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    Anos de chumbo ou anos de ouro?A memria social sobre o governo Mdici

    Leaden years or golden years?Social memory of Medicis administration

    Janaina Martins Cordeiro

    H um ano, um grito gigantesco ecoou por todo o pas:Brasil! Era a vitria na Copa do Mundo; era a vitria

    do sistema brasileiro de telecomunicaes. Nove anos antes, o Brasil era umimenso arquiplago que no se comunicava satisfatoriamente entre si (...).

    Os jogos da Copa do Mundo, a luta de Eder Jofre, no Japo,as transmisses dos lanamentos de foguetes e das viagens espaciais,

    as entrevistas feitas diretamente dos Estados Unidose levadas aos diversos pontos do Brasil empolgam todo mundo.

    (O Cruzeiro, setembro de 1971)

    Janaina Martins Cordeiro doutoranda em Histria no Programa de Ps-Graduao em Histria da UFF(Ncleo de Estudos Contemporneos) e bolsista da Capes ([email protected]).Artigo recebido em 30 de dezembro de 2008 e aprovado para publicao em 4 de maro de 2009.

    Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 22, n 43, janeiro-ju nho de 2009, p. 85-104.

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    As imagens de integrao nacional, comemoraes, vitrias e moderni-zao presentes no trecho da matria publicada na revista O Cruzeiroem se tem-bro de 1971 no eram raras na imprensa durante o perodo da ditadura civil-mi-litar. Sobretudo, no eram raras durante o governo do general-presidente Emilio

    Garrastazu Mdici.Perspectivas otimistas sobre o pas perpassam momentos diversos dahistria da nao e so particularmente reforadas em ocasies de estabilida-de/crescimento econmico. Isso porque no so simplesmente instrumentali-zaes ideolgicas, e sim se fundam num imaginrio secular que no de todoimotivado nem desconectado do poder efetivo (Fico, 1997: 77).

    Entre 1969 e 1974, o Brasil viveu um perodo de significativo crescimentoda economia. Era o chamadoMilagre Econmico Brasileiro, quando o pas, compa -rado a um imenso canteiro de obras, foi tomado por incontida euforia desenvolvi -mentista (Aa ro Reis, 2005: 54 e 56). Uma ina ba l vel f no progres so do pas con-

    tagiou segmentos expressivos da sociedade. Estes acreditavam tal como dizia osloganufanista da agncia de pro pagan da do gover no que o Bra sil era, de fato, opas do futuro. E ofuturoparecia estar cada vez mais ao alcance das mos. As vitri-as na rea do esporte; as estradas e pontes se multiplicando, integrando as diversasre gies do pas; o pas que ago ra tambm via e era visto pelo mun do inteiro a partirde um moderno sistema de comunicaes. Tudo isso colaborava para o fortaleci-mento de uma imagem positiva do Brasil, criando uma atmosfera de entusiasmo,refletida nas campanhas publicitrias oficiais, as quais insistiam que este umpas que vai pra frente e que ningum segura este pas.

    J no discurso de posse do presidente Mdici, podemos observar as ten-

    tativas de fazer da Revoluode 1964, e particularmente de seu governo, o mar-co de um novo tempo: Homem de meu tem po, tenho f em que pos sa mos, noprazo mdio de meu governo, preparar as bases de lanamento de nossa verda-deira po sio no ano 2000 (apud Fico, 1997: 76). Assim, o go ver no do terceirogeneral-presidente tratava de estabelecer as pontes entre o presente e o futuro, fa-zendo da Re vo luo a ponte entre os dois.

    Ao mesmo tempo, havia a necessidade de ligar o evento fundador dessenovo tempo aRevoluo ao passado, supostamente heroico, brasileiro. Assim,inventavam-se tradies (Hobsbawm e Ranger, 1997), con ju gando num mesmomovimento passado, presente e futuro. Campanhas publicitrias, por exemplo,

    reforavam o clima de euforia e retornavam ao passado de formas diversas paracomemorar o presente. Por exemplo, em 1971, o Grupo Silvio Santos usava a se-guinte estrofe de Ruy Barbosa nas pginas de O Cruzeiro:

    De tanto ver triunfar as nulidades,De tanto ver prosperar a desonra,

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    De tanto ver cres cer a in justia,De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mos dos maus,O homem chegaa desanimar-se da virtude,

    a rir-se da honra,a ter vergonha de ser honesto.

    E conclua com o seguinte contraponto, em letras garrafais: Ah! RuyBarbosa!... pena que voc no viu o Brasil de hoje!. E seguia: voc iria ver, Ruy,uma Nova Ptria, trabalhando coesa, entusiasta e otimista, construindo umaNova Nao em ritmo alucinante (O Cruzeiro, setembro de 1971).

    Eram tempos de comemoraes, e elas se multiplicavam: em 1970 era otricampeonato mundial de futebol; em 1971 rememoravam-se os 75 anos do ci-nema nacional; em 1972 foi a vez do Sesquicentenrio da Independncia do pas,

    uma das maiores (Almeida, 2005: 106), seno a nica, grande festa popular da di-tadura. A, a ocasio providencial para fazer daRevoluoo evento-sntese, queao mesmo tempo que festejava o passado, portava em si anseios futuros. As festi-vida des tiveram incio em 21 de abril de 1972, com a realizao do I Encon troCvico Nacional que reuniu em praas pblicas o povo para ouvir o pronuncia-mento do Presidente da Repblica, assistir ao hasteamento da Bandeira e cantaro Hino Na cional, sendo que tal progra ma o foi re ali zada em todo o pas (OEstado,Fortaleza, 1972. Fundo Comisso Executiva da Comemorao do Ses -quicentenrio da Independncia). Ao que se seguiu o traslado dos despojos de D.Pedro I de Portugal para o Brasil (O Cruzeiro, abril de 1972),1tambm realizado

    em abril.A programao estendeu-se at a semana da Ptria, em setembro dessemesmo ano, ten do se encer ra do com os desfiles mi litares do dia 7 em todo o pas ea inaugurao do monumento Independncia no Museu do Ipiranga, em SoPaulo. As comemoraes incluram tambm a reedio de importantes obrasque tratavam da emancipao brasileira, privilegiando para tanto o InstitutoHistrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB) comoresponsvel pela construo deuma identidade nacional; a organizao de um campeonato internacional de fu-tebol (Taa Independncia);2arealizao do filmeIndependncia ou Morte, do ci-neasta Carlos Coimbra3e a j mencionada inaugurao do monumento do Ipi-ranga, o qual abrigaria os restos mortais de D. Pedro I (Veja, setembro de 1972).

