ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é...

43
ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá- ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen- to. O seu catálogo – uno, sem colecções – faz-nos encontrar em cada livro um mesmo espírito de rebeldia contra os poderes instituídos. Só publica autores que mijem fora do penico. Bruno Ministro e São José Sousa

Transcript of ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é...

Page 1: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

ANTÍGONACONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO

Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-to. O seu catálogo – uno, sem colecções – faz-nos encontrar em cada livro um mesmo espírito de rebeldia contra os poderes instituídos. Só publica autores que mijem fora do penico.

Bruno Ministro e São José Sousa

Page 2: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-
Page 3: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Durante 20 anos a vida e o trabalho de Luís Oliveira confundiram-se numa mesma casa, gran-de, barata – «pagava 300 escudos de renda por mês» – e estrategicamente posicionada pa redes--meias com uma tipografia, ali para os lados do cemitério de Benfica, em Lisboa. Luís escolhia os textos, editava-os, levava-os à tipografia e não lhes largava a mão até estarem prontos para viajarem até aos leitores. Paranóia? A determinada altura, o texto a editar era A Verdade [1], do Marquês de Sade, e uma das ilustrações que tinha sido esco-lhida para o interior do livro era a imagem [2] de uma cruz ateia, cruz de Cristo invertida. Chegado à tipografia, numa das suas frequentes acções de “fiscalização”, diz-lhe o atento tipógrafo «É pá, isto estava ao contrário, vocês enganaram-se» e mostra-lhe a capa pronta, de cruz endireitada. «Ai é? Tudo fora, fazem outro livro e assumem a res-ponsabilidade», responde-lhe Luís. «Era uma bar-raca o Marquês de Sade sair com um cruz cristã, a não ser que se pensasse que era uma ironia; mas

[1] Marquês de Sade. A Verdade. Edição ilustrada. Lisboa: Antígona, 1989. Trad. Manuel João Gomes / Luiza Neto Jorge

[2] Ilustração de Man Rey. «Monument à

D.A.F. De Sade», 1933

Page 4: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Hoje há Editoras

4

com o Sade não havia ironias para esse lado». Hoje, com 34 anos cumpridos em Junho, a Antígona saiu de casa, instalou-se pelo Príncipe Real e foi aí que nos recebeu – com simpatia e disponibilidade, com paixão e inconformismo, com livros e café. Chegamos ao número 39 da Rua Gustavo de Matos Sequeira, porta verde, de madeira maciça, «não aceitamos publicidade» sobre a ranhura pa-ra o correio, e tocamos à campainha do primeiro an dar, «Antígona/Orfeu». É Lurdes Afonso, a as sis-tente editorial da Antígona, quem nos abre a porta, e logo atrás vem receber-nos Luís Oliveira, o editor cuja história se confunde com a história da edito-ra. «Não uso agenda, mas sabia que vocês vinham hoje, tenho uma óptima memó ria», havia de dizer-nos mais tarde. Encaminha-nos para a sala de reu-niões que a Antígona partilha com a Orfeu Negro, chancela filha da Antígona, hoje edi tora autónoma, conduzida por Carla Oliveira. Ao fundo, uma estan-te recheada com os títulos da Orfeu Negro e Mini – aos da Antígona é-lhes de dicada outra estante. Na parede, um curioso poster com um anúncio de emprego, encabeçado com o alerta «Vo cê é um lí-der? Sente-se realizado? Então este anúncio não é para si!». Na parede oposta, uma janela. Ao cen-tro, a mesa sobre a qual descobriríamos que, em Benfica ou no Príncipe Real, com a tipografia mais ou menos vizinha, 10, 20 ou 34 anos passados, a Antígona mantém intactos os seus princípios fun-dadores, a sua paixão pelos textos subversivos, co-mo se lê na apresentação que abre os catálogos. O seu empenho em «empurrar as palavras contra a ordem dominante». «A Antígona tem 34 anos e dispensa apre-sen ta ções», afirma Luís Oliveira, mas acrescenta de imediato: «Se quiser uma definição, a Antígona

