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Ano XXVII • Nº 244 • Março 2017 • R$ 15,00 • www.eco21.com.br facebook.com/revista.eco21 ECO 21 José Graziano • Marina Grossi • Tasso Azevedo • Papa Francisco Carlos Nobre • Rachel Bidermann • Altair Barbosa • Suzana Kahn ISSN 0104-0030

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Capa: Esculturas submarinas Arte: Jason deCaires Taylor

Gaia viverá! Lúcia Chayb e René Capriles

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Cada dia mil crianças morrem por doenças ligadas à água“Toda pessoa tem direito ao acesso à água potável e segura; este é um direito humano básico, e uma das questões nodais no mundo atual. É doloroso quando na legislação de um país ou de um grupo de países não se considera a água como um direito humano”. Palavras que parecem pronunciadas por um membro de alguma ONG ambientalista ou pelos diplomatas da ONU-ÁGUA, mas não. São palavras do Papa Francisco ditas durante o recente seminário sobre o “Direito Humano à Água” realizado pela Pontifícia Academia das Ciências do Vaticano. Na Declaração Final do encontro, os participantes escreveram: “Cada um de nós, cientistas, empresários, políticos, trabalhadores, devemos ter consciência de que a mudança climática exige medidas concretas e urgentes. (...) Fazemos um apelo para implementar uma Ecologia Integral, que incorpore a dimensão ambiental, econômica, social e cultural, que contribua para a construção de uma cultura do encontro em torno à água e ao saneamento como direitos universais. A ciência, a cultura, a política e a tecnologia podem contribuir ao estabelecimento de sociedades mais justas, solidárias e equitativas compromissadas com o cuidado da Casa Comum”. Em Dezembro de 2016, a Assembleia-Geral da ONU aprovou a “Década da Água para o Desenvolvimento Sustentável 2018-28” com o objetivo de focar o tema durante dez anos. Enfatizando que a água é fundamental para o desenvolvimento sustentável e para a erradicação da pobreza e da fome, os Estados membros da ONU expressaram profunda preocupação com a falta de acesso a água potável e saneamento, além das catástrofes relacionadas com a água, sendo que a sua escassez e a poluição são exacerbadas pela urbanização, crescimento, desertificação, seca e mudança climática. A primeira década da ONU com o tema água foi entre 1981-1990, com o resultado positivo de que mais de um bilhão de pessoas ganharam acesso à água potável. Numa segunda ocasião, a ONU declarou 2005-2015 como Década com o tema “Água, Fonte de Vida”. De 1990 a 2015, pelo menos 2,1 bilhões de pessoas ganharam acesso a latrinas, vasos sanitários e outras instalações de saneamento melhoradas, ajudando a incluir um total de 68% da população global. No entanto, foram perdidos 9 pontos em relação à meta dos ODM para saneamento. Em Julho de 2016, o engenheiro sanitarista brasileiro, Leo Heller, Relator Especial da ONU para o Direito Humano à Água e ao Saneamento, resumiu no seu relatório que “O acesso seguro, adequado e economicamente possível à água e ao esgotamento sanitário, bem como o empoderamento das mulheres, podem assegurar a elas o direito de fazer escolhas, ter acesso aos recursos hídricos. A igualdade de gênero quanto aos direitos humanos à água e ao saneamento não só empoderará a mulheres individualmente, mas também as ajudará a superar a pobreza”. Heller conferiu que em quase todos os lugares onde há falta d’ água são as mulheres que buscam a água para as tarefas da casa. Segundo o Instituto Trata Brasil, as 100 maiores cidades brasileiras, nos últimos 5 anos, cobraram da sociedade R$ 123 bilhões pelo serviço de saneamento. No entanto, o valor investido na implantação da rede de esgoto foi de apenas 23% do total arrecadado. O baixo investimento no tratamento de água, o aumento populacional e o consumo cada vez maior dos recursos hídricos provocaram a crise de abastecimento pela qual passam vários Estados do País. Para finalizar, é bom lembrar as palavras do Papa Francisco: “Não esqueçamos que cada dia mais de mil crianças morrem por doenças ligadas à água”.

4 Carlos Nobre - E se os EUA abandonarem o Acordo de Paris? 6 Reinaldo Canto - Trump vai na contramão 8 Papa Francisco - A água está no início de tudo10 José Graziano - Escassez de água, desafio à sustentabilidade12 Lucas Tolentino - MMA investirá R$ 135 milhões na gestão da água14 Andreia Verdélio - Brasil carece de legislação para reúso de água 16 Verônica Pragana - Uso de águas residuais é pratica antiga no Semiárido18 Andréa Guimarães - Bacia do Rio Doce tem 500 nascentes recuperadas20 Patrícia Fachin - Entrevista com Altair Sales Barbosa28 Alana Gandra - Estudo prevê extinção de espécies nativas do Cerrado30 Luciana Vicária - Desmate no Cerrado anula ganhos na Amazônia32 Catarina Barbosa - Queimadas destroem 78% da biodiversidade da Amazônia34 Washington Novaes - Automóveis e saúde35 Marina Grossi - Títulos Verdes no Brasil36 Suzana Kahn - Geoengenharia. Por que não?37 Rachel Bidermann - O papel da mulher na preservação ambiental38 Vicky Markham - As mulheres são fundamentais na proteção ambiental40 Leonardo Boff - Uma ética da Mãe Terra42 Tasso Azevedo - A grande disputa43 Stefânia Costa - Aumenta desmatamento em UCs da Amazônia44 Rafaela Pontes - Agrotóxicos, polinizadores, OGM e biodiversidade46 Alan Azevedo - Mais de 20% dos agrotóxicos usados no Brasil são ilegais48 Claudio Angelo - O Observatório do Clima comemora 15 anos50 Maurício Andrés Ribeiro - O sistema de gestão das águas inserido em seu organismo

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Um candidato à presidên-cia de um país nega, durante campanha eleitoral, consenso científico amplamente estabe-lecido em décadas de pesquisas sérias sobre fatos de grande impacto global.

Após ser eleito, mantém posição ambígua e nomeia negacionistas como altos diri-gentes de seu governo. Esses dão visibilidade a uma minoria de “cientistas” negacionistas e suspendem – ou atrasam – a implementação de políticas públicas de mitigação.

A descrição caberia nas palavras, ações e intenções do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, mas refere-se, na verdade, ao que aconteceu entre 1999 e 2008 na África do Sul, durante a presidência de Thabo Mbeki. O dirigente sul-africano negou obstinadamente que o vírus HIV fosse a causa da AIDS e, com isso, atrasou em uma década o uso de antirretrovirais no sistema público de saúde do país.

Carlos Nobre | Climatologista, membro da Academia Brasileira de Ciências, Diretor do Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais do MCTI, membro-estrangeiro da Academia de Ciências dos Estados Unidos

E se os EUA abandonarem o Acordo de Paris?

Alguém poderia atribuir tamanho obscurantismo científico a um baixo grau de desenvolvimento de um país, com diminuta capacidade de apropriação da melhor ciência para benefício da população. Ou poderia dizer que tal postura seria típica de regimes totalitários, em que a ciência deve conformar-se à ideologia. Esse teria sido o caso, por exemplo, de Trofim Lysenko, Presidente da Academia de Ciências Agrícolas da União Soviética, negando a genética mendeliana e atrasando o avanço da agricultura local entre 1920 e 1964.

Entretanto, um exemplo de obscurantismo científico no que toca à política e às mudanças climáticas acontece hoje nos Estados Unidos, país que é a grande potência científica mundial, cuja comunidade de pesquisadores é a que mais contribui para o avanço do conhecimento sobre o aquecimento global antropogênico e as mudanças do clima no Planeta.

Contraponha o cenário atual ao legado do ex-Presidente Barack Obama. Em 2015, na construção de consensos meses antes da Conferência do Clima da ONU, em Paris, os Estados Unidos firmaram vários acordos bilaterais. Um deles com o Brasil. Em Junho daquele ano, os presidentes dos dois países assinaram acordo de cooperação para reduzir as emissões de Gases do Efeito Estufa.

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O documento estabelece as metas de 33% de renováveis na matriz energética brasileira e de 20% de renováveis na matriz elétrica – além da contribuição da hidroeletricidade em ambas metas – até 2030. O acordo prevê também parcerias para tornar a agricultura de ambos os países mais produtiva e com menos emissões. Se Trump der as costas ao Acordo de Paris, de 2015, as consequências diplomáticas serão imensas e negativas para os EUA em todas as dimensões – e numa escala muito maior do que foram as repercussões desfavoráveis quando Bush retirou o país do Protocolo de Kyoto, em 2001, como admitido pelo ex-Secretário de Estado, Collin Powell.

O ex-Presidente chegou a dizer meses depois do ocorrido que um dos motivos para ter rejeitado Kyoto era que o Protocolo prejudicava a economia americana.

Dezesseis anos mais tarde, Donald Trump volta a usar um discurso semelhante como justificativa. Mas o estilo imprevisível do atual presidente americano não permite antever se sua administração chegará ao extremo de retirar os Estados Unidos do Acordo de Paris. Inegável é que, desde que assumiu a Casa Branca, o republicano escolheu negacionistas do aquecimento global para desempenhar altas funções, um claro sinal de retrocesso no ritmo de implemen-tação das medidas de redução de emissões necessárias para atingir as metas preconizadas em Paris, de manter o aumento da temperatura global abaixo de 2°C.

O lado otimista da história é que o movimento mundial de desinvestimento em termoelétricas a carvão pode ser mesmo um caminho sem volta – e, então, não caberiam retrocessos.

Além disso, está suficientemente demonstrado por fatos econômicos que as energias renováveis têm potencial para gerar milhões de empregos nos Estados Unidos e sua adoção em massa, longe de impedir o crescimento do país, impulsio-nará o desenvolvimento da gigantesca economia americana. Centenas de empresas e investidores americanos chegaram a pedir durante a campanha eleitoral que a Casa Branca não abandonasse o acordo climático, afirmando que o fracasso dos EUA em construir uma economia de baixo carbono ameaçaria a prosperidade nacional. Mas o risco de os Estados Unidos deixarem o Acordo de Paris existe.

Se isso acontecer – ou se colocar o pé no freio de sua implementação – outros países já se preparam para ocu-par o vácuo, principalmente China e Alemanha, projetando-se como líderes mundiais em tecnologias limpas.

Ainda que a cooperação científica e tecnológica com os EUA na questão climática, energética e agrícola seja de interesse estratégico para o Brasil, teremos que seguir adiante o curso

do protagonismo que construímos em ações concretas de mitigação das mudanças climáticas. Não nos faltam desafios nessa área, como o de reduzir urgentemente o desmatamento na Amazônia e no Cerrado, e aumentar em muito a presença das novas energias renováveis em nossa matriz energética.

O obscurantismo do Mbeki custou a vida de mais de 330 mil sul-africanos, que não tiveram acesso aos antirretrovirais. A irresponsável cegueira de Trump na questão climática poderá ter um impacto infinitamente maior e por muitos séculos para o Planeta e todas as espécies vivas, inclusive o Homo sapiens, se ultrapassarmos algum limite planetário sem volta.

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Ninguém se surpreendeu com as primeiras medidas tomadas por Donald Trump na presidência dos Estados Unidos, uma vez que entre as suas principais bandeiras de campanha estava o desmonte das obras e legados de Barack Obama. Na área ambiental, a primeira ação da nova admi-nistração foi eliminar do site da Casa Branca a página com notícias e ações do governo sobre mudanças climáticas. O objetivo imediato de Trump é acabar com o Plano de Ação Climática do governo anterior e iniciar fortes investimentos na exploração de petróleo, gás e carvão.

No dia 24 de Janeiro, ele assinou ordens executivas apro-vando a construção dos polêmicos oleodutos Keystone XL e Dakota Access que, por seus enormes riscos ambientais, haviam sido barrados por Obama. Para Trump, acabar com o legado ambiental será uma forma de “eliminar políticas danosas e desnecessárias” e, segundo ele, gerar empregos.

Trump não apresentou evidências disso, mas ignora provas do aquecimento global. Dados divulgados pela Organização Meteorológica Mundial e pela NASA constataram que 2016 foi o ano mais quente da história, sendo o terceiro ano con-secutivo de recorde no aumento da temperatura global. Os levantamentos apontam para a continuidade desse processo de aquecimento constante e as simulações para 2050 mostram que, veja só a ironia, os EUA chegarão a um aumento de 2ºC antes do resto do mundo. Em alguns dos Estados mais ricos do país, a temperatura deverá atingir 3ºC a mais do que a média planetária.

Reinaldo Canto | Jornalista. Colaborador da Envolverde, colunista de Carta Capital e consultor da ONG Iniciativa Verde

Trump vai na contramãoConsequentemente, os Estados Unidos, grandes produtores

de alimentos, devem ter perdas agrícolas enormes, além de experimentarem um crescimento de fenômenos climáticos extremos, tais como tornados, enchentes e secas prolongadas. São sinais eloquentes de que não será possível para Donald Trump considerar os Estados Unidos uma ilha, por mais que ele cerque o país com muros. No caso das mudanças climáticas não existem soluções nacionalistas. Este é um pro-blema que envolve decisões conjuntas de toda a comunidade internacional. O horizonte é de grandes perdas econômicas e, como se pode ver, os Estados Unidos serão muito afetados em decorrência do aquecimento global.

Resistências à truculência e ignorância do novo mandatário norte-americano começaram a surgir.

Uma delas e de grande relevância foi a carta endereçada a Trump por mais de 540 empresas e 100 grandes investidores participantes do movimento empresarial Low-Carbon USA O grupo pede à nova administração da Casa Branca e também ao novo Congresso apoio às políticas que acelerem a transição do país para uma economia de baixo carbono, com o objetivo de enfrentar as mudanças climáticas. Entre as empresas sig-natárias estão gigantes como Starbucks, Nike, L’Oreal, Gap, Levi’s, Unilever, General Mills, Hilton, Dupont e Schneider Electric, entre outras. Juntas, essas corporações representam receita anual superior a 1,15 trilhão de dólares e empregam cerca de 2 milhões de pessoas em todo o país.

A carta faz menção ao Acordo Climático de Paris e à necessidade de se cumprir suas metas de redução das emis-sões globais dos gases de Efeito Estufa. As empresas listadas afirmam que farão sua parte para “cumprir os compromissos do Acordo Climático de Paris de uma economia global que limita o aumento da temperatura planetária bem abaixo de 2°C”. Entre as ações listadas pelas empresas estão o aumento da eficiência energética e a utilização crescente de energias limpas e renováveis. Para Anna Walker, Diretora de Política Global e Advocacy da Levi Strauss & Co., “é imperativo que as empresas tomem um papel ativo no cumprimento dos objetivos estabelecidos pelo Acordo Climático de Paris. Será fundamental que trabalhemos juntos para garantir que os EUA mantenham sua liderança climática, garantindo a prosperidade econômica de longo prazo de nossa nação”, disse.

Trump deve ficar atento à essa realidade. Empresas norte-americanas já investiram muitos bilhões de dólares em energia renovável dentro e fora do país. Além disso, esse mercado é promissor para os EUA, ainda que a liderança esteja em disputa com China, Alemanha e Japão, entre outros.

O que o mundo e os EUA menos precisam neste momento é de uma visão limítrofe e atrasada. Trump, o “presidente do fim do mundo”, pode retardar o avanço para uma economia de baixo carbono, mas, espera-se, não poderá sozinho alterar os rumos da economia mundial, inclinada nesse sentido. Neste aspecto parece evidente que sua passagem pela Casa Branca será ruim para todos, inclusive para seus eleitores.

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Cumprimento a todos os presentes e agradeço a participa-ção neste Encontro que aborda a problemática do direito humano à água e a exigência de políticas públicas que possam enfrentar esta realidade. É significativo que os senhores se unam para aportar seu saber e meios com o objetivo de dar uma resposta a esta necessidade e problemática que vive o homem de hoje.

Como lemos no livro do Gênese, a água está no início de todas as coisas (cf. Gn 1,2); é “criatura útil, casta e humilde”, fonte da vida e da fecun-didade (cf. São Francisco de Assis, Cântico das Criaturas). Por isso, a questão que vocês tratam não é marginal, mas fundamental e muito urgente. Fundamental, porque onde há água há vida, e então a sociedade pode surgir e avançar. E é urgente porque a nossa casa comum necessita proteção e, além disso, assumir que nem toda água é vida: somente a água segura e de qualidade. Continuando com o pensamento de São Francisco: a água “que serve com humildade”, a água “casta”, não contaminada.

Toda pessoa tem direito ao acesso à água potável e segura; este é um direito humano básico, e uma das questões nodais no mundo atual (cf. Enc. Laudato si’, 30; Enc. Caritas in veritate, 27). É doloroso quando na legislação de um país ou de um grupo de países não se considera a água como um direito humano. Mais doloroso ainda quando se apaga o que estava escrito e se nega este direito humano. É um problema que afeta a todos e faz que a nossa casa comum sofra tanta miséria e clame por soluções efetivas, realmente capazes de superar os egoísmos que impedem a realização deste direito vital para todos os seres humanos. É necessário outorgar a água à centralidade que merece no marco das políticas públicas. Nosso direito a água é também um dever para com a água. Do direito que temos a ela se desprende uma obrigação que vai unida e não pode se separar. É iniludível anunciar esse direito humano essencial e defendê-lo – como se faz – mas também atuar de forma concreta, assegurando um compromisso político e jurídico para com a água. Neste sentido, cada País deveria concretizar, tanto com instrumentos jurídicos, quanto indicados pelas Resoluções aprovadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas desde 2010 sobre o direito humano, a água potável e ao saneamento. Por outra parte, cada ator não-governamental tem que cumprir suas responsabilidades para com esse direito.

Papa Francisco

A água está no início de tudoO direito à água é determinante para a sobrevivência

das pessoas (cf. ibíd, 30) e decide o futuro da humanidade. É prioritário também educar as próximas gerações sobre a gravidade dessa realidade. A formação da consciência é uma tarefa árdua; precisa convicção e entrega. E eu me pergunto se no meio desta “terceira guerra mundial aos pedacinhos” que estamos vivendo, não estaremos a caminho de uma grande guerra mundial pela água.

Os dados que a ONU revela são pungentes e não podem nos deixar indiferentes: cada dia morrem mil crianças por causa de doenças relacionadas com a água; milhões de pessoas consomem água poluída. Estes dados são muito graves; se deve frear e inverter esta situação. Não é tarde, mas é urgente tomar consciência da necessidade da água e de seu valor essencial para o bem da humanidade.

