida do poder estatal. O
terror psicológico causado pelo stalking leva à diminuição da concentração
e produtividade no trabalho e pode causar, ainda, medo de sair de casa
para as atividades mais simplórias. Os efeitos negativos do stalking em suas
vítimas, familiares e amigos são traumáticos e não devem ser subestimados.[13]
Por ser um fenômeno relativamente recente, verifica-se que
em território europeu há apenas dez países que editaram leis contra a
perseguição virtual. São eles: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca,
Holanda, Irlanda, Itália, Malta, Portugal e Reino Unido. Essas leis,
embora distintas em conteúdo e providências, levam ao grande público a
preocupação dos respectivos países em relação às sérias implicações do
stalking, mas é preciso que cada nação entenda a importância de investir
24 25
em mecanismos de prevenção, capazes de interromper as agressões antes
que provoquem lesões irreversíveis. E talvez seja esse o maior desafio,
principalmente quando analisado o fenômeno no mundo virtual, dada a
enorme dificuldade de exclusão de dados uma vez insertos na internet.
No Brasil a Lei nº 13.185, de 6 de novembro de 2015, instituiu o
Programa de Combate à intimidação Sistemática (Bullying), contemplando
no parágrafo único do artigo 2º a hipótese de cyberbullying, destacando
que “há intimidação sistemática na rede mundial de computadores, quando
se usarem os instrumentos que lhe são próprios para depreciar, incitar a
violência, adulterar fotos e dados pessoais com o intuito de criar meios de
constrangimento psicossocial”. Embora a referida lei seja a concretização
de iniciativa louvável do Poder Legislativo brasileiro, está muito distante da
realidade experimentada pelas vítimas e com o passar do tempo, sem ações
efetivas (por parte do poder público) que tenham por objetivo o combate
à essa prática nefasta, poderá ser reduzida a apenas uma carta de boas
intenções.
Além disso o texto legal contém alguns equívocos que podem
conduzir a interpretações errôneas. A título de exemplo o artigo 1º, §1º,
conceitua bullying ou intimidação sistemática como todo ato de violência
física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação
evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas,
com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima,
em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas.
Não parece adequada a expressão “sem motivação evidente”, haja vista
que ninguém persegue outra pessoa “sem motivação”, ainda que não
seja “evidente”. Em qualquer ato de perseguição sempre agirá o agressor
motivado por um algum raciocínio de natureza moral ou psicológica, seja
pela inveja, pela necessidade de ganhar popularidade, sentir-se poderoso
ou superior em relação à pessoa agredida.
Mas sem dúvida o ponto que merece maior discussão por parte
da comunidade jurídica é o contido no artigo 4º, inciso VIII, que trata dos
24 25
objetivos do programa. De acordo com o referido preceito é objetivo evitar,
quando possível, a punição dos agressores, privilegiando mecanismos
e instrumentos alternativos que promovam a efetiva responsabilização
e a mudança de comportamento hostil. Certamente não pretendeu o
legislador a utilização de critério que permita desproporção abissal entre a
gravidade do dano e o remédio utilizado para combatê-lo. Na realidade deu
concretude à máxima de que o Estado deve intervir o menos possível na
livre determinação da vida dos seus cidadãos, sem esquecer que as lesões
provocadas pelos perseguidores, sejam reais ou virtuais, redundam em
ofensas a direitos fundamentais e a direitos de personalidade. Em hipótese
alguma a mens legis deve ser considerada como um privilégio ao ofensor;
deve-se realçar que a política legislativa não pode encontrar adequação a
todo e qualquer tipo de conduta, sob pena de tornar-se prolixa.
Estudos demonstram que o pedido de ajuda de uma vítima de
stalking só ocorre quando a mesma já não suporta as agressões e verifica
que sozinha não conseguirá resolver o problema. E há vários motivos
que levam a essa atitude, como a vergonha de dar publicidade ao
acontecimento ou até mesmo o medo de vingança por parte do agressor.
Há também outro dado importante que merece ser analisado com muita
atenção que é a identificação tardia do problema pela vítima. É comum
que as primeiras investidas sejam relevadas, quer por desconhecimento
do que seja o stalking, quer pela ausência de percepção das reais intenções
do agente. Todavia, a intervenção precoce reputa-se necessária para que se
previnam a expansão da frequência das lesões e o incremento na gravidade
das agressões. Igualmente importante é o aconselhamento da vítima de
que essas situações devem ser compartilhadas com aqueles que lhe são
próximos, pois certamente terão pontos de vista diversos de quem vivencia
as agressões e saberão avaliar e identificar situações de menor ou de maior
risco, adotando providências quando necessário.
O auxílio às vítimas não deve ser limitado à identificação do agente
e sua respectiva punição, pois numa ótica simplista isso apenas resolveria
26 27
o problema relacionado a contenção do agressor, mas restariam abertas
as chagas provocadas no corpo e na alma. O interessante é a criação de
centros multidisciplinares, com médicos, psicólogos e profissionais da
área jurídica, para que cada caso possa ser analisado, inclusive, à luz do
sofrimento impingido à pessoa vitimada.
No mundo virtual, outras providências devem ser adotadas.
Iniciado um processo de cyberstalking deve a vítima inicialmente
procurar as informações disponíveis online, em blogues, redes sociais,
postagens existentes e outras mídias e remover qualquer dado que possa
levar à sua identificação pessoal, como endereço, data de nascimento,
locais que frequenta, telefones disponíveis etc. Atenção especial deve ser
dispensada aos dispositivos pessoais, como celulares, tablets, notebooks e
computadores. É necessário manter um antivírus atualizado para reduzir o
risco de infecção por vírus, spywares, trojans, ou qualquer outro programa
malicioso. Também é importante utilizar uma senha pessoal para bloqueio
desses dispositivos, evitando, destarte, o acesso por pessoas não autorizadas.
As redes Wi-Fi domésticas devem estar protegidas por senhas fortes (as que
combinam letras maiúsculas, minúsculas, números e caracteres especiais)
e o acesso a determinados websites deve ser evitado ao utilizar uma rede
Wi-Fi pública ou aberta. Igualmente importante é a utilização de senhas
distintas para blogues, redes sociais, e-mails e dispositivos de conexão a
internet. O nível de privacidade deve ser revisto em todas as mídias sociais
de modo a permitir o compartilhamento de informações somente com
pessoas realmente conhecidas. Fotografias que indiquem a localização
geográfica devem ser evitadas. Da mesma forma devem ser evitadas as
postagens de fotografias com crianças.
De extrema importância coletar o maior número possível de
evidências sobre o assédio virtual, incluindo postagens em redes sociais,
e-mails, detalhes de websites e capturas de telas (print screen ou screen
capture), para posteriormente comunicar a situação à autoridade policial.
Se a agressão envolver a criação de website ou blog para atentar contra
26 27
direitos de personalidade, a vítima deve anotar o URL (Uniform Resource
Locator)[14], que nada mais é que o endereço “www”, disponibilizando-o
da mesma forma à polícia que poderá descobrir detalhes sobre a pessoa
responsável pela publicação e adotar as providências necessárias.
Embora as redes sociais permitam reportar excessos em publicações
ou denunciar publicações de conteúdo ofensivo por meio de espaços criados
para tal finalidade nas respectivas plataformas, dificilmente providências
são adotadas. Há o entendimento generalizado e padronizado pelas empresas
responsáveis por essas mídias de que determinadas ofensas “não violam os
padrões da comunidade”, o que é um verdadeiro absurdo, haja vista que os
padrões comunitários de qualquer ferramenta de internet jamais poderão
se sobrepor a direitos que transcendem a qualquer normatização, como é o
caso dos direitos de personalidade.
3. A TUTELA JURÍDICA E AS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS DA
PERSONALIDADE NA INTERNET
A primeira dificuldade quando analisamos os Direitos de
Personalidade é saber qual é a sua relação com os Direitos Fundamentais e
com os Direitos Humanos. Podemos afirmar, de início, que todos os Direitos
de Personalidade são Direitos Fundamentais, mas nem todos os Direitos
Fundamentais são Direitos de Personalidade. Segundo Anderson Schreiber
Todas essas diferentes designações destinam-se a contemplar
atributos da personalidade humana merecedores de proteção jurídica.
O que muda é tão somente o plano em que a personalidade humana se
manifesta. Assim, a expressão direitos humanos é mais utilizada no
plano internacional, independentemente, portanto, do modo como cada
Estado nacional regula a matéria. Direitos fundamentais, por sua vez, é o
termo normalmente empregado pela designar “direitos positivados numa
constituição de um determinado Estado”. É, por isso mesmo, a terminologia
que tem sido preferida para tratar da proteção da pessoa humana no campo
28 29
do direito público, em face da atuação do poder estatal. Já a expressão
direitos da personalidade é empregada na alusão aos atributos humanos
que exigem especial proteção no campo das relações privadas, ou seja,
na interação entre particulares, sem embargo de encontrarem também
fundamento constitucional e proteção nos planos nacional e internacional.
[15]
Os direitos fundamentais representam criação recente na história
da humanidade e ainda que constituam um modelo jurídico com pretensões
de universalidade, encontram resistência de efetivação em vários países,
onde sequer são reconhecidos.[16] Representam em concomitância um
rol extenso de direitos subjetivos e componentes substanciais da ordem
constitucional objetiva, integrando a estrutura de um Estado Democrático
de Direito.
De acordo com Pedro Pais de Vasconcelos “são notórias na Doutrina
as divisões que têm como base diferentes concepções, objectivas ou
subjectivas, da tutela jurídica da personalidade”.[17] Pode-se falar em
direito objetivo de personalidade e direito subjetivo de personalidade,
todavia, as características de disponibilidade do direito subjetivo não podem
ser verificadas em sua plenitude no domínio da tutela da personalidade.
Há bens que integram a tutela da personalidade como a vida e a
dignidade que não podem ser dispensados pelo titular. E arremata: “uma
construção totalmente objectiva da tutela da personalidade, que prescinda
completamente do direito subjectivo, é redutora e omite a centralidade da
personalidade na pessoa do seu próprio titular”. [18]
As ofensas aos direitos de personalidade são mais lesivas ao ofendido
que à própria sociedade, razão pela qual a tutela da personalidade deve
fundamentar-se mais em questões de ordem pessoal do que em questões
de ordem social.
Entenda-se por direito objetivo de personalidade a previsão
normativa relativa à defesa da personalidade, legitimada pelo direito
cosmopolita, pela regra constitucional ou pela lei ordinária. Observamos
28 29
que a tutela do direito geral da personalidade pode ser também encontrada
na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de
1948, quer no artigo 3º que assevera que “todo ser humano tem direito à
vida, à liberdade e à segurança pessoal”, quer no artigo 12 que estabelece
que “ninguém será sujeito a interferências em sua vida privada, em sua
família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataques à sua honra
e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais
interferências ou ataques”.
Importante acrescentar que o sistema processual português
contempla no Livro V, Título I, do Código de Processo Civil, a tutela da
personalidade (artigos 878º, 879º e 880º), que permite ao ofendido requerer
providências judiciais concretamente adequadas a evitar a consumação
de qualquer ameaça ilícita e direta à personalidade física e moral, ou a
atenuar ou a fazer cessar os efeitos de ofensa já consumada.
Trata-se de procedimento célere que prevê a designação de
audiência no prazo de 20 (vinte) dias após a apresentação do requerimento
que deve estar acompanhado de provas. A contestação é apresentada na
própria audiência e a produção de provas é ordenada na falta de alguma
das partes ou se a tentativa de conciliação restar infrutífera. A sentença
deve ser sucintamente fundamentada e, em caso de procedência, indicar
o comportamento concreto a que o requerido fica sujeito, bem como o
prazo de cumprimento e a sanção pecuniária compulsória por cada dia de
atraso ou por cada infração cometida. A execução da decisão é efetuada
nos próprios autos e é acompanhada da imediata liquidação da sanção
pecuniária compulsória.
O sistema processual brasileiro não contempla, a exemplo do sistema
português, procedimento especial relativo a tutela da personalidade, o que
obriga o ofendido a buscar vias procedimentais demasiadamente lentas,
onde a sanção pecuniária compulsória pode ser revista pelo órgão julgador,
desde que se torne insuficiente ou excessiva. Além disso as demandas
muitas vezes estão limitadas a obrigações de fazer e a indenizações por
30 31
danos morais. A título de ilustração é de bom alvitre registrar que em
recente Recurso Especial analisado pelo Superior Tribunal de Justiça,
a multa cominatória pelo descumprimento de obrigação de fazer que
alcançava R$ 95.324.773,90 (noventa e cinco milhões, trezentos e vinte e
quatro mil, setecentos e setenta e três reais e noventa centavos), foi reduzida
a R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais), entendendo o Exmo. Sr.
Ministro Relator que “é possível, no âmbito do recurso especial, a redução
do montante da multa cominatória quando se revelar exorbitante, em total
descompasso com a razoabilidade e proporcionalidade”.[19]
No Código Civil brasileiro preocupou-se o legislador, por conseguinte,
em apenas pontuar nos artigos 11 a 21 alguns atributos da personalidade
humana de maior impacto nas relações civis, sendo importante destacar
que o rol de direitos ali contemplados não é taxativo ou numerus clausus.
Todavia o sistema brasileiro tem se valido do instituto do dano moral
como instrumento hábil a justificar as pretensões de reparações às lesões
a qualquer dos direitos de personalidade. O que se verifica é que há um
importante esforço para a construção de critérios que permitam distinguir
os interesses que são realmente merecedores da tutela jurisdicional,
evitando-se a banalização do instituto que se tornou o principal instrumento
de proteção da pessoa humana no Brasil: a indenização por dano moral.[20]
Ainda contempla o sistema brasileiro, após a edição da Lei
12.965/2014 (denominada de Marco Civil da Internet) a neutralidade da rede,
consistente em tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem
distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação,
permitindo, ainda, que o provedor de aplicações seja responsabilizado
civilmente por danos causados por terceiros se, após ordem judicial,
não adotar providências para tornar indisponível o conteúdo indicado,
facultando ao lesado, nas ações sobre ressarcimento por danos decorrentes
de conteúdos lançados no meio virtual atentatórios à honra, à reputação
ou a direitos de personalidade, o ajuizamento de demanda reparatória nos
juizados especiais.
30 31
3.1 RETIRADA DE OFENSAS DA INTERNET: O DIREITO DE SER
ESQUECIDO
Efetuada a ofensa ou lesão a direito de personalidade, deve a mesma
permanecer ad eternum na rede mundial de computadores? Há algum
mecanismo que possa minorar os danos causados pela exposição indevida
consistente em compartilhamento de conteúdo ofensivo? Por quanto tempo
uma informação deve ficar disponível?
Diferentemente dos jornais e revistas que são esquecidos com
o passar do tempo, a internet não esquece. As informações lançadas no
mundo online ali são eternizadas.
De acordo com Karl Larenz “a interpretação da norma jurídica
positiva e, por maioria de razão, o desenvolvimento criador do Direito
através da jurisprudência, têm, por isso, de orientar-se, em último termo,
pela ideia de Direito como princípio regulador”,[21] razão pela qual
a contribuição dos tribunais é de extrema importância à solução das
indagações anteriormente formuladas.
Diversas decisões já foram proferidas versando sobre o tema “direito
ao esquecimento”, mas a de maior impacto é a do Tribunal de Justiça da
União Europeia no caso Google (acórdão no processo C-131/12).
Provocado por meio de um mecanismo processual denominado de
“reenvio prejudicial”, o citado Tribunal analisou a aplicação das regras da
Diretiva 95/46/CE, relativa a proteção de dados pessoais. O caso remonta
a 2010, quando o espanhol Mario Costeja González apresentou uma
reclamação contra o jornal espanhol “La Vanguardia Ediciones SL”, Google
Spain e Google Inc., na Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD).
Alegava o autor que quando seu nome era inserido no motor de busca do
grupo Google, a lista de resultados apontava para duas páginas do jornal
“La Vanguardia” de 1998, que anunciavam a venda de um imóvel em hasta
pública, realizada em virtude de dívidas cobradas pela Segurança Social.
Embora a dívida estivesse devidamente quitada e o caso encerrado naquela
32 33
altura, o nome de Mario Costeja Gonzalez era mantido vinculado ao evento,
permitindo a qualquer pessoa o acesso à publicação. A reclamação foi
indeferida pela AEPD, em relação ao jornal, por considerar que o editor
tinha publicado as informações em observância aos preceitos legais. Em
relação ao Google, foi determinada a adoção de medidas necessárias para
retirar os dados do seu índice de buscas, impossibilitando futuras pesquisas.
Em recurso interposto pela empresa Google, foi requerida a anulação
da decisão da AEPD. Três questões fundamentais foram submetidas
ao Tribunal de Justiça da União Europeia: 1) o âmbito de aplicação
territorial das normas de proteção de dados da União Europeia; 2) o papel
e a responsabilidade dos motores de busca na internet; e 3) o direito ao
esquecimento ou o direito de ser esquecido, de forma que o interessado
possa solicitar a remoção de resultados de pesquisa que lhe dizem respeito,
dos motores de pesquisa na internet.
A respeito da aplicação territorial, sustentou a Google que não exercia
qualquer atividade de indexação ou armazenamento de informação em
Espanha e que a Google Spain tem por finalidade a atividade de promoção
e venda de espaços publicitários. Também sustentou que a atividade de
indexação é feita pela Google Inc, com sede nos Estados Unidos, razão pela
qual não poderiam ser aplicadas as normas da União Europeia relativas a
proteção de dados.
Entendeu o Tribunal que a legislação não faz exigência de que o
tratamento deve ser efetuado pelo estabelecimento da empresa na União
Europeia, mas que seja efetuado no contexto de sua atividade e como o
tratamento é efetuado no contexto da atividade comercial e publicitária da
Google em território espanhol, está sujeito à legislação da União Europeia.
Surge então o segundo questionamento: o motor de buscas é
responsável pelo tratamento de dados e sua atividade de pesquisa e
indexação está abrangida no conceito de tratamento de dados? Defendia
a Google que o motor de pesquisa não cria conteúdo, indicando apenas
onde podem ser encontrados conteúdos já existentes, disponibilizados
32 33
por terceiros na internet e que a disponibilização de uma ferramenta de
localização de informação não acarreta a obrigação de controle do conteúdo
dos sítios virtuais que indica.
O Tribunal da União Europeia considerou a possibilidade de
bloqueio de determinados resultados da pesquisa pelos motores de busca,
a exemplo do que já faz em alguns países, promovendo o bloqueio de sites
que violem direitos de propriedade intelectual. E por dispor de mecanismos
técnicos para filtrar o conteúdo, o motor de busca desenvolve atividade de
tratamento de dados, tornando-o responsável pela exclusão de resultados
que disponibilizem páginas que revelem ingerência na privacidade de
algum usuário.
Por fim entendeu o Tribunal que o motor de busca é obrigado a
suprimir da lista de resultados, exibida após a realização de pesquisa a
partir de um nome de uma pessoa, as ligações a páginas de internet que
contenham informações sobre essa pessoa, mesmo quando essa publicação
seja lícita, realçando a prevalência do direito à privacidade sobre o interesse
econômico do operador de busca ou o interesse do público em aceder a
informação, excetuando, apenas, casos justificados pelo interesse público
resultante do exercício de atividade pública.
Mas qual é a origem do direito ao esquecimento? Sua origem é a
anistia, palavra derivada do grego “amnestia”, que significa “esquecimento”,
mesma origem da palavra amnésia.
Paul Ricoeur indica a anistia tem por objetivo a reconciliação entre
cidadãos inimigos, a paz cívica. O modelo mais antigo, por conseguinte,
recordado por Aristóteles em “A Constituição de Atenas”, é extraído
do decreto promulgado em Atenas em 403 a.C., depois da vitória da
democracia sobre a oligarquia dos Trinta. Tratava-se de uma dupla forma
por contemplar o decreto propriamente dito e o juramento proferido
individualmente pelos cidadãos. De um lado a regra “é proibido lembrar
os males”, por outro o juramento “não recordarei os males”, sob pena das
maldições provocadas pelo perjúrio. E Ricoeur arremata:
34 35
As fórmulas negativas são marcantes: não recordar.
Ora, a recordação negaria algo, a saber, o esquecimento.
Esquecimento contra esquecimento? Esquecimento da
discórdia contra esquecimento dos danos sofridos? É nessas
profundezas que será preciso se embrenhar quando chegar
a hora. Permanecendo na superfície das coisas, é preciso
saudar a ambição confessa do decreto e do juramento
atenienses. Finda a guerra, é proclamado solenemente: os
combates presentes, de que a tragédia fala, tornam-se o
passado a não ser recordado.[22]
A conclusão a que chegamos, no caso que envolve a empresa Google
e o espanhol Mario Costeja González, é que ao buscar a efetivação do direito
de ser esquecido por publicações do passado, será lembrado eternamente
pelas publicações advindas da decisão proferida pelo Tribunal da União
Europeia. Um verdadeiro paradoxo!
No Brasil há duas decisões paradigmáticas proferidas pelo Superior
Tribunal de Justiça, aplicando o “direito ao esquecimento”. Ambas registram
como parte a Globo Comunicação e Participações S/A, uma das maiores
empresas de comunicação daquele país (Recursos Especiais 1.334.097-RJ e
1.335.153-RJ). Nelas o Ministro Relator Luis Felipe Salomão, enfatiza que o
ser humano tem um valor em si que supera o das “coisas humanas” e ainda
destaca:
A cláusula constitucional da dignidade da pessoa humana
garante que o homem seja tratado como sujeito cujo valor supera ao
de todas as coisas criadas por ele próprio, como o mercado, a imprensa
e até mesmo o Estado, edificando um núcleo intangível de proteção
oponível erga omnes, circunstância que legitima, em uma ponderação de
valores constitucionalmente protegidos, sempre em vista os parâmetros
da proporcionalidade e razoabilidade, que algum sacrifício possa ser
suportado, caso a caso, pelos titulares de outros bens e direitos.[23]
34 35
Mesmo com essas decisões que deveriam ser padronizadas pelo
sistema judiciário brasileiro, alguns percalços são verificados quando o
assunto é a retirada de publicação ofensiva da internet. Por diversas vezes
as vítimas notificam os provedores que nada fazem, situação verificada,
inclusive, no processo nº 2012/0005748-4 (Recurso Especial nº 1.323.754-
STJ. Neste processo restou decidido que o provedor, uma vez notificado pela
vítima, deve retirar o texto ou imagem de conteúdo ilícito do ar no prazo
de 24 (vinte e quatro) horas, sob pena de responder solidariamente com o
autor direto do dano, em virtude da omissão praticada. Em sua decisão a
relatora Ministra Nancy Andrighi realça:
A questão atinente à responsabilidade civil das redes sociais
virtuais pelo conteúdo das informações veiculadas não é nova no âmbito
desta Turma. Logo que me deparei com o problema, vislumbrei o interesse
coletivo que envolve a controvérsia, não apenas pelo número de usuários
que se utilizam desse tipo de serviço, mas sobretudo em virtude da sua
enorme difusão não só no Brasil, mas em todo o planeta, e da sua crescente
utilização como artifício para a consecução de atividades ilegais. Trata-
se de questão global, de repercussão internacional, que tem ocupado
juristas de todo o mundo. (…) Com efeito, a velocidade com que os dados
circulam no meio virtual torna indispensável que medidas tendentes a
coibir informações depreciativas e aviltantes sejam adotadas célere e
enfaticamente.[24]
O sistema processual brasileiro contempla previsão de multa
diária, independentemente do pedido do autor, para que a determinação
judicial seja devidamente cumprida. A crítica que se faz, todavia, advém
da hipótese de modificação do valor ou da periodicidade da multa quando
se verificar que a mesma se tornou insuficiente ou excessiva. Considerando
que a multa, no Brasil, é revertida em benefício da parte, muitas empresas
preferem investir na tentativa de modificação das decisões judiciais, ao
invés de cumpri-las adequadamente, transformando, destarte, multas
milionárias em valores absolutamente irrisórios diante do dano provocado.
36 37
3.2 O DIREITO DE DELETAR
Outra discussão que tem tomado as atenções dos juristas nos
últimos tempos diz respeito ao “direito de deletar”, ou ao direito de excluir
ou eliminar. Não se trata de derivação do direito ao esquecimento ou
tampouco guarda relação com este, mas trata-se da possibilidade de cada
usuário apagar todos os dados que de alguma forma produz e armazena
na internet, ou informações coletadas e armazenadas por determinadas
empresas. Diz respeito ao controle do dado e não deve ser visto como
caminho para reescrever ou esconder o passado, mas como um direito
básico e pragmático disponível a todos.
É inegável que as pessoas devem ter mais controle sobre seus dados
e devem perceber que realmente possuem esse controle, mas na prática
não é isso o que acontece no mundo virtual onde determinados dados estão
expostos a vulnerabilidades. E para evitar esse problema às vezes só há
um caminho: a exclusão. E a conclusão é lógica pois se o dado existe ele é
vulnerável, não sendo possível atribuir o mesmo sentido àquilo que deixou
de existir ou foi apagado.
O movimento tomou força após declaração do Presidente Executivo
do Google, Eric Schmidt, em 06 de maio de 2013. Na ocasião disse que na
América, há um sentido de equidade que é culturalmente verdadeiro a
todos e que a falta de um botão “delete” na internet é algo significativo,
pois há um momento em que a exclusão é a coisa certa.[25]
É muito simples entender a importância desse direito quando
a análise parte de situação evidente, como por exemplo, de que dados
pertencem a alguém que, por conseguinte, decide a quem os disponibiliza,
de que forma e por quanto tempo. A questão apresenta relevo quando
contrastamos a palavra “dados” com as novas redes sociais. Necessário
indagar a quem pertencem os dados inseridos numa rede social? É o
provedor de conteúdo proprietário ou possuidor desses dados? No momento
em que resolvo deletá-los, pode o provedor de conteúdo preservá-los por
36 37
qualquer finalidade ou até mesmo compartilha-los com terceiros?
As respostas a essas indagações, embora relativamente simples,
podem causar espanto e desconforto quando realizadas após a análise da
situação divulgada em 2011, pelo então estudante de Direito, Max Schrems,
residente em Viena. Na altura era um membro da rede social Facebook
como qualquer outro, quando descobriu que os dados apagados não eram
realmente excluídos. Pretendia, inicialmente, apenas ter conhecimento
do que o Facebook tinha armazenado sobre ele e para tanto utilizou um
formulário online para solicitar seus dados pessoais. Não satisfeito com a
resposta, conseguiu um CD enviado diretamente da Califórnia com um banco
de dados de tudo o que foi coletado em três anos de inscrição, equivalente
a 1.200 páginas impressas. Relata que, inicialmente, ficou surpreso com a
resposta, pois nem a CIA ou KGB já tiveram 1.200 páginas a respeito de
um cidadão comum. Começou a ficar assustado quando descobriu que
os dados coletados eram armazenados em 57 categorias. Na categoria
“mensagens” encontrou algo inesperado: mensagens apagadas há muito
tempo, marcadas como deleted – true, permaneciam armazenadas.
Embora o Facebook realce que a qualquer momento o usuário
pode apagar suas mensagens e seus dados, as mensagens “apagadas” de
Max Schrems permaneciam arquivadas, permitindo encontrar qualquer
informação pela inserção de palavras-chaves na função de pesquisa, como
por exemplo, opção sexual, participação em manifestações, doenças etc.
Nos Estados Unidos prevalece a ideia de que dados obtidos nunca
são cedidos, mas uma empresa que armazena dados em seus servidores
passa a possuir direitos sobre eles.
Em suas pesquisas Max descobriu que desde 2009 o Facebook
mantém uma segunda sede em Dublin, na Irlanda e por tal razão vem
promovendo diversas queixas à Autoridade Irlandesa de Proteção de
Dados. Criou, inclusive, uma página na internet denominada “Europe
versus Facebook” (europe-v-facebook.org), com a finalidade de suscitar o
debate e exigir o cumprimento da lei. Mesmo assim o Facebook desenvolveu
38 39
a ferramenta timeline (linha do tempo) que aumenta a quantidade de
informações recolhidas de seus usuários, organizando-as cronologicamente
numa espécie de diário virtual.
Em resposta às alegações de que os dados não são apagados, o
Facebook respondeu que a respeito dos relatórios de dados apagados que às
vezes aparecem nos arquivos baixados, deve-se dizer que provavelmente
se trata, neste caso, de mensagens que foram removidas de um dado
lugar do Facebook, mas não foram excluídas, ou houve a necessidade de
manutenção da informação por um curto período para investigações.
Quando um dado é removido pelo usuário de qualquer rede social,
necessariamente ele deve desaparecer e o armazenamento injustificado
desses dados pelo Facebook é ilegal. Remoção deve significar exclusão, em
qualquer hipótese.
O exemplo trazido contraria, inclusive, a Declaração de Direitos e
Responsabilidades da mencionada rede social, que consigna que o usuário
é proprietário de todas as informações e conteúdos que publica e pode
controlar o modo como serão compartilhados por meio das configurações
de privacidade e de aplicativos.[26]
Considerando que o Facebook reúne mais de 20% da população
mundial e este número tende a crescer, considerando ainda que há a
possibilidade de preservação indevida de todos os dados inseridos, mesmo
aqueles que foram deletados por seus proprietários, a referida rede social
pode estar exercendo a função de maior instituição privada de informação
pessoal e de espionagem do planeta!
O direito de deletar envolve, ainda, as relações interpessoais e deve
ser aplicado para que se preserve qualquer direito de personalidade. A
decisão judicial mais recente de que se tem notícia em território europeu
foi publicada em 13 de outubro de 2015, no processo VI ZR 271/14, proferida
pelo Bundesgerichtshof (Tribunal de Justiça Federal), na Alemanha. Trata-
se de um caso que envolve um casal de Lahn-Dill, região central daquele
país. O homem, um fotógrafo, durante o período que se relacionou com a ex-
38 39
namorada produziu vários vídeos eróticos e fotografias íntimas, tudo com
o consentimento da mulher. Quando o relacionamento acabou a mulher
solicitou que todo o material fosse apagado. Não logrando êxito em seu
pleito, buscou a via processual. A Corte de Justiça entendeu que os arquivos
contendo as fotografias e os vídeos devem ser deletados ou devolvidos pois
os direitos de personalidade são mais importantes que os direitos de posse
do fotógrafo.[27]
Como se verifica, o leque de violações é imenso e importa refletir
sobre a função do direito e a necessidade de dar validade aos direitos de
personalidade frente aos problemas causados pela utilização indevida da
internet.
A inércia da comunidade jurídica pode, em futuro próximo,
contribuir para que a privacidade, a honra, a moral e outros direitos
inerentes ao homem se transformem em artigos de luxo, extremamente
raros, facilitando o surgimento de uma legião privada de caçadores de
direitos, a exemplo de serviços de internet já disponíveis para medição da
reputação online e comercialização de soluções para melhorá-la.
A peça teatral “Vermelho”, do escritor americano John Logan, que
retrata os dramas filosóficos e artísticos do pintor Mark Rothko,[28] nos
mostra, na primeira cena, a recepção do artista ao assistente que o ajudaria
a concluir os murais do Four Seasons. Olhando para uma tela imaginária
o mestre indaga ao ajudante: “o que você vê?” A contemplação da internet
e seus múltiplos fenômenos não deve prescindir da mesma indagação de
Rothko. Estaríamos vivendo o modelo de sociedade totalitária extasiada
pelo progresso científico, imaginada por Aldous Huxley em “Admirável
Mundo Novo”? Ao consentir que a internet seja um território sem controle
estatal não estaríamos permitindo a implantação de um sistema semelhante
àquele idealizado por George Orwell, na célebre obra 1984, onde o “Grande
Irmão” é capaz de vigiar até mesmo as ideias e os sonhos dos cidadãos?
Portanto, “o que você vê?”.
40 41
4. CONSTATAÇÕES
A internet é instrumento de aproximação, mas quando utilizada
para causar lesões a direitos de personalidade é meio extremamente nocivo
por facilitar a expansão do dano e a eternização dos efeitos do ato lesivo.
– A liberdade de expressão deve ceder espaço a direitos de
personalidade, em qualquer hipótese. O exercício dessa liberdade, sem
responsabilidade, e com a finalidade de macular a honra, a privacidade
e a imagem de outrem é ato de arbítrio, merecendo intervenção estatal
adequada.
– O stalking virtual deve ser entendido como espécie mais gravosa
de cyberbullying. Ambos, todavia, denotam uma campanha de assédio a
alguém com a invasão de sua privacidade e têm por objetivo humilhar,
diminuir, vilipendiar, amedrontar, acarretando danos psicológicos, sociais
e morais.
– Na quantificação pecuniária do dano causado pela ofensa a
direitos de personalidade deve o juiz ou tribunal, quando possível, recorrer
a perícias psiquiátricas para a prova da extensão da chamada “dor de alma”.
– O direito ao esquecimento é instrumento de defesa que deve ser
utilizado com a finalidade de reparar lesões a direitos de personalidade,
como honra, privacidade e imagem. Nenhuma ofensa pode ecoar para
sempre, o que seria equivalente a “punição” eterna.
– Os provedores de serviços de internet que disponibilizam
espaços para denúncia de conteúdos devem revisar suas políticas internas,
adequando-as a critérios rígidos de proteção a direitos fundamentais.
– O sistema Judiciário deve estar atento a essas modalidades de
violações aos direitos de personalidade, analisando não somente a intenção
do agente, mas a extensão da lesão sofrida pela vítima e as respectivas
consequências em seu meio social e profissional. As medidas reparatórias
ordenadas pelo Judiciário devem contemplar, além da indenização
pecuniária, a determinação de exclusão do conteúdo ofensivo lançado na
40 41
internet.
5. REFERÊNCIAS
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Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/link/justica-condena-facebook-
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edição, reimpressão. Cascais, Portugal: Princípia Editora, Lda, Abril, 2015.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo:
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Disponível em:http://www.tjsp.jus.br/Institucional/CanaisComunicacao/
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VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direito de Personalidade. Reimpressão da
edição de Novembro de 2006. Coimbra, Portugal: Almedina, Abril, 2014.
NOTAS
[1] FARINHO, Domingos Soares. Intimidade da Vida Privada e Media no
Ciberespaço. Coimbra, Portugal: Edições Almedina, S.A., Janeiro, 2006, p. 9.
[2] CUPIS, Adriano de. Os Direitos da Personalidade. 2ª edição. São Paulo,
Brasil: Quorum, 2008, p. 104.
[3] Brasil, Supremo Tribunal Federal: ADPF nº 130. Exmo. Sr. Ministro Carlos
Ayres Britto: “Quando é da lógica perpassante dos mesmíssimos preceitos
constitucionais (art. 220 e seus §§ 1º, 2º e 6º) o comando de que os eventuais
abusos sejam detectados caso a caso, jurisdicionalmente (é abusivo legislar
sobre abusos de imprensa, averbo), pois esse modo casuístico de aplicar a
Lei Maior é a maneira mais eficaz de proteção dos superiores bens jurídicos
da liberdade de manifestação do pensamento e da liberdade de expressão
lato sensu”, p. 61.
[4] Brasil, Supremo Tribunal Federal: Recurso Extraordinário – RE 511.961/
SP. Exmo. Sr. Ministro Gilmar Ferreira Mendes: “É certo que o constituinte
de 1988 de nenhuma maneira concebeu a liberdade de expressão como
direito absoluto, insuscetível de restrição, seja pelo Judiciário, seja pelo
Legislativo. A própria formulação do texto constitucional – “Nenhuma
lei conterá dispositivo…, observado o disposto no artigo 5º, IV, V, X, XIII e
XIV” – parece explicitar que o constituinte não pretendeu instituir aqui um
domínio inexpugnável à intervenção legislativa. Ao revés, essa formulação
indica ser inadmissível, tão somente, a disciplina legal que crie embaraços
44 45
à liberdade de informação. O texto constitucional, portanto, não excluiu a
possibilidade de que se introduzam limitações à liberdade de expressão
e de comunicação, estabelecendo, expressamente, que o exercício dessas
liberdades há de se fazer com observância do disposto na Constituição. Não
poderia ser outra a orientação do constituinte, pois, do contrário, outros
valores, igualmente relevantes, quedariam esvaziados diante de um direito
avassalador, absoluto e insuscetível de restrição”, pp. 47/48.
[5] GLOVER, Scott. Guilty verdict on lesser charges in MySpace case.
Disponível em: http://latimesblogs.latimes.com/lanow/2008/11/a-federal-
court.html. Acesso em: 28 de janeiro de 2016.
[6] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Brasil. Apelação Cível nº
0462936-35.2013.8.21.7000. Relator: Des. Jorge Luiz Lopes do Canto.
[7] Portugal, Tribunal da Relação de Lisboa. Processo 431/13.6TTFUN.L1-4.
[8] TJSP – Comunicação Social do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Aluno deve indenizar professor por difamar sua imagem em rede social.
Disponível em: http://www.tjsp.jus.br/Institucional/CanaisComunicacao/
Noticias/Noticia.aspx?Id=30426. Acesso em: 20 de fevereiro de 2016.
[9] GOOD, Dan. Texas mother fights back after photo of son with rare disorder
used in cruel meme. Disponível em: http://www.nydailynews.com/news/
national/texas-mother-fights-back-son-photo-meme-article-1.2518921.
Acesso em: 06 de fevereiro de 2016.
[10] SILVA, João Céu e. Umberto Eco: “No momento em que todos têm
direito à palavra na internet, temo-la dada aos idiotas”. Diário de Notícias,
Portugal. Publicado em 24 de maio de 2015. Disponível em: http://www.
dn.pt/artes/interior/umberto-eco-no-momento-em-que-todos-tem-direito-
a-palavra-na-internet-temola-dada-aos-idiotas-4584352.html. Acesso em:
18 de fevereiro de 2016.
[11] CALHAU, Lélio Braga. Resumo de criminologia. 4ª edição. Niterói, RJ:
Impetus, 2009, p. 110.
[12] Disponível em: http://ec.europa.eu/eurostat/
documents/2995521/7151118/4-08022016-AP-EN.pdf/902a4c42-eec6-48ca-
44 45
97c3-c32d8a6131ef. Acesso em: 17 de fevereiro de 2016.
[13] MOREWITZ, Stephen J. Stalking and Violence. New Patterns of Trauma
and Obsession. New York, USA: Kluwer Academic/Plenum Publishers, 2003,
pp. 39/46.
[14] URL indica o endereço da rede onde é possível encontrar algum recurso
informático. Nas redes TCP/IP, um URL completo possui a seguinte estrutura:
esquema://domínio:porta/caminho/recurso?query_string#fragmento. O
esquema informa ao computador como conectar-se, o domínio especifica
onde conectar-se e os demais elementos do URL especificam o que está
sendo solicitado. Exemplo: http://www.w3.org/Addressing/URL/uri-spec.
html. (Fonte: Wikipedia – https://pt.wikipedia.org/wiki/URL)
[15] SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 3ª edição Revista e
Atualizada. São Paulo, Brasil: Editora Atlas S.A., 2014, p. 13.
[16] ALEXANDRINO, José Melo. Direitos Fundamentais. Introdução Geral.
2ª edição, reimpressão. Cascais, Portugal: Princípia Editora, Lda, Abril,
2015, p. 12.
[17] VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria Geral do Direito Civil. 7ª edição.
Coimbra, Portugal: Edições Almedina S. A., Novembro, 2012, p. 37.
[18] Idem, p. 37.
[19] Superior Tribunal de Justiça, Brasil. Recurso Especial nº 1.488.800 – SP
(2014/0230841-0).
[20] SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 3ª edição Revista e
Atualizada. São Paulo, Brasil: Editora Atlas S.A., 2014, p.16.
[21] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 7ª edição. Lisboa,
Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, pp. 137/138.
[22] RICOEUR, Paul. La Mémoire, L´Histoire, L´Oubli. Paris, France: Éditions
du Seuil, Septembre, 2000, p. 460.
[23] Brasil, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.335.153-
RJ (2011/0057428-0) e Recurso Especial nº 1.334.097-RJ (2012/0144910-7).
Relator: Ministro Luis Felipe Salomão.
[24] Brasil, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.323.754 – RJ
46 47
(2012/0005748-4). Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Recorrente: Google
Brasil Internet Ltda.
[25] TIBKEN, Shara. Google´s Schmidt: The Internet needs a delete button.
Disponível em: http://www.cnet.com/news/googles-schmidt-the-internet-
needs-a-delete-button/. Acesso em: 10 de fevereiro de 2016.
[26] https://www.facebook.com/legal/terms
[27] Bundesgerichtshof, OLG. Koblenz. Disponível em: http://
juris .bundesgerichtshof.de/cgi-bin/rechtsprechung/document.
py?Gericht=bgh&Art=en&nr=73173&pos=0&anz=1. Acesso em: 11 de
fevereiro de 2016.
[28] Mark Rothko (25/09/1903 – 25/02/1970) nascido em Dvinsk, no Império
Russo (atualmente Daugavpils, na Latvia), emigrou para os EUA aos 10 anos
de idade. Foi o maior expoente do expressionismo abstrato que sucedeu
ao cubismo e ao surrealismo depois da Segunda Guerra. É um dos mais
valorizados artistas russos de todos os tempos.
47
www.artigojuridico.com.br
46 47
APLICAÇÃO HERMENÊUTICA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Milton Milton Silva Vasconcellos - Advogado, Mestrando em Políticas sociais e Cidadania (UCSAL), Especialista em Direito Público, Professor universitário (Direito Tributário e Hermenêutica Jurídica). E-mail: [email protected].
Ana Maria Seixas Pamponet - ADoutora em Direitos Humanos e Desenvolvimento (UPO- ES)/ UFPB. Mestre em Administração. Pedagoga - Professora de Direito da Faculdade Ruy Barbosa e Unifacs. Pesquisadora da UCSAL e FCT- PT. E-mail: [email protected].
RESUMO: Este artigo volta-se a valoração hermenêutica do princípio da
dignidade da pessoa humana e surgiu da necessidade de se aferir abordagens
distintas da eficácia deste princípio, concebendo-o como importante instrumento
de hermenêutica aplicada. Para tanto o trabalho desenvolve-se em argumento que
se expressa a partir de seis etapas distintas, valorando-se inicialmente a eficácia
interpretativa do princípio, numa segunda etapa a compreensão da dignidade
humana sob o prisma axiológico, numa terceira etapa valora-se a dignidade da
pessoa humana enquanto fundamento da República, na quinta etapa discorre-se
acerca da dignidade da pessoa humana e sua titularidade e, por fim na última e
sexta etapa compreende-se a temática da dignidade da pessoa humana em sua
relação com os direitos fundamentais. Em cada uma dessas etapas, são sugeridas
aplicações hermenêuticas distintas do princípio da dignidade da pessoa humana,
com vistas assim a concebê-lo para além de sua já conhecida eficácia normativa
para alcançar também uma eficácia interpretativa.
Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana. Interpretação constitucional.
48 49
Hermenêutca Jurídica. Princípio constitucional. Direito constitucional
Abstract: The present work returns to the hermeneutical valuation of the
principle of the dignity of the human person and arose from the need to evaluate
different approaches to the effectiveness of this principle, conceiving it as an
important instrument of applied hermeneutics. For this, the work is developed
in an argument that is expressed from six different stages, initially assessing the
interpretative effectiveness of the principle, in a second stage the understanding
of human dignity under the axiological prism, in a third stage values dignity Of
the human person as the foundation of the Republic, in the fifth stage the dignity
of the human person and its ownership are discussed, and finally, in the last and
sixth stage, the theme of the dignity of the human person in its relation with
fundamental rights is understood. In each of these stages different hermeneutical
applications of the principle of the dignity of the human person are suggested, in
order to conceive it beyond its already known normative effectiveness in order to
achieve an interpretative efficacy.
Keywords: Dignity of human person. Constitutional interpretation.
Hermenêutca Jurídica. Constitutional principle. Constitutional right
1. INTRODUÇÃO
Com o fim da segunda Guerra Mundial e a derrocada da ideologia nazista,
desponta um processo por toda a Europa que viria a sugerir um esgotamento de
um determinado modo de pensar o direito, alçando, dentre outras, o homem como
centro do pensamento[3], com indiscutíveis efeitos para o direito e seu plano
interpretativo.
Dentre outras, com o advento do que a doutrina costuma chamar de
paradigma Pós-Positivista, observa-se um cabedal de alterações, dentre as quais,
a normatização dos princípios, que expressa novos ângulos acerca da eficácia
normativa destes textos constitucionais, seja como fundamento a um direito
pleiteado (eficácia positiva), seja como parâmetro limitador das ações estatais
(eficácia negativa), seja ainda naquilo que a doutrina convencionou chamar de
48 49
“eficácia interpretativa (BARROSO, 2009, p. 379).
Dessa forma, se no exercício de sua eficácia positiva, os princípios ainda
encontram muita divergências – sobretudo face a esse caráter abstrato e de baixa
densidade normativa que estas normas apresentam, o que – para alguns – ameaça
a segurança jurídica (na medida em que tal percepção abstrata permite uma
amplíssima compreensão do conteúdo desta norma), no exercício de sua eficácia
interpretativa entretanto, não restam dúvidas dos efeitos que estas normas
propiciam, oportunizando-se assim abordagem em separado.
Dentre tais normas, destaca-se o princípio da dignidade da pessoa Humana,
alçado a um dos fundamentos da República pelo paradigma constitucional vigente
(art. 1, III, CFRB), exercendo dessa forma papel central na compreensão e aplicação
do nosso Ordenamento Jurídico. Sob essa perspectiva é que se desenvolvem
as considerações sobre o conteúdo normativo da dignidade da pessoa humana
enquanto norma jurídica eficaz e, sobretudo apta a gerar efeitos no plano
hermenêutico.
2. MODALIDADES DE EFICÁCIA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Compreendendo o caráter normativo peculiar a todo e qualquer princípio,
percebe-se a dignidade da pessoa humana como uma norma dotada de plena
e ampla eficácia jurídica a se expressar em diferentes matizes. Nesse sentido,
cumpre destacar que numa percepção jurídica a dignidade é parte integrante
do indivíduo, devendo por isso ser não só reconhecida, mas também protegida e
respeitada. Logo seu caráter normativo impõe o reconhecimento da possibilidade
de produzir efeitos (SARLET, 2001, p.41).
Sabe-se que os princípios apresentam carga normativa e geram variados
efeitos, sendo possível falar-se então em normas dotadas de eficácia como qualquer
outra. Nesse sentido, fala-se em eficácia positiva e negativa, gerando efeitos sobre
o mundo jurídico, bem como sobre a realidade fática.
Concebendo a primeira perspectiva, fala-se em eficácia direta de um
princípio (também chamada de eficácia positiva) quando a utilização deste serve
50 51
de fundamento de um direito pleiteado. Nesse caso, a utilização do princípio se
aproximará da incidência normativa das regras, na medida em que são observados
os fatos em seu enquadramento na proposição jurídica que se deseja.
Visto por outro ângulo e ampliando esta noção, assevera a doutrina:
A eficácia positiva consiste em reconhecer, ao eventual beneficiado pela
norma jurídica enunciadora de direito fundamental, ainda que de suposta eficácia
limitada, o direito subjetivo de produzir tais efeitos, mediante a propositura da
ação judicial competente, de modo que seja possível obter a prestação estatal,
indispensável para assegurar uma existência digna. O Estado está, portanto,
obrigado a concretizar a dignidade da pessoa humana, ao elaborar normas e
formular/implementar políticas públicas. (SOARES, 2015, p. 259)
Dessa forma, além de assegurar direitos subjetivos, tais efeitos impõe
efeitos direitos ao estado que deve considerar tais valores quando da atividade
legislativa e de administração.
Por outro lado, fala-se em eficácia negativa de um princípio quando seu
caráter normativo propicia a falta de eficácia de quaisquer normas ou atos jurídicos
que não se harmonizem com seu conteúdo. Nesse sentido, o exercício da eficácia
negativa de um princípio aproxima-se de um controle de constitucionalidade, na
medida em que o advento de uma norma jurídica que implique em violação a
um princípio constitucional, pode resultar na declaração de inconstitucionalidade
desta norma (BARROSO, 2009, p. 153).
Nesse sentido, pontua a doutrina:
[…] a eficácia negativa confere à cidadania a prerrogativa de
questionar a validade de todas as normas infraconstitucionais
que ofendam o conteúdo de uma existência digna, ferindo
os direitos fundamentais que consubstanciam o respeito ao
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana
(SOARES, 2015,p. 259).
Sua compreensão vista por este ângulo empresta assim novo limite ao
estado na medida em que deve abster-se de ingerências na esfera do indivíduo
que represente de qualquer forma uma afronta à sua dignidade. (SARLET, 1998,
50 51
p. 110).
Nesse sentido fala-se que por meio da compreensão e aplicação deste
princípio mostra-se possível alcançar uma noção mais efetiva dos direitos
fundamentais, na medida em que estes tem sua efetivação potencializada por
meio da satisfação da dignidade da pessoa humana, que orienta o Estado a adotar
posturas compatíveis ao respeito e aplicação destas normas, asseverando-se assim,
por exemplo, na fundamentalidade dos direitos sociais de cunho prestacional, ao
tempo que rechaça a “reserva do possível” (SOARES, 2015, p. 262).
Para além das já conhecidas modalidades positiva e negativa do princípio
da dignidade da pessoa humana, concebe-se ainda uma terceira modalidade
de eficácia indicada pela doutrina – a eficácia interpretativa – que permite a
percepção dos princípios também como instrumento de interpretação.
Fala-se assim em eficácia interpretativa com a força normativa que os
princípios exercem no sentido de dar harmonia e unidade ao sistema jurídico.
Em exercício deste tipo de eficácia, os princípios constitucionais operam
limites à determinação do alcance e sentido das demais normas jurídicas
infraconstitucionais. No plano interno do sistema jurídico constitucional, o
exercício da eficácia interpretativa exerce influência sobre as demais normas
constitucionais a fim de que, diante de múltiplas possibilidades interpretativas,
o intérprete escolha aquela que melhor satisfaz o conteúdo axiológico que o
princípio representa (tal situação é muito comum diante de textos normativos
constitucionais composto por conceitos jurídicos indeterminados, atraindo assim
a construção do sentido final da expressão normativa abstrata pelo esforço do
próprio intérprete, que para tanto, deve valer-se de optar pelo sentido que melhor
se aproxima dos valores constitucionais).
Nesse sentido, são oportunas as palavras da doutrina:
A eficácia interpretativa poderá operar também dentro da
própria Constituição, em relação aos princípios; embora
eles não disponham de superioridade hierárquica sobre as
demais normas constitucionais, é possível reconhecer-lhes
uma ascendência axiológica sobre o texto constitucional
52 53
em geral, até mesmo para dar unidade e harmonia ao
sistema. A eficácia dos princípios constitucionais, nessa
acepção, consiste em orientar a interpretação das regras
em geral (constitucionais e infraconstitucionais), para que o
intérprete faça a opção, dentre as possíveis exegeses para o
caso, por aquela que realiza o melhor efeito pretendido pelo
princípio constitucional pertinente. (BARROSO,2009, p. 379)
Em complemento indica a doutrina ao referir-se exclusivamente à
eficácia interpretativa da dignidade da pessoa humana:
[…] no plano hermenêutico, o princípio da dignidade
da pessoa humana ostenta a correta interpretação e
aplicação das regras e demais princípios de um dado
sistema jurídico, a fim de que o intérprete escolha, entre
as diversas opções hermenêuticas aquela que melhor
tutele a ideia de existência digna no caso concreto
(SOARES, 2015,p. 259)
Alcança-se assim a noção de dignidade da pessoa humana um status
exegético que confere unidade valorativa de sentido para a aplicação e
compreensão de todo o sistema normativo que encontra neste supra valor
ao mesmo tempo uma ferramenta ao intérprete e um parâmetro/limite de
atuação do Estado.
3. PLANO SINTÁTICO
A considerar um plano sintático da interpretação debruça-se sobre
a realidade de ser o objeto da Hermenêutica textos jurídicos. Dessa forma, a
considerar o texto normativo da dignidade da pessoa humana, sua previsão
decorre da previsão constitucional do art. 1, III, CF:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada
pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
52 53
Direito e tem como fundamentos:
[…]
III – a dignidade da pessoa humana; (BRASIL:1988)
Sabe-se que um princípio tem seu cumprimento em graus variados,
uma vez que podem ser objetos de ponderação, razão pelo qual a doutrina
os situam no âmbito de importância (peso ou valor) e não apenas a
considerar sua validade. São assim compreendidos como mandamentos
de otimização, onde seu cumprimento ocorre na maior medida possível
(CAMARGO, 2007, P. 124)
Sob o prisma hermenêutico, a dimensão da sintaxe, expressa a
interpretação gramatical, lógica e sistemática, tipos de interpretação que
refletem distintas percepções acerca do sentido e alcance das normas
jurídicas.