    A sociedade no ficava alheia a esse clima alucinante de festejos, cele -braes, desenvolvimento econmico e progresso. Sob este aspecto, o Sesquicen-tenrio da Independncia pode ser considerado uma ocasio importante para seobservar a adeso e o consentimento social com relao ao regime. um momen-to no qual podemos analisar as formas pelas quais os mais diversos segmentos da

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    sociedade reivindicaram sua participao num evento, que ao fim, servia comoforma de legitimao do governo.

    Nesse sen tido, podemos observar no decor rer do ano de 1972 que asmais diversas associaes civis, em todas as regies do pas, pretendiam dar sua

    contribuio e marcar sua presena nas comemoraes. Assim, encontramosmanifestaes de adeso de grupos como os Lions Clubes, Confederao Brasile-ira de Basketball, Academia Fluminense de Letras, entidades femininas como aUnio Cvica Feminina (UCF) e o Movimento de Arregimentao Feminina(MAF), ambos de So Paulo, o Sindicato dos Jornalistas do Estado da Guanaba-ra e outros rgos de representao dos profissionais de imprensa, como a Uniodos Profissionais de Imprensa e a prpria Associao Brasileira de Imprensa(ABI), que integrava a Comisso Executiva Nacional do Sesquicentenrio daIndependncia.

    Alm desses, podemos observar tambm o desejo de participao nas co-

    memoraes expresso por entidades religiosas as mais diversas (catlicas, israe-litas, manicas), sindicatos dos professores, entre outras. Encontramos tam-bm manifestaes individuais, como, por exemplo, a do escoteiro Jos AlvesPessoa, de 69 anos, que atravessou o Brasil a p, do Oiapoque ao Chu, repetindoo feito de seu grupo de escotismo em 1922, quando das comemoraes do cente-nrio da Independncia (Correio Braziliense, 1972, Fundo Comisso Executivada Comemorao do Sesquicentenrio da Independncia).

    Os encontros cvicos, as filas que se formavam para visitar os despojosde D. Pedro I, as homenagens prestadas em alguns estados simultaneamente aoimperador e ao ex-presidente Castelo Branco em uma tentativa de colocar omarechal ao lado do imperador noPanthondos heris nacionais (Dirio de SoPaulo, 1972, Fundo Comisso Executiva da Comemorao do Sesquicentenrioda Independncia)4, a fes ta de encerra men to das co memoraes no dia 7 de se -tembro, foram todos eventos capazes de mobilizar vastos segmentos sociais.Explicaes que se baseiem simplesmente no poder demanipulao,propagandaerepressodo Estado por vezes cor rem o risco de se contentar com ma nique smossimples.Assim, preciso tentar compreender os mecanismos atravs dos quaisum regime ditatorial se instaurou no pas e se sustentou por 21 anos,sendo capazde estabelecer um dilogo com a sociedade e criar elementos deidentificaoentre esta e o regime. Dessa forma, podemos compreender melhor esse cenrio:

    Durante a semana passada, milhares de automveiscircularam pelas ruas de So Paulo com fitas verde-amarelas nas ante-nas, bandeiras nos vidros traseiros e, em muitos casos, visitantes de to-das as cidades do pas, atrados pelo encerramento dos festejos do Ses-quicentenrio da Independncia. Os hotis ficaram sem lugares, os

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    avies repletos (...). Os prdios da Avenida Paulista, onde se realizou odesfile militar do dia 7, vestiram-se de bandeiras (...). No Museu doIpiranga, uma multido percorria os corredores em busca das relquiasda Independncia. Enquanto isso, s margens do rio Tiet, cerca de

    40.000 visitantes formigavam debaixo da estrutura metlica do palciode exposies do Parque Anhembi, onde estavam expostos os trofusdo desenvolvimento industrial e das exportaes brasileiras. (Veja, se-tembro de 1972)

    Rememorando o passado, festejava-se o presente. E os primeiros anosda dcada de 1970 foram mesmo tempos de celebraes: comemorava-se o tri -campeonato de futebol, as lutas de Eder Jofre, a expanso do sistema de teleco-municaes e das fronteiras regionais que abriam novas estradas, construam

    novas pontes e hidreltricas; as indstrias cresciam em propores consider-veis.Foramanos de ouro.No obstante, no se pode desconsiderar que, se nos primeiros anos da

    dcada de 1970 no eram raras na imprensa brasileira imagens otimistas do pas,tambm eram bastante comuns imagenssombrias,por assim dizer. Por exemplo,a notcia da morte do guerrilheiro Carlos Lamarca foi divulgada pelo O Cruzeirosob o nebu loso ttulo La mar ca: o fim da imagem do dio (O Cruzeiro, setem-bro de 1971). Isolados no serto baiano, Lamarca e seu companheiro Zequinhaforam caados at a morte. No relatrio da Operao Pajussara, inmeras descri-

    es de colaborao da populao local, a qual via, por vezes com desconfiana,por vezes com medo e desapro vao, a presen a de dois estra nhos, dois terroristasna regio (Rollemberg, 2007).