O respeito à água é condição para o exercício dos demais direitos humanos (cf. ibíd., 30). Se acatarmos este direito como fundamental, estaremos colocando as bases para pro-teger os outros direitos. Mas, se pulamos este direito básico, como seremos capazes de velar e lutar pelos demais? Neste compromisso de dar à água o lugar que lhe corresponde, faz falta uma cultura do cuidado (cf. ibíd., 231) – parece uma coisa poética e, bem, a Criação é uma “poiesis”, esta cultura do

cuidado que é criativa – e, além disso, fomentar uma cultura do encontro, na qual se unam numa causa comum todas as forças necessárias de cientistas, empre-sários, governantes e políticos. É preciso unir todas nossas vozes numa mesma causa; já não serão vozes individuais ou isoladas, mas o grito do irmão que clama atra-vés de nós, é o grito da terra que pede respeito e o compartilhar

responsavelmente um bem, que é de todos. Nesta cultura do encontro, é imprescindível a ação de cada País como garantia do acesso universal à água segura e de qualidade.

Deus Criador não nos abandona neste trabalho para dar a todos e a cada acesso a água potável e segura. Mas, o trabalho é nosso, a responsabilidade é nossa. Desejo que suas convicções sejam fortalecidas nesse Seminário e, saiam daqui com a certeza de que seu trabalho é necessário e prioritário para que outras pessoas possam viver. É um ideal pelo qual vale a pena lutar e trabalhar. Com o nosso “pouco” estaremos contribuindo para que a nossa casa comum seja mais habitável e mais solidária, mais cuidada, onde ninguém seja descartado nem excluído, mas que todos disfrutemos dos bens necessários para viver e crescer com dignidade. E não esqueçamos os dados, os números da ONU. Não esqueçamos que cada dia mil crianças morrem por doenças ligadas à água.

Discurso do Papa Francisco no Seminário “Direito Humano à Água” organizado pela Pontifícia Academia das Ciências - PAS, no Vaticano

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Uma das singularidades desta crise global é que apenas voltar a crescer não é mais uma resposta suf iciente. Porque crescer não é mais sinônimo de gerar empregos, especialmente para os jovens.

O crescimento agora tem de ser realizado em três dimensões: econômica, social e também ambiental. Ou seja, tem de ser sustentável. Essa é a nova a lavanca crucial do nosso tempo, consagrada pela Agenda 2030 e pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), assinados em 2015 nas Nações Unidas por 195 países.

Só assim é possível enfrentar o encadeamento de fatores nos quais desastres climáticos recorrentes potencializam gargalos econômicos e radicalizam fraturas sociais, frequentemente envelopados em guerras regionais ou étnicas, girando uma manivela de interações descontroladas.

José Graziano | Diretor-Geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO)

Escassez de água, desafio à sustentabilidade

Um dos pontos mais preocupantes deste novo contexto é a crescente escassez de água. Na década de 1980 houve uma média de dez secas no mundo com prejuízos desastrosos. Nos últimos anos, elas se duplicaram, entremeadas não raro a disputas geopolíticas violentas – como agora no Sudão do Sul, rico em petróleo, onde 100 mil pessoas não têm nada para comer, 1 milhão estão à beira da fome e 5 milhões vivem em estado de insegurança alimentar. Isso representa mais de 40% da população.

A mesma calamidade humanitária que assola o Sudão do Sul neste momento atingiu o Iêmen no ano passado, com manchetes idênticas. E a mesma seca que salga a tragédia sudanesa deixou a Somália à beira de um abismo de fome, seis anos atrás, quando mais de 250 mil pessoas — metade delas crianças com menos de 5 anos — morreram de des-nutrição no país.

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas estima que um bilhão de pessoas em regiões secas poderão enfrentar escassez explosiva de água num futuro próximo. Zonas rurais do Mediterrâneo e África Austral com índices elevados de exclusão e fome estão entre as mais afetadas.

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Não se pode evitar uma seca, mas pode-se impedir que a seca se transforme em fome. De acordo com a Organiza-ção Mundial da Saúde, cerca de 663 milhões de pessoas no mundo vivem atualmente sem acesso a água potável perto de suas casas.

Garantir o acesso à água é vital, especialmente a agricul-tores pobres, que compõem a maior fatia das 800 milhões de pessoas enredadas atualmente na rotina da fome em todo o mundo. Tal suprimento requer investimentos, No Brasil, por exemplo, muitas famílias pobres de áreas secas têm se beneficiado nos últimos anos do estabelecimento de cisternas em suas casas para armazenar água de chuva.

Programa Cisternas

Desde 2003, já foram entregues pelo Governo Federal cerca de 1,2 milhão de cisternas (Programa Cisternas), com capacidade total de armazenamento de 20 bilhões de litros. O custo de instalação de uma cisterna é baixo, cerca de R$ 3 mil, e o sistema permite reservar água suficiente para manter uma família de cinco pessoas durante oito meses de estiagem.

Vale recordar a experiência de Guaribas, no Piauí, cidade que marcou o início do Programa Fome Zero. A falta de água potável gerava um quadro de doenças constantes, dificuldade em produzir alimentos e um enorme peso, literalmente, na cabeça das mulheres que carregavam latas de água durante horas de caminhada. Essa rotina diária era quebrada em épocas de eleições pelos carros-pipa. As cisternas proporcionaram independência, inclusive política, àquelas famílias.

As cisternas e outras tecnologias sociais voltadas para os sertanejos do Semiárido tornaram-se políticas públicas para inclusão social, inclusão produtiva rural e de combate à extrema pobreza.

O leque de medidas acionável pelos governos não se esgota aí. Inclui também, por exemplo, seleção adequada de lavouras e sementes e implantação de serviços locais de meteorologia – salvaguarda inexistente em cerca de 40% das nações do mundo.

Sem equacionar o abastecimento de água e de alimentos em cinturões conflagrados pela pobreza, ondas recorrentes de instabilidade retornarão, com as consequências que os atuais fluxos de refugiados têm produzido num mundo de baixo crescimento, comércio anêmico, emprego precário e xenofobia contagiosa.

Embora acumule a metade da água doce do mundo a América Latina sofre com o problema. Dos dez países do Planeta mais atingidos por eventos climáticos extremos entre 1996-2015, quatro estão aqui: Honduras, Haiti, Nicarágua e Guatemala. Na Bolívia, por exemplo, a FAO assessora a contratação de um financiamento do Fundo Verde das Nações Unidas para o programa nacional “Mi Riego” (Minha Irri-gação). O Fundo Verde contempla intervenções de grande escala, mas também ações locais. E a FAO decidiu incluir em todos os projetos que formula para o Fundo Verde um componente social, a fim de garantir o acesso à agua potável para as famílias rurais, e não apenas para cuidar da água para irrigação.

A agricultura é, de fato, um elemento fundamental da equação, pois responde por cerca de 70% do consumo de água doce do mundo, e também contribui para a poluição das águas devido ao uso de pesticidas e produtos químicos. É preciso promover métodos para que a agricultura utilize menos água e de forma mais eficiente.

Mas não podemos, das milhões de famílias que não têm acesso à água de beber, tirar um direito humano e componente fundamental da segurança alimentar.

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Os Estados receberão novos recursos para investimento na área hídrica. O Ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, orientou a renovação por mais cinco anos do Programa de Consolidação do Pacto Nacional pela Gestão das Águas (Progestão). A medida aumentará o valor anual por estado para R$ 1 milhão. O anúncio foi feito no dia 28/3/2017), em Brasília, na abertura da 2ª Reunião para o Fortalecimento da Gestão dos Recursos Hídricos.

Ao todo, serão destinados R$ 135 milhões no período de cinco anos. O Secretário-Executivo do MMA, Marcelo Cruz, destacou a importância da iniciativa. “Estaremos investindo, assim, a para a gestão de recursos hídricos no país de forma democrática e descentralizada, como determina a Lei 9.433 (Lei das Águas)”, declarou. A legislação completou, neste ano, 20 anos. Outras políticas ambientais com foco na gestão dos recursos hídricos também foram apontadas. Marcelo Cruz ressaltou o programa de Recuperação de Áreas de Preservação Permanente para Produção de Água, que promove a recupe-ração de vegetação nativa em nascentes.

MMA investirá R$ 135 milhões na gestão da água

Lucas Tolentino | Jornalista do MMA

Serão R$ 48 milhões para recuperar uma área de 5,6 mil hectares. “Ações de recomposição da cobertura vegetal merecem destaque no combate à crise hídrica”, afirmou.

A reunião faz parte da programação do Mês das Águas, celebrado com diversas atividades desde o início de Março. O Secretário de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano do MMA, Jair Tannús, afirmou que a integração entre o Governo Federal, estados, municípios e sociedade é fundamental. “Os desafios reafirmam a importância de uma articulação planejada”, explicou. Segundo ele, é necessário trabalhar em conjunto para aprimorar as políticas brasileiras.

Os trabalhos focarão, ainda, no planejamento do 8º Fórum Mundial da Água, que será realizado em março de 2018, em Brasília. Será a primeira vez que a maior reunião sobre o tema será realizada no Brasil. “Nossa ambição é transformar o Fórum num momento de discussão global para o fortalecimento técnico, institucional e político do Sistema Nacional de Recursos Hídricos”, declarou o diretor-presidente da Agência Nacional de Águas, Vicente Andreu.

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O Ministro José Sarney Filho, o Deputado Federal Alessandro Molon e o Diretor da ADASA, Paulo Salles, no Seminário Águas do Brasil

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Especialistas defendem reúso da água

Medidas de reaproveitamento deverão ser adotadas na gestão dos recursos hídricos do país. Relatório da UNESCO divulgado no dia 22 deste mês (Março), no encerramento do seminário “Águas do Brasil – 20 anos da Lei das Águas” promovido pelo Ministério do Meio Ambiente, mostra que mais de 80% da água residual do mundo é descartada sem tratamento.

O reúso em atividades como irrigação agrícola e processos industriais foi apontado como solução para o problema. Além de garantir a proteção, o reúso tem o potencial de universa-lizar o acesso aos recursos hídricos por parte da população, conforme mostram os dados apresentados no seminário.

Promovido em parceria com a Agência Nacional de Águas (ANA), o evento faz parte da programação oficial do Mês das Águas, coordenada pelo Ministério do Meio Ambiente como forma de alertar a sociedade para a crise hídrica. O levanta-mento da UNESCO traça o perfil das extrações globais de água doce e mostra que a maior parte delas vai para consumo agrícola (38%) e para a drenagem agrícola (32%). As águas residuais industriais correspondem a 16% do total.

“Não temos condições de perder esses recursos. O reúso é essencial para a dignidade humana e para o desenvolvimento sustentável”, declarou a Diretora-Geral da UNESCO, Irina Bokova, em mensagem enviada para o seminário.

Gestores e especialistas no assunto também apontaram a importância do fortalecimento das ações de reaproveitamento nas políticas brasileiras. Jair Tannús destacou os avanços da Lei das Águas e afirmou que, após 20 anos, é possível aperfeiçoá-la. Segundo ele, a legislação trouxe conquistas como a participação social e o sistema nacional de gerenciamento.

O especialista Maurício Boratto, do Centro de Estudos e Debates Estratégicos da Câmara dos Deputados, ressaltou os benefícios que podem ser trazidos a partir do incentivo ao reúso da água. “A iniciativa privada já tem bons exemplos. É preciso expandir o reúso a partir de incentivos”, defendeu Boratto. Com o objetivo de fortalecer a Política Nacional de Recursos Hídricos, o Banco Mundial prepara, também, um estudo para identificar oportunidades de aperfeiçoamento. O levantamento deve ficar pronto até o fim do ano e contém estudos de caso de áreas como a Bacia do Rio São Francisco. “O objetivo é garantir que todas as parcelas da população tenham acesso à água de forma igualitária”, explicou Paula Freitas, especialista do Banco Mundial.

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No Dia Mundial da Água, lembrado no dia 22 de Março, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) destaca a importância das águas residuais, aquelas já utilizadas em atividades humanas e que podem ser reaproveitadas. Diante de uma demanda crescente por recursos hídricos e da necessidade de buscar fontes alter-nativas, é necessário modificar a gestão dessas águas, “passar de um modelo de tratamento e eliminação para um modelo de redução, reutilização, reciclagem e recuperação dos recur-sos”, diz a UNESCO no Relatório Mundial da ONU sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos 2017. No Brasil as águas residuais não são aproveitadas como deveriam em razão de que não há legislação específica sobre o tema.

O Coordenador de Implementação de Projetos Indutores da Agência Nacional de Águas (ANA), Devanir Garcia dos Santos, destaca a importância do reúso, mas diz que a prática não é trivial e expõe as pessoas a riscos se não forem seguidas determinadas normas. Para ele, a cobrança pelo uso da água mostra o real valor do recurso e induz as pessoas a refletirem sobre a melhor maneira de utilizá-lo. Ele acredita que esse é um dos caminhos para que as pessoas se interessem pelo reúso.

Na avaliação do especialista, o Brasil precisa de legislações que priorizem a segurança do meio ambiente e dos usuários, tanto no quesito manuseio como no consumo. “Qualquer planta de reúso requer um licenciamento ambiental e esses licenciamentos são muito difíceis de serem conseguidos porque não temos clareza sobre limites e sobre parâmetros da qualidade que essa água, que vai ser feita reúso, deve ter para aplicação”, disse, explicando que há literatura mundial e resoluções do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, mas não há uma norma que deixe claro os critérios para o licenciamento. Segundo Santos, existem discussões em andamento sobre o tema no Congresso Nacional e a ANA trabalha, em parceria com o Ministério das Cidades, para a edição de um projeto de lei que atenda esse setor.

Brasil carece de legislação para reúso de água

Andreia Verdélio | Jornalista da Agência Brasil

Novas regras

A UNESCO também afirma que são necessárias novas regras sobre o reúso da água e a recuperação de subprodutos das águas residuais. “Com frequência, existe pouca ou nenhuma legislação sobre os padrões de qualidade para esses produtos, o que cria incertezas de mercado que podem desencorajar os investimentos. Mercados para esses produtos podem ser estimulados por incentivos financeiros ou legais – tais como a mistura obrigatória de fosfatos recuperados em fertilizantes artificiais”, diz.

Devanir Garcia dos Santos conta que a Europa e os Estados Unidos têm legislações bastante rígidas e praticam o reúso naturalmente. Mas muitas iniciativas de reúso costumam surgir a partir da necessidade. Ele cita como exemplos a Namíbia que transforma esgoto em água para abastecimento das cidades, e Israel, que dessaliniza água do mar para consumo e, depois, reutiliza na irrigação; 70 por cento da água é reutilizada em cerca de 19 mil hectares.

Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educa-ção, a Ciência e a Cultura, os benefícios sociais, para a saúde pública e o meio ambiente, decorrentes da gestão dos esgotos, são consideráveis. Para cada dólar gasto em saneamento, estima-se um retorno para a sociedade de 5,50 dólares.

Reúso doméstico

Santos contou ainda que a ANA desenvolveu um projeto com a Saneago, companhia de saneamento de Goiás, em um prédio de apartamentos, para a instalação de um sistema de tratamento das chamadas águas cinzas, aquelas utilizadas em lavatórios, máquina de lavar e cozinha. Ele ressaltou que o tratamento individual do esgoto doméstico ainda não pode ser incentivado de imediato por causa dos riscos de contaminação.

Além do tratamento, também foi feito um sistema de captação da água de chuva e a instalação de hidrômetros individuais nos apartamentos, para estimular os moradores a reduzirem os gastos e os custos. “Com essas três alternativas reduzimos em torno de 60% a captação de água tratada da rede. É um resultado bem interessante, mostrando que é pos-sível também ter plantas pequenas para fazer um tratamento dessa água residual e reutilizá-la para irrigação de gramado e lavagem de piso”, disse Santos.

No Relatório, a UNESCO cita que as águas residuais podem ser uma importante fonte de abastecimento em algumas cidades localizadas em regiões áridas ou onde são necessárias transferências de longa distância para atender às demandas crescentes, em particular durante períodos de seca, como ocorreu em São Paulo.

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Reúso industrial

Segundo Garcia, o reúso praticamente inexiste no Brasil, exceto em algumas iniciativas da grande indústria, que está se organizando e fazendo tratamento de esgoto para a reuti-lização. “A indústria tem um disciplinamento bom. Em tese, você tem um normativo que não deve utilizar água de boa qualidade, a não ser que esteja sobrando muito, para usos onde você tem condição de atender com água de qualidade inferior. É um ponto importante da gestão da água que precisamos observar e o reúso possibilita isso”, disse. Sozinha, a indústria é responsável por 22% do consumo de água mundial.

Ele deu como exemplo uma iniciativa público-privada para a produção de água de reúso industrial, o Aquapolo, da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). O sistema fornece 650 litros por segundo de água de reúso para o Polo Petroquímico da região do ABC Paulista, que a utiliza para limpar torres de resfriamento e caldeiras, principalmente. Isso equivale ao abastecimento de uma cidade de 500 mil habitantes. Há ainda iniciativas industriais localizadas que também são exemplos de boa gestão dos recursos hídricos.

Reúso na agricultura

Apesar de algumas iniciativas da indústria, o reúso prati-camente inexiste no Brasil de forma disciplinada e organizada. “Não temos essa tradição do reúso porque o Brasil tem essa teoria da abundância (12% da água doce do mundo está no Brasil). E agora estamos notando que, apesar de termos muita água, a distribuição não é uniforme e temos regiões extremamente carentes em água. Isso está provocando uma discussão mais forte em relação a reúso”, disse.

As águas residuais geridas com segurança são uma fonte acessível e sustentável de água e nutrientes para a agricultura de irrigação, que é responsável por 70% da água consumida no mundo. “Estamos passando a maior seca do semiárido dos últimos anos. O gado está morrendo sem água e sem alimento. Mas as pessoas ainda estão vivendo lá e estão usando água, então temos algum efluente sendo lançado. Então, dá para trabalhar em cima disso e utilizar essa água na produção de alimento, principalmente para o gado”, explicou o coordenador da ANA. “Você consegue dar sustentabilidade a esse tipo de projeto, mesmo em um período de crise como essa”.

A ANA tem incentivado o reúso agrícola a partir de efluentes em municípios com menos de 50 mil habitantes, que não tem escala ou recursos para tratar o esgoto antes de despejar nos rios.

A ideia é que os municípios façam o tratamento intermedi-ário da água, por meio de lagoas, por exemplo, e a reutilize na irrigação. “Quando você lança essa água no solo o tratamento continua. O que tem nessa água? Quase sempre o poluente é fósforo, nitrogênio, matéria orgânica que são insumos para a agricultura. Além de reduzir os custos do saneamento, essa forma de utilização possibilita uma água de qualidade para o desenvolvimento da agricultura irrigada”, disse Santos. Ele explicou que a ANA faz chamadas públicas para municípios que queiram desenvolver esse tipo de ação e demonstrar a eficiência do sistema.