Page 5: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Antígona

5

é uma editora refractária.» Para o editor, o termo «re fractário» é o que melhor define o projecto. Tan to que podemos ler a descrição «Antígona, edi-tores refractários» no topo do website [3] da edito-ra, no nome do seu perfil no Facebook, como nome próprio na morada referida na ficha técnica dos livros que publica e, mais recentemente, sob a for-ma de epígrafe na folha de rosto dos livros. Logo no início da nossa conversa, Luís Oliveira mostra- -nos em primeira mão um exemplar de História e- Criação [4], de Cornelius Castoriadis. «Este é o livro que vai sair agora – ainda nem está nas livrarias –, onde começámos a utilizar o significado de “re-fractário”. Podem ler aí os dois, é de facto mui to ri co. E não pus tudo.» Acatamos a ordem e des co-brimos uma definição de «refractário» [5] que nos apresenta a editora, situando-a como sub versiva, como elemento de resistência aos modelos sociais hegemónicos. Lemos, não poucas vezes, que a Antígona é uma editora de esquerda, que a Antígona é uma editora revolucionária. Luís Oliveira afirma que nunca se ria possível ouvir semelhantes palavras vindas da sua boca.

Eu não sou de esquerda e a Antígona tam-bém não. Nós aqui na Antígona consideramos que esquerda e direita fazem parte do mes mo sistema dominante. Somos para além dis so. Procuraríamos ter uma sociedade di fe rente, com muitas paixões e formas de as realizar – isso no plano humano e afectivo. De pois, no plano teórico, é uma editora que procura au-tores que mijem fora do penico, isto é, que tra-balharam de certa maneira pa ra a formação da humanidade, ou seja, pa ra a liquidação so-

[3] www.antigona.pt

[4] Cornelius Castoria-dis. História e Criação. Lisboa: Antígona, 2013. Trad. Manuela Gomes

[5] REFRACTÁRIO adj. Que re siste à acção fí sica ou quí mi c a; que resiste às leis ou a prin cípios de autori-da de, in sub misso; que não se molesta ou ressente de ataques ou ac ções exteriores; insensível, indiferente, obstinado, resistente, intransigente; imune a certas doenças; que ou aquilo que su-por ta temperaturas ele vadas; jovem que falta à selecção para o serviço militar depoisde convocado; indócil.

In Dicionário Houais da Língua Portuguesa

Page 6: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Hoje há Editoras

6

cial. Nesse sentido, não tem colecções, porque consideramos que a se pa ra ção no interior da sociedade não serve os homens e as mulheres.

Este repúdio à concepção de um mundo es -partilhado levou a que todo o catálogo fosse cres-cendo como uma só colecção. Se, por um la do, pa-rece haver uma unicidade que, em grande medida, se deverá ao facto de as obras editadas serem as que interessam particularmente a Luís Oliveira, por outro, o catálogo da Antígona não dei xa de ser marcado por uma multiplicidade de assuntos e estilos, alimentados pelo ecletismo do gosto do seu editor. Segundo Luís Oliveira, o eixo comum a todos os livros da Antígona é o po si cio na mento de cada um deles num campo à par te da ordem social vigente, em desobediência e subversão, tal como a Antígona em relação a Cre onte.

Porque a ideia de Antígona, pegando na per-sonagem de Sófocles, é uma ideia de rebeldia, refractária. Nesse sentido, tem um projecto à parte do projecto social vigente. Por isso con-sideramos que todos os livros obedecem a es-sa ideia da Antígona e da sua desobediência a Creonte e não faz sentido compartimentá-los. Todos os livros obedecem a essa ideia do re-fractário, do que não se coaduna com as leis vigentes e com o quotidiano seco do mundo.