    A edio do Ato Institucional no5 em dezembro de 1968 desencadeouum aumento substantivo da represso contra os grupos de oposio ao regime,muito embora o aprofundamento do estado de exceo visasse muito mais oscomponentes insatisfeitos daquela grande e heterognea frente que apoiara ogolpe de 1964 (Aaro Reis, 2005: 52). Por algum tempo, no foi tolerada sequer aoposio do Movimento Democrtico Brasileiro (MDB); a imprensa foi postasob censura; os sistemas de segurana e informao foram aperfeioados, e a tor-

    tura foi tornada poltica de Estado. Alm dos antigos Departamentos Estaduaisde Ordem Poltica e Social (Deops), surgiram novos mecanismos de represso:data de 1969 a Operao Bandeirantes (Oban), que a partir de 1970 passaria a agirintegrada ao Destacamento de Operaes de Informaes - Centro de Operaesde Defesa Interna (DOI-CODI) (Cf. Fico, 2001). Este , por excelncia, o tempoda tortura, dos alegados desaparecimentos e das supostas mortes acidentais em

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    tentativas de fuga (Almeirda e Weiss, 1998: 332). De acordo com Daniel AaroReis,

    Entre 1969 e 1972, desdobraram-se aes espetacularesde guerrilha urbana: expropriaes de armas e fundos, ataques a quar-tis, cercos e fugas, sequestros de embaixadores. Os revolucionrios che-garam a ter momentos fulgurantes, mas, isolados, foram cedo aniquila-dos. (Aaro Reis, 2005: 52).

    Entre 1969 e 1970, na sequncia das aes repressivas desencadeadaspela captura do embaixador americano, caram muitos militantes da ALN e doMR-8, organizaes envolvidas na ao. Em seguida, ainda em 1969, caa tam-bm Carlos Marighella, morto numa emboscada em So Paulo. Em 1972, foi des-

    coberto o foco guerrilheiro do PCdoB na regio do Araguaia. O exrcito levariaquase dois anos e trs campanhas militares para liquidar os combatentes (Ri-denti, 2007: 45). Entre abril e junho de 1972, en quan to o governo e segmentossignificativos da sociedade se preparavam para receber e acompanhar a peregri-nao dos restos mortais de D. Pedro I, ou assistir aos jogos do torneio de futebolTaa Independncia, as Foras Armadas mobilizavam milhares de homens paratentar vencer os guerrilheiros. Derrotadas, tiveram que recuar e tentar nova in-vestida, entre setembro e outubro de 1972, logo aps a sociedade ter comemora -do o encerramento das festas do Sesqui centenrio da Independncia. Novaderrota.

    Em outubro de 1973 o Exrcito organizou uma terceira investida contraa guerri lha. Dessa vez, os guerrilheiros foram vencidos:

    A vitria decisiva do governo ocorreu em dezembro de1973 (...) os sobreviventes do ataque dispersaram-se pela floresta, forma-ram cinco grupos de cinco guerrilheiros cada. A partir da, a histria re-sumiu-se a uma caada com requintes de crueldade. Todos os guerrilhei-ros haviam desaparecido at meados de 1974. (Ridenti, 2007: 46).

    As perseguies, prises, torturas, mortes e exlios que se intensificaramnos anos doMilagre levaram derrota poltica e militar do projeto ofensivo dosgrupos de oposio armada ao regime.

    Foramanos de chumbo.Para alm dos binarismos, por vezes simplificadores, a verdade que os

    anos 1970, particular mente o perodo que vai de 1969 a 1974, no fo ram anos de

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    ouroouanos de chumbo. Foram, muitas vezes, os dois ao mesmo tempo, ou ain-da: se foram ume outro, precisoper ceber que h um enorme espa o entre quemos vi veu comoanos de ouroe quem os viveu comoanos de chum bo, configurando,entre um polo e outro, uma diversidade enorme de comportamentos sociais.

    importante, pois, tentar apreender a diversidade e complexidade das relaes en-tre ditadura, sociedade e os grupos organizados que atuaram contra o regime.No caso da ditadura civil-militar de 1964, isso significa observar que a

    simples oposio entre um Estado opressore umasociedade vitimizadaencobreuma srie de atitudes que permitem entender as lgicas pelas quais o regime sesustentou por 21 anos. Significa tambm perceber que entre arecusa5das prticasempregadas pelo Estado e aresistncia,de um lado, e a simpatia e o apoio manifes-to ao regime, do outro, existe tambm aindiferenae/ou os que alegavam e alegamnada saber, essa espcie de personagem constante da histria que atravessa ostempos em diferentes partes do mundo assistindo a toda espcie de crime sem

    nada ver (Rollemberg, 2006: 83).Assim, se tentamos evitar os maniquesmos simples e os binarismos queencurtam a viso do todo, se tentarmos observar os comportamentos sociais emsua complexidade, perceberemos quepara alm da resistncia e da colaboraoativa, preciso prestar ateno na passividade, na indiferena: entre aqueles quese engajaram na luta contra o regime, seja pelo enfrentamento armado, seja porvias institucionais,e os que colaboraram, h uma srie de comportamentos muitodiversos, que ao fim nos permitem compreender a formao de um consenso so-cial em torno do regime. Consenso que de modo algum significaunanimidade,mas que, ao contrrio, abarca uma srie de comportamentos muito diversos, os

    quais por sua vez concorrem todos, em dado momento, para a sustentao deum regime poltico, ou para o enfraquecimento de uma eventual luta contra omesmo (Aaro Reis, 2009).

    No obstante, como memria coletiva, prevalece uma elaborao queconsolida como verso dominante a luta travada pelos opositores do regime e si-lencia sobre os demais comportamentos sociais. Cristaliza-se, dessa forma, umaimagem de acordo com a qual toda a sociedade sempre resistiu ditadu ra. Esta seimps contra a vontade de todos, sustentada unicamente por mecanismos coer-citivos.