Para a UNESCO, as políticas e os instrumentos de regulação são implementados em âmbito local e precisam ser adaptados a circunstâncias variadas.

“É importante que seja dado apoio político, institucional e financeiro para iniciativas ‘de baixo para cima’, bem como para a gestão dos serviços in loco e de pequena escala – ou seja, descentralizados – de águas residuais”, diz o relatório.

ONU critica desperdício

A previsão da ONU é que, até 2030, a demanda por água no mundo aumente em 50%. Ao mesmo tempo, mais de 80% do esgoto produzido pelas pessoas volta à natureza sem ser tratado. Diante desse cenário, no Dia Mundial da Água, a organização mobiliza governos, setor privado e sociedade civil contra o desperdício, por melhoria nos sistemas de coleta e tratamento de esgoto e pelo reaproveitamento máximo das águas residuais urbanas. As águas residuais são os recursos hídricos utilizados em atividades humanas que se tornam impróprios para o consumo, mas podem ser utilizados para outros fins após tratamento. Segundo a ONU, os benefícios para a saúde humana e para o desenvolvimento e sustentabilidade ambiental são muito maiores que os custos da gestão dessas águas, fornecendo novas oportunidades de negócios.

Na avaliação de Devanir Garcia dos Santos, para o Brasil, é essencial discutir o reúso da água já que o recurso, apesar de abundante, não é distribuído uniformemente em todas as regiões do país.

“Temos regiões que têm carência de água e que têm potencial de fazer reúso. Muitas demandas poderiam ser atendidas com o reúso”. Segundo ele, além de atender às necessidades por água limpa, o reúso também significa o tratamento de esgotos e dos efluentes domésticos. “O Brasil tem um problema sério, a área atendida hoje é pequena. Em torno de 35% da população é atendida com tratamento de esgoto, mas isso está concentrado nos grandes centros. As capitais dos Estados tem capacidade de tratamento. Quando se pega municípios com menos de 200 mil ou menos de 50 mil habitantes, praticamente tem muito pouco tratamento nessas áreas”, explicou o coordenador da ANA.

Segundo a ONU, cerca de 1,8 bilhão de pessoas no mundo usam fontes de água contaminadas por fezes para beber, e, a cada ano, 842 mil mortes são relacionadas a falta de sanea-mento, de higiene e ao consumo de água imprópria. Por isso, para garantir a utilização sustentável dos recursos hídricos, é preciso implementar políticas eficazes de saneamento e de reúso. A organização aponta que as águas residuais podem ser reaproveitadas na indústria, em setores que não precisam tornar a água potável para utilizá-la como insumo. É o caso de sistemas de aquecimento e resfriamento, por exemplo.

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As famílias agricultoras do Semiárido brasileiro têm muito a ensinar sobre o tema escolhido pela ONU para o Dia Mun-dial da Água deste ano: “Águas Residuais” - ou água servida, no jeito de falar das agricultoras e agricultores da Paraíba. Atualmente, 80% das águas utilizadas são descartadas na natureza. Se fossem reaproveitadas, a necessidade pela água potável diminuiria, assim como seria reduzido também o volume de esgoto lançado nos rios, lagos, mares.

Naturais de uma região com um regime de chuva irre-gular e cada vez mais afetada pelas mudanças climáticas, as famílias agricultoras precisam da água não só para beber e para o uso doméstico. A água é fundamental para cultivarem seu alimento, que também nutre outras tantas famílias suas freguesas nas feiras ou na própria comunidade. Com acesso regrado ao recurso essencial à vida, as famílias agricultoras sabem muito bem usar várias vezes a mesma água, sem desperdiçar nenhuma gota.

“Na região, as pessoas já tra-zem culturalmente esta prática pela dificuldade de acesso à água. Quando elas passam a ter acesso à água, através das cisternas, elas qualificam ainda mais esta prática devido à autonomia que ganham no uso do recurso”, comenta marcos Jacinto, da coordenação executiva da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) pelo Estado do Ceará.

Da necessidade, surgiram formas criativas e de fácil aplicação para o reaproveitamento de cada gota d´água que chega às propriedades das famílias rurais do Semiárido. Uma delas, conhecida como caminho das águas, é cavar valas no terreno dos quintais das casas para que o líquido que escorre das pias e tanques alcance as raízes das fruteiras. “Sempre aproveitei a água que a gente usa em casa. Mesmo com a chegada das cisternas, eu tenho cuidado pra não destruir a água. Porque eu já sofri com falta de água e a água era ruim, mas criava as verduras!”, contou a agricultora Eunice Dantas, conhecida como dona Nicinha, no boletim O Candeeiro, um instrumento de sistematização e comunicação popular que a ASA utiliza para contar as histórias de vida dos agricultores e agricultoras.

Com um pouco mais de estrutura, as valas no chão são substituídas por canos e duas caixas filtram a água antes de ser despejada nas plantas. Essa tecnologia, conhecida como bioágua, é muito difundida no Rio Grande e Pernambuco, por exemplo.

Uso de águas residuais é prática antiga no Semiárido

Verônica Pragana | Jornalista da Articulação no Semiárido Brasileiro - Asacom

A primeira caixa tem camadas intercaladas de brita grossa e fina com areia que retiram os resíduos da água. E a segunda, recebe a água filtrada, antes de gotejar nas plantas. É assim na propriedade de seu Antônio e dona Marlene Magalhães, do Sitio Carnaubinha, em Afogados da Ingazeira, em Per-nambuco, há 6 anos.

“Antes, a água do banho e da pia corria para o terreiro. No tempo das chuvas, criava lodo que fazia desgosto. Hoje, essa água está molhando as plantas que tinha que ser aguada por outra água. Se nós vamos escovar os dentes, a água termina nas plantas. Não desperdiçamos nenhum copo de água”, conta seu Antônio. Essa água, na verdade, é que está salvando os pés de fruta que alimentam a família. Mesmo assim, algumas mangueiras e goiabeiras sucumbiram à pior seca do século que, desde 2013, tem secado o açude perto da

casa deles. Segundo seu Antônio, essa é a primeira vez que ele vê o açude sem água.

Outra tecnologia de aprovei-tamento de água é o banheiro redondo, disseminado em vários territórios do Semiárido por orga-nizações sociais como a Diaconia, que atua no Sertão do Pajeú, em Pernambuco, e no Oeste do Rio Grande do Norte. O banheiro redondo é projetado para o reuso das águas da pia e do chuveiro, que são direcionadas para dois tanques de decantação e daí para o pomar. “Depois da água (reutilizada) até

minha alimentação melhorou. Comecei a plantar e vender aqui na comunidade”, contou dona Berenice Miranda, que mora na comunidade Água Branca, no município de Umarizal, no Rio Grande do Norte.

No Ceará, no município de Iguatu, outra tecnologia foi desenvolvida a partir da inspiração do sistema de bioágua. Batizada pelas organizações da ASA no Ceará como Sistema de Tratamento e Reuso de Águas Cinzas, esta tecnologia foi entregue a 25 famílias através de uma parceria entre o Insti-tuto Elo Amigo e a Fundação Banco do Brasil. Trata-se de um filtro biológico formado, de baixo para cima, de seixos, brita, areia, pó de serragem e húmus com minhoca, a água sai purificada a ponto de poder irrigar alimentos que são comidos crus. “Como as famílias sempre estão usando água dentro de casa, todo dia tem água para passar pelo tratamento biológico”, destaca Marcos Jacinto, ressaltando mais uma qualidade no reuso da água: a rapidez que a água fica disponível para voltar ao agroecossistema familiar.O

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Um passo importante para a recuperação do Rio Doce acaba de ser concluído. A proteção de 511 nascentes de afluentes da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, em Minas Gerais e no Espírito Santo, foi realizada por meio de uma parceria entre a Fundação Renova e o Instituto Terra. Ao todo, a Fundação Renova promoverá a recuperação de 5 mil nascentes na região ao longo de dez anos. Das 511 primeiras nascentes recuperadas, 251 estão em MG e 260 no ES.

O trabalho contempla as bacias dos rios Pancas, envol-vendo os municípios de Pancas, Governador Lindenberg, Marilândia e Colatina; e Santa Maria do Doce, em Colatina, no Espírito Santo.

Em Minas, as ações foram na bacia do Rio Suaçuí Grande, nos municípios Itambacuri, Frei Inocêncio, Jampruca e Campanário. A escolha das áreas prioritárias contou com a participação dos Comitês de Bacia envolvidos e de lideranças das comunidades locais. O Comitê de Bacias Hidrográfica do Rio Doce (CBH Doce) é quem tem a responsabilidade de indicar em quais bacias a Fundação Renova deve iniciar a recuperação das nascentes.

Bacia do Rio Doce tem 500 nascentes recuperadas

Andréa Guimarães | Jornalista da Fundação Renova

Em campo

O produtor rural Antônio Fantini, de 46 anos, mantém uma propriedade de 10 hectares em Itambacuri (MG), localizado no Vale do Rio Doce. A parceria entre a Renova e o Instituto Terra providenciou o cercamento de dois olhos d’água no ter-reno de Fantini, nascedouros que formam o Córrego Cupim. “É uma iniciativa que compensa. Espero colher benefícios com essa ação. Eu já tinha alguns projetos para proteger essas nascentes, iria até cercar por conta própria. A iniciativa veio na hora certa”, explica. No terreno do produtor, o trabalho foi concluído em dezembro de 2016 e demandou 240 estacas e 314 metros de arame para cada nascente.

Fantini, que tem 30 cabeças de gado, diz saber da impor-tância da proteção para evitar que a criação impacte negativa-mente as nascentes, principalmente devido à compactação do solo. Ele acrescenta que a conscientização junto aos produtores é bem-vinda. “Alguns cuidam das nascentes, outros não. É sempre importante esse trabalho. No fim das contas, vai contribuir para a recuperação do Rio Doce”, conclui.

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Etapas do processo

Nessa etapa do processo de recuperação, produtores rurais receberam orientação técnica e todo o material para cercar as áreas de nascentes, como estacas, arames e grampos, além de um incentivo financeiro para realizar o trabalho. A partir dessa definição, 217 produtores se cadastraram e aderiram ao projeto de maneira voluntária, entendendo a importância da inciativa para o meio ambiente e também para manter as propriedades produtivas. A ideia é que a proteção, através do cercamento, evite o pisoteio do gado nas áreas de nascente e a degradação vegetal, favorecendo a regeneração florestal. Com isso, o solo fica em condições favoráveis para reter a água da chuva, garantindo o recurso de qualidade para as atividades domésticas das propriedades e agrorurais, como irrigação, pasto e criação de pescados, por exemplo.

A próxima etapa, que será realizada até setembro deste ano, prevê a implantação de fossas sépticas nas propriedades, para evitar o despejo de esgoto no lençol freático. Além disso, contempla instalação caixas secas e barraginhas, evitando o carreamento do solo e garantindo a captação da água da chuva para reaproveitamento.

De novembro deste ano a janeiro de 2018, no período chuvoso, também serão reflorestados cerca de 300 hectares em Minas e Espírito Santo. Preparação do solo, adubação e plantio mudas de espécies de Mata Atlântica nas áreas de entorno das nascentes são ações que farão parte do trabalho.

Recuperação de nascentes, como funciona:

• A recuperação de nascentes tem como princípio básico a proteção da superfície do solo, criando condições favoráveis à infiltração da água.

• Nessa etapa de proteção das áreas foram 511 nascentes contem-pladas, 251 em Minas Gerais e 260 no Espírito Santo.

• Em cada área de nascente foram cercados 314 metros de perímetro.

• Com o cercamento, o objetivo é deixar a vegetação se regenerar e voltar a reter a água de chuva, garan-tindo um fluxo de água.

• Os resultados poderão ser percebidos entre 6 meses e 2 anos, dependendo da região e do nível de chuva.

Instituto Terra

O Instituto Terra é fruto da iniciativa do casal, Lélia Deluiz Wanick Salgado e Sebastião Salgado, que há pouco mais de uma década, diante de um cenário de degradação ambiental em que se encontrava a antiga fazenda de gado adquirida da família de Sebastião Salgado, na cidade mineira de Aimorés, tomou uma decisão: devolver à natureza o que algumas décadas de degradação ambiental destruíram.

Mobilizaram parceiros, captaram recursos e fundaram, em abril de 1998, a organização ambiental dedicada ao desen-volvimento sustentável do Vale do Rio Doce. O Instituto Terra é uma organização civil sem fins lucrativos fundada em Abril de 1998, que atua na região do Vale do Rio Doce, entre os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Trata-se de uma região do Brasil que vivencia as consequências do desmatamento e do uso desordenado dos recursos naturais como a seca, a erosão do solo e a falta de condições para o homem do campo viver e prosperar.

Atualmente o Instituto Terra conta com 22 associados, sendo dois associados fundadores vitalícios, oito associados fundadores e 12 associados efetivos. Suas principais ações envolvem a restauração ecossistêmica, produção de mudas de Mata Atlântica, extensão ambiental, educação ambiental e pesquisa científica aplicada.

Sobre a Fundação Renova

A Fundação Renova é uma instituição autônoma e inde-pendente constituída para reparar os danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, ocorrido em Mariana (MG), em Novembro de 2015. Entidade privada, sem fins lucrativos, garante transparência, legitimidade e senso de urgência a um processo complexo e de longo prazo. A Fundação foi estabelecida por meio de um Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC), assinado entre Samarco, suas acionistas, os governos federal e dos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, além de uma série de autarquias, fundações e institutos (como Ibama, Instituto Chico Mendes, Agência Nacional de Águas, Instituto Estadual de Florestas, Funai, Secretarias de Meio Ambiente, dentre outros), em Março de 2016.

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Altair Sales Barbosa é Antropólogo pela Pontifícia Uni-versidade Católica de Chile, doutor em Arqueologia Pré-Histórica pela Smithsonian Institution - National Museum of Natural History de Washington. É coordenador do projeto Enciclopédia Virtual do Cerrado pelo Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, do qual é sócio titular.

Como reage diante da entrega da primeira parte da transpo-sição do São Francisco, que leva água até Pernambuco?

A pressa desenfreada para inaugurarem as obras da trans-posição do Rio São Francisco se enquadra, atualmente, nos moldes ditados pelo modelo econômico que rege a política brasileira, visando à expansão de fronteiras agrícolas para atender as exigências do capital internacional, sem a devida preocupação com as consequências ambientais e sociais para o futuro regional e mesmo para o futuro do planeta.

Era ou não desejável realizar essa obra no São Francisco? Por quê? Quais os impactos geológicos de uma transposição?

A ideia de aproveitamento das águas do São Francisco para projetos de irrigação de grande envergadura não é ruim, mas no estado de fragilidade e degradação em que se encontram seus alimentadores, executá-la é acelerar a morte do rio. A bacia tem que ser vista de maneira global. Como já é conhecido, o São Francisco integra um sistema composto por elementos intimamente interligados, e qualquer alteração num desses elementos provoca alteração no sistema como um todo. As águas de sua bacia dependem basicamente dos aquíferos Urucuia e Bambuí, cuja recarga depende das águas das chuvas, absorvidas pelo complexo sistema radicular das plantas do Cerrado. O Cerrado é uma formação complexa que depende de inúmeros fatores para a sua existência. Entres estes fatores, incluem-se alguns mamíferos que têm a capacidade de quebrar, no mecanismo do seu intestino, a dormência das sementes de algumas plantas e se tornam disseminadores dessas plantas, cujas tecnologias ainda não foram desenvolvidas para produção em viveiros. Outro fator importante é a polinização por vespas e abelhas indígenas endêmicas do Cerrado. Não é necessário falar que a fauna do Cerrado se encontra em processo acelerado de extinção, portanto o processo natural de disseminação vegetal está afetado.

Patricia Fachin | Jornalista do IHU

Transposição e morte do Rio São Francisco

O Cerrado, enquanto ambiente e formação vegetacional, já atingiu seu apogeu evolutivo. Isto significa que, uma vez degradado, não se recupera jamais na plenitude de sua bio-diversidade. A discussão da revitalização não passa de uma falácia que revela desconhecimento da história evolutiva do Cerrado. Algumas plantas do Cerrado demandam séculos para atingirem a maior idade.

Se considerarmos o Cerrado com um todo, ou seja, incluindo todos os seus subsistemas, menos de 5% de sua área original está preservada. Nos chapadões onde ocorre a recarga dos aquíferos, este índice ainda é menor.

Quem foram os principais apoiadores e opositores da transpo-sição? Pode nos apresentar quais são os argumentos utilizados em favor da obra e quais são os contrários?

Quando o Governo Federal, em 2005, anunciou o pro-jeto de transposição do rio São Francisco, grande parte dos pesquisadores brasileiros, conhecedores da ecologia regional, se posicionou contrária ao referido projeto. Juntamente com os pesquisadores, vários segmentos sociais de agricultores familiares, ribeirinhos e Comissão Pastoral da Terra também se juntaram a essas vozes — a mais expressiva e esperançosa foi expressada através do gesto do bispo da diocese de Barra, D. Luis Cappio.

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Entrevista com Altair Sales BarbosaDoutor em Arqueologia Pré-Histórica. Coordenador da Enciclopédia Virtual do Cerrado

Altair Sales Barbosa

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Entretanto, o fim do protesto deste bispo, explicitado através de um jejum de vários dias, associado à decisão do Supremo Tribunal Federal de ordenar a retomada das obras para a transposição do rio São Francisco, funcionou como uma ducha de água fria, despejada em todos os movimentos que possuem uma visão diferenciada da posição oficial sobre a transposição. E apagou de vez a esperança que alguns manti-nham na capacidade de diálogo dos governantes. A promessa do então Governador da Bahia de revitalizar as cabeceiras dos alimentadores do São Francisco não passou de uma ilusão, porque cientificamente é impossível concretizar este fato.

A transposição do Rio São Francisco se divide em dois eixos, o Norte e o Leste. Pode nos explicar cada um deles e de que modo a água do rio será transportada para os quatro estados que receberão essa água?

O atual projeto de transposição do Rio São Francisco consiste na construção de dois eixos adutores, que se interligam a eixos adutores menores, dispersos em várias direções. O primeiro eixo, denominado Eixo Norte, terá, segundo dados oficiais, 402 quilômetros de extensão por 25 metros de largura e 6 metros de profundidade. Será totalmente construído em massa concreta. Entretanto, dados não oficiais informam que esse eixo terá uma extensão superior a 600 quilômetros, não contabilizando os adutores colaterais. A água que abastecerá esse eixo será bombeada para o canal a partir da cidade de Cabrobó e passará prioritariamente por terras do Estado do Ceará e Rio Grande do Norte.