Pese embora o facto de a Antígona se co-locar deliberadamente numa posição exterior aos compartimentos estanques que a sociedade tenta impingir aos projectos e às pessoas que deles fa-zem parte, Luís Oliveira não vê a editora como um projecto «marginal».

Page 7: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Antígona

7

Nisso do marginal há uma grande confusão e até ambiguidade, ninguém é marginal a na-da, podemos é fazer escolhas. A nossa esco-lha é tentar criticar a sociedade existente, as suas leis, a re pressão, a supressão, a anulação. Supressão e anulação e também a invalidação que a sociedade faz geralmente das pessoas.

Um prefácio à editora: a livraria, a vida mundana e a declaração de guerra

Para perceber o projecto editorial da Antí-go na, façamos um breve regresso ao passado do seu editor. Antes de ser editor, Luís Oliveira esteve na guerra em Angola [6], foi funcionário da Direcção de Finanças em Santarém, operário fabril na Ale-ma nha [7], “engenheiro” e promotor de máquinas de produzir farinha a partir da vide em Almeirim e Alpiarça [8], dono e dinamizador de uma livraria em Santarém. A livraria Apolo foi o gérmen do que viria a ser o seu projecto editorial. Luís Oliveira ti-nha 29 anos e habitava já no seu pensamento um esquisso de uma editora chamada Antígona.

Simpatizava muito com a Antígona, a perso-nagem de Sófocles, enquanto simbologia da rebeldia. Esse sentido metafórico ficou sempre na minha cabeça, tal como ficou a ideia de que um dia teria a minha própria editora, para fa-zer a minha selecção de livros.

A Apolo, projecto que segundo as palavras do próprio Luís correspondeu a uma «fase da vida de fazer alguma coisa em Santarém», era uma li-

[6] «Fui mobilizado. Não fugi à guerra por-que não havia grandes possibilidades e, em boa verdade, nessa altura ainda estava muito cru na questão das minhas escolhas. Se calhar aos 20 anos ainda partilhava um bocadinho o sistema.»

[7] «Lembro-me de que estava nas Finanças em Santa-rém e resolvi ir para a Alemanha. Fui para lá sem nada. Não queria trabalhar para o Esta-do, primeiro, depois,

Page 8: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Hoje há Editoras

8

não arranjei empre-go. Pus-me a andar e

andei lá de fábrica em fábrica, com o meu

fraco inglês, mas com o meu bom francês, à procura de trabalho.»

[8] «Não era engenhei-ro, aprendi a trabalhar com as máquinas. Mas

os senhores latifun-diários só cumprimen-tavam um engenheiro.

Se fosse um ajudante não era cumprimen-

tado, era uma coisa quase humilhante.»

[9] «Presidente. Isto não quer dizer nada, porque eu não quero

ser presidente nem de retretes.»

[10] «Lembro-me de um dia aquilo estar

cheio até à rua e o Mário Viegas a decla-

mar um poema em que dizia “eles comem tudo, eles comem tudo

e não deixam nada, estamos todos em

cuecas”. Foi lá a PIDE e levou tudo, foi tudo de

vraria generalista.

Apesar de já fazer, de certa maneira, uma se-lecção de títulos, achava que tinha de vender ali na livraria aquilo que os outros escolhiam e aquilo que muitas vezes não me interessava. Mas eu não podia fazer censura, sou contra o proibido.

Os anos de Luís Oliveira no papel de livrei-ro foram anos de actividade frenética. A Apolo ser-via não “só” como espaço de divulgação e venda de livros. Era também agente dinamizador do encon-tro de pessoas com várias artes e variados discur-sos, através de projecções de filmes do cineclube de que Luís Oliveira era então “presidente” [9] ou conferências realizadas por Mário Viegas [10]. Em 1973, Luís Oliveira largou tudo o que tinha em braços e rumou a Lisboa. «Abandonei Santarém, abandonei a livraria, abandonei o casa-mento, tudo, rompi com tudo», conta. Então, com os bolsos cheios com o dinheiro conseguido pela venda da livraria e não se sentindo ainda prepa-rado para se assumir como editor, entrou numa espécie de estágio. Entre leituras e conversas, me-sas de café e discotecas, este foi, como lhe chama, o seu «mergulho psicológico».