    No entanto, no se pode ignorar que o projeto revolucionrio de enfrenta -

    mento armado da ditadura foi derrotado. As Foras Armadas e os segmentos queas apoiavam venceram a batalha no campo militar. Ainda assim, no campo das me-mrias, a verso das esquerdas, ou ao menos dedeterminada esquerda, que recu-perada como memria oficial. Os militares, por sua vez, chamam ateno para ofato de que uma vez derrotada, a esquerda esforou-se por vencer, na batalha dasletras, aquilo que perdeu no embate das armas (Martins Filho, 2002).

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    Particularmente, se pensarmos no caso dos anos Mdici, nas imagensdeeufricascelebraes, de um lado, e desombriasperseguies, de outro, pode-mos observar os meandros da construo da memria sobre esse governo e, demodo mais amplo, sobre a ditadura civil-militar: importante tentar compre-

    ender a memria desse perodo tendo em vista a complexidade de um governoque lembrado pela memria coletiva nacional como sendo osanos de chumbo,o perodo daditadura escancarada (Gspari, 2002), das perseguies e repressodesencadeadas pelogolpe dentro do golpea partir de dezembro de 1968. Mas que tambm o perodo do Milagre Brasileiro e da grande euforia proporcionadapelo crescimento econmico; do entusiasmo pela conquista do tricampeonatomundial de futebol em 1970; dos estdios lotados aplaudindo o general-presi-dente da vez; da expanso das fronteiras, que integravam o pas, e das grandesobrasfaranicas.

    Algumas perguntas se colocam quando refletimos a respeito da mem-

    ria social construda sobre o governo Mdici: se foram tambm, e para muitos,anos de ouro, porque a memria coletiva lembrao perodo apenas pelo espelho dosanos de chumbo? Por que se multiplicam relatos deresistncias, como, por exem -plo, o do grupo de jovens paulistas pertencentes classe mdia intelectualiza-da que se reuniu para torcer contra a seleo brasileira de futebol na final daCopa do Mundo de 1970 (Almeida e Weiss, 1998)? Por que tantos rela tos deresis-tncias cotidianas, esvaziando, num certo sentido, o significado da luta dos gruposorganizados contra o regimee o prprio significado do termoresistncia? Por queos silncios, inmeros, sobre a adeso social ditadura? Sobre o entusiasmoalucinante que caracterizou os anos doMilagre? Sobre a identificao de im -portantes parcelas da sociedade com os valores postulados pela ditadura, que foi,antes de tudo,civil-militar? Por que se calaram as vozes que descreviam osagitari-anopresidente Mdici como uma pessoa (...) de bom corao, leal, (...) inclinada caridade, benevolncia e Justi a, aos assuntos religiosos e msticos, filosficos,filantrpicos e intelectuais (O Cruzeiro, ja neiro de 1972)? Onde esto as mosque o aplaudiam em estdios lotados? Enfim, por que as imagens dosanos dechumbo, abordadas sob uma perspectiva que vitimiza os grupos de esquerda cujo projeto de enfrentamento armado a sociedade no compartilhava , soeleitas comoamemria desse tempo? Por que o silncio em torno dosanos deouro?

    Questes fundamentais para quem se prope tentar compreender a me-mria de um perodo marcado por um aparente binarismo entreanos de chum boeanos de ouro, mas que na verdade muito mais complexo do que podem sugerirambas as metforas. Sob este aspecto, mais que buscar possveis respostas para asperguntas acima, fundamental refletirmos sobre os mecanismos a partir dosquais determinada me mria se consolida em detrimento de outras. E particular-

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    mente, neste caso, entendermos os mecanismos atravs dos quais a memria dosvencidos recuperada e a memria dos vencedores, silenciada. Qual o significa -do deste silncio reconciliador em torno do apoio ditadura? Qual o significadoda rememorao, por vezes tambm reconciliadora, da memria das esquerdas?

    importante, portanto, tentar compreender como se deu, no caso doBrasil, a substituio damemria do triunfopelamemria do traumada ditadura; aguinada histrica que consolida a rememorao dasvtimase a demonizao dosperpetradores, de ixando vago o lu gar doheriem nossa sociedade (Giensen, 2001);quais so as implicaes desse processo e as especificidades do sentido tomadopelas disputas de memria, sobretudo a partir da abertura poltica e dos debatesem torno da anistia negociada.

    De acordo com Bernard Giensen (2001: 16), durante as ltimas dcadasdo sculo XX, vimos, ao menos no mundo ocidental, uma importante transfor-mao da memria coletiva: en lugar de se alabar a los hroes fundadores de una

    comunidad, los monumentos y rituales pblicos recuerdan hoy el sufrimientode las vctimas y los cr menes de los perpetradores. interessante refletirmossobre as possveis causas que levam a essa transformao da memria coletiva.Giensen aponta alguns caminhos, como, por exemplo, a ordem impessoal das so-ciedades modernas. Nesse caso, mais valem vtimas sem rostos que heris, figu-ras muito bem marcadas, pessoais, destoando do iderio moderno de impessoali-dade. Assim, passa-se do heri vtima; do triunfo ao trauma. E se preciso darum rosto a algum, que seja figura do perpetrador: o bem, as virtudes, os valo-res, encontram-se diludos entre as vtimas, desindividualizadas. J o mal, esteprecisa ter um rosto, o rosto do perpetrador.