O segundo eixo se denomina Eixo Leste e de acordo com dados oficiais terá uma extensão de 220 quilômetros em linha reta, tomando como orientação o eixo principal. Todavia, esse eixo se une a um emaranhado de eixos menores, cuja soma-tória total ultrapassa os 1.000 quilômetros. Passará em terras dos Estados de Pernambuco e Paraíba. Sua captação se fará através de bombeamento de água, a partir da represa de Itaparica. A construção, toda em concreto, terá as mesmas características do Eixo Norte, com 25 metros de largura por 6 de profundidade.

Que avaliação faz do processo de construção da obra?

Este sistema de transposição afetará dras-ticamente a dinâmica do Rio São Francisco e toda sua bacia, que é formada por rios senis, que já atingiram seu estado de equilíbrio. Este estado já foi afetado algumas vezes pela construção de barragens.

As consequências do sistema de transpo-sição serão danosas e num curto espaço de tempo levará à morte a maioria dos afluentes do São Francisco, incluindo o próprio rio. Isto acontecerá porque com a dinâmica alterada o transporte de sedimentos arenosos aumentará de forma assustadora, gerando dentre as consequências o assoreamento, já que a maioria dos afluentes do São Francisco corre por áreas da Formação Urucuia, cuja característica principal é a ocorrência de um arenito frouxo.

A transposição, da forma como se nos apresenta, aumen-tará também a velocidade dos rios na sua calha principal. Isto provoca em todos os afluentes o fenômeno denominado sugamento dos aquíferos, que serão sugados em velocidade maior para alimentarem os rios agora mais velozes desde seus cursos superiores.

Como já é conhecido, em função da retirada da cobertura vegetal nativa para monocultura, os aquíferos não estão sendo recarregados como deveriam e de ano em ano diminuem em seus níveis. O sugamento funcionará como um aspirador sugando a última poeira dos cantos de alguns aposentos que alguém esqueceu de varrer.

Um dos principais argumentos dos governos do PT e do PMDB ao defenderem a transposição do Rio São Francisco era o de que a obra beneficiaria 12 milhões de pessoas em quatro Estados, Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Por que, na sua avaliação, esse argumento é frágil e por quais razões a obra é controversa?

Infelizmente, o discurso da geração de empregos e do enriquecimento fácil, usado pelos políticos sem a devida assessoria científica, tem servido de base para iludir o povo. O tempo tem demonstrado o quanto esse discurso é fala-cioso. É claro que se houvesse o estudo adequado de toda a bacia do rio São Francisco e um zoneamento agroecológico correto, algumas áreas poderiam usufruir da irrigação para produção, sem a necessidade da transposição da forma como está se concretizando.

Como a população desses quatro Estados tem reagido ao processo da transposição do São Francisco e especialmente neste momento, com a entrega de parte da obra? A população também está dividida em relação às vantagens e desvantagens dessa obra?

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Pequena parcela da população tem reagido de forma mais veemente. Isto porque falta organização e falta consciência. Se esses dois elementos existissem, a reação seria bem maior. Conhecimento do problema que a transposição trará, muitos têm, mas a consciência que é capaz de mudar comportamentos, poucos a têm. A resistência fica por conta de pequenos grupos organizados da Igreja Católica, como a Comissão Pastoral da Terra, ribeirinhos, pescadores e alguns artistas que abraçaram a causa. Felizmente a consciência está se alastrando, o que poderá ter, no futuro, resultados concretos.

O senhor comentou que há uma disputa por água no Oeste da Bahia entre população local e multinacionais do agronegócio. Como essa disputa vem ocorrendo e por que as empresas se beneficiam da transposição e a população não?

Há cerca de um mês, fiz uma vistoria em alguns rios do oeste da Bahia, vertente do São Francisco e outros situados a leste do Espigão Mestre, que vertem para o Tocantins. A situação é de pura calamidade, basta analisar as imagens de satélite da região para verificar a migração das nascentes desses rios, bem como o desaparecimento de outros.

Os grandes empreendedores dessas iniciativas são absen-teístas, não vivem no local, por isso não sabem dimensionar a grandeza do crime que estão cometendo, não só contra as populações tradicionais, mas contra os bens naturais e a própria humanidade, uma vez que o prejuízo ambiental já concretizado é irreversível. Quem entende a dinâmica da ecologia do Cerrado, tem pleno conhecimento deste fato. Seus representantes, verdadeiros capatazes, se alinham aos que dominam a política do Estado da Bahia, através dos órgãos que deveriam cuidar do meio ambiente, e não favorecer e facilitar sua destruição. Os representantes destes órgãos desconhecem as diferenças com que o Sertão de Dentro se manifesta em relação à dinâmica ecológica de Salvador ou do Litoral.

Algumas pessoas que exercem cargos políticos, assentados em Salvador e algumas regionais, funcionam como “cabeça de ponte” entre a população que os elegeu confiando nas suas “boas intenções”, e os capatazes dos empresários alienígenas. Juntos proporcionam o suicídio ambiental e humano pela ação dos que detêm o poder, e o suicídio da população, por omissão, que vê seus bens naturais e seus valores humanos serem erodidos, mas que não têm a força necessária para frear o processo de degradação e destruição da natureza e das comunidades.

É importante salientar que o Cerrado do Oeste da Bahia é de fundamental importância para a recarga do aquífero Urucuia, através da absorção das águas das chuvas. As águas desse aquífero sustentam os rios que correm paralelamente encaixados e que são os responsáveis diretos pela vida e pere-nização do rio São Francisco, “um patrimônio nacional”.

Mas o Cerrado do Oeste da Bahia também é muito impor-tante para a vida no Planeta, pois, pelas suas características evolutivas, exerce o papel de sequestrar grande índice de carbono da atmosfera, numa época em que o Efeito Estufa põe em risco a vida na Terra. Portanto, este ambiente, se preservado, pode ser considerado também um Patrimônio da Humanidade.

Desde que o grande capital se implantou na área, o Cer-rado em todos os seus gradientes vem sendo, paulatinamente, delapidado na plenitude de sua biodiversidade, incluindo as águas. Portanto os autores dessa façanha estão cometendo um crime contra a humanidade. Talvez não tenham as condições e inteligência necessárias para avaliarem as consequências nocivas advindas de tais atos. Mas, também, podem ter sido engolidos pela ganância do lucro, o que é ainda pior. Uma coisa é certa, nesta situação não cabe a frase bíblica “Perdoai, Senhor, porque eles não sabem o que fazem”.

Os frutos dessa desarmonia serão colhidos ainda na geração atual. Não pensem que somente os filhos e netos herdarão o sofrimento, cuja semente está sendo plantada, porque a natureza não espera quando entra em desequilíbrio.

Especificamente para o Rio São Francisco, quais serão as consequências ambientais da transposição?

O Rio São Francisco nasce no Cerrado de Minas Gerais, na Serra da Canastra, percorre mais de 3.000 km até sua foz. Ao longo desse percurso, vai engrossando suas águas, principalmente com seus afluentes da margem esquerda, que formam as sub-bacias dos rios Paracatu, Urucuia, Carinhanha, Corrente e Grande.

Todos esses rios e seus alimentadores menores estão mor-rendo a cada hora que passa. Alguns já desapareceram para sempre. Isto acontece porque os dois grandes aquíferos que fazem o São Francisco brotar e o alimentam ao longo do seu percurso, estão secando.

Para entender este fato, é necessário recuar no tempo, pelo menos 45 milhões de anos. É nesta época que o Cerrado adquire suas feições atuais, cuja vegetação possui um sistema radicular complexo. Por este fator, começou a reter as águas das chuvas que caíam principalmente nos Chapadões do Noroeste de Minas e Oeste da Bahia, Distrito Federal e Nor-deste Goiano e parte do Tocantins. Estas águas, primeiro são armazenadas nas rochas decompostas, que formam o lençol freático, depois, pela abundância, infiltram pelas brechas das rochas do subsolo e se acomodam nos lençóis profundos.

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No Bambuí, esta água, após atravessar a Formação Uru-cuia, que é arenosa, se armazena nas imensas galerias comuns às formações calcárias. No Urucuia a água foi formando, com o tempo, grandes reservatórios que se acomodavam entre os poros do arenito.

Quando os aquíferos retiveram água suficiente, esta começou a brotar, na forma de nascentes, principalmente nas testas da Serra e na forma de pequenas lagoas nas áreas aplainadas, formando as veredas. Com o tempo as águas, como lágrimas milagrosas, começaram a descer em direção a leste, alimentando a calha do seu condutor mor, o rio São Francisco. E assim, foram se formando paisagens que deve-riam ser maravilhosas. Ao longo dos rios surgiam lagoas e banhados, onde se multiplicavam, em grande quantidade, os peixes que outrora eram abundantes, não só no São Francisco, mas em todos os seus afluentes.

Na realidade os afluentes da margem esquerda são os principais responsáveis pela perenização do rio São Francisco, pela sua oxigenação e, em última instância, pelo seu nasce-douro e existência. A água armazenada neste grande espaço geográfico abrange desde a Serra da Canastra ao sul, até a chapada das Mangabeiras ao norte e se limita a oeste pelo Espigão Mestre, que separa Goiás e Tocantins de Minas e Bahia. Nos Chapadões formados a leste do Espigão Mestre, existem grandes depósitos de arenito que constituem a For-mação Geológica Urucuia, de idade Cretácea, formada entre 140 e 65 milhões de anos.

A formação Urucuia repousa sobre a Formação Bambuí, calcário de idade Pré-Cambriana e Paleozoica Inicial, com média de um bilhão de anos. Essas duas formações geológi-cas armazenam águas que formam dois grandes aquíferos, responsáveis pelas águas que fazem jorrar a nascente do São Francisco e de todos os seus afluentes da margem esquerda, que, em função de secções geomorfológicas, estão agrupados em dois grandes conjuntos.

O primeiro se situa desde a Serra da Canastra até a Serra da Capivara, na fronteira entre Minas Gerais e Bahia. O segundo se situa desde esta Serra até os contrafortes da Cha-pada das Mangabeiras, na fronteira entre Bahia, Tocantins, Piauí e Maranhão.

Entre os rios do primeiro conjunto, se destacam: Abaeté, Paracatu, Urucuia e Pardo. A partir da Serra da Capivara, um aglomerado de capilares hidrográficos forma importantes rios, como o Carinhanha, que deságua diretamente no São Francisco, e uma série de outros importantes, como Pratudão, Pratudinho, Arrojado, Correntina, do Meio, Guará etc., que nas proximidades de Santa Maria da Vitória, se juntam dando origem ao rio Corrente, que deságua no São Francisco, nas proximidades de Bom Jesus da Lapa. Mais ao Norte, outro grande conjunto de inúmeros capilares aquosos, que vem desde o Jalapão, se junta dando origem ao rio Grande, que deságua diretamente no São Francisco. Todos esses rios são perenes durante toda época do ano, e até cerca de 30 anos atrás o volume era no mínimo 5 vezes maior que o volume atual.

A partir da década de 1970, as áreas dos chapadões, onde se situam as nascentes e os cursos médios desses rios, sofreram uma grande transformação com a retirada da cobertura vegetal natural para a produção de grãos e outras plantas exóticas. Este fato impede a realimentação normal dos aquíferos, contribuindo para o desaparecimento de inú-meros afluentes menores e a diminuição drástica do volume dos cursos maiores. A maior parte dos afluentes da margem direita do São Francisco é formada por rios temporários, que costumam desaparecer na estação seca. Isto ocorre porque esses rios não são provenientes de aquíferos, mas dependem das águas armazenadas no fino lençol freático, que repousa sobre rochas não porosas que constituem o Cráton do São Francisco. O lençol freático está na dependência das águas pluviais e da vegetação. Portanto, o desmatamento associado a um período de estiagem prolongada o afeta totalmente.

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O rio mais importante pela margem esquerda não é temporário, porque vem do aquífero Bambuí. Trata-se do rio das Velhas, que carrega para o São Francisco todo o esgoto de Belo Horizonte.

De todos os ambientes terrestres atuais, o Cerrado pode ser considerado o mais antigo dentro da história recente do Planeta, que começou por volta de 65 milhões de anos numa Era Geológica denominada Cenozoica. Os processos iniciais da história evolutiva do Cerrado começaram no início dessa era e se concretizaram por volta de 45 milhões de anos antes do presente. Por isto o Cerrado como um todo é um ambiente especializado que já atingiu seu clímax evolutivo, ou seja, uma vez degradado não mais se recupera na plenitude da sua biodiversidade.

Hoje são conhecidas aproximadamente 13 mil espécies vegetais no Cerrado. Atualmente existe conhecimento para produção em viveiros de no máximo 200 espécies. As pes-quisas da biotecnologia sobre produção de mudas nativas do Cerrado “in vitro” têm alcançado poucos resultados positivos. Portanto, quando se fala em revitalização do Cerrado, é pru-dente considerar esses aspectos, incluindo a função ecológica da vegetação nativa para a alimentação dos aquíferos, caso contrário não passa de discurso vazio.

A partir de 1970, a vegetação nativa do Cerrado, que ocu-pava os chapadões, capinas e tabuleiros, foi sendo substituída por plantas exóticas. Consequência: a chuva continuou caindo, mas não infiltrava como anteriormente, nem era absorvida pelo complexo sistema radicular da vegetação nativa, porque esta não existia mais. As plantas exóticas introduzidas têm raiz subsuperficial, e não chegam a reter 20% das águas; além do mais, como se trata de culturas temporárias, grande parte do ano o solo fica desnudo, aumentando a perda da umidade do lençol freático. Acrescente-se a isso os pivôs centrais que nos chapadões são alimentados através de poços artesianos. Ou seja, além, de não estarem sendo recarregados normalmente, a pouca água existente atualmente nos aquíferos ainda é sugada para umedecer as grandes plantações, que não retêm o excesso dessa água, que acaba evaporando.

A retirada da cobertura vegetal natural do Cerrado tem influenciado a própria vida do São Francisco, já que este depende de fatores ecológicos extremamente complexos e interdependentes. O processo de desaparecimento dos seus alimentadores hidrográficos está acontecendo num ritmo muito acelerado, em função desse fator. O raciocínio é simples: as águas das chuvas eram absorvidas em grande parte pela vegetação nativa que alimenta os aquíferos, que fazem suas descargas nos declives e áreas baixas formando os rios.

É como um imenso reservatório, assemelhando-se a uma grande caixa d’água com vários furos enfileirados de cima para baixo. Quando o reservatório estava cheio, a água jorrava por todos os furos. À medida que o nível foi baixando, a água que anteriormente jorrava dos furos superiores deixava de correr. Este fenômeno é conhecido pelo nome de migração de nascentes. A migração das nascentes provoca o desapare-cimento de pequenos cursos d’águas no início, mas à medida que o processo se acentua, os cursos maiores são afetados, até desaparecerem totalmente. Vez em quando, vão ocorrer cheias estrondosas, provocadas ciclicamente por fenômenos naturais como El Niño e La Niña, mas isto não significa que o rio tenha ressuscitado, são fenômenos efêmeros provocados por enxurradas resultantes de chuvaradas que se deslocam pelos antigos caminhos das águas.

O que aconteceu com o quadro vegetacional vem aconte-cendo também com os animais, incluindo os insetos poliniza-dores, que se encontram em acentuado processo de extinção. No caso específico da fauna aquática do São Francisco, esta era abundante, com variadas espécies de peixes que saciavam a fome das populações ribeirinhas e ainda mantinha comércios dinâmicos. Esse panorama não existe mais. Diante de tal situação, alguns se colocam como salvadores, pregando, por exemplo, programas de soltura de alevinos para repovoarem os rios. É sempre bom lembrar que a cadeia alimentar dos filhotes de peixes se inicia nas lagoas e matas ciliares, ambientes produtores de fitoplânctons. Entretanto a degradação provocou o desaparecimento das lagoas marginais e das matas ciliares contínuas. Por isso, os peixes foram embora.

O incentivo oficial, através de verbas governamentais e internacionais, para a pesquisa aplicada visando à produtivi-dade, demonstrou que a área dos chapadões por onde nascem e correm os principais afluentes do São Francisco, com muito insumo, poderia se transformar num potencial agrícola de dimensões grandiosas, associado ao fato de ser uma das últimas reservas da terra capaz de suportar, de modo imediato, a pro-dução de grãos, cereais e a formação de pastagens e canaviais. Este fato atraiu recentemente grandes investimentos, criando modificações significativas, do ponto de vista da infraestru-tura de suporte. Fenômenos que, tomados em conjunto, têm provocado situações ecologicamente nocivas, com perspectivas preocupantes a nível regional e global.

A causa fundamental desta situação pode ser creditada ao modelo econômico que se instalou, voltado para o lucro imediato, sem nenhuma preocupação com as questões globais do meio ambiente e o conhecimento necessário do funcionamento da ecologia do Cerrado. Também pode-se associar a este determinante a falta de ações integradas de pesquisa técnico-científica para o conhecimento holístico das interações ambientais existentes, que tem causado a ausência de propostas concretas de zoneamento ecológico, com ênfase socioeconômica e planejamento global do uso dos recursos naturais da terra. Em suma, a pesquisa ficou voltada apenas para a produtividade; em nenhum momento se pensou na pesquisa visando à preservação.

Com a concretização do atual projeto de transposição das águas do São Francisco para os dois eixos adutores maiores e para os eixos menores, prevista para ser totalmente finalizada em 2017 e quando as bombas sugadoras instaladas em Cabrobó e Itaparica estiverem funcionando a todo vapor, todo o sistema hidrográfico da bacia será afetado drasticamente. Isto porque a dinâmica do grande rio e toda sua bacia formada por rios senis, que já atingiram seu estado de equilíbrio, será também afetada. As consequências da transposição serão danosas, e num curto espaço de tempo levará à morte a maioria dos afluentes do São Francisco, incluindo o próprio rio.

Desde o Império há discussões sobre a viabilidade ou não da transposição do rio São Francisco e muitos defenderam esta como a única possiblidade para resolver o problema da seca do Nordeste. O que seria uma alternativa à transposição?

Na época do Império a situação da preservação era outra, mas ainda bem que não se concretizou naquela época a tal transposição porque, se a degradação ambiental e social viesse a acontecer, como realmente aconteceu, hoje teríamos um grande deserto no Brasil.

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Estudo internacional, coordenado por pesquisadores brasileiros e publicado no dia 23 deste mês (Março) na revista Nature Ecology and Evolution, aponta perda significativa de espécies nativas do Cerrado nos próximos 30 anos se o ritmo atual de desmatamento do bioma continuar. A razão para isso é que há 4.600 espécies de plantas endêmicas no bioma, que não existem em nenhum outro lugar do planeta. Os pesquisadores projetam um quadro de extinções de espécies de grande magnitude se nada for feito.