Durante esses seis anos, até 1979, quando abro a editora, convivi muito em Lisboa com poetas e escritores. Havia um café que era o Monte Carlo, que albergava o Herberto Helder, o António José Forte, o Vergílio Ferreira, mui-tos escritores. E eu ia para ali à noite e dali partíamos para a vida mundana do Cais do Sodré, para o Bolero [11]... Foram seis anos sem

Page 9: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Antígona

9

enxurrada para iden-tificação. Menos eu, porque me recusei a fechar a livraria.»

[11] «O Bolero era um bar que não devem ter conhecido no Mar-tim Moniz. Era muito engraçado: por baixo era uma boîte e tinha um restaurante onde se servia bacalhau à Brás do melhor de Lisboa. Lembro-me de um dia não termos dinheiro, eu e o grupo, e aquilo era num primeiro andar, aí a três ou quarto metros de altura. E então um atirou-se pela janela e depois descemos todos pelos ombros, um grupo de sete, oito pessoas, e não pagá-mos. Não tínhamos mesmo dinheiro. Uma tarde, arranjámos dinheiro e fomos lá to-dos pagar ao homem, que até tinha achado muito graça, porque o empregado chegou lá com a conta e não viu ninguém.»

trabalhar: dançava e lia de noite e durante o dia dormia, até às quatro, cinco da tarde. O meu almoço era quase sempre uma sandes e cinco cafés.

Leu, então, centenas de livros, como aliás já havia lido em Santarém – «eram dois, três li-vros em cima da mesa de cabeceira e noites sem dormir, era jovem, era muito resistente» – e como havia lido também já durante a infância e a ado-lescência, passadas na aldeia de Chãos, concelho de Ferreira do Zêzere. Desta experiência primeira, recorda Luís Oliveira:

Estive na aldeia doente três anos, dos 14 aos 17. E nesse período li todos livros da escola primária, que eram 203, os que eram para crianças e os que eram para adultos. Ainda hoje me lembro de frases de alguns desses li-vros, apesar de os ter lido há quase 60 anos. Num deles, Corpos e Almas [12], o autor diz a determinada altura “a justiça é como um cin-to que aperta e alarga conforme as circuns-tâncias”. Continua a ser universal.

No meio do rodopio pela capital, Luís Oli-vei ra cruzou-se com o jornalista Torcato Sepúl-ve da. Torcato alugou um quarto em casa de Luís, juntos seguiam daí para as noites do Cais do Sodré e foi por essas bandas, iluminados pelas luzes dos bares Lusitano e Jamaica, embalados pelos seus ritmos, que conceberam o primeiro livro com se-lo Antígona. A história então contada é rocam-bolesca: numa mesa de um destes pontos de en-contro da noite lisboeta, os dois teriam dado de caras com um manuscrito singular, assinado por

Page 10: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Hoje há Editoras

10

[12] Maxence Van der Meersch. Corpos e Al-mas. Lisboa: Minerva, 1951. Trad. Cabral do

Nascimento [1.ª edição em Portugal]