Nesse sentido, fala-se em método literal ou interpretação gramatical
aquela que, na busca do sentido e alcance do texto normativo considera tão
somente as palavras, em busca do sentido literal que o texto tem a oferecer.
Para Santoa ( 2011) tal interpretação:
[…] o primeiro esforço de quem pretende compreender
pensamentos alheios orienta-se no sentido de entender
a linguagem empregada. Daí se originou o processo
verbal ou filológico, de exegese. Atende à forma exterior
do texto; preocupa-se com as acepções várias dos
vocábulos; graças ao manejo relativamente perfeito e
ao conhecimento integral das leis e usos da linguagem,
procura descobrir qual deve ou pode ser o sentido de
uma frase, dispositivo ou norma. (SANTOS, 2011, p. 88)
Trata-se então de uma técnica que inicia o processo de interpretação,
na medida em que permite ao exegeta conhecer o signo linguístico
utilizado, sem o qual restaria inútil todo e qualquer avanço semântico para
se compreender o sentido e alcance deste texto.
54 55
Face a própria natureza polissêmica (que é inerente às palavras) e
o caráter abstrato comum às normas principiológicas, uma acepção literal
do princípio da dignidade da pessoa humana é algo de imensa dificuldade,
sendo muito mais apropriado falar-se numa interpretação literal apenas
como início do processo interpretativo, sobretudo porque a noção acerca
da dignidade é um valor plural, variando a partir da época e local onde se
insere (o que não impede de se estabelecer um conteúdo universal mínimo
respeitando-se sempre fatores sociais: desenvolvimento social, econômico
e cultural de cada comunidade).
Acerca da interpretação lógica, expressa aquela em que o trabalho
exegético busca determinar a mens legislatoris do texto, extraindo-se assim
as motivações do legislador para o qual a norma foi criada.Nesse sentido
costuma-se apontar a utilidade do manejo da interpretação lógica para
resolver contradições entre termos num mesmo texto normativo, com
vistas a se alcançar um significado coerente. Nestes termos a situação
da polissemia retratada na interpretação literal, poderia ser sanada com
manejo em conjunto deste outro tipo de interpretação (o que endossa o já
afirmado alhures da insuficiência da interpretação literal para se alcançar
um resultado hermenêutico adequado).
Por fim, a interpretação sistemática é aquela em que se busca
interpretar o texto normativo partindo do pressuposto deste enquanto
parte de um todo. Em outras palavras trata-se do trabalho em que o sentido
e alcance do texto normativo é determinado levando-se em conta não o texto
em separado (como uma realidade autônoma), mas sim considerando-o
como parte de um sistema maior.
Destaca-se nesse sentido a posição de Grau ( 2009)
A interpretação do direito é interpretação do direito,
no seu todo, não de textos isolados, desprendidos
do direito. Não se interpreta o direito em tiras,
aos pedaços. A interpretação de qualquer texto de
direito impõe ao intérprete, sempre, em qualquer
54 55
circunstância, o caminhar pelo percurso que se
projeta a partir dele – do texto – até a Constituição.
Um texto de direito isolado, destacado, desprendido
do sistema jurídico, não expressa significado
normativo algum. (GRAU,2009, p. 88)
Por meio desta forma de interpretação, intenta-se ainda a
manutenção da própria integridade do sistema, haja vista que ao buscar a
interpretação considerando o todo do ordenamento, evita-se antinomias.
A compreensão da dignidade da pessoa humana sob um viés
sistemático talvez seja a mais adequada em nível de plenitude e eficácia.
Afirma-se isso, pois a dignidade da pessoa humana foi eleita pelo constituinte
como um fundamento da República, direcionando-se a todas as pessoas,
bem como o próprio Estado.
Em atenção ao que determina o art. 1, III, CFRB, a dignidade da pessoa
humana tem seu reconhecimento expresso como um dos fundamentos da
República. Mas afinal o que isso significa em termos normativos, bem como
em termos hermenêuticos?
Pelo prisma normativo, ao considerar a dignidade como fundamento
de todo o sistema normativo, tem-se neste princípio uma espécie de “meta-
valor” a ser utilizado como solução de conflitos entre normas ou ainda
como fundamento de políticas públicas, representando neste último caso
uma determinação dirigida aos Poderes Públicos. (CAMARGO, 2007, p. 121)
Pelo primeiro prisma interpretativo, ao indicar a dignidade da
pessoa humana como fundamento da República, o constituinte determina
uma espécie de ascensão deste valor ante os demais. Não se interprete por
ascensão nenhum tipo de superioridade normativa, mas sim uma diretriz
hermenêutica a ser utilizada tanto na criação como na interpretação de todas
as demais normas do Ordenamento (constitucionais e infraconstitucionais).
Para alguns autores, a dignidade da pessoa humana, passa a ter
status de “cláusula pétrea implícita”, formando assim o núcleo axiológico
da Constituição convertendo-se assim uma dupla função, ora como
56 57
fundamento, ora como um fim.
Nesse sentido, pontua a doutrina:
A dignidade da pessoa humana figura como primeiro
fundamento de todo sistema constitucional posto
e o último arcabouço da guarida dos direitos
fundamentais, porquanto a busca pela realização de
uma vida digna direciona o intérprete do direito à
necessária concretização daqueles valores essenciais a
uma existência digna. (SOARES, 2010,p. 146)
A compreensão deste princípio em sua acepção hermenêutica por
fim, permite ainda o exercício da interpretação da norma em atenção aos
dois tipos de eficácia que o princípio pode apresentar (eficácia positiva ou
negativa).
Em postura interpretativa de exercício da eficácia negativa, a
dignidade da pessoa humana expressa um dever de respeito, ou seja,
impele a uma determinação de sentido e alcance das normas que regram
o Poder Público a uma acepção que significa abstenção de práticas que
impliquem – de qualquer forma – em violação aos valores de dignidade
(CAMARGO, 2007, p. 121).
A seu turno, o trabalho interpretativo fundado em exercício
da eficácia positiva deste princípio expressa um dever de proteção, ou
seja, impele a uma determinação de sentido e alcance das normas que
representem a proteção do indivíduo por meio da promoção de seus
direitos fundamentais.
4. PLANO AXIOLÓGICO
A compreensão da dignidade humana em um plano axiológico, a
identifica como um “valor autônomo”, dentro do sistema jurídico. Ou seja,
tal valor deixa de ter função meramente acessória dentro da percepção
jurídica (como feita no ideário positivista), passando agora a ter positivação
56 57
expressa e papel fundamental para o direito. (CAMARGO, 2007, p. 116)
Compreender a dignidade da pessoa humana enquanto valor
autônomo, significa que tal situação é uma prerrogativa de todo e qualquer
ser humano, que sempre será um fim em si mesmo. Tal condição, implica
reflexos sob o prisma hermenêutico, sendo um deles a constatação de que
o homem não pode ser concebido como instrumento ou objeto de nada.
Resultando assim desautorizada toda e qualquer interpretação normativa
que não atribua ao homem e sua dignidade tal condição axiológica.
A guisa de exemplo, pode-se imaginar a discussão acerca da
prestação de serviços de saúde suplementar (empresas que vendem
planos de saúde) e limitam sua atuação, com base em regras contratuais
que limitam a cobertura do atendimento. Em tais casos, prevalecerá a
dignidade enquanto valor autônomo, para que se dê sentido jurídico a esta
relação não tendo como base as disposições contratuais, mas sim a vida,
direito fundamental, (ou ameaça a este bem jurídico) que nada mais é do
que um valor conexo à ideia de dignidade da pessoa humana.
5. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SUA TITULARIDADE
Diante das duas possibilidades eficaciais expostas no item anterior,
desdobra-se ao intérprete duas realidades quanto aos integrantes da
relação hermenêutica desenvolvida. Sabe-se que, a noção de dignidade da
pessoa humana tem conteúdo abstrato (como natural das normas jurídicas
do tipo princípio), razão pelo qual mostra-se também difusa a titularidade
do direito à dignidade, sendo pois atributo de todo e qualquer ser humano.
Por tal motivo, a doutrina afasta desta titularidade apenas os órgãos
estatais, pessoas coletivas ou jurídicas pois não dotadas do atributo “ser
pessoa humana”. (CAMARGO, 2007, p. 126)
Em que pese tal incerteza em seu conteúdo, mostra-se possível
delimitar em parte esta ideia e sugerir ao menos uma noção de titularidade
e destinatários do desenvolvimento hermenêutico decorrente do exercício
58 59
da eficácia positiva ou negativa do princípio da dignidade da pessoa
humana.
Se quanto ao conteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana
afastam-se pessoas jurídicas e órgãos estatais, compreensão distinta
será quanto a possibilidade destes entes integrarem a chamada relação
hermenêutica, sendo portanto absolutamente lícita a extensão do
resultado interpretativo decorrente dos dois tipos de eficácia do princípio
da dignidade da pessoa humana a estes órgãos e pessoas jurídicas.
Nesse sentido, a guisa de exemplo, imagine-se o trabalho de
interpretação de uma norma jurídica que trata do funcionamento e
finalidade de um órgão público de fiscalização de vendedores ambulantes.
A interpretação feita pela autoridade administrativa acerca de sua atuação,
não poderá desconsiderar a eficácia negativa da ideia de dignidade da
pessoa humana que veda práticas que impliquem – de qualquer forma –
em violação aos valores de dignidade
Dessa forma, para o desenvolvimento hermenêutico decorrente
do exercício da eficácia negativa do princípio da dignidade da pessoa
humana (abstenção de práticas que impliquem – de qualquer forma – em
violação aos valores de dignidade), a determinação do sentido e alcance
desta norma pelo agente público não poderá jamais legitimar uma atuação
fiscalizatória – ainda que sob a alegação do interesse público – que implique
em violação da dignidade do indivíduo fiscalizado. Nesse sentido o dever
de respeito alcança não apenas pessoas físicas, mas também os órgãos
públicos, pessoas coletivas ou empresas.
De igual forma, será idônea aplicação análoga do desenvolvimento
hermenêutico decorrente do exercício da eficácia positiva do princípio da
dignidade da pessoa humana (dever de proteção do proteção do indivíduo
por meio da promoção de seus direitos fundamentais). A guisa de exemplo,
imagine-se aqui a publicação de edital cujo critério de concorrência
impliquem em exposição vexatória da imagem das empresas. Nesse caso, em
exercício interpretativo destes citados critérios contidos no edital, poderá
58 59
a empresa postular em juízo interpretação destas normas, reduzindo seu
sentido e alcance, de forma a proteger sua imagem.
6. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITOS FUNDAMENTAIS
Finalizando a abordagem acerca da aplicação hermenêutica do
princípio da dignidade da pessoa humana, destaca-se a relação entre
este princípios e os direitos fundamentais. Destaque-se nesse sentido que
dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais não são sinônimos,
sendo também errado considerar a dignidade da pessoa humana como tipo
de direito fundamental. Há entre estas duas ideias uma relação de “meio e
fim”, sendo os direitos fundamentais pressupostos à dignidade da pessoa
humana. (CAMARGO, 2007, p. 116).
Ao deparar-se com o paradigma pós-positivista, altera-se a
compreensão acerca dos princípios, que doravante passam a ter reconhecido
seu caráter normativo e sua eficácia positiva. Os direitos fundamentais
a seu turno, que normalmente são expressos sob forma de princípios
constitucionais, sofrem também reflexos diretos deste novo paradigma, na
medida em que passam a ter aplicação direta e imediata (art. 5, § 1, CFRB),
revisando assim a doutrina tradicional acerca da classificação das normas
constitucionais que concebe a existência de normas programáticas, cujo
teor restringe-se a apontar políticas públicas voltadas aos fins sociais do
Estado (SOARES, 2010,p.151)
Tal percepção voltada aos direitos fundamentais mostra-se
inaceitável, sendo alterada esta realidade com o comando constitucional de
aplicação direta e imediata destas normas, sendo inaceitável condicionar
sua eficácia à existência de normas infraconstitucionais.
Os reflexos hermenêuticos dessa nova percepção propiciam o
surgimento de uma hermenêutica criativa, concretizante e orientada aos
valores tutelados pela Constituição.
Por “hermenêutica criativa”, se quer aqui, fazer menção ao papel
60 61
do intérprete que exerce função ativa na construção do sentido do texto
normativo representativo de direito fundamental.
A respeito do caráter “concretizante” – também citado – se quer
expressar uma postura hermenêutica que busca a efetividade dos valores
constitucionais, ou seja, uma postura hermenêutica que busca determinar
como sentido o efeito concreto (efetivo) do direito fundamental envolvido.
Por fim acerca da percepção de uma hermenêutica orientada aos
valores tutelados pela Constituição, se quer aqui expressar a elaboração
de uma hermenêutica teleológica, cujo sentido e alcance será determinado
por este valores, dos quais os direitos fundamentais se inserem.
Em síntese, pode-se então concluir que a ideia da dignidade da
pessoa humana, da qual as normas que expressam direitos fundamentais
são pressupostos, permite uma reconstrução em sentido e aplicabilidade
destas normas, na medida em que propicia uma postura hermenêutica
diferenciada, de onde o resultado interpretativo irá buscar sempre a
efetividade dos valores constitucionais, dos quais os direitos fundamentais
se inserem.
7. CONCLUSÃO
Os princípios apresentam carga normativa e geram variados efeitos,
sendo possível falar-se então em normas dotadas de eficácia como qualquer
outra. Nesse sentido, fala-se em eficácia positiva e negativa, gerando efeitos
sobre o mundo jurídico, bem como sobre a realidade fática.
Em seu prisma de eficácia positiva, a dignidade da pessoa humana
serve de fundamento de um direito pleiteado. Nesse caso, a utilização do
princípio se aproximará da incidência normativa das regras, na medida em
que são observados os fatos em seu enquadramento na proposição jurídica
que se deseja.
Considerando a eficácia negativa do princípio da dignidade da
pessoa humana, compreende-se que o advento de uma norma jurídica
60 61
violadora de um princípio constitucional, pode resultar na declaração de
inconstitucionalidade desta norma
Citou-se ainda uma terceira modalidade de eficácia indicada do
princípio da dignidade da pessoa humana – a eficácia interpretativa –
que permite a percepção dos princípios também como instrumento de
interpretação. Nesse sentido, o considerar tal eficácia, compreende-se a
força normativa que os princípios exercem no sentido de dar harmonia e
unidade ao sistema jurídico, operando limites à determinação do alcance
e sentido das demais normas jurídicas infraconstitucionais, bem como
exercendo influência sobre as demais normas constitucionais a fim de que,
diante de múltiplas possibilidades interpretativas, o intérprete escolha
aquela que melhor satisfaz o conteúdo axiológico representativos dos
valores constitucionais.
O princípio da dignidade da pessoa humana pode ainda ser
compreendido – dentro deste verniz hermenêutico – a partir de um plano
sintático e axiológico. Acerca do primeiro deles, a considerar um plano
sintático da interpretação, deve-se destacar sobre a realidade de ser o objeto
da Hermenêutica textos jurídicos escritos. Dessa forma, a considerar o texto
normativo da dignidade da pessoa humana e sua previsão constitucional do
art. 1, III, CF, pode-se extrair considerações a partir das formas que, sob o
prisma hermenêutico, a dimensão da sintaxe apresenta-se: a interpretação
gramatical, lógica e sistemática.
A percepção hermenêutica do princípio da dignidade da pessoa
humana sob o viés da interpretação literal (aqui compreendida como
aquela em que se busca o sentido e alcance dos textos normativos a
partir de sua literalidade), mostra-se prejudicada face a própria natureza
polissêmica e o caráter abstrato comum às normas principiológicas. Por
tal razão, uma acepção literal do princípio da dignidade da pessoa humana
expressa apenas o início do processo interpretativo, sobretudo porque a
noção acerca da dignidade é um valor plural, variando a partir da época e
local onde se insere.
62 63
A seu turno, a percepção hermenêutica do princípio da dignidade
da pessoa humana sob o viés da interpretação lógica (aqui compreendida
pelo trabalho exegético que busca determinar a mens legislatoris do
texto) permite extrair as motivações do legislador para o qual a norma
foi criada.Nesse sentido costuma-se apontar a utilidade do manejo da
interpretação lógica para resolver contradições entre termos num mesmo
texto normativo, com vistas a se alcançar um significado coerente. Ao
se considerar por exemplo, a situação da polissemia retratada nos textos
jurídicos, poderia ser minimizada pelo advento da implementação da
interpretação lógica, endossando-se assim a insuficiência da interpretação
literal para se alcançar um resultado hermenêutico adequado do art. 1, III,
CF.
Por fim, a compreensão da dignidade da pessoa humana sob um viés
sistemático mostra-se como – dentro do plano sintático – a mais adequada
modalidade interpretativa em nível de plenitude e eficácia. Para tanto, o
fato de ter sido a dignidade da pessoa humana eleita pelo constituinte
como um fundamento da República, reforça esta conclusão.
Sob o plano axiológico, a compreensão da dignidade humana
é identificada como um “valor autônomo”, dentro do sistema jurídico,
deixando assim de ter função meramente acessória dentro da percepção
jurídica (como feita no ideário positivista), passando agora a ter positivação
expressa e papel fundamental para o direito. Nesse sentido, compreendeu-se
a dignidade da pessoa humana como uma prerrogativa de todo e qualquer
ser humano, o que sob o prisma hermenêutico significa que o homem não
pode ser concebido como instrumento ou objeto de nada, motivo pelo
qual resta desautorizada toda e qualquer interpretação normativa que não
atribua ao homem e sua dignidade tal condição.
NOTAS
[1] Advogado, Mestrando em Políticas sociais e Cidadania (UCSAL),
62 63
Especialista em Direito Público, Professor universitário (Direito Tributário
e Hermenêutica Jurídica [email protected]).
[2] Pós-doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Coimbra (UC–
Coimbra- PT), Doutora em Ciências Jurídicas – UFPB. Coordenadora do
Núcleo de pesquisa em Processos Constitucionais e Direitos Fundamentais-
UCSAL [email protected]
[3] Em verdade, desde a época do Renascimento, o homem já ocupava esse
status, consoante se pode corroborar todo a contribuição do pensamento de
filósofos como Francis Bacon, Descartes e, principalmente Kant (SOARES,
2010, p. 17)
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luis Roberto (org). A Reconstrução Democrática do Direito
Público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
______, Interpretação e Aplicação da Constituição. 7ª edição, São Paulo:
Saraiva, 2009.
BOBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone Editora, 2006.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra,
Almedina, 1993.
CAMARGO, Marcelo Novelino. O Conteúdo Jurídico da Dignidade da
Pessoa Humana. In: Leituras Complementares de Constitucional – direitos
fundamentais. Salvador, Jus Podivm, 2007.
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a interpretação/aplicação do
direito. 5ª edição, São Paulo: Malheiros, 2009.
SARLET, Ingo Wolfang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2001.
SANTOS, Carlos Maximiliano Pereira dos. Hermenêutica e Aplicação do
Direito. 20ª edição, São Paulo: Forense, 2011.
SOARES, Ricardo Maurício Freire, Hermenêutica e Interpretação Jurídica.
São Paulo: Saraiva, 2010.
64 65
______, O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, São
Paulo: Saraiva, 2010.
65
www.artigojuridico.com.br
64 65
MATAMOS ROBERT ALEXY COM A APLICAÇÃO DA TEORIA DA KATCHANGA?
Edenildo Souza Couto. - Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Pós-graduado em Direito Processual Civil pelo Juspodivm. Bacharel em Direito pela Faculdade de Tecnologia e Ciências. Laureado pela Instituição supracitada. Escritor de livros e de vários artigos publicados em revistas jurídicas. Professor de diversas disciplinas do Direito. Editor fundador da revista Artigo jurídico. Atualmente é Assessor de Juiz - Tribunal de Justiça do Estado da Bahia e Professor de diversas disciplinas do curso de Direito.
Analisaremos, neste texto, como uma brilhante ideia firmada por
Robert Alexy, muitas vezes, é utilizada no Brasil como fomentadora do
arbítrio em algumas decisões judiciais.
Inicialmente, mister se faz algumas ponderações, a fim de situar o
leitor sobre o fim do presente estudo.
O que é a katchanga[1]?
Pois bem.
Em uma de minhas aulas de Direito Constitucional, ouvi de um
brilhante aluno a seguinte estória:
Um senhor milionário, ao chegar em uma cidade do interior, buscou
uma casa de apostas. Sentou-se sozinho em uma das mesas. Pôs a beber. E
se chafurdou, por horas, sobre as bebidas mais fortes daquele recinto.
A solidão do milionário foi quebrada pelo próprio dono da Casa. É
que o jovem empreendedor, ao perceber que o seu cliente estava tomado
pelo álcool, resolveu oferecer-lhe serviços de apostas. Buscava, sem
qualquer piedade, obter lucros em detrimento do milionário.
E assim, iniciou o diálogo:
66 67
– Boa noite! Sou o dono desta Casa de apostas. Notei que o senhor
tem semblante de ótimo jogador. Um adversário sem igual para mim e para
esta Casa! Proponho-lhe que aceite uma de nossas modalidades de jogo:
roleta, tômbola, draw poker ou blackjack.
– Meu caro, respondeu o senhor milionário, eu só jogo a katchanga.
O jovem, aturdido, perguntou aos seus funcionários, os crupiês, se
aquele jogo era conhecido por algum deles. Ninguém, sequer, tinha ouvido
falar naquele tipo de aposta.
Mas o empreendedor não queria deixar de ter lucros desenfreados
sobre um senhor extremamente embriagado: aposta fácil, pensou, não se
perde!
Foi quando teve a astúcia de determinar que o seu melhor crupiê
jogasse, a fim de entender as regras do jogo.
E assim se sucedeu.
Na primeira partida, o cliente distribuiu as cartas. Do nada, bradou:
– Katchanga!
E em seguida, recolheu todo o dinheiro que estava na mesa.
Na segunda mão, idem:
– Katchanga!
E todo o dinheiro foi para o bolso do senhor milionário!
Outras partidas se sucederam, até que o crupiê, em reservado,
chamou o jovem e lhe disse:
– senhor, já entendi: basta gritar katchanga, antes dele. Muito fácil.
E como ele está bêbado, terei mais habilidade do que aquele senhor. Assim,
sugiro-lhe que aposte valor extremamente elevado.
Acolhendo a sugestão do seu funcionário, o empreendedor propôs
ao cliente que dobrassem o valor de toda a aposta já feita por eles até aquele
momento.
O senhor, com ar embriagado, aceitou sem titubear.
As cartas foram distribuídas; a mesa ficou abarrotada de dinheiro.
Ocorre que, na fração de segundo após o depósito da última carta na banca
66 67
do jogo, o crupiê, vitorioso, gritou:
– Katchanga!
Já estava recolhendo todo o montante acumulado, quando o senhor,
com toda segurança do mundo, tomou-lhe a quantia, ao reverberar:
-Katchanga real!
Eis a primeira premissa!
É de conhecimento geral que Robert Alexy formulou a “teoria dos
princípios”.
Por esta, o escritor, com a destreza que lhe é peculiar, propugna
que os direitos fundamentais possuem caráter de princípios e, nessa
condição, eles eventualmente colidem, sendo assim necessária uma solução
ponderada em favor de um deles[2].
Havendo colisão de princípios, o exegeta da norma deve
aplicar o sopesamento ou a ponderação, técnica que exige uma robusta
fundamentação, calcada em argumentos jurídicos firmes, objetivos e
racionais.
Posta está a segunda premissa.
Ocorre que a Katchanga pode ser utilizada para “destruir” a
ponderação[3]. E esta atecnia é utilizada, com frequência, pelos Tribunais
Pátrios.
Virgílio Afonso da Silva logrou descrever, com brilhantismo, este
fenômeno, no seu texto “O Proporcional e o Razoável”[4].
Ele abalizou vários casos em que o Supremo Tribunal Federal, ao
pálio de que os direitos fundamentais podem ser relativizados com base no
princípio da proporcionalidade, simplesmente invalidou o ato normativo
questionado, sem demonstrar dentro de um conteúdo objetivo, racional e
crítico, as razões que tornavam o ato desproporcional.
Matamos, com nossas katchangadas, Robert Alexy todos os dias!
A técnica do sopesamento, grande ferramenta à disposição da
efetividade dos direitos fundamentais, em diversos casos, vem sendo usada
de forma arbitrária por diversos magistrados do Brasil. Daí a criação, pela
68 69
doutrina, da expressão: “Alexy à brasileira”.[5]
Ocorre que a espécie é de fundamental importância. Trata-se de
uma saída de mestre, diante das inevitáveis e corriqueiras colisões de
normas princípiológicas dos direitos fundamentais.
Todavia, não se pode permitir que a mesma seja usada para
fomentar decisões discricionárias, aos moldes da “katchanga real”: sem
regras nítidas, objetivas e racionais.
O problema exposto no nosso trabalho, qual seja, evitar que matemos
Robert Alexy, de fato, é tarefa árdua. Talvez, impossível de ser obtida.
Todavia, algumas regras, se adotadas, combaterão o uso da katchanga.
Com efeito, com este objetivo, é de imperiosa importância fortalecer
o sistema de precedentes judiciais. Aliás, com o novo Código de Processo
Civil (Lei n. 13.105/2015), ao menos em tese, damos um grande passo neste
sentido.
Além do mais, mister se faz primar por decisões objetivas, lastreadas
em dados objetivos, raciocínio cognitivo coerente e análise empírica
escorreita.
É preciso, ainda, reforçar a necessidade de aplicar, com a devida
fiscalização, o princípio da imparcialidade do juiz. Isto porque, se o
magistrado – ainda que indiretamente, tiver interesse no resultado do
processo, naturalmente, ele tenderá a galgá-lo, mesmo que fazendo uso da
katchanga.
Precisamos, com afinco, fomentar a proteção aos direitos
fundamentais, notadamente, quando houver colisão entre eles, usando o
sopesamento, conforme defendido por Alexy. Contudo, não se pode permitir
o uso da katchanga, sob pena de se verter a ideia do mestre alemão em
argumentos para a discricionariedade.
REFERÊNCIA
ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de
68 69
Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001.
MARMELSTEIN, George. Alexy à Brasileira ou a Teoria da Katchanga.
Disponível em: < http://direitosfundamentais.net/2008/09/18/alexy-a-
brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga/> Acessado em: 07 de janeiro de 2016.
Streck Lenio, “A estória da ‘Katchanga Real’”, por Lenio Streck. Disponível
em: < http://professormedina.com/2012/02/28/a-estoria-da-katchanga-real-
por-lenio-streck/> . Acessado em: 07 de janeiro de 2016.
NOTAS
[1] Com base no texto de MARMELSTEIN, George. Alexy à Brasileira ou
a Teoria da Katchanga. Disponível em: < http://direitosfundamentais.
net/2008/09/18/alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga/> Acessado em:
07 de janeiro de 2016.
[2] ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de
Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001, p.112
[3] Neste sentido, Streck Lenio, “A estória da ‘Katchanga Real’”, por Lenio
Streck. Disponível em: < http://professormedina.com/2012/02/28/a-estoria-
da-katchanga-real-por-lenio-streck/> . Acessado em: 07 de janeiro de 2016.
[4] Citado por MARMELSTEIN, George. Alexy à Brasileira ou a Teoria da
Katchanga. Disponível em: < http://direitosfundamentais.net/2008/09/18/
alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga/> Acessado em: 07 de janeiro
de 2016.
[5] Ibidem.
70 7170
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O DESAFIO DA TÓPICA
Pedro Léo Alves Costa - Especialista em Direito Notarial e Registral pela Universidade Anhanguera Uniderp, Brasil(2014). Conselheiro Presidente do Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente da cidade de Ara , Brasil.
1. INTRODUÇÃO
Como parte do relatório final da disciplina de Direito Constitucional
do Mestrado Científico com perfil em Direito Constitucional da Universidade
de Lisboa, orientada pelo Professor Doutor Carlos Blanco de Morais, não
seria mais que oportuno poder aduzir um tema tão ínsito e inerente
à hermenêutica constitucional como o é a tópica. E não podendo ser
diferente, já induzindo a proposta ao tema O Desafio da Tópica, tal objeto
de estudo é deveras instigante e dicotômico. A tópica como parte da práxis
constitucional e da filosofia (não só a jurídica) é uma verdadeira faca de dois
gumes, pois sempre trouxe ao debate dos jusfilósofos e con stitucionalistas
mais questionamentos que conclusivas respostas que possam esgotar o
tema de alguma maneira.
Por agora, como forma de interação inicial com a matéria, sabe-
se que tal redação é muito utilizado na área médica que significa o uso
externo de determinado fármaco para tratar uma doença no seu próprio
local, ou seja, ataca o problema naquele ponto exato onde é aplicado. Me
utilizo desta comparação, visto que, sem grande rigor, a tópica possui no
direito a mesma conotação que nesta área da saúde, ou seja, tenta resolver o
problema individualizado, na idiossincrasia e vicissitude do caso concreto.
Desta forma, o vocábulo tem sua matriz do grego topos (singular)
70 71
ou topoi (plural), que corresponde a palavra latina locus pelo qual significa
lugar-comum e a partir dessa premissa glossológica do loci commune, o
presente trabalho foi subdivido, para melhor acondicionamento, em duas
partes: uma primeira no âmbito histórico-conceitual e uma segunda no
aspecto hermenêutico-constitucional.
A primeira parte, como já se pode perceber, resvala na conceituação
da temática, sua ambientação histórica e consequentemente a doutrina
fundamental que tratou de analisar o pensamento tópico-problemático.
Preliminarmente, será abordada a gênese histórica da tópica, passando a
investigar como a matéria se portou desde os campos remotos da filosofia,
no Direito Romano, Idade Medieval e Idade Moderna e averiguando seus
altos e baixos através do tempo (trazendo a baila os programas de algumas
escolas jurídicas que ratificaram o declínio da tópica, com a ascensão do
legalismo positivista tradicional, como a da Exegese na França, Pandectista
na Alemanha, Analítica na Inglaterra e a da Teoria Pura do Direito com
Hans Kelsen).
Ainda nessa parte prima será apreciada a obra dos grandes filósofos
e juristas que trouxeram a tópica em seu cânon, por ordem cronológica,
como o grego Aristóteles, o romano Cícero, Giambattista Vico na Itália e
o maior expoente da era moderna o alemão Theodor Viehweg. Sobre este
último, irão ser sintetizados os aspectos centrais da tópica jurídica em sua
obra Tópica e Jurisprudência, através das fontes originais pelo qual tomou
como paradigma (os autores anteriormente citados) e seu entendimento da
pertinência de aplicação na Jurisprudência (definido por ele como ciência
do Direito).
Decorrida essa seção propedêutica por excelência, a partir desse
subitem é que o tema proposto começa a tomar suas feições mais palpáveis,
e de certa maneira é onde também se iniciam os desafios nos quais constam
no tema. Preliminarmente, o primeiro desafio se transpõe em uma
tentativa subjetiva de conceituação mais concisa da tópica, sem obliterar
da dificuldade de tal atribuição, em virtude da matéria não possuir uma
72 73
definição engessada e com uma carga filosófica valorativa bastante aberta,
o que faz a mesma dispor de diferentes significados e sentidos, em diversas
áreas das ciências e das artes.
O que também será oportuno expor o questionamento que vez
ou outra entorna em caracterizar a tópica como método de interpretação
ou técnica de solução de problemas, apresentando, dessa maneira, o
entendimento comungado nesse estudo.
Já a segunda parte da exposição encontra-se mais relacionada
com a disciplina de Direito Constitucional: qual seja abordar a influição
da tópica na hermenêutica constitucional. Tal atuação será aduzida mais
precisamente na interpretação constitucional, já que o item se subdivide
em explorar a ideia de um sistema constitucional aberto (no qual é
totalmente amalgamada a essa forma de pensar), observando o panorama
da principais observações críticas que foram tecidas contra a tópica, mais
precipuamente objeções da obra de Viehweg, que no geral é feita sob uma
perspectiva sistemática, predominante na atual ciência do direito, em um
prisma formalista e lógico-dedutivo. Essa apreciação será analisada pelas
contidas nos trabalhos Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy,
Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito de
Claus-Wilhelm Canaris e As razões do Direito – Teoria da Argumentação
Jurídica do espanhol Manuel Atienza.
No subitem seguinte será feita uma desconstrução as críticas
proferidas, o que significa uma verdadeira superação dos desafios constantes
nos óbices dos discursos citados anteriormente, através de argumentos
pelos quais possam conter algum embasamento suficiente em tornar as
proposições expostas, em algo um pouco mais etéreo na ciência do Direito,
sem retirar, é claro, o significado e importância destes posicionamentos
para a construção da gnose jurídica tópica como um todo global, contida
em tais teses e suas síncrises.
Valorado ainda nessa segunda parte será a interligação da tópica
no conceito jurídico de equidade e como essa forma de pensar pode ser
72 73
importante para se constatar e colmatar as chamadas lacunas no direito.
De bom alvitre aludir nesse capítulo ainda o uso da tópica pela Justiça
Constitucional, seja de forma inconsciente ou consciente, colacionando
alguns precedentes judiciais da Suprema Corte Brasileira, onde o Pretório
se utilizou da tópica para decidir alguns leading cases, mais pontualmente
na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.289 e na Suspensão de Segurança
315, todos de relatoria do Ministro Gilmar Ferreira Mendes.
Por fim, insta salientar que o presente relatório foi subscrito em
português do Brasil, de acordo com a nova regra ortográfica da língua
portuguesa, se utilizando de pesquisa em doutrinas norte-americana,
inglesa, portuguesa, brasileira, belga, alemã, italiana, alemã e espanhola,
além de obras clássicas das Filosofias grega (principalmente da Escola
Aristotélica) e romana, da jurisprudência brasileira, bem como da legislação
alienígena a partir da observação do Direito Comparado.
I. PRIMEIRA PARTE: ASPECTO HISTÓRICO-CONCEITUAL
2. GÊNESE HISTÓRICA
A contextualização histórica da tópica é de salutar importância, pois
nos mostra como a matéria se portou através dos diversos pensamentos e
pensadores no decorrer do tempo, além de nos fazer compreender como
essa forma de pensar evoluiu até chegar a conceituação e os fundamentos
que nos é trazida hodiernamente. E como não poderia ser diferente, a tópica
teve diversos altos e baixos na sua evolução através das eras.
Ela já existia nos mais remotos campos da filosofia com o nome de
euresis, inventio, ars inveniendi ou algo semelhante [1]. Mas foi Aristóteles
que cunhou o termo tópica, no quinto livro dos seus seis, condensados
no tratado do Organon: a tópica nessa obra ocupa uma posição especial,
visto que supõe um regresso a um estágio anterior, pelo qual só depois se
sobrelevou a Ciência Lógica. [2]
74 75
Teve sua importância realçada no Direito Romano, através da obra
de Marco Aurélio Cícero, no ano de 44 a.C, um ano antes de seu assassinato
e cerca de três séculos depois da obra de Aristóteles [3]. A influência da
tópica pode ser facilmente vislumbrada nesta época, visto que, no direito
romano o espírito prático dos juristas romanos visualiza o papel do direito
como um elemento garantidor da harmonia social, assim as decisões jur&i
acute;dicas advinham da necessidade de oferecer a sociedade soluções
para os problemas e conflitos surgidos naquele meio. [4]
Vindo mais a frente, a tópica pode ser vista facilmente na Idade
Média, como a própria formação cultural desta época evidencia: aqui se
englobava o estudo das chamadas artes liberais (septem artes liberales),
que compreendiam, dentre outras, a gramatica, lógica (ou dialética) e
retórica, desta advindo (essas três disciplinas específicas eram comumente
alcunhadas de trivium). Interessante notar aqui a influência da Universidade
de Bolonha, a mais antiga universidade do mundo ocidental, onde os alunos
ali admitidos já eram graduados e possuíam conhecimentos nessas áreas.
A base de estudo dessa época foi exatamente a tópica de Cícero, a partir do
comentár io de Boécio, filosofo romano [5], porém a tópica Aristotélica foi
igualmente de suma importância no medievo, vindo a influenciar inclusive
Santo Tomás, nos seus comentários (espec. 1 Anal. 1a) de 1270 [6] .
Com o declínio da Idade Média e chegada da Idade Moderna, a
tendência era de negar as ideias cultivadas pela igreja e suas doutrina
teológicas, com a formulação de novos padrões culturais, centrados no
homem e na razão. Assim, o modo de pensar dos juristas medievais que tinha
como referência central a solução de problemas, deu lugar a um modelo
lógico-sistemático, de perfil linear, fundado na existência de sistemas
jurídicos de caráter dedutivo, inspirados pelo modelo da matemática,
que gravita em torno da autoridade do Estado e da preservação de suas
instituições. Inicia-se aí o primeiro decl&ia cute;nio do pensamento tópico,
mas por bem lembrar que essa queda se deu de forma paulatina, foi um
processo que não se cristalizou de um momento para outro, advindo
74 75
exatamente de mudanças políticas, econômicas e intelectuais no Ocidente
de forma geral. [7]
Com a Revolução Francesa, em 1789, houve uma incrível e sensível
mudança no pensamento jurídico, passando a prevalecer o império e a
codificação da lei, [8] que representou mais ainda a consagração dessa
proposta racionalizante, além da proeminência de uma estruturação
juscientífica, subordinação e sujeição desta ao pensamento sistemático [9],
o que cristalizou a ruptura ao pensamento aberto tópico.
De bom alvitre salientar o programa de algumas escolas que
ratificaram, por assim dizer, esse afastamento, em diversos sistemas desde
o romano-germânico até o anglo-saxão.
2.1 ESCOLA DA EXEGESE FRANCESA
A chamada escola da Exegese [10], é a corrente máxima que apôs
o positivismo jurídico na França; considerava o Código Civil Francês um
documento completo, com a capacidade de solucionar qualquer lide,
presentes ou futuras, por meios de preceitos normativos. Foi essa escola
que acabou por firmar o pensamento lógico-dedutivo no campo jurídico
Europeu [11].
Várias são as características que caracterizam a escola francesa,
como por exemplo, uma inversão da relação clássica existente entre o
direito positivo e natural, em que se deu destaque às normas positivadas
pelo Estado, que foram tidas como comandos dotados de racionalidade
intrínseca[12]. No mais, a interpretação dada aos artigos do Código de
Napoleão (ou Código Civil Francês), não vislumbrava a possibilida de em
solução de casos pelo juiz através de direito natural e sim apenas pelo
regramento normativo, sendo esta a fonte única dessas soluções ao caso
concreto.
Outro aspecto salutar da escola da Exegese trata de dotar um
concepção extrema estatal do direito, ou seja, era necessário interpretar
76 77
de forma mais fiel possível à vontade do legislador [13], dessa ideia surgiu
a concepção subjetiva da interpretação do direito, que tem como fonte
principal ao talante do legislador histórico [14]. Importante lembrar que a
escola preconizava ainda o culto excessivo ao texto da lei e o respeito pelo
principio da autoridade [15].
2.2 ESCOLA PANDECTISTA ALEMÃ
Na Alemanha a penetração do positivismo jurídico veio a se
curvar aos esquemas sistemáticos e formais de inspiração jusracionalista
e se deu com Bernhard Windscheid e uma pesquisa aos Pandectas
ou Digesto de Justiniano [16], formando a escola conhecida como
Pandectista (Pandektenwissenschaft) ou da Jurisprudência dos Conceitos
(Begriffsjurisprudenz).
Algumas características dessa escola foi a subsunção, onde tendia a
reduzir a atividade judicial a uma mera tarefa de aplicação dos princípios
jurídicos, além do chamado dogma da plenitude lógica do ordenamento
jurídico, ou seja, ao juiz era proibido, ante a existência de uma lacuna
da lei, a avaliação do caso a ser julgado segundo critérios autônomos de
valoração, devendo estender, por dedução e combinação conceitual, o
sistema normativo, de modo a cobrir o caso sub judice. Também insurgia
a ideia central de que o direito formava um sistema coerente de conceitos,
hauridos no material criado pelo legislador, sendo, pois, o seu sentido, da
do a referência ao sistemático [17].
Assim é fácil notar que a escola adotou a metodologia do direito
lógico-dedutivo despido de referenciais históricos e sociais e orientado pela
afirmação do poder do Estado. A lei, como na escola anterior, era levada
em consideração primeira, sendo o norte do juiz e do operador do direito
nos casos concretos.
76 77
2.3 ESCOLA ANALÍTICA INGLESA
Para ratificar tal influência sistemática até no sistema anglo-saxão é
possível vislumbrar quem se curvasse a tais ideias: semelhante a primeira
escola mencionada, na Inglaterra exsurgiu a conhecida Escola Analítica,
tendo como principal representante John Austin [18], com a obra única A
determinação do campo da jurisprudência: a filosofia do direito positivo.
Austin define o Direito Positivo como aquele emanado diretamente
dos soberanos, reforçando a ideia do poderio estatal que caracterizaram
todas essas escolas. [19] Tendo como característica semelhante a adoração
a codificação do direito [20], deslocando e retirando do meio jurídico as
ideias de abertura do pensamento tópico.
2.4 ESCOLA DA TEORIA PURA DO DIREITO DE HANS KELSEN
O extremo da sistematicidade lógico-formal e do formalismo
aplicada ao direito está presente na quarta escola aqui apresentada, a da
Teoria Pura do Direito do austríaco Hans Kelsen[21], para quem houve a
mais monumental tentativa de fundamentação da ciência Direito como
ciência [22].
Pretendeu o autor trazer de volta a tona o projeto do positivismo
jurídico do século XIX, que ficou aluído pelas críticas conduzidas por
pensamentos ligados as escolas sociológicas do direito ou do direito livre.
A linha condutora dessa da teoria de Kelsen tratava de uma purificação do
direito, onde os juristas deveriam trazer um discurso que se baseasse a si
próprio e que evitasse um contágio ao discurso jurídico com considerações
de ordem político-ideológica ou empírico-sociológica [23], ou seja, leva-se
em primazia apenas o Direito como ciência absoluta, sendo ela o obejto
único de seu estudo. [24]
Kelsen dá primazia a norma, para quem é uma entidade lógico-
hipotética, capaz de construir toda a experiência social, abrangendo o
78 79
ordenamento de forma ampla. O direito é visto como um todo coerente,
em um sistema escalonado e gradativo de normas, como uma escada, que
se apoiam umas nas outras recebendo imbricamente as suas vigências
de uma norma fundamental, suporte lógico da integralidade do sistema
[25], assim cada norma retiraria a sua validade daquela que lhe fosse
imediatamente superior, dando a partir dessa estrutura hierarquizada o
que se denomina de pirâmide normativa, pois a estrutura do ordenamento
partiria de conceitos genéricos inseridos na norma fundamental e deles
seriam retirados conceitos e normas, e conceitos de cunho mais específico [26].
Com isso, Kelsen foi capaz de retirar os valores dos debates
jurídicos, reacendendo uma visão rigorosamente estatalista do direito: as
normas eram válidas não por fazerem justiça, mas sim, por o Estado as
reconhecerem como tal. Para o austríaco, o direito deveria ser uma ciência
do dever-ser (sollen), regido pela imputação, não sendo das ciências do
ser (sein), conduzidas por ideais de causalidade [27], sendo assim, não
se devem ser aplicados a este dogmas das ciências naturais, mas sim, na
autoridade de quem cria as normas a sua base. A escola da Teoria Pura do
Direito criou uma concepção totalmente amoral da ciência do direito, cuja
vertente estava exatamente na proposta de desenvolvimento de uma teoria
do ordenamento jurídico dotada de extremo rigor científico. [28]
Já nos vindouros do século XIX, com a fomentação dada por ideais
de caráter dedutivos e o crescimento do positivismo contida nos ideais
das escolas mencionadas, é de se notar o quase que completo declínio da
tópica, com uma desvalorização em todas as suas formas, até o ponto de
se abandonar por completo as disciplinas que assim se interligavam a ela,
como, por exemplo, a história do direito, filosofia do direito, retórica, direito
natural, teologia do direito, sociologia e antropologia jurídicas. O século
da bomba atômica deixou-se valorizar pelo pensamento sistemático até o
ponto de criar uma espécie de redoma única ao seu redor, que fomentava
de politicamente incorreto tudo que não estivesse em seu enlace. [29]
Com o pós-guerra, uma nova mentalidade emerge: assinalada a um
78 79
certo neo-pluralismo jurídico, econômico, político, social e filosófico, e ao
modo de pensar erradamente batizado de débil, e que melhor seria por
ditar como elástico ou flexível, visto que o anterior tinha feições de rigidez
ao raciocínio geométrico e matemático.[30] Uma rejeição ao normativismo
jurídico puro e a reto mada de alguns parâmetros do direito da Antiguidade
foi facilmente notada. Aqui, vislumbrou-se que apenas o direito positivo e
o rigoroso cientificismo [31] não preenchia a plenitude que a ciência do
Direito realmente fazia jus e necessitava, recorrendo-se, assim, a recursos
técnicos mais abertos como a interpretação e integração normativa.
Dessa maneira, e vindo para se fixar foi Nicolai Hartmann o pensador
que no campo filosófico contrapôs modernamente duas modalidades
fundamentais de pensamento, o aporético (ou problemático) e sistemático,
na sua obra Disseitis von Idealismus und Realismus, abrindo caminho
de tal restauração da tópica agora como importante matéria do saber no
direito [32].
Essa retomada se deu em 1953 com Theodor Viehweg e a obra Tópica
e Jurisprudência. Com ele, o pensamento tópico retorna novamente aos
meios acadêmicos atuais, posicionando a tópica mais uma vez ao patamar
que merece, diante de toda a sua história, que influenciou (e influencia) de
forma incisiva o ordenamento jurídico como se tem hoje.
3. TÓPICA E SEUS GRANDES EXPOENTES
Passada a ambientação histórica da matéria, não mais importante,
é explanar sobre os maiores expoentes do pensamento tópico e como eles
trouxeram esse modo de pensar para a utilização no campo do direito e da
filosofia.
3.1. TÓPICA EM ARISTÓTELES
Os Tópicos de Aristóteles se encontram no Organon, ao lado dos
80 81
demais escritos normalmente conhecidos como Lógicos e mais precisamente
depois dos livros das Categorias, do De Interpretatione e dos Analíticos e
antes das Refutações Sofísticas. Na filosofia grega, o autor buscou retomar
o que já estava quase superado e que foi muitas vezes combatido por
pensadores como Platão e Sócrates: a antiga arte da disputa, domínio dos
sofistas e retóricos [33].
Tendo por base, pois, essas noções, Aristóteles divide em sua obra
quatro tipos de raciocínio [34]: a) o demonstrativo, apodítico ou apodexis:
quando resulta de proposições primordiais e verdadeiras ou de princípios
cognitivos derivados destes. A temática é estudada nos Analíticos Primeiros
e Segundos, explanando o autor o silogismo, a partir do qual de premissas
chega-se a uma conclusão; b) o dialético: aq uele que parte de opiniões
geralmente aceitas por todos ou pela maioria, também conhecidas como
endoxa; a base de estudo dos Tópicos c) o erístico, contencioso ou sofistico:
formado por opiniões tidas como geralmente aceitas, mas que efetivamente
não o são, ou pelas opiniões que e sabem não serem aceitas de forma
majoritária; d) e por fim, o paralogístico ou falacioso: os raciocínios que
não são nem primeiras, nem verdadeiras e muito menos aceitas, por
exemplo, na matemática, algum raciocínio que se baseia em uma descrição
não verdadeira dos semicírculos, este raciocínio é um paralogismo.
Dessa maneira, a tópica para o aluno de Platão estava fundada no
raciocínio dialético, e, consequentemente, na indução e no silogismo como
meios de sua fundamentação. Este raciocínio para ele é o primeiro degrau
da filosofia e para quem se figurava como uma arte da boa discussão,
oferecendo um catálogo de topoi estruturado e capaz de prestar bons e
exitosos serviços a práxis [35] . Essa colet& acirc;nea tem por finalidade o
adestramento na arte de argumentar intelectualmente, de forma casual,
porém sempre dentro da Filosofia, ou seja, no campo intelectivo, os tópicos
ajudaram na gênese de um plano de investigação, que ampara na aceitação
dos argumentos apresentados sobre determinado tema. Já no terreno da
casualidade, o projeto tópico permite que os próprios argumentos com
80 81
quem se esteja discutindo sejam contra ele utilizados e, por fim, no âmbito
filosófico, é possível aduzir problemas e dificuldades em diferentes planos
de um mesmo assunto.
Em realidade, a tópica, para o filosofo, lida com opiniões dominantes,
acreditáveis e verossímeis, que devem contar com aceitação (endoxa), nos
quais estabelecem soluções aos problemas que surgem e destas se cria um
catalogo de topoi (ou uma espécie de biblioteca), passando, assim, a prestar
de base para a solução desses mesmos problemas [36] que venham a surgir
no futuro.
Assim, dada as ideias gerais de sua tópica, Aristóteles nos conduziu
a uma cadeia de pensamentos um pouco difícil de compreender, com
concepções não muito bem ordenadas de ponderações sobre lógica,
psicologia e linguística [37], levando a refletir que a tópica e os topoi estão
ligados as ideias dialéticas e retóricas, dentro de um processo de raciocínio
totalmente indutivo, que partindo do particular para o global infiram
premissas aceitas, possibilitando um raciocínio filosófico adequado ao
problema, pelo qual podem nos levar a verdade (soluções destes problemas).
O pensamento tópico em Aristóteles serviu de base para o pensamento
jurídico medieval e para as vertentes tópicas posteriores no direito.
3.2. TÓPICA EM CÍCERO
A tópica de Cícero foi escrita em dois livros De inventione, dedicada
ao jurista C. Trebacio Testa, a qual teve uma influência histórica maior que
a de Aristóteles, porém de nível inferior que a deste. Aqui não se busca a
arte da disputa como fez o grego, mas um esforço de sistematizar a tópica
daquele, de forma que fosse produzida uma obra prática, compreensível,
como um receituário e não um tratado de filosofia [38].
Ainda que tendo por base a tópica Aristotélica, Cícero foi fiel a
praticidade dos romanos à sua época, buscando trazer o modelo aristotélico
em um catálogos de tópicos, tendo sido este o seu mérito: organizar o conjunto
82 83
das máximas surgidas com fundamento na resolução de problemas, ou
seja, na prática diária. [39]
Ele fixou a seguinte metodologia: topoi referentes ao todo e topoi só
a determinadas relações. No todo, se dá primazia as definições, partes deste
(divisão) e as suas designações (etimologia). Já em determinadas relações,
são estabelecidas conexões entre gênero, espécie, semelhança, diferença,
contraposição, circunstâncias concorrentes (prévias, subsequentes,
contraditórias), causa, efeito e comparação. Cícero queria alcançar todas
as espécies de problemas e a organização de um catálogo de topoi foi um
xeque-mate na busca de resultados, diferente de Aristó ;teles que
buscava essencialmente as causas. [40]
Interessante lembrar que os topoi na sua obra são feitos de forma
ilustrativa, sendo utilizadas exemplos de situações triviais do direito
romano, como casamento, herança, direito dos filhos e etc., o que trouxe
para esta cultura jurídica uma inegável importância, servindo seus estudos
de conexão entre o pensamento aristotélico e a jurisprudência romana. Tal
fato evidencia uma clara vinculação entre as estirpes do legado jurídico
Ocidental.
3.3. TÓPICA EM GIANBATTISTA VICO
Gianbattista Vico [41] escreveu sobre tópica na obra De Nostre
Temporis Studiorum Ratione de 1708. Sua obra é uma verdadeira
conciliação de estudos entre antigo e o moderno (de recentiori et antiqua
studiorum ratione conciliata). O autor se refere a métodos científicos, aos
quais ele subdivide em dois: o antigo como retórico (tópico), que advém da
Antiguidade, transmitido sobretudo por Cícero e o moderno, como o cr ítico
(cartesiano), o modo de pensar de René Descartes.[42]
Buscando estudar de forma comparativa a tópica e o cartesianismo,
dispõe que o método novo possui um ponto de partida o primum verum,
que não pode ser eliminado nem mesmo pela dúvida. Ou seja, podemos
82 83
retirar uma análise matemática, certa, que se dá a maneira da Geometria,
portanto, na medida do possível, através de longas cadeias dedutivas
(sorites). Em sentido contrário há a tópica, o método antigo, tendo como
ponto de partida o senso comum, que manipula o verossímil e trabalha
com uma rede de silogismos. [43]
O Napolitano observava vantagens e desvantagens em ambos
os métodos: o método cartesiano tem a vantagem da agudeza e precisão
(caso o primum verum seja mesmo verum). As desvantagens parecem
que se sobressaem nos estudos do autor, o que se pode perceber um
partidarismo da tópica e uma crítica mais saliente ao método cartesiano.