Eles estimam que até 1.140 espécies podem desaparecer pelo desmatamento acumulado. “Esse é um número oito vezes maior do que todas as espécies registradas como extintas no mundo até hoje”, disse o coordenador da pesquisa, Bernardo Strassburg. Desde o ano de 1.500, quando foram feitos os primeiros registros das espécies de plantas no planeta, 139 foram declaradas oficialmente extintas.

Segundo Strassburg, o Cerrado já perdeu metade da área original. “Se tudo continuar no cenário que a gente chama de tendencial, vai perder um terço do que sobrou nas próximas três décadas”. O Cerrado já perdeu 88 milhões de hectares, o equivalente a 46% da cobertura nativa.

Alana Gandra | Repórter da Agência Brasil

Estudo prevê extinção de espécies nativas do Cerrado

Isso gera problemas ambientais de diversas naturezas. A crise hídrica que a Região Centro-Oeste, onde se situa o Distrito Federal, enfrenta no momento seria agravada pela falta do bioma e também haveria a emissão de gases de efeito estufa de 8,5 bilhões de toneladas de gás carbônico. “Isso tudo seria consequência direta do desmatamento projetado para os próximos 30 anos”, disse Strassburg.

Secretário executivo do Instituto Internacional para a Sustentabilidade e coordenador do Centro de Ciências para a Conservação e Sustentabilidade da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Strassburg destacou que o Cerrado é um hotspot mundial de biodiversidade (região biogeográfica que é simultaneamente uma reserva de biodiversidade e pode estar ameaçada de destruição).

Mix de políticas

Segundo a pesquisa, esse cenário pode ser evitado sem comprometer o aumento da produção agrícola programado, que projeta em torno de 15 milhões de hectares de expansão de soja e cana-de-açúcar nos próximos 30 anos no Cerrado.

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“Isso tudo pode ocorrer, desde que dentro de áreas já desmatadas, que hoje são usadas como pastagens de baixa produtividade. Você melhora a produtividade de pastagens em outros locais, libera algumas pastagens para soja e cana, faz toda essa expansão. Esses 15 milhões de hectares cabem na metade do Cerrado que já foi desmatada sem necessidade de desmatamento adicional”, ressalta.

De acordo com Strassburg, o Código Florestal Brasileiro estima que os fazendeiros terão que restaurar 6 milhões de hectares, o equivalente a 6 milhões de campos de futebol, caso queiram ficar em conformidade com a lei.

O artigo da revista mostra, ainda, que restaurar esse volume de vegetação nativa é bom, mas que, se isso for feito nas áreas otimizadas para proteção das espécies, será possível evitar 83% desse quadro projetado.

“Ou seja, se você expande a agricul-tura para áreas já desmatadas e restaura o Cerrado nas áreas mais importantes para as espécies, você consegue evitar 83% do quadro projetado”, disse o pesquisador.

O estudo cita um conjunto de oito políticas públicas e privadas existentes, algumas em aplicação no Cerrado e outras na Amazônia, mas sugere que algumas delas, como o caso da Moratória da Soja, por exemplo, deveriam ser estendidas para o Cerrado. Strassburg ressaltou, porém, que esse mix de políticas precisa ser coordenado entre si e financiado de forma apropriada.

Além da Moratória da Soja, implantada na Amazônia, que praticamente eliminou a conversão direta de áreas de floresta para o cultivo da soja na região, as políticas em vigor incluem a expansão da rede de áreas protegidas, uma vez que o Cerrado tem hoje menos de 10% de sua área protegida em UCs.

Para Strassburg, também é importante aumentar o finan-ciamento para conservação, inclusive com verbas oriundas de projetos de combate às mudanças climáticas. Ele acrescentou que, além disso, políticas nacionais, estaduais e municipais diretamente focadas na preservação de espécies ameaçadas precisam ser fortalecidas.

Strassburg citou o Plano ABC, do MAPA, que poderia ser implementado em maior escala, com a preocupação de orientar a expansão da soja e da cana para áreas já desmatadas e melhorar a pecuária em outras áreas. Para isso fun-cionar, Strassburg considera essencial um planejamento espacial estratégico para identificar as áreas prioritárias para conservação e restauração da vegetação nativa e aquelas em que a expansão da agricultura teria menor impacto, além de serem boas para a atividade agrícola.

O estudo conta com a parceria do MMA e do MCTIC. O Diretor de Con-servação de Ecossistemas do MMA, Carlos Alberto Scaramuzza, é um dos autores do artigo e espera que o trabalho seja útil para a formulação de políticas públicas ambientais e para mobilizar o apoio para a preservação do Cerrado.

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Ma-to-pi-ba. Parece nome de fruta do cerrado, como gabiroba, bocaiúva e araticum. Mas trata-se da maior fronteira agrícola do país e a porção do cerrado mais ameaçada pelo desmatamento. Segundo um novo estudo, que monitorou as emis-sões de carbono florestal em terras cultivadas na região, as emissões de gás carbônico no Matopiba já corres-pondem a quase metade do emitido por todo o Bioma – e já anulam parte da aplaudida redução da taxa de desmatamento na Amazônia.

Estima-se que quase metade (45%) dos Gases de Efeito Estufa liberados pelo Cerrado tenham ori-gem nas terras de Matopiba, uma área de mais de 400 mil km2 composta pelos Estados do Maranhão, do Tocantins, do Piauí e da Bahia (daí o nome, formado pelas iniciais dos quatro Estados). O novo estudo foi feito por pesquisadores do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), da NASA, da Embrapa e da Universidade de Wisconsin, nos EUA. De acordo com a pesquisa, mais de 870 milhões de toneladas de dióxido de carbono foram lançadas na atmosfera pelo Cerrado entre 2003 e 2013, o que equivale a cerca de 5% a 7% da redução de desmatamento na maior floresta tropical do Planeta por ano no mesmo período.

Desmate no Cerrado anula ganhos na Amazônia

Luciana Vicária | Jornalista do Observatório do Clima

O desmatamento em Matopiba vem sendo motivado pela força do agronegócio. A região vale mais desmatada, produzindo sacas de soja, de milho e de algodão, do que com a vegetação em pé. O Matopiba já perdeu parte considerável (27%) de sua cobertura vegetal, especialmente pelo clima uniforme e pelas áreas planas, classificadas como chapa-dões, que oferecem boas condições ao plantio de grãos. Prova disso é a safra recorde de 8,8 milhões de toneladas (2013/2014) e a previsão de quase triplicar esse valor (22,6 de toneladas) até 2023.

Mas ainda é tempo de salvar o Cerrado no Matopiba e reduzir as emissões de carbono. Áreas degrada-

das dariam conta de suprir toda a demanda por novas terras agrícolas, segundo o pesquisador Arnaldo Carneiro Filho, do INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia). O método de tentativa e erro aplicado em grande medida na expansão da soja no Matopiba gerou um grande desperdício de áreas.

“É possível manter a expansão da agricultura e aumentar a produtividade sem comprometer novas áreas de vegetação nativa, seja no Cerrado, seja na Amazônia”, diz Arnaldo Carneiro Filho.

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Ele é autor de um relatório recente publicado pelo Agroi-cone, segundo o qual a área plantada com soja no Matopiba cresceu 253% entre 2000 e 2014 (de 1 milhão para 3,5 milhões de ha). Cerca de 68% dessa expansão ocorreu em áreas de vegetação nativa. No entanto, segundo dados da Agrosatélite citados pelo relatório, há em todo o cerrado mais e 18 milhões de ha de pastagens com alta e média aptidão agrícola, que poderiam ser usadas para o cultivo mecanizado de soja. Desse total, 10% estão no Matopiba, que possui ainda 6,4 milhões de ha de pastagens que não prestam para a agricultura e que poderiam ser destinadas à intensificação da pecuária ou à recuperação florestal.

De acordo Márcia Macedo, pes-quisadora do IPAM e uma das autoras do estudo sobre emissões, é comum imaginar que biomas como o Cerrado não têm potencial para emitir grande quantidade de Gases de Efeito Estufa. “Há muita vegetação no Cerrado, inclu-sive florestas, e com elevado potencial de emissão de poluentes”, diz.

Apenas o Matopiba concentra 27,3 milhões de ha de vegetação nativa. Tra-duzindo para potencial de poluição: são cerca de 2,5 bilhões de toneladas de CO2 estocadas, mais do que a emissão anual de todo o Brasil. Parte importante de sua biomassa está abaixo do solo, nas raízes. Os pesquisadores costumam chamar o Cerrado de “floresta invertida”.

Sem proteção suficiente, toda a biodiversidade do bioma sofre grande ameaça. O Cerrado tem 11.627 espécies de plantas catalogadas, uma grande variedade de aves (837 espécies), de peixes (1.200 espécies), de répteis (180 espécies) e de anfíbios (150 espécies). Sem contar as nascentes do Cerrado que abas-tecem as três maiores bacias hidrográficas da América do Sul: a do São Francisco, do Tocantins-Araguaia e do Paraná.

Do ponto de vista do agronegócio, desmatar o Cerrado pode ter suas vantagens, se comparado à Amazônia. O Cerrado é o bioma brasileiro que possui a menor porcentagem de Áreas de

Proteção Integral: apenas 8,21% de seu território está legalmente protegido por UCs, o que facilita a grilagem e coloca o bioma em risco, afirma a especialista em Cerrado, Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília. “Se as áreas protegidas do Cerrado não forem aumentadas pelo Governo, corre-se o sério risco de perdê-las”, diz.

Por isso, é urgente a implantação de um mecanismo de controle da expansão da soja, que alie incentivos econômicos e financeiros para promover a reocupação de áreas já abertas e abandonadas ou áreas de pastagem, fazendo integração lavoura-pasto. “Já existe tecnologia sufi-ciente para evitar o desperdício de áreas e promover a inteligência territorial no uso e ocupação do solo”, afirma Tiago Reis, pesquisador do IPAM.

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Os motivos que provocam a ocorrência de queimadas na Floresta Amazônica são diversos, mas um estudo divulgado pela Rede Amazônia Sustentável (RAS) aponta um dado preocupante: cerca de 78% das espécies de plantas e animais sofrem redução após uma área ser atingida pelo fogo. Somado a isso há, ainda, a eliminação média de 40% do estoque de carbono da mesma área, o que contribui, significativamente, para o Efeito Estufa, afirmam os pesquisadores.

A situação é ainda mais alarmante quando se avalia que a floresta afetada pode nunca mais se recuperar, uma vez que há possibilidade de determinada área ser novamente atingida pelo fogo. Se realizado de forma contínua, esse processo pode levar à extinção de árvores, pássaros e outras espécies nativas da região amazônica. Segundo o levantamento, há uma redução média de 94% das espécies de plantas, 54% de aves e 86% de besouros.

O pesquisador britânico Jos Barlow, da Universidade de Lancaster (Reino Unido), é membro da RAS. Ele explica que a biodiversidade das florestas intactas é insubstituível. “Em um panorama de 25 anos percebemos que a floresta recuperou sua paisagem, mas com uma vegetação diferente da original. Não temos dados de quanto tempo uma área atingida pelo fogo demoraria para recuperar a sua biodiversidade e nem se ela pode mesmo voltar a se recuperar”, pontua Barlow.

Barlow disse que espécies raras, ameaçadas globalmente, só são encontradas na Amazônia no que eles denominaram “floresta primária intacta”. Esses exemplares sofrem tanto com o corte seletivo quanto com as queimadas. “A paisagem, a floresta, muda muito com a ação do homem. Por exemplo, manter a cobertura florestal de 80% em uma floresta primária não significa proteção para o mesmo valor da sua biodiversi-dade. Às vezes isso detém, apenas, 50% de conservação para pássaros e besouros”, explica. Pensar que há espécies que não conseguem viver desassociadas das florestas pode fazer surgir um estado de alerta sobre o desmatamento.

As taxas do desmatamento

Dados do Programa de Monitoramento de Queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que houve redução de mais de 25 mil km² da Floresta Amazônica, em 2004, para cerca de 6.200 mil km², em 2015. Embora os números sejam positivos, os focos de incêndios somaram 87 mil no mesmo ano e foram intensificados pelo fenômeno climático El Niño. Esse número foi 48% maior do que em 2014 e 23% quando comparado com 2010, quando houve uma estiagem de menor intensidade. Barlow diz que estava mais otimista, uma vez que essa redução foi acompanhada por aperfeiçoamento no monitoramento e em avanços na cobertura do Cadastro Ambiental Rural (CAR).

Catarina Barbosa | Jornalista, colaboradora da Amazônia Real

Queimadas destroem 78% da biodiversidade da Amazônia

“O problema é que os dados de 2015 e as previsões para 2016 de mais de 8 mil km² são realmente assustadores”, afirma. O CAR é um registro eletrônico obrigatório para todos os imóveis rurais para o controle, monitoramento e combate ao desmatamento das florestas do Brasil.

São muitos os fatores que contribuem para as queimadas: extração madeireira ilegal, mudança climática (que resulta em estiagens mais longas), florestas degradadas, caça predatória, abertura de clareiras, manejo do solo por meio do processo de corte e queima. Segundo a pesquisa da RAS, as queimadas praticadas na Amazônia – inclusive aquelas que acontecem no interior da floresta – são resultado da ação do homem. A falta de responsabilização das pessoas envolvidas pelos crimes ambientais de políticas públicas agrava o processo de destruição.

O fogo em Santarém

Nos últimos cinco anos, 43% dos 576 produtores entrevis-tados sofreram alguma perda financeira devido às queimadas. Mas dentre tantos casos, o de Santarém, município localizado no oeste do Pará, foi o que mais chamou a atenção: foram mais de 74 mil km² de florestas destruídas, área maior do que a desmatada em toda a Amazônia Legal em 2015. Nesse período foram destruídas as florestas, as plantações, as pastagens e até casas. Como não se imputa responsabilidade a alguém, até hoje os trabalhadores que tiveram bens econômicos toma-dos pelo fogo não receberam qualquer tipo de indenização. Manoel Edivaldo Santos Matos, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém, conta que o fogo cercava as plantações e casas por todos os lados. “Quando achávamos que o fogo estava controlado, encontrávamos outro foco. Foi muito triste”, relembra.

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O caso foi tão devastador em Santarém que até a Floresta Nacional do Tapajós foi atingida. As populações tradicionais perderam plantações inteiras de café, pimenta-do-reino, cupuaçu, laranja, graviola e outros cultivos. Entre as perdas, Matos recorda de duas que o marcaram: a de um agricultor que viu a moradia da família ser destruída pelo fogo e a de uma plantação de seis mil pés de pimenta-do-reino em que só conseguiram se salvar 300. “O que todas essas pessoas perderam ficou por isso mesmo, porque não recebemos nenhuma ajuda. É preciso que todos tenham atenção especial com a região. Nós precisamos proteger as florestas, porque a Amazônia é muito importante para o mundo”, defende Matos.

Os prejuízos das queimadas são incontestáveis, mas ao olhar para a realidade do pequeno produtor é preciso ques-tionar se ele tem condições de substituir o processo de corte e queima como meio de arar a terra. Segundo pesquisa da RAS, na qual foram entrevistados 576 pequenos produtores, 56% afirmaram não ter condições financeiras e técnicas para praticar uma agricultura livre do fogo.

Érika Berenguer, também pesquisadora da Universidade de Lancaster, diz que os donos de propriedades com mais de 500 hectares optam cada vez mais por uma agricultura livre de queimadas, via mecanização. Os agricultores com menos de 100 hectares informaram não ter condições de abandonar esta prática. “O processo de mecanização não é acessível para todos os pequenos produtores. Por isso, muitos ainda dependem do processo [do fogo], mas este acaba, por vezes, prejudicando o próprio agricultor”, diz.

A questão é que, para alguns agricultores, o fogo ainda é uma alternativa “barata” de preparar a terra para o pasto ou roçado. Ao utilizar a técnica, mesmo com o uso de aceiros (barreiras que demarcam e limitam a área a ser queimada), o fogo pode sair do controle, sobretudo em épocas de seca extrema. O incêndio fora de controle pode atingir propriedades vizinhas e as florestas, onde o combate fica ainda mais difícil. Berenguer contesta o uso da expressão “barato”, dizendo que “o fogo é um dano sem benefício”. Dos entrevistados, metade assumiu que já sofreu alguma perda financeira para o fogo. Em 86% dos casos, os incêndios vêm de fora da propriedade – ou seja, não são causados pelo agricultor. “Isso gera grande insegurança entre os produtores, que investem menos em medidas de controle das queimadas e em usos do solo mais rentáveis, como a fruticultura, com medo de perdê-las”, destaca.

Outro número que mostra o comportamento do pequeno agricultor diante do fogo diz que 91% deles constroem aceiros para que as chamas não se alastrem; 70% das queimadas são feitas contra o vento; mas somente 7% dos trabalhadores evitam o período mais quente do dia para iniciar o processo. Para Berenguer, as medidas de prevenção terão maior efetividade quando realizadas junto às comunidades e não direcionadas somente para a propriedade. Outra alternativa seria o apoio no emprego de maquinário, seguido de insumos agrícolas. O maquinário ajudaria a evitar as queimadas, mas talvez trouxesse outros problemas que ainda não podemos mensurar”, afirma a pesquisadora carioca Érika Berenguer. O estudo foi realizado nos municípios de Paragominas, Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos, todos no Pará. Nele foi constatado que somente 6% dos pequenos produtores possuem maquinário; mesmo assim, aqueles que fazem o uso dos equipamentos alugam de outros proprietários. Desse número, 10% possuem acesso às máquinas por meio de programas governamentais.

O Efeito Estufa

Em 2010, os incêndios na Amazônia brasileira levaram a uma emissão de 15 milhões de toneladas de carbono, o que equivale a quase metade das emissões do setor energético do país no mesmo ano, segundo estudo da Global Biogeochem Cycles, divulgado em 2015.

Érika Berenguer explica que áreas devastadas são mais fáceis de serem atingidas pelo incêndio. “Essas florestas são mais abertas e, portanto, mais secas, facilitando a ocorrên-cia das queimadas”, detalha. O Brasil precisa controlar o desmatamento e as queimadas na Amazônia para cumprir com as metas de redução dos gases de efeito estufa, dizem os pesquisadores.

Na pesquisa foram apresentados dados sobre a que teve mais impacto sobre as escolhas dos produtores. “Nós perce-bemos uma grande lacuna com relação à legislação sobre o uso do fogo, o que pode ser resolvido por meio de programas educacionais”, explica Érika Berenguer. Os cientistas pontuam que, apesar do estudo, as iniciativas devem ser realizadas pelo poder público. “Em nossos estudos cabe apresentar os dados e as preocupações, mas as soluções devem ser feitas a nível dos atores sociais responsáveis”, aponta Berenguer.