    Assim, a memria coletiva representada, agora, pelas figuras polariza-das da vtima e do perpetrador , exerce funes muito importantes em socieda -des que viveram experincias autoritrias em perodos recentes; confronta-ascom questes relativas ao trauma e ao silncio: ao trauma das vtimas e simulta-neamente ao silncio em torno dele, pois o trauma demasiado vivo para sernarrado. No obstante, a vivncia do trauma cada vez mais monumentalizadae alada condio de memria nacional. Ao mesmo tempo, os perpetradoresso demonizados. Para Giensen,

    esta radical demonizacin de los perpetradores purificaa la nacin y desmoraliza el pasado. Limita la cuestin de la responsabi-lidad y la culpa a unos pocos agentes responsables (...). Fue Hitler, nuncanosotros. Fue Stalin, nunca nosotros. Fue Pol Pot, nunca nosotros. No-sotros, la gente fuimos las verdaderas victimas, hemos sido traicionadosy hemos sufrido. (Giensen, 2001: 20)

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    Podemos perceber um processo bastante similar a este no caso da dita-dura civil-militar brasileira: foramos militares, nunca ns. Da as dificuldadesem aceitar analisar o perodo como uma ditaduracivil-militar. Da o mo tivo peloqual a figura doheri substituda pela figura davtima: porque entre os vitima-

    dos, sem rostos, sem voz, cabe toda a sociedade; j no esteretipo do heri, figurabem definida, de traos bem marcados, comprometida com aao, no cabe todaa sociedade. O primeiro tipo mais confortador.

    O processo de abertura poltica brasileira, a partir dos anos 1980, confir-maria essas elaboraes de memria: no af de se construir o consenso em tornoda democracia que se queria erigir naquele momento, os opositores do regime fo-ram relegados categoria de vtimas. Junto deles, toda a sociedade foi vitimiza-da, enquanto se consolidava a memria de acordo com a qual esta sempre expres-sasse seu sentimento de oposio, pelos mais diversos canais e com diferentesnveis de fora (Comisso Especial sobre Mortos e Desaparecidos Polticos,

    2007: 23). Por ou tro lado, aosperpetradores neste caso,os militaresou oEstado mi-litarizado , so destinados os silncios, osesquecimentos, o banimento do espaopblico, muito embora se aprove uma lei de anistia recproca, que entrava o jul-gamento dos crimes cometidos pelo Estado.

    Dessa forma, para compreendermos os processos e os motivos pelosquais predominou como memria oficial o trauma das vtimasdo terrorismo deEstado, no podemos deixar de olhar para os silncios que permeiam a mem-ria dos grupos que apoiaram, colaboraram, simpatizaram ou foram indiferen-tes ao regime, lembrando sempre que todas essas atitudes so muito distintasentre si.

    Quando contemplamos a riqueza dos comportamentos sociais diante daditadura, torna-se impossvel no questionar sobre os processos atravs dos quaispredominou o comportamento deresistncia e o esteretipo davtimacomo me -mria coletiva.

    Por isso, consideramos importante buscar os elementos de identificaoentre governo e sociedade; compreender os mecanismos atravs dos quais foi es -tabelecido um dilogo entre as partes; tentar resgatar o tempo das comemoraes;analisar a primeira metade dos anos 1970 sob o vis das celebraes, das tentati-vas de construo de umaviso otimis ta do pas (Fico, 1997) e da eu foria desenvol -vimentista daqueles que acreditavam nas palavras do presidente Mdici, segun-do as quais, desde 1964, tudo mudou no pas; e dos que compartilhavam dascer tezas de que entramos em 1972 com to das as condi es in ternas para manteresse ritmo ascen dente de cres cimento que a to dos nos em polga e que d a cadahomem a ale gria e a certeza de estar constru indo um grande pas (O Cruzeiro, ja-neiro de 1972).

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    No obstante, no decorrer do processo de abertura poltica, essas mani-festaes, esses episdios celebrativos foram silenciados. Silenciou-se sobre osanos de ouroe restaram como memria osanos de chumbo, apagando-se a enormemultiplicidade de comportamentos entre um e outro. Era como se esse silncio

    fosse capaz de dirimir a culpa de que nos fala Giensen:

    Dado que muchos implicados en una red de colabora-cin, y dado que muchos tenan fuertes re cuerdos personales como par-tidarios y testigos no comprometidos, se vean obligados a negar pbli-camente, amparndose en una narracin exculpatoria de intoxicacin yseduccin demonaca. (Giensen, 2001: 20)

    Giensen analisa particularmente o caso da Alemanha nazista, mas nos

    fornece elementos importantes para pensarmos o caso do Brasil: para expurgar opeso da culpa de ter vivido a ditadura, em especial os anos doMilagrecomoanosde ouro, enquanto os opositores eram perseguidos, para explicar o convvio nemsempre conflituoso durante 21 anos com o regime de exceo, para reconcili-ar-se consigo mesma, a sociedade escolheu o silncio a respeito das relaes com-plexas estabelecidas com o regime. Escolheu rememorar asvtimas, procedendo,ento, a uma reconstruo de memria a partir da qual o sentido ofensivo do pro-jeto das esquerdas foi apagado e a luta armada foi redefinida antes como um seg-mento radicalizado da resistncia democrtica que como um projeto revolucio -nrio de subverso de uma determinada ordem e sua substituio por outra (Aa-ro Reis, 2004: 48).

    Dessa forma, a ressignificao da histria das esquerdas que silenciavaa res peito da opo pela luta ar ma da an tes mesmo do gol pe de 1964 e enfatizava ocarter de resistncia ao regime ganhava impulso na medida em que o processode abertura avanava. E, nesse momento, era importante politicamente formarum consenso democrtico a partir do qual tornava-se difcil para a prpria es-querda afirmar seu antigo projeto revolucionrio de implantao da ditadurado proletariado.