Elas consistem na transposição, o falecimento da fantasia e da memória,
carência de linguagem, falta de amadurecimento do juízo em uma palavra:
da depravação do humano.[44]
Tudo isso, porém, pode ser afastado pelo método antigo retórico,
e especialmente por sua peça chave a tópica retórica [45], para quem
traduz sapiência e ensina como considerar um estado de coisas de ângulos
diversos, isto é, como descobrir uma trama de pontos de vista. Vico apesar
da predileção veemente sobre a tópica, ressalta a importância da analise
de ambas, em conjunto, devendo-se intercala-los, pois este sem aquele, na
verdade, não se efetiva. [46]
Assim, o tratado tópico de Vico foi um estudo imbricado de
pensamentos, no qual o novo e o antigo se completam, tendo a importância
de unir ambos os pensamentos (sistemático moderno, cartesiano, com a
tópica, o pensamento antigo) de uma forma que os instrumentos pudessem
criar uma noção de conjunto e maior interação do caso a ser regulado.
3.4. TÓPICA EM THEODOR VIEHWEG
Theodor Viehweg, sem dúvidas, é um dos pensadores modernos
que mais trouxeram a tópica a tona para ser analisada na ciência do
direito. [47] Como mostrado, ele trouxe de volta ao ambiente acadêmico
no pós-guerra a análise da tópica através de sua alma mater Topik und
84 85
Jurisprudenz [48] de 1953, ao qual faz o autor um aparato histórico da
tópica, desde a clássica, como simples técnica de argumentação, mostrando
o entendimento de Vico, Cícero e Aristóteles, sua influência no ius civile,
mos italicus e ars combinatoria, até seu imbricamento com a axiomática e
civilística, expondo, desde já, o seu entender atual sobre a matéria.
A tópica para Viehweg pode ser resumida no enfoque em três
paradigmas: a) do ponto de vista de seu objeto: uma técnica do pensamento
problemático, b) do ponto de vista do instrumento com que opera: é a noção
de topois e c) do ponto de vista do tipo de atividade: a tópica é uma busca e
exame que recai em premissas e não em conclusões. [49]
Esmiuçando essas ideias gerais, quanto ao seu objeto, a tópica é
uma técnica do pensamento que se orienta para o problema (techne des
problemdenkens), para quem é todo questionamento que logo de vista
permite mais de uma solução e que necessita necessariamente de um
entendimento inicial, de acordo com o qual toma o aspecto que há que levar
a sério e segundo o qual há que se buscar uma resposta como solução. [50]
Dessa man eira, o raciocínio tópico se insere nas conjunturas de situações
para quem não existe uma solução inicialmente prevista, cabendo àquele
que vai resolver tal problema, oferecer alternativa possível, que possa
inclusive servir de base para a solução de outras situações logo depois. Essa
base será um acumulo de respostas, que acabam por formar um sistema.
O próprio Viehweg começa por investigar o tipo de enfoque
que será acentuado: o do sistema (como um conjunto de problemas) ou
do problema? [51] Se o enfoque for no sistema, os problemas passam a
ter sua importância analisada em razão de terem ou não referência no
catálogo de ilações que formam o mesmo. Assim, os problemas terão a
sua própria realidade determinadas por padrões sistêmicos, ou seja, só é
problema quando o sistema reconhece, em outras palavras, a ênfase no
sistema opera uma seleção de problemas. Em contrapartida, colocando-se
o acento no problema e se em um sistema não houver solução para aquele,
seria necessário buscar em outros sistemas (ou fora do sistema-mãe) essa
84 85
solução, assim, a ênfase no problema opera uma seleção de sistemas. [52]
Viehweg parte, pois, dessa segunda abordagem para explanar que
o problema procede de um nexo compreensivo já preexistente, ou seja, que
pode ser pensado através da tópica. E que a tópica está inserta em uma ordem
que esta sempre por ser determinada, que só pode contar com panoramas
fragmentários (abertos). Dessa ótica, o autor subdivide a tópica como de
primeiro grau, sendo aquela mais rasa, superficial, levada a solução de um
problema de um modo simples, tomando-se através de tentativas, pontos
de vistas mais ou menos casuais, escolhidos arbitrariamente.
O que nos leva ao instrumento com que opera: já se a insegurança
salta à vista e seja necessário se buscar um apoio em um repertório (catalogo
de topoi), a solução está baseada na tópica de segundo grau. [53] Para o
professor, esse catalogo de topoi é variado e não organizados por um nexo
dedutivo (e por isso fáceis de serem ampliados e completados), estando
presente nas mais diversas esferas do conhecimento, de forma gen érica
ou específica, mas apesar das diferenças, o pensar tópico é comum nessas
áreas, sendo exatamente o problema e a busca a uma solução adequada o
elemento unificador.
Quanto ao útimo elemento, que é seu tipo de atividade, a tópica de
Viehweg nos mostra como se acham e se examinam as premissas, e não as
conclusões. Assim a tópica e o seu conjunto de topois devem ser trabalhadas
em premissas compartilhadas que tem uma presunção jure et de jure ou
que, ao menos imponham a carga de argumentação a quem os questiona.
Essa busca de premissas, segundo o autor, prepara pontos de vistas gerais
e catálogos de pontos de vistas para as questões que se podem colocar, o
que se desenvolve em ulterior desenvolvimento do pensamento. Conforme
se pretendia um vínculo lógico, mas com serenidade, pois, a constante
vinculação ao problema s&oa cute; permite conjunto de deduções de curto
alcance. É preciso que se tenha a possibilidade de os romper a qualquer
momento à vista desse problema. O modo de pensar problematico é esquivo
às vinculações. [54]
86 87
De bom alvitre salientar, a importância que Viehweg transporta ao
consenso. Como explicado, a tópica atua no campo da dialética, não lidando
apenas com verdades, mas com opiniões majoritalmente aceitas, que
nascem de procedimentos argumentativos, disto, as mudanças no catálogo
consolidado de topois exsurge da contraposição de teses. O que nos leva a
pensar que os esquemas lógico-dedutivos são inadequados para lidar com
questões que se imiscuam em raciocínios dialéticos, uma vez que estes
estão solidificados ou pelo menos não se submetem aos extremos axiomas
das procuras que são feitas em busca da verdade. [55]
Viehweg nos faz refletir o quão o raciocínio tópico pode ser dificultoso
ao pensador moderno, condicionado que é aos pensamentos dedutivos, que
tem por nascituro os axiomas que não podem ser levados a contrariedade.
Pensar de uma forma problemática exige uma capacidade maior, pois
devemos nos desprender de temáticas sistêmicas e que não deixem de levar
em conta as peculiaridades do caso em estudo. Sem esse envolvimento
duplo podemos deixar a sapiência do problema de lado, tornando o mesmo
incoerente com outros anteriormente analisados por nós, ou por terceiros.
E Viehweg sem dúvidas ao aprofundar o pensamento de Nicolai Hartmann
(apóretico versus sistemático), causou frisson aos operadores do direito,
levando os mesmo a dialogarem de forma independente e não única aos
sistemas tradicionais do direito.
3.4.1. APLICAÇÃO DA TÓPICA NO DIREITO PARA VIEHWEG
A partir do debate anterior das principais características da tópica
em seu maior expoente moderno, não mais importante é trazer como
Viehweg leciona sobre a aplicação desta na Jurisprudência, aqui vista como
ciência do Direito. O autor faz uma abordagem da problemática através dos
institutos jurídicos, desde os romanos, até a doutrina civilística moderna.
Prima facie, para Viehweg os institutos no direito Romano foram
essencialmente tópicos, de caráter problemático. O espirito sistemático
86 87
nessa época, foi de uma desilusão bastante grande, neles raramente se
encontram um conjunto de deduções de longas abrangências: a busca
de uma solução adequada para os problemas, era mais importante que
a elaboração de um sistema conceitual [56]. Para sustentar sua fala, o
autor debate a ius civile, que tinha como características as coleções de
regras (tópicos) não organizados por um caráter dedutivo (por exemplo,
são topoi desse instituto romano: “sobre a impossibilidade de transmitir
mais direitos a outrem do que se tem – nemo plus iuris ad alium transfere
potest, quam ipse haberet”; ou “sobre as garantias reais e suas preferencias
– plus cautiois in re est, quam in persona”, dentre diversos outros) [57] e
que se legitimavam quando eram avalizados por homens de notório saber
jurídico. [58]
É mais que perceptível nesses catálogos a fuga das positivações
na medida do possível. Tudo isso pode ser vislumbrado, como nos mostra
Viehweg, no caso da usucapião no Digesto de Juliano, para quem há um
sentido não sistemático, senão puramente problemático. Nele se oferece
uma série de soluções para um contexto de problemas em relação aquele
tema, buscado em pontos de vistas aceitos (boa fé, interrupção), trazidos de
outra fontes. Desta maneira, o conceito da usucapio vai ser definida por um
encadeamento de convicções prévias, como posse, posse de boa-fé, justo
título para adquirir, etc. O mesmo se sucede com outros muito s textos de
jurisconsultos deste período, consoante os de Ulpiano ou Quintus Mucius e
Gaio. [59]
Em outro tanto, o autor traz a perspectiva da tópica também na
jurisprudência medieval, no que diz respeito aos pré-glosadores e glosadores,
acima de tudo aos comentaristas do mos italicus, todos familiarizados
com essa forma de pensar, conforme sua própria formação cultura já
evidenciava. Para o autor, o ensino na Idade Média se orientava para a
discussão de problemas, onde se aduziam argumentos a favor e contra a
suas possíveis soluções, a falta sistemática de procedimento também era
mais que evidente. Tome-se como exemplo, a glossa ordinária de Accursio
88 89
em Bartole de Sassoferrato, ou o caso prático da escolástica (método
eminentemente pedagó gico, com reflexões na buscas de premissas) na
forma clássica de São Tomas de Aquino e Bartolo num de seus esquemas,
respectivamente: utrum/quaerituran (fixação do problema) => videtur
quod/et videtur quod (pontos de vista próximos) => sed contra/in contrarium
facit (pontos de vistas contrários) => respondeo dicendum/ad solutionem
quaestionis (solução) [60], nota-se aqui, pois, um método tópico.
Dessa forma, nos leva a refletir que tanto o jurista romano quanto
o medieval, pelo ius civile e mos italicus respectivamente, na elucidação
de contendas e problemas, através de seus operadores, se valiam da tópica
como técnica adequada para esse intento. De forma assistemática, despidas
de cadeias dedutivas de pensamento e utilizando meios didáticos, buscando
diversos pontos de vistas e argumentos (o que nos remete ao pensamento
dialético), os operadores e seus institutos iam a procura de um catálogo de
soluções para a resolução desses conflitos.
A partir da época moderna (e anti-tópica), para Viehweg, a cultura
Europeia Ocidental, tinha o afã de conceber a jurisprudência como ciência,
dessa maneira propulsou a uma sistematização progressiva, implantada
através do método axiomático, que foi o oficial por um longo período por
razões de integridade e lógica e que para os seus idealizadores completaria
uma cadeia dedutiva na ciência e formalizaria a aplicação ideal das normas
jurídicas positivadas. Esse método consistia em ordenar, de acordo com
sua dependência lógica, de um lado os enunciados, de outro os conceitos
de uma área qualquer (não lógica). Ou seja, o método axio mático consiste
em criar uma coletânea completa de conceitos básicos e proposições de
onde advirão outros conceitos e outras proposições, simplesmente por
dedução, tal coleção é batizada de sistema de axiomas. Se esse sistema
de axiomas remontarem logicamente, forem compatíveis (sem se excluir
reciprocamente) e independentes dos que advieram anteriormente, haverá
uma completude de axiomas. [61]
Transportando essa lógica, que é quase puramente matemática,
88 89
ao direito, podemos vislumbrar conceitos jurídicos fundamentais como
os axiomas e que serviriam de fundamentação para toda a normatividade
inserida ao sistema. O método axiomático e seu projeto científico, no
entender de Viehweg, não chegou a ser incrementado, pois, muito pode se
questionar sobre o mesmo. O seu julgamento é singularmente idêntico ao de
García Enterría, para quem o direito como sistema, não é de forma alguma
um critério lógico ou axiomático, senão uma conexão entre problemas.
Assim, ainda que soluções de tais problemas tragam um certo conteúdo
de uniformid ade ao conjunto normativo, a aporia da justiça permanece
inabalada. [62]
Em se tratando de jurisprudência, como ciência do direito, não se
pode buscar proposições basilares baseadas em todas as deduções, como
se busca no método axiomático, de tal forma a matemática, que possui
resposta para todas as suas operações, exatamente porque a soluções de
casos particulares, cada qual com a suas nuances próprias, demanda o
inserimento de novos conteúdos normativos, muitas das vezes as quais
estão desembutidos de referenciais prévios. E parece que o referencial
mais justo, para Viehweg, são os catálogos de topoi que estão distantes
de trazer a baila o engessamento e a sistematicidade de uma estrutura
axiomática. Assim, os conc eitos e princípios jurídicos tem no problema a
sua concretização e o limite de seus conteúdos, estando bem longe do perfil
axiomático, que nos ensinou, o cartesianismo, por exemplo. [63]
Viehweg nos faz racionar que a tentativa de retirar a tópica do
ordenamento jurídico não obteve sucesso em sua completude, foi apenas
uma questão de aparência, pois os sistemas jurídicos estão e sempre
estiveram impregnados de valores relacionados com essa forma de pensar,
como inclusive no uso da linguagem natural, a interpretação do simples
estado de coisas e a integração normativa [64]. Ao retomar e resgatar o
pensamento tópico Viehweg n&a tilde;o quis substituir de forma alguma
o pensamento sistemático por este. Na realidade, o mesmo propõe uma
problematização do sistema jurídico [65] , para que a tópica demonstre a
90 91
necessidade da ciência do direito trazer de volta o pensamento problemático,
a romper com a pretensão conceitualista de montar um sistema fechado,
de caráter meramente dedutivo. [66]
4. CONCEITUANDO TÓPICA (E A DIFICULDADE SUBJACENTE A ESSE
INTENTO)
Vislumbradas as ideias principais dos maiores estudiosos da tópica,
seria importante condensar tais lições em algo mais conciso, para trazer
uma aclaramento maior de sua conceituação e já adianto não será uma
tarefa fácil, pois como nos lembra PUY a tópica é algo complexo, pois não é
ciência, senão filosofia. Não é teoria, senão retórica. Não é monólogo, senão
dialética. Não é esquema abstrato sobre o direito, senão direito bruto, real,
bravo. A ciência do direito ensina o direito como se ensina a conduzir uma
máquina, um carro, um barco, um avião. A tópica ensina o direito como s e
ensina a tourear: o touro há que querer, conhecer, esquivar e ser possível
mata-lo antes que mate ao toureiro. [67]
A tópica encontra-se apta a conter em si mesma variados significados
e sentidos, em diversas áreas das ciências e das artes [68]. Há quem entenda
ser um catálogo (rol de tópicos, repertório, acervo de dados jurídicos, que
podem ser de muitos e variados tipo e com diversas outras funções), uma
arte (argumentativa, com a finalidade de persuasão dos envolvidos), método
(interpretativo constitucional, por exemplo), t&eacu te;cnica (de solução de
problemas), doutrina (teorização e perspectiva de organização dos topoi
adquiridos na comunidade, especificamente na comunidade jurídica, ou
científico-congregacional do Direito). [69]
Mas foi no direito que conseguiu ser a mola propulsora de um ideário
mais propenso a comungar a resolução de litígios através dos problemas.
Problemas estes, que são o seu nascedouro, que sempre caminham, assim,
em sua direção.
Desta forma, levando a esse viés solucionador, a tópica pode ser
90 91
conceituada como sendo um meio apto a resolução de problemas práticos,
através de uma catálogo de topoi que são fórmulas, cambiáveis no tempo, no
espaço e nas circunstâncias, utilizadas em um determinado contexto, com
um determinado potencial de persuadir o interlocutor, com caráter plástico,
flexível (por exemplo: os adágios, conceitos, princípios, valores, standards,
critérios de justiça, brocardos jurídicos, recursos metodológicos, entre
tantos outros.). Esses catálogos, buscam trazer um melhor convencimento
de quem vai solucionar a questão , eis o motivo pelo qual os topoi muitas das
vezes podem ser de qualidade (provindo de um argumento ab auctoritatem),
quando avalizados pela doutrina, juristas insignes, jurisprudência pacífica,
ou seja, daqueles caracteres que sustentem a tese aventada. Ou ainda de
quantidade, quando a força do catálogo advém não só de seu renome, mas
também do seu consenso. [70]
Com isso pode-se notar que a tópica não possui uma definição
engessada. Ela traz uma forma de pensar filosófica, que deixa de lado
uma normatização rija do direito e transpõe para sua face mais dinâmica
e elástica, nos levando as ideias de um sistema mais aberto, que se
desenvolve com pontos da retórica/dialética e que se afasta de qualquer
tipo ou estrutura lógico-sistemática/dedutiva. Para melhor entendimento,
vejamos esta tabela [71][72]
– podem ser de qualidade, avalizados por importância ou quantidade,
por consenso.
– podem servir para colmatar lacunas no direito, através da
heterointegração.
à Quanto a solução “!”
– tem que buscar ideários de justiça e equanimidade;
– não pode ser contra legem, ou seja, há que ser norteada pelos
parâmetros legais e pela normatividade.
92 93
5. TÓPICA: MÉTODO DE INTERPRETAÇÃO OU TÉCNICA DE SOLUÇÃO
DE PROBLEMAS?
Ao se embrenhar nas doutrinas que trataram da temática, é possível
perceber uma certa flutuação de entendimentos em designar a tópica
como método de interpretação ou técnica de solução de problemas. Desta
forma, há quem ponha a tópica em um status de método de interpretação
como J. J. Canotilho [73] e Carlos Blanco de Morais [74], ou ainda método
da nova hermenêutica constitucional, como Paulo Bonavides [75] . Há
quem infira ser técnica de busca de premissas, como Robert Alexy [76],
técnica do pensamento, como Theodor Viehweg [77] e Jorge Miranda [78]
ou simplesmente técnica, como Maria Helena Diniz.[79] Já para Tercio
Sampaio Ferraz Jr. [80] é um estilo.
Método é todo conjunto sequencial de regras comuns a qualquer
investigação científica, que coloca a possibilidade da passagem da observação
de fatos à formulação de uma hipótese, que se sujeita à verificação
experimental e que pode tornar-se uma regra. Já técnica é uma habilidade
para usar processos e instrumentos com vista à obtenção de determinado
resultado [81]. É possível presumir que método é mais amplo que técnica,
aquele contém este. Desta maneira, comungo do entendimento que a tópica
esteja mais para técnica, assim como a ponderação, por exemplo, que
permite encontrar meios para resolver os problemas jurídicos, das lacunas
e das contradições das normas, através de um catalogo de topoi e de todos
os elementos anteriormente citados. Só se podendo chamar de método um
procedimento científico que implique critérios de comprovação, ou seja,
lógica e rigorosamente verificável que possa formar um nexo único de
fundamentos, ou seja, um sistema dedutivo, [82] o que desta forma não
poderia se encaixar a tópica por completo.
Mas importante frisar, que apesar dessa percepção, também
reconheço que a tópica, pode igualmente ser usada como paradigma para
o uso em diversos outros métodos da interpretação constitucional, através
92 93
do pensar problemático e o dogma do problema (e é só a observar sob
outro ângulo): este pode ser utilizado como parâmetro para o interprete
buscar aclarar seus anseios quanto a leitura e interpretação das normas
constitucionais, como foi utilizado inclusive por diversos doutrinadores,
conforme se verá no tópico seguinte. O que apenas ressalta o prisma
multiuso em que se traveste a tópica, como esfera filosófica-jurídica dos
constitucionalistas em uma rematerial izada disciplina constitucional.
II. SEGUNDA PARTE: ASPECTO HERMENÊUTICO-CONSTITUCIONAL
6. TÓPICA DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
A teoria tópica sempre encontrou no direito constitucional certas
reticências e dificuldades diante de alguns fatores doutrinários e de uma
certa relativização que foi sobreposto ao texto normativo constitucional.
Porém ela não deixou sobremaneira de ditar sua importância aos cânones
interpretativos a matéria, já que retomou essa modalidade de leitura
normativa constitucional sobre uma nova faceta, não mais apenas através
dos métodos clássicos, como foi, por exemplo, o sistemático, com seu ideário
que sustentava a compreensão racionalista do pensamento e que sem
dúvidas é de longe insuficiente para trazer respostas as complexas dúvidas
hermenêutic as que a atual teoria do direito, em especial a constitucional,
coloca a quem se vai interpretar.
Tanto é assim que se pode observar nos modernos instrumentos
interpretativos influência em suas metódicas do pensar conjuntamente
ao problema. Para corroborar esta fala, inclinaram-se para tópica juristas
da envergadura de Josef Esser, Franz Wieacker, Chaim Perelman, Martin
Kriele, Peter Häberle, Friedrich Muller, Konrad Hesse e Horst Hemke. [83]
Prima facie, foram, por exemplo o caso dos métodos concretizadores,
hermenêutico-concretizador de Konrad Hesse e jurídico-estruturante de
Friedrich Muller.
94 9594 95
Hesse nos faz inferir que a Constituição de uma sociedade não
possui um sistema findo e uniforme, lógico-axiomático ou com uma escala
de valores. Dessa maneira, a interpretação de suas normas não pode ser
equiparada a algo determinado, ela converte-se em problema quando uma
questão jurídico-constitucional deva ser respondida, tanto é assim que esse
exame necessita um procedimento de concretização que corresponda a este
modelo: tendo a norma como guia e limitadora, devem ser encontrados e
atestados ponto de vistas consensuais (topoi), com premissas apropriadas
que possibilitem deduções ou que no mínimo contribuam na busca de
soluções adequadas. Assim, o interprete deve se utilizar tais ponto de
vistas para a concretização [84] que estejam inteiramente interligados ao
problema. [85]
Nessa senda, Hesse [86] também integra a concepção de Friedrich
Muller acerca da norma constitucional enquanto programa normativo
e âmbito normativo. O autor de forma pariforme toma como parâmetro
a tópica para conceber suas ideias, com alguns ajustes até conceber aos
resultados da metodologia ao qual propõe. A primeira etapa da concretização
de Muller corresponde a busca de se interpretar o texto da norma em seu
sentido tradicional, que pode s er feito pelos métodos strictiore sensu,
como a interpretação gramatical, lógica, histórica, genética, sistemática e
teleológica, ou seja os métodos clássicos, bem como por princípios isolados
da interpretação da constituição, em uma formologia mais moderna,
tais como a proporcionalidade, concordância prática ou interpretação
conforme.
O resultado dessa primeira etapa ele aduz de programa da norma
(Normprogramm) e com ela elabora a parte primeira que se integra a norma
jurídica. [87] Já a segunda fase é o fator que fundamenta a normatividade
e de onde se retira o conteúdo fático da esfera regulativa da prescrição, ou
seja, abrange os passos da concretização por meio dos quais são usufruídos
os pontos de vista com teores materiais, que resultam da an&aa cute;lise
do âmbito da norma (Normbereich), área da norma e dos elementos do
94 9594 95
conjunto de fatos principais como os relevantes por via de detalhamentos
recíprocos. [88] Aqui é facilmente cognoscível a influência tópica, pois o
âmbito normativo, em seu sentido lato, é exatamente o problema a ser
resolvido, o consenso jurídico do operador sob a questão analisada que vão
ser trazidas para serem interpretadas sob o bojo constitucional.
Pode-se ver que com essa moderna dinâmica, a tópica assumiu
hoje grande importância para a interpretação jurídica, em especial
a constitucional e com ela métodos que ultrapassaram a fronteira do
positivismo mais cristalino. Não se trata de substituir o pensamento tópico-
problemático pelas abstrações idealizadas por outros meios operantes. Mas
apenas quando estas falharem ou não trazerem as respostas ideais ao qual
o interprete busca: se deve conciliar a tópica com os já existentes e integra-
la, em uma problematização do sistema jurídico, para que se rompa com a
pretensão conceitualista de montar um sistema fechado, de maneira a não
ficar apenas estacionado no dedutivismo lógico que os clássicos apresentam
[89] e nem tão só no isolamento do todo que pode levar a tópica concebida
de forma extrema.
Nessa atual teoria jurídica da interpretação, em dissemelhança com
a doutrina predominante do século passado, a flexibilidade interpretativa
das leis positivadas em oposição ao princípio da interpretação feita de forma
literal, pode ser visto, inclusive, como um topos da hermenêutica hodierna.
No caso do direito, o catalogo de topoi, exsurge, na própria lei, como por
exemplo no ordenamento jurídico brasileiro: o artigo quinto da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei 12.376/2010), a lei das leis,
ao aduzir que na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela
se dirige e às exigências do bem c omum. Tanto o que se pode caracterizar
como fins sociais ou bem comum são noções tópicas, que neste caso, devem
orientar o discurso de aplicação da própria norma, [90] o que só demonstra
a valia desse pensar problemático nessa renovada interpretação legal.
E como mola propulsora certeira nessa nova hermenêutica, foi
fácil notar, assim, que os métodos costumeiros, apesar de sua importância,
96 97
tiveram certa dificuldade em isoladamente acondicionar o que a
sistemática de valor das new Constitutions vieram a trazer pelas regras
interpretativas correspondentes a concepções mais dinâmicas do método
de averiguação dessa nova realidade constitucional [91], como por exemplo
uma nova interpretaç&atild e;o interligada a uma maximização de direitos
fundamentais, sob a égide da dignidade humana e bem estar social.
Talvez a importância da matéria aqui arguida esteja justamente
em encontrar o equilíbrio destas questões, pois estabelece, em caso de
necessidade, conexões por meio de compreensões que sejam aceitáveis e
adequadas, exigidas pelo que se chama estado efetivo de direito, já que o
pensamento interpretativo pode mover-se inserido no estilo tópico. O papel
da interpretação e, por isto, da tópica, torna-se ainda mais penetrante como
provocador da coincidentia oppositorum e harmonizador de diferentes
sistemas. [92]
6.1. TÓPICA DE IDEIA DE SISTEMA ABERTO
Partindo desse pressuposto, quando se fala em Constituição, tem-se
logo em mente que esta é um sistema aberto de regras e princípios, visto
que se traduz em um sistema dinâmico de normas e com uma estrutura
dialógica, ou seja, encontra-se apta através de sua normatividade em
captar as constantes mudanças da realidade, estando abertas às concepções
variáveis da justiça e verdade. [93] Esse entendimento nos faz refletir a
Constitu ição como uma incessante procura, pois o texto Constitucional
não esta nunca finalizado, de maneira que o trato normativo positivado e a
realidade devem perseguir uma completude de modo a que se assevere uma
supremacia e força do que a Carta Política emane. A tópica vem a participar
dessa abertura, como uma espécie de transmissora entre a prática, através
dos problemas, e a norma, de forma que se obtenha a resolução destes, não
apenas de uma lógica tradicional de sistema mas sim pelo trato entre esse
mesmo sistema e o case a ser regulado.
96 97
Desta forma, o pensamento problemático tem como seu caractere
fundamental um posto que reclama sempre an eternal dialectical research
an open system, em um papel precípuo de ampliar o acervo conceitual do
sistema jurídico em uma constante reformulação de conteúdos normativos
deste, que tem no lidar dos problemas um importante fator que acresce a
sua normatividade. A tópica não vai ser entendida se não por em voga a
clara ideia de inclusão em uma ordem que está sempre por ser determinada,
dai se segue que este modo de pensar só vem a contar com panoramas
fragmentários, [94] onde se pode confiar a ela um patamar de importância
louvável na ordem constitucional, exatamente quando essas mesmas
normas que a compõe são de conteúdo aberto e com um leque grande de
interpretações.
É fácil notar que o pensar tópico vem a fagocitar uma concepção de
sistema jurídico que seja imutável, já que pressupõe uma concepção mais
ágil do direito, doravante um sistema elástico que possa oferecer soluções
satisfatórias que se adaptem a sistemática jurídica, tornando-o maleável
e adaptável as vicissitudes da vida. A tópica transforma o pensamento
jurídico, necessariamente aberto, impossível de inserir em uma axiomática
reclusa, revertendo este em um pensamento altamente inventivo. [95]
Além de dar a interpretação constitucional um azo democrático,
pois passa a se cercar de diversos operadores o processo hermenêutico,
em seu sentido lato, como um processo aberto e público como realidade
constituída e altamente publicitada, não sendo possível estabelecer-se
um elemento fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição,
no sentido concretista de interpretação da Constituição aberta de Peter
Häberle, método inclusive que mais foi influenciado pela tópica nos dias
atuais. [96]
Sem obliterar, ainda, que com esta consideração, possa-se
erroneamente pensar que se vai desconsiderar o teor normativo do texto.
A norma, no entendimento ao qual comungamos nesse estudo, na verdade,
é o limite e vetor da tópica, como prelecionado por Hesse. A tópica atua em
98 99
função e em respeito a ela, mas não por subalternidade, caminham lado a
lado de mãos dadas.
Assim, o sistema aberto e a Constituição são campos ideais de
intervenção e aplicação dessa forma de pensar que podem inclusive virem
a ser preenchidos por esta em uma compatibilidade normalizadora, de
modo a possibilitar que seja extraído desta conjugação uma nova teoria
hermenêutica, dinâmica e totalmente pluralista, possível de ser utilizada
pelos mais diversos operadores do direito. Raramente uma Constituição
preenche aquela mera função de ordem e unidade, que faz permissível o
sistema se revelar compossível com o dedutivismo metodológico: sendo a
Constituição aberta, a interpretação também o é. [97]
6.2. ALGUMAS CRÍTICAS AO PENSAMENTO TÓPICO
Mas não se pode aqui expor e mostrar apenas o lado funcional e
ululante da tópica na doutrina esposada. Também não se pode negar que
a quem entenda que esta contém o risco de conduzir a uma pluralidade de
sentidos ou uma casuística pouco fecunda,[98] pois a interpretação pode ser
uma atividade normativamente vinculada que se constitui a constitutivo
scripta um limite ineliminável onde não se aceita o sacrifício em se colo car
primeiro a norma ao invés do problema. [99]
Ou quem vislumbre algum risco do uso da tópica e de outros métodos
em demasia a escolha do interprete, (porém mais por quem o usa, do que
precisamente pela técnica em si mesma), pois os defensores desta forma
de pensar a vista da abertura da normatividade Constitucional, podem
se fazer de uma interpretação particular e diferente da lei, focados em
uma pluralidade fora do sistema de metódicas alternativas postas à essa
faculdade; o que traz uma possibilidade de dissolução da normatividade
tão fundamental ao qual é inerente a Constituição, conduzindo a um
verdadeiro panorama desolador, dissolução que aliás muitas das vezes
nutrem. [100]
98 99
E ainda mais furtivamente, alguns autores, além de ressalvas como
as agora mencionadas, dedicaram em suas obras críticas mais incisivas à
tópica.
6.2.1. OBJEÇÃO EM ROBERT ALEXY
Foi o caso de Robert Alexy, que em sua obra Teoria da Argumentação
Jurídica cita a tópica como uma técnica que busca premissas, onde advoga
a consideração do consenso dos pontos de vista possíveis no qual se
relacionem com a questão em pauta. Sempre que uma argumentação se
originar de algum topoi como ponto de partida, as proposições passam a
ser plausíveis, razoáveis e consensuais. Porém tais proposições, para ele,
são generalizadas demais e não estão a vistas de verdade completa, visto
que não diferencia suficientemente entre as varias premissas necessárias
para o processo de justificação jurídica da s decisões.
Desse ponto de partida, segundo o autor, a tópica é incapaz de
fazer justiça ao caráter autoritário da argumentação jurídica no contexto
da dogmática jurídica institucionalmente perseguida e no contexto de
precedentes, com um núcleo problemático fundamental de ter uma
orientação exclusiva de considerar a estrutura superficial de argumentos
padronizados. [101]
Alexy considera que a teoria tópica no uso das premissas na
justificação de decisões individuais também é adversa, pois exige dela se
considerar todos os aspectos possíveis, mas sem trazer sobre a questão qual
aspecto é o mais decisivo ou fundamental, nem mesmo infere o que se deve
contar como um ponto de vista em primeiro lugar. Conclui assim, que a
tópica subestima a importância da lei, da dogmática e dos precedentes, da
análise insuficiente da estrutura profunda dos argumentos e num conceito
pouco preciso da discussão.[102]
De se notar, pois, que o autor tenta buscar da tópica fundamentos
que a dispam de qualquer ajuda a sua teoria da argumentação jurídica, que
100 101
nada mais é que uma série de regramentos que definem o procedimento
que uma argumentação deve se guiar para ser considerada racional. Tal
fato se descamba diante de uma possível imprecisão, superficialidade e
falta de sistematicidade do pensamento tópico-problemático per si.
6.2.2. OBJEÇÃO EM CLAUS-WILHELM CANARIS
Já Claus-Wilhelm Canaris urdiu sua crítica na doutrina Pensamento
Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito e como dispõe o
próprio nome da obra, esta vem para se opor claramente ao pensamento
tópico.
O autor afirma que sistema jurídico e tópica não são harmonizáveis,
premissa fundamental da sua obra, já que esta não poderia sequer aspirar
à natureza científica, pois é um processo que apenas envolve indícios,
evita compromissos e se apoia na legitimação de suas premissas apenas na
aceitação do interlocutor. [103]
Sistema, para o doutrinador, deve-se desenvolver a partir da função
do todo sistemático, com características fulcrais de ordem e unidade,
onde encontram sua correspondência jurídica nas ideias de adequação
valorativa e unidade interior do Direito. Dessa maneira, é absolutamente
contraditório existir um sistema tópico, pois o antagonismo persiste na não
possibilidade de formação de um processo voltado apenas ao exame do
problema singular, e por isso, todos os conceitos de sistema que não sejam
capazes de exprimir a dicotomia da adequação valorativa e a unidade
interior da ordem jurídica são inutilizáveis, ou pelo menos, de utilização
limitada. < span style=”vertical-align: super;”> [104]
Esse mesmo sistema jurídico é aberto, ou seja, advém da
incompletude do conhecimento científico, da mutabilidade dos valores
jurídicos fundamentais, sendo da essência do Direito ser um fenômeno
situado no processo da história e, por isso, mutável. Desta senda, tal
abertura não pressupõe o raciocínio tópico e este pensamento não traz
100 101
qualquer inovação quando vincula conceitos e proposições jurídicas a
problemas, já que a analise teleológica dos conceitos e proposições jurídicas
não representam uma atividade intelectiva específica da tópica, mas sim
do pensamento sistemático. [105]
Canaris parte de uma crítica que o pensar tópico, naquilo que esta
umbilicalmente ligado a retórica, consequentemente advém da dialética,
e todas estão distantes da verdade, pois ambas seriam uma espécie de
manipulação de linguagem, voltadas apenas para a consecução de certos
fins.
A utilidade da tópica estaria avalizada apenas ao legislador e a
ciência política do que aos operadores do direito, tal ideia baseia-se no fato
que os exemplos constantes no Tópicos de Aristóteles são em boa parte
ética e miram apenas no campo político. Os consensos, campo fundamental
do pensar problemático, se formam socialmente e assim base da criação de
tópicos no ato legislativo (concepção democrática da arte de fazer leis), arte
esta que não faz parte da ciência do direito, o que apenas corroboraria a
tese Canariana que a tópica não é aplicável ao campo jurídico. [106]
O papel da tópica no Direito seria apenas aos casos em que a
norma positiva mostra-se absolutamente insuficiente para a resolução de
determinados problemas: sempre que faltem valorações jurídico-positivas
suficientes concretizadoras, demandando uma necessária concretização
normativa pelo juiz, com base nos valores e instituições jurídicas, culturais
e sociais dominantes, ou seja, em casos de lacunas de leis e das cláusulas
gerais, que originalmente pedem uma complementação valorativa que
demandam uma determinação do aplicador ao caso concreto. Assim,
diante do pensamento sistemático, relega a tópica uma atuação meramente
complementadora, residu al e subsidiária a cumprir. [107]
6.2.3. OBJEÇÃO EM MANUEL ATIENZA
Manuel Atienza Rodriguez, professor catedrático da Universidade
102 103
de Alicante, em sua doutrina As razões do Direito – Teoria da Argumentação
Jurídica, faz uma compilação das teorias da argumentação jurídica no direito
e as vertentes que a influenciaram, como a tópica de Viehweg, nova retórica
de Perelman, teoria da argumentação de Toulmin, teoria integradora da
argumentação de Neil MacCormick e a argumentação jurídica de Robert
Alexy.
Para o autor, incorporando muitas vezes também o professor
Garcia Amado, a tópica na obra de Viehweg foi proposta em termos não
muito claros, equívocos e ingênuos, em virtude do seu caráter esquemático
e impreciso. A noção de problema seria excessivamente vaga, assim como
as de lógica ou sistema, pois Viehweg exageraria na contraposição entre
pensamento tópico e sistemático (ou lógico-dedutivo). A noção de sistema
axiomático ou de dedução seria menos eloquente que as utilizadas pelos
lógicos e estes não parecem ter maior inconveniente em reconhecer a
importância da tópica no raciocínio.
O conceito de topos, segundo o autor, foi historicamente equívoca
inclusive os que englobam nos escritos de filósofos clássicos como
Aristóteles e Cícero, sem terem um sentido certo ou profundo, o que requer
aos topoi várias interpretações ou significados, na qual a tópica não da um
real contributo que faça a jurisprudência (ciência do direito) avançar, a
tornando trivial e muitas vezes irracional. [108]
Atienza, assim como Alexy, afirma que a tópica não permite ver o
papel importante que a lei, a dogmática e o precedente desempenham no
raciocínio jurídico. Ela fica na estrutura superficial dos argumentos padrões
e não analisa sua estrutura profunda, permanecendo num nível grande de
generalidade que esta distante do nível de aplicação como tal no direito.
E termina inferindo que a tópica se limita a sugerir um inventário
de tópicos ou de premissas utilizáveis na argumentação, mas não fornece
critério para estabelecer uma hierarquia entre eles, no qual definitivamente
não proporciona uma resposta, nem sequer o começo de uma, para a questão
central da metodologia jurídica, que não é outra senão a da racionalidade
102 103
da decisão jurídica. [109]
6.3. DESCONSTRUÍNDO CRÍTICAS (SUPERANDO DESAFIOS)
É de se notar que os pensadores que fizeram tais objeções à matéria,
as fizeram em um contexto jurídico envolto num pensamento mais
sistemático e cerrado, afeitos a fórmulas, que mais parecem pender para
a matemática do que para o direito, o que contraria o pensamento tópico.
Parto inicialmente trazendo a desconstrução no que tange à
argumentação e discussão jurídicas. Alexy por exemplo, crítica o uso de
precedentes pela tópica, mas na sua teoria também se utiliza delas para a
busca de uma ideal argumentação, sem lembrar que a tópica possui como
delimitação a lei, e que os argumentos utilizados são postos por quem os
utiliza, diante de um catálogo, se este argumento foi superficial ou fraco,
não foi a tópica que assim o escolheu, mas quem se utilizou dele.
Além do mais, conforme Ferraz Jr., é alva a influição dos topoi, que
são formulas de procura, na orientação da própria argumentação. Esses
catálogos não são dados ou fenômenos, mas sim, construções ou operações
estruturantes, perceptíveis de forma bastante clara no decurso da discussão,
pois possui uma função estimativa em termos da relação de convergência
de comportamentos sintomáticos, marcadamente dubitativa, de onde o
caráter de dubium da questão trata daquelas tomadas a sério, responsáveis,
de maneira pela qual sua alta reflexividade pode nos levar sempre a aporias.
A presen&cce dil;a do topoi, no discurso, dá à estrutura uma flexibilidade
e abertura característica, pois sua função é antes de ajudar a construir
um quadro problemático, mais do que resolver problema. Os topoi na
argumentação jurídica podem ser exprimidos como a imparcialidade
judicial, a noção do interesse, boa-fé, presunção de inocência, etc. [110]
E ainda sem esquecer que a teoria tópica de Viehweg, na década de
50, juntamente com Chain Perelman e a nova retórica e a lógica informal
de Toulmin, foram os percussores da teoria da argumentação jurídica,
104 105
que tem em comum a rejeição da lógica formal dedutiva como suporte e
que serve de base para esta teoria [111], a quem Alexy dedicou uma obra,
porém este nem sequer chega a reconhecer esse fato.
Já Canaris por muitas vezes se limita excessivamente ao método
sistemático, o que torna a premissa de sua obra em geral discutível sob o
enfoque de um paradigma tópico-problemática (e pelo qual é o fundamento
teórico deste trabalho). Não é possível ter apoio que existe apenas um modelo
único de sistematicidade, pois os sistemas são muitos: lineares/circulares,
materiais/formais, estáticos/dinâmicos, etc. Dessa maneira, antes de inferir
que a tópica não se adequa a um pensar sistemático seria importante
delimitar em qual sistema está se harmonizando: se for ao aberto (ao qual
possui espaços de elasticidade das normas, que serão concretizados pelo
inter prete e operador), é de se concluir que este seria um campo residual
claramente do pensar tópico, como se viu anteriormente, o que já contradiz
sua ideia de exclusividade.
Consequentemente, o que se retira da leitura de Canaris é a falta de
um referencial histórico sobre o direito ocidental, já que o sistema jurídico
exposto de forma equidistante de seu historicismo leva a teratológica
conclusão que a tópica não se harmoniza com o ideário de sistema, pois
antes de se englobarem de forma sistemática, esses mesmos institutos
surgiram para oferecer resoluções a problemas (como no direito romano,
por exemplo) objetivo primordial da tópica.
E não é só isso, relativizar essa questão com a fala de que a tópica
não possui os caracteres de unidade e ordem interior, pode de certa maneira
omitir a questão do sistema da common law. Seria aferível afirmar que não
existe um sistema (ordem e unidade) no direito americano ou inglês, por
ser sua normatividade exposta através apenas da solução de litígios? É fácil
perceber que não. [112]
Apesar de Canaris estruturar todo seu magistério com base na
impossibilidade de construção de um sistema tópico no direito, ele mesmo
reconhece a importância dos problemas para o âmbito jurídico. Na realidade
104 105
a crítica Canariana se funda basicamente em uma interpretação do direto
conduzida por parâmetros apenas da tópica, pelo qual seria a exclusiva
forma de manifestação da forma de pensar problemática no direito. [113]
E ssa visão pode nos conduzir a uma limitação clara de ideias, que deixa de
levar, mais uma vez, em conta as motivações históricas para o nascimento
de uma sistematicidade sobre o direito e também sobre das suas origens. O
enfoque problemático de Canaris se volta exclusivamente em incumbência
ao sistema, de forma acessória, como se as próprias leis e normatividade
positivadas não fossem uma evolução social e cultural das instituições.
[114]
Já Chaim Perelman em sua obra já rebate aquele velho argumento
que a retórica, está apenas ligada a dialética e que ambas são uma espécie
de manipulação da linguagem, voltados ao alcance apenas de alguns fins. A
retórica é o estudo de técnicas discursivas que visa a provocar ou ampliar
a adesão das mentes às teses apresentadas a seu assentimento. A nova
retórica, proposta por ele, é muita mais que uma forma de influenciar a
determinado auditório, englobara mais, todo o campo da argumentação,
complementar da demonstração, da prova pela inferência estudada pela
lógica formal, que constitui um valioso instrumento para a formaçã
;o de consensos sociais acerca de causas postas em jogo. [115] O direito
não opera com verdades absolutas, o tempo altera a concepção social e o
entendimento de questionamentos, é o que acontece, por exemplo, com a
evolução jurisprudencial. Desta maneira, inferir que a tópica age ao lado
apenas de ideias filosóficas que falseiam a verdade, é negar esta como parte
do direito e ciência jurídica como mutável.
Quando Canaris afirma que as premissas são determinadas para os
juristas através do direito objetivo, em especial através da lei e que não é
susceptível de uma legitimação via do parceiro da conversa, [116] vemos
uma visão reducionista das coisas e põe o direito como produto feito saído
de uma esteira de produção maquinizada, onde se ignoram os consensos
sociais que agem em determinadas questões e o papel de complement ação
106 107
normativa que os Tribunais exercem através de seus precedentes. Aqui é
fácil perceber uma certa influencia de Kelsen em Canaris, pois restringe
o direito apenas a lei positiva, fazendo uma certa outorga aos valores e
fundamentos históricos, por meio de uma ideia de abertura. [117]
A proposta tópica jamais tende a negar que exista um pensamento
sistemático de direito positivo, mas pretende reformular esse paradigma de
uma ciência do direito, tão interessante e dinâmica, que o tenha como única
referência, pois o próprio Viehweg parece deixar de modo implícito que
a tópica não exclui a sistematização, mas sim que há uma compatilização
entre ambos.
No que toca a restrição de Canaris do uso da tópica apenas ao
legislador e criação de atos normativos com base no pensamento ético
Aristotélico, demonstra apenas uma visão parcial da influencia tópica no
pensamento jurídico: e o influxo no campo prático de Cícero? Onde fica a
proposta comparativa entre a tópica e o pensamento racionalista de Descartes
em Vico? Mais uma em vez é possível notar o ignorar do percurso histórico
que tomou a tópica e sua influência no pensamento de outros autores em
variadas épocas da evolução jurídica. Quando escreve que o direito é uma
ciência hermenêutica e não de ação, com base na compreensão exata dos
símbolos e não em uma atuação correta [118], Canaris põe o juiz em um
papel de mero complementador, ou seja, sua importância se reduz apenas
quando este for necessário ou quando a lei assim tiver falhas ou lacunas.
Falar nesses pontos integrativos como questões meramente formais, nega
que estes derivam da necessidade de transportar ao direito objetivo um
significado idiossincrático, à medida proporcional de cada situação e não
uma mera atuação de encaixar.
Se formos pensar de forma abrangente, os outros métodos, técnicas
ou pensamentos de interpretação, também nos conduzem a falhas, algumas
incertezas, problemáticas e embates, mas todos eles, o que se inclui aqui o
pensamento tópico, possuem sua importância para o operador do direito
ao se utilizarem destes na interpretação das normas constitucionais. A
106 107
tópica é um verdadeiro tronco de árvore que cresce e põe frutos em
diversas direções. Superou um dos seus desafios frente a comunidade
jurídica: quando conseguiu unir, mediante um pensamento filosófico
dialético mais pontual, o direito posto pelo legislador com a realidade da
sociedade, criando pelas estradas ret&oacut e;ricas, argumentativas e cheia
de consensos, guiados pela lei, uma concepção de direito menos fechada,
mais próxima a tentar solucionar problemas, a partir de um catálogo, do
que as direções antecedentes do sociologismo jurídico clássico. [119]
Ela trouxe novamente para o baluarte dos valores sociais o direito e
a realidade, através da resolução de problemas nos casos concretos ou ainda
quando as vias normais de interpretação não satisfazerem por completo
a solução de determinados problemas. Ressurgindo num momento em
que o positivismo já se mostrava incompleto para solucionar de maneira
equânime as lides e as iniquidades tão óbvias. Percebemos claramente uma
atualização de um pré-filosófico estilo de pensar problemático, para que a
prática jurídica, até então excessivamente voltada a lei, pudesse responder
melhor aos anseios de justiça.
A tópica produz uma reorientação básica da doutrina [120] e
ocasiona mais benefícios ao ordenamento jurídico que danos que não
possam ser sanados. Posso afirmar, que o pensamento tópico seduz a quem
se propõe o pesquisar; e ainda mais que grandes nomes do direito, não
estavam errados ao utilizar a tópic a ou apenas suas ideias como forma
de interpretar as normas constitucionais. A tópica é totalmente usual as
realidades sociais e ao direito constitucional, mesmo que muitas vezes com
ressalvas.
Como bem aduz Atienza, apesar das críticas, a obra tópica contém
algo importante, que é a necessidade de se pensar também onde não se
cabem fundamentações conclusivas e estanques. Essa dimensão adquiriu,
nestes últimos anos, grande importância prática, em virtude das modernas
investigações sobre sistemas jurídicos hábeis, ou seja, em face da criação de
programas que reproduzem as maneiras características de raciocinar um
108 109
profissional do Direito. Um sistema jurídico hábil, possui precipuamente
uma base de dados e um motor de inferência, e ambos esses elementos
devem ser dotados de características para que se acomodem num correto
funcioname nto do raciocínio jurídico e comum, que em um aspecto amplo
poderiam serem qualificadas de tópicas. A base de dados, efetivamente,
deve ser flexível, isto é, o sistema hábil deve possuir a capacidade de
modificar sua base de conhecimento, não só com regras de inferência que
são de conhecimento público, quer dizer, aquelas meramente codificadas
textualmente, mas também com regras de experiência que constituem
a alcunhada heurística jurídica, o que apenas denota mais uma vez a
importância da flexibilidade tópica. Essa forma de pensar o problema pode
conter sugestões e estímulos de inegável valor para quem deseja começa a
estudar e a praticar o raciocínio jurídico. [121]
O que só traz a importância ainda de lembrar o importante papel
do interprete em todo este contexto, superando mais um desafio da tópica
em particular. O agente não deve fazer uma má utilização desta, não se
deve deixar cair em certas armadilhas, como o casuísmo e a dissolução da
normatividade. Este há de ser sábio: sabendo conciliar a tópica a outros
métodos ou técnicas e utilizar esta com parcimônia e sapiência, não
transformando essa interessante técnica em uma ferramenta sem limites
e de aplicação a seu bel prazer, construindo e definindo a tópica baseada
na prática jurídica, a partir de suas realidades e possibilidades, sempre
priorizando a fundamentalidade e hierarquia do primado da norma
Constitucional.
7. TÓPICA E EQUIDADE
A equidade sempre foi valorada no direito como um arquétipo de
justeza. Semelhante a tópica, ela esta imanentemente ligada a concepções
jurídico-filosóficas, ou seja, não possui uma definição unívoca, imbricando-
se a diversos paradigmas, muita das vezes relacionados a quem se propôs
108 109
dar a ela uma concepção, e sendo assim, a influiu com teorias filosóficas
pelo qual tal convicção teórica de cada pensador fez parte. Mas essa não é
a primeira similitude, elas são várias.
Para os romanos, a equidade se coadunava ao direito natural e
correspondia a ideia de justiça, de forma que o suprimento desta, contida
na lei, era feito pela equidade.[122] Na Grécia, Aristóteles , falava em
equidade como uma disposição de caráter do homem equitativo, uma
espécie de justiça e não uma diferente disposição desse mesmo caráter: o
que é equitativo é justo, superior mesmo em regra ao justo, não ao justo em
si, mas aquele, em razão da generalidade, que comporta o erro. A equidade
consiste em corrigir a lei, na medida em que ela se mostra insuficiente.
[123] São Tomas de Aquino, une a equidade a razão de justiça e à utilidade
comum, estabelecendo uma ponte entre a razão e as necessidades da vida
social. Era é a norma suprema do direito canônico. [124]
Na Idade Média, pelos idos do século XIV, no sistema da common
law, mais precisamente na Inglaterra, havia um sistema paralelo, ainda que
subsidiário ao principal, chamado de Equity, pelo qual o Lord Chancellor
concederia, ad misericordiam, equitable remedies não assimiláveis à ratio
decidendi dos precedentes judiciais. [125] No sistema jurídico brasileiro,
o uso da equidade só é possível quando autorizado por l ei [126], podendo
este ser visto também na Lei de Arbitragem. [127] De forma semelhante é
no sistema português.[128]
As funções que se ligam a equidade são várias. Perpassando desde
a influência na elaboração legislativa até na interpretação das normas,
podendo neste âmbito, significar o predomínio da finalidade legal sobre
sua letra, aplicada na senda de ajudar a inteligência do texto normativo, em
conformidade com os dados fáticos-sociais que envolveram e o escopo que
tiver; ou ainda, a preferência, entre variadas interpretações possíveis de uma
norma, pela mais digna e humana. Nessa função interpretativa a equidade
aparece no processo histórico-evolutivo, que preconiza a adequação legal
as novas circunstâncias sociais, e do teleológico, que reque r a valoração da
110 111
lei, a fim de que o órgão judicial possa seguir as idiossincrasias da realidade
em cada caso concreto. O sujeito cognoscente (magistrado) aqui, terá que
analisar a aplicação da norma, que, aparentemente, de guarida a esse caso
e que produzirá resultados justos, pelo qual se inspirou sua finalidade. O
emprego da equidade não pode ser resolvido por procedimentos de lógica-
dedutiva, pois não se trata de retirar aferições de normas jurídicas postas.
Pela equidade leva-se em conta os resultados práticos que a aplicação da
lei produziria em certos cases. Se tal resultado concorda com as valorações
inspiradoras da norma em que se baliza, tal preceito deverá ser aplicado;
agora, se ao contrário, esta norma vier a contradizer o que demanda as
valorações, pelo qual se molda a ordem jurídica, cons equentemente essa
norma não pode ser aplicada ao caso concreto. [129]
Desta forma, o que se pode perceber, é que a equidade possui
ideias de natureza ética-social, com a finalidade de propalar equanimente
um padrão da justiça do caso concreto. Essa determinação do justo, tem
se assemelhado ao que se cunhou de aporia fundamental do direito [130],
ou seja, um raciocínio equilibrado da busca de justiça; e a tópica vem
exatamente poder participar na solução desta busca.