O pequeno produtor

O termo “pequeno produtor” ainda é alvo de críticas quando se quer apresentar dados de queimadas diferentes do desmatamento cometido pelos donos das grandes propriedades. O pequeno agricultor pode se configurar em agricultor familiar, camponês, os quilombolas, os indígenas, os ribeirinhos, por exemplo. Eliane Moreira, procuradora licenciada do Minis-tério Público do Pará e doutoranda da Universidade Federal do Pará (UFPA), pesquisa territórios coletivos e atenta para a necessidade de se questionar a expressão. “Muito se faz em prol do grande proprietário de terra, mas não há estudos que acompanhem a trajetória rural das comunidades tradicionais. Elas, sem dúvida, estão à margem das políticas de incentivo. Um exemplo disso são os esforços que abrangem o Cadastro Ambiental Rural”, defende Moreira.

Segundo a procuradora, há uma demanda real de incen-tivos para essas comunidades, tanto de acesso à terra quanto de assentamento e crédito rural. E quando se fala do uso do fogo não há uma uniformidade. “Eles têm uma compreensão de que essa talvez não seja a melhor técnica, mas ainda não estão empoderados o suficiente para abandonar essa tecno-logia ultrapassada e não têm acesso a novas formas de arar a terra”, afirma.

O que diz a Sema?

Segundo a Secretaria de Meio Ambiente do Pará (Sema), são realizadas reuniões periódicas, comumente no início do ano, entre a Defesa Civil, Corpo de Bombeiros e instituições parceiras, em que são discutidas as condições atuais e os prognósticos para os próximos anos e, assim, desenvolver ações de combate às queimadas no Estado. De acordo com os dados da secretaria, em 2016 os municípios em que mais foram detectados focos de queimadas são Altamira, São Félix do Xingu e Novo Progresso. Com relação a 2015, houve redução dos focos de incêndio: 80% em Altamira, 200% em São Félix do Xingu e 35% em Novo Progresso.

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No mesmo dia em que alguns jornais divulgavam a notícia de que o Brasil é o país onde o proprietário passa mais tempo dentro do automóvel – 4 anos e 11 meses de vida, ante 4 anos e 3 meses do argentino, 4 anos do europeu, 3 anos e 1 mês dos chineses –, informou-se que o item mais importante para a redução de 20% nos acidentes (em Goiás, por exemplo) foi o uso do farol, tanto no caso de acidentes com vítimas como nos sem vítimas. Nos acidentes com vítimas de morte a redução num mesmo período de 2016 e 2017 foi de 37,9%; nos acidentes com outras vítimas, redução de 7,55%; e nos casos sem vítimas, de 29,6%. As estatísticas também foram favoráveis nos casos de colisão e em mais de mil casos de atropelamento. São números importantes num país onde os acidentes dessa ordem costumam ser altos.

Já a poluição atmosférica no Estado de São Paulo, na visão de pesquisa coordenada pelo professor Paulo Saldiva, poderá explicar 15% dos casos de enfarte. Se reduzida em 10%, poderá evitar a morte em mais de 10 mil casos, além de se obterem avanços no tratamento de centenas de milhares de casos de asma e reduzir a perda de milhões de horas de trabalho.

“Ambientes poluídos e insalubres matam 1,7 milhão de crianças por ano” em todo o mundo, de acordo com relatório divulgado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) nesta semana. Uma em cada quatro mortes de crianças com menos de 5 anos está relacionada com ambientes poluídos e insalubres. Poluição do ar e da água, fumo passivo, falta de saneamento básico e de infraestrutura adequada de higiene também são fatores muito relevantes. E a maior parte deles poderia ser evitada. Principalmente com o acesso ao saneamento básico e o uso de combustíveis limpos.

Além disso, enfatiza o relatório, a exposição a ambientes insalubres pode começar durante a gravidez, aumentando o risco de partos prematuros. E as crianças expostas à polui-ção atmosférica e ao fumo passivo podem ter mais risco de contrair pneumonia e de desenvolver doenças respiratórias crônicas, como a asma.

Serra Leoa é o país com a maior incidência dessas doen-ças. Ali morrem 780,6 crianças de até 5 anos de idade por 100 mil habitantes, por causa de doenças atribuídas ao meio ambiente. No Brasil, a taxa é de 41,38 mortes. O principal problema é a falta de saneamento básico. Segundo a OMS, a situação não é tão alarmante como a da China e da Índia. Há um esforço para melhorar a qualidade do ar. A situação da água melhorou nos últimos anos, “mas não é a ideal”.

O que mais impressionou os pesquisadores, em quase todos os lugares, foi o impacto da poluição atmosférica dentro dos lares na saúde infantil. E sob esse ângulo, a poluição advinda da energia é um fator relevante.

Precisa ser atacado, substituindo o querosene por lâmpa-das solares; o fogão a lenha pode ser substituído por fogões elétricos, tão eficientes quanto os fogões a lenha, sem causar poluição. Quase 600 mil crianças morrem a cada ano por causa da poluição, principalmente a gerada dentro dos lares, ressalta a OMS. Lixo eletrônico é outro problema que expõe as crianças a toxinas que podem danificar os pulmões e levar ao câncer, além de redução no desenvolvimento cognitivo e déficit da atenção.

Segue o relatório da OMS relatando problemas com mudanças climáticas, como o aumento da temperatura e de níveis de CO2 na atmosfera, que favorecem a liberação de pólen pelas plantas, que está associado ao desenvolvimento da asma. Entre 11% e 14% das crianças abaixo de 5 anos são as maiores vítimas da asma, 44% relacionadas com o ambiente.

Nesse panorama, é muito preocupante a notícia divulgada pelas indústrias de automóveis de que até o final desta década o número de carros nas ruas dobrará. Essa perspectiva está levando a muitos programas de enfrentamento – BRTs e vias para bicicletas em Buenos Aires, trens de alta velocidade em 6.800 quilômetros nos EUA, espaços compartilhados por veículos e pessoas em vários países, pagamento de pedágio por automóveis em vias urbanas.

Mas fica a pergunta para vários países, incluído o Brasil: por que conceder incentivos fiscais e subsídios para automóveis, equipamento que permanece ocioso em 80% do tempo?

De Roma, vem a notícia (Plurale, 2/3) de que o papa Francisco aceitou a doação de uma instituição e “passará a usar um carro 100% elétrico durante um ano, como parte de um projeto-piloto que visa a demonstrar que essa tecnologia é boa para o ambiente e a economia. A consultoria doadora também doou quatro estudos sobre como transformar o Vati-cano num dos primeiros Estados do mundo a usar 100% de energias renováveis, num ambiente com 100% de mobilidade livre de emissões”.

Há muitos outros ângulos. A ONU, por exemplo, fez um estudo em Barcelona, preocupada com os espaços urbanos, a perda de espaços públicos, calçadas, praças, e com a insufici-ência dos transportes públicos. Sua recomendação é manter políticas participativas, tratar de relações entre bairros antigos e mais novos, que têm necessidades diferentes. Hoje o espaço público tem, no máximo, 30% da área total das cidades.

Mas é preciso lembrar que a população no mundo chegará a 10 bilhões de pessoas em 2050 (hoje já são mais de 3,9 bilhões). E lembrar o desafio, já presente, das megacidades. Tóquio tem 38 milhões de pessoas; Délhi, 25 milhões; a Grande São Paulo já passou de 20 milhões. E no centro de toda a questão está o problema da mobilidade urbana, a presença do automóvel.

A cidade de Goiânia, por exemplo, que foi concebida para ter, no máximo, 100 mil habitantes, hoje tem 1,43 milhão e uma frota de 1,15 milhão de veículos. Não é muito diferente de outras capitais de Estados e grandes cidades – até porque, em geral, não temos políticas para áreas metropolitanas.

Automóveis e saúdeWashington Novaes | Jornalista

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Washington Novaes

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| poluição urbana |

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A consciência crescente dos consumidores leva as empresas a aumentar constantemente o grau de transparência dos processos de produção. Cada vez mais quem compra determinado produto quer saber em que condições ele foi produzido, se respeitou as regras de boa ges-tão ambiental, se não envolveu nenhuma ação que afrontou princípios de justiça social, se a empresa tem imagem positiva em termos de responsabilidade sócio ambiental.

Guardadas as óbvias diferenças, algo semelhante vem acontecendo no universo do financiamento empresarial. Recentemente um grupo de gestores de investimentos, liderados pela Climate Bonds Initiative e responsáveis pela alocação de cerca de R$ 1,6 trilhão emitiu declaração no sentido de rea-firmar seu compromisso de que, diante das ameaças presentes e futuras decorrentes dos efeitos das mudanças climáticas, é urgente estruturar, a exemplo do que já existe em outras partes do mundo, o mercado brasileiro de Títulos Verdes, ou Green Bonds, na expressão inglesa que ainda predomina.

Assinam essa declaração alguns dos mais importantes agentes do mercado financeiro como BTG Pactual, BB DTVM, Itaú Asset Management, Santander Asset Management, Sul América Investimentos e UBS Brasil.

Os Títulos Verdes nada mais são do que títulos em tudo semelhantes a qualquer outro tipo de título de dívida mas que, como característica diferenciadora, carregam uma marca ecológica por se destinar ao financiamento de atividades com-provadamente relevantes na defesa dos valores ambientais.

São títulos que exigem um alto grau de transparência de parte das empresas, já que são sempre submetidos a avaliação externa. Esses títulos são novidade aqui, mas já fazem grande sucesso em várias partes do mundo. Para impulsionar este mercado no país, o CEBDS e a FEBRABAN lançaram o “Guia para Emissão de Títulos Verdes no Brasil”, em Outubro do ano passado.

O potencial de mercado para títulos assim em nosso país é extraordinariamente grande, seja em função da gigantesca dimensão dos ativos ambientais que poderiam ser objeto de ações lastreadas por esses títulos, seja porque são várias as empresas brasileiras que desenvolvem atividades capazes de ganhar o rótulo verde, uma vez que estejam bem orientadas sobre os mecanismos que regulam a atividade.

Justine Leigh Bell da Climate Bonds Initiative estima que para o corrente ano de 2017 há um potencial de cerca de R$ 16 bilhões em projetos passíveis de serem financiados sob a rubrica verde. Eficiência energética e manejo florestal são exemplos de áreas em que já foi possível realizar capta-ções bem sucedidas e com muito grande procura da parte dos investidores.

Marina Grossi | Economista, presidente do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS)

Títulos Verdes no BrasilA Suzano Papel e Celulose, primeira empresa brasileira

a desvendar essa seara em mercado brasileiro, realizou uma emissão de US$ 500 milhões para papéis focados em restau-ração florestal, gestão hídrica e energia renovável. O sucesso foi tamanho que a demanda superou a oferta em três vezes. Há um mercado ávido por se associar a iniciativas bem estruturadas, iniciativas capazes de gerar retorno não penas na dimensão financeira, mas também em credibilidade e imagem. A BRF e a Fibria foram as outras duas empresas brasileiras que já emitiram esses papeis, mas no exterior, registrando semelhante sucesso.

As regulamentações próprias desse mercado devem exceder aquelas que já, de forma tão detalhada, normatizam os mercados de capitais em geral. Títulos com a marca da sustentabilidade são depositários de esperanças que devem se cumprir. Transparência e viabilidade são fundamentais. Além do mais, é preciso tomar em consideração as especificidades nacionais e as dos diversos segmentos de negócios.

De todo modo, o que se vê no comportamento demons-trado pelo mercado, são perspectivas muito concretas de que a retomada dos investimentos e, consequentemente, do desenvolvimento em nosso país pode ocorrer incorporando a dimensão ambiental de forma muito mais efetiva do que ocorria até o advento da crise.

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Não é concebível que uma linha de investigação científica seja objeto de preconceito, como acontece quando se trata de geoengenharia, que nada mais é do que uma ciência aplicada que altera os padrões climáticos.

Não se pode desconsiderá-la como uma possível solução para o enfrentamento do aqueci-mento global.

Os últimos relatórios cien-tíf icos deixam claro que as mudanças climáticas em curso estão acontecendo muito mais rapidamente do que o previsto. Um aquecimento médio da temperatura do Planeta de 1,5°C é quase inevitável nas próximas décadas e, para que o mundo não ultrapasse os 2°C de aquecimento no fim deste Século, considerado o limite razoavelmente seguro, será necessário não só um corte drás-tico nas emissões, mas também um aumento significativo na remoção de dióxido de carbono da atmosfera.

No entanto, evita-se tratar do tema não apenas por desco-nhecimento das possíveis consequências sobre os ecossistemas globais, mas também por poder sinalizar uma manutenção do status quo.

A mesma situação ocorreu no passado, quando não se admitia uma discussão sobre adaptação climática por entender-se que um esforço nessa direção poderia significar menor atenção às ações de redução das emissões.

Suzana Kahn | Coordenadora-Executiva do Fundo Verde da UFRJ e Professora da COPPE/UFRJ

Geoengenharia. Por que não?Diante do fato de que já estamos quase atingindo o limite de

1,5°C previsto para o fim do Século, fica evidente a necessidade de se avaliar quais alternativas que apresentam o menor risco de ruptura dos padrões climáticos que conhecemos. O que seria mais prudente? Uma maior elevação da temperatura da Terra ou o emprego da geoengenharia? Reconhece-se que as duas opções apresentam consequências de difícil previsão.

Várias técnicas de geoengenharia estão sendo pesquisadas, entre elas, a de absorção de plâncton, injeção de dióxido de carbono em depósitos subterrâneos para estocagem e enge-nharia genética de culturas com cor mais clara para refletir a luz solar de volta ao espaço. Nesse sentido, a urbanização crescente pode ser encarada como uma relevante interferência do homem no balanço de energia da Terra, uma vez que esta modificação da refletividade do Planeta faz com que mais calor seja retido, aumentando a temperatura média da superfície terrestre. Medidas como novos materiais para pavimentos e construções urbanas já teriam uma contribuição positiva. Sendo assim, a geoengenharia cobre tecnologias com dife-rentes graus de risco.

Para a tomada de qualquer decisão, não há espaço para preconceitos, pois há de se investigar, identificar melhor os riscos e avaliar como minimizá-los. A influência humana nos padrões climáticos já ocorre há tempos, seja por causa das emissões de gases que as atividades humanas provocam, alterando a composição de nossa atmosfera, seja por causa da alteração da refletividade da Terra, cuja origem são crescentes urbanização e desmatamento. Enfrentando riscos, portanto, já estamos há algum tempo.

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Suzana Kahn

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Page 37: Ano XXVII • Nº 244 • Março 2017 • R$ 15,00 • … 21 244 baixa.pdf · Em Julho de 2016, o engenheiro sanitarista brasileiro, Leo Heller, Relator Especial da ONU para o Direito

A população feminina é a mais afetada pelos desastres cau-sados pelas mudanças climáticas em todo o mundo. No entanto, também pode ser um importante agente de transformação. Dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) mostram que as mulhe-res compõem 72% do total de pessoas que estão em condições extremas de pobreza e também das mais vulneráveis a eventos climáticos extremos, como secas, inundações e furacões.

Além das mulheres, outra questão que está em risco à medida que a temperatura do Planeta aumenta e o clima sofre alterações é a disponibilidade e acesso aos alimentos. Nos países em desenvolvimento, entre 45 e 80% do trabalho agrícola é realizado pelo sexo feminino.

Em muitas regiões da África esse número sobe para 90%, de acordo com dados da ONU Mulheres, a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empo-deramento Feminino. Nesse contexto, as regiões com maior caráter agrícola experimentam uma insegurança crescente, assim como os produtores que atuam nelas.

No entanto, a solução para reduzir os efeitos da mudança do clima pode estar justamente nas mãos das mulheres. Um artigo publicado em Novembro de 2016 pela Aliança Global de Gênero e Clima mostra que, especialmente na América Latina, as mulheres têm um importante papel na conservação da agrobiodiversidade e tendem a optar por pequenas hortas com maior biodiversidade e menor impacto ao ambiente.

Isso acontece porque elas também são responsáveis por preparar os alimentos que produzem e, com isso, equilibram a qualidade e a quantidade de legumes e verduras que sua família produz e consome. Portanto, lutar pela igualdade de oportunidade e inclusão, é um assunto que não se resume à discussão de gênero, mas sim de qualidade de vida e desen-volvimento de toda a sociedade.

Na América Latina as taxas de igualdade entre homens e mulheres são um pouco melhores em comparação a outras regiões, mas a disparidade ainda é grande. De acordo com publicação da Aliança Global de Gênero e Clima, enquanto na América do Sul e Central cerca de 25% da terra é de propriedade feminina, na Ásia o número cai para 13% e na África 15%. A população brasileira tem 51,4% de mulheres, mas nas eleições de 2016 somente 12% dos candidatos a cargos para prefeituras eram mulheres, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral.

Rachel Bidermann | Presidente do World Resources Institute Brasil

O papel da mulher na preservação ambiental

Assim como no resto do mundo, as mulheres exercem no Brasil um importante papel tanto no enfrentamento de problemas ambientais – a exemplo da mudança climática – quanto no desenvolvimento de ações que contribuam para a conservação da natureza e, consequentemente, para a quali-dade da vida humana. Embora a equidade de gênero ainda seja um desafio na ciência brasileira, o País tem excelentes exemplos de lideranças femininas que protagonizam avanços importantes em relação à proteção ambiental.

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A população feminina é a mais afetada pelos desastres causados pelas mudanças climáticas em todo o mundo. Dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) mostram que as mulheres compõem 72% do total de pessoas que estão em condições extremas de pobreza e também das mais vulneráveis a eventos climáticos extremos como secas, inundações e furacões, por exemplo.

Além das mulheres, outra questão que está em risco à medida que a temperatura do Planeta aumenta e o clima sofre alterações é a disponibilidade e acesso aos alimentos. Nos países em desenvolvimento, cerca de 45 a 80% do trabalho agrícola é realizado pelo sexo feminino. Em muitas regiões da África esse número sobe para 90%, de acordo com dados da ONU Mulheres, a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres. Nesse contexto, as regiões com maior caráter agrícola experimentam uma insegurança crescente, assim como os produtores que atuam nelas.

No entanto, a solução para reduzir os efeitos das mudan-ças climáticas pode estar justamente na mão delas – as mulheres.