    O crtico literrio alemo Andreas Huyssen (2004: 7), tratando do pro-cesso de redemocratizao argentino, lembra da importncia que, naquele mo-mento, teve oesquecimentoda ao poltica insurgente das esquerdas armadas er-

    radicadas pela ditadura. Segundo ele, esse esquecimento era absolutamente ne-cessrio na poca, porque, em primeiro lugar, permitiu o julgamento dos gene-rais e, em segundo, possi bilitou que toda a sociedade argentina, incluindo tantoos que no participaram quanto os que se beneficiaram da ditadura, se congre-gasse em torno de um novo consenso nacional, qual seja, o que colocava em cam-pos opos tos vtimas e algozes.

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    Nesse caso, portanto, o autor explica a funo que possua o esquecimen-to do papel ofensi vo das esquerdas armadas ar gentinas dos anos 1970. No con-texto da transio operada a partir de 1983, a formao de umconsenso democrticoera absolutamente necessria para a coeso nacional. Todavia, isso no pode jus-

    tificar o apagamento do sentido das aes das esquerdas.Sobretudo, ao se pensar no caso brasileiro, onde, ao contrrio daArgentina, esse processo devitimizaodas esquerdas no levou ao julgamentodos envolvidos nos crimes decorrentes da represso do Estado e tampouco sus-citou um debate de propores nacionais em torno da questo dos direitos hu-manos, deve-se refletir sobre o sentido desse tipo de ressignificao da histriadas esquerdas, principalmente das que aderiram ao enfrentamento armado.Mais do que isso, torna-se importante analisar os processos a partir dos quais omito da sociedade resistente ganhou fora na memria nacional, favorecendo aomes mo tempo ossilncios sobre o respaldo social ditadura e a consolidao de

    um projeto de anistia baseado noesquecimentoe na reconciliao nacional (Cor -deiro, 2008: 11).Se tomarmos em particular o caso do governo Mdici, observaremos de

    forma muito cristalizada como se operam as construes de memria em tornoda ditadura. OMilagre lembrado pelas vias mais diversas por onde a memriapode se expressar, referindo-se sobretudo ao carter concentrador de renda doplano econmico da ditadura, ao arrocho salarial ao qual a classe trabalhadorafoi submetida e ao qual se submeteu pormedoou porignorncia. No menos re-ferido que o clima de euforia proporcionado peloMilagrefoi sus tentado em gran -de parte pela propaganda oficial do governo,manipuladorapor definio. A ins-trumentalizao por par te do poder da vitria na Copa do Mun do de futeboltambm consta sempre dessa memria: o governo e sua poderosa agncia de pro-paganda teriam sabido canalizar os ganhos do tricampeonato a seu favor. Issotudo ocorria enquanto os opositores do regime eram aniquilados nospores, semque a populao soubesse ou pudesse fazer qualquer coisa para evitar.

    No se pretende aqui questionar determinados aspectos do regime: defato, o modelo econmico da ditadura foi extremamente concentrador; tambmno menos verdade, como j mencionamos, que a esquerda foi perseguida emassacrada pela represso. No obstante, se quisermos compreender como umregime autoritrio se sus tentou no pas por 20 anos, preciso ir adiante. No casodoMilagre, no se pode deixar de observar que, se por um lado a poltica econ-mica do governo, altamente concentradora, aumentava as diferenas sociais, poroutro lado a entrada de segmentos sociais cada vez mais vastos na sociedade deconsumo engendrava uma atmosfera de f no progresso que no se pode descon-siderar. E aqui importante destacar: se de fato oMilagre beneficiou economica -mente so bretudo os setores mdios e os mais abastados, afno pro gres so e a cren -

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    a no futuro do pas no conhecia fronteiras de classes e foi partilhada por seg-mentos sociais os mais diversos. Como, por exemplo, aquelas 500 mil pessoasque vi eram do Nordes te e do Sul do pas, prin cipalmente (Manchete, abril de1972), e se dispuseram a desbravar as fronteiras e a colaborar para a integrao

    nacional, ajudando a construir a Transamaznica e oBrasil moderno, vislumbran-do ali novas perspectivas de vida; ou ainda os que se entusiasmavam com a na-o alegre, jovem e confiante [que] se apresta para a apoteose das comemoraesdos seus 150 anos de autonomia po ltica (O Cruzeiro, setembro de 1972).

    Mais uma vez, os questionamentos a respeito da construo dosesqueci-mentos e dos silncios em torno dessa memria dacrena no fu turo do pas se im-pem: de que forma se constroem e perpetuam os silncios em torno da ditaduracivil-militar? Em torno do consentimento que no significa somentecolaborao ao regime?

    importante, ento, tomar a ideia dememriaem sua rela o com o es-

    quecimento. De acordo com Henry Rousso, por exemplo,

    A memria um processo complexo que articula lem-branas e esquecimentos, consciente e inconsciente, a parte aceita e as -sumida do passado como sua parte negada ou ocultada. Em outros ter-mos, a memria no todo o passado: a parte que continua viva em ns sempre tributria de representaes e preocupaes do presente. (Rous-so, 1999: 109, grifos no ori ginal)

    , portanto, tendo em vista essas articulaes entre lembrana eesqueci-mentoque deve ser compreendida a memria sobre a ditadura civil-militar brasi-leira. Mas, importante destacar, e ainda de acordo com Rousso, oesquecimentono tomado aqui como ausncia de memria: esquecer alguma coisa des-locar o olhar retrospectivo e recompor, assim, uma outra paisagem do passado(Rousso, 1999: 110).

    preciso, pois, tentar compreender as formas de apario doesquecimen-topblico e, nesse sentido, Henry Rousso prope uma questo interessante: ha-veria polticas de esquecimento? Rapidamente somos remetidos s problemti-cas que envolvem as polticas deanistia. Para este historiador, a anistia aparece

    em uma longa tradio republicana que tem sempre por funo reconstituir otecido social e nacional aps um conflito interno. No entanto, essas anistias soescolhas polticas e, nesse sentido, no se constituem emesquecimentono senti-do comum do termo. Trata-se, antes, de discursos e atos polticos que tm por ob-jetivo a refun da o do lao social (Rous so, 1999: 111). Vis ta aanistiadessa for-ma, torna-se problemtica a aproximao, recorrente algumas vezes, com o ter-