Prima facie, porque como se sabe, a consecução primordial da tópica
é a solução do problema. E esta solução há de se pautar impreterivelmente
em um ideário de justiça e equanimidade, dessa maneira, ao utilizar a
técnica da busca pelo problema, passando desde o catálogo de topoi até a
resposta da contenda, o operador deve permitir uma aproximação entre
cada caso que vai ser resolvido e tal aporia do direito, a busca da justiça: a
solução do problema pela tópica há de ser minimamente justa. Remetendo
desde sempre aquela ideia de flexibilidade, tal qual é o trabalho do operador
que usa a equidade como parâmetro, em ajustar a l ei ao caso na busca de
uma resposta mais estável, o agente tópico não deve se redundar em um
atividade cerrada, buscando aquela versatilidade a que ambos os meios
possuem.
A finalidade precípua do direito é a harmonia social procurando
110 111
achar o modo mais profícuo para a solução de conflitos e reestabelecer
tal paz no seio da societas, devendo esse objetivo ser cumprido em
obediência a critérios de justiça, trabalhando o meio jurídico com ideias de
coerência, segurança, especialidade e etc. Por isso, se não fosse exatamente
o empunhamento da balança (e seu equilíbrio), em casos concretos, a
ciência do direito não teria sua necessidade, pois tal harmonia poderia ser
alcançada apenas pela manifestação da autoridade.[131]
Dai a tópica rememora, mais uma vez, que apenas o apego a
sistematicidade do direito (igualmente como citado outrora, em que o uso
da equidade não pode ser solucionado apenas por procedimentos de lógica-
dedutiva), como unidade única, se faz colocar em segundo plano a própria
causa do sistema jurídico, que é exatamente a realização da justiça.
Desta maneira, o pensamento problemático, empreende um contato
de primeiro grau entre os conceitos jurídicos e os seus fundamentos
históricos e valorativos, em busca de uma solução mais justa e equânime
ao problema. Por exemplo, conceitos muito utilizados no direito com
ululantes conteúdos axiológicos, como declaração de vontade, posse justa e
etc., significam uma valoração de fenômenos sociais, que à luz da definição
de justiça, fazem parte integrante do sistema, ou seja, aquilo que a ciência
do direito tratava como mero instrumental de técnica jurídica, se transpõe
exatamente com a busca da equidade, ou a aporia fundamental, a qual é
revelada n o momento da solução de casos concretos. [132]
Segundo, porque com a orientação desses casos concretos, a tópica
vem se ordenar na equidade, ou seja, na tendência da justiça. Ela se transpõe
no processo mais adequado para um problema singular, construído o
mais estritamente possível ou uma argumentação de equidade, pelo qual,
nenhum ponto de vista discutível, ou que seja pelo menos aceitável, se pode
excluir perfunctoriamente como inadmissível, apoiado em uma tendência
um pouco mais generalizadora da justiça. [133]
Essa ligação entre tópica e equidade é de monta salutar, ainda para
mostrar que a tentativa do positivismo clássico em minimizar a importância
112 113
da equidade, no qual a letra fria da lei teria um papel de garantir a
abrangência de todos os fatos que fossem operados por aquela norma,
não deu certo. A lei pura ainda se mostra num mecanismo não tão sempre
completo no que concerne as lacunas da lei, vindo a equidade ser fulcral
nesse papel como elemento de integração, seja quando o legislador deixa
propositadamente omisso (as lacunas voluntárias) ou quando escapam à
previsão do elaborador da norma. A equidade é o recurso intuitivo das
exigências da justiça, em caso de uma omiss&at ilde;o da lei, buscando
efeitos presumíveis das soluções encontradas para aquela lide de interesses
não normado. [134]
Nesse aspecto, por fim, conclui-se, que o papel da equidade,
certas vezes, pode remontar igualitariamente exatamente ao da tópica,
justificando esse raciocínio problemático, ambos ajustando a solução pro
caso, na factualidade do caso concreto.
8. TÓPICA E LACUANS NO DIREITO
A lei, como se pode perceber, apesar de tudo, é importante por
regular as situações da vida social, ainda mais por ter um papel precípuo de
pacificação através do Direito. Porém, haverá sempre nela alguma omissão
ou impotência em regular novas hipóteses que surjam, no qual ainda não
foram abarcadas por atos normativos, em virtude das constantes mutações
sociais que possam ocorrer em uma sociedade e que nem sempre permitem
ao operador da norma se antecipar a estas novíssimas situações a emergir.
Dessa incompletude insatisfatória no seio de um todo, e aplicado
ao Direito, precisamente no seio jurídico, pode-se afirmar que surge uma
lacuna, [135] ou seja, numa situação pela qual a lei ou o sistema regramental
jurídico não contempla determinada situação jurídica concreta, de forma
que seja necessário integrar tal falha por algum meio existente. Uma vez
admitida a existência da lacunas no direito, dois passos sucessivos são
importantes após essa primeira percepção: a sua identificação (constatação)
112 113
e depois o seu preenchimento, praticamente um exercício idêntico ao de
interpretar e integrar, ou seja, de aplicação do direito. [136]
Interessante observar que uma simples falta de norma, não é o
que vai determinar de forma absoluta a existência de uma lacuna, mas
apenas aquela que interesse ao plano do Direito. Para fazer essa análise,
a doutrina coloca essa problemática dentro da atividade interpretativa: a
constatação de uma lacuna resulta de um juízo apreciativo; mas o ponto
de torque desse conjunto não é a subjetividade de analise que o sujeito
cognoscente tem da norma de direito, mas sim pelo processo metodológico
por ele empregado. [137] Assim, o interprete tem que descobrir, mediante
sua apreciação valorativa, se tal conduta que não foi contemplada pelo
ordenamento, realmente, é de alcance do Direito, e assim avaliza, se há
necessidade do segundo passo, o da integração.
Depois dessa detecção, o agente deve colmatar ou preencher as
lacunas, através de diversos meios operantes. Essa fase de preenchimento
assume agora um aspecto pragmático, visto que a questão é de legitimidade,
determinação e natureza metodológica do emprego dos instrumentos
integradores pelo órgão judicante. [138] Sabendo, pois, da necessidade
desse preenchimento das lacunas, por tais meios integrativos, o próprio
legislador prevê na Lei meios que podem fazer esse papel, cito por exemplo
o caso da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, [139] ou dos
Códigos Civis de Portugal, [140] Argentina, [141] Itália, [142] Venezuela,
[143] dentre diversos outros.
Dessa maneira, a grande maioria das legislações identificam
expressamente a existência das lacunas e autoriza o magistrado a preenche-
las, dando os devidos instrumentos e limitando sua atividade integradora.
Nesse ponto, é que no nosso ordenamento, dois são os mecanismos por meio
dos quais se completam, dinamicamente, uma lacuna, pela auto-integração,
o agora exposto, onde se recorre a fonte dominante no direito, que é a lei, e
os meios típicos dessa são a analogia e os princípios gerais do direito; e pela
heterointegração, pelo qual se lança mão de fontes diversas dos preceitos
114 115
legais, cito por exemplo o costume ou equidade, citada anteriormente. [144]
A tópica exsurge nas lacunas do direito, exatamente nas duas etapas:
a da constatação e como forma de integração, sendo basicamente também
uma técnica de preenchimento de heterointegração. Explico.
Primeiro, porque a tópica é uma ars inveniendi, ou seja, é uma arte
de descobrir premissas, os ponto de vistas consensuais ou topoi, que vão
lidar com a solução dos problemas da vida. Assim, quando não for possível
encontrar uma solução para resolver dada questão, como no caso das
lacunas, o magistrado pode se utilizar das topoi, consensos que são não
tão gerais, que no decorrer das eras foram reconhecidos. De maneira que a
constatação dessa lacuna, num processo anterior, representa um processo
inventivo, atuando como um padrão permissivo; assim, todos os momentos
que se deparar com um caso de lacuna o sujeito cognoscente terá que
avaliar o sentido d o direito posto para se chegar a uma solução justa. [145]
Depois de constatada uma lacuna, por meio do processo inventivo, o
juiz poderá ainda preencher a lacuna com as topoi. O que nos faz relembrar
a tópica de primeiro e segundo grau de Viehweg, pois o órgão judicante,
ao resolver qualquer questão que tenha sido posta a este, utiliza-se desses
graus, buscando todos os argumentos possíveis, escolhendo o que mais
parece ser adequado, convincente e de maior credibilidade (primeiro grau),
reforçando depois o seu convencimento na totalidade (segundo grau), para
preencher tal vazio jurídico.
Assim, o conceito de apurar uma lacuna e depois preenche-la, sob
o paradigma do pensamento problemático, se transmute em um recurso
hermenêutico cujo exercício seria permitir um procedimento totalmente
eloquente, que tem como objetivo alcançar uma decisão possível, favorável
e ao mínimo justa sob a ótica de quem está decidindo.
A importância da tópica nessa tarefa das lacunas se assinala quando
se buscam as premissas para atingir uma possível solução para uma questão
em que a norma não alcançou por algum motivo, e depois preenche-las com
os catálogos de topoi, provando, dessa forma, o caráter dinâmico e aberto do
114 115
sistema jurídico, pois se fosse meramente dispensável o raciocínio tópico,
várias soluções sem o emprego de apótemas dos argumentos, ad simili, a
fortiori e a contrario em caso de lacuna, não seriam possíveis. [146]
9. TÓPICA NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: O USO CONSCIENTE E
INCONSCIENTE
Trazendo agora a perspectiva tópica para o uso prático, é inerente
e um campo bastante elucidativo a utilização desta no Judiciário, por
vários motivos. Tanto como pelos recursos argumentativos manuseados
pelos membros das Cortes, visto que a formação colegiada dos tribunais
favorece o desenvolvimento de procedimentos argumentativos a partir da
contraposição de teses entre os seus membros.
Ou então, no que toca a fundamentação das decisões jurisprudenciais,
que representa uma importante fonte para uma análise do pensamento
tópico ao Direito: pois da análise de tais embasamentos de uma sentença
ou acordão, é fácil perceber quais recursos argumentativos escolheu
o julgador, no momento em que tenta realocar uma determinada lei do
sentido concreto a noção de justiça. [147]
Ainda ao relacionar conceitos aos fatos, a partir das provas
produzidas nos autos, em que o julgador contribui para uma certeira
determinação do conteúdo dos próprios conceitos e, indubitavelmente,
para a formação de um significado institucionalmente aceito para a norma
positivada: é a criação de precedentes jurisprudenciais, pelos quais passam
a servir de referencia para o julgamento de casos similares futuramente,
caminhando pela regra da justiça de que estes devem ser julgados
igualmente. [148] Os precedentes são características dos raciocínios
indutivos (e tópicos) e é um poderoso mecanismo de criação das instituições
do sistema jurídico hodierno, como é o caso das súmulas vinculativas no
Brasil, pois estas cortes não possuem competência constitucional para criar
o direito de forma codificada, mas são responsáveis em alicerçar conteúdo
116 117
de conceitos jurídicos contidos nas leis que vigoram no ordenamento, por
meio de precedentes decisórios. [149]
Ou ainda quando o Pretório articula a matéria de fato e a de direito,
por meio de recursos retóricos, em que se torna possível, também, mensurar
a extensão ou restrição do sentido literal da lei, quando necessário, a
aplicação analógica do direito e a busca de sua finalidade social.
E por fim, em qualquer decisão, ainda é possível enxergar a utilização
de conceitos indeterminados, princípios, valores, doutrina, opiniões
externas, standards jurídicos, adágios, ou seja, fórmulas, utilizadas em
um determinado contexto de julgamento e moldável aquele caso concreto,
com um determinado potencial persuasivo, a qual nos remete ao conceito
anteriormente exposto de topois.
Dessa forma, todos esses recursos citados acima e utilizados pelos
tribunais são tópico-problemáticos ou advém da dogmática deste. Sendo
fácil perceber que a utilização desses meios, são muitas vezes empregados
de forma não intencional (imbricados a tópica especificamente) ou mesmo
de forma involuntária, ao qual chamei de uso inconsciente da tópica.
Já o uso consciente da tópica, é quando o próprio julgador sabe que
utiliza desta técnica, afirma que a utiliza e expõe as ideias da tópica em
seu julgado de forma totalmente explicita. No Supremo Tribunal Federal,
apenas o Ministro Gilmar Mendes, salvo melhor juízo, assim o fez, e nas
minhas pesquisas encontrei dois acórdãos, em que o uso informado da
tópica foi feito de forma consciente, são eles:
9.1. ADI 3289
A Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.289, relatada pelo Ministro
Gilmar Ferreira Mendes, em resumo, trata de ação contra a Medida
Provisória 207, de 13 de agosto de 2004, que alterou disposições das Leis nº
10.683/03 e Lei nº 9.650/98, para equiparar o cargo de natureza especial de
Presidente do Banco Central ao cargo de Ministro de Estado. Não pretendo
esmiuçar o acórdão indigitado em sua completude, mas apenas no ponto em
116 117
que a tópica foi utiliza como embasamento do decisum de alguma maneira.
Ao analisar um dos pontos da questão, em forma de preliminar,
de que tal medida provisória não teria seguido o requisito constitucional
da urgência e relevância, constante a dicção do artigo 62 da Constituição
Federal [150], o Ministro, afirma veementemente não haver nenhum
casuísmo na edição de tal medida feita pelo Presidente da Republica àquela
época, rejeita o argumento aduzido, e compartilha o pensamento de G
arcia Amado na sua obra Teorias de La Topica Juridica, para embasar o
parecer, no sentido de que a atividade jurídica, enquanto realização do
Direito histórico, remete-se claramente ao pensamento tópico, e não ao
pensamento sistemático.
Isto porque a produção do Poder Legislativo, não está comprometida
com uma perspectiva essencialista do Direito, ou seja, não se parte de
uma pauta prévia de soluções jurídicas para os problemas do mundo.
Ao contrário, o direito, produto histórico que é, traduz-se mais como um
conjunto de respostas contingentes as questões que se colocam para a
sociedade em cada momento. [151] Registrando ainda após tal citaç&at
ilde;o o reconhecimento na doutrina clássica de Viehweg a natureza tópica
da lei.
Assim, utilizando a ideia tópica, e ratificando todo o pensamento
problemático enquanto realização de um Direito eminentemente histórico,
no julgamento daquele caso concreto, afasta o pensamento sistemático
puro e entende que o requisito da relevância e urgência estavam presentes
na Medida Provisória adotada pelo Chefe do Executivo naquele momento.
Não aceita as teses no sentido contrário e também afasta as eventuais
alegações pelos polos ativos da Ação, de que o ato impugnado seria fruto de
um mero casuísmo. E julga ao final improcedente tal Ação Declaratória de
Inconstitucionalidade, onde a maioria dos Ministros, seguiu o relator.
118 119
9.2. SS 3154
O segundo caso encontrado, trata de Suspensão de Segurança 3.154,
relatado também pelo Ministro Gilmar Mendes, enquanto vice-presidente
daquela Corte, requerida pelo Estado do Rio Grande do Sul em liminar de
Mandado de Segurança deferida pelo Presidente do Tribunal de Justiça
daquele Estado, em que se garantia aos Associados da Brigada Militar, o
pagamento total de remuneração naquele mês corrente. Porém o Estado
alegava a impossibilidade de pagamento total num quadro de força maior,
de extrema e excepcional necessidade, por impedimento financeiro. O
Ministro Gilmar Mendes deferiu o pedido e suspendeu a execução de tal
liminar.
Em suas observações no acordão, para justificar a decisão, o Julgador
se baseia no pensamento do possível, na reflexão de Gustavo Zagrebelsky
sobre o ethos da Constituição na sociedade moderna e sobre o método da
tópica como meio de interpretação inserida nessa reflexão. [152] Afirma
que tal ideia é a que deve ser adotada em sede constitucional, aduzindo logo
após, que talvez seja Peter Häberle o mai s expressivo defensor dessa forma
de pensar o direito constitucional nos tempos hodiernos, entendendo ser o
pensamento jurídico do possível expressão, consequência, pressuposto e
limite para uma interpretação constitucional aberta.
Nessa medida, e essa parece ser uma das importantes consequências
da orientação perfilhada por Häberle, uma teoria constitucional das
alternativas pode converter-se numa teoria constitucional da tolerância.
Daí perceber-se também que alternativa enquanto pensamento possível
afigura-se relevante, especialmente no evento interpretativo: na escolha do
método, tal como verificado na controvérsia sobre a tópica enquanto força
produtiva de interpretação. [153]
Desta forma, o Ministro para decidir se utilizou da tópica como
método de interpretação (aqui entendeu a tópica em sua vertente metódica e
não tecnicista), da ideia de sistema aberto e do pensamento indagativo, para
118 119
a justificar a solução de um hard case que fugia da extrema normalidade
e poderia atingir diversas pessoas, como consequência jurídica daquela
decisão em concreto.
Assim, ao avalizar seu julgado no pensar problemático e suas
interligações dogmáticas, nos mostra o ínsito Julgador o quão necessário
esse meio de pensar, pode ser posto em causa para trazer mais uma opção
a Justiça Constitucional atualmente.
10. CONCLUSÃO E TESES CONCLUSIVAS
Ex positis, é inequívoco perceber o quão relevante é a dimensão e
a monta da tópica no cenário jurídico atual, vindo a influenciar, inclusive,
a doutrina positivista moderna. [154]
Após a superação de concepções classicistas por excelência, do modo
de pensar racionalista, lógico-dedutivo, positivista (em sua forma mais
cristalina) e sem dúvidas formalista, eis que exsurge no pensamento do pós-
guerra uma nova hermenêutica constitucional, onde deixa de dar primazia
apenas as bases tradicionais da interpretação constitucional e acrescem-
se novos dogmas, na intenção de sobrelevar as normas constitucionais
jusfundamentais, como aquelas que sejam inerentes a uma justa aplicação
na busca da aporia fundamental do direito aos casos concretos.
Dentro de um sistema jurídico totalmente afeito a abertura, onde se
verificam princípios e regras, em afinamento ao que dita a Carta Magna de
uma sociedade, a tópica, seja através de uma técnica indutiva de se resolver
problemas com um catálogo, seja como parâmetro do pensar problemático
na interpretação constitucional (realçando o caráter complementador da
temática, em auxiliar e conduzir os outros métodos interpretativos, quando
estes falharem ou serem incompletos no seu expediente), teve salutar
contribuição em todo esse contexto ao atualizar e renovar tal hermenêutica,
não de forma a substituir o sistema lógico-dedutivo por um sistema
puramente problemátic o, mas, de participar enquanto processo mútuo
120 121
de corroboração entre os fatos apresentados e as normas constitucionais
a total consubstanciação das premissas adotadas nas decisões dentro de
construções normativas (sendo a norma sua tutora e guia), inserido em
uma concepção pós-positivista do direito, não deixando em segundo plano
aquilo que representa a própria razão desse mesmo sistema, através do
interprete como manipulador coerente dessa dogmática.
Dessa maneira, a tópica como novo instrumento e opção
aos operadores do Direito (mesmo remorando a sistemas jurídicos
antiquíssimos), trouxe incialmente certas relutâncias doutrinárias, em
virtude de um possível casuística ou falta de apego a normatividade,
mas que se viram mitigadas tais objeções, diante da facilidade pelo qual
transpareceu em aplicar de forma justa a solução buscada a quem possuísse
alguma lide sobrelevante, ratificada, sem dúvida alguma, pelos importantes
estudos de grandes insignes, como foi o de Theodor Viehweg e na aplicação
dessa forma de pensar pelos operadores do Direito.
Por isso hoje é mais que necessário saber lidar com diversas
ramificações jurídicas, em termos articulados, polissêmicos e
interdisciplinares com relevo sobretudo para a Constituição. A interpretação
deve ser vista em pauta com a Norma Maior, com os diversos dados
normativos relevantes e os próprios níveis instrumentais, como o processo.
A especialização dos juristas deve ser complementada com novas sínteses
e conexões que, à realização do Direito, deem todas as suas dimensões.
Devemos estar abertos a novos parâmetros, novas ideias, técnicas e
métodos, e a tópica pode ser um bem útil a essa função, através de s uas
diversas facetas.
O tema em estudo, desta maneira, possui várias nuances que o
deixam de certa forma emaranhada a outras questões, que perpassa desde
a história, filosofia ou sociologia, e sempre vai necessitar de uma análise e
exame mais profundas para o seu completo entendimento. Nunca se quis
aqui esgotar o tema de alguma forma, mas com a pesquisa foi possível
levantar algumas teses conclusivas, com o qual tais desenlaces nos faz
120 121
refletir ainda mais a respeito da temática aduzida, encaminhando-nos a
um possível norte para que se entenda, mesmo que de forma perfunctória
a tópica. São tais teses, que se pode retirar do presente estudo:
I) a tópica sob um paradigma histórico evolutivo já podia ser
vislumbrado desde a pré-filosofia, sob a alcunha de ars inveniendi (ou
inventio);
II) a tópica teve influência no Direito Romano, com o espirito prático
de resolução de contendas desse sistema jurídico e na Idade Média fazia
parte dos estudos das artes liberais, juntamente com a gramatica, lógica e
retórica, vindo a influenciar diversos teóricos de ambas as épocas;
III) na Idade Moderna houve seu primeiro declínio em virtude
do racionalismo e da preeminencia de um modelo lógico-sistemático do
sistema;
IV) com a Revolução Francesa se consagram as fontes do direito
ao pensamento sistemático e a codificação da lei, relegando a tópica a um
segundo plano;
V) algumas escolas ratificaram tal declínio, em virtude da influência
do positivismo, estatalismo e a vontade do legislador, tais como a da Exegese
na França, Pandectista na Alemanha, Analítica na Inglaterra e da Teoria
Pura do Direito de Hans Kelsen;
VI) entre os séculos dezenove e inicio do vinte, houve o maior declínio
tópico e rejeição de todas as disciplinas interligadas a ela, precipuamente
aquelas com feitio social, filosófica ou histórica;
VII) após a Segunda grande Guerra o pensamento se rematerializa
com uma rejeição ao normativismo puro, vindo ao encontro sistemas mais
abertos de interpretação e integração da lei, ressurgindo, assim, o pensar
tópico;
VIII) foi Nicolai Hartmann que trouxe as concepções iniciais do
pensamento problemático versus sistemático, vindo a influenciar Theodor
122 123
Viehweg a conceber em 1953 a obra alma mater Topik und Jurisprudenz,
firmando categoricamente a tópica como matéria essencial ao estudo do
Direito;
IX) Aristóteles quem cunha o termo tópica como se conhece
atualmente, em um dos seus livros do tratado do Organon; este ligava a
tópica ao pensamento filosófico dialético, que é o que parte de opiniões
consensuais, com amalgamas de retórica, em um processo altamente
indutivo adequado ao problema e que pode levar a verdades;
X) Cícero buscava na tópica resultados práticos, com um catálogo
de topoi imbricado a situações da vida prática Romana, tais como herança,
casamento, etc.; o que apenas ratifica o pensamento do jurista àquela época;
XI) Vico utilizou a tópica (pensamento antigo) de forma comparativa
ao cartesiano (pensamento moderno), trazendo as vantagens e desvantagens
de ambos, criando uma noção de conjunto entre os dois com uma maior
interação do caso a ser regulado;
XII) Theodor Viehweg foi sem dúvidas o maior expoente da tópica
sendo sempre relembrado por diversos estudiosos do Direito atuais. Sua
forma de pensar a tópica estava ligada a uma tríade: é uma técnica do
pensamento problemático; operando através de um catalogo de topoi, em
uma atividade de busca e exame de premissas e não em conclusões findas;
XIII) quanto a ser uma técnica de pensar pelo problema, a tópica
parte de situações para quem não se há uma solução facilmente visível,
cabendo ao solucionador deste problema oferecer alternativas a esta
resposta, que possa servir de base para respostas futuras, o que cria uma
espécie de sistema;
XIV) quanto ao catálogo de topoi, Viehweg entende que o mesmo é
amplo, não formado por um sistema lógico-dedutivo, estando presente nas
mais diversas áreas do conhecimento e é utilizado na tópica de segundo
grau, espécie de tópica mais profunda, mais abrangente que a tópica de
primeiro grau, esta mais simples e casual na solução do problema;
XV) a base da atividade da tópica são as premissas e nunca as
122 123
conclusões ou vinculações, dessa maneira, esquemas cerrados, lógico-
dedutivos são inadequados a esta e sua forma de pensar dialética, não
lidando apenas com verdades absolutas, mas com opiniões consensuais,
que exsurgem de procedimentos argumentativos.
XVI) Viehweg vislumbrou o uso da tópica na Jurisprudência
(utilizando esse termo como ciência do direito) em diversos institutos,
desde o ius civile, em Roma até o mos italicus, na época Medieval; na era
Moderna o método axiomático, para o autor, tentou relegar a tópica um
patamar inferior em virtude do positivismo, dedutivismo e sistematização
direito, porém tal tentativa de retirar a tópica do ordenamento não foi
profícua, fazendo com que Viehweg propusesse uma problematização do
sistema jurídico de forma que se rompa com a idealização de se montar um
sistema que seja majoritalmente fechado, de caráter único e dedutivo;
XVII) a tópica por conter conteúdos intrinsicamente conectados a
filosofia, possui um amplo aspectos de sentidos e em múltiplas áreas das
ciências e das artes, podendo significar desde um método até uma forma
de comunicação, mas foi no campo jurídico que a tópica mais se consagrou
ao ser um meio cabalmente apto a solucionar litígios em casos concretos
através de um catalogo de topoi;
XVIII) os topoi tem uma natureza flexível, aberta e se transmitem
em adágios, standarts, princípios, brocardos jurídicos, etc; podem-se se
subdividir em de quantidade, quando sua força advém do consenso ou de
qualidade, quando avalizados pelos operadores jurídicos, que possuam
amplo conhecimento na área;
XIX) de forma gráfica a tópica pode ser resumida em busca de se
chegar a uma solução “!”, que adveio de um problema “?”, através de um
catalogo de topoi “{…}”, resolvida por um ou vários operadores “(W) ou (X,
Y) ou (A, B, C), etc”;
XX) sempre houve divergências doutrinárias em qualificar a
tópica como método de interpretação ou técnica de solução de problemas;
perfilho o entendimento que a tópica esteja mais para técnica de solução de
124 125
problemas, porém o pensar problemático também pode servir de paradigma
para ajudar na interpretação constitucional através dos diversos outros
métodos ;
XXI) a tópica influenciou de sobremaneira a moderna interpretação
constitucional, ao fazer um releitura dos métodos tradicionais, que são
insuficientes de dar respostas completas as dúvidas que a atual teoria do
Direito impõe aos seus estudiosos;
XXII) foi o caso por exemplado da influência no método
hermenêutico-concretizador de Konrad Hesse, onde interpretação se
transforma em problema e guiado pela norma, se busca através dos topoi
as soluções adequada a resolução do problema;
XXIII) no método jurídico-estruturante de Friedrich Muller também
é perceptível a influição do pensar problemático principalmente no que
tange ao âmbito da norma, segunda etapa da concretização, pelo qual é visto
o conteúdo fático da esfera regulariza da prescrição, ou seja, o problema a
ser solucionado, o consenso jurídico sob aquele ponto;
XXIV) a ideia tópica não se reduz em substituir os meios operantes
de interpretação, mas sim conciliar com os já existentes e integra-los com
uma problematização do sistema jurídico quando estes falharem ou forem
insuficientes no trabalho do interprete;
XXV) a tópica também foi capaz de encontrar o equilíbrio das falhas
existentes nos métodos tradicionais, buscando o estado efetivo de direito e
harmonizando os variados sistemas existentes;
XXVI) a ideia de sistema aberto no campo constitucional (como
meio dinâmico e estrutura dialética) esta em comunhão à tópica, no
qual encontra-se numa ordem que está sempre por ser determinada em
panoramas fragmentários, transformando o pensamento jurídico em algo
necessariamente amplo, impossível de estar contido em uma lógica cerrada
e engessada, mas sim em um pensamento altamente inventivo;
XXVII) com essa abertura, a tópica pode dar a interpretação
constitucional um ar democrático, podendo envolver, desta forma, diversos
124 125
interpretes no processo de analise hermenêutico-constitucional; nesse
contexto é nítida a influência no método concretizador de Peter Häberle,
que tem por núcleo central essa temática.
XXVIII) pode-se erradamente supor que a norma não é respeitada
pela tópica, o que não é verdade: esta é o guia do pensar problemático,
devendo ambas sempre estar em sintonia e mútuo respeito, sem um azo de
subalternidade;
XXIX) a tópica sempre foi alvo de diversas críticas e ressalvas,
principalmente por possuir alguma veia de casuísmo ou por se acreditar
que a norma seria deixada de lado com sua aplicação;
XXX) Alexy em sua obra Teoria da Argumentação Jurídica e Atienza
em As razões do Direito – Teoria da Argumentação Jurídica, afirmam que a
tópica subestima a importância da lei, da dogmática e dos precedentes, da
análise insuficiente da estrutura profunda dos argumentos e num conceito
pouco preciso da discussão, retirando desta qualquer ajuda significativa
na busca de uma ideal argumentação jurídica;
XXXI) Claus-Wilhelm Canaris foi o maior crítico da tópica na doutrina
Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Na
obra pode-se inferir que a ideia de sistema e tópica não são harmonizáveis;
que a tópica liga-se a retórica, que consequentemente advém da dialética,
e todas estão distantes da verdade; que a utilidade da tópica estaria certa
apenas ao legislador e a ciência política do que aos operadores do direito;
relegando a tópica um papel residual e subsidiário, apenas no caso de
lacunas de leis e clausulas gerais, que demandem uma complementação
valorativa pelo juiz;
XXXII) mas as críticas podem ser desconstruídas em diversos pontos,
principalmente se levar em conta sob o referencial histórico no qual surgiu
o pensamento problemático, sua influência no discurso, na orientação
da argumentação, em não considerar o método sistemático como o único
paradigma no sistema jurídico e a possibilidade de abertura no campo do
pensamento, em que não se enfoque apenas a tópica como aquele que pode
126 127
atuar no sistema, lendo essa forma de pensar em harmonia com um todo e
equilibrando os meios de utiliza-los na ciência jurídica;
XXXIII) a tópica tem uma importância fulcral no instituto da
equidade, que nada mais é aplicar o direito em uma concepção de justiça
no caso concreto. A influição desta naquela perpassa desde a busca da
solução do problema pela tópica (a solução há de ser justa e equânime), até
pelo empreendimento na tendência mais generalizadora da justiça, ou seja,
sem excluir pontos de vistas ao menos aceitáveis;
XXXIV) quanto as lacunas no direito, que significa a incapacidade
da norma de regular novas situações sociais que venham a surgir no seio
da sociedade, a tópica tem o papel de identificar tais lacunas e depois
preenche-las pelo mecanismo da heterointegração;
XXXV) na prática judicial a tópica pode ser utilizada de duas
formas consciente e inconsciente; uso inconsciente é quando nas decisões
o pensamento tópico ou argumentos interligados a este são utilizados de
forma involuntária pelos Tribunais ou juízes inferiores, como por exemplo,
quando se utilizam de recursos argumentativos, raciocínios indutivos,
conceitos indeterminados, princípios, valores, doutrina, opiniões externas,
standards jurídicos, adágios e etc; já o uso consciente da tópica, é quando o
próprio julgador sabe que utiliza desta técnica, afirma que a utiliza e expõe
as ideias da tópica em seu julgado de forma total mente explicita;
XXXVI) no STF em dois casos relatados a tópica foi usada de forma
consciente, ambas pelo Ministro Gilmar Mendes, que é abertamente afeito
a doutrina de autores que se inclinaram ao pensar problemático, como
Häberle ou Garcia Amado. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.289
em que o Ministro repele uma argumento preliminar da parte afirmando
que enquanto realização do Direito histórico, este se verga ao pensamento
tópico, e não ao pensamento sistemático, remetendo a obra de Viehweg;
e na Suspensão de Segurança 3.154, onde o Julgador suspende execução
de liminar se baseando em ideias de indagação, sistema aberto e a tópica
como força produtiva da interpretação;
126 127
NOTAS:
[1] VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Brasília: Ministério da
Educação co-edição com a EdUnb, 1979, p. 31.
[2] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 23.
[3] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 29.
[4]MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A Tópica e o Supremo Tribunal
Federal. Rio de Janeiro: Renovar Editora, 2003, pp. 104-105.
[5] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 59-60.
[6]PUY, Francisco. Tópica Jurídica. Santiago de Compostela: Imprenta
Paredes, 1984, p. 801. (tradução livre).
[7] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op, cit., pp. 147-148.
[8] Segundo HESPANHA o pensamento codificante foi “um repositório não
do direito voluntário, sujeito às contigencias e às mudanças da vontade
humana, mas do direito natural, imutável, universal, capaz de instaurar
uma época de paz perpétua na convivencia humana. Os códigos d eram
a ideia primeiro, a um nível formal, porque se apresentam como todos
os codigos sistematicos, dominados por uma ordem intrinseca, o que lhes
dá, aos nossos olhos, um aspecto arrumado […] Depois, quanto ao sentido
das suas disposições, porque eles se apresentam como um conjunto de
disposições liberto das contigencias do tempo e, por isso, tendencialmente
eternos” in HESPANHA, António Manuel. Panorama Histórico da Cultura
Jurídica Europeia. Sintra: Forum da História, 1997, p. 162.
[9]CORDEIRO, Antonio Menezes. In Introdução à Edição Portuguesa da
obra Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito
de Claus-Wilhelm Canaris. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 4 ed.,
2008, p. LXXXV.
[10] BOBBIO reza que “A escola da exegese deve seu nome à técnica
adotada pelos seus primeiros expoentes no estudo e exposição do Código
de Napoleão, técnica que con siste em assumir pelo tratamento científico
o mesmo sistema de distribuição da matéria seguido pelo legislador e, sem
128 129
mais, em reduzir tal tratamento a um comentário, artigo por artigo, do
próprio Código” in BOBBIO, Norberto. Il Positivismo Giuridico. Turin: G.
Giappichelli Editore. 1979, p. 92.
[11] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op. cit., p. 172.
[12] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op. cit., p. 176.
[13] Cf. BOBBIO, Norberto. Op. cit., pp. 95/97.
[14] Cf. HESPANHA, António Manuel. Op. cit., p. 178.
[15] Cf. BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 99.
[16]BITTAR, Eduardo e ALMEIDA, GUILHERME. Curso de Filosofia do
Direito. São Paulo: Atlas, 2007, 5. ed. p. 348.
[17] Cf. HESPANHA, António Manuel. Op. cit., pp. 191-192.
[18] Ao explicar sobre sua obra, AUSTIN fala sobre suas influências: “De
todas as expressões concisas que examinei mentalmente, ‘filosofia do
direito positivo’ indica da forma mais significativa o objeto e o âmbito do
meu curso. Emprestei tal expressão de um tratado Hugo, célebre professor
de jurisprudencia da Universidade de Gottingen, e autor de uma excelente
história do direito romano. Embora o tratado em questão se intitule ‘o
direito natural’, não diz respeito ao direito natural no significado ordinário
do termo. Na linguagem do autor diz respeito ao ‘direito natural como uma
filosofia do direito positivo’. Apud BOBBIO, Op. cit., p. 116.
[19] Ainda para AUSTIN “toda lei positiva, ou bem de toda lei simples e
estritamente dita, é posta por uma pessoa soberana ou por um corpo
soberano de pessoas a um ou mais membros da sociedade polític a
independente na qual essa pessoal ou esse corpo é soberano ou supremo.
Ou, em outras palavras, essa lei é posta por um monarca ou grupo soberano
a uma ou mais pessoas em estado de sujeição frente a seu autor.” Apud
BOBBIO, Op. cit., p. 121.
[20] Austin aduzia que “é melhor ter um direito expresso em termos
gerais, sistemático, conciso (compact) e acessível a todos, do que um
direito disperso, sepultado num amontoado de detalhes, i menso (bulky) e
inacessível.” Apud BOBBIO, Op. cit., p. 135.
128 129
[21] Cf. HESPANHA, António Manuel. Op., cit., p. 193.
[22]LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1969, p. 81.
[23] Cf. HESPANHA, António Manuel. Op. cit., p. 194.
[24] Segundo o próprio autor, sua Teoria Pura era “um conhecimento apenas
dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo que não pertença a
seu objecto, tudo quanto se não possa, rigorosamente, determinar como
Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos
os elemen tos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico
fundamental” in KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Coimbra: Armenio
Amada Editor, 1979, p. 17.
[25]REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1957, p. 423.
[26] Cf. LARENZ, Karl, Op. cit., pp. 87-88.
[27] Cf. LARENZ, Karl, Op., cit., pp. 84.
[28] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op. cit., p. 187.
[29]PUY, Francisco. Teoria, Tópica, Retórica e Dialéctica dos Direitos in
Direitos Humanos: teorias e práticas. Coimbra: Almedina, 2003, p. 194.
[30] Idem.
[31] A filosofa HANNAH ARENDT, aduz que a atividade do pensar e a
moderna concepção do mundo em sua introspecção e perda do senso
comum, por virtude do cartesianismo (e consequentemente ao apego
excessivo a ciência) levou o homem a ter um poder de criar e agir, mas que
o fez se “aprisionar nas limitações das configurações que ele mesmo criou.
[…] A razão em Descartes, n&at ilde;o menos que em Hobbes, limita-se a
prever as consequencias, isto é, a faculdade de deduzir e concluir a partir
de um processo que o homem pode, a qualquer momento, desencadear
dentro de si mesmo. […] É esta a faculdade que a era moderna domina
de senso comum; trata-se do jogo da mente consigo mesma, jogo este que
ocorre quando a mente se fecha contra toda a realidade e sente somente a
si própria.” In ARENDT, Hannah. A condição humana. São Paulo: Forense
Universitária, 2007, pp. 296, 299 e 301.
130 131
[32] Para HARTMANN “o pensamento sistemático parte do todo. A concepção
é aqui primordial e permanece dominante. Não há que se buscar o ponto de
vista senão o que presumimos e lhe está adotado desde o princípio e a partir
dele selecionam os problemas. Os conteúdos do problema que n& atilde;o
se conciliam com o ponto de vista serão recusados. São considerados como
uma questão falsamente colocada. Decide-se previamente não sobre a
solução dos problemas, mas sim sobre os limites dentro dos quais a solução
pode mover-se. No que tange ao pensamento aporético esse é enfático ao
aduzir que o modo aporético de pensar em tudo procede de forma diferente.
Os problemas antes de mais nada se lhe afiguram sagrados. Não conhece
nenhum fim da pesquisa que não seja o da investigação do problema
mesmo… O próprio sistema não lhe é indiferente, mas valha para ele
apenas como idéia, como perspectiva. Não põe ele em dúvida a existência
do sistema, apenas encontra o que o determina latente em seu próprio
pensamento. Disso está certo, ainda quando não o compreenda, tem certeza
do seu sistema, ainda que não chegue a ter dele uma concepção.” Apud
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros
Editora, 15. ed., p. 488 e VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 55.
[33] O próprio filosofo leciona que “o objetivo desta exposição é encontrar
um método que permita raciocinar, sobre todo e qualquer problema
proposto, a partir de proposiç& otilde;es geralmente aceites, e bem assim
defender um argumento sem nada dizermos de contraditório. Antes de
mais, portanto, há que explicar o que é um raciocínio dedutivo e quais suas
variedades, a fim de determinar o que é um raciocínio dialético, pois é este
ultimo o que estudamos na presente exposição.” In ARISTÓTELES. Tópicos.
Lisboa: Biblioteca de autores clássicos, v. I, t. V, 2007, p. 233.
[34] Cf. ARISTÓTELES. Op. cit., pp. 233-234.
[35] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 26 e 31.
[36] Quanto aos problemas Aristoteles aduz que eles podem ser universais
(por exemplo, as afirmações: todo prazer é um bem e nenhum prazer é um
bem) ou particulares (algum prazer é um bem e algum prazer não é um
130 131
bem) in ARISTÓTELES. Op. cit., p. 269.
[37]KNEALE, William Calvert e Martha. O desenvolvimento da Lógica.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1972, p. 35.
[38] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 28.
[39] SALVADOR NUÑEZ lembra que “Cuando Cicerón se puso a la tarea de
redactar el ambicioso tratado que iba a ser La invención retórica, i ntento
reflejar el estado de los conocimientos retóricos de la época conservando
una cierta independencia frente a las fuentes griegas y procurando adaptar
los contenidos a la realidad social y cultural romana “in NUÑEZ, Salvador.
Introducción de La Invención Retórica de Cícero. Madrid: Editorial Gredos
in, 1997, p. 14.
[40] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 30-31
[41] Gianbattista Vico foi um eminente professor, jurisconsulto, historiador,
filosofo e pedagogo napolitano. Para BLUNTSHCLI era uma pessoa de
perspicácia genial e segundo MANUEL ANTUNES de uma erudi&ccedi
l;ão histórica e jurídica com dotes de intuição e reflexão que a civilização
ocidental raras vezes tem conhecido in MELO, António M. Barbosa de. In
Prefácio da obra Ciência Nova de Giambattista Vico. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2005. p. V.
[42] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 19-20.
[43] Idem.
[44] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 20-21
[45] Na prática para Vico “o pensamento tópico-retórico surge, assim,
como método adequado a satisfazer o principio regulativo segundo o
qual o decisor publico está obrigado a proceder ao exame completo das
circunstancias que formam o pressuposto material, hipótese ou causa da
decisão jurídica. Não é a analise more geométrico, mas a espessa lição dos
oradores, dos historiadores e dos poetas que permitirá a descoberta da
verdade: estes é que dilatam a mente através da observação dos elos entre
coisas distanciadíssimas que, por qualquer razão comum, a memoria, a
fantasia e o engenho levam a integrar numa mesma unidade de referencia
132 133
apud MELO, António M. Barbosa de. Op. cit., p. IX.
[46] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 21.
[47] Os elogios a importância do autor são evidentes. Para TERCIO SAMPAIO
FERRAZ JR., prefaciador e tradutor da obra Tópica e Jurisprudência no
Brasil: “Viehweg retoma a discuss&ati lde;o do paradigma científico
do direito, a luz da experiência grega e romana, iluminando-a com as
descobertas de Vico e atualizando-a com os instrumentos contemporâneos
da lógica, da teoria da comunicação, da linguística etc.. […] Viehweg realiza,
neste livro, uma investigação histórica, bastante abrangente, com o fito
de demonstrar a sua importância na formação jurídica ocidental. […] Sua
intenção principal está em mostrar que a Ciência do Direito que ele prefere
chamar de Jurisprudência (em oposição a Jurisciência) é constituída por
um estilo de pensamento, o pensamento problemático” in FERRAZ JR.,
Tercio Sampaio. Prefácio do tradutor na obra < b>Tópica e Jurisprudência
de Theodor Viehweg. Op. cit., pp. 1 e 5. Já PAULO BONAVIDES escreve que
“com a tópica inaugurou-se para a hermenêutica contemporânea uma
direção indubitavelmente renovadora. […] A obra de Viehweg causou na
Ciência do Direito sensação igual à de David Easton na Ciência Politica, de
que ambos se tornaram os respectivos renovadores” in BONAVIDES, Paulo.
Op. cit., pp. 488 e 490.
[48] A forma como Viehweg concebeu a obra Tópica e Jurisprudência,
de tão interessante não poderia deixar de ser contada. O autor, aluno da
faculdade de direito de Leipzig e frequentador de seminários de Hartmann,
fora juiz de profissão anteriormente a Segunda Guerra e encontrava-se
desempregado. Para sobreviver, mudou- se para o interior da Alemanha,
perto de Munchen, onde vivia entre os camponeses a agricultores simples.
Perto de sua casa descobrira uma biblioteca muito antiga, totalmente
intacta, dentro de um monastério. Com a autorização dos monges locais
se utilizou do local e começou uma minuciosa pesquisa que teve como
produto essa obra, reflexo de uma clausura e paciência quase que igual
a dos monges que o permitiram os seus estudos para compor a obra in
132 133
VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 6 e 7.
[49]ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: Teoria da Argumentação
Jurídica. São Paulo: Landy Editora, 2006, p. 49.
[50] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 33.
[51] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 34.
[52] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 35.
[53] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 35-36.
[54] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 40-41.
[55] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op, cit., p. 104.
[56] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 45.
[57] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 53.
[58] Cf. ATIENZA, Manuel. Op. cit., p. 50.
[59] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 48.
[60] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 59-65
[61] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 75-77.
[62]ENTERRÍA, Eduardo García de. Reflexiones sobre la Ley y los Principios
Generales del Derecho. Madrid: Civitas, 1984, p. 58. (tradução livre do
espanhol)
[63] Idem.
[64] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 82.
[65] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op, cit., p. 201.
[66] Cf. ENTERRÍA, Eduardo García de. Op. cit., p. 56-57.
[67] Cf. PUY, Francisco. Op. cit., p. 798.
[68] Ela pode estar inclusive em qualquer meio comunicação, não
especificamente o jurídico, o que constituiria uma espécime de vox populi
ou opinião pública/profana e ainda de divulgação, inclusive no meio
literário, por propor um meio de propaganda de soluções iure c onstituendo
ou espelho crítico do existente iure constituto; cite o exemplo na Antígona
de Sofocles para falar de leis injustas e de direito natural na decisão de
Creonte, ou ainda na morosidade processual em Bleak House de Dickens;
o advogado de sucesso mas sem convicções em A Queda, a relação política
134 135
e direito em Os Justos e o fim da juridicidade pela arbitrariedade de um
déspota em Calígula, todos de Camus; a sutileza da argumentação jurídica
contra um litigante de má-fé, em O Mercador de Veneza de Shakespeare; as
relações entre ideologia, paixão e crime nas Mãos Sujas de Sartre, etc, etc. In
CUNHA, Paulo Ferreira da. Dialéctica, Tópica ou Retórica Jurídicas?. Lisboa:
Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, 2002,
V. XVI, Tomo 2, pp. 76 a 78;
Já VIEHWEG lembra que a tópica além de poder estar contida na literatura,
há uma tópica musical e na pintura: “no âmbito dos problemas literários,
os topoi constituem pontos de vista diretivos que retornam continuamente,
temas fixos ou, por assim dizer, clichês geralmente aplicáveis. Não só
proporcionam um determinado modo de entender a vida ou a arte, senão
que ajudam até a construi-lo” in VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 38.
[69] Apud PUY in CUNHA, Paulo Ferreira da. Op., cit., p. 72.
[70]DINIZ, Maria Helena. As Lacunas do Direito. São Paulo: Editora Saraiva,
2000, p. 124.
[71] Apud AMADO, Juan Antonio Garcia. Teorias de la Tópica Jurídica,
Editorial Civitas: Madri, 1988 in MELGARÉ, Plínio. Considerações sobre a
tópica jurídica . Revista da AJURIS (Associação dos Juízes do Rio Grande do
Sul), n. 78, junho de 2000, p. 246
[72]CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
Lisboa: Almedina, 2002, p. 1.195.
[73] Idem.
[74]MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de Direito Constitucional: teoria da
Constituição em tempo de crise do estado social. Coimbra: Coimbra Editora,
2014, T. II, v. 2, pp. 619-620.
[75] Cf. BONAVIDES, Paulo. Op. cit., pp. 488 e ss.
[76]ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy
Editora, 2001, p. 31.
[77] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 33.
[78]MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra
134 135
Editora, T.II, 2013, p. 317.
[79] Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 122.
[80] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 03.
[81] CASTELEIRO, João Malaca (coord.). Dicionário da língua portuguesa
contemporânea / ed. lit. Academia das Ciências de Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian. Lisboa : Verbo, 2001, pp. 2.459 e 3.526.
[82] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 71.
[83] Cf. BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 490 e AMADO, Juan Antonio Garcia.
Tópica, Derecho y Método Jurídico. Revista DOXA. n. 04, 1987, p. 161.
(tradução livre)
[84] A concretização para Hesse pressupõe um pré-entendimento do
conteúdo da norma a ser concretizada, ou seja, a atividade concretizadora
trata de reconstruir a atividade jurídica no caso concreto através de um
procedimento racional e argumentativo, ao invés de se procurar meramente
um sentido que seja i nerente a norma in HESSE, Konrad. Elementos de
Direito Constitucional da República Federal da Alemanha (Grundzuge des
Verfassungsrechts der Burdesrepublik Deustchland). Porto Alegre: Fabris,
1998, pp. 63 e ss.
[85] Apesar de CANOTILHO entender que o método hermenêutico-
concretizador afasta-se da tópica, porque enquanto este pressupõe ou aceita
o primado do problema perante a norma, aquele infere no pressuposto do
primado do texto constitucional em face do problema, o que se adota neste
estudo que a tópica não renega o âmbito legal, nem o exclui em face do
problema, mas se serve dele como guia, tendo que partir de topoi guiadas
pela lei e que não sejam contra legem, dessa forma, ambas andam de forma
paritária, respeitando-se mutualmente inCANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit.,
p. 1.212 e nota de rodapé 9.
[86] Cf. HESSE, Konrad. Op. cit, pp. 64-65.
[87]MULLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 59-60 e 105-106.
[88] Cf. MULLER, Friedrich. Op. cit., pp. 59-60 e 81-83.
136 137
Sob a concretização de MULLER, BLANCO DE MORAIS faz um pertinente
magistério em sua obra, sintetizando três operações que aclaram a temática
proposta: 1) o programa e âmbito normativo; 2) um teste argumentativo
final à solidez da solução interpretativa obtida e 3) a operação subsuntiva
de aplicação da norma à situação problemática, conjugando tal explanação
perfeitamente ao exposto no tópico deste trabalho. In MORAIS, Carlos
Blanco de. Op. cit., pp. 658-662.
[89] Cf. ENTERRÍA, Eduardo García de. Idem.
[90]FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica: ensaio de
pragmática da comunicação normativa. Rio de Janeiro: Editora Forense,
2006, p. 23.
[91] Cf. BONAVIDES, Paulo. Op. cit., pp. 494.
[92] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 80-81.
[93] Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 1.159.
[94] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., pp. 35, 36, 50 e 85.
[95] Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 124-125.
[96]HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos
Intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e
“procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Fabris Editor, 2002, pp. 41-
42; BONAVIDES, Pa ulo. Op. cit., pp. 509 e ss. e MIRANDA, Jorge. Op. cit., p.
318.
[97] Cf. BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 495.
[98] Cf. MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 317.
[99] Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 1.212.
[100] Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Op. cit., p. 619.
[101] Cf. ALEXY, Robert. Op. cit., pp. 31-32.
[102] Cf. ALEXY, Robert. Op. cit., p. 33.
[103]CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de
Sistema na Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 4
ed., 2008, p. 16.
[104] Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit., p. 280.
136 137
[105] Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit., pp. 247, 249, 250.
[106] Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit., pp. 257, 262.
[107] Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit., pp. 269-270.
[108]Cf. ATIENZA, Manuel. Op. cit., pp. 52-53.
[109] Cf. ATIENZA, Manuel. Op. cit., p. 55.
[110] Cf. FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Op. cit., pp. 22-23
[111] Cf. ATIENZA, Manuel. Op. cit., p. 14.
[112] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op. cit., pp. 245-247.
[113] Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit., pp. 251.
[114] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op, cit., pp. 254.
Como bem lembra CARLOS BLANCO DE MORAIS lecionando a espeito da
mudança social e cultural sobre a Justiça Constitucional, “em qualquer
caso, é um dado sociológico que os juízes, tendendo a ser conservadores
na interpretação e defesa da Constituição, não são imunes ao seu tempo
já que, como membros da sociedade refletem certos valores e tendências
dominantes. E o facto é que, existindo fortes movimentos políticos e sociais
que impõem num dado momento no panorama político e cultural, os juízes
inclinam-se frequentemente a interpretar as normas constitucionais em
consonância com essa tendência, mesmo contra o legis lador maioritário.”
In MORAIS, Carlos Blanco de. Op. cit., pp. 660-661.
[115]PERELMAN, Chaim. Lógica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2004,
pp. 141 e ss.
[116] Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit., pp. 256.
[117] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op. cit., pp. 255-256.
[118] Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit., pp. 265-266
[119] Cf. BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 499.
[120] Cf. BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 498.
[121] Cf. ATIENZA, Manuel. Op. cit., p. 57.
[122] Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 242.
[123]ARISTOTELES. Ética à Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1991, Livro
V, Caps. X e XI.
138 139
[124] Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 244.
[125]PEREIRA, Alexandre Libório Dias. Da Equidade (fragmentos). Coimbra:
Artigos da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,
2004, p. 7.
[126] RSTJ, 83/68; Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105/2005, Art. 140.