As mulheres são fundamentais na proteção ambiental

Vicky Markham | Coordenadora e comunicóloga da Aliança Global de Gênero e Clima GGCA

Um artigo publicado em Novembro de 2016 pela Aliança Global de Gênero e Clima (GGCA) mostra que, especialmente na América Latina, as mulheres têm um importante papel na conservação da agrobiodiversidade e tendem a optar por pequenas hortas com maior variedade de plantas e menor impacto ao meio ambiente. Isso acontece por que elas também são responsáveis por preparar os alimentos que produzem e com isso equilibram a qualidade e a quantidade de legumes e verduras que sua família produz e consome. “Lutar pela igualdade de oportunidade e inclusão é, portanto, um assunto que não se resume a discussão de gênero, mas sim de quali-dade de vida e desenvolvimento de toda a sociedade”, afirma Rachel Bidermann, Presidente do WRI e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza. A Aliança Global de Gênero e Clima foi lançada em Dezembro de 2007 na COP-13 sobre Mudanças Climáticas em Bali pelos membros fundadores da UICN, PNUD, PNUMA e WEDO.

Mulheres latinas

Apesar de a América Latina apresentar melhores taxas de igualdade entre homens e mulheres em comparação com outras regiões, a disparidade ainda é grande. De acordo com publicação da Aliança Global de Gênero e Clima, enquanto na América do Sul e Central cerca de 25% da terra é de propriedade feminina, na Ásia o número cai para 13% e na África 15%. A população brasileira tem 51,4% de mulheres, mas nas eleições de 2016 somente 12% dos candidatos a cargos para prefeituras eram mulheres, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral.

Assim como no mundo todo, no Brasil, as mulheres exer-cem importante papel tanto no enfrentamento de problemas ambientais – a exemplo da mudança climática – quanto no desenvolvimento de ações que contribuam para a conservação da natureza e, consequentemente, para a qualidade da vida humana. Embora a equidade de gênero ainda seja um desa-fio na ciência brasileira, o país tem excelentes exemplos de lideranças femininas que protagonizam avanços importantes em relação à proteção ambiental.

O trabalho com primatas realizado pela mineira Maria Cecília Martins Kierulff ilustra a questão da atuação feminina em prol da conservação da natureza. Sua carreira científica sempre foi permeada por projetos “mão na massa”, como ela mesma descreve. “Ao entrar na mata para identificar as espécies, muitas vezes os homens da comunidade local não me davam ouvidos, mas as mulheres me recebiam em suas casas e me davam informações importantes para a pesquisa”, conta. Por outras vezes, ela podia andar livremente, pois não chamava a atenção da mesma forma que um homem faria.

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Neiva Guedes, Presidente do Instituto Arara Azul

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“Ser mulher atualmente significa ter pique para enfrentar questionamentos e julgamentos que os homens não enfrentam quando a gente decide fazer o que gosta”, afirma Cecília. A bióloga Gisele Sessegolo exerceu sua profissão desde muito cedo em ambientes predominantemente ocupados por homens. Por trabalhar no setor de indústria e mineração, em uma época em que a temática sustentabilidade e conservação da natureza não eram muito abordados, via mais dificuldade para se destacar no seu trabalho. “Pelo fato de ser mulher, eu sentia que tinha que estudar muito mais, ter mais experiência e dedicação, além de mostrar mais competência do que um homem precisaria ter, para conquistar espaço e clientes”, destaca ela.

Atualmente, Gisele percebe uma grande diferença nesse cenário, já que muitas empresas estão preferindo mulheres para trabalhos manuais, como dirigir caminhões e tratores, pelo fato de serem mais cuidadosas, perceptivas e detalhistas. “É possível ver um avanço nesse mercado de trabalho, que está ficando mais igualitário, porque estão reconhecendo muito mais a capacidade da mulher” afirma.

A maior demanda do mercado de trabalho por mulheres também é observada pela a Presidente do Instituto Arara Azul e membro da RECN, Neiva Guedes. Ela e sua equipe trabalham diretamente com a conservação da arara azul, espécie ameaçada de extinção, e também da biodiversidade do Pantanal como um todo. Na opinião da bióloga, mulheres estão dominando a área de pesquisa. “Minha equipe é, em sua maioria, composta por mulheres. Vejo que são determi-nadas, procuram fazer a diferença, são batalhadoras e isso é uma crescente que observo ao longo dos anos. No entanto, também precisamos tomar mais cuidado no trabalho de campo”, explica. Ela perdeu duas gestações por estar traba-lhando no campo e suscetível a doenças e por isso orienta que as mulheres da sua equipe que engravidam permaneçam somente no escritório.

“É uma questão de saúde tanto da mãe como do bebê. Homens não têm esse tipo de restrição, mas também não podem dar à luz”, comenta Neiva Guedes.

Para a fundadora e Diretora-Executiva do Instituto Hórus de Desenvolvimento e Conservação ambiental, Silvia Ziller, muitas melhorias já foram feitas, mas ainda há muito a fazer. “Nossa geração de mulheres já usufrui de avanços ocorridos em décadas recentes. Minha mãe, por exemplo, trabalhava em um banco e tinha um salário inferior aos colegas homens por ser mulher. Em minha turma de graduação em Engenharia Florestal havia quatro mulheres em uma turma de 30 alunos”, afirma Silvia Ziller.

A Diretora-Executiva do Instituto Hórus defende ainda a importância de implementar uma legislação que assegure a igualdade de gênero e esclarece que a educação e os valores precisam ser focados em pessoas, independente de gênero, cor da pele e outros critérios discriminatórios que a sociedade ainda precisa superar.

Todas são unanimes em uma questão. Mais do que uma questão de gênero entre homens e mulheres, somos todos seres humanos e devemos cuidar do planeta em que vivemos, de maneira igualitária.

Rede de Especialistas em Conservação da Natureza

Gisele Sessegolo, Maria Cecília Martins Kierulff, Neiva Guedes, Rachel Biderman e Sílvia Ziller são membros da Rede de Especialistas de Conservação da Natureza, uma reunião de profissionais, de referência nacional e internacional, que atuam em áreas relacionadas à proteção da biodiversidade e assuntos correlatos, com o objetivo de estimular a divulgação de posicionamentos em defesa da conservação da natureza brasileira. A Rede foi constituída em 2014, por iniciativa da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza.

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É um fato cientificamente reconhecido hoje que a mudança climática, cuja expressão maior se dá pelo aquecimento global é, num grau de certeza de 95%, de natureza antropogênica, Quer dizer, possui sua gênese num tipo de comportamento humano violento face à natureza.

Este comportamento não está de sintonia com os ciclos e ritmos da natureza. O ser humano não se adapta à natu-reza, mas a coage a se adaptar a ele e a seus interesses. O interesse maior que domina já há séculos se concentra na exploração desapiedada dos bens e serviços naturais em vista da acumulação ilimitada. Junto a isso segue a dominação de outros povos, o colonialismo e o imperialismo.

A forma como a Mãe Terra demonstra a pressão sobre seus limites intransponíveis é pelos eventos extremos (pro-longadas estiagens de um lado e enchentes devastadoras de outro, nevascas sem precedentes por uma parte e ondas de calor insuportáveis por outra parte).

Face a tais eventos, a Terra se tornou o claro objeto da preocupação humana. As muitas COPs (Conferência das Partes), organizadas pela ONU acerca do aquecimento global, nunca chegavam a uma convergência. Somente na COP-21 de Paris, realizada de 30 de Novembro a 13 de Dezembro de 2015 se chegou, pela primeira vez, a um consenso mínimo, assumido por todos: evitar que o aquecimento chegue aos 2 graus Celsius.

Lamentavelmente essa decisão não é vinculante. Quem quiser pode segui-la, mas não existe nenhuma obrigatoriedade nem penas, como o mostrou o Congresso norte-americano que vetou as medidas ecológicas do Presidente Obama. Agora o Presidente Donald Trump as nega rotundamente como algo sem sentido e enganoso. Esse negacionismo da maior potência do mundo é ameaçador para todos e para a Terra.

Está ficando cada vez mais claro que a questão é antes ética do que científica. Vale dizer, a qualidade de nossas relações para com a natureza e para com a Casa Comum não eram e não são adequadas, antes, são destrutivas.

Citando o Papa Francisco em sua inspiradora encíclica “Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Comum” (2015): “Nunca maltratamos e ferimos a nossa Casa Comum como nos últimos dois séculos… Essas situações provocam os gemidos da irmã Terra, que se unem aos gemidos dos aban-donados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo” (Nº 53).

Precisamos, urgentemente, de uma ética regeneradora da Terra. Esta deve devolver-lhe a vitalidade vulnerada a fim de que possa continuar a nos presentear com tudo o que sempre nos galardoou. Será uma ética do cuidado, do respeito a seus ritmos, da compaixão e da responsabilidade coletiva.

Leonardo Boff | Teólogo, Escritor e Ambientalista

Mas não é suficiente uma ética da Terra. Precisamos fazê-la acompanhar por uma espiritualidade. Ela lança suas raízes na razão cordial e sensível. De lá nos vem a paixão pelo cuidado e um compromisso sério de amor, de responsabilidade e de cuidado para com a Casa Comum.

Bem o expressou no final da Encíclica do Bispo de Roma, Francisco, ao enfatizar “uma paixão pelo cuidado do mundo, uma mística que nos anima com uma moção interior que impele, motiva e encoraja e dá sentido à ação pessoal e comunitária” (Nº 216).

O conhecido e sempre apreciado Antoine de Saint-Exupéry, num texto póstumo, escrito em 1943, “Carta ao General X” afirma com grande ênfase: ”Não há senão um problema, somente um: redescobrir que há uma vida do espírito que é ainda mais alta que a vida da inteligência, a única que pode satisfazer o ser humano” (Macondo Libri 2015, p. 31).

Num outro texto, escrito em 1936, quando era corres-pondente do “Paris Soir”, durante a guerra da Espanha, leva como título “É preciso dar um sentido à vida”. Aí retoma o tema da vida do espírito. Aí afirma: “o ser humano não se realiza senão junto com outros seres humanos, no amor e na amizade; no entanto, os seres humanos não se unem apenas se aproximando uns dos outros, mas se fundindo na mesma divindade. Num mundo feito deserto, temos sede de encontrar companheiros com os quais con-dividimos o pão” (Macondo Libri p. 20). No final da “Carta ao General X” conclui: “Como temos necessidade de um Deus” (op.cit. p. 36).

Efetivamente, só a vida do espírito confere plenitude ao ser humano. Ela representa um belo sinônimo para espiritualidade, não raro identificada ou confundida com religiosidade. A vida do espírito é mais, é um dado originário de nossa dimensão profunda, um dado antropológico como a inteligência e a vontade, algo que pertence à nossa essência. Ela está na base do nascimento de todas as religiões e caminhos espirituais.

Sabemos cuidar da vida do corpo, hoje uma verdadeira cultura com tantas academias de ginástica. Os psicanalistas de várias tendências nos ajudam a cuidar da vida da psique, para levarmos uma vida com relativo equilíbrio, sem neuroses e depressões.

Mas na nossa cultura, praticamente, esquecemos de cul-tivar a vida do espírito que é nossa dimensão radical, onde se albergam as grandes perguntas, se aninham os sonhos mais ousados e se elaboram as utopias mais generosas. A vida do espírito se alimenta de bens não tangíveis como é o amor, a amizade, a convivência amiga com os outros, a compaixão, o cuidado e a abertura ao infinito. Sem a vida do espírito divagamos por aí, sem um sentido que nos oriente e que torna a vida apetecida e agradecida.

Uma ética da Terra não se sustenta sozinha por muito tempo sem esse supplément d’ame, que é a vida do espírito. Ele nos faz sentir parte da Mãe Terra a quem devemos amar e cuidar.

Uma ética da Mãe Terra

Leonardo Boff é autor de “Ética e Espiritualidade: como cuidar da Casa Comum” (Vozes 2017) e articulista do JB online

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Dias atrás foi lançado o Mapa Fundiário do Brasil, uma compilação de informações de 20 bases de dados oficiais, incluindo INCRA, FUNAI, ICMBIo, Serviço Florestal, entre outros, que mostra a primeira fotografia sobre a ocupação e a posse das terras no país.

O mapa – produzido pelo Instituto de Manejo e Cer-tificação Florestal e Agrícola (IMAFLORA), em parceria com o Laboratório de Geoprocessamento da ESALQ/USP como parte da construção do Atlas de Agropecuária Brasileira – indica que 53% do território brasileiro constituem-se de terras privadas; 5%, de assentamentos; e 37%, de áreas públicas.O mapa confirma que somos um país de grande concentração de terras nas mãos de poucos. Os grandes imóveis rurais privados perfazem a maior parcela do território, com 234 milhões de hectares, ou seja, seis vezes a área de assentamentos e mais do que o dobro da área ocupada pelos pequenos ou médios imóveis rurais.

Mas o fato que talvez chame mais atenção é a enorme área de terras públicas pertencentes à União e aos Estados e sem destinação definida, ou seja, áreas que não são Unidades de Conservação, Terras Indígenas, Áreas Militares, Unidades de Pesquisa ou qualquer outra forma de uso definido.

Tasso Azevedo | Engenheiro florestal

A grande disputaSão 86 milhões de hectares em disputa, o equivalente a

quase 20 vezes a área do Estado do Rio de Janeiro ou mais do que o dobro de todas as áreas envolvidas nos conflitos do Oriente Médio.

Concentradas na região Amazônica e com quase 80 por cento cobertos por florestas, estas áreas encontram-se num limbo, ficando à mercê de ocupações ilegais, grilagem de terras, violência e degradação ambiental.

Da área total desmatada na Amazônia nos últimos anos, nada menos que 24 por cento foram registrados nas áreas públicas não destinadas. A intensidade do desmatamento em áreas não destinadas é 60 vezes maior do que em áreas públicas protegidas.

É fundamental promover a destinação para conservação e uso sustentável destas áreas, para que gerem produtos e serviços para a sociedade ao mesmo tempo que conservem a diversidade biológica e a água e contribuam para o equilíbrio climático do continente.

Infelizmente, o Governo Federal e o Congresso Nacional têm feito exatamente o oposto, cedendo às pressões de inva-sores de terras públicas. Promovem a redução de Unidades de Conservação, revertendo a destinação definida e aumentando as áreas em disputa.

Ao se confirmar a desafetação (excluir da área de conser-vação ou “descriar” uma área), a mensagem que fica é que valem a pena a grilagem e o desmatamento ilegal. Péssimo sinal nesses tempos em que se pretende passar o Brasil a limpo com o combate à corrupção e às ilicitudes em geral.

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Aproximadamente 136 milhões de árvores foram destru-ídas, causando a morte ou o deslocamento de aproximada-mente 4,2 milhões de aves e 137 mil macacos, considerando a densidade típica de animais e plantas na floresta. A emissão de gás carbônico gerado a partir da queima da vegetação nessa área chega a se comparar às emissões de 80% da frota de auto-móveis do Brasil. As principais causas do desmatamento são as ocupações e a exploração madeireira ilegais. Os ocupantes podem ter obtido uma renda bruta de R$ 300 milhões com a venda da madeira extraída ilegalmente das UCs, o que criou um enorme potencial de investimento no desmatamento. Além disso, eles se apossaram de um patrimônio em terras no valor de R$ 344 milhões.

O estudo revela que o des-matamento aumentou em algu-mas UCs e que a participação percentual do desmatamento em UCs no total desmatado na Amazônia Legal dobrou de 6% para 12% entre 2008 e 2015. No ano de 2015, o desmatamento dentro de UCs foi 79% maior do que em 2012. Esse quadro é alarmante considerando que as UCs deveriam ser as áreas mais protegidas e assim contribuir para conservar animais, plantas e serviços ambientais, além de conter o desmatamento e manter o equilíbrio climático.

O novo estudo do Imazon atualiza o ranking das 50 UCs mais críticas nesse período e que concentram 97% (229,9 mil ha) da área total desmatada em UCs entre 2012 e 2015. Elas estão em área de expansão da fronteira agropecuária e sob influência de projetos de infraes-trutura, como rodovias, hidrovias, portos e hidrelétricas.

As UCs federais estão em maior número no ranking (27), mas as estaduais apresentaram maior área desmatada (68%). Entre as UCs estaduais, destacamos a APA Triunfo do Xingu, a mais desmatada da Amazônia Legal. Entre as UCs federais, o destaque é a Flona Jamanxim na 3ª posição. Os Estados do Pará e de Rondônia respondem por 89% do desmatamento detectado no período, 49,8% e 38,9%, respectivamente. As 10 primeiras posições do ranking concentram cerca de 80% de todo desmatamento em UCs do período. O estudo detalha as principais pressões e ameaças dessas áreas.

Elis Araújo, uma das autoras, afirma que a vulnerabili-dade dessas áreas decorre de falhas referentes a quatro fatores necessários para o sucesso de qualquer empreendimento: estratégia, pessoal, recursos financeiros e execução.

Stefânia Costa | Jornalista do Instituto Imazon

Aumenta desmatamento em UCs da Amazônia

“O principal é a falta de uma visão clara e consistente do papel das UCs no desenvolvimento e proteção da região, isto é, estratégia. Por falta de compromisso com a proteção, o governo cede às pressões para mudar regras e enfraquecer a legislação ambiental conforme interesses de momento”.

Os autores também destacam as falhas relacionadas a recursos humanos e a questões territoriais. Os recursos humanos são insuficientes para gestão das UCs e há uma preocupante tendência de redução no número de analistas ambientais federais lotados na Amazônia, de 40% no ICMBio (2010-2016) e de 33% no Ibama (2009-2015). Outro problema são as ocupações ilegais. Ocupantes ilegais exploram a madeira

e a terra de forma predatória e lutam pela revogação ou redução de tamanho ou de grau de pro-teção de algumas UCs via ações judiciais ou pressão política.

Entre 1995 e 2013, os pode-res Executivo e Legislativo redu-ziram 2,9 milhões de ha de UCs na Amazônia. As ocupações irregulares e a construção de hidrelétricas são as razões mais frequentes para a alteração de UCs na Amazônia.

Para zerar o desmatamento e garantir a integridade das UCs, o estudo propõe três medidas: garantir proteção imediata das áreas mais críticas e das populações locais; assegurar a

sustentabilidade das UCs através de atividades como turismo, expedições educacionais e eventos artísticos e esportivos; e bloquear a demanda e o financiamento do desmatamento ilegal pressionando e responsabilizando as empresas que compram produtos oriundos de áreas desmatadas e incentivando a produção sustentável.