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    moamnsia. De acordo com Henry Rousso, o esquecimento poltico e jurdicode um lado, e a amnsia voluntria de outro, no devem ser tomadas ao p da le-tra, sob pena de contrassenso. Aqui, o exemplo da memria construda pelosfranceses nos anos 1950 e 1960 sobre a ocupao nazista representativo: os

    franceses, em sua maioria, no esqueceram a Ocupao nos anos 50-60, eles qui-seram, para o bem ou para o mal, e na verdade, muito rapidamente, no mais fa-lar disso nem publicamente nem no espao privado, o que muito diferente(Rous so, 1999: 111). Trata-se, portanto, de umaescolha, do que Rousso chama deluto inacabado (Rousso, 1990: 29-76) com relao aos acontecimentos do passado,de uma incapacidade deelaborarpessoal e coletivamentecomoepor queas coisasse passaram de determinada forma, e no deesquecimentopropriamente.

    Somos ento confrontados com as questes relativas aossilncios. Se oes-quecimento, vis to em sua aproximao com a ideia deanistia,toma o sentido deuma poltica de Estado que objetiva refazer o tecido social, ossilnciospodem

    nos apontar a direo de compreender as formas pelas quais a sociedade lida comdeterminados eventos passados. Assim, preciso ter em mente a enorme frontei-ra existente entre esses silncios e no-ditos e o esquecimento definitivo comoalgo em perptuo deslocamento (Pollak, 1989: 8). Segundo Pierre Laborie,

    O silncio no apenas uma perda de memria, no esquecimento, menos ainda uma prova do esquecimento. Se ele pode sero isolamento e a preservao obstinada do segredo, ele menos uma re-cusa de se recordar que uma maneira de recordar. (Laborie, 2003: 52-53)

    Portanto, h que se compreender o silncio de parte da sociedade brasi -leira com relao sua adeso e consentimento s polticas e valores propostospela ditadura comouma forma de lem brar, como ummodo de presen a no mundo quese define diante da construo de uma outra memria, que se consolida a partirdo processo de anistia e que evoca a sociedade como resistente.

    Mais uma vez nos remetemos s anlises de Laborie sobre ossilnciosdosfranceses a respeito de Vichy: discutindo as formas de apropriao do passadopelo presente bem como as formas de representao do silncio, o historiadorafirma haversilncios da memria ememria do silncio.O pri meiro liga-se ao queele chama de conscincia turva ou m conscincia, a incapacidade ouvergo-

    nhade assumir coletivamente a responsabilidade pelos crimes do passado (La-borie, 2003: 54-55). A tendncia , ento, silenciar sobre determinados eventos ese apropriar de outros. J amemria do silncio est relacionada ao sentido que oacon tecimento toma, ao uso que o pre sente faz dele, em que odizer nada umamaneira de testemunhar. Ou seja, a memria do silncio expressa um sentimentode acordo com o qual determinado tipo de comportamento do passado tornou-se

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    incompreensvel no presente, por isso os problemas em falar sobre este passado(La borie, 2003: 58 e 61).

    Assim, preciso compreender o silncio que envolve a memria conso-lidada socialmente sobre a ditadura civil-militar brasileira tendo em vista esse

    duplo movimento, tendo em vista ossilncios da memria, mas tambm asmem-rias do silncio. Por fim, importante entender essessilncios como uma forma delembrar. Dessa forma, podemos compreender melhor os embates em torno daconstruo da memria da ditadura: a sociedade noesqueceuosanos de ourodogoverno Mdici. Apenas, medida que o processo de abertura avanava e se con -solidava a resistncia como memria coletiva, bem como o consenso em torno dademocracia, silenciava-se a respeito do consenso em torno do regime.

    Michael Pollak, refletindo sobre o silncio ao qual se recolheram algunsjudeus sobreviventes dos campos de concentrao durante a Segunda Guerra,nos oferece elementos importantes para pensarmos o caso do Brasil. Segundo

    ele, seu silncio sobre o passado est ligado, em primeiro lugar, necessidade deencontrar ummodus vivendicom aqueles que, de perto ou de longe, ao menos soba forma de consentimento tcito, assistiram sua deportao (Pollack, 1989).

    Ossilnciosengendram, portanto, uma espcie deconciliao. Silenciarsobre determinado passado significa, menos o esquecimento e mais a concilia-o, ou areconciliao social em torno de um novo consenso. Ainda de acordocom Pollak (1989), a memria coletiva (...) se integra em tentativas mais ou me-nos conscientes de definir e de reforar sentimentos de pertencimento (...). A re -ferncia ao passado serve para manter a coeso dos grupos e das instituies quecompem uma sociedade.

    Nesse sentido, memria, esquecimento e silncio so parte de um pro -cesso dinmico, responsvel por reforar o tecido social. O que define osditos eno-ditosso, ao fim, as circunstncias histricas e polticas do momento.

    O perodo Mdici representa, talvez melhor que os governos dos demaisgenerais-presidentes, as formas pelas quais os silncios a respeito das relaes dasociedade com o regime se constituram. Isso porque sintetiza muito bem ele-mentos que, sob um olhar superficial, parecem se negar, mas que so, na verdade,complementares: o in tervalo que vai de 1969 a 1974 consiste, ao mesmo tempo,nos anos de maior prosperidade e otimismo e nos anos em que o terrordo Estadomais se fez sentir. Aspectos que, de acordo com uma determinada memria cole-

    tiva, somente possvel que tenham convivido se partimos do suposto de que asociedade foi duramente reprimida eseduzidapelas promessas de construo dopas do futuro.