O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade
do ordenamento jur&iac ute;dico. Parágrafo único. O juiz só decidirá por
equidade nos casos previstos em lei.
[127] Lei 9.307/96. Art. 11. Poderá, ainda, o compromisso arbitral conter: II
– a autorização para que o árbitro ou os árbitros julguem por eqüidade, se
assim for convencionado pelas partes;
[128]Artigo 4.º do Código Civil (Valor da equidade). Os tribunais só podem
resolver segundo a equidade: a) Quando haja disposição legal que o
permita; b) Quando haja acordo das partes e a relação jurídica não seja
indisponível; c) Quando as partes tenham previamente convencionado o
recurso à equidade, nos termos aplicáveis à cláusula compromissória.
[129] Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., pp., 252 e ss.
[130] Cf. ENTERRÍA, Eduardo García de. Op. cit., p. 58.
[131] Cf. VIEHWEG, Theodor. Op. cit., p. 88.
[132] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op, cit., p. 210.
[133] Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit., pp. 25, 240, 272, 286, 287.
CANARIS ao fazer tal alusão da tópica e equidade (sendo de importante
valia tal ideia), também reconhece que as cláusulas gerais que faltem de
carecidas concretização têm indubitavelmente uma função totalmente
legítima e opõem-se a uma generalização demasiado rígida, facultando a
inserção da equidade no sentido da justiça do caso concreto.
[134] Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 264.
[135] ENGISH lembra ainda que na determinação das lacunas não se pode
ater apenas à vontade do Poder Legislativo. A mudança das concepções
de vida pode fazer surgir lacunas que anteriormente não haviam sidos
percebidas e que temos de considerar como lacunas do Direito vigente e não
138 139
simplesment e como lacunas jurídico-políticas, assim como não existe apenas
lacunas primárias, aquelas de antemão inerentes a uma regulamentação
legal, mas ainda secundárias, ou seja, lacunas que só supervenientemente se
manifestam, porque entretanto as circustancias foram alteradas. Isto vale,
não só para a modificação das valorações, mas também pelo que tange à
alteração das circunstancias de fato relativas ao objeto da regulamentação:
as regulamentação jurídicas não raro se tornam posteriormente lacunosas
pelo fato de, em razão de fenomenos econômicos inteiramente novos, como
a inflação, ou de progressos técnicos, exemplarmente a aviação, filmes,
discos, televisão, surgirem questões jurídicas às quais a regulamentação
anter ior não dá qualquer resposta satisfatória in ENGISH, Karl. Introdução
ao Pensamento Jurídico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, p.
276.
[136] Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 120.
[137] Idem.
Isto posto que JORGE MIRANDA rememora que não se deve confundir lacuna
com omissão legislativa. Levando esse feito a uma ótica constitucional, o
catedrático aduz que as lacunas são constitucionalmente relevante não
previstas, já as omissões legislativas, reportam em situações previstas, mas
a que faltam as estatuições adequadas a uma plena efetivação das respetivas
normas no programa ordenador global da Constituição. As lacunas
são detetadas pelo interprete e pelos órgãos de aplicação do Direito. As
omissões, se podem ser por eles também detetadas, só podem ser verificadas
especificadas pelos órgãos de fiscalização da inconstitucionalidade por
omissão. O preenchimento de lacunas significa a determinação da regra
para aplicação ao caso concreto e é tarefa do interprete e do órgão de
aplicação. A integração de omissões reconduz-se à edição da lei pelo
legislador, a não ser que se trate de omissões parciais e relativas e seja
possível ao tribunal emitir sentenças aditivas. In MIRANDA, Jorge. Curso de
Direito Constitucional – Estado e Constitucionalismo. Constituição. Direitos
Fundamentais. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2016, v. 1, pp. 214-
140 141
215.
[138] Cf. DINIZ, Maria Helena. Idem.
[139] Art. 4o da Lei 12.376/2010: Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o
caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
[140] Artigo 10.º (Integração das lacunas da lei): 1. Os casos que a lei não
preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos. 2.
Há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas
da regulamentação do caso previsto na lei. 3. Na falta de caso análogo, a
situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se
houvesse de legislar dentro do espírito do sistema.
[141] Art.16.- Si una cuestión civil no puede resolverse, ni por las palabras,
ni por el espíritu d e la ley, se atenderá a los principios de leyes análogas;
y si aún la cuestión fuere dudosa, se resolverá por los principios generales
del derecho, teniendo en consideración las circunstancias del caso.
[142] Art. 12 Interpretazione della legge: Se una controversia non può essere
decisa con una precisa disposizione, si ha riguardo alle disposizioni che
regolano casi simili o materie analoghe; se il caso rimane ancora dubbio, si
decide secondo i princìpi generali dell’ordinamento giuridico dello Stato.
[143]ARTICULO 4.A la Ley debe atribuírsele el sentido que aparece evidente
del significado propio de las palabras, según la conexión de ellas entre sí
y la intención del legislador. Cuando no hubiere disposición precisa de
la Ley, se tendrán en consideración las disposiciones que regulan casos
semejantes o materias análogas; y, si hubiere todavía dudas, se aplicarán
los principios generales del derecho.
[144] Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 138.
[145] Cf. DINIZ, Maria Helena. Op. cit., pp. 121 e 122.
[146] Cf. PEREIRA, Alexandre Libório Dias. Op. cit., p. 22.
[147] Cf. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. Op. cit., pp. 275, 285.
[148]PERELMAN, Chaim. Ética e Direito. Porto Alegre: Instituto Piaget, 2002,
p. 601.
[149] HABERMAS lembra que a uniformização é absolutamente necessária
140 141
ao aperfeiçoamento do direito. O interesse público na uniformização do
direito destaca uma característica pregnante na lógica da jurisprudência: o
Tribunal tem que decidir cada caso particular, mantendo a coer&ec irc;ncia
da ordem jurídica em seu todo in HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia:
entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 295
[150] Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República
poderá adotar medidas provis&oacu te;rias, com força de lei, devendo
submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
[151] Conforme o voto ipse literis: A la tópica jurídica se podem ligar tres tipos
diferenciables de desarrollo de la ideia de Derecho, que han sido llevados a
cabo por la doctrina. (…) El primer tipo de teorías parten de rechazar toda
concepción essencialista del Derecho, conforme a la cual éste ea imperativo
puro o d eber incondicionado y la ley simple depósito de soluciones
acabadas para casos meramente subsumiles. Como dice BAUMLIN, el
Derecho es um producto eminentemente histórico, sólo comprensible a
partir de su própria realización. La actividad jurídica, en cuanto relización
del Derecho histórico, remitiría a la tópica, no al pensamiento sistemático. El
Derecho histórico es, para BAUMLIN, el conjunto de respuestas contigentes,
parciales y susceptibles de ser desarrolladas. Cerece de sentido, em opnión
de este autor, contraponer una regulación general y abstracta, por un lado,
y las decisiones, por otro, pues el proceso de concreción es un elemento
conformador de importancia fundamental en el Derecho. Este se ha de
comprender a partir de su nota esencial de estar orientado a constante
realización. Esta realización del Derecho (Rechtsverwirklichung) no puede s
ignificar ejecución de la ley (Gesetzesvollzienhung), sino un nunca acabado
tratamiento y una constante conformácion del Derecho histórico en todos
los niveles de la actividade jurídica. in Juan Antonio Garcia Amado, Teoria
de La Topica Juridica, Madri, Editorial Civitas, Primeira edição, pp. 264/265.
[152]In verbis: As sociedades pluralistas atuais – isto é, as sociedades
marcadas pela presença de uma divers idade de grupos sociais com interesses,
ideologias e projetos diferentes, mas sem que nenhum tenha força suficiente
142 143
para fazer-se exclusivo ou dominante e, portanto, estabelecer a base material
da soberania estatal no sentido do passado – isto é, as sociedades dotadas
em seu conjunto de um certo grau de relativismo, conferem à Constituição
não a tarefa de estabelecer diretamente um projeto predeterminado
de vida em comum, senão a de realizar as condições de possibilidade
da mesma. No tempo presente, parece dominar a aspiração a algo que é
conceitualmente impossível, porém altamente desejável na prática: a não-
prevalência de um só valor e de um só princípio, senão a salvaguarda de
vários simultaneamente. O imperativo teórico da não-contradição – válido
para a scientia juris – nã ;o deveria obstaculizar a atividade própria
da jurisprudentia de intentar realizar positivamente a ‘concordância
prática’ das diversidades, e inclusive das contradições que, ainda que
assim se apresentem na teoria, nem por isso deixam de ser desejáveis na
prática. ‘Positivamente’: não, portanto mediante a simples amputação de
potencialidades constitucionais, senão principalmente mediante prudentes
soluções acumulativas, combinatórias, compensatórias, que conduzam
os princípios constitucionais a um desenvolvimento conjunto e não a
um declínio conjunto. Por isso, conclui que o pensamento a ser adotado,
predominantemente em sede constitucional, há de ser o “pensamento do
possível”. Leio, ainda, esta passagem desse notável trabalho: “Da revisão
do conceito clássico de soberania (interna e ex terna), que é o preço a
pagar pela integração do pluralismo em uma única unidade possível – uma
unidade dúctil, como se afirmou – deriva também a exigência de que seja
abandonada a soberania de um único princípio político dominante, de onde
possam ser extraídas, dedutivamente, todas as execuções concretas sobre
a base do princípio da exclusão do diferente, segundo a lógica do aut-aut,
do ‘ou dentro ou fora’. A coerência ‘simples’ que se obteria deste modo não
poderia ser a lei fundamental intrínseca do direito constitucional atual,
que é, precipuamente, a lógica do et-et e que contém por isso múltiplas
promessas para o futuro. Neste sentido, fala-se com acerto de um ‘modo
de pensar do possível’ (Möglichkeitsdenken), como algo particularmente
142 143
adequado ao direito do nosso tempo. Esta atitude mental ‘possibilista’
representa para o pensamento o que a ‘concordância prática’ representa
para a ação in Zagrebelsky, El Derecho Dúctil. Ley, derechos, justicia. Trad.
de Marina Gascón. 3a ed. Madrid: Trotta; 1999, pp. 13, 16 e 17.
[153]O pensamento do possível é o pensamento em alternativas. Deve
estar aberto para terceiras ou quartas possibilid ades, assim como para
compromissos. Pensamento do possível é pensamento indagativo (fragendes
Denken). Na res publica existe um ethos jurídico específico do pensamento
em alternativa, que contempla a realidade e a necessidade, sem se deixar
dominar por elas. O pensamento do possível ou o pensamento pluralista de
alternativas abre suas perspectivas para “novas” realidades, para o fato de
que a realidade de hoje pode corrigir a de ontem, especialmente a adaptação
às necessidades do tempo de uma visão normativa, sem que se considere
o novo como o melhor. Para o estado de liberdade da res publica afigura-
se decisivo que a liberdade de alternativa seja reconhecida por aqueles
que defendem determinadas alternativas”. Daí ensinar que “não existem
apenas alternativas em relação à realidade, existem também alternativas
em relação a essas al ternativas. O pensamento do possível tem uma dupla
relação com a realidade. Uma é de caráter negativo: o pensamento do
possível indaga sobre o também possível, sobre alternativas em relação à
realidade, sobre aquilo que ainda não é real. O pensamento do possível
depende também da realidade em outro sentido: possível é apenas aquilo
que pode ser real no futuro. É a perspectiva da realidade (futura) que
permite separar o impossível do possível in Häberle, Die Verfassung des
Pluralismus, cit., pp. 3, 6 e 10.
[154] DIMOULIS e MARTINS na obra Teoria Geral dos Direitos Fundamentais
afirmam que para a análise jurídica dos direitos fundamentais, é necessário
o recurso a fontes doutrinárias que apontam problemas, resolvem casos
difíceis e apresentam de forma sistemática e crítica as soluções dadas
em nível de prática jurídica. OBS: mesmo os autores utilizando o termo
sistemático, entendo que a intenção não foi se utilizar dele como método
144 145
lógico-dedutivo puro, mas sim, na acepção organizatória da palavra. O
que também não exclui, pensando da outra maneira, a ideia problemática
precipuamente tópica em lidar com a análise dos direitos fundamentais,
tema global da obra. In DIMOULIS, Dimitri e MARTINS, Leonardo. Teoria
Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Editora Atlas, 2014, pp. 7-8.
145
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144 145
OS EFEITOS DA DECISÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 895.759 NAINTERPRETAÇÃO DOS DIREITOS TRABALHISTAS EM FACE DA POSSIBILIDADE DE NEGOCIAÇÃO E CONCILIAÇÃO INDIVIDUAL E COLETIVA
Murilo Cautiero Abi Acl - Desde 2013 é Analista Judiciário do TRT/MG, atuando como assistente de magistrado e como conciliador na Central de Conciliação de 1ª Instância do TRT/MG. Formado em Direito em 2004 pela Universidade FUMEC, pós-graduado em Direito de Empresa pelo IEC – Instituto de Educação Continuada da Pontífica Universidade Católica/MG. De 2004 a 2013 atuou como advogado nas áreas empresarial, imobiliária e trabalhista.
Resumo: Os efeitos da decisão do Recurso Extraordinário 895.789
são grandiosos no que tange a interpretação dos direitos trabalhistas e
seus princípios correlatos, possibilitando maior alcance das negociações
individuais e coletivas e, consequentemente, prestigiando a conciliação no
âmbito da Justiça do Trabalho.
Palavras-chaves: Recurso Extraordinário 895.789. Interpretação.
Princípios. Negociação. Conciliação.
Abstrac: The effects of the extraordinary appeal decision 895.789
are great when it comes to interpretation of labor rights and its related
principles, allowing a greater range of individual and collective negotiations
and thus honoring the conciliation under the Labour Court.
146 147
Key word: Extraordinary Appeal 895,789. Interpretation. Principles.
Negotiation. Conciliation.
Sumário: Introdução. 1.Evolução do Direito Trabalhista. 2. Recurso
Extraordinário 895.789 e seus reflexos. 3. Disponibilidade das Horas Extras
em uma negociação trabalhista. 4. Ampliação de parâmetros conciliatórios
na Justiça do Trabalho. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal ao dispor, de forma ampla, no artigo 7º
sobre direitos sociais e trabalhistas, influenciou o entendimento de
indisponibilidade/irrenunciabilidade dos mesmos, assim, “o processo do
trabalho teria uma função finalística: a busca efetiva do cumprimento dos
direitos indisponíveis dos trabalhadores” [1].
Difícil trazer a tona quais são os direitos trabalhistas indisponíveis,
se todos ou alguns. E, em face de tamanha tarefa árdua, bem como apoiados
na vulnerabilidade do trabalhador e na interpretação dos princípios
específicos do Direito do Trabalho em prol da classe operária, O Judiciário
não se mostrava favorável a composições extrajudiciais que interferissem
nos referidos direitos subjetivos e, até mesmo, limitavam os termos de um
acordo judicial.
Seja em âmbito individual ou coletivo, os Tribunais Pátrios,
acabavam por restringir as hipóteses daquilo que poderia ser negociado,
estagnando as negociações entre empregador e empregados.
Ressalta-se que a própria Constituição Federal, prevê o
reconhecimento das convenções e acordos coletivos, conferindo aos
Sindicatos representativos da categoria, autonomia de negociação, o que
146 147
não elevava tal possibilidade à supressão de alguns direitos.
2. EVOLUÇÃO DO DIREITO TRABALHISTA
São tempos de crises econômicas em que se percebe maior
necessidade de se discutir tais questões, mas, na verdade e na mesma
toada de qualquer ramo do direito, a evolução social e cultural provocam,
a seu tempo e modo, mudanças advindas do pensamento e comportamento
humano, como ocorreu quando da entrada da mulher no mercado de
trabalho, a evolução tecnológica, a globalização e o trabalho informal,
como causas de tal reflexão.
Assim, desde 1943, ano de vigência da CLT ou mesmo desde a
Constituinte de 1988 as relações trabalhistas evoluíram, bem como as
relações humanas.
A autonomia da vontade, a boa fé objetiva e subjetiva, função social
do contrato, além dos princípios da ordem econômica e os valores sociais
do trabalho e da livre iniciativa, devendo ser sopesados ante a ingerência
Estatal na vida privada e individual do cidadão, o qual é o único que sabe o
que lhe é digno e satisfatório.
Atualmente, o sistema judiciário recebe críticas e se afoga em
preceitos retrógrados que vêem na lide e no Estado Juiz saídas para a
solução de conflitos.
Os meios alternativos de solução de conflito são saídas interessantes
para desafogar o judiciário e construir uma sociedade solidária, mas se
faz imprescindível que a interpretação dos princípios seja revista pelos
aplicadores do direito para acompanhar a evolução e os anseios modernos
e atuais.
148 149
3. RECURSO EXTRAORDINÁRIO 895.789 E SEUS REFLEXOS
Recentemente, os princípios da proteção ao empregado e da
irrenunciabilidade a direitos foram reinterpretados por meio da decisão
monocrática do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascki que
determinou que, um acordo coletivo firmado entre sindicato e empresa
prevaleça sobre uma regra da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Para o Ministro, a decisão do TST, que declarou nula cláusula de
extinção de horas in itinere, ainda que houvessem outras benesses aos
empregados, contraria jurisprudência do STF que, segundo ele, “conferiu
especial relevância ao princípio da autonomia da vontade no âmbito do
direito coletivo do trabalho”.
A decisão do Ministro do STF pode ser entendida em diversas
vertentes, vez que se pode concluir que os Sindicatos são competentes e
possuem margem maior de negociação do que até então fixada pelo TST,
podendo tratar de abolição de alguns direitos trabalhistas desde que criadas
outras cláusulas favoráveis ao empregado, aplicando claramente a teoria
do conglobamento.
Ademais, importa aqui refletir que, sendo as horas in itinere espécie
do gênero horas extras, poderiam as negociações coletivas abranger tal
direito nas suas mais variadas naturezas, levando a conclusão de se tratar
de direito disponível.
4. DISPONIBILIDADE DAS HORAS EXTRAS EM UMA NEGOCIAÇÃO
TRABALHISTA
Neste sentido, seriam apenas os limites constitucionais expressos
no artigo 7º, XIII a XVI, que seriam indisponíveis.
148 149
Nesta quadra, as horas extras passam a ser passíveis de negociação,
não só em âmbito coletivo, mas até mesmo em caráter individual, sem que
houvesse rejeição à homologação pelo magistrado pelo argumento de se
tratar de direito indisponível ou verba de caráter alimentício.
Repisa-se que seriam indisponíveis e inegociáveis apenas os direitos
constitucionais expressos em todo o artigo 7º e não toda e qualquer norma
trabalhista, que, por sua vez, perderia o caráter absoluto, de norma de
ordem pública imperativa, para se aproximar do regramento civil.
Desta feita, exalta-se a autonomia da vontade, a boa-fé e a função
social do contrato, citados anteriormente, assumindo destaque na atual
interpretação do Direito do Trabalho e sobre novo enfoque, mais solidário
e equilibrado entre os dois lados da relação empregatícia.
5. AMPLIAÇÃO DE PARÂMETROS CONCILIATÓRIOS NA JUSTIÇA DO
TRABALHO
A decisão do Ministro Teori Zavascki é tão importante que pode
mexer profundamente com a interpretação dos direitos trabalhistas e sua
aplicação pelo Judiciário, que terá que abdicar da visão marxista, capital
x trabalho, para um conceito de parceria e cooperação entre empregado
e empregador, onde repousa o equilíbrio socioeconômico e a análise
hermenêutica do Direito Econômico do Trabalho.
Neste diapasão, a resolução 174/2016 do CSJT, determinou que os
Tribunais Regionais criem Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais
de Solução de Disputas – NUPEMEC-JT, assim como instituam Centros
Judiciários de Métodos Consensuais de Solução de Disputas – CEJUSC-JT,
visando à pacificação social por meio da conciliação judicial.
150 151
A regulamentação da conciliação no âmbito da Justiça do
Trabalho imporá novos posicionamentos aos juristas, principalmente aos
magistrados, que deverão agir observando, inclusive os precedentes por
eles criados e sua repercussão social e econômica.
A negociação e conciliação individual também deverão ser
repensadas sob a ótica acima exposta, sob pena de se obstaculizar o
propósito da resolução 174/2016 do CSJT, não podendo o magistrado impedir
a manifestação da vontade a uma composição judicial, sob o argumento da
hipossuficiencia do empregado.
A decisão do STF corrobora a iniciativa do CSJT, possibilitando ao
magistrado ampliar a possibilidade de negociação e efetivar a conciliação
sem receio de ferir algum direito subjetivo indisponível, podendo justificar
sua decisão por meio de precedentes judiciais, na forma exposta pelo
NCPC/2015.
Ressalta-se que o precedente judicial oriundo do RE 895.759 pode
ser afastado pelo juiz, desde que utilize métodos para tanto, como overuling
ou distinguishing.
De qualquer forma, a retomada do poder pelos Sindicatos faz
ressurgir a reflexão sobre a ratificação da convenção 87 da Organização
Mundial do Trabalho que versa sobre a liberdade sindical.
6. CONCLUSÃO
Por fim, criticando a posição supracitada de Carlos Henrique Bezerra,
o processo do trabalho, assim como qualquer outro processo, não é fim e
sim meio, instrumento ou método de se buscar a jurisdição, exigindo um
150 151
papel mais ativo do órgão jurisdicional na criação do Direito, expandindo
e consagrando os direitos fundamentais que impõem um conteúdo ético
mínimo, que respeite a dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS
ALBINO DE SOUZA,Washigton Peluso. Conferência realizada em 07 de
dezembro de 1995, no TRT da 3ª Região, disponível em: http://as1.trt3.
jus.br/bd-trt3/bitstream/handle/11103/3937/washington_peluso_direito_
economico_do_trabalho.pdf?sequence=1
ALBINO DE SOUZA, Washington Peluso. Primeiras linhas de Direito
econômico. Editora São Paulo: LTr, 1999.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito processual do trabalho. 8.
ed. São Paulo: LTr, 2010
SARMENTO, Daniel. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais
no direito comparado e no Brasil. Salvador: Editora Jus Podivm.
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 8. ed. São
Paulo: LTr, 2009.
DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 9. ed. Bahia: JusPodivm,
2008.
TRABALHO, Academia Brasileira de Direito do. A valorização do trabalho
autônomo e a livre-iniciativa / Coordenação de Yone Frediani. Porto Alegre:
Magister, 2015.
tst.jus.br Tribunal Superior do Trabalho
trt3.jus.br Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região
stf.jus.br Superior Tribunal Federal
cnj.jus.br Conselho Nacional de Justiça
csjt.jus.br Conselho Superior da Justiça do Trabalho
[1] LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito processual do trabalho.
8. ed. São Paulo: LTr, 2010. P.84
152 153152
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POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA – UM ESTUDO REFLEXIVO SOBRE A PERMANÊNCIA DE VIVER SEM SER VISTO PELO ESTADO
Ramani Rodrigues de Araújo Sampaio - Formanda em Direito da Faculdade Ruy Brabosa Devry Brasil. Autora.
Ana Maria Seixas Pamponet - Doutora em Direitos Humanos e Desenvolvimento (UPO- ES)/ UFPB. Mestre em Administração. Pedagoga - Professora de Direito da Faculdade Ruy Barbosa e Unifacs. Pesquisadora da UCSAL e FCT- PT. E-mail: [email protected].
Resumo: O artigo teve como objetivo discutir a ausência do Estado
quanto aos moradores em situação de rua, apresentando os múltiplos
aspectos que o levaram a tal opção e os impactos no afastamento das famílias.
O direito a moradia como direito fundamental, assegurado na Constituição
Federal não chega às populações excluídas da sociedade, impossibilitando
o fortalecimento de uma conjuntura social, política, jurídica e econômica
que possibilite a saída da extrema pobreza garantindo a segurança, a
defesa física e a proteção à sua existência, que poderia ser favorecida pela
fixação de uma residência como referência ao princípio da cidadania.
A dignidade da pessoa humana, é um valor supremo, não podendo ser
resguardado nessa situação como direito, já que na rua a obscuridade, a
sujeira, insegurança e incerteza fazem parte do cotidiano dessa população.
Assim, sem o Estado, as possibilidades de transformação dos moradores em
situação de rua dificilmente se modificarão, demonstrando que a cidadania
é uma condição que não se pode tirar do ser humano, mas não poderá ser
construída e resguardada que não seja pela via do poder público em oferecer
152 153
um mínimo para garantir a dignidade da pessoa humana. A reflexão é: que
pertencimento como ser humano digno essa população tem para o Estado-
nação?
Palavras-chave: Estado. Direitos Fundamentais. Dignidade Humana.
Cidadania.
This article has as achievement to discuss the absence of attention
of the State to the roofless people, presenting several aspects that have
made them come with this position and the impacts it brings to these
people that live away from their families. The right for a place to live in as
a fundamental right, presented on the Federal Constitution, is not reaching
those who are excluded from the society, making it difficult to bring them
a social, political, juridical and economic juncture which would help them
to have a better life with security, physical defense and protection for their
existence, and it could benefit them, If they had a permanent place to stay
such as a reference for the principle of citizenship. The dignity of a human
being is an important value, it may not be protected considering this present
situation, living on street in the obscurity, dirty, lake of safety and the
uncertainty being part of the quotidian of this population.There by, without
the State, there would hardly be possibilities of change for those people`s
lives, it demonstrates that citizenship is a condition that could not be taken
away from a human being, but won’t be able to be built or protected, as it
supposed to be, if it isn’t through the State authority in offering, at least, the
minimum to guarantee the dignity of people.
The reflexion is: what sense belonging, as dignified human beings,
is this population for the nation – state?
Keywoords: State. Fundamentals right. Human dignity. Citizenship
1. INTRODUÇÃO
Em meio a uma sociedade pautada pela desigualdade e injustiça
social e diante da significativa valorização do capital em detrimento do
154 155154 155
respeito aos Direitos não alienáveis do homem, a população em situação de
rua muitas vezes é classificada como uma das mais tocantes manifestações
do conjunto social, haja vista ,sua posição de total vulnerabilidade e
instabilidade social, sofrendo corriqueiramente práticas de agressividade
e violência que denotam a indiferença que está vigente na sociedade
brasileira nos dias contemporâneos.
A finalidade do artigo, consiste em discutir a situação da população
em situação de rua, sendo esses, considerados como parcela excluída
e discriminada da sociedade e, os reais motivos que os levaram a viver
nessa conjuntura de pobreza, revelando como a moradia é uma questão
fundamental para a vida de qualquer pessoa, sendo considerados invisíveis
perante a sociedade e ao Estado, que não oferecem a esses indivíduos a
devida proteção e garantia de seus direitos, tornando as políticas públicas
precárias e insuficientes em meio a tamanha desigualdade.
O tema escolhido é de interesse social, demonstrando a negligência
da sociedade e do Estado em face da população em situação de rua, que
além de viverem em uma posição precária ainda padecem de preconceito
e extrema agressão.
O Estado materializando a moradia para indispensavelmente todos,
estaria realizando o direito à moradia e consequentemente solidariedade,
fato esse, que não ocorre como política pública.
A população em situação de rua é uma manifestação globalizada
e são cidadãos de ambos os sexos, de diferentes idades, solteiros, casados,
sobrevivendo sozinhos, com amigos ou com familiares vindos de diversas
regiões do país.
Percebe-se que, essa população não é reconhecida como sujeitos
de direitos e valores e residem como seres invisíveis, ainda que deva
ser classificada como sujeitos detentores desses direitos e deveres como
qualquer outra pessoa. Esses indivíduos vivem fora da conjuntura social
e a pobreza e escassez são dois elementos que mais impulsionam para a
instabilidade social.
154 155154 155
A própria natureza esclarece a indispensabilidade de um lar para
o ser humano, pois é de certo que nenhuma criatura vive sem um lugar de
referência. O sujeito que tem sua casa, tem sua individualidade conservada
e por consequência tem mais condições de efetuar um papel digno e
meritório na sociedade.
É de essencial importância um lar para a concretização dos direitos,
pois o mesmo traz ao indivíduo acesso a saneamento, higiene pessoal e
endereço, sendo a moradia uma consolidação dos direitos sociais.
Nesse sentido, temos a habitação como mecanismo fundamental
para a realização da cidadania, e a prestação do direito à moradia propicia
ao ser humano o gozo de uma vida de respeito e desenvolvimento, em
que essa diretriz está intrinsecamente conexa com os demais direitos
fundamentais e particularmente com o princípio da dignidade da pessoa
humana.
A temática a ser delineada, tem por suporte o caráter humano do
direito à moradia partindo da premissa de que, nenhum ser humano pode
desfrutar de uma vida plena sem o seu repleto gozo.
A falta de um teto eleva os riscos de saúde desse grupo, que se
torna um desafio para as políticas públicas, uma vez que as condições de
vulnerabilidade vivenciadas pelas pessoas que vivem nas ruas, vinculadas
às questões psicossociais, acarretam sofrimentos e prejuízos físicos e
emocionais.
Dessa forma discutir a dignidade da pessoa humana e o direito a
moradia, torna-se fundamental para consolidar os questionamentos de
uma sociedade contemporânea que não vê juntamente com o Estado a
situação precária e excludente dessa população.
2. A PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA
Esse grupo se apresenta com certa heterogeneidade e realidades
variadas, porém, com a característica da pobreza como ponto marcante
156 157
na sua existência. Os vínculos familiares geralmente foram desfeitos e a
ausência de uma residência fixa promove um maior distanciamento dele
com a sociedade e a família.
É na rua que consegue seu sustento, com temporalidade definida ou
não e essa realidade demonstra uma total ausência do Estado e expõe de
forma clara os aspectos da exclusão social e a inadequação dessas pessoas
à realidade econômica, já que possuem pouca escolaridade ou qualificação
profissional.
Para Pamponet (2010, p 26): o que se constata é que sem a superação
do capitalismo, a economia e a sociedade não chegarão a se afirmar e se
consolidar, principalmente nas sociedades ditas “periféricas”, constatando-
se assim, que os moradores em situação de rua apresentam poucas chances
de mudança social vivendo nessa realidade.
Francisco (2016, s.p.) faz uma análise dos dados estatísticos em
relação a população em situação de rua no Brasil:
Os municípios brasileiros que possuem mais moradores em situação
de rua são: Rio de Janeiro (4.585), Salvador (3.289), Curitiba (2.776), Brasília
(1.734), Fortaleza (1.701), São José dos Campos (1.633), Campinas (1.027),
Santos (713), Nova Iguaçu (649), Juiz de Fora (607) e Goiânia (563). Entre
a população em referência predominam as pessoas do sexo masculino
(82%), com idade entre 25 e 44 anos (53%) e que nunca estudaram ou não
concluíram o ensino fundamental (63,5%). Em relação à cor, 39,1% são
pardos, 27,9% negros, 29,5% brancos, 1,3% indígenas, 1% amarelo oriental
e 1,2% de cor não identificada.
Para Santos (2009, p. 46) moradores de rua são seres humanos
que vivem afastados da conjuntura social, são vidas sem direito à saúde,
sem direito a médicos, sem remédios e sem direito à moradia, sendo sua
casa a rua. Não contam com saneamento básico, higiene, alimentação, e
consomem qualquer tipo de alimentos, provenientes dos lixões. São pessoas
sem acesso à educação, ao emprego, em sua maioria não tem instrução nem
qualificação, lhes faltando oportunidades. Carecem de segurança, lazer e as
156 157
drogas lhes debilitam e fazem parte do seu cotidiano.
As precárias condições prévias à moradia nas ruas, são maiores do
que se podem prever, tendo em vista um dos problemas sociais que é a
pobreza, fazendo com que as pessoas busquem nas ruas uma saída, um
refúgio para a situação deplorável em que elas vivem.
O corpo do morador de rua além de seu território de circulação,
representa juntamente com seus poucos pertences, sacolas e objetos, seu
território existencial, a marca de sua expressão.
Afirma Vicente (1995, p.25) que:
o mau cheiro de quem não toma banho na situação de
rua é uma estratégia de sobrevivência, é uma couraça
protetora do corpo. (…) o mau cheiro lhes é útil, pois
funciona como defesa e como proteção, afastando as
pessoas. (…) O corpo é o último território que sobrou
para aquela pessoa; ela perdeu, do ponto de vista do
tempo, o passado, porque perdeu o direito de ter uma
raiz, de ter um lugar no mundo. Ela vai perambular de
cidade em cidade ou dentro da mesma cidade por vários
locais e vai perdendo essa coisa fundamental, o direito
de ter memória, de pertencer a uma comunidade.
Normalmente, o que ocorre com o morador de rua é a total
inexistência de um território de proteção, já que a casa é o lugar no
mundo, o primeiro universo, o aconchego e proteção, desde o nascimento
do homem. Sua terra é improvisada à beira da calçada ou sob viadutos e
marquises, demonstrando que as instalações são amplamente precárias,
falta-lhe infraestrutura, redes de esgotamento sanitário, em que os dejetos
se misturam às atividades cotidianas, ocasionando o adoecimento.
Para Santos (2009, p. 25):
viver nas ruas implica em obstáculos cotidianos como
solidão, dificuldades de manutenção da higiene e
falta de privacidade. O indivíduo necessita criar uma
158 159
nova sociabilidade, com estratégias de sobrevivência.
Conversar, tomar banho, usar roupas, comer, dormir
passa a depender de uma rede de sobrevivência a ser
criada. Descobrir locais e horários de distribuição de
comida, onde tem um cano estourado, uma fonte para a
higiene pessoal, qual o melhor bairro para passar o dia
e qual o melhor para dormir, enfim, um aprendizado
que leva tempo.
Há quem pense que as pessoas que vivem nas ruas, vivem cem por
cento do seu tempo sem fazer nada, mas não, muitos indivíduos exercem
atividades, para que o mínimo seja suprido. Muitos são catadores de
materiais recicláveis, são flanelinhas e outros trabalhadores da construção
civil, etc.
Nas ruas os moradores ficam muito expostos e são incessantemente
escravos de violência por parte de outros moradores de rua, por razões
pessoais ou por disputas territoriais.
Para Santos (2009, p. 24):
a mentira é um tanto quanto frequente na vida dos
moradores de rua, que por estarem distanciados
das pessoas que os conhecem e por não conviverem
com as pessoas por muito tempo, podem mentir sem
ninguém para desmentir, em troca de favores, piedade,
misericórdia, simpatia e até mesmo como mecanismo
de defesa e proteção.
É notório que cada caso é um caso único e são inúmeros os fatores
que levam as pessoas a saírem de casa e procurarem as ruas, estando as
causas geralmente interligadas, apresentando motivos de ordem econômica,
afetiva e comunitária”.
Para Escorel (1999, p. 103) “o afastamento da família, elemento
fundamental de apoio material, de solidariedades e de referência no
158 159
cotidiano, permite uma primeira e basilar configuração da população
de rua: é um grupo social que apresenta vulnerabilidade nos vínculos
familiares e comunitários”.
Para compreensão de Santos (2009,p.28) “relacionamentos
familiares são fortes desencadeadores para a situação de rua, no entanto,
os desentendimentos sempre se apresentam difundidos entre violência
doméstica, abusos, desemprego, perda da habitação, álcool e drogas,
problemas psiquiátricos, divórcio, adultério, expulsão de casa, entre
outros”. Esses determinantes sociais impulsionam o desentendimento
familiar, deixando para alguns indivíduos a rua como única alternativa.
Antonelli (2012, s.p.) alega que:
o senso comum aponta as drogas como um fator
preponderante para que parte da população decida
viver na rua, mas os especialistas afirmam que o vício
é consequên cia e não causa, já que as drogas são uma
estratégia de sobrevivência para quem está na rua.
É uma forma de tentar fugir da realidade em que se
encontram, anestesiando a amargura, o frio, a falta de
esperança e a indignidade.
Apesar de serem considerados como um grupo homogêneo, os
indivíduos em situação de rua são pessoas de realidades variadas. Até
mesmo a pobreza que, habitualmente é vinculada ao grupo, não está
vigente em todos os casos.
3. O PAPEL DO ESTADO NA CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS
Os Direitos Fundamentais, são reconhecidos universalmente por
meio de tratados, pactos e declarações tanto nacionais quanto internacionais,
com o objetivo de não ir de encontro as previsões constitucionais e garantir
que esses direitos sejam abarcados a todos os indivíduos. Esses Direitos
160 161
encontram-se em todas as organizações tanto sociais, quanto políticas, e
não poderão ser limitados por nenhuma instituição governamental.
“No âmbito da assim denominada dimensão negativa
ou daquilo que também tem sido chamado de uma
função defensiva dos direitos fundamentais, verifica-
se que a moradia, como bem jurídico fundamental,
encontra-se, em princípio, protegida contra toda e
qualquer sorte de ingerências indevidas. O Estado,
assim como os particulares, tem o dever jurídico de
respeitar e de não afetar a moradia das pessoas, de tal
sorte que toda e qualquer moradia que corresponda
a uma violação do direito a moradia passível, em
princípio, de ser impugnada em juízo, seja na esfera do
controle difuso e incidental, seja no meio do controle
abstrato e concentrado de constitucionalidade, ou
mesmo por intermédio de instrumentos processuais
específicos disponibilizados pela ordem jurídica. É
também precisamente está a dimensão- a função
defensiva do direito a moradia – a que se referem as
diretrizes internacionais acima mencionadas, quando
utilizam os termos “respeitar” e “proteger”, embora a
proteção também envolva ações concretas (normativas
e fáticas) de tutela da moradia contra ingerências
oriundas do Estado ou de particulares, tudo a reforçar
íntima conexão entre a dimensão negativa e positiva
dos direitos fundamentais”. (SARLET, 2008, p.53)
Os direitos são elaborados em um enredo célebre, em momentos
importantes do contexto histórico da nossa sociedade, e quando são dispostos
na Constituição, se tornam Direitos Fundamentais. Eles não caducam, não
se desfazem no tempo, sendo infindáveis e perduráveis e dirigidos a todos as
criaturas humanas, independente de raça, religião, cor, credo, estereótipo,
160 161
nacionalidade e posicionamento político. Não são violáveis, não podendo
ser desacatados, em momento nenhum, por nenhum individuo, nenhuma
autoridade ou lei infraconstitucional. O poder público deve administrar
para que esses direitos sejam executados a todos, sob pena de sansão.
Para Francisco (2016) “a ausência do Estado ao longo dos anos,
em relação a população em situação de rua, fez com que cada vez mais
existissem organizações, instituições religiosas e até mesmo um grupo
independente de indivíduos que realizam ações sociais, para que assim
atuassem, fortemente no intuito de suprir de alguma forma, mesmo que
mínima, as suas necessidades básicas. Sendo assim, quanto mais esses
Direitos Fundamentais são negados pelo Estado a essa parcela mínima
da sociedade, mais existirão indivíduos que vivem nas ruas, pois uma vez
estando nessa condição é quase impossível que seja revertida se não houver
a intervenção do Estado.
A falta de interesse do governo com essa fração, fez com que
influenciasse na conduta da sociedade para com os mesmos, fazendo com
que sejam tratados com piedade, desprezo, violência, repressão, estupidez
e muita agressividade, permitindo que a sociedade se torne cada vez mais
desigual, por causa da omissão do Estado.
Para Souza (2004, p. 65) “o dever do Estado em garantir os direitos
fundamentais, não é apenas para os menos necessitados, e sim, para toda a
população pertencente a nação, pois é necessário igualdade e oportunidade
para todos”. O que aqui faz-se necessário demonstrar é que essa parcela
que vive permanentemente nas ruas, não tem recursos próprios para que
possam efetivar o seu sustendo, como muitos cidadãos de outros níveis
sociais conseguem.
Os Direitos fundamentais que o Estado deveria promover, mas não
o faz, são direitos do homem, sagrado, atemporal, intocável e global.
Assegura Souza (2004, p.65), “que todos os direitos fundamentais são
necessários para uma vida digna do indivíduo, até porque o mesmo pode
ter uma habitação, mas se não tiver educação isso dificultará conseguir um
162 163
emprego que possa se sustentar e sustentar sua família, ficando o mesmo
à mercê da perda dessa moradia. Esses direitos estão intimamente ligados,
e apenas um direito fundamental garantido (no caso a moradia), não é
suficiente.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, diz em
seu artigo 3°, III, como objetivo da Pátria, a extirpação da pobreza, bem
como a diminuição da desproporção e desigualdade social, e a redução da
marginalização presente no nosso país, sendo total dever do Estado garantir
o que assegura a nossa Constituição. Por que não o faz, a população em
situação de rua está cada vez maior na cidade de Salvador. ( BRASIL,1988)
Para que uma sociedade seja livre, justa e igualitária, é necessário
que o Estado cumpra com o seu poder-dever, pois ele existe para consagrar,
proteger e acima de tudo defender o ser humano, proporcionando uma
conjuntura social, política, jurídica e econômica, que faça com que o mesmo
possa atingir as suas finalidades com a mais extensa defesa e proteção,
Preceitua Gonçalves (2015, p. 10):
A complexidade para o Estado desenvolver e aplicar
a política pública habitacional aumenta com o passar
dos tempos, pois para efetivar o direito à moradia
aos cidadãos é preciso um grande trabalho, tanto
do Estado quanto da sociedade, no intuito de, no
mínimo, diminuir as desigualdades sociais criadas
pela política de urbanização. Vez que, o Estado,
juntamente com os Municípios não podem eximir-se
de suas responsabilidades constitucionais, já que a
Constituição, delegou aos Municípios a competência de
criar diretrizes para a implementação de programas
para construções de moradias.
Entendemos, que na atualidade, mais do que em qualquer outra
época, essa problemática da falta de moradia para quem necessita vem
assolando de forma acelerada a sociedade, buscando-se constantemente o
162 163
reconhecimento desses Direitos Fundamentais, que por motivos diversos,
ou até mesmo desconhecidos, não são protegidos e tutelados pelo Estado
Democrático de Direito.
Gonçalves (2015, p.2) afirma que um real planejamento do Estado
e políticas públicas eficazes seria o meio mais viável e capaz, para que
todos os Direitos Fundamentais fossem garantidos para os residentes desta
nação, sem exceção.
4. DIREITO À MORADIA
O direito à moradia apropriada e adequada foi assegurada como um
direito humano, em 1948, na Declaração Universal dos Direitos Humanos,
e logo mais foi convencionada em diversos tratados, sendo cabível a todo
ser humano em qualquer lugar que esse esteja caracterizando direito
fundamental para a vida de qualquer pessoa.
Para Souza (2004, p. 61):
A moradia adequada abarca muito mais do que uma
casa para regressar, ela integra um modelo de vida
adequada, não se limitando apenas a um teto e quatro
paredes, mas sim o direito que todos os homens, todas
as mulheres, todos os jovens, todos os idosos, todas as
crianças e todos os indivíduos sem exceção, tenham
acesso a um lar, com o mínimo de dignidade e paz.
Souza (2004, p.61) certifica que o direito à moradia é um dos direitos
mais importantes, pois morar é tão fundamental quando se vestir, comer,
respirar e se locomover, sendo um Direito conquistado com muita luta, por
muitos e muitos anos. Está assegurado no art. 6° da Constituição da República
Federativa do nosso país, de 1988: “são direitos sociais a educação, a saúde,
o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção
à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição”. (Brasil, 1988).
164 165
Para Piovesan (1997, p. 161) o Direito à moradia adequada é um
modo de se tutelar os direitos econômicos e sociais, sendo a privacidade o
direito de reservar a própria vida particular e privada.
Afirma Trombini (2016) que os componentes da moradia adequada
devem englobar vários aspectos, são eles: habitar em uma localidade estável,
que não traga perigo de transferência ou retirada indevida do cidadão
daquele local; ter acesso livre e direto a bens públicos, como saneamento
básico, coleta de lixo e etc.; obtenção a um meio ambiente estabilizado;
habitar em um local conciliável com as condições financeiras da família;
local que seja minimamente habitável no sentido de não trazer riscos da
chuva, sol e outro fenômenos naturais; e por fim, um dos componentes
para a moradia adequada é que ela seja em um local que as pessoas tenham
acesso a transporte público, saúde e escolas.
É de certo que, existe no Brasil, inúmeros indivíduos que pairam pelas
ruas, residindo embaixo de marquises, viadutos, calçadas, se apropriando
de áreas consideráveis inabitável, porém com a falta de escolha, fazem
desses locais, os seus lares e estabelecem as suas moradias.
Gonçalves afirma (2015, p. 9):
Como se vê, ao lado da alimentação, trabalho, saúde,
dentre outros direitos, a habitação figura no rol das
necessidades mais básicas do ser humano. Para cada
indivíduo desenvolver suas capacidades e até se
integrar socialmente, é fundamental possuir morada,
já que trata-se de questão relacionada a própria
sobrevivência, pois dificilmente alguém conseguiria
viver por muito tempo exposto, a todo momento, aos
fenômenos naturais, sem qualquer abrigo.
Sendo assim, a população em situação de rua não está isenta de
riscos, pois na rua eles não estão protegidos de ameaças do vento, da chuva,
do sol e de outros fenômenos climáticos e agentes da natureza, que uma
164 165
residência lhe proporcionaria, trazendo assim total risco a saúde dessas
pessoas. São negados aos mesmos instrumentos básicos de sustentação
física e moral, que lhe é indispensável a todas as diversas fases da vida.
Para Gonçalves (2015, p.2) o “Estado tem como compromisso
implantar políticas públicas eficientes, com uma grande disposição
financeira e realizar ações sólidas totalmente focada a retirada da população
em situação de rua, das ruas”, bem como, não deixar que moradores vivam
em situação de risco e combater à erradicação de favelas, para que cada
vez mais sejam eliminadas. De forma direta e/ou indireta todos devem ter
ingresso a uma moradia digna e adequada.
Já que o Estado não oferece a moradia adequada, no seu conceito
fundamentado, faz-se imprescindível a edificação e distribuição de casas
populares, que sejam construídas e entregues de forma menos oficial e
burocrática, afinal a moradia também é garantia de honra e dignidade para
o cidadão, se não for a maior delas.
A questão da habitação é central por que dela depende várias outras.
Não se tem acesso a saúde ou trabalho sem que se tenha para onde retornar
no fim do dia.
5. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o
conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à
vida.
Para Plácido e Silva (1967, p. 526):
dignidade é a palavra derivada do latim dignitas
(virtude, honra, consideração), em regra se entende a
qualidade moral, que, possuída por uma pessoa serve
de base ao próprio respeito em que é tida: compreende-
se também como o próprio procedimento da pessoa
166 167
pelo qual se faz merecedor do conceito público; em
sentido jurídico, também se estende como a dignidade
a distinção ou a honraria conferida a uma pessoa,
consistente em cargo ou título de alta graduação; no
Direito Canônico, indica-se o benefício ou prerrogativa
de um cargo eclesiástico.
Diante o exposto acima, podemos dizer que a dignidade da pessoa
humana é uma atribuição espiritual e moral pertinente a pessoa, ou seja,
a todo o ser humano é atribuído esse preceito, estabelecendo-se como
princípio maior do Estado Democrático de Direito.
Desta maneira determina Sarlet (2007, p.62) ao conceitualizar a
dignidade da pessoa humana:
[…] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade
intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte
do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido,
um complexo de direitos e deveres fundamentais que
asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato
de cunho degradante e desumano, como venham a
lhe garantir as condições existenciais mínimas para
uma vida saudável, além de propiciar e promover
sua participação ativa e corresponsável nos destinos
da própria existência e da vida em comunhão com os
demais seres humanos.
Entende-se que a rua não oferece dignidade a nenhuma pessoa, para
que dali se faça a sua morada, pois não supre nenhuma das necessidades
básicas do cidadão. Os homens que ali vivem se sentem cada vez mais não
possuidores de respeitabilidade, honra, decência e a própria dignidade.
“Com efeito, sem um lugar adequado para proteger
a si próprio e a sua família contra intempéries, sem
um lugar para gozar de sua intimidade e privacidade,
166 167
enfim, de um espaço essencial para viver com um
mínimo de saúde e bem-estar, certamente a pessoa não
terá assegurada a sua dignidade, aliás, a depender das
circunstancias, por vezes não terá sequer assegurado
o direito a própria existência física, e, portanto, o seu
direito a vida. Não é por outra razão que o direito à
moradia, também entre nós – e de modo incensurável
– tem sido incluído até mesmo no elenco dos assim
designados direitos de subsistência, como expressão
mínima do próprio direito a vida (SARLET, 2008, p.45).
O preconceito da população para com as pessoas em situação de
rua, é um dos aspectos fundamentais para que os mesmos não se sintam
com a valoração que merecem, assim como qualquer outra pessoa, pois
em tempo algum e por motivo nenhum o homem esteve desassociado da
sua dignidade. Uma morada para qualquer ser humano resgata de fato
a dignidade humana, que é muito pouco respeitada, para quem não é
proprietário de um lar.
Além de todos os aspectos que o fizeram estar nas ruas e além de
todo sofrimento por não terem um lar para habitar, o aspecto psicológico
das pessoas em situação de rua é também um fator fundamental que os
fazem não se sentirem donos de dignidade. Muitos seres os veem não como
pessoas e sim como números e a tendência, por conta da omissão do Estado
para com essas pessoas, é que evolua cada vez mais.
Para Francisco (2016, s.p.) a sociedade estende a essas pessoas em
situação de rua estereótipos e marcas depreciativas, que os fazem sentir
vergonha de si mesmos e consequentemente negando para si todos os
atributos pejorativos existentes. Ou seja, uma residência, por menor
que seja, os devolve a dignidade que, resgata a esperança da luta pela
sobrevivência.
Pessoas que vivem nas ruas, sejam elas homens, mulheres,
crianças, adolescentes, e/ou idosos, mantem-se na obscuridade, na sujeira,
168 169
na incerteza, na falta de assepsia e além de tudo isso, na total indignidade.
São muito poucas as pessoas que consegue algum tipo de emprego, afinal,
sem o mínimo de dignidade, nenhum indivíduo e nenhuma empresa irá
contrata-los para qualquer que seja o emprego.
6. CIDADANIA
O Direito à cidade estende a habitual perspectiva sobre a melhoria
da qualidade e da capacidade de vida das pessoas, centralizado na moradia
e no bairro, envolvendo também a qualidade de vida dos seus arredores
rurais, como uma forma de proteger essas pessoas que na cidade vivem. A
cidade deve ser um ambiente de produção e realização de todos os direitos
do homem, todas as liberdades fundamentais e todos os direitos humanos.
A cidade deverá assegurar a todos os habitantes, a sua dignidade,
integridade, respeito, bem-estar tanto individual, quanto coletivo, de todos
os seres, em total estado de equilíbrio e igualdade, sendo assim, todo o
indivíduo tem o direito de ter uma cidade sem diferenciação de qualquer
tipo de gênero, sem discriminação de raça, sexo, cor e opção religiosa.
Entendemos que a cidadania pode ser conceituada como condição
do cidadão, que está no pleno exercício dos seus deveres e direitos, que
estão intimamente relacionados e a efetivação destes auxiliam em uma
sociedade estabilizada e igualitária.
Dallari (1998, p. 14) conceitua:
a cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à
pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida
e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está
marginalizado ou excluído da vida social e da tomada
de decisões, ficando numa posição de inferioridade
dentro do grupo social.
Entende que cidadania se constitui no enquadramento do indivíduo,
no sentido de pertencer a sociedade estatal, como possuidor dos direitos
168 169
fundamentais, da honra como ser humano, da agregação participativa, com
a consciência que abraça compromissos e respeito à dignidade da outra
pessoa, afim de auxiliar para o progresso e evolução da totalidade.
Para Piovesan (1999, s.p.) em um Estado Democrático de Direito é
preciso que todos os direitos e deveres presente na Constituição da nossa
República, sejam tutelados, para todos, sem distinção, porque todo nós
somos iguais em direito, e a cidadania é uma condição pertencente do
cidadão que ninguém pode tirar. O que se questiona aqui, não é a falta
de cidadania que esse cidadão tem para com a sua cidade, e sim a falta de
pertencimento a um Estado-nação.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao término desse trabalho, demonstra-se que os direitos
fundamentais são tão essenciais quanto às liberdades individuais, pois,
a perfeita concretização de um está absolutamente associada com a
realização e efetivação do outro. Entende-se que o direito à moradia,
assegurado constitucionalmente dentre os direitos fundamentais, vai
muito além da esfera secundária que lhe é facultada, à mercê do interesse
de quem é responsável por sua aplicação. Este é direito indispensável
para que o indivíduo desfrute de forma plena do princípio da dignidade
humana, na proporção em que a ausência de um mínimo existencial
impossibilite o usufruto de uma vida digna. Sua indispensabilidade consiste
na inevitabilidade que os outros tantos direitos têm em relação à sua
existência, pois, a sua prestação engloba direitos como a vida, a segurança,
educação, transporte, trabalho, meio ambiente, saúde, desenvolvimento,
lazer e dentre diversos outros.