Paulo Barreto, outro autor do trabalho, avalia que políticos e empresários tem pressionado pela redução das UCs, mas isso aumenta os riscos para os setores que eles defendem. Por exemplo, as florestas contribuem para a formação de chuvas na região e, portanto, beneficiam a agricultura e a geração de energia. O aumento do desmatamento reduzirá as chuvas. Ele lembra que o desmatamento começa a criar problemas de reputação para o agronegócio da região, pois campanhas ambientais e de investidores exigem desmatamento zero como uma estratégia eficaz para reduzir os riscos da mudança do clima. O estudo completo e o ranking das 50 UCs mais des-matadas entre 2012 e 2015 na Amazônia Legal encontra-se disponível em: http://bit.ly/2mUpMqA

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Em Dezembro de 2016 ocorreu, em Cancun, no México, a 13ª Convenção das Partes (COP) sobre a Diversidade Bio-lógica (CDB) e respectivos Protocolos. O evento, realizado a cada dois anos, reúne os cerca de 190 países signatários, considerado o principal instrumento internacional de defesa e conservação da biodiversidade. Durante o evento, questões são debatidas com o objetivo de definir estratégias em nível mundial e local para proteção da biodiversidade e dos conhe-cimentos e práticas tradicionais a ela associadas.

No dia 5 de Novembro, em Brasília, a Terra de Direitos, com o apoio do Grupo de Trabalho em Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (GTbio da ANA), organizou uma Reunião Preparatória para a Convenção. Nela foi construída coletivamente, a partir das contribuições dos movimentos populares e organizações presentes, a Carta Aberta de Recomendações da Sociedade Civil Brasileira, que consolida o posicionamento da sociedade civil sobre os temas discutidos na COP. A Carta, que conta com mais de 60 assinaturas, foi entregue a membros do Itamaraty, Ministério de Relações Exteriores, durante reunião com membros do GTbio, realizada em Novembro, com o objetivo de subsidiar o posicionamento da delegação brasileira na 13ª COP.

Além da delegação oficial, movimentos populares e organizações da sociedade civil brasileira organizada que atuam na defesa da sócio-agrobiodiversidade, participaram do evento, com o intuito de acompanhar a participação do Estado e denunciar o descumprimento dos compromissos assumidos no âmbito internacional.

Rafaela Pontes | Membro da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida; e Terra de Direitos

Agrotóxicos, polinizadores, OGM e biodiversidade

A Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, em parceria com a organização de Direitos Humanos Terra de Direitos, elaborou um material de denúncia, cha-mando atenção aos impactos do uso de sementes geneticamente modificadas no Brasil, especialmente no que diz respeito ao aumento do consumo de agrotóxicos associados a seu pacote tecnológico.

Apenas para se ter uma ideia, desde a entrada dos orga-nismos geneticamente modificados no Brasil, no início dos anos 2000 até 2012, o consumo de agrotóxicos no Brasil aumentou em 288%.

O documento, dentre outras questões, aponta a necessidade da incorporação, pelo Brasil, da análise dos impactos e efeitos adversos para o meio ambiente e à saúde dos agrotóxicos asso-ciados aos transgênicos, na avaliação de riscos dos organismos geneticamente modificados, conforme recomenda o ATHEG (Ad Hoc Tecnical Expert group – grupo de especialistas técnicos) de análise de riscos, acompanhando a tendência mundial no tratamento do pacto tecnológico.

Na 13ª Convenção das Partes sobre a Diversidade Bioló-gica, dentre as diversas questões debatidas, uma das que mais chamou atenção diz respeito à ameaça aos polinizadores, que foi objeto de estudo do Painel Internacional da Biodiversi-dade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES). O tema trata do impacto do uso de agrotóxicos sobre populações de abelhas e outros insetos polinizadores, o que prejudica a reprodução das plantas e cultivos agrícolas, além de agravar a perda de diversidade biológica.

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Apesar de reconhecido o problema, a forma como o debate foi conduzido aponta para a estratégia da financeirização dos recursos naturais. A decisão final das partes quanto ao tema, sinaliza, dentre outros, para a necessidade da mensuração do valor econômico dos “serviços ambientais’’ relacionados aos polinizadores e a polinização e aponta, como uma das principais ferramentas para o enfrentamento do problema, o pagamento por planos de serviços de polinizadores. Os poli-nizadores são, assim, tomados como prestadores de serviços ecossistêmicos, o que oficializa a incorporação das métricas da economia dos ecossistemas e da biodiversidade dentro da Convenção da Diversidade Biológica.

Apesar da oposição de alguns países, como o Brasil, a decisão final convida as partes a acatar a recomendação do IPBES de que é desejável a realização de avaliação de risco para pesticidas, herbicidas e organismos vivos modificados (OVM) quanto aos impactos destas tecnologias aos polini-zadores. Para o Brasil, os OVMs não deveriam estar na lista, já que o painel foi inconclusivo a respeito da relação de seu uso e os efeitos negativos sobre os polinizadores.

Um dos pontos altos do evento foi o Prêmio Capitão Gan-cho, organizado pela Coalizão Contra a Biopirataria (CAB, na sigla em inglês) um grupo formado por organizações da sociedade civil de diversos países. O ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do governo golpista, Blairo Maggi, um dos principais representantes do agronegócio no Brasil, foi “premiado’’ na modalidade duas caras. O ruralista foi escolhido por assumir compromissos internacionais que contradizem sua atuação no Brasil. Durante a COP-22 da Convenção sobre o Clima, em Marrakesh, o Ministro declarou como “intenções” as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) brasileiras – compromissos de redução de emissões de Gases de Efeito Estufa que os países signatários do Acordo de Paris assumiram.

Apesar de acreditarmos que a Convenção continua sendo um espaço estratégico, de disputa entre projetos e concepções de desenvolvimento, os resultados da COP-13, evidenciam que as organizações e movimentos populares têm perdido espaço (se é que um dia o tiveram) para as grandes empresas e para o capital financeiro, que, diante do aumento da consciência e preocupação da população com a perda da biodiversidade a nível global, se pintam de verde e apostam na estratégia da financeirização dos recursos naturais.

O evento, realizado num resort em Cancun, impediu a participação de diversas organizações de países do chamado “Terceiro Mundo’’, devido aos altos custos. Por si só, a escolha do local evidencia o público com o qual estavam dispostos a dialogar.

Acreditamos que eventos como esse devam garantir a par-ticipação de representações da sociedade civil, especialmente de movimentos populares do campo, mulheres e povos e comunidades tradicionais dos países subdesenvolvidos. Defen-demos, da mesma forma, que o caminho para a superação da perda da biodiversidade não passa pela financeirização dos recursos naturais, mas sim pela aposta em um modelo de produção que opte pela valorização da produção local, pela extinção dos latifúndios, pelo banimento do uso de agrotóxicos e transgênicos, e que valorize os conhecimentos e práticas tradicionais das comunidades campesinas, povos indígenas e comunidades tradicionais. Como afirma Oscar Wild, “cínico é o homem que sabe o preço de tudo, mas o valor de nada’’.

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O alarmante dado foi revelado por Fernando Figueiredo, Presidente-Executivo da Associação Brasileira da Indústria Química (ABIQUIM) e convidado a compor a mesa de debate de audiência pública da Comissão de Reforma Agrária do Senado em final do ano passado.

O tema da audiência era contra-bando e falsificação de agrotóxicos e seus impactos na economia. Possíveis embargos internacionais às exportações brasileiras e perdas de arrecadação tributárias avaliadas em um milhão de dólares no último ano preocupam. Mas nada se compara ao risco que a sociedade corre ao estar sujeita a esses agrotóxicos ilegais. Questionada se existe uma análise capaz de dizer os riscos à saúde causados por essas substâncias piratas, Sílvia Fagnani, diretora-executiva do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (SINDIVEG), respondeu: “Não é possível afirmar os riscos ou o que tem dentro desses produtos contrabandeados”. E afirmou que se fossem feitos por uma empresa, ela seria a terceira ou quarta maior do mercado nacional.

Resumindo: além de representar um grande risco eco-nômico, trata-se de um grave problema de saúde pública. Brasileiros e brasileiras estão consumindo alimentos com substâncias químicas que nem especialistas no tema sabem o que é ou o que pode ser.

A questão do risco alimentar vem forte dentro dessa discussão. Durante debate nesta quarta-feira (23/11/2016) da Comissão Especial do Projeto de Lei 6299/2002, que visa enfraquecer a legislação de agrotóxicos com o objetivo de facilitar seu uso e liberação, Eloísa Dutra Caldas, coor-denadora do Laboratório de Toxicologia da Universidade de Brasília, lembrou que o Brasil não tem um órgão público voltado à avaliação de riscos de substâncias químicas legais usadas nas lavouras. “Meu sonho é que o Brasil tenha uma agência avaliadora de riscos”, disse ela.

Para os agrotóxicos regulamentados existe o Limite Máximo de Resíduos (LMR), que estipula por Lei a quan-tidade permitida de resíduo de um pesticida específico no alimento. No entanto, não é um indicador de saúde, e sim puramente agronômico, não levando em conta o uso cruzado de diferentes substâncias. Por sua vez, o índice de Ingestão Diária Máxima (IDM), além de obter seus resultados por meio de testes em ratos e não em seres humanos, não consi-dera o consumo cumulativo de pesticidas ao longo da vida de uma pessoa.

Alan Azevedo | Membro do Greenpeace

Mais de 20% dos agrotóxicos usados no Brasil são ilegais

Se o uso legal e licenciado de agrotóxicos já apresenta brechas em suas análises, imagine então produtos contrabandeados ou até falsificados, que são produzidos pelos próprios tra-ficantes em fazendas ilegais. E pensar que estes compõem mais de 20% de todos os insumos químicos aplicados nas lavouras brasileiras é assustador.

Segundo pesquisa IBOPE enco-mendada pelo Greenpeace, 81% da população brasileira considera que a quantidade de agrotóxicos aplicados nas lavouras é “alta” ou “muito alta”. As pessoas não querem mais comer comida

com pesticidas – ainda mais sabendo que parte significativa deles é ilegal e sem qualquer controle. Ao invés de tentar flexibilizar, é preciso endurecer a legislação de agrotóxicos e caminhar para a redução gradual de seu uso até se ver livre da aplicação de químicos nos campos. Por isso, o Greenpe-ace e outras organizações da sociedade civil apresentaram no início de novembro ao Congresso o Programa Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos (PNARA) em forma de sugestão de Projeto de Lei.

Fernando Rebelo, do IBAMA, defendeu que a intenção de quem incentiva a produção ecológica não é de acabar com o modelo convencional. “Não queremos quebrar o agrone-gócio. Se um executivo da Coca-Cola, há 30 anos, dissesse que a empresa precisaria produzir suco, ele ia ser mandado embora. Hoje, o suco e a água mineral vão salvar a Coca-Cola”. A analogia cai como uma luva sobre o agronegócio. Em alguns anos, quando a vontade da maioria for contra consumir produtos químicos em seus alimentos, o setor que movimenta cerca de 20% do Produto Interno Bruto (PIB) pode de fato quebrar caso não se adapte à demanda nacional e internacional. Vale lembrar que o Brasil utiliza muitos agrotóxicos proibidos na União Europeia e em diferentes países como China, Estados Unidos e Índia, o que limitará cada vez mais as exportações de grãos e também de carne, uma vez que a alimentação animal se dá por meio da soja e do milho quimicamente tratados.

“Ver o setor do agronegócio tomando a defensiva frente a uma disputa que está perdendo é um bom sinal para nós. Se quiserem conciliar interesses por uma agricultura responsável, sustentável e que não ofereça riscos à saúde humana, muito que bem. Mas no fundo as ideias são inconciliáveis. O que queremos mesmo é o fim do uso dos agrotóxicos”, defende Rafael Cruz, da Campanha de Agricultura e Alimentação do Greenpeace Brasil.

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No dia 23 deste mês, a maior rede de entidades da sociedade civil dedicada ao debate da questão climática no Brasil, com-pleta 15 anos. Em 2002, naquele mesmo dia, uma reunião em São Paulo com a presença de duas dezenas de organizações aprovou a Carta de Princípios do OC, sua certidão de nascimento. Hoje se prepara para o próximo embate: exigir do Governo uma revisão da NDC, documento sobre as metas nacionais de redução das emis-sões, para que ela seja compatível com um aumento máximo da temperatura de 1,5°C preconizado pelo Acordo de Paris.

O Observatório do Clima (OC), que hoje conta com 42 instituições integrantes, nasceu a partir de uma preocupação: criar um modelo justo para o Protocolo de Kyoto para com-pensar países em desenvolvimento por não destruírem suas florestas. Os ambientalistas Miguel Calmon (The Nature Conservacy), Mario Monzoni (Amigos da Terra Amazônia Brasileira), Paulo Moutinho (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e Fernando Veiga (ProNatura), que conceberam a rede, queriam ver o Brasil como protagonista da discussão. A proposta não vingou em Kyoto, mas acabou evoluindo para o mecanismo hoje conhecido como REDD + (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal).

O Observatório do Clima comemora 15 anos

Claudio Angelo | Jornalista do OC

“Quando fundamos o Observatório do Clima, a minha dúvida principal era se a rede permaneceria unida e atuante por uns dois anos ou, num sonho, por cinco anos. Afinal, criar uma rede de organizações é relativamente fácil. O difícil é mantê-la”, disse Paulo Moutinho e um dos idealizadores do Observatório, por ocasião do aniversário. Para marcar os 15 anos, criamos uma linha do tempo com os principais feitos das organizações do OC. O resultado é uma história do ambientalismo no Brasil, que pode ser conferida no seguinte endereço: www.

observatoriodoclima.eco.br/linha-do-tempo/Como todo adolescente, estamos cheios de ideias para

colocar em prática ainda este ano.Em 2009, o Observatório do Clima deu sua primeira grande

contribuição às políticas públicas federais de clima no Brasil ao propor diretrizes para a Política Nacional de Mudanças Climáticas. A política acabou virando Lei, que incorporou diversas recomendações do OC em seu texto.

Nos últimos quatro anos, o OC inaugurou uma nova fase: a de geração de dados, com a criação do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa. O SEEG, como foi chamado, criado pelo engenheiro florestal Tasso Azevedo, é a primeira iniciativa não-governamental no mundo de cálculo anual de emissões em todos os setores da economia. Hoje é o maior banco de dados nacional sobre emissões e já teve sua metodologia replicada no Peru e na Índia.

O SEEG tornou-se nos últimos anos um instrumento fundamental de transparência do cumprimento da lei da política nacional de clima e uma forma mais dinâmica de monitorar as mudanças no perfil da economia do país – já que os inventários nacionais saem apenas de cinco em cinco anos. Em 2016 foi lançado o MapBiomas, projeto capitaneado pelo OC para mapear toda a dinâmica de mudança de uso do solo em todos os biomas do Brasil, o que deve aumentar a acurácia dos dados de emissão.

Em 2015, durante as discussões anteriores à COP-21, em Paris, a rede produziu uma proposta de INDC (Contribuição Nacionalmente Determinada Pretendida) para o Brasil. Na ocasião, o Observatório do Clima mostrou que o país podia limitar suas emissões a 1 bilhão de toneladas de CO2 em 2030 — nível compatível com a meta global de evitar um aquecimento da Terra maior que 2 graus centígrados. Foi a primeira proposta de INDC elaborada por uma organiza-ção da sociedade civil. O documento forneceu a régua para medir a ambição da proposta oficial brasileira, apresentada três meses depois.

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O organismo humano compõe-se de vários sistemas, tais como o sistema nervoso central, o respiratório, o digestivo, o ósseo, o urinário, o reprodutor, cada um deles composto por seus respectivos órgãos e relacionado com os demais. Entre eles está o sistema circulatório, que se com-põe de vários órgãos (o coração, as artérias, veias, capilares etc.).

O sistema hídrico num território ou numa bacia hidrográfica é análogo ao sis-tema circulatório num organismo humano. A rede hidrográfica se compõe de suas nascentes, riachos, ribeirões, rios e lagos. Uma diferença é que o sistema hídrico se compõe também de aquíferos e lençóis subterrâneos e da água na atmosfera e nos corpos dos seres vivos.

A saúde de um corpo humano pode ser avaliada a partir de informações do sistema circulatório. Um exame de sangue mede o nível de coles-terol, de triglicérides, de ureia, de glicemia, de hemácias, entre outros indicadores. Os resultados do exame indicam onde e como se deve atuar para restaurar a saúde do organismo.

Analogamente, a saúde ambiental de um território (um país, uma bacia hidrográfica, um município) pode ser ava-liada a partir do sistema hídrico. O exame da qualidade da água de um rio ou de um lago, sua DBO (demanda bioquímica de oxigênio), nitrogênio, fósforo, turbidez, pH - permite aferir a saúde ambiental.

Tão importante como conhecer a situação e a qualidade das águas é ter a capacidade de atuar sobre a parte do organismo que origina o problema.

A água é o elemento central na estruturação de um território regional. Diferentemente de segmentos da população, tais como movimentos sociais ou empreendedores econômicos, a água não conta com advogados ou lobistas que lhe deem voz e por isso muitas vezes é esquecida. Somente é lembrada quando se torna um problema ou uma crise, por escassez, má qualidade ou excesso.

Maurício Andrés Ribeiro | Escritor e ambientalista

O sistema de gestão das águas inserido em seu organismo

O sistema de gestão de recursos hídricos se compõe de vários órgãos e instituições – conselhos, comitês de bacia, agências executivas etc. – e dispõe de instrumen-tos de gestão de recursos hídricos (outorga, cobrança, enquadramento, planos, informações).

Entretanto tal sistema e seus instrumentos são limitados para dar conta da multiplicidade de questões

relacionadas com as águas. Quando há falta de saneamento, uso inadequado do solo, aplicação de agrotóxicos na agricultura, lançamento de poluições industriais, rompimento de barragens de rejeitos de mineração a ação preventiva ou corre-tiva precisa ser tomada pelo sistema de

gestão correspondente. Se esse sistema se revela hidroalienado e carece de hidroconsciência, tende a se omitir na ação adequada.

É preciso evoluir da visão focada apenas num dos sistemas – o de gestão das águas – para

visão e prática focadas no organismo inteiro e nas relações entre os vários sistemas de gestão que o compõem.

A articulação e inte-gração com outros siste-

mas de gestão que incidem sobre o território é um dos principais

meios pelos quais se pode melhorar a situação das águas e lidar com as crises

hídricas. Para restaurar a saúde do terri-tório é necessário sair da zona de conforto do sistema de gestão de recursos hídricos e

atuar fora dele. É necessário hidratar os sistemas de gestão

do território, de desenvolvimento regional, de agricultura, energia e os sistemas de gestão ambiental e de saneamento; hidratar as políticas, planos e programas setoriais; reforçar acordos de cooperação entre órgãos e entidades da adminis-tração pública; promover a hidroconsciência e dissolver a hidroalienação na sociedade, de modo que os atuais e futuros governantes, empresários, representantes em conselhos de recursos hídricos ou em comitês de bacias, tenham sido educados para atuar de modo hídricamente responsável em seus campos de atividade.

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