    No obstante, preciso buscar a dinmica social, e observar a coletivida-de como por tadora de valores, de demandas e de uma cultura poltica prprias, eno como uma entidade passiva diante de um Estado todo-poderoso. preciso

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    entender que entreseduo efascinao (Reichel, 1993) h uma diferena signifi-cativa, justamente a diferena que confere coletividade o papel de ator socialativo e no de massaseduzida, inerte s vontades de lderes todo-poderosos. Porfim, importante compreender que consentimento e coero foram inextrica-

    velmente unidos

    (Gellately, 2002: 14) durante toda a histria do regimecivil-militar brasileiro.Da a importncia de resgatar osanos de chumbotambm pelo vis dos

    anos de ouro, como um necessrio contraponto a uma memria cristalizada e, porvezes, mitificada. preciso voltar os olhos para a complexidade do social paratentarmos entender os meandros da construo da memria sobre o regime.Mais que isso, importante tentar apreender a atmosfera da poca sob seu aspec-to mais diversificado. H que se entender os anos doMilagremuito mais comouma espcie deestado de espritoque, alm de colher os resultados de uma deter-minada poltica econmica, engendrou um clima de otimismo, como se final-

    mente o Brasil adentrasse no grupo dos pasescivilizados. Segmentos significati -vos da sociedade viveram esse perodo muito mais sob o clima levedosanos deouroque sob a atmosferapesadadosanos de chumbo, muito embora, na maior partedo tempo, tudo se misturasse. importante, no entanto, tentar chamar atenopara essa complexidade. Do contrrio, corremos o risco de nos contentarmoscom as simplificaes impostas pela memria. E esta, como j mencionamos,possui importncia poltica fundamental, sobretudo no que tange refundaodo tecido social. Mas a memria no a histria.

    Notas

    1.Os despo jos de D. Pedro I fo ramtrazidos para o Rio de Janeiro, ondeficaram por alguns dias na Quinta da BoaVista. Em seguida percorreram diversascidades do Brasil, at que finalmenteforam le va dos a So Pau lo, onde houve oencerramento da festa do

    Sesquicentenrio no dia 7 de setembro,no Museu do Ipiranga.

    2. O torneio aconteceu entre 11 de junhoe 6 de julho de 1972 e reuniu selees detodo o mundo, entre as quais alm daseleo brasileira, tricampe mundial de1970 as selees da Argentina, Uruguai,

    Tchecoslovquia, Rssia, Iugoslvia ePortugal. Cf. A taa mais cara domundo, O Cruzeiro, junho de 1972.

    3.O filme foi parcialmente financiadopela Embrafilme e oficializado pelogoverno a fim de participar das

    comemoraes do Sesquicentenrioda Inde pendncia. Cf: Pedro I O imperador romntico,Manchete,8/4/1972, p. 33.

    4. A reportagem enfatizava que ashomenagens a Castelo Branco se

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    inseriam nas comemoraes doSesquicentenrio.

    5.No sentido aqui empregado, pode-seentender arecusade parte da sociedade ditadura-civil militar de maneira similar que Ian Kershaw en tende a dis sensodos alemes sob o nazismo. Este autorprefere empregar o termodissensoemvez deoposio ouresistnciapara designardeterminados tipos de opinies e aesque no aprovam tais ou tais aspectos do

    nazismo, sem que isso configure, noentanto, oposio ou resistncia efeti va aoregime. Para ele, o termo dissensoparece, portanto, cobrir melhor aexpresso das atitudes, frequentemente

    espontneas e sem ligao alguma comuma ao precisa, crtica ou dirigidacontra o nazismo. A dissenso poderiase transformar em oposio, mas nonecessariamente (cf. Kershaw, 2002:34-5).

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    ResumoEste artigo discute a memria social sobre a ditadura civil-militar brasileira,em particular a memria sobre o governo do presidente Emilio Mdici. Apartir da discusso da metfora dos anos de chumbo, bem como darecuperao do perodo pelo vis dos anos de ouro, pretende-se analisar acomplexidade dos comportamentos sociais sob a ditadura, e discutir atitudescomo a passividade e a indiferena, que, tanto quanto a colaborao ativa,

    contribuem para a construo do consenso em torno do regime. Ao mesmotempo, a ideia refletir sobre a construo da memria social sobre o perodoem articulao com o esquecimento e os silncios.Palavras-chave:memria, ditadura, silncios, esquecimento, consenso

    AbstractThis article discusses the social memory of civil-military dictatorship inBrazil, specially the memory of President Emilio Medicis government. Basedon the discussion of the metaphor of the le aden years, and on the vi sion ofperiod un der the an gle of the gol den of years, its pur pose is to analyze the

    complexity of social behavior under the dictatorship and to discuss attitudesas passivity and indifference that, as well as active collaboration, contributedto building a consensus around the regime. At the same time, the idea is toreflect on the construction of the social memory of the period, in articulationwith the silence and oblivion.Key words: memory, dictatorship, silence, oblivion, consensus

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    ResumCet article voque la mmoire sur la priode de la dictature civil-militairebrsilienne, en particulier la mmoire sur governement du gnral-presidentEmlio Mdici. partir de la discussion de la mtaphore des annes de

    plomb, et aussi de la vision de la priode comme annes dor, on veutanalyser la complexit des comportements sociaux sous la dictadure etdiscuter des attitudes comme la passivit et lindiffrence, qui aussi bien quela collaboration ont contribu la constrution du consensus autour duregime. Au mme temps, lide est de reflchir sur la constrution de lammoire sociale sur la priode, en larticulant avec loubli e les silences.Mots cls:mmoire, dictadure, silences, oubli, consensus

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