Os direitos fundamentais são sancionados com o propósito de
amparar a dignidade da pessoa humana, sendo estes responsáveis por
desempenhar aspetos específicos da dignidade que agem diante esses
direitos como valor unificante.
170 171
O Estado tem se ausentado em cumprir o mínimo existencial, e
demonstra a sua inércia quanto às políticas públicas voltadas à moradia
como direito fundamental. Percebeu-se que a existência de uma residência
fixa, proporcionaria uma referência social, bem como propicia a segurança,
respeito e acesso aos aspectos mais básicos da existência humana, como:
água, esgoto, luz e relações no sentido social.
O direito à vida, à integridade física, à liberdade e à igualdade, está
intimamente relacionado a dignidade. Enquanto princípio, desempenha
papel de matriz jurídico-positiva dos Direitos fundamentais, atribuindo-
lhes coerência infindável.
Conclui-se que para que o indivíduo tenha uma vida de mínima
dignidade, todos, principalmente as pessoas em situação de rua, que
nada tem, devem receber igual respeito por parte dos demais membro da
coletividade, assim como por parte do Estado, haja vista, que a dignidade
é característica pertinente ao ser humano, mesmo quando este não é
habilitado para exercitar a sua autonomia em potencial.
Constata-se que em relação ao direito à habitação, o Estado está
submetido a quatro níveis de imposições governamentais, sejam elas,
proteger, promover, respeitar e preencher, pois o que vemos na realidade
é que o direito a moradia está muito mais assegurado no papel (na
Constituição Federal do Brasil de 1988) e em outras legislações posteriores,
mas, na prática inexiste tal ação.
Além disso, a moradia é um fenômeno multifacetado e um direito
humano, sendo assim, requer a existência de políticas públicas para ser
respeitada.
A população em situação de rua sofre cotidianamente com a falta
de moradia, considerando-se que quanto maior a desigualdade social, mais
acentuados tendem a ser a problemática da moradia. Além de promover
auxílios e programas residenciais para amparar essas pessoas que vivem
nas ruas, é imprescindível que o governo realize medidas de distribuição
170 171
de renda com o intuito de minimizar essas desigualdades permanentes e o
impacto delas.
Desse modo, define-se que as condições de habitação e de vida
desapropriadas, inadequadas e deficientes, são inevitavelmente e
profundamente relacionadas com as mais altas taxas de mortalidade e
morbidade, sendo ilusório pensar que as causas que levam as pessoas a
habitarem as ruas são singulares.
Sendo assim, a rua requerer maior concentração e atenção dos
agentes públicos e da sociedade civil para com essa questão social. Completa-
se que o cotidiano das ruas deve ser verificado na sua individualidade, e
para tanto é necessário destacar-se a visibilidade das trajetórias que fogem
a superfície do que é constantemente visível para nós, tendo em vista que a
vida não deixa de ser afetada por aquilo que os olhos não veem.
NOTAS:
[1] Formanda em Direito da Faculdade Ruy Brabosa Devry Brasil. Autora.
e-mail: [email protected]
[2] Doutora em Direitos Humanos e Desenvolvimento ( UPO- ES)/ UFPB.
Mestre em Administração. Pedagoga. Professora de Direito da Faculdade
Ruy Brabosa e Unifass. Pesquisadora da UCSAL e FCT- PT. e-mail: Pamponet.
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174 175
A INCONSTITUCIONALIDADE DAS COTAS RACIAIS NAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE ENSINO SUPERIOR
Ailton Antunes Nogueira Júnior - Advogado civilista e empresarialista, formado no Centro universitário UNIFAMINAS, autor de diversos artigos científicos sobre direito civil, empresarial, constitucional e eleitoral. E-mail: [email protected].
Resumo: O presente artigo científico tem por intento analisar
e discutir a respeito da real finalidade das cotas raciais de ingresso nas
instituições públicas de ensino superior, analisando referido sistema sob
uma perspectiva discriminatória. Para melhor compreensão do tema
em estudo, será realizada uma abordagem geral e conceitual a respeito
deste processo de seleção, ponderando a existência de contraposição aos
princípios constitucionais básicos.
Palavras-chave: Cotas. Universidades. Vestibular. Discriminação.
Raça.
Abstract: This present article has goal talk about the finality of
racial quotas to ingress in the Brazilian universities, analyzing this system
according a discriminatory perspective. For a better understanding it will
be realized an general study about this selection process and observe the
existence of contraposition to the basic rights guaranteed in the Constitution.
Keywords: Quotas. Universities. Entrance exam. Discrimination.
Race.
176 177
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo científico tem como intento realizar um estudo
aprofundado a respeito do processo seletivo nas universidades públicas
brasileiras de ensino superior, tendo como ponto primordial a divisão
dos ingressantes de acordo com sua etnia. Para a elaboração do trabalho
em tela, será ponderado o condão discriminatório do sistema de seleção
vigente, sendo trazidos princípios básicos previstos na Constituição da
República Federativa do Brasil, a opinião crítica de doutrinadores, membros
dos poderes legislativo e executivo, bem como da população brasileira em
geral. Analisando-se o texto Constitucional, visualiza-se que a igualdade
é um dos direitos básicos e fundamentais de qualquer cidadão brasileiro,
seja ele nato ou naturalizado. No Brasil, atualmente, os estudantes que
pleiteiam adentrar nas Universidades federais e estaduais e até mesmo
em algumas faculdades particulares devem realizar o Exame Nacional
do Ensino Médio, popularmente conhecido como ENEM, sendo referido
teste utilizado de maneira variável pelas instituições. Após a realização
do exame supracitado, de acordo com a Lei de Cotas, sancionada no ano
de 2012, as instituições federais de educação superior devem reservar, no
mínimo, cinquenta por cento de suas vagas para estudantes de baixa renda
que tenham cursado o ensino médio em escolas públicas, sendo parte deste
percentual reservado para vestibulandos autodeclarados negros, pardos
e indígenas. A aplicação deste método tem como fulcro gerar igualdade
àqueles que supostamente se encontram em situação de desigualdade para
com os que cursaram o ensino médio em escolas privadas, tal como os
provenientes de raça distinta à caucasiana. Lado outro, é perceptível certa
indignação por grande parte da população brasileira, por entender que,
ao invés de procurar igualar os vestibulandos, o processo implementado
acaba por desigualá-los, mormente no que se refere à separação racial.
Ressalta-se que é quase majoritário o entendimento de que as cotas raciais
não têm alcançado sua real finalidade, que seria a inclusão e a igualdade
176 177
social, sendo certo que as mesmas têm atingido efeito contrário. Imperioso
ressaltar que a Lei 12.711 de 2012, em certo ponto, entra em contrapartida
com os direitos fundamentais previstos no art. 5º da lex matter, posto que
é previsto no aludido dispositivo a igualdade de todos perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza. Dito isto, denota-se a suma importância
de um melhor aprofundamento a respeito do tema em questão, fazendo-se
necessária uma observação das benesses e reveses do sistema de separação
por cotas e, sobretudo, analisar se a adoção de tal política seria, de fato,
uma boa maneira para concretizar a integração do negro no meio social.
No intuito de esclarecer melhor as particularidades trazidas pelo tema, o
presente trabalho científico tem como objetivo principal realizar um estudo
crítico a respeito da adoção da política de cotas raciais, sendo elaboradas
análises conceituais e históricas acerca do tema em discussão, ressaltando
em especial o caráter discriminatório no que se remete à separação daqueles
que pleiteiam adentrar nas instituições públicas de educação superior.
2. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS DA PESSOA HUMANA
2.1 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A Constituição da República Federativa do Brasil é o diploma legal
responsável por criar uma série de normas que visa à instituição de um
Estado democrático de direito, assegurando o exercício dos direitos sociais
e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
justiça e a igualdade como valores de uma sociedade fraterna, pluralista e
sem qualquer tipo de preconceito, conforme descrito em seu preâmbulo.
Neste ínterim, denota-se um artigo dos mais importantes, se não o mais
importante, que elenca os direitos e garantias fundamentais da pessoa
humana, tal qual, o artigo 5º. Em seu caput, este artigo descreve: “Art.
5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a
178 179
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e
à propriedade…”. Dividido em setenta e oito incisos, que se encontram
subdivididos em alíneas e parágrafos, o artigo 5º descreve uma série de
direitos individuais e coletivos que, conforme disposto no art. 60, §4º, IV do
códex em comento, não podem, em hipótese alguma, serem modificados,
sendo tidos como cláusula pétrea. De tal modo, analisando a Constituição
Federal in totum, é incontestável que o Brasil tem, constitucionalmente, o
objetivo primordial de construir uma sociedade livre, justa e solidária, bem
como promover a redução das desigualdades, sem preconceito de raça, ou
qualquer outro tipo de discriminação, conforme dispõe a própria carta
magna, em seu artigo 3º, inciso IV. A Constituição afirma que todos são iguais
perante a lei, contudo, para que dita igualdade seja de fato efetivada, faz-se
necessário um tratamento de maneira igual aos iguais e os diferentes de
maneira diferente, na proporção de suas desigualdades, para que a justiça
seja efetivada. Neste diapasão, é admitida a adoção de ações afirmativas,
no entanto, quais são os limites de tais ações e como seria a melhor forma
de efetivá-las?
1.2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Dentre os princípios e garantias fundamentais elencados no artigo
5º da Constituição Federal, o princípio da igualdade é tido como um dos mais
importantes. Mesmo que seja um princípio eternizado desde os tempos mais
remotos, o princípio da igualdade ainda é dotado de complexidade, tanto
sob os aspectos filosóficos, políticos, sociais, econômicos e jurídicos. “É o
princípio da igualdade um dos de mais difícil tratamento jurídico. Isto em
razão do entrelaçamento existente no seu bojo de ingredientes de direito
e elementos metajurídicos.” (BASTOS, 1995, p. 164). Nesta senda, pode-se
conceituar o princípio da igualdade como um instrumento de concretude
da justiça social, almejando a concretização efetiva da igualdade real, a
eliminação das desigualdades econômicas, sociais, culturais e raciais. A
178 179
igualdade, também intitulada como isonomia é um direito tão importante,
além de estar prevista no preâmbulo da Constituição Federal, é uma garantia
que também se encontra prevista no caput do dispositivo mais importante
da referida carta, conforme anteriormente transcrito. Nessa linha de
raciocínio, Rousseuau classifica os princípios da liberdade e igualdade
como os maiores de todos os bens existentes no ordenamento jurídico
pátrio. “Se indagarmos em que consiste precisamente o maior de todos os
bens, que deve ser o fim de qualquer sistema de legislação, chegaremos à
conclusão de que ele se reduz a estes dois objetivos principais: a liberdade
e a igualdade.” (ROUSSEAU, 2001, p. 51).
É cediço afirmar que a igualdade, em seu sentido meramente
formal, é caracterizada pelo aspecto jurídico, que se encontra devidamente
positivado na lex matter, sendo classificada simplesmente como a igualdade
perante a lei, que em linhas gerais significa “todos são iguais perante a lei”,
consoante se verifica no artigo disposto alhures.
1.3 IGUALDADE FÁTICA E IGUALDADE JURÍDICA
Conforme salientado alhures, seria absolutamente inviável a adoção
de uma mesma política social para toda a sociedade, haja vista o notório
fato de que algumas pessoas se encontram em condições de desigualdade
perante os demais. Desta feita, torna-se plenamente possível o tratamento
desigual para indivíduos que se encontram em condições desiguais,
surgindo assim a distinção entre igualdade fática e igualdade jurídica,
também classificadas como igualdade formal e material, respectivamente.
A igualdade formal, ou jurídica, já retro citada, é compreendida como a
igualdade prevista na lei, devidamente positivada na Constituição Federal.
Já a igualdade material, também denominada igualdade fática, remete-se a
um sentido sociológico, uma vez que não basta tão somente a existência do
dispositivo para que o direito à igualdade seja efetivado. Para se alcançar a
efetividade do princípio da igualdade, necessária se faz a consideração de
180 181
condições fáticas e econômicas, além de certos comportamentos inevitáveis
da convivência humana, sendo que a mera proibição da discriminação não
é suficiente para garantir a igualdade efetiva. Assim sendo, nasceu a tese
supramencionada de que, em virtude das desigualdades concretas existentes
na sociedade, torna-se possível tratar de modo dessemelhante indivíduos
que se encontram em situações desiguais. A doutrinadora Fernanda Lopes
Lucas da Silva, aprofunda o tema em questão com a seguinte passagem:
Igualdade material não consiste em um tratamento sem
distinção de todos em todas as relações. Senão, só aquilo
que é igual deve ser tratado igualmente. O princípio
da igualdade proíbe uma regulação desigual de fatos
iguais; casos iguais devem encontrar regras iguais e, por
isso não devem ser regulados desigualmente. A questão
decisiva da igualdade jurídica material é sempre
aquela sobre os característicos a serem considerados
como essenciais, que fundamentam a igualdade de
vários fatos e, com isso, o mandamento do tratamento
igual, ou seja, a proibição de um tratamento desigual
ou, convertendo em negativo: sobre os característicos
que devem ser considerados como não essenciais e não
devem ser feitos base de uma diferenciação. (SILVA,
2003, p.42).
Ainda sobre o tema, o jurista Luiz Alberto David Araújo, em sua
obra Curso de direito Constitucional, complementa com a presente liça:
A Constituição da República instituiu o princípio da
igualdade como um de seus pilares estruturais. Por
outras palavras, aponta que o legislador e o aplicador
da lei devem dispensar tratamento igualitário a todos os
indivíduos, sem distinção de qualquer natureza. Assim,
o princípio da isonomia deve constituir preocupação
180 181
tanto do legislador como do aplicador da lei. No mais
das vezes a questão de igualdade é tratada sob o vértice
da máxima aristotélica que preconiza o tratamento
igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida
dessa desigualdade. (ARAÚJO, 2006, p. 131).
Ocorre que, a grande questão que se coloca é saber quais são os
critérios juridicamente legítimos que permitem a diferenciação de pessoas
e situações, ou, ainda, quais seriam essas diferenciações juridicamente
toleráveis. Sobre isto, o jurista alemão Robert Alexy aborda uma alternativa
para a resolução da referida indagação com os seguintes dizeres:
“Uma diferenciação arbitrária ocorre se não é possível encontrar um
fundamento razoável, que decorra da natureza das coisas, ou uma razão
objetivamente evidente para a diferenciação ou para o tratamento igual
feitos pela lei.” (ALEXY, 2012, p.407). Complementando, faz- se necessária
uma razão suficiente para que uma discriminação seja justificada, para que
posteriormente seja dado um tratamento desigual para àquela situação ou
situações específicas. Dado o exposto, permite-se afirmar que o direito de
igualdade, na prática, só pode ser efetivado mediante a adoção de políticas
públicas que reconheçam a situação de desigualdade que certos indivíduos
se encontram em determinadas situações, dando-lhes um tratamento
distinto para que, posteriormente, a igualdade lhes seja garantidas.
1.4 IGUALDADE DE RAÇAS
Dentre as mais variadas espécies e subdivisões do princípio da
igualdade que são constantemente buscadas pelas três esferas do poder
público brasileiro, certamente a igualdade de raças é uma das mais
dificultosas de serem concretizadas. Muito pelos fatos históricos e já
notórios, como o período de escravidão, que perdurou até o ano de 1888
com a sanção da Lei Áurea, o preconceito é algo encravado na sociedade,
sendo um crime árduo de ser combatido, em virtude do lamentável
182 183
ponto no qual a humanidade chegou. De tal modo, tem-se buscado de
maneira incessante o ideal de que a cor e a raça não podem e não devem
ser utilizados como critérios separatistas, não podendo um indivíduo ser
classificado como inferior ao outro em razão de sua cor de pele ou de sua
origem racial. Sobre o assunto, a Constituição Federal, em seu artigo 4º,
VIII assim preceitua: “Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas
suas relações internacionais pelos seguintes princípios: VIII – repúdio
ao terrorismo e ao racismo;” Além da carta magna, existe outro diploma
infraconstitucional que trata da discriminação de raças de maneira
meticulosa. Trata-se do estatuto da igualdade racial. O intento maior deste
estatuto é bridar o discernimento racial e estabelecer políticas intuitivas a
diminuir a desigualdade social predominante entre os diferentes grupos
societários, sendo devidamente preconizado em seu art. 1º o objetivo maior
de garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades,
a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à
discriminação e às demais formas de intolerância étnica. Sancionada no
ano de 2012 pelo então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, a
Lei n.º 12.288 possui 66 (sessenta e seis) artigos subdivididos em 4 (quatro)
diferentes títulos. Entretanto, soa de forma pejorativa a criação da lei em
comento, posto que dita uma séria de garantias à população negra, garantias
estas que em tese já são propiciadas a toda a população brasileira. Assim,
é certo afirmar que referido estatuto, apesar da nomenclatura e do intuito
inicial de estabelecer igualdade entre povos, acaba por diferenciá-los ainda
mais, mesmo que de forma indireta, dada a criação de uma lei especial para
pessoas que possuem as mesmas características que os demais indivíduos,
pertencentes, inclusive, à mesma espécie. Todavia, apesar de tal fato, o que
se verifica é que o governo brasileiro tem se empenhando na criação de
ações afirmativas, objetivando a abolição do preconceito racial, mesmo
não conseguindo lograr total êxito no tocante à criação do referido diploma
legal e das demais campanhas conscientizadoras.
182 183
1.5 DISCRIMINAÇÃO RACIAL
Entrando em contrapartida ao princípio da igualdade racial
e desobedecendo preceitos constitucionais, a atitude praticada por
indivíduo que insulta o outro em referência à sua cor de pele ou etnia é
denominada discriminação racial. Conceituando referido tema, o jurista
constitucionalista José Afonso da Silva, assim a define:
A discriminação é proibida expressamente, como
consta no art. 3º, IV da Constituição Federal, no qual
se dispõe que, entre os objetivos fundamentais da
República do Brasil, está: promover o bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação. Proibiu-
se também, a diferença de salário, de exercício de
fundações e de critério de admissão por motivo de
sexo, idade, cor, estado civil ou portador de deficiência.
(SILVA, 2005, p. 222).
Infelizmente, um ato tão combatido, não só pela Constituição
Federal, mas também por muitos outros diplomas infraconstitucionais,
encontra-se cada vez mais presente na sociedade em geral, sendo uma
conduta com elevado grau de dificuldade para ser combatida de maneira
justa e eficaz. O racismo é definido como crime, mas apesar de ser previsto
como inafiançável, imprescritível e sujeito à pena de reclusão, de acordo
com a própria Constituição, em seu artigo 5º, XLII, o seu extermínio é algo
que se encontra muito distante, quiçá impossível, dado o preconceito que
pode ser classificado como inerente à certas camadas populacionais. O
Código de Penal aborda de maneira mais pormenorizada o assunto, citando
o crime de injúria, que nada mais é que a exteriorização de um juízo que se
faz de alguém, sendo que este traduz desprezo ou menos valia em relação
ao ofendido, ou seja, pode-se injuriar alguém mediante gestos, palavras ou
escritos. Insta ressaltar que, diferentemente do crime de racismo previsto
184 185
na Constituição Federal, o crime de injúria racial é prescritível, afiançável
e de ação pública condicionada, ou seja, quando o ajuizamento da ação
depende da manifestação do indivíduo injuriado ou por representação
do ministro da Justiça. Mister expor que, conforme previsto no art. 140
do Código Penal, a prática de injúria pode culminar em pena de um a
seis meses, ou multa, dependendo do caso concreto. Ocorre que, quando
o sujeito ofendido deu gênese ao cometimento do crime, provocando de
forma reprovável e de maneira direta a injúria, bem como na situação de
retorsão imediata, que consistia em outra injúria, o magistrado deixará
de aplicar a pena. No parágrafo terceiro do mesmo artigo, o legislador
preconiza que se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por
sua natureza ou pela maneira empregada, se considerem vergonhosas, a
pena de detenção será de três meses a um ano, cominada de multa, além
da pena correspondente a violência empregada. Continuando no art. 140
do mencionado códex, o §3º versa de modo mais específico sobre a injúria
racial, conjuntamente a injúria religiosa, bem como àquelas condicionadas
a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, estabelecendo
pena de reclusão ainda maior que as supracitadas, sendo esta de um a três
anos, cumulativa ao pagamento de multa. Neste diapasão, averigua-se a
distinção dos preceitos da Constituição Federal e do Código Penal, tendo
em vista que o primeiro discorre em lato sensu sobre o crime de racismo,
estabelecendo que este resulta da discriminação, de preconceito racial,
implicando segregação, impedimento de acesso, recusa de atendimento,
dentre outros relacionados a alguém. Já o Código Penal, especifica o crime
de injúria, que se remete a crimes contra a honra, agindo o sujeito ativo
com animus injuriandi, elegendo-se como maneira de execução do ilícito
propriamente a utilização de elementos atinentes à cor, raça, etnia, religião
ou origem do sujeito vitimado.
184 185
2. AÇÕES AFIRMATIVAS
2.1 AS AÇÕES AFIRMATIVAS NO COMBATE AOS DIVERSOS TIPOS DE
DISCRIMINAÇÃO
Conforme anteriormente citado, visando combater o preconceito
racial, inúmeras ações afirmativas têm sido criadas em território nacional.
Para se compreender a real eficácia dessas ações afirmativas na luta
contra este tipo de discriminação em específico, é vital que se faça um
esclarecimento sobre o que seriam ações afirmativas e quais são seus
objetivos fundamentais. Entende-se por ações afirmativas como o conjunto
de medidas especiais destinadas a grupos discriminados ou vitimados
face aos diversos tipos de exclusões sociais ocorridas no passado ou no
presente. O objetivo das referidas ações é nada mais do que eliminar as
desigualdades e segregações, de maneira que não mais se mantenham
grupos elitizados, bem como grupos marginalizados no meio social,
buscando-se uma composição diversificada onde não haja o predomínio de
raças, etnias, religiões, gêneros ou qualquer outra forma de discriminação.
Seguindo a mesma linha de entendimento, o professor Antônio Sérgio
Alfredo Guimarães conceitua as ações afirmativas da seguinte forma:
Ações afirmativas são medidas especiais e temporárias,
tomadas pelo Estado e/ou pela iniciativa privada,
espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de
eliminar desigualdades historicamente acumuladas,
garantindo a igualdade de oportunidade e tratamento,
bem como compensar perdas provocadas pela
discriminação e marginalização, por motivos raciais,
étnicos, religiosos, de gênero e outros. (GUIMARÃES,
1999, p. 147).
Também conceituando as ações afirmativas, o jurista Joaquim
Barbosa Gomes assim as define:
186 187
Um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter
compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas
com vista ao combate à discriminação racial, de
gênero e de origem nacional, bem como para corrigir
os efeitos presentes da discriminação praticada no
passado, tendo por objeto a concretização do ideal de
efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como
a educação e o emprego. (GOMES, 2001, p.40).
Tais ações afirmativas são elaboradas de maneira que propiciem
uma maior participação destes grupos discriminados na educação, na
saúde, na busca por um emprego, na aquisição de bens materiais, em
sistemas de proteção social e de reconhecimento cultural. Conforme
citado na conceituação apresentada por Guimarães, as ações afirmativas
podem ser criadas tanto por iniciativa do poder público, como também
por instituições privadas, desde que tenham por objetivo primordial a
eliminação da desigualdade.
2.2 AS AÇÕES AFIRMATIVAS E A DISCRIMINAÇÃO RACIAL
O combate à discriminação em função da raça tem sido o principal
ensejo para a criação das ações afirmativas, principalmente as idealizadas
pelo poder público, sendo certo que já foram criadas várias destas no
intento de combater referida modalidade discriminatória. No entanto, uma
destas ações ganhou mais destaque, sendo esta o tema central do estudo em
voga, qual seja a Lei 12.711 de 2012, popularmente conhecida como a Lei de
cotas. Ressalta-se que, apesar de ser compreensível o objetivo no tocante à
criação da Lei de Cotas, a mesma, dependendo da forma de interpretação,
além de não alcançar o resultado prático almejado, pode também gerar
uma espécie de segregação, ao invés de gerar igualdade, tema que será
aprofundado com maior profundidade ulteriormente.
186 187
2.3. ARGUMENTOS PARA UTILIZAÇÃO DE AÇÕES AFIRMATIVAS
No que se refere especificamente às ações afirmativas voltadas para
àqueles que sofrem discriminação racial, o argumento para a criação destas
se baseia na ideia de integrar o negro à sociedade de dominação branca,
mediante políticas públicas ou privadas que favoreçam a igualdade de
oportunidade entre negros e brancos. Contins, no livro Lideranças negras,
define os argumentos para utilização das ações afirmativas, conforme se
segue: “(…) a promoção de oportunidades iguais para pessoas vitimadas por
discriminação. Seu objetivo é, portanto, o de fazer com que beneficiados
possam vir a competir efetivamente por serviços educacionais e por posições
no mercado de trabalho.” (CONTINS, 2002, p. 210). Aludido sistema, visa a
redução da discriminação contra os negros, que remonta aos períodos da
escravidão e que, de maneira menos expressiva, contudo, ainda assim de
forma inaceitável, perdura até os dias atuais. Lado outro, fica a reflexão
sobre até que ponto estas ações afirmativas podem ser benéficas e, em
determinadas situações, como não dizer que as mesmas segregam ao invés
de igualar?
3. LEI 12.711 DE 2012 – LEI DE COTAS
3.1 FORMA DE INGRESSO DOS ESTUDANTES NAS UNIVERSIDADES
PÚBLICAS
Antes de adentrarmos à conceituação da lei de cotas, bem como à
análise dos artigos constantes na mesma, mister se faz um rápido estudo
sobre como se dá o ingresso dos estudantes de ensino médio nas instituições
públicas de ensino superior. Para ingressar nas universidades públicas
brasileiras, o governo brasileiro, por meio do Ministério da Educação criou
no ano de 1998 o Exame Nacional do Ensino Médio, trivialmente conhecido
como ENEM. Inicialmente criado com o intuito de avaliar o desempenho dos
188 189
alunos que cursavam o ensino superior no período retro, o ENEM passou a
ser utilizado no ano de 2009 de maneira consubstanciada aos vestibulares
empreendidos pelas faculdades públicas de ensino. Como a alteração do
sistema, os alunos, após prestarem o exame, se cadastram no Sistema de
Seleção Unificada (SISU) para então pleitearem uma vaga na instituição
almejada, dependendo, para tanto, de suas respectivas pontuações. Para a
aprovação no teste em comento e a posterior introdução nas universidades
públicas, o bom desempenho por si só muitas vezes não é suficiente para
lograr êxito, posto existir uma subdivisão das vagas por meio de cotas,
através da criação da já citada Lei 12.711/2012.
3.2. HISTÓRICO DA LEI DE COTAS
Sancionada pela Presidenta Dilma Roussef, a Lei de cotas possui
nove artigos que dispõem sobre o ingresso nas faculdades públicas, bem
como nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. A Lei de
Cotas fora primordialmente criada no intuito de propiciar igualdade de
condições aos estudantes no ato de ingresso nas instituições criadas pelo
governo, por entender que tão somente o critério de pontuação os deixava
em desigualdade de condições fronte àqueles que frequentaram todo o
ensino médio em colégios particulares. Pondera-se, precedentemente
à sanção presidencial, o Supremo Tribunal Federal decidiu de maneira
unânime que é constitucional reservar vagas nas universidades públicas
para negros, pardos e índios. De tal forma, a partir da decisão do Supremo,
intensificou-se um inacabável debate a respeito da legalidade da aludida
lei.
Como toda política pública, a ação afirmativa deve
cumprir dois requisitos: o da legalidade e o da
moralidade. Por legalidade, devemos entender a
qualidade de se harmonizar a ação afirmativa com o
sistema legal do país onde é implantada, mormente com
188 189
o sistema legal do país onde é implantada, mormente
com a norma constitucional. A despeito de certos
sentidos derrogatórios do termo, por moralidade aqui
se entender a justificação de uma ação com relação
aos valores principais da sociedade onde ela acontece.
Uma iniciativa é moral se está em consonância, ou seja,
pode ser justificada em relação aos valores centrais de
uma comunidade política. (ZONINSEIN, 2008, p.9).
Como se verá ademais, os debates a respeito da legalidade e
constitucionalidade da lei de cotas têm sido cada vez mais comuns e, longe
de se alcançar um entendimento pacificado. Conforme relatado alhures, a
Lei de Cotas fora sancionada no ano de 2012, contudo, a reserva de vagas
nas faculdades públicas de acordo com a etnia dos vestibulandos vem sendo
adotada desde o ano de 2002. A Universidade Estadual do Rio de Janeiro
– UERJ foi uma das primeiras de que se tem notícia a adotar o referido
procedimento, destinando, inicialmente 20% de suas vagas para estudantes
autodeclarados negros. Aludida prática se propagou, tendo sido adotada
posteriormente por outras instituições, como a Universidade Estadual
do Mato Grosso do Sul e a Universidade de Brasília, nos anos de 2003 e
2004, respectivamente. Não obstante, o sistema de cotas ainda apresentava
inúmeras falhas e critérios que eram tidos como injustos, até certo modo.
Cada instituição que optou pela reserva de vagas, implantava uma política
distinta, não sendo certo o número de estudantes que fariam jus a ingressar
nas instituições de ensino por intermédio deste procedimento. Avulta
consignar que cada faculdade que optava pela adoção das cotas possuía
um critério para avaliar a etnia dos estudantes e qual destes faria jus a tal
benesse, sendo este o ponto de maior desaprovação social. Após a propulsão
protagonizada pela UERJ e a proliferação da política de cotas em todo o
território nacional, foi criada a Lei de Cotas no ano de 2012, conforme
antes explanado, cujo objetivo era regulamentar e uniformizar predito
método. A já mencionada Lei impôs a todas as Universidades federais a
190 191
implementação do sistema de cotas, sendo certo que até a criação da mesma,
40 (quarenta) das 59 (cinquenta e nove) instituições públicas de ensino
superior existentes no país já haviam implantado tal política. Contudo,
era axiomática a resistência por parte das demais universidades que não
haviam aderido à política in comento. Atualmente, todas as Universidades
federais e 30 (trinta) das 38 (trinta e oito) universidades estaduais aderem
à reserva de vagas, todavia, algumas destas, como a USP – Universidade
de São Paulo, maior instituição de ensino superior do Brasil, bem como
a UNICAMP – Universidade de Campinas pregam a ideia de meritocracia,
abolindo dito sistema.
3.3. A LEI DE COTAS E A RESERVA DE VAGAS PARA ESTUDANTES QUE
CURSARAM O ENSINO MÉDIO EM ESCOLA PUBLICA
No supramencionado códex, mais precisamente em seu artigo 1º,
denota-se a imposição governamental às faculdades públicas para que
estas reservem, no mínimo, 50% de suas vagas para estudantes que tenham
cursado integralmente o ensino médio em colégios públicos, asseverando
que 50% destes devem ser oriundos de famílias carentes, com renda
inferior ou igual a 1 (um) salário mínimo e meio per capita. O art. 2º da
Lei preconizava que as universidades públicas deveriam selecionar os
alunos provenientes de escolas públicas após análise de seus respectivos
coeficientes de rendimento, obtidos por meio de média aritmética das notas
ou menções obtidas no período. Contudo, o artigo supra fora ulteriormente
revogado, sob a prerrogativa de que tais coeficientes formados a partir de
notas atribuídas no decurso do ensino médio não constitui critério adequado
para avaliar estudantes, visto que não se baseiam em exame padronizado
comum a todos os candidatos, não seguindo parâmetros uniformes para
atribuição de nota. Ocorre que, a certo ponto, o governo brasileiro acaba
por reconhecer a precariedade do ensino público no tocante aos ensinos
fundamentais e médio, por conceder aos estudantes egressos dos colégios
190 191
comunitários um método diferenciado, mais fácil e vantajoso para entrada
nas universidades federais com relação aos alunos provenientes de escolas
particulares.
3.4 RESERVA DE VAGAS PARA NEGROS, PARDOS E INDÍGENAS
Conforme aduzido antecedentemente, além das vagas destinadas
aos colegiais provenientes de instituições públicas de ensino médio, resta
assegurado um percentual destas vagas aos estudantes autodeclarados
negros, pardos e indígenas. O art. 3º da Lei de Cotas predispõe que em
cada universidade federal de educação superior, as vagas tratadas no
art. 1º devem ser preenchidas, por curso e turno, por estudantes de etnia
diversa à caucasiana em proporção, no mínimo, igual à de pretos, pardos
e indígenas na população da unidade de Federação onde se encontra
instalada a instituição, tendo por base o último censo do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE). De tal modo, tomando por base um caso
hipotético de uma cidade situada em um estado, no qual 30% de sua
população é predominantemente formada por indígenas, pardos e negros,
a universidade pública situada no mesmo, ao disponibilizar, por exemplo,
500 (quinhentas) vagas por meio de exame vestibular para estudantes,
deve reservar, no mínimo, 250 (duzentos e cinquenta) vagas para alunos
provenientes de escola pública e destes, 75 (setenta e cinco) para os
estudantes que caracteristicamente se enquadram no perfil fisionômico
discriminado pelo art. 3º da Lei em estudo. Em caso de não preenchimento
de tais vagas, as remanescentes devem ser destinadas aos alunos egressos
de escola pública, conforme dispõe o parágrafo único do referido artigo.
3.5 PRERROGATIVA PARA ADOÇÃO DA POLÍTICA DE COTAS
No ano de 1997, somente 2,2% de pardos e 1,8% de negros na faixa
etária compreendida entre 18 e 24 anos cursavam ou haviam concluído
192 193
um curso superior no Brasil. Em razão deste tacanho índice, algumas
instituições públicas, visando oportunizar condições aos estudantes que
se enquadravam no referido aspecto físico passaram a estudar políticas
que poderiam diminuir este déficit histórico. Após minuciosas pesquisas,
a solução encontrada foi a implementação de ações afirmativas por meio
de reserva de vagas, que ficaram subsequentemente conhecidas como
cotas, sendo tal prática adotada mediante política interna das instituições
educadoras, sem que existam imposições governamentais ou critérios de
obediência formal.
4. AS COTAS RACIAIS E A VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE
4.1 OBJETIVO DA POLÍTICA DE COTAS E O RESULTADO PRÁTICO OBTIDO
É manifesto que as cotas raciais foram originalmente criadas no
intuito de gerar direitos iguais aos estudantes negros, pardos e indígenas,
por entender que estes não tinham as mesmas oportunidades que os
brancos no que tange à formação superior. Lado outro, tal política tem
gerado opiniões diversas em âmbito social, ao passo que encontra enorme
resistência por parte de muitos cidadãos que entendem que a mesma
discrimina ao invés de igualar. Nestes termos, depreende-se que a lei de
cotas não atingiu integralmente o seu objetivo, dado o elevado percentual
de opiniões contrárias à aplicação da mesma, onde há a sustentação de que
referido estatuto fere os princípios preconizados na Constituição Federal,
como o da igualdade e o direito universal à educação. Logo, apesar do sistema
cotista ajudar a incluir negros, índios e pardos nas universidades federais,
tendo em vista os baixos índices existentes em momento anterior à sanção
da Lei 12.711, a adoção de tal política não delibera globalmente o problema.
No julgamento da Lei 12.711 pelo Supremo Tribunal Federal, na data de 26
de Abril de 2012, consoante alhures mencionado, os ministros decidiram
por unanimidade a aprovação da referida lei, conquanto, alguns juristas
192 193
se posicionaram de maneira contrária. Posicionando-se contrariamente à
maioria presente no plenário, a jurisconsulta Roberta Kauffman, sustentou
sua tese afirmando que a imposição de um modelo de estado racializado
traz consequências perversas para formação da identidade de uma nação.
Sustenta ainda inexistir racismo bom ou racismo politicamente correto,
aduzindo que todo racismo é perverso e precisa ser evitado. Entretanto,
como é de conhecimento notório, mesmo com posicionamentos contrários,
supracitado diploma legislativo foi aprovado, tendo sido posteriormente
sancionado.
4.2 A INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI DE COTAS
Apesar de o entendimento jurisprudencial ser majoritário acerca da
legalidade da política de cotas raciais, conforme votação no STF, é nítido que
tal sistema acaba por discriminar ainda mais aqueles que lutam por direitos
iguais. Neste ínterim, o princípio da igualdade, garantia fundamental de
qualquer cidadão brasileiro, é claramente infringido ante a separação entre
negros e brancos no que concerne ao ingresso nas instituições educadoras.
Assim sendo, é clarividente que a adoção da política de cotas confronta
diretamente os ditames garantidos na carta magna, não se coadunando com
os princípios constitucionais positivados no art. 5º do retro citado códex.
Grande parte da população leiga e até mesmo um percentual considerável
de doutrinadores e estudiosos tem opinado acerca da inconstitucionalidade
da referida lei, sustentando que a diferenciação jamais será o caminho
para buscar igualdade entre povos. É clarividente que a população negra
sofreu por muitos anos e ainda sofre com certa discriminação racial que
por vezes acabam por reduzir suas oportunidades, contudo, a adoção de
cotas raciais não se apresenta como uma boa política para concretizar a
integração dos afrodescendentes junto ao restante da sociedade, posto
que desiguala iguais quando o objetivo final dos exames vestibulares seria
avaliar o intelecto dos candidatos e não suas aparências fisionômicas.
194 195
Ronald Dworkin salienta ser de vital importância a leitura objetiva da
justificativa utilizada ao implantar qualquer medida compensatória, para
que possa ser posteriormente aceita como Constitucional. Nestes termos,
esclarece:
Os argumentos favoráveis a um programa de admissões,
que discrimine a favor dos negros são ao mesmo
tempo utilitaristas e de ideal. Alguns dos argumentos
utilitaristas baseiam-se, ao menos indiretamente, em
preferencias externas, como a preferência de certos
negros por advogados de sua própria raça; mas os
argumentos utilitaristas que não se baseiam em tais
preferências são fortes e podem ser suficientes. Os
argumentos de ideal não se baseiam em preferências,
mas sim no argumento independente de que uma
sociedade mais igualitária será uma sociedade melhor,
mesmo se seus cidadãos preferirem a desigualdade.
Este argumento não nega a ninguém o direito de ser
tratado como igual. (DWORKIN, 2002, p. 58).
Segundo o jurista Celso Ribeiro Bastos, em sua obra Comentários
à Constituição do Brasil, o acesso às instituições públicas de grupos
desfavoráveis fere o princípio da isonomia, ao passo que a educação superior
é direito de todos, não podendo existir qualquer tipo de discriminação
relativa à sexo, cor e idade. “A educação deve ser dirigida a todas as classes
sociais e a todos os níveis de idade, sem qualquer tipo de discriminação, ou
seja, deve-se considerá-la como sendo privilégio de todo o povo e não de
uma classe social.” (BASTOS, 1998, p. 117). Nestes temos, apesar de possuir
uma finalidade, até certo ponto compreensível, as cotas raciais não têm
alcançado seu objetivo almejado, dado o alto grau de reprovação social.
194 195
4.3 COTAS RACIAIS COMO VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Consoante já classificado e conceituado em momento anterior,
impende ressaltar que o princípio da igualdade prevê a equidade de
aptidões e eventuais possibilidades dos cidadãos de gozar de tratamento
isonômico pela lei, sendo este, um dos princípios de maior grau de
relevância e importância. Dita garantia, que se encontra devidamente
positivada no caput do art. 5º do diploma constitucional, preconiza não ser
possível a distinção de qualquer natureza, garantindo-se à todos o direito
à igualdade. Deste modo, é flagrante inconstitucional tratar de maneira
desigual cidadãos que se encontram sob a mesma égide governamental,
precipuamente no que se refere à separação pela cor da pele para ingressar
nas universidades de ensino superior criadas e administradas pelo Estado.
Em exames que avaliam o conhecimento dos vestibulandos, tal critério
apresenta-se, no mínimo controverso, haja vista gerar iniquidade perante
os demais candidatos que, apesar de conseguirem obter notas maiores em
determinadas situações hipotéticas veem seu objetivo de ingressar em uma
faculdade pública tolhido por outro concorrente que obteve nota inferior
à sua, porém, fora beneficiado por uma política que leva em consideração
a fisionomia do candidato e não necessariamente o seu saber, dadas as
devidas proporções. É sabido que o princípio da igualdade pressupõe que
pessoas colocadas em situações diferentes sejam tratadas de forma desigual,
mas destarte, o que se questiona é se existe diferença na situação estudada,
mormente no que se refere ao grau de intelecto entre afrodescendentes e
arianos. Seguindo a mesma linha de raciocínio, o jurista Nelson Nery Júnior
corrobora com tais argumentos com a seguinte passagem: “Dar tratamento
isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente
os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”. (JÚNIOR, 1999, p.
43). Ocorre que, tomando por base a citação retro, apesar de não ser tão
fácil delimitar em quais situações pessoas podem ser classificadas como
desiguais, no estudo in comento é cediço que inexiste dita desigualdade,
196 197
uma vez que os processos seletivos avaliam tão somente o conhecimento,
não sendo a cor da pele fator preponderante para avaliar que um indivíduo
é intelectualmente inferior ao outro. Urge ponderar que o princípio da
igualdade não se remete tão somente ao caso em voga, assegurando
também direitos iguais entre homens e mulheres, ricos e pobres, dentre
outras situações passíveis de distinção social e legisladora. “O princípio
da igualdade engloba a proibição do arbítrio, que consiste na proibição
de discriminação e privilégios e obrigatoriedade de diferenciação, ou seja,
faz-se necessário o tratamento igual a situações iguais ou semelhantes
e tratamento desigual de situações desiguais ou dissemelhantes.”
(ALBUQUERQUE, 1993, p. 74). Portanto, a Constituição Federal permite
atestar que a referida garantia fundamental prevista em seu artigo 5º
traduz-se em norma de eficácia plena, cuja exigência de indefectível
cumprimento independe de qualquer norma reguladora, endossando a
todo e qualquer cidadão, indistintamente, independentemente de raça,
cor, credo, sexo, orientação, situação econômica, classe social, convicções
políticas, igual tratamento perante a lei. Não se pode afirmar que a lei de
cotas perfaz-se como inconstitucional em sua totalidade, tendo em vista
que a mesma visa primeiramente oportunizar os estudantes de inferiores
classes socioeconômicas a conseguirem o tão almejado diploma de formação
acadêmica, sendo contestada exclusivamente a separação racial prevista
em seu artigo 3º. Sobre a igualdade, o doutrinador alemão Robert Alexy
conclui: “Se não houver uma razão suficiente para a permissibilidade de
um tratamento desigual, então o tratamento igual é obrigatório.” (ALEXY,
2011, p. 408).
4.4 INCLUSÃO OU DIFERENCIAÇÃO SOCIAL?
Consoante às assertivas antecedentemente evidenciadas, aduz
consignar a existência de inúmeras nuances, não apenas com relação
à adoção da política de cotas, como também em relação ao regulamento
196 197
previsto no aludido sistema. Dentro do que fora inteiramente antes
discorrido, faz-se necessária uma reflexão acerca do resultado final da
aplicação do sistema de cotas raciais, indagando se esta acaba por incluir
os negros na sociedade ou diferenciá-los de vez. A respeito disso, Peixoto
Aranha, em seu livro Universidade Pública e inclusão social: experiência e
imaginação, traduz o que de fato ocorre ante a criação de ações afirmativas
em âmbito racial: “Pode-se pensar que políticas de cunho universalista
que reduzam a pobreza contribuem para diminuir a desigualdade racial,
e na recíproca, políticas que favoreçam a igualdade racial diminuem a
desigualdade social.” (PEIXOTO, 2008, p. 156). Apesar de parte de a sociedade
posicionar-se favoravelmente ao governo, o posicionamento contrário vem
ganhando cada vez mais adeptos, sendo crescente a mentalidade social de
que a lei de cotas, apesar da compreensível finalidade, não tem tido o alcance
esperado, dado o alto grau de reprovação social. É notório que a maior parte
dos cidadãos que se posicionam contrariamente a adoção de cotas raciais
não se encontram abarcados pelo aludido sistema, haja vista que a maioria
dessas pessoas é pertencente à população ariana. Não obstante, parte da
população negra, índia e parda discorda da vigência da lei de cotas, por
também entender que esta possui condão discriminatório. Em razão do
exposto, muitos dos estudantes que poderiam ser aclarados por tal benesse,
acabam por optar pela tentativa de ingresso nas instituições públicas de
ensino pelas vias comuns, sem a utilização das cotas, mesmo possuindo
características fisionômicas para tal. Isso só ocorre por demonstrarem a
discordância com relação a tal sistema, corroborando ainda mais com a
assertiva de que tais cotas apenas desigualam indivíduos que se encontram
em situação de igualdade. Nas últimas décadas, vários movimentos negros
tentaram provar que não existe diferenciação por raça, e que ser negro
nada mais é que uma questão relativa a simples pigmentação de pele, no
entanto, desde a criação do sistema de cotas por iniciativa própria das
instituições de ensino e posteriormente com a sanção da Lei 12.711/2012,
percebe-se uma contradição: raça existe e deve ser mostrada. Dentre as
198 199
problemáticas atinentes às cotas raciais ressaltadas inicialmente, impende
relatar que supradito sistema de certa forma afirma que os não brancos
não possuem capacidade de ingressar nas universidades públicas por conta
própria, necessitando de reservas e políticas especiais para conseguir a tão
almejada formação profissional. Dito isto, aduz reiterar que as cotas para
negros nada mais são do que uma demonstração de racismo, haja vista
que através deste sistema o governo segrega ainda mais a população. De
forma a corroborar com os elementos qualificadores de condutas racistas
precedentemente expostas, as cotas raciais se enquadram perfeitamente
à situação que torna o indivíduo negro distinto de outrem, dado o critério
de separação característico em tal política. Ante esta diferenciação, são
corriqueiras as jocosidades impetradas pelos concorrentes aos processos
vestibulares das instituições educadores de módulo superior, onde
aqueles que não se enquadram nas características para a concessão das
cotas proferem gracejos ou até mesmo injúrias àqueles que adentraram
nas referidas entidades por intermédio da política cotista, sendo certo
que os vestibulandos que não lograram êxito em tal empreitada, sendo
desclassificados mesmo obtendo pontuação superior aos estudantes cotistas
se mostram ainda mais indignados com supradito sistema. Assim sendo,
de uma maneira indireta, em determinadas situações cotidianas, além do
critério discriminador, a aplicação de cotas pode acarretar um problema
que foge completamente das razões para sua criação, expondo os cotistas a
momentos angustiantes e vexaminosos.
4.5 IGUALDADE ENTRE INDIVÍDUOS NEGROS E BRANCOS
Seguindo a ordem de sustentação da tese veiculada no presente
estudo, é permitido dizer que negros e brancos não mais se encontram
em condições desfavoráveis no momento atual. É certo que alguns fatos
históricos mancharam em muito a história da humanidade, sendo o
período da escravidão certamente o maior deles. Ocorre que de lá pra
198 199
cá já se passou mais de um século e, por mais que o preconceito ainda
esteja encrostado em grande parte da população mundial, é algo que vem
mudando de maneira gradativa, sendo perfeitamente possível afirmar
que a outra parte da população atingiu um grau de conscientização
elevado, aceitando que todos são iguais e que raça não é fator para definir
absolutamente nada. “Na realidade brasileira, se analisarmos a situação
de brancos e negros que possuem a mesma condição social desfavorável,
não há qualquer diferença no que tange ao acesso à educação de ambos.”
(KAMEL, 2006, p. 82). O que se observa, ao menos no Brasil, é que a lei é
para todos, à exceção de alguns diplomas, como a própria lei de cotas, que
de fato segrega a população. No entanto, sobram argumentos para afirmar
que negros não se encontram em condição desfavorável aos brancos, ao
passo que, ressalvadas as devidas particularidades, ambos têm direito à
saúde, educação, moradia, segurança, dentre outros serviços prestados
pela administração pública. O que se verifica é que cada vez mais cidadãos
negros vêm ocupando os mais importantes cargos políticos e sociais em
todo o mundo, sendo a eleição do então presidente dos Estados Unidos da
América, Barack Obama, o exemplo mais claro de tal afirmativa. Assim
sendo, a existência das particularidades ressalvadas, caso do estatuto da
igualdade racial e, principalmente da lei de cotas, são políticas retroativas,
que faz transparecer que negros são diferentes de brancos e não merecem
tratamento isonômico. Daí a inconstitucionalidade dos referidos diplomas,
ao passo que a única raça existente é a raça humana.
4.6 O SISTEMA DE AUTODECLARAÇÃO
Anteriormente à sanção da Lei 12.711/2012, as instituições federais
de ensino adotavam critérios desuniformes para avaliar o grau étnico dos
estudantes que pleiteavam a entrada nas universidades por meio de cotas.
Conquanto, com a vigência da nova lei, a definição das raças para as cotas
passou a se dar unicamente através de autodeclaração, de acordo com os
200 201
artigos 3º e 5º da mesma, sendo considerado pelo governo como o critério
mais equânime para tal avaliação. Em virtude de variadas tentativas de
fraude de estudantes brancos que tentavam burlar o sistema, algumas das
instituições, além da exigência de autodeclaração, optaram por realizar uma
banca para checagem da informação dada, como é o caso da Universidade
de Brasília – UnB. Apesar de ser considerado o método mais comedido de
avaliação, o mesmo continuamente recebe críticas por parte de juristas,
doutrinadores e demais operadores do direito, além da sociedade de
modo geral, por entender não ser um critério qualificador pertinente. A
priori, tratando-se de um país predominantemente miscigenado como o
Brasil, torna-se extremamente dificultoso definir quem é negro, pardo ou
branco, assim, o sistema de autodeclaração apresenta-se como plenamente
inviável. Isto posto, deve o cotista preencher e assinar um termo escrito,
disponibilizado pela instituição em que deseja adentrar, ficando o mesmo
ciente que caso seja detectada falsidade testemunhal, estará o mesmo
sujeito às penalidades legais. Permite-se afirmar então que, além dos
problemas consequenciais da política de cotas relativos à desigualdade
racial, o regulamento desta ainda apresenta diversas falhas, mesmo com
seu devido aperfeiçoamento desde o período em que a Lei 12.711/2012 fora
sancionada, sendo a fraude nas autodeclarações de negros, pardos e índios
a maior destas.
São inúmeros os casos registrados no país desde a adoção do sistema
cotista, em que estudantes brancos se inscrevem no processo vestibular por
meio deste mecanismo de seleção, sendo que alguns destes logram êxito
no concernente a aprovação nos exames. Um dos exemplos mais claros do
problema em questão ocorreu na Universidade do estado do Rio de Janeiro,
onde uma estudante branca, de olhos azuis, de nome Vanessa Daudt, foi
aprovada como cotista após se declarar “negra ou índia” no vestibular
de 2013. Conforme apurado em investigação apurada pela revista “Veja”,
a estudante do curso de enfermagem conseguiu adentrar na instituição
apesar de ter ocupado o 122º lugar na classificação geral, para um concurso
200 201
com 80 (oitenta) vagas. Apesar da abundância de denúncias, não somente
com relação ao caso supramencionado, como também em muitas outras
situações semelhantes, a direção da referida faculdade ainda não criou
nenhum mecanismo de combate a fraudes, gerando revolta e indignação
por parte dos estudantes que possuem perfil fisionômico qualificável para
o sistema de cotas e que não conseguiram aprovação no exame vestibular.
Outra situação concreta na qual também se deflagrou a falha na sistema de
autodeclaração ocorreu no exame vestibular da Universidade de Brasília
(UnB), situação em que dois irmãos gêmeos univitelinos idênticos, de nomes
Alex e Alan Teixeira, filhos de pai negro e mãe branca não tiveram a mesma
sorte ao se inscrever no sistema de cotas. No caso supramencionado, Alan foi
aceito pelos critérios da instituição e Alex não. Consoante relatado alhures,
a UnB é uma das poucas universidades que, além da autodeclaração, exige
que os estudantes passem por uma banca avaliadora, que decide que é
e quem não é negro, algo que beira o absurdo. Ocorre que, após grande
repercussão em âmbito nacional e após oposição de recurso por parte de
Alex Teixeira, a universidade decidiu reaver a decisão e também aceitou o
mesmo através do sistema de cotas. Aludida situação demonstra o quanto
a política de cotas ainda precisa evoluir, uma vez ser utilizado em uma
sociedade na qual a prática do famoso “jeitinho brasileiro” é cada vez mais
habitual. Nesta senda, o governo determina que as universidades devam
criar políticas internas para dirimir fraudes, muitas destas não se preocupam
com os buracos em seus sistemas, cabendo ao Ministério Público, atuando
como fiscal da lei, intervir nos variados casos já comprovados para evitar a
baderna que subverteu não só os critérios de meritocracia para matrícula
nas instituições educacionais, mas a própria lógica das cotas. À vista disso,
um sistema de cotas que não barra os falsos cotistas prejudica a todos, e
não somente aos que, por lei, por pior que ela seja, teriam acesso legítimo
a tal benefício.
202 203
4.7 MECANISMOS ALTERNATIVOS ÀS COTAS RACIAIS
É certo afirmar que a humanidade deve desculpas aos negros
por todos os acontecimentos históricos envolvendo referida camada
populacional, conforme já fora antes citado, contudo, a aplicação de cotas
não é oportuna, tampouco melhor alternativa para tal, uma vez que o ideal
seria a criação de uma política igualitária, sem a terminologia “preto” ou
“branco”, estabelecendo de forma definitiva que todos são iguais perante
a lei. Consoante pesquisa levantada pelo site de notícias “G1”, estudos
realizados no ano de 2015 pela agência de pesquisas Hello Research
comprovam que o senso comum no território brasileiro é de que há uma
favorabilidade para que o Estado conjuntamente às Universidades públicas
adotem cotas sociais como política de inclusão de alunos ao invés das cotas
raciais. De acordo com o levantamento feito pela supracitada entidade,
48% dos pesquisados apoiam o sistema de cotas sociais, relativas a reserva
de vagas para alunos que frequentaram o ensino público, enquanto
38% aprovam o uso de cotas raciais. Em razão do descontentamento
populacional, a melhor prerrogativa estatal para auferir igualdade e
justiça, não só aos vestibulandos, como também à população negra, parda
e índia em geral, seria a imediata extinção da política de cotas e a criação
de um novo mecanismo capaz de propiciar igualdade aos estudantes, além
de possibilitar a redução do preconceito racial, ao menos no assunto em
estudo.
Neste giro, deveria o Estado aditar gradativamente verbas
relacionadas à educação fundamental e média, que culminaria a melhoria na
qualidade do ensino nas escolas públicas, podendo equiparar-se aos colégios
particulares. Assim sendo, tal progresso resultaria na melhor formação
profissional, mental e educacional do aluno, o que afastaria a necessidade de
aplicação de políticas favorecedoras e separatistas no tocante à entrada nas
universidades federais e estaduais do país. Conclui-se que as cotas raciais
e sociais não representam a solução para a melhoria de oportunidades
202 203
aos estudantes pobres, negros, pardos e índios, ao passo que não inibem
o preconceito racial e social, sendo a melhoria na qualidade do ensino
público no Brasil o escopo substancial para gerar igualdade de condições
a todos. Por fim, para abolir de vez a diferenciação racial predominante
em território nacional, seria também de extrema necessidade a criação
de políticas meramente conscientizadoras à população para resguardar a
dignidade humana, bem como demonstrar que a simples coloração corporal
não significa superioridade ou inferioridade, sendo a qualidade e o interior
de cada ser humano as características individualizantes principais.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em breve relato, pode-se perceber que o tema proposto no presente
estudo trata-se de suma importância não somente para a área jurídica,
mas para toda a população, uma vez que a discussão acerca do preconceito
racial é algo que de maneira direta ou indireta afeta a todos. Conforme
anteriormente transcorrido, a legislação pátria, bem como os operadores do
direito e os membros das esferas da administração pública vêm buscando
a adoção de políticas sociais para alcançar de forma plena a aplicação do
princípio da igualdade na sociedade de modo geral. Dito isto, é sabido que
a igualdade de raças talvez seja a mais árdua de ser alcançada, o que leva à
adoção de ações afirmativas objetivando dirimir o preconceito racial. Uma
destas ações afirmativas foi criada no ano de 2012, tal qual a lei de cotas
raciais para os estudantes que almejam o ingresso nas instituições públicas
de ensino superior. Ocorre que, consoante sustentado no inteiro teor do
presente trabalho monográfico, a aplicação da referida lei mostra-se como
inconstitucional, ao passo que discrimina de forma injustificada indivíduos
que se encontram em situação de igualdade. Apesar de ser permitido e
plenamente aceitável o tratamento desigual para pessoas que se encontram
em situação de desigualdade, dita situação não se mostra presente na
situação in comento, haja vista que a única raça existente é a raça humana,
204 205
sendo certo afirmar que em exames que medem o intelecto do indivíduo, a
cor da pele não deve ser fator preponderante para a aprovação. Nos dias de
hoje, apesar da veiculação de situações nas quais se averigua a prática de
atos injuriosos, o que se verifica é que negros, pardos e indígenas não mais
se encontram em condições desfavoráveis com relação aos brancos. O que
se vê é que hoje existem muitos cidadãos negros sobejamente respeitados,
que representam ou representaram elevado grau de influência no meio
social, como o presidente dos Estados Unidos da América, Barack Obama,
o advogado e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa,
o ex-presidente e ativista Nelson Mandela, dentre muitas outras figuras
públicas que contribuíram de maneira gradativa para a sociedade de modo
geral. Assim sendo, não havendo que se falar em diferença entre raças,
é certo afirmar que um governo que visa conceber a isonomia não pode
segregar pessoas que se encontram sob a mesma situação, havendo uma
clara incompatibilidade com os princípios constitucionais, mormente o
princípio da igualdade, previsto no caput do art. 5º da Constituição Federal.
Neste ínterim, indubitável a afirmativa de que a lei de cotas discrimina ao
invés de igualar. A aplicação da lei em debate não se mostra como a melhor
alternativa para gerar igualdade entre indivíduos no tocante ao ingresso
dos mesmos nas universidades públicas, não tendo alcançado o resultado
prático almejado, tendo em vista o elevado grau de descontentamento
populacional. Nesta senda, conclui-se que a melhor forma de se buscar
a conscientização da população de que todos são iguais perante a lei é
a formação de ações afirmativas que busquem de maneira mais justa
e aceitável a igualdade racial, sendo que no concernente ao aspecto
educacional, a melhoria no sistema público a níveis de ensino fundamental
e médio seria a maneira mais correta de conceder justiça àqueles que
concorrem por uma vaga nas universidades públicas, de forma que
estes possam ter o mesmo nível intelectual em comparação àqueles que
provenientes de escolas privadas. Destarte, se ocorresse de fato um maior
investimento no sistema educacional brasileiro por parte do poder público,
204 205
desnecessária seria a criação de cotas e, consequentemente não mais se
discutiria a respeito do aspecto segregacionista deste sistema.
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207
www.artigojuridico.com.br
206 207
A CONTAGEM DE PRAZO NO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL ESTADUAL, APÓS A VIGÊNCIA DO NOVO CPC
Os militantes dos Juizados Especiais Estaduais Cíveis navegavam
em águas, relativamente, tranquilas. É verdade que existiam divergências
pontuais sobre aplicação de um ou outro dos diversos institutos aplicáveis
ao microssistema das causas de menor complexidade.
Certamente, a falta de maiores discussões acaloradas advém
da estabilidade de sua lei de regência, a Lei nº 9.099/95, decorrente,
principalmente, de seus vinte e dois anos de existência, sem que tenha
havido modificações relevantes do seu texto.
Contribui, evidentemente, para a estabilidade de seus institutos
a pequena quantidade de artigos em seu corpo: da porção que regula os
feitos cíveis, contam-se nada mais do que 59 artigos.
Calha lembrar, outrossim, a existência do Fórum Nacional dos
Juizados Especiais, muito conhecido pelo FONAJE. Ele ocorre anualmente.
Reunidos, vários magistrados atuantes neste microssistema, discutem
vários temas controvertidos, tanto de índole processual, quanto de natureza
material. Ao fim do evento anual, aprovam súmulas, que, conquanto não
Edenildo Souza Couto. - Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Pós-graduado em Direito Processual Civil pelo Juspodivm. Bacharel em Direito pela Faculdade de Tecnologia e Ciências. Laureado pela Instituição supracitada. Escritor de livros e de vários artigos publicados em revistas jurídicas. Professor de diversas disciplinas do Direito. Editor fundador da revista Artigo jurídico. Atualmente é Assessor de Juiz - Tribunal de Justiça do Estado da Bahia e Professor de diversas disciplinas do curso de Direito.
208 209
tenham natureza vinculante, servem de norte para juízes de todo o Brasil.
É inegável que, neste sentido, o FONAJE presta relevante serviço
à comunidade jurídica, principalmente porque, até então, não existe nos
juizados estaduais uma turma de uniformização de jurisprudência própria,
ao contrário do que ocorre nos juizados federais[1].
Ocorre que a vigência do novel Código de Processo Civil (CPC),
Lei 13.105/2015, provocou grande rebuliço entre aqueles que lidam com
os processos em trâmite nos Juizados Estaduais Cíveis. Diversos foram os
motivos. Cito, por exemplo, a controvérsia sobre a possibilidade de aplicação
integral das multas previstas no artigo 523, §1º do CPC[2] aos feitos regidos
pela lei de regência do microssistema em cotejo.
Mas neste trabalho, verifica-se outra balbúrdia que passou a
azuretar a vida dos que trabalhavam, sem maiores perrengues, nos juizados
estaduais cíveis: a forma como deve ser contado o prazo processual.
Fato é que desde que a Lei 9.099/95 passou a vigorar em nossas
terras, aplicavam-se, subsidiariamente, as normas do Código de Ritos. E
assim o é por diversos motivos, aqui elencados os mais relevantes.
Consta no artigo 3º, II da lei em apreço que os juizados especiais são
competentes para processar e julgar as causas enumeradas no artigo 275,
II do CPC de 1973.
Dispõe, outrossim, nos artigos 52 e 53, que a execução de título
extrajudicial terá apoio subsidiário das regras encartadas no Código de
Ritos.
Ademais, constava, expressamente, no artigo 273 do CPC revogado
que ao procedimento sumaríssimo (rectius sumariíssimo), deveriam ser-
lhe aplicadas as disposições do rito ordinário, regulado por aquele.
Pois bem.
É imperioso lembrar que os prazos podem ser contados de diversas
formas: em minutos, a exemplo dos 20 minutos para sustentação oral
(artigo 364 do Novo CPC). Pode ser fixado em hora, como ocorre no preparo
do recurso inominado que deve ocorrer em 48 horas da interposição da
208 209
espécie recursal, conforme previsto no §1º do Artigo 42 da Lei 9.099/95.
Pode correr, outrossim, em mês ou, até mesmo, em ano.
Neste opúsculo, a preocupação recai sobre a contagem do prazo
para prática de ato processual, na unidade dia.
Até a vigência do novo CPC, a contagem deste tipo de prazo seguia
a fórmula parametrizada no artigo 184 do seu antecessor, segundo o qual
(sic) “salvo disposição em contrário, computar-se-ão os prazos, excluindo o
dia do começo e incluindo o do vencimento”.
Também em decorrência do dispositivo legal em comento, dava-se
por prorrogado o prazo até o primeiro dia útil, se o vencimento caísse em
dia sem que houvesse expediente no fórum: feriados, finais de semanas,
etc.
Como cediço, no dia 18 de março de 2016, entrou em vigor o atual
CPC.
Juntamente com ele, pairou, sobre os feitos cíveis regidos por aquele
código, nova forma de contar prazos processuais. Isto porque, nos termos
impresso no artigo 219 da lei em análise, na contagem de prazo processual
em dia, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias
úteis.
É oportuno ressaltar que não houve alteração na forma de contagem
do prazo para cumprimento da obrigação determinada judicialmente. Para
este, o prazo continua sendo contado em dias corridos, inclusive férias,
feriados ou outros dias em que não há expediente forense[3].
Mesmo assim, não tardou para que diversas vozes, a exemplo da
entonada por Erik Linhares[4], se levantassem contra a contagem de prazo
processual em dias úteis nos juizados especiais.
Os magistrados integrantes da diretoria e comissões do FONAJE
elaboraram a Nota Técnica 01/2016. Por esta, a contagem em dia útil
constitui “inexplicável distanciamento e indisfarçável subversão ao
princípio constitucional da razoável duração do processo”. Além disto,
sentencia o ato em destaque, a nova contagem de prazo é incompatível com
210 211
o critério informador da celeridade, o que torna imperativo o afastamento
desta regra do Novo CPC nos juizados estaduais cíveis[5].
Esta corrente ganhou tamanha força que conseguiu, no XXXIX
FONAJE aprovar o enunciado 165, segundo o qual “Nos Juizados Especiais
Cíveis, todos os prazos serão contados de forma contínua”[6].
O principal argumento utilizado por esta corrente, consoante já
explicitado pela nota técnica citada alhures, é o de que a nova contagem de
prazo, inaugurada pelo atual CPC fere de morte um dos pilares do juizado
especial que é o princípio da celeridade processual.
Além disto, propugnam que esta vai ao arrepio da razoável duração
do processo, materializado no Artigo art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal.
Contudo, deve-se consignar que, uma vez afastada a contagem de
prazo encartada pelo CPC, seria preciso encontrar uma solução legislativa
para justificar a contagem em dias corridos nos juizados, até porque a Lei
nº 9.099/95 é omissa sobre esta questão.
A solução dada pelos defensores desta corrente foi simplória.
Defenderam que deveria ser aplicada a regra do Artigo 775 da Consolidação
das Leis Trabalhistas (CLT). Isto porque, segundo propugnam, esta guarda
intrínseca relação valorativa com a Lei 9.099/95, a exemplo da capacidade
postulatória das partes, vedação da citação por edital, unicidade da
audiência, obrigatoriedade de comparecimento pessoal das partes à
audiência, admissibilidade de julgamento por equidade, entre outras[7].
Permissa venia, trata-se de posição com a qual não concordamos.
Vejamos:
Primus icutus oculi, é preciso reconhecer que a contagem do prazo
em dias úteis afigura-se importante conquista dos causídicos, aqui incluindo
os defensores públicos, advogados, procuradores, etc. Deveria ser regra em
todo o Ordenamento Jurídico brasileiro. Isto porque diminui a pressão que
um prazo em curso exerce sobre eles, ao excluir, de seu cômputo, os sábados,
domingos e feriados. E ao fazê-lo prestigia-se os princípios constitucionais
da ampla defesa e do contraditório.
210 211
A nova forma de contagem do prazo para prática de atos nos
processos cíveis, em hipótese alguma, fere o princípio da celeridade.
Na verdade, o atraso da tutela jurisdicional decorre da elevada
demanda existente, de um lado; e péssima estrutura do Poder Judiciário,
de outro.
Neste ponto, de nada adianta findar um prazo com brevidade se,
após a protocolização da petição correlata, o processo ficará parado, por
meses, inicialmente, aguardando um servidor fazer a conclusão dos autos
e, posteriormente, muitos outros, talvez anos, até que o juiz, enfim, exare a
análise respectiva.
Tanto é verdade o que aqui se diz que, segundo os dados da Justiça
em Números 2016 do Conselho Nacional de Justiça[8], em 2015, um processo
aguardou em média onze meses para ser sentenciado no juizado especial
estadual. Em média, a fase de conhecimento neste microssistema da justiça
durou quase dois anos; a de execução, quatro anos e três meses.
Não se pode esquecer, outrossim, que nos juizados especiais cíveis
são poucos (e curtos), os prazos previstos na sua lei de regência para
práticas de atos processuais mais corriqueiros: cinco dias para interposição
de embargos de declaração; dez dias para protocolização do recurso
inominado; dez dias para apresentação das contrarrazões ao recurso
interposto; quinze dias para oposição de embargos à execução; outros
quinze para a manifestação do embargado. Nada mais.
Portanto, resta aqui demonstrado que a contagem em dias úteis,
nos Juizados, não fere o princípio da celeridade. Ao contrário, prestigia
Princípios, inegavelmente, de maior carga axiológica, com os da Ampla
defesa e do Contraditório.
Com a mesma tacada, pelos mesmos argumentos ora sustentados,
enterra-se o discurso de que a contagem em dias úteis faz sangrar o
Princípio da Razoável Duração do Processo, previsto no Artigo 5º, LXXVIII
da Constituição Federal.
De mais a mais, é importante ressaltar que nos juizados especiais
212 213
cíveis, mesmo em relação ao módulo de conhecimento, sempre aplicou-se,
subsidiariamente, as regras do Código de Processo Civil. Desde o nascedouro
deste destaque do Poder Judiciário, a receita para contagem de prazo estava
no CPC.
Até a entrada em vigor do novel Código de Ritos, a CLT não era
aplicada subsidiariamente aos Juizados Especiais. E nem tinha razão ser
aplicada, porquanto lei especial, voltada para cuidar dos feitos trabalhistas.
Ora, não se pode agora, mais de duas décadas depois da vigência da
lei atual dos juizados estaduais, do nada, sem qualquer base sólida, alterar
a norma que a colmanta.
Aceitar tal acinte, além disto, traria vários problemas de natureza
prática.
Isto porque, expressamente, consignou-se no artigo 52 da Lei
9.099/95 a aplicação subsidiária do CPC, na execução perante os juizados.
Pois bem.
Ainda que se admitisse a aplicação subsidiária do artigo 775 da CLT,
a mesma somente poderia ser admitida na fase de conhecimento; jamais
na fase de execução, pois haveria de se aplicar a norma do código de ritos.
Ter-se-ia o absurdo de duas formas de contagem de prazos em um mesmo
rito: em dias corridos (artigo 775 da CLT) na fase de conhecimento; em dias
úteis, nos termos do artigo 219 do NCPC.
Mesmo problema ocorreria para contagem do prazo do recurso
extraordinário, nos juizados especiais. Isto porque tal prazo não é fixado
na Lei 9.099/95; mas na seção II do novo código de processo e exige sua
contagem em dias úteis.
Portanto, nunca se admitiu a aplicação subsidiária da CLT nos
Juizados Especiais Estaduais e não pode ser, neste ponto específico de
contagem de prazo, que se pode admiti-la, até porque, consoante visto,
trará mais problemas do que solução.
Conclui-se, portanto, que, no Juizado Especial Cível Estadual, o
prazo para prática de atos processuais deverá ser contado em dias úteis, na
212 213
forma preconizada no artigo 219 do Código de Processo Civil de 2015.
NOTAS.
[1] Após a publicação deste trabalho no Portal Artigo Jurídico, recebi
inúmeros e-mails, com alerta de que existe, nos Juizados Estaduais da Bahia,
Turma de Uniformização de Jurisprudência. Trata-se, todavia, de verdadeira
invenção administrativa, por parte, não apenas do sodalício baiano, mas de
muitos Tribunais de Justiça, sem que exista qualquer previsão legal para
tanto. Não por menos, recentemente, uma medida liminar vergastada pelo
Conselheiro Henrique Ávila, do CNJ, suspendeu o funcionamento de órgãos
que julgam recursos repetitivos, que uniformizam o entendimento, no
âmbito dos juizados especiais de todo o país. Verificar detalhes em: (http://
www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84649-liminar-suspende-recursos-repetitivos-
nos-juizados-especiais).
[2] Sugere-se a leitura do texto “O artigo 523, §1º do Novo Código de Processo
Civil nos Juizados Especiais Cíveis” de Edenildo Couto (2016), disponível
em https://artigojuridico.com.br/2016/08/28/a-aplicacao-integral-da-regra-
do-artigo-523-%c2%a71o-do-novo-codigo-de-processo-civil-nos-juizados-
especiais-civeis/.
[3]Neste sentido, AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do
Novo CPC. São Paulo: RJ, 2015. p. 312.
[4] LINHARES, Erik. A contagem de prazos processuais no novo CPC e os
juizados especiais. Disponível em <http:// http://www.conjur.com.br/2016-
mar-17/erick-linhares-contagem-prazos-juizados-especiais>.
[5] Nota técnica 01/2016 do FONAJE. Disponível em < http://www.amb.com.
br/fonaje/?p=610>.
[6] Enunciados do FONAJE. Disponíveis em: <http:// amb.com.br/
fonaje/?p=32>.
[7] LINHARES, Erik. opcit.
[8] Dados disponíveis em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/
214 215
arquivo/2017/05/4c12ea9e44c05e1f766230c0115d3e14.pdf>
215
www.artigojuridico.com.br
214 215
REVISITANDO OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS E INFORMATIVOS DO PROCESSO
Renato Manucci - Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor Tutor do curso de Pós-Graduação em Direito Processual Civil da Estácio/CERS. Professor Universitário. Membro da Comissão do Advogado Público da 16ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil de Bragança Paulista. Procurador Jurídico da Câmara Municipal de Bragança Paulista. Advogado. E-mail: [email protected]
Resumo: o presente estudo pretende examinar os princípios fundamentais
e informativos do processo com os olhos voltados à nova realidade
processual instaurada com a aprovação do novo Código de Processo Civil,
instituído pela Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Além disso, foram
analisadas as principais questões práticas envolvendo o tema e revisitada a
jurisprudência dos tribunais. Nesse particular, verificou-se, por exemplo, a
superação do entendimento do STF que considerava constitucional a regra
que assegurava foro especial à mulher, além do afastamento das ações
penais originárias em trâmite eletrônico perante o STF do prazo em dobro
para réus com litisconsortes diferentes.
Palavras-chave: princípios fundamentais e informativos. Constituição
Federal. Legislação. Novo CPC.
Abstract: The present study intends to examine the fundamental and
informative principles of the process with a view to the new procedural
reality established with the approval of the new Code of Civil Procedure
established by Law 13.105 of March 16, 2015. In addition, Issues and revisited
216 217
the jurisprudence of the courts. In this particular case, it was verified,
for example, overcoming the understanding of the STF that considered
constitutional the rule that ensured a special forum for women, as well as
the removal of criminal proceedings originating in electronic form before
the STF of the double term for defendants with different litisconsortes.
Keywords: Fundamental principles and information. Federal Constitution.
Legislation. New CPC.
Sumário: 1. Introdução – 2. Processo e Constituição. – 3. Princípios
fundamentais do processo: 3.1 Princípio do devido processo legal; 3.2.
Princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional: 3.2.1 Exaurimento
das vias ordinárias e inafastabilidade do controle jurisdicional; 3.2.2
Arbitragem e inafastabilidade do controle jurisdicional; 3.2.3 Proibição
de concessão de liminares. 3.3 Princípio da igualdade ou isonomia
(paridade de armas): 3.3.1 Benefício de prazo; 3.3.2 Prazo em dobro para
litisconsortes com procuradores diferentes; 3.3.3 Foro especial da mulher;
3.4 Princípio do contraditório; 3.5 Princípio da ampla defesa; 3.6 Princípio
do juiz natural; 3.7 Princípio do duplo grau de jurisdição; 3.8 Princípio da
razoável duração do processo – 4. Princípios informativos do processo:
4.1 Princípio da inércia (ou dispositivo); 4.2 Princípio do impulso oficial;
4.3 Princípio da lealdade e boa-fé processual; 4.4 Princípio da adequação:
4.4.1 Critérios de adequação; 4.4.2 Adequação jurisdicional do processo;
4.5 Princípio da cooperação; 4.6 Princípio da primazia do julgamento de
mérito; 4.7 Princípio da publicidade e da motivação das decisões judiciais –
5. Considerações finais – Referências.
1. INTRODUÇÃO
Um determinado ramo do direito para adquirir autonomia
necessita de princípios próprios, que lhe assegurem mecanismos para sua
aplicação prática. Não é diferente com o processo civil, que é informado
por princípios constitucionais e infraconstitucionais, classificados pela
216 217
doutrina, respectivamente, em princípios fundamentais e princípios
informativos do processo civil.
E o estudo do tema ganhou novos contornos com a moderna teoria
dos princípios, desenvolvida, sobretudo, a partir dos estudos de Robert
Alexy, Ronald Dworkin, Humberto Ávila, dentre outros, Assim, foi revista
a função dos princípios no ordenamento jurídico, abandonando-se a
concepção de que eram apenas meios de colmatação de lacunas. A partir
desta nova realidade, os princípios passaram a integrar o ordenamento
jurídico como espécies de norma jurídica, aumentando a necessidade de
seu estudo.
No âmbito processual, o devido processo legal é o princípio-mãe, do
qual decorrem todos os outros. Aliás, nas palavras de Nelson Nery Junior:
Bastaria a Constituição Federal de 1988 ter enunciado
o princípio do devido processo legal, e o caput e os
incisos do art. 5º, em sua grande maioria, seriam
absolutamente despiciendos. De todo modo, a
explicitação das garantias fundamentais derivadas do
devido processo legal, como preceitos desdobrados nos
incisos da CF 5º, é uma forma de enfatizar a importância
dessas garantias, norteando a administração pública,
o Legislativo e o Judiciário para que possam aplicar a
cláusula sem maiores indagações (NERY JUNIOR, 2009,
p. 85).
Com o presente estudo, destarte, pretende-se examinar os principais
princípios fundamentais e informativos do processo, destacando as
inovações do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 13.105, de
16 de março de 2015 e da jurisprudência sobre o tema.
2. PROCESSO E CONSTITUIÇÃO
A Constituição já foi considerada uma mera carta de intenções, época
218 219
em que era lícita a interpretação de um dado ramo do direito dissociado
das diretrizes constitucionais. “Por isso é que era muito comum, pelo
menos até há bem pouco tempo, interpretar-se e aplicar-se determinado
ramo do direito tendo-se em conta apenas a lei ordinária principal que o
regulamentava” (NERY JUNIOR, 2009, p. 85).
A referida concepção perdeu força desde o desenvolvimento e
difusão da teoria da Força Normativa da Constituição, de Konrad Hasse,
marco a partir do qual houve o reconhecimento da superioridade da
Constituição, a qual não se limita, como outrora, ao seu aspecto formal
(NOVELINO, 2013, p. 34).
Por isso, a interpretação da legislação infraconstitucional deve partir
do texto constitucional. Afinal, a Constituição é a Lei das Leis, fundamento
de validade de toda a ordem jurídica, vale dizer, “é a norma fundamental
que constitui a unidade de uma pluralidade de normas enquanto representa
o fundamento da validade de todas as normas pertencentes a essa ordem
normativa” (KELSEN, 1999, p. 136).
Trata-se de fenômeno que tem sido denominado de
“constitucionalização” dos diversos ramos do direito, dele não escapando,
obviamente, o processual civil. E tal compreensão é acentuada nos Estados
em que a Constituição é analítica, tal qual a Constituição Federal de 1988,
que não se atém aos aspectos fundamentais, tratando de temas estranhos à
estrutura do Estado.
Com base nisso, Cássio Scarpinella Bueno fala na existência de um
modelo constitucional do processo civil, no qual os princípios constitucionais
“[…] ocupam-se especificamente com a conformação do próprio processo,
assim entendido o método de atuação do Estado-juiz e, portanto, método
de exercício da função jurisdicional. São eles que fornecem as diretrizes
mínimas, mas fundamentais, do próprio comportamento do Estado-juiz”
(BUENO, 2012, p. 192).
Não por outra razão que o art. 1º do novo CPC dispõe que “o
processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os
218 219
valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da
República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código”.
É bem verdade que o dispositivo diz o óbvio, mas nossas raízes históricas
justificam a necessidade de reafirmação da principiologia constitucional e
infraconstitucional do processo.
3. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO
3.1 PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
O devido processo legal é a garantia das garantias, na medida
em que dela decorre, praticamente, todas as demais; ou como prefere a
doutrina “princípio-síntese” ou “princípio de encerramento”, pois condensa
“[…] todos os valores ou concepções do que se entende como um processo
justo e adequado, isto é, como representativo suficiente de todos os demais
indicados pela própria Constituição Federal e, em geral, desenvolvidos pela
doutrina e pela jurisprudência” (BUENO, 2012, p. 212).
Para além das garantias formais, que não deixam de ser consectários
do devido processo legal, tais como contraditório, juiz natural, ampla defesa,
duplo grau de jurisdição, dentre outras, a sociedade contemporânea exige
que o processo seja justo e se desenvolva da forma mais célere possível. Tal
preocupação, aliás, justificou a inclusão da razoável duração do processo
como uma garantia fundamental.
Deveras,
Nesse âmbito de comprometimento com o “justo”, com
a “correção”, com a “efetividade” e a “presteza” da
prestação jurisdicional, o due process of law realiza, entre
outras, a função de um superprincípio, coordenando e
delimitando todos os demais princípios que informam
tanto o processo como o procedimento. Inspira e torna
realizável a proporcionalidade e razoabilidade que
220 221
deve prevalecer na vigência e harmonização de todos
os princípios do direito processual de nosso tempo […]
(THEODORO JÚNIOR, 2014, p. 183).
Assim, deve-se estudar o princípio considerando a existência de
duas dimensões: substancial (substantive due process) e formal/processual
(processual due process). Sob o enfoque formal/processual, a tutela
jurisdicional deve ser prestada pelo Estado com a estrita observância às
regras procedimentais previamente estabelecidas, dando concretude aos
direitos de ação e de defesa.
De outro lado, o devido processo legal substancial consubstancia
a necessidade de observância da razoabilidade e da proporcionalidade
na aplicação das normas processuais. A cláusula foi expressamente
reconhecida pelo art. 8º do CPC, que exige do magistrado, ao aplicar o
ordenamento jurídico, o dever de velar pela dignidade da pessoa humana e
observar a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade
e a eficiência.
O novo sistema processual, destarte, prima pela máxima eficiência
da tutela jurisdicional, o que é um corolário do devido processo legal
substancial (processo justo). Com efeito,
O processo justo, na concepção constitucional, não é o
programado para ir além do direito positivado na ordem
jurídica: é apenas aquele que se propõe a outorgar
aos litigantes a plena tutela jurisdicional, segundo
os princípios fundamentais da ordem constitucional
(liberdade, igualdade e legalidade). (THEODORO
JÚNIOR, 2014, p. 189).
3.2. PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE DO CONTROLE JURISDICIONAL
Trata-se de princípio consagrado no inciso XXXV do art. 5º da CF,
segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão
220 221
ou ameaça a direito”. O CPC reproduz no caput do art. 3º o referido princípio,
dispondo que “não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão
a direito”. “Embora o destinatário principal desta norma seja o legislador,
o comando constitucional atinge a todos indistintamente, vale dizer, não
pode o legislador nem ninguém mais impedir que o jurisdicionado vá a
juízo deduzir pretensão” (NERY JUNIOR, 2009, p. 170).
Quanto ao âmbito de abrangência da garantia, verifica-se do
conteúdo dos dispositivos em comento que ela alberga sob seu manto
protetor tanto a tutela preventiva ou inibitória (ameaça de lesão) quanto a
repressiva (pós lesão).
Outrossim, “a Constituição não exige que essa lesão ou ameaça seja
proveniente do Poder Público, o que permite concluir que estão abrangidas
tanto as decorrentes de ação ou omissão de organizações públicas como
aquelas oriundas de conflitos privados” (MENDES; GONET, 2011, p. 438-
439).
O princípio, como todo direito fundamental, não é absoluto,
contemplando-se, excepcionalmente, hipóteses em que é lícita a limitação
do acesso à Justiça. Exemplifica-se com a previsão do § 1º do art. 217, que
condiciona o acesso à Justiça, para discutir questões derivadas de causas
desportivas, ao exaurimento das possibilidades na Justiça Desportiva.
Entretanto, algumas situações são peculiares e como tais suscitam
discussões e controvérsias, merecendo uma atenção especial.
3.2.1 EXAURIMENTO DAS VIAS ORDINÁRIAS E INAFASTABILIDADE DO
CONTROLE JURISDICIONAL
O § 4º do art. 153 da Constituição Federal de 1967, com redação
da Emenda Constitucional 07, de 13 de abril de 1977[1], autorizava a
legislação a exigir, como condição para o ingresso em juízo, o exaurimento
das vias administrativas. A ressalva, contudo, não foi reproduzida no texto
constitucional de 1988, o que, à primeira vista, conduz ao entendimento de
222 223
que seria vedada restrições de tal espécie.
Não obstante, inúmeras legislações, a exemplo das Leis 11.417/2006
(art. 7º, § 1º) e 9.507/1997 (art. 8º, parágrafo único), ainda exigem, em dadas
circunstâncias, o exaurimento das vias ordinárias para viabilizar o acesso
ao Poder Judiciário. A questão que se coloca, nesse cenário, diz respeito à
conformação das sobreditas legislações aos termos da Constituição Federal
de 1988. Em outros termos, é preciso investigar a compatibilidade das
restrições ao modelo constitucional de processo.
Elucidativas, a propósito do tema, a lição de Gilmar Ferreira Mendes
et al:
[…] Pode-se sustentar que, ao lado da tarefa
conformadora, o legislador não está impedido de
restringir ou limitar o exercício do direito à proteção
judicial, especialmente em razão de eventual colisão
com outros direitos ou valores constitucionais. Resta
claro que o núcleo essencial do direito fundamental à
proteção judicial efetiva não pode ser agredido, porém
a relatividade deste núcleo essencial e a compreensão
segundo a qual as restrições operam externamente
e não internamente permitem que a dimensão a
posteriori deste direito seja menor do que a sua feição
a priori. (MENDES; GONET, 2011, p. 455) .
Para Fredie Didier Jr., os direitos fundamentais podem sofrer
restrições por obra do legislador infraconstitucional, desde que fundadas
em justificativas razoáveis. Fundado nesta premissa, conclui o referido
doutrinador que “pode a lei restringir, em certos casos, o acesso ao
Judiciário; se, porém, revelar-se abusiva, de acordo com circunstâncias
particulares do caso concreto, esta restrição pode ser afastada pelo órgão
julgador” (DIDIER JR., 2015, p. 179-180).
A jurisprudência do STF orienta-se nesse sentido:
Ementa: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO
222 223
GERAL. PRÉVIO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO E
INTERESSE EM AGIR. 1. A instituição de condições para
o regular exercício do direito de ação é compatível com
o art. 5º, XXXV, da Constituição. Para se caracterizar
a presença de interesse em agir, é preciso haver
necessidade de ir a juízo. 2. A concessão de benefícios
previdenciários depende de requerimento do
interessado, não se caracterizando ameaça ou lesão a
direito antes de sua apreciação e indeferimento pelo
INSS, ou se excedido o prazo legal para sua análise.
É bem de ver, no entanto, que a exigência de prévio
requerimento não se confunde com o exaurimento
das vias administrativas. 3. A exigência de prévio
requerimento administrativo não deve prevalecer
quando o entendimento da Administração for notória e
reiteradamente contrário à postulação do segurado. 4.
Na hipótese de pretensão de revisão, restabelecimento
ou manutenção de benefício anteriormente concedido,
considerando que o INSS tem o dever legal de conceder
a prestação mais vantajosa possível, o pedido poderá
ser formulado diretamente em juízo – salvo se
depender da análise de matéria de fato ainda não
levada ao conhecimento da Administração –, uma vez
que, nesses casos, a conduta do INSS já configura o não
acolhimento ao menos tácito da pretensão. 5. Tendo
em vista a prolongada oscilação jurisprudencial na
matéria, inclusive no Supremo Tribunal Federal, deve-
se estabelecer uma fórmula de transição para lidar
com as ações em curso, nos termos a seguir expostos. 6.
Quanto às ações ajuizadas até a conclusão do presente
julgamento (03.09.2014), sem que tenha havido prévio
224 225
requerimento administrativo nas hipóteses em que
exigível, será observado o seguinte: (i) caso a ação
tenha sido ajuizada no âmbito de Juizado Itinerante, a
ausência de anterior pedido administrativo não deverá
implicar a extinção do feito; (ii) caso o INSS já tenha
apresentado contestação de mérito, está caracterizado
o interesse em agir pela resistência à pretensão; (iii)
as demais ações que não se enquadrem nos itens (i) e
(ii) ficarão sobrestadas, observando-se a sistemática a
seguir. 7. Nas ações sobrestadas, o autor será intimado
a dar entrada no pedido administrativo em 30 dias,
sob pena de extinção do processo. Comprovada a
postulação administrativa, o INSS será intimado a se
manifestar acerca do pedido em até 90 dias, prazo
dentro do qual a Autarquia deverá colher todas as
provas eventualmente necessárias e proferir decisão.
Se o pedido for acolhido administrativamente ou
não puder ter o seu mérito analisado devido a razões
imputáveis ao próprio requerente, extingue-se a ação.
Do contrário, estará caracterizado o interesse em agir
e o feito deverá prosseguir. 8. Em todos os casos acima
– itens (i), (ii) e (iii) –, tanto a análise administrativa
quanto a judicial deverão levar em conta a data do
início da ação como data de entrada do requerimento,
para todos os efeitos legais. 9. Recurso extraordinário a
que se dá parcial provimento, reformando-se o acórdão
recorrido para determinar a baixa dos autos ao juiz de
primeiro grau, o qual deverá intimar a autora – que
alega ser trabalhadora rural informal – a dar entrada
no pedido administrativo em 30 dias, sob pena de
extinção. Comprovada a postulação administrativa,
224 225
o INSS será intimado para que, em 90 dias, colha as
provas necessárias e profira decisão administrativa,
considerando como data de entrada do requerimento
a data do início da ação, para todos os efeitos legais.
O resultado será comunicado ao juiz, que apreciará a
subsistência ou não do interesse em agir (BRASIL, STF,
RE 631.240/MG, 2014).
3.2.2 ARBITRAGEM E INAFASTABILIDADE DO CONTROLE
JURISDICIONAL
A arbitragem constitui meio de solução de litígios por
heterocomposição, uma vez que o conflito é resolvido por um terceiro
escolhido pelas partes em conflito, a quem compete buscar uma solução
amigável e imparcial. Não há uma uniformidade na doutrina sobre sua
natureza jurídica, havendo três diferentes concepções.
A primeira delas é no sentido de que a arbitragem só pode ser
considerada um equivalente jurisdicional, na medida em que a jurisdição
é monopólio do Estado. Uma segunda acepção, capitaneada pelo professor
Cássio Scarpinella Bueno, entende que se trata de método paraestatal de
solução de conflitos (BUENO, 2012, p. 70). A terceira posição defende que a
arbitragem tem natureza jurisdicional, dividindo a jurisdição em jurisdição
estatal, que é prestada pelo Estado-juiz, e jurisdição privada, prestada por
meio da arbitragem. Não existe um entendimento que possa ser considerado
majoritário. Tanto é verdade que a jurisprudência do STJ tem precedentes
em ambos os sentidos[2].
Seja como for, para o presente estudo, importa perquirir acerca
da compatibilidade da arbitragem com o princípio da inafastabilidade
do controle jurisdicional. É bem verdade que, para quem considera a
arbitragem típico exercício de atividade jurisdicional por particular, a
questão é irrelevante.
226 227
Não se pode esquecer, para a abordagem do tema, que nosso
ordenamento jurídico é orientado pela ideia de efetividade da tutela
jurisdicional, que é uma das vertentes do princípio do devido processo
legal. De mais a mais, somente litígios relativos a direitos patrimoniais
disponíveis podem ser submetidos à arbitragem. Logo, é natural que
se assegure a autonomia da vontade das partes na escolha do terceiro
incumbido da resolução do litígio.
Com esse espírito, Nelson Nery Junior assinala:
O fato de as partes constituírem convenção de
arbitragem não significa ofensa ao princípio
constitucional do direito de ação. Isto porque somente
os direitos disponíveis podem ser objeto de convenção
de arbitragem, razão por que as partes, quando o
celebram, estão abrindo mão da faculdade de fazerem
uso da jurisdição estatal, optando pela jurisdição
arbitral. Terão, portanto, sua lide decidida pelo árbitro,
não lhes sendo negada a aplicação da atividade
jurisdicional. (NERY JUNIOR, 2009, p. 172).
E tal panorama, vale registrar, foi estendido pela Lei 13.129, de 26
de maio de 2015, às demandas envolvendo a Administração Pública, desde
que relativa a direitos patrimoniais disponíveis, nos exatos termos do
permissivo do art. 1º, § 1º, da Lei 9.307/1996, alterado pela novel legislação.
3.2.3 PROIBIÇÃO DE CONCESSÃO DE LIMINARES
Outra questão polêmica refere-se à possibilidade de restrição ou
mesmo proibição de concessão de provimentos liminares ou antecipatórios
em determinados procedimentos. Tal medida foi consagrada, especialmente,
no âmbito do mandado de segurança, inicialmente pela Lei 4.348/1964 e
reproduzida na Lei 12.016/2009, cujo § 2º do art. 7º estabelece que “não será
concedida medida liminar que tenha por objeto a compensação de créditos
226 227
tributários, a entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior, a
reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de
aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza”.
Alerta a doutrina que “a proibição genérica de concessão de liminares
pode, porém, afetar a própria proteção judicial efetiva, pois, muitas vezes,
o deferimento da liminar tem em vista a conservação do direito material
postulado” (MENDES; GONET, 2011, p. 458).
A despeito da preocupação expressada pela doutrina, a
jurisprudência do STF (1990) reconheceu a compatibilidade da referida
restrição com o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional,
aplicando-se a mesma lógica do entendimento firmado em relação ao
exaurimento das vias ordinárias (razoabilidade).
3.3 PRINCÍPIO DA IGUALDADE OU ISONOMIA (PARIDADE DE ARMAS)
A fonte primária do princípio da isonomia é o art. 5º, caput, da CF,
mas a “garantia constitucional da isonomia deve, evidentemente, refletir-se
no processo. […]” (BEDAQUE, 2009, p. 97). No plano processual, a isonomia
materializa-se na necessidade de assegurar às partes paridade de armas
(art. 7º, NCPC).
Cuida-se de princípio cujo destinatário principal é o magistrado, a
quem cabe a condução do processo, de modo que deve manter a necessária
equidistância em relação às partes. Nesse sentido reza o art. 9º do Código
de Ética da Magistratura Nacional, aprovado na 68ª Sessão Ordinária
do Conselho Nacional de Justiça, em 06 de agosto de 2008, nos autos do
processo nº 200820000007337, que “ao magistrado, no desempenho de sua
atividade, cumpre dispensar às partes igualdade de tratamento, vedada
qualquer espécie de injustificada discriminação”.
Contudo, a imparcialidade, que deriva justamente da isonomia, “[…]
não significa distanciamento das partes. Ao contrário, sua relação com elas,
a vivência profunda do caso, a assimilação interior de cada drama judicial,
228 229
é fator valioso na conduta do juiz que tem seu fundamento no princípio da
imediação” (NALINI, 2012, p. 99).
Outrossim, o estudo do princípio da isonomia perpassa pela análise
das regras de tratamento e prazo diferenciados asseguradas a determinados
sujeitos processuais. Para tanto, deve-se ter em conta que a igualdade
preconizada pelo ordenamento jurídico, inclusive na nova Codificação, é a
material ou substancial, que recomenda o tratamento igualitário das partes
na medida em que se desigualam.
Só assim é possível concretizar o princípio da dignidade da pessoa
humana e assegurar a efetividade da tutela jurisdicional. Afinal, “a real
igualdade das partes no processo somente se verifica quando a solução
encontrada não resultar da superioridade econômica ou da astúcia de uma
delas […]” (BEDAQUE, 2009, p. 101). Assim, “por mais paradoxal que possa
parecer, o tratamento distinto é, em alguns casos, a principal forma de
igualar as partes” (DIDIER JR., 2015, p. 98).
Fundado nesta premissa, serão analisadas a seguir três situações de
tratamento diferenciado.
3.3.1 BENEFÍCIO DE PRAZO
O art. 188 do CPC de 1973 assegurava ao MP e à Fazenda Pública
prazo em dobro para recorrer e em quádruplo para contestar. O CPC de
2015 manteve a previsão de prazos diferenciados, mas extinguiu o prazo
em quádruplo para recorrer, unificando, destarte, a matéria. Assim, o MP,
a Defensoria Pública e a Fazenda Pública Federal, Estadual ou Municipal
terão prazo em dobro para manifestar-se nos autos (arts. 180, 183 e 186).
O discrimen que autoriza a concessão de tais prazos diferenciados
reside na relevância dos interesses em jogo, além da precária estrutura
de alguns órgãos, especialmente a Defensoria Pública. Para Nelson Nery
Junior, “quem litiga com a Fazenda Pública ou com o Ministério Público
não está enfrentando um outro particular, mas sim o próprio povo, razão
228 229
bastante para o legislador beneficiar aquelas duas entidades com prazos
especiais […] (NERY JUNIOR, 2009, p. 104).
Embora predominante o entendimento, existem vozes contrárias.
Nesse sentido é o posicionamento de Cássio Scarpinella Bueno:
Nada justifica que, no plano do processo, o Estado
tenha prerrogativas (privilégios) que as outras partes
não têm. Mais ainda quando é a Constituição Federal,
sempre a Constituição Federal, que determina a
atuação eficiente da Administração Pública (art. 37,
caput) e, mais ainda, quando é a mesma Constituição
Federal que institucionaliza as advocacias públicas
como órgãos institucionais para a tutela, em juízo e
fora dele, dos interesses e direitos do Estado.
Não convence o entendimento de que o Estado
representa interesses e direitos de uma coletividade e
que, por isto, sua figura impõe tratamento diferenciado
em juízo. É que a se pensar desta forma, estar-se-
ia criando uma imunidade à atuação do Estado, um
protecionismo não autorizado pela Constituição.
(BUENO, 2012, p. 251).
Na prática, contudo, a divergência não tem relevância, porque
a garantia de prazo contínua prevista na ordem jurídica processual,
não havendo notícias de decisões judiciais reconhecendo sua
inconstitucionalidade.
3.3.2 PRAZO EM DOBRO PARA LITISCONSORTES COM PROCURADORES
DIFERENTES
Os litisconsortes com procuradores diferentes terão prazos contados
em dobro para todas as suas manifestações, em qualquer juízo ou tribunal,
independentemente de requerimento (art. 229, caput, CPC). A distinção,
230 231
nesse particular, decorre da dificuldade da realização dos atos processuais
quando as partes são representadas por advogados distintos. Obviamente
que se os vários réus são representados por um único procurador, não
haverá discrimen que autorize o tratamento diferenciado.
A propósito, o CPC de 2015, em boa hora, disciplinou alguns aspectos
objeto de divergência, de modo a garantir maior efetividade ao princípio
da igualdade. Um deles foi positivar a regra de que cessa o prazo em dobro
se, havendo apenas dois réus, é oferecida defesa por um deles (art. 229, §
1º). O referido comando legal baseou-se na orientação do STF constante
da Súmula 641, segundo a qual “não se conta em dobro o prazo para
recorrer, quando só um dos litisconsortes haja sucumbido”. Na mesma
linha, esclareceu-se que a prerrogativa de prazo em dobro não se aplica
aos processos eletrônicos (art. 229, § 2º).
O Supremo Tribunal Federal, inclusive, admitiu a aplicabilidade
da sobredita regra às ações penais originárias ao decidir que o prazo em
dobro para manifestação não valerá mais em ações penais que tramitam
eletronicamente no Supremo Tribunal Federal, pois a regra (artigo 191),
aplicada subsidiariamente, pertencia ao antigo Código de Processo Civil.
Com o novo CPC (Lei 13.105/2015), o artigo 229, parágrafo 2º, alterou essa
previsão por causa do processo eletrônico (BRASIL, STF, Inq. 380-QO, 2016).
3.3.3 FORO ESPECIAL DA MULHER
O art. 100, inciso I, do CPC de 1973 assegurava à mulher foro especial
para as ações de separação, conversão desta em divórcio e anulação de
casamento, as quais deviam ser propostas no foro de sua residência. Com o
advento da Constituição Federal que, além de consagrar igualdade genérica
no caput do art. 5º, estabeleceu como direito fundamental específico a
igualdade de homens e mulheres em direitos e obrigações (art. 5º, inciso
II), passou-se a defender a incompatibilidade do art. 100, inciso I, do CPC de
1973 e, por conseguinte, sua não recepção pela nova ordem estabelecida.
230 231
A questão foi, inclusive, veiculada em sede de controle difuso de
constitucionalidade, oportunidade em que o STF declarou a recepção do
art. 100, inciso I, do CPC de 1973, por não vislumbrar qualquer ofensa ao
princípio da isonomia (BRASIL, STF, RE 227.114/SP, 2012).
Não foi, contudo, a orientação seguida pelo legislador do novo
CPC, que preferiu estabelecer foros concorrentes para a ação de divórcio,
separação, anulação de casamento e reconhecimento ou dissolução de
união estável. Assim, as referidas demandas, hodiernamente, deverão ser
apresentadas ao foro: (a) de domicílio do guardião de filho incapaz; (b) do
último domicílio do casal, caso não haja filho incapaz; (c) de domicílio do
réu, se nenhuma das partes residir no antigo domicílio do casal.
3.4 PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
O princípio do contraditório constitui direito fundamental inscrito
no inciso LV do art. 5º da Constituição Federal, que assegura expressamente:
“aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes”. O princípio do contraditório, na feliz observação
de Fredie Didier Jr., “é reflexo do princípio democrático na estruturação
do processo” (DIDIER JR., 2015, p. 178). Pode-se afirmar, portanto, que o
contraditório expressa a necessidade de ciência bilateral dos atos do
processo com possibilidade de contradizê-los (art. 9º, CPC).
Não se limita, porém, à ciência e reação, que são inerentes à dimensão
formal do contraditório. O princípio assegura, igualmente, a oportunidade
de a parte influenciar a decisão jurisdicional, o que corresponde à dimensão
material do contraditório. De fato,
É que o contraditório, no contexto dos “direitos
fundamentais” (v. n. 2.4 do Capítulo 2 da Parte I), deve
ser entendido como o direito de influir, de influenciar,
232 233
na formação da convicção do magistrado ao longo
de todo o processo. Não se deve entendê-lo somente
do ponto de vista negativo, passivo, defensivo. O
Estado-juiz, justamente por força dos princípios
constitucionais do processo, não pode decidir, sem que
garanta previamente amplas e reais possibilidades de
participação daqueles que sentirão, de alguma forma,
os efeitos de sua decisão. (BUENO, 2012, p. 217).
Aliás, o contraditório material foi extremamente valorizado no
CPC de 2015, tanto que será considerada não fundamentada, e passível de
nulidade, a decisão que “não enfrentar todos os argumentos deduzidos no
processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”
(art. 489, § 1º, inciso IV).
Eduardo Cambi e Renê Francisco Hellman, sobre a influência do
contraditório nas decisões judiciais, assinalam:
O tratamento dado ao contraditório já nas primeiras
linhas do novo Código de Processo Civil tem efeito direto
na motivação da decisão judicial, porque se enfatiza o
caráter dialógico do processo e a compreensão de que a
decisão deve decorrer do diálogo entre todos os sujeitos
processuais. (CAMBI; HELLMAN, 2015, p. 427).
Até porque “a norma jurídica é fruto de uma colaboração entre
o legislador e o juiz, de modo que a sociedade civil tem o direito não só
de influenciar no momento de sua formação legislativa, mas também no
momento de sua reconstrução jurisdicional” (MARINONI; ARENHART;
MITIDIERO, 2015, p. 493).
A constatação da existência de um contraditório material, por si só,
exige do magistrado uma maior cautela no trato das questões processuais,
inclusive aquelas cognoscíveis de ofício. Por isso, Nelson Nery Júnior, antes
mesmo das discussões do novo CPC, já sinalizava no sentido de que “o
devido processo (processo justo) pressupõe a incidência […] do direito de
232 233
ser comunicado previamente dos atos do juízo, inclusive sobre as questões
que o juiz deva decidir ex officio, entre outros derivados da procedural due
process clause.” (NERY JUNIOR, 2009, p. 90).
A preocupação da doutrina influenciou o CPC de 2015, cujo art. 10
consagra a vedação à decisão surpresa nos seguintes termos: “o juiz não
pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a
respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar,
ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.
É evidente que a regra restringe a incidência do iura novit curia,
ou seja, o magistrado para conhecer de qualquer fundamento jurídico não
suscitado pelas partes deverá, antes, submetê-la ao crivo dos interessados.
Vale dizer, o brocardo iura novit curia continua plenamente aplicável,
desde que seja aplicado em conjunto com o contraditório. Assim,
Não pode o órgão jurisdicional decidir com base em
um argumento, uma questão jurídica ou uma questão
de fato não postos pelas partes no processo. Perceba:
o órgão jurisdicional, por exemplo, verifica que a
lei é inconstitucional. Ninguém alegou que a lei é
inconstitucional. O autor pediu com base me uma
determinada lei, a outra parte alega que essa lei não se
aplicava ao caso. O juiz entende de outra maneira, ainda
não aventada pelas partes: “Essa lei apontada pelo autor
como fundamento do seu pedido é inconstitucional.
Portanto, julgo improcedente a demanda”. O órgão
jurisdicional pode fazer isso, mas deve antes submeter
essa nova abordagem à discussão das partes.
O órgão jurisdicional teria de, nessas circunstâncias,
intimar as partes para manifestar-se a respeito
(“intimem-se as partes para que se manifestem sobre
a constitucionalidade da lei”). Não há aí qualquer
prejulgamento. Trata-se de exercício democrático e
234 235
cooperativo do poder jurisdicional, até mesmo porque
o juiz pode estar em dúvida sobre o tema. (DIDIER JR.,
2015, p. 82).
Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero,
comentando o novel preceptivo legal, asseveram que esta nova fisionomia
do contraditório assegura, a um só tempo, que a solução do litígio seja
objeto de reflexões aprofundadas e reforça a confiança do cidadão no Poder
Judiciário (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2015, p. 109).
3.5 PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA
O inciso LV do art. 5º consagra ainda o princípio ampla defesa,
que, para alguns, nada mais é do que aspecto substancial do contraditório.
“Atualmente, tendo em vista o desenvolvimento da dimensão substancial
do princípio do contraditório, pode-se dizer que eles se fundiram, formando
um amálgama de um único direito fundamental” (DIDIER JR., 2015, p. 86).
Seja como for, trata-se de princípio que assegura às partes a
possibilidade de deduzir adequadamente suas alegações, de modo que seja
a tutela jurisdicional prestada da forma mais eficiente possível. Corolário
desta principiologia é o direito fundamental à prova, afinal, “de nada
adianta garantir-se a eles [litigantes] com u’a [sic] mão o direito de alegar e
subtrair-lhes, com a outra, o direito de fazer prova das alegações. O direito
à prova, pois, está imbricado com a ampla defesa e dela é indissociável”
(NERY JUNIOR, 2009, p. 244).
3.6 PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL
O princípio do juiz natural é extraído dos comandos dos incisos
XXXVII e LIII do art. 5º da CF, que dispõem in verbis: “XXXVII – não
haverá juízo ou tribunal de exceção” e “LIII – ninguém será processado
nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Significa, em poucas
234 235
palavras, que “[…] a autoridade judiciária que julgará um determinado
caso deverá preexistir ao fato a ser julgado” (BUENO, 2012, p. 227), sendo
vedada a criação ad hoc de tribunais.
Na feliz síntese de Nelson Nery Junior:
A garantia do juiz natural é tridimensional. Significa
que: 1) não haverá juízo ou tribunal ad hoc, isto é,
tribunal de exceção; 2) todos têm o direito de se submeter
a julgamento (civil ou penal) por juiz competente, pré-
constituído na forma da lei; 3) o juiz competente tem
de ser imparcial0 (NERY JUNIOR, 2009, p. 126).
Característica marcante da garantia refere-se à necessidade de
que o órgão jurisdicional preexista ao fato litigioso, além do fato de que o
julgamento da lide seja realizado por juiz competente, previamente investido
da função jurisdicional, de acordo com as regras previstas na Constituição
Federal e nas legislações pertinentes. A última característica do princípio é
inerente à pessoa do magistrado e diz respeito à sua imparcialidade.
Nesse sentido prescreve o art. 8º do Código de Ética da Magistratura
Nacional que “o magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a
verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo
de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o
tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou
preconceito”.
Ademais, em determinadas circunstâncias o legislador proíbe o
ingresso superveniente de litisconsortes a fim de preservar o princípio do
juiz natural. É o que se verifica no procedimento do mandado de segurança,
no qual há um limite temporal para o ingresso de litisconsorte no polo ativo:
o despacho da petição inicial (art. 10, § 2º, Lei 12.016/2009).
3.7 PRINCÍPIO DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
O duplo grau de jurisdição não é um princípio fundamental explícito,
236 237
o que é causa de controvérsias sobre sua real natureza. Embora haja quem
defenda que não se trata de um princípio fundamental, o entendimento
dominante é no sentido de que o duplo grau de jurisdição é princípio
constitucional implícito, extraível das entrelinhas do texto constitucional,
especialmente em razão da estrutura e da competência recursal dos
Tribunais delineadas na Constituição.
Por outro lado, no âmbito internacional, o duplo grau de jurisdição
é expressamente reconhecido pela Convenção Interamericana de Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969, que,
no art. 8º, 2, h, assegura como garantia o “direito de recorrer da sentença a juiz
ou tribunal superior”. Por se referir o Tratado Internacional aos “acusados
de um deleito”, Nelson Nery Junior entende que apenas no processo penal
o princípio pode ser reconhecido como garantia constitucional absoluta.
Não obstante, o Ministro do STF Luis Fux, ao apreciar a
admissibilidade dos embargos infringentes em ação penal originária (Ação
Penal 470/MG – “mensalão”), “[…] registrou que o STF já teria rejeitado o
caráter constitucional dessa prerrogativa, ao afastar sua incidência nos
processos de competência originária dos tribunais superiores […]” (BRASIL,
STF, AP 470-AgR – vigésimo quinto a vigésimo sétimo/MG, 2013)[3].
Sem embargo da controvérsia, não se pode olvidar que o duplo grau
de jurisdição, ainda que não seja considerado um princípio fundamental
do processo, é uma realidade em nosso ordenamento jurídico, pois é
assegurado o direito à impugnação das decisões judiciais pelas vias recursais
cabíveis, forçando o reexame da questão por outro órgão jurisdicional
hierarquicamente superior.
3.8 PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO
A razoável duração do processo foi concebida como princípio
fundamental expresso com o advento da Emenda Constitucional 45/2004
que incluiu no art. 5º o inciso LXXVIII, com o seguinte teor: “a todos, no
236 237
âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do
processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. É preciso
lembrar que antes mesmo da reforma constitucional a razoável duração do
processo já era tida como princípio informador do processo civil.
Ademais, o princípio está previsto no art. 8º, “1”, do Pacto de São José
da Costa Rica, segundo o qual “toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as
devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal
competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei,
na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que
se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista,
fiscal ou de qualquer outra natureza”.
O CPC de 2015, buscando reafirmar a necessidade de celeridade
processual, positivou o princípio em seu art. 4º, o qual estabelece que “as
partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito,
incluída a atividade satisfativa”. O art. 139, inciso II, em complemento,
reserva ao magistrado a importante tarefa de velar pela duração razoável
do processo, evitando manobras protelatórias pelas partes.
Mas, afinal, o que se considera razoável duração de um processo? É
preciso ter em mente que o tempo é indispensável para a prestação de uma
tutela jurisdicional de qualidade. Com efeito,
A natureza necessariamente temporal do processo
constitui imposição democrática, oriunda do direito
das partes de nele participarem de forma adequada,
donde o direito ao contraditório e os demais direitos que
confluem para organização do processo justo ceifam
qualquer possibilidade de compreensão do direito ao
processo com duração razoável simplesmente como
direito a um processo célere. O que a Constituição e
o novo Código determinam é a eliminação do tempo
patológico – a desproporcionalidade entre duração do
processo e a complexidade do debate da causa que nele
238 239
tem lugar. O direito ao processo justo implica direito
ao processo sem dilações indevidas, que se desenvolva
temporalmente dentro de um tempo justo. (MARINONI;
ARENHAR; MITIDIERO, 2015, p. 97).
Trata-se de uma cláusula geral processual e como tal colmatável à luz
das particularidades do caso concreto, não havendo como, abstratamente,
determina-se um prazo razoável para a tramitação dos processos. Por isso,
afirma-se coerentemente que “o processo não tem de ser rápido/célere: o
processo deve demorar o tempo necessário e adequado à solução do caso
submetido ao órgão jurisdicional” (DIDIER JR., 2016, p. 86).
Nada obstante, a Lei 9.504/1997, conhecida como Lei das Eleições,
estabelece como prazo razoável para tramitação dos feitos eleitorais o prazo
de um ano, nele incluído a tramitação em todas as instâncias (art. 97-A).
A concretização do princípio pode ser buscada, inclusive, com
a facilitação da solução consensual dos conflitos, na medida em que
contribui para a diminuição do número de processos. Talvez seja esta uma
das inspirações do novo CPC, que, no § 2º do art. 3º, define que “o Estado
promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”.
Enfim,
O princípio da razoável duração do processo possui
dupla função porque, de um lado, respeita ao tempo do
processo em sentido estrito, vale dizer considerando-se
a duração que o processo tem desde seu início até o final
com o trânsito em julgado judicial ou administrativo, e,
de outro, tem a ver com a adoção de meios alternativos
de solução de conflitos, de sorte a aliviar a carga de
trabalho da justiça ordinária, o que, sem dúvida, viria
contribuir para abreviar a duração media do processo.
(NERY JUNIOR, 2009, p. 314).
238 239
4. PRINCÍPIOS INFORMATIVOS DO PROCESSO
4.1 PRINCÍPIO DA INÉRCIA (OU DISPOSITIVO)
A legislação processual, quer no CPC de 1973 (arts. 2º e 262), quer
no CPC de 2015 (art. 2º, 490 e 492), é orientada pelo princípio da inércia ou
dispositivo, o que significa dizer, o processo tem início por iniciativa da
parte interessada (nemo iudex sine actore; ne procedat iudex ex officio).
Registre-se que a inércia é característica da jurisdição que a
diferencia da função legislativa e administrativa do Estado, na medida em
que estas funções estatais desenvolvem-se de ofício, sendo indiferente para
tanto a provocação dos interessados.
José Roberto dos Santos Bedaque, a propósito do princípio em
estudo, ressalta que a tendência doutrinária converge para o afastamento
ou a mitigação do princípio dispositivo, pois “[…] embora privado o
objeto do processo, a função jurisdicional é pública e como tal deve ser
regulamentada”, isto é, “[…] além dos interesses privados das partes existe
outro, muito mais relevante, que é o interesse do Estado na correta atuação
do ordenamento jurídico mediante a atividade jurisdicional.” (BEDAQUE,
2009, p. 133).
Não é dado, pois, ao magistrado prestar tutela jurisdicional de
ofício, ressalvadas as exceções previstas em lei, em que o ordenamento
jurídico faz concessões ao princípio inquisitivo. No CPC de 1973, o processo
de inventário e partilha constituía exemplo clássico em que era lícito ao
magistrado iniciar ex officio a atividade jurisdicional. Importante lembrar
que o CPC de 2015 não reproduziu idêntica prerrogativa, de modo que o
inventário submete-se à regra geral da inércia da jurisdição.
Hodiernamente, portanto, podem ser citados como exemplo de
concessão ao princípio inquisitivo a possibilidade de instauração de
cumprimento de sentença relativo a obrigação de fazer, não fazer ou dar
coisa distinta de dinheiro (arts. 536 e 538, CPC), bem como do incidente de
240 241
resolução de demandas repetitivas (art. 976, CPC) e conflito de competência
(art. 951, CPC)
4.2 PRINCÍPIO DO IMPULSO OFICIAL
Em sentido amplo o princípio dispositivo consiste em “[…] deixar
para as partes os ônus de iniciação, determinação do objeto, impulso
do processo e produção de provas (iudex secundum allegata et probata
partium judicare debet).” (BEDAQUE, 2009, p. 89). Tal concepção não foi,
porém, abraçada pela legislação brasileira, que é taxativa no sentido de
que, uma vez instaurada a relação jurídica processual por iniciativa da
parte, o processo se desenvolve por impulso oficial.
“A regra do impulso oficial não impede que o autor simplesmente
desista da demanda e, com isso, o processo seja extinto sem exame do mérito
(art. 485, VIII, CPC)” (DIDIER JR., 2015, p. 86). Outrossim, não se pode olvidar
da modificação operada pela nova Codificação em relação ao procedimento
e sua adaptabilidade por convenção das partes. Nesse sentido, reza o art.
190, caput, do CPC que “versando o processo sobre direitos que admitam
autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças
no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar
sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou
durante o processo”.
Assim pensa Teresa Arruda Alvim Wambier et al, para quem “[…] o
NCPC contém um conjunto de regras que alteraram as feições do princípio
do impulso oficial: as que tratam das convenções processuais, previstas no
art. 190 […] (WAMBIER; CONCEIÇÃO; RIBEIRO; MELLO, 2015, p. 58)”
4.3 PRINCÍPIO DA LEALDADE E BOA-FÉ PROCESSUAL
No CPC de 1973, a boa-fé processual constava do art. 14, inciso II,
segundo o qual são deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer
240 241
forma participam do processo proceder com lealdade e boa-fé. O CPC de
2015, por sua vez, aborda o princípio no art. 5º, dispondo que “aquele que
de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com
a boa-fé”.
Em ambas os diplomas, a boa-fé processual é trabalhada como
norma de conduta de todos os sujeitos processuais, incluído o magistrado
(boa-fé objetiva), que devem pautar suas atitudes por parâmetros éticos
mínimos. Não se justifica, pois, a alegação maquiavélica de que “os fins
justificam os meios”.
Destarte, “comporta-se com boa-fé aquele que não abusa de suas
posições jurídicas” (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2015, p. 99).
A boa-fé, nesse particular, é uma cláusula geral processual cuja análise
depende das situações concretas, incumbindo ao magistrado velar pela sua
concretização, aplicando, se for o caso, as sanções por litigância de má-fé
(arts 79 a 81, CPC).
Teresa Arruda Alvim Wambier et al destaca condutas que podem
ser consideradas em conformidade com a boa-fé processual:
No dever de agir com boa-fé se inclui o de dizer a
verdade, o de não criar embaraços ao cumprimento de
decisão judicial, o de exibir documento em seu poder
cujo exame, pelo juiz, seja necessário para decidir o
mérito (e isso diz respeito até a terceiros), quando ao
juiz, deve, por exemplo, declarar-se suspeito quando o
for, respeitando a isonomia entre as partes. (WAMBIER;
CONCEIÇÃO; RIBEIRO; MELLO, p. 62, grifos no original).
4.4 PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
O princípio da adequação, que é derivado do devido processo legal,
autoriza o juiz a flexibilizar as regras procedimentais para assegurar a
eficiência na prestação da tutela jurisdicional. A adequação é princípio
242 243
que comporta três acepções diferentes: (a) legislativa: informa a produção
legislativas das regras processuais; (b) jurisdicional: faculta ao magistrado
flexibilizar as regras procedimentais para adaptar o procedimento às
particularidades da demanda e (c) negocial: as próprias partes acordam
em flexibilizar as regras procedimentais (DIDIER JR., 2015, p. 114).
4.4.1 CRITÉRIOS DE ADEQUAÇÃO
A adequação legislativa pode ser estudada sob três enfoques
diferentes: objetivo, subjetivo e teleológico.
Sob o aspecto objetivo, o procedimento pode ser flexibilizado ora em
razão da natureza do direito litigioso, prevendo-se procedimentos especiais
diferenciados, a exemplo das ações possessórias, ações de alimentos e busca
e apreensão em alienação fiduciária; ora por força da evidência do direito
material deduzido no processo (exemplo do mandado de segurança, da
ação monitória e da própria tutela antecipada de evidência); ora em vista
da situação de emergência (exemplo da tutela provisória de urgência).
Em relação ao aspecto subjetivo, o processo deve se adequar
aos sujeitos processuais, levando em consideração peculiaridades de
determinados atores da relação jurídica processual. São exemplos de
aplicação prática da adequação subjetiva: (i) intervenção obrigatória do MP
nos processos que envolvam interesse de incapaz; (ii) regras diferenciadas
de fixação de competência (alimentando e entes públicos federais, por
exemplo); (iii) incapacidade processual para litigar em certos procedimentos,
a exemplo da vedação de participação de incapazes nos Juizados Especiais;
(iv) prazos especiais para entes públicos, MP e Defensoria Pública (art. 180,
183 e 186).
A adequação teleológica, por fim, é realizada com base nos objetivos
pretendidos com a flexibilização. Exemplificativamente, o procedimento
dos Juizados Especiais é adequado ao propósito de assegurar a razoável
duração do processo e da efetividade da tutela jurisdicional.
242 243
4.4.2 ADEQUAÇÃO JURISDICIONAL DO PROCESSO
A adequação legislativa é insuficiente para o atingimento dos
propósitos da jurisdição. Mesmo porque é uma análise prévia e abstrata
realizada pelo legislador, havendo situações concretas que escapam às
previsões legais. É imprescindível, pois, assegurar autonomia ao magistrado
para realizar a adequação in concreto do procedimento às peculiaridades
da demanda em julgamento.
O art. 139, inciso VI, do CPC consagra hipótese específica de adequação
do processo, autorizando o magistrado a dilatar prazos processuais e alterar
a ordem de produção das provas, quando entender necessário em razão das
particularidades da causa. Logo se percebe que não houve, efetivamente, a
positivação da adequação genérica jurisdicional do processo.
Outra hipótese em que está o magistrado autorizado a adequar
o procedimento diz respeito à possibilidade de redistribuição do ônus
da prova quando as particularidades do caso concreto demonstrarem a
impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo probatório
ou a maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário.
Não houve, é bem verdade, previsão de adequação genérica do
procedimento. E daí emerge a dúvida: poderia o magistrado valer-se do
princípio independentemente de autorização legislativa? Considerando a
origem do princípio (devido processo legal) e a necessidade de assegurar
a eficiência na prestação da tutela jurisdicional, não há como interditar
a utilização do princípio pelo magistrado, desde que a decisão seja muito
bem fundamentada.
Nesse sentido é o magistério de Fredie Didier Jr.:
Permite-se ao magistrado que corrija o procedimento
que se revele inconstitucional, por ferir um direito
fundamental processual, como o contraditório (se
um procedimento não previr o contraditório, deve o
244 245
magistrado determina-lo, até mesmo ex officio, como
forma de efetivação desse direito fundamental).
Se a adequação do procedimento é um direito
fundamental, cabe ao órgão jurisdicional efetivá-lo,
quando diante de uma regra procedimental inadequada
às peculiaridades do caso concreto, que impede, por
exemplo, a efetivação de um direito fundamental (à
defesa, à prova, à efetividade etc.). (DIDIER JR., 2015,
p. 118).
4.5 PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
O princípio da cooperação ou cooperativo foi previsto no art. 6º do
CPC, segundo o qual “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si
para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”.
Com isso, o procedimento é estruturado mediante regras que exigem a
ampla participação das partes na construção do provimento jurisdicional,
respeitadas, evidentemente, suas posições no litígio.
Disso surgem deveres de conduta tanto para as
partes como para o órgão jurisdicional, que assume
“dupla posição”: “mostra-se paritário na condução do
processo, no diálogo processual”, e “assimético” no
momento da decisão; não conduz o processo ignorando
ou minimizando o papel das partes na “divisão do
trabalho”, mas, sim, em uma posição paritária, com
diálogo e equilíbrio (DIDIER JR., 2016, p. 125-126).
Em suma, “a colaboração implica revisão das fronteiras concernentes
à responsabilidade das partes e do juiz no processo” (MARINONI;
ARENHART; MITIDIERO, 2015, p. 101). Nesse cenário, fala-se em:
(i) dever de esclarecimento: as partes devem deduzir suas pretensões
de modo claro, objetivo e coerente; em relação ao órgão jurisdicional, cabe-
244 245
lhe aclarar todas as dúvidas das partes relativas a suas alegações e pedidos,
situação presente, por exemplo, no despacho que determina a emenda à
petição inicial, que deverá indicar precisamente o que deve ser corrigido
ou complementado pela parte;
(ii) dever de lealdade: as partes devem comportar-se observando
parâmetros éticos mínimos;
(iii) dever de proteção: uma parte não pode deliberadamente
prejudicar a outra, o que é uma decorrência da boa-fé processual;
(iv) dever de consulta: questões estranhas à lide, ainda que
cognoscíveis de ofício pelo magistrado, somente podem ser objeto de
cognição caso previamente submetidas ao crivo das partes, aspecto já
estudado por ocasião da análise do princípio do contraditório. Do mesmo
modo, a constatação da ausência de algum requisito de admissibilidade
não enseja, de plano, a extinção do processo, a qual fica condicionada a
oitiva das partes sobre a questão;
(v) dever de prevenção: impõe ao magistrado a obrigação de apontar
as deficiências das postulações das partes a fim de sejam supridas e, assim,
seja o processo aproveitado, em homenagem ao princípio da economia
processual,
A nova sistemática, portanto, demonstra que não há preponderância
de qualquer dos sujeitos do processo, sendo a tutela jurisdicional resultado
de uma atuação cooperativa das partes e do órgão jurisdicional.
4.6 PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DO JULGAMENTO DE MÉRITO
O princípio da primazia do julgamento do mérito da demanda
determina o aproveitamento do processo, sempre que possível, para que
seja viabilizado o julgamento de seu mérito. Em outras palavras, deve-se
priorizar o julgamento do mérito da causa, corrigindo-se os vícios sanáveis.
Não deixa de ser, pois, uma decorrência do princípio da instrumentalidade
das formas, que enxerga o processo como meio e não fim em si mesmo.
246 247
O legislador, nesse aspecto, valeu-se da experiência do processo
coletivo, que há muito prega a valorização do julgamento do mérito em
detrimento de questões de admissibilidade do processo. A experiência
demonstra que o princípio conduz “à solução mais inteligente e consentânea
com o princípio da economia processual” (NEVES, 2014, p. 149).
Inúmeros são os exemplos de aplicação prática do princípio no CPC,
tais como as regras dos arts. 4º (razoável duração do processo como direito
à solução integral do mérito); 6º (dever de cooperação para a obtenção de
decisão de mérito justa e efetiva), art. 139, inciso IX (dever do magistrado
de determinar o suprimento dos pressupostos processuais e saneamento de
outros vícios processuais), 282, § 2º (quando o juiz puder decidir o mérito a
favor da parte a quem a aproveite a nulidade, o juiz não pronunciará e nem
mandará repetir o ato ou suprir-lhe a falta), dentre outros.
4.7 PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE E DA MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES
JUDICIAIS
O art. 11 do CPC, na mesma linha do art. 93, inciso IX, da CF, dispõe
que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos,
e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade. Por isso, o
art. 52, § 6º, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que assegurava
julgamento secreto às representações disciplinares de magistrados, não foi
recepcionado pela CF (BRASIL, STF, ADI 4.638-REF-MC/DF, 2012).
O princípio da motivação das decisões judiciais, por sua vez, exige
que o magistrado, ao decidir, decline os fundamentos de fato e de direito que
embasam o seu entendimento, refutando as teses sustentadas pelas partas
capazes de infirmar sua conclusão. Afinal, “sem motivação a decisão judicial
perde duas características centrais: a justificação da norma jurisdicional
para o caso concreto e a capacidade de orientação de condutas sociais.
Perde, em uma palavra, o seu próprio caráter jurisdicional” (MARINONI;
ARENHART; MITIDIERO, 2015, p. 111).
246 247
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo civil moderno valoriza a eficiência na prestação da
tutela jurisdicional, afinal, trata-se de um serviço público essencial e
relevante, submetido aos ditames do art. 37, caput, da Constituição, que
consagra os princípios constitucionais da Administração Pública, dentre
eles a eficiência.
Com esse espírito, o novo CPC previu nos doze artigos iniciais
disposições que pretendem dar concretude a todos os princípios do processo,
sejam eles fundamentais ou meramente informativos. Na verdade, seria
suficiente a previsão do devido processo legal e do princípio cooperativo,
na medida em que todos os demais deles derivam. Não obstante, o
exaurimento da matéria não prejudica a sua compreensão; ao contrário,
orienta o intérprete e aplicador do direito.
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Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MS 11.308/DF, 1ª Seção, rel. Min.
Luiz Fux. Diário de Justiça Eletrônico: 19 maio 2008.
BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.CC 111.230/DF, 2ª Seção, rel. Min.
Nancy Andrighi. Diário de Justiça Eletrônico: 03 abril 2014.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 631.240/MG, Pleno, rel. Min.
Roberto Barroso. Diário de Justiça Eletrônico: 07 nov. 2014.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 223-MC/DF, Pleno, rel. Min.
Paulo Brossad, rel. p/ acórdão Min. Sepúlveda Pertence. Diário de Justiça:
29 jun. 1990, p. 1587.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Inq 380-QO/DF, 2ª T., rel. Min.
Teori Zavascki. Diário de Justiça Eletrônico: 30 jun. 2016.
248 249
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 227.114/SP, 2ª T., rel. Min.
Joaquim Barbosa. Diário de Justiça Eletrônico: 15 fev. 2012.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AP 470 AgR – vigésimo quinto a
vigésimo sétimo/MG, rel. Min. Joaquim Barbosa, 11 e 12.9.2013
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 4.638-REF-MC/DF, Plenário do
STF, rel. Min. Marco Aurélio, j. 08.02.2012.
BUENO, Cássio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São
Paulo: Saraiva, 2015.
_______. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. Vol. 01: Teoria Geral
do Direito Processual Civil. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
CAMBI, Eduardo; HELLMAN, Renê Francisco. Precedentes e Dever de
Motivação das Decisões Judiciais no Novo Código de Processo Civil. Revista
de Processo nº 241, mar. 2015.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 01: Introdução ao
Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 17ª ed.
Salvador: Juspodivm, 2015.
DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil.
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KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. MACHADO, João Baptista (trad.). São
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MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel.
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MENDES, Gilmar; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito
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NALINI, José Renato. Ética da Magistratura: Comentários ao Código de Ética
da Magistratura Nacional – CNJ. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2012.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Processo Coletivo. 2ª ed. São
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NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo na Constituição Federal:
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processo civil, penal e administrativo. 9ª ed. São Paulo: Revista dos
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NOVELINO, Marcelo. Manual de Direito Constitucional. 8ª ed. Rio de Janeiro:
Forense; São Paulo: Método, 2013.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I:
Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. 55ª
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO,
Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres. Primeiros
Comentários ao Novo Código de Processo Civil: Artigo por artigo. São Paulo:
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WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de
Processo Civil. Vol. 1: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento.
11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
ZANETI JR., Hermes; GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direitos Difusos e
Coletivos. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2012.
NOTAS
[1] Art. 153 […] § 4º Os vencimentos dos juizes vitalícios serão fixados com
diferença não excedente de vinte por cento de uma para outra entrância,
atribuindo-se aos de entrância mais elevada não menos de dois terços
dos vencimentos dos desembargadores, assegurados a estes vencimentos
não inferiores aos que percebam os Secretários de Estado, não podendo
ultrapassar, porém, os fixados para os Ministros do Supremo Tribunal
Federal.
[2] “[…] uma vez convencionado pelas partes cláusula arbitral, o árbitro vira
juiz de fato e de direito da causa, e a decisão que então proferir não ficará
sujeita a recurso ou à homologação judicial, segundo dispõe o artigo 18 da
Lei 9.307/96, o que significa categorizá-lo como equivalente jurisdicional,
porquanto terá os mesmos poderes do juiz togado, não sofrendo restrições
250 251
na sua competência” (BRASIL, STJ, MS 11.308/DF, 2008).
“[…] A atividade desenvolvida no âmbito da arbitragem tem natureza
jurisdicional, sendo possível a existência de conflito de competência entre
juízo estatal e câmara arbitral” (BRASIL, STJ, CC 111.230/DF, 2014).
[3] STF, AP 470 AgR – vigésimo quinto a vigésimo sétimo/MG, rel. Min.
Joaquim Barbosa, 11 e 12.9.2013, informativo 719.
251
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250 251
A REPARAÇÃO DO DANO NA FASE DE EXECUÇÃO PENAL
Luiz Flário Borges D’Urso - Advogado Criminalista, Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP, foi Presidente da OAB/SP por três gestões, Conselheiro Federal da OAB, Presidente de Honra da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – ABRACRIM e Professor Honoris Causa da Faculdade de Direito da FMU. Site: www.durso.com.br.
A importante fase da execução penal tem início com o cumprimento
da pena imposta ao final do processo penal, todavia, admite-se também, a
execução penal provisória, para aqueles que, presos preventivamente, já
tenham cumprido tempo de prisão cautelar, que lhes assegure o direito à
progressão de regime.
Esta fase processual nunca recebeu a atenção necessária dos juristas
e legisladores, e talvez isto se deva à situação de pobreza que se encontra
a quase totalidade da massa carcerária brasileira, refletindo num mercado
de trabalho pouco atrativo economicamente.
Tamanho descaso com a execução penal e com o próprio sistema
prisional tem consequências jurídicas e fáticas que refletem na sociedade
como um todo.
Com o advento da operação Lava Jato, réus de elevado poder
aquisitivo passaram a ser remetidos aos cárceres, quer por decretação
de custódias cautelares (frequentemente prisões preventivas), quer por
decisões condenatórias, que embora não definitivas, levaram à instauração
de execuções provisórias das penas, perante as Varas de Execuções
Criminais.
Diante deste fato, o mercado alterou-se de modo a atrair profissionais
252 253
do Direito para esta área, até então exercida quase que exclusivamente
pelos Defensores Públicos e Advogados nomeados para defesa de réus
pobres.
A matéria que contempla a fase de execução penal é bem ampla e
complexa, reclamando do profissional do Direito, conhecimento específico
de institutos jurídicos só existentes nesta fase.
Uma questão bastante tormentosa reside na obrigatoriedade
da reparação do dano – quando imposta pela sentença penal – para que
o sentenciado possa progredir de regime, passando de um regime de
cumprimento de pena mais grave, para um regime menos severo.
Pela lei brasileira, além do preenchimento das condições objetivas
(tempo de cumprimento de pena) e das condições subjetivas (bom
comportamento carcerário), exige-se – quando imposto pela sentença – que
a reparação do dano seja cumprida, para se conceder a referida progressão.
Neste ponto, apresentam-se alguns problemas, pois o sentenciado
poderá não ter condições financeiras para realizar tal reparação e esse fato
não poderá impedir que a progressão lhe seja concedida.
Isto porque, no Brasil, não se admite manter alguém preso, somente
porque esta pessoa não possui recursos financeiros. Da mesma forma,
não se pode admitir a manutenção de alguém em regime mais gravoso,
somente porque não tem dinheiro para pagar a reparação do dano que lhe
foi imposta.
A impossibilidade de reparação do dano, pode se dar pela constrição
do patrimônio do sentenciado (penhora, arresto, etc.), podendo também
se verificar tal impossibilidade, quando o valor da reparação é superior
à totalidade do patrimônio do condenado. Nestes casos, a progressão não
pode ser vedada.
Mesmo em sede de execução penal provisória, existe uma tendência
de não se admitir a execução somente de parte da pena (exige-se o
cumprimento da pena na sua inteireza), obrigando, também neste caso, a
reparação do dano, salvo quando esta for impossível, como nos exemplos
252 253
indicados anteriormente.
Explico. Se a reparação não pode ser realizada por causa de bloqueios
patrimoniais judiciais, ou ainda, se o patrimônio total do sentenciado
não alcançar o valor a ser reparado, e isto for devidamente provado, não
se poderia impedir a progressão de regime, quando presente os demais
requisitos.
Nesta situação, há que se conceder a progressão de regime, porquanto
o cumprimento da reparação do dano só não ocorreu por condições alheias
à vontade do sentenciado, que se encontra insolvente.
Por fim, tomemos o exemplo da fiança, a qual não pode ser fixada
em valor elevado, tornando-a impagável, pois, dessa forma inviabilizaria
a liberdade do preso, pelo fato deste não dispor de condições financeiras,
mantendo-o encarcerado. Da mesma forma deve ser enfrentada a questão
da reparação do dano, que deve se adequar às condições financeiras
do sentenciado, não devendo a sua insolvência, tornar-se óbice para a
progressão de regime prisional.
Resta lembrar, por derradeiro, que os valores impostos na sentença,
a título de reparação de danos, representam dívida de valor, para as quais
o Estado dispõe de mecanismos de cobrança. Assim, o encarceramento
jamais deve ser utilizado para obrigar tal pagamento.
A progressão de regime prisional é um direito do condenado, de
modo que, preenchidos os requisitos de tempo de cumprimento de pena e
de bom comportamento, a reparação do dano imposta pela sentença, deve
ser paga, desde que o condenado tenha condições para tal.
Caso essa condição de pagamento inexista, mesmo assim, a
progressão deve ser concedida, pois, se negada, estaríamos diante de uma
prisão por dívida, o que é proibido no ordenamento jurídico do Brasil.
254 255254
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CONSIDERAÇÕES SOBRE A PREVISÃO DOS PROCEDIMENTOS DE COMPLIANCE NA LEI DAS ESTATAIS
Luíza Moura Costa Spínola - Advogada formada pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Ciências Criminais pela Faculdade Baiana de Direito. Especializada em Compliance pela Legal Ethics Compliance (LEC). Especializada em Crime Organizado, Corrupção e Terrorismo pela Universidade de Salamanca.E-mail: [email protected]
Resumo: Este trabalho tem por escopo analisar brevemente os
procedimentos de compliance previstos pela Lei nº 13.303/2016, também
chamada de Lei das Estatais. São previstos mecanismos de compliance
em diversos artigos dessa lei com o intuito de estabelecer diretrizes para
as atividades das empresas públicas e sociedades de economia mista. As
inovações trazidas pela Lei das Estatais quanto à conformidade se mostram
benéficas para a sociedade em geral, uma vez que fomentam as boas
práticas empresariais no cenário brasileiro, promovendo a transparência
nas organizações e combatendo a corrupção.
Palavras-Chave: Direito Administrativo. Compliance. Lei das Estatais. Lei
nº 13.303/2016.
1. INTRODUÇÃO
Antes de abordar os procedimentos de compliance previstos na
legislação brasileira, se faz necessário explicar o significado do termo. Essa
palavra é originária do inglês e significa o dever de estar em conformidade
254 255
com leis, diretrizes e comportamentos externos e internos, com o intuito de
minimizar o risco ligado à reputação e ao risco legal, conforme as lições de
Coimbra e Manzi (2010, p. 2).
É possível considerar que essas regras se deram por conta do
processo de globalização, juntamente com o aumento da corrupção e da
criminalidade econômica, segundo explicam Greco Filho e Rassi (2016, p.
217). Contudo, não foram somente exigências normativas que promoveram
um aumento na demanda de compliance. Há, no âmbito empresarial, uma
crescente preocupação das organizações, tanto públicas quanto privadas,
com a sua imagem, que pode ser prejudicada por envolvimento de seus
funcionários com condutas corruptas.
Apesar de muito se falar sobre compliance atualmente, o tratamento
dos procedimentos de conformidade pela legislação brasileira não é tão
recente quanto muitos pensam. A Lei nº 9.613/1998, chamada popularmente
de Lei de Lavagem de Dinheiro, dispõe acerca da prevenção da utilização
do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta norma. O artigo 9º
da referida lei prevê quais são as pessoas físicas e jurídicas que devem
se submeter às obrigações mencionadas nos artigos 10 e 11. Esses artigos
prevêem alguns procedimentos de conformidade para essas pessoas, tais
como a manutenção de cadastros de seus clientes e o dever de atender às
requisições do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF).
Percebe-se que a Lei de Lavagem de Capitais trata de mecanismos
de compliance, ou seja, de procedimentos que devem ser adotados pela
empresa para estar em conformidade com as regras e diretrizes relativas às
atividades que desempenham. Essa tendência parece estar se expandindo
para outras normas da legislação brasileira.
Outro exemplo mais recente da inclinação do legislador brasileiro
no sentido de fomentar as boas práticas empresariais pode ser encontrado
na Lei nº 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção, que dispõe sobre
a responsabilidade das pessoas jurídicas, nos âmbitos administrativo e civil,
por atos cometidos contra a administração pública nacional ou estrangeira.
256 257
Em caso de sanção, o artigo 7º, VIII, prevê a existência de mecanismos
internos de conformidade como fator a ser levado em conta. O Decreto
nº 8.420/2015, que regulamenta a Lei nº 12.846/2013, conhecida como Lei
Anticorrupção, estabelece em seu artigo 41 quais são os parâmetros de
avaliação de um programa de compliance, como, por exemplo, a existência
de códigos de ética e registros contábeis.
A Lei nº 13.303/2016, chamada de Lei das Estatais, acompanha essa
tendência, uma vez que é possível verificar em seus artigos a previsão
de diversos mecanismos de compliance aplicáveis às empresas públicas,
às sociedades de economia mista e suas subsidiárias. Analisaremos a
seguir alguns deles, bem como teceremos breves explicações sobre os
procedimentos de conformidade que devem ser adotados pelas referidas
organizações no desempenho de suas atividades.
2. DOS MECANISMOS DE COMPLIANCE MENCIONADOS PELA LEI Nº
13.303/2016
Primeiramente, se faz necessário explicar do que se trata um
programa de compliance, para uma melhor compreensão das medidas de
conformidade previstas pela Lei das Estatais. Um programa de compliance,
segundo Sarcedo (2016, p. 45), deve versar sobre criação, implantação e
fiscalização de normas de condutas e posturas internas da empresa, com
o objetivo de conscientizar seus colaboradores sobre deveres e obrigações
na prevenção de riscos legais e regulatórios, bem como deve distribuir as
responsabilidades entre os indivíduos que colaboram na sua administração.
Não apenas empresas privadas, mas também empresas públicas
vêm apresentando certa preocupação com assessoria de compliance
atualmente. A Petrobras, empresa estatal, após os escândalos de corrupção,
buscou consultorias em escritórios de advocacia para realizar programas
de conformidade e investigações com o objetivo de verificar a ocorrência
de práticas ilícitas no âmbito da organização[2].
256 257
A Lei das Estatais prevê, em seu artigo 1º, §7º, que na participação
em sociedade empresarial em que a empresa pública, a sociedade de
economia mista e suas subsidiárias não detenham o controle acionário, essas
deverão adotar, no dever de fiscalizar, práticas de governança e controle
proporcionais à importância, à materialidade e aos riscos do negócio do qual
são partícipes. Nesse sentido, deve haver o controle sobre determinados
elementos relevantes para as atividades da empresa, como documentos e
informações estratégicas do negócio e informe sobre execução da política de
transações com partes relacionadas. Essa necessidade de registro de dados
importantes para a organização pode ser considerada um mecanismo de
compliance, uma vez que essas informações podem ser requisitadas pelos
órgãos regulatórios competentes com a finalidade de verificar a ocorrência
de atos ilícitos por meio de investigações.
O estatuto da empresa deve versar sobre regras de governança
corporativa, de transparência e de estruturas, práticas de gestão de riscos
e de controle interno e composição da administração, segundo o artigo
6º da referida lei. Caso haja acionistas, o estatuto também deve tratar de
mecanismos para sua proteção. Sobre governança corporativa, Candeloro,
Rizzo e Pinho (2015, p. 191) explicam que se trata de um conjunto de
responsabilidades, princípios e práticas utilizados em um modelo de
gestão, com a finalidade de salvaguardar a empresa e manter a harmonia
nas relações entre as partes envolvidas em suas atividades. Sarcedo (2016,
p. 43) destaca que há vários conceitos de governança corporativa, mas que
todos eles possuem pontos em comum, tais como a obediência ao sistema
legal em que a companhia empreende e está inserida, assim como o
aprimoramento das relações interpessoais e de poder na organização.
Os requisitos mínimos de transparência para as empresas
públicas e as sociedades de economia mista estão dispostos no artigo 8º
da Lei das Estatais. Dentre eles está a divulgação tempestiva e atualizada
de informações relevantes, especialmente as relacionadas a atividades
desenvolvidas, estrutura de controle, fatores de risco, dados econômico-
258 259
financeiros, comentários dos administradores sobre o desempenho,
políticas e práticas de governança corporativa e descrição da composição
e da remuneração da administração. Ademais, deve haver a elaboração
e divulgação de política de divulgação de informações, em conformidade
com a legislação em vigor e com as melhores práticas.
Considerando a análise desse artigo, percebe-se que o compliance
precisa atuar em cooperação com diversas áreas da empresa, entre elas
a Alta Administração e o setor de gestão de riscos corporativos O suporte
da Alta Administração é considerado um dos mais relevantes, se não o
mais relevante, pilar do programa de compliance, segundo Serpa (2016).
Para o autor, não se trata apenas de uma questão de alocação de recursos
para o setor de compliance, mas das práticas e exemplos do alto escalão da
empresa, que devem ser os primeiros a entender o conteúdo do programa
de conformidade e as direções relacionadas a ele.
Sobre a gestão de riscos, Coimbra e Manzi (2010, p. 43) esclarecem
que seus objetivos são: compreender quais os riscos que atingem a
missão da organização; obter respostas de forma célere quanto aos riscos
identificados; reduzir surpresas operacionais e perdas. Os autores ainda
explicam que um programa de análise de riscos adequado permite ao setor
de compliance e ao Conselho de Administração ter acesso a informações
sobre o nível de conformidade da empresa.
O artigo 9º da Lei nº 13.303/2016 prevê que tanto a empresa pública
quanto a sociedade de economia mista devem adotar regras de estruturas
e práticas de gestão de riscos e controle interno que envolvam: a ação
dos administradores e empregados, através da implementação frequente
de práticas de controle interno; a área encarregada pela verificação de
cumprimento de obrigações e de gestão de riscos; a auditoria interna e o
Comitê de Auditoria Estatutário.
De acordo com Coimbra e Manzi (2010, p. 41), a auditoria e o
compliance são partes do sistema de controles internos. Os controles
internos englobam sistemas, processos, procedimentos, pessoas e
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tecnologia. A auditoria interna é responsável por verificar a estrutura de
controles internos, sua eficiência e identificar se há fragilidades, realizando
a correção dos pontos de não conformidade, segundo Candeloro, Rizzo e
Pinho (2015, p. 34). Os autores explicam que a abordagem promovida pelo
setor de Auditoria ocorre de forma aleatória e temporal e apenas identifica
a não conformidade após ela ter acontecido, enquanto que o setor de
compliance realiza essa abordagem de forma rotineira e permanente para
prevenir os riscos envolvidos em cada atividade.
Há ainda a necessidade de elaboração de um Código de Conduta
com disposições acerca de certos mecanismos de compliance, consoante o
primeiro parágrafo do artigo 9º. Também chamado de Código de Ética por
algumas organizações, trata-se de um mecanismo utilizado pela instituição
para informar aos seus colaboradores os princípios éticos basilares de
sua atuação e que devem ser observados por todos os seus membros
(CANDELORO; RIZZO; PINHO, 2015, P. 59). Para Serpa (2016), a empresa
não pode exigir que o indivíduo mude seus padrões morais, mas pode
exigir um determinado comportamento de seus funcionários, de modo
que a expressão “Código de Conduta” seria a mais adequada. O inciso I do
referido parágrafo estabelece a necessidade do Código de Conduta conter,
além dos princípios e missão da empresa, orientações acerca de conflitos de
interesses e vedações de atos de corrupção e fraude. Um Código de Conduta
deve ser escrito, preferencialmente, de forma objetiva, para que não dê
margem a interpretações pessoais sobre as normas ali dispostas, devendo
mencionar as sanções do não cumprimento do código, citando, inclusive, a
hipótese de demissão por justa causa, conforme destaca Serpa (2016).
O primeiro parágrafo do artigo 9º prevê ainda, em seu inciso
III, que o Código de Conduta deve dispor sobre canal de denúncias para
viabilizar o recebimento de notificações internas e externas relacionadas
ao descumprimento do Código de Conduta e Integridade e das demais
normas internas de ética e obrigacionais. O inciso seguinte versa sobre a
necessidade de mecanismos de proteção que evitem a retaliação contra
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pessoas que utilizem o canal de denúncias. O sistema de denúncia possibilita
que as vítimas de um ato arbitrário apresentem uma reclamação, sem que
sofram qualquer tipo de represália, de acordo com Coimbra e Manzi (2010,
p. 96). Esse mecanismo evita que situações de não conformidade persistam
e permite a reparação dos danos sofridos.
Na hipótese de violação ao Código de Conduta devem ser aplicadas
sanções, de acordo com o inciso V do primeiro parágrafo do artigo 9º. Já
o inciso VI versa sobre a necessidade de realização de treinamento, ao
menos uma vez por ano, sobre o Código de Conduta e Integridade, para
empregados e administradores, e sobre a política de gestão de riscos, para
administradores. Mecanismos como esses contribuem para a formação de
uma cultura de conformidade, pois esclarecerem para os funcionários que
o desempenho de um programa de compliance, com a concretização de
seus objetivos, é fundamental para o crescimento da organização e que,
por meio do respeito às regras, colaboradores e acionistas podem evitar
riscos (COIMBRA; MANZI, 2010, p. 88). Consoante Alexandre Serpa (2016),
alguns dos pontos relevantes para o treinamento são o rol de treinamentos
“de compliance”, que podem incluir situações de conflitos de interesse e
práticas anticorrupção, bem como o registro e acompanhamento da efetiva
realização do treinamento.
A área encarregada da verificação de cumprimento de obrigações
e de gestão de riscos deverá ser vinculada ao Diretor-presidente e liderada
por Diretor estatutário, consoante o segundo parágrafo do artigo 9º. O
estatuto social deve prever as atribuições da área, bem como estabelecer
mecanismos que assegurem atuação independente. A independência pode
ser considerada um dos princípios da função de compliance e, consoante
Candeloro, Rizzo e Pinho (2015, p. 6), esse conceito envolve quatro elementos
relacionados: status; head of compliance; conflito de interesses; acesso a
informações.
O setor de compliance deve ter status formal na organização para
lhe conferir autoridade e independência e ser definida em um documento
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formal. Nesse documento devem constar: seu papel e responsabilidades;
medidas para salvaguardar sua independência; sua relação com outras
funções de gerenciamento de risco da organização e com a auditoria
interna; seu direito de acesso às informações necessárias ao exercício de
suas funções; seu direito de conduzir investigações; seu direito de acesso
ao Conselho de Administração ou a um Comitê do Conselho (CANDELORO;
RIZZO; PINHO, 2015, p. 6).
Além do status formal com garantia de independência, o compliance
officer pode ou não ser membro da Alta Administração. Caso seja, não
deve ter encargos na linha de negócios. Se não for, deve ter assegurada a
possibilidade de se reportar diretamente a um membro da gerência sênior
que não tenha responsabilidade direta nessa linha. A independência dos
funcionários da área de compliance não deve ser comprometida caso
eles estejam desempenhando uma função na qual haja conflito entre as
atividades de compliance e outras de sua responsabilidade. O compliance
officer ainda deve ter a faculdade de se comunicar com qualquer membro
da organização e ter acesso a registros ou documentos necessários para
desempenhar sua função (CANDELORO; RIZZO; PINHO, 2015, p. 7).
Em conformidade com o pressuposto de que o compliance deve
poder divulgar suas conclusões ao Conselho de Administração ou para uma
Comissão do Conselho está o parágrafo 4º do artigo 9º da Lei nº 13.303/2016.
Segundo esse parágrafo, o estatuto social deverá prever a possibilidade
de que a área de compliance se reporte diretamente ao Conselho de
Administração em situações em que houver suspeita do envolvimento do
diretor-presidente e irregularidades ou quando este se furtar à obrigação de
adotar medidas necessárias em relação à situação a ele relatada. Segundo
Serpa (2016), de nada adianta um programa de compliance de elevada
qualidade, se não houver uma maneira de as informações coletadas por
meio do programa chegarem aos líderes da empresa, que são os responsáveis
pelo êxito do programa, e se as definições acordadas com o profissional de
compliance não forem respeitadas.
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Ainda sobre a função do compliance officer, Sarcedo (2016,
p. 51) destaca que deve haver clareza sobre o escopo e o conjunto de
responsabilidades a ele atribuídas na administração da empresa, uma vez
que ele não é, e nem pode ser confundido com um profissional escolhido
com a simples e única finalidade de assumir todos os riscos da companhia.
O artigo 12 da Lei das Estatais estabelece em seu inciso II que a
empresa pública e a sociedade de economia mista devem adequar, de
maneira constante, suas práticas ao Código de Conduta e Integridade
e a outras regras de boa prática de governança corporativa, na forma
prevista na regulamentação desta lei. A expressão “partes interessadas”
pode ser encontrada frequentemente em sua forma na língua inglesa:
stakeholders. Conforme Coimbra e Manzi (2010, p. 28), esse termo se refere
não apenas aos acionistas ou investidores, mas também pode ser atribuído
aos consumidores, fornecedores, governo, proprietários e trabalhadores.
Em suma: todas as pessoas ou entidades que afetam ou são afetadas pela
organização podem ser consideradas partes interessadas.
O Conselho de Administração, por sua vez, está encarregado de
discutir, aprovar e monitorar decisões envolvendo práticas de governança
corporativa, relacionamento com partes interessadas, política de gestão de
pessoas e código de conduta dos agentes, segundo o inciso I do artigo18.
Ademais, segundo o inciso II do referido artigo, o Conselho deve implementar
e supervisionar os sistemas de gestão de riscos e de controle interno
estabelecidos para a prevenção e mitigação dos principais riscos a que está
exposta a empresa pública ou a sociedade de economia mista, inclusive os
riscos relacionados integridade das informações contábeis e financeiras e
os relacionados à ocorrência de corrupção e fraude. Alexandre Serpa (2016)
reproduz em sua obra a definição de gerenciamento de riscos conforme
o Committee of Sponsoring Organizations of the Treadway Commission
(COSO), uma organização privada norte-americana criada para prevenir
e evitar fraudes nos procedimentos e processos internos da empresa. De
acordo com essa definição, o gerenciamento de riscos corporativos é um
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processo conduzido por uma organização pelo Conselho de Administração,
Direção e outros funcionários, aplicado para identificar na organização
eventos em potencial, capazes de afetá-la e administrar os riscos de forma
a mantê-los compatíveis com o apetite de riscos da organização e permitir
o cumprimento de seus objetivos.
Sobre as práticas anticorrupção, mencionadas também pela Lei
das Estatais, consideramos que, ainda que a incorporação de mecanismos
anticorrupção acarrete custos para a empresa, os prejuízos causados
por condutas ilícitas podem ser bem maiores. Esse pensamento pode ser
sintetizado na frase do advogado norte-americano e ex-procurador-geral
adjunto dos Estados Unidos Paul McNulty: “If you think compliance is
expensive, try non-compliance”. Em tradução livre para a língua portuguesa:
“Se você acha compliance caro, tente não estar em compliance”[3].
O artigo 24 da Lei nº 13.303/2016 prevê que a empresa pública e a
sociedade de economia mista devem possuir em sua estrutura societária
um órgão auxiliar do Conselho de Administração denominado Comitê de
Auditoria Estatutário. Esse órgão é competente para monitorar a qualidade
e a integridade dos mecanismos de controle interno, das demonstrações
financeiras e das informações e medições divulgadas pela organização.
Quanto à aplicação do compliance no procedimento licitatório,
o inciso V do artigo 32 da Lei das Estatais estabelece que nas licitações e
contratos previstos nesta lei se faz necessária a observação da política de
integridade nas transações com as partes interessadas. Entendemos que
nesse artigo está previsto o procedimento de compliance conhecido como
due diligence ou devida diligência, em tradução livre para o português.
Alexandre Serpa (2016) explica que realizar uma boa due diligence significa
empregar esforços razoáveis para verificar o grau de risco que o terceiro
pode trazer para a organização caso seja efetivamente contratado. Esse
procedimento pode requerer uma pesquisa mais ou menos profunda, que
pode ser feita por meio de uma breve busca na Internet ou mesmo através
de uma averiguação pormenorizada, como, por exemplo, investigação
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de informações em fontes públicas, como, por exemplo, situação fiscal e
processos legais em que a empresa esteja envolvida, e entrevistas com ex-
funcionários.
A Lei das Estatais foi regulamentada pelo Decreto nº 8.945/2016,
que esclarece conceitos como empresa estatal e empresa subsidiária. O
decreto reitera ainda que a necessidade de observância de práticas de
conformidade pelas estatais.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebe-se que a Lei das Estatais está em consonância com a
tendência brasileira no cenário legislativo de elaborar normas que busquem
estabelecer um padrão de boas práticas empresariais. Essa inclinação já
havia sido demonstrada pelo legislador no âmbito das empresas privadas,
por meio da Lei Anticorrupção, e, no ano de 2016, atingiu as empresas
públicas.
A Lei das Estatais demonstra que procedimentos de compliance
também devem ser empregados nas empresas públicas, com o intuito
de fomentar uma cultura empresarial de conformidade e transparência.
Mecanismos como o canal de denúncia e Código de Ética são interessantes
para criar novas e melhores práticas no ambiente dessas empresas, ainda
que seja demandada a aplicação de recursos financeiros para promover o
desenvolvimento do setor de compliance. Trata-se de um investimento em
conformidade que renderá bons frutos em médio prazo.
Essa mudança no sentido de buscar uma cultura mais íntegra na
seara empresarial é especialmente benéfica para o Brasil, uma vez que
a realização de negócios poderá transcorrer de uma forma mais segura.
Podemos considerar que os procedimentos de conformidade previsto na
Lei das Estatais são bastante úteis para diminuir a ocorrência de práticas
corruptas, um dos problemas que mais atinge o desenvolvimento das
empresas no país.
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A corrupção deve ser combatida não apenas em virtude de razões
morais, mas porque acarreta prejuízos econômicos e dificulta o crescimento
econômico nacional. Ademais, a corrupção lesa o Estado de Direito, pois as
normas não são aplicadas de maneira justa. Assim, a existência de práticas
de conformidade permeando a legislação nacional pode ser considerada
como um ponto de partida para a melhoria dos hábitos negociais brasileiros
como um todo, uma vez que as medidas de compliance representam uma
forma de coibir atos ilícitos.
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______. Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016. Dispõe sobre o estatuto jurídico
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[3] CORNELIUS, D. McNulty Keynote on a Tale of Two Sectors. Compliance
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