[13] «Nunca demos especial importância à

cultura; pelo contrá-rio, servimo-nos dela

como simples ferra-menta para pensar

melhor a nossa vida, organizar os desejos e defender o instin-to. Seria, porém, um purismo infantil não

utilizar a arma do livro (uma mercado-ria como outra qual-

quer) para publicitar as experiências de

cor te radical com este mundo. Só realizan-do a mercadoria se pode superá-la e só

superando-a se pode realizá-la.» “Prefácio dos Editores” in Cus-

tódio Losa. Declaração de Guerra às Forças

Armadas e Outros Aparelhos Repressivos

do Estado. Lisboa: Antígona, 1979. p. 6

um tal Custódio Losa, major dissidente tornado porteiro de discoteca, e encabeçado por um lon-go e bélico título: Declaração de Guerra às Forças Armadas e Outros Aparelhos Repressivos do Estado. Resolveram editá-lo, incluíram até um fac-símile do referido manuscrito com a assinatura do autor a comprovar a sua veracidade, escreveram um pre-fácio [13] definindo o projecto que então se iniciava e apresentaram-no aos leitores. Estava lançado o gancho, despertado o interesse, iniciado um alvo-roço, que, durante meses, alimentou as páginas da imprensa:

Na altura andaram à procura do major, tele-fonaram-me várias vezes. Sobretudo um jor-nalista de um jornal que depois acabou, já não me lembro bem, Diário Popular ou uma coisa assim, telefonou-me várias vezes a ver se eu lhe apresentava o major. E eu disse “eu não co nheço, nós encontrámos o original dacti-lografado num bar, sei tanto como você, por-tanto não posso fazer nada”. E ele perguntava “mas ele nunca apareceu, nunca reclamou os direitos, nunca disse nada?”. “Nada, até hoje”. Foi assim uma coisa “quem é este gajo, este Custódio Losa, que é um militar e porteiro num bar e esquece-se de uma coisa destas, deixa is-to?” E eu dizia “olha, o Mário-Henrique Leiria diz que o acaso tem causas matemáticas mui-to precisas”. Dizia sempre isso: “Foi um acaso, encontrámos isto.”

Num pacto de cumplicidade, Torcato Sepúl-ve da e Luís Oliveira mantiveram a história durante três décadas e foi apenas numa entrevista conce-dida há um par de anos à revista, entretanto tam-

Page 11: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Antígona

11

[14] Mostra a ilustra-ção da p. 29, intitulada “perfil dos gover-nantes através dos tempos”, onde a figura de um homem pré- - his tórico é colocada lado a lado com uma fotografia de Carlos Mota Pinto, primeiro--ministro na altura.

[15] Exibe na p. 43,

bém encerrada, Os Meus Livros, que o editor da An tígona revelou, afinal, que Custódio Losa era, na verdade, uma fusão Torcato-Luís. «O Losa foi um nome escolhido pelo Torcato e Custódio fui eu que escolhi, porque era um tio meu», elucida Luís Oliveira, apontando para a tal assinatura fac-simi-lada no livro e revelando com toda a naturalidade «isto é a minha letra, é a minha assinatura». O editor admite que o texto tem «algumas deficiências de escrita». Mas é, ainda assim, um ma nifesto da sua postura perante o mundo, uma to mada de posição que viria a espelhar-se em to-dos os textos por ele editados, mantendo-se, até hoje, absolutamente actual. Poderia a editora – e este texto – ter surgido três anos antes ou três anos depois? Folheando as 50 páginas do livro, Luís Oliveira responde:

Não. Não poderia ter surgido três anos antes, porque eu não me encontrava intelectual-mente preparado. Três anos depois poderia ter surgido, mas eu achei que era aquele o momento, porque era a seguir ao 25 de Abril. Temos isto [14]. E isto [15], uma fotografia da mu lher do Eanes, que na altura era Presidente da República. Isto é uma obra de arte, esta mu-lher. Nós gozávamos com as mulheres deles...

A competir com a irreverência do texto está a própria irreverência da capa [16], ocupada frente e verso por uma fotografia de dois militares assas-sinados num carro, que, tal como a caraça e o no-me Antígona, fazia parte do baú onde Luís Oliveira ia guardando o “enxoval” da editora que estava prestes a nascer. «Esta fotografia foram uns gene-rais que foram mortos num atentado em Espanha

Page 12: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Hoje há Editoras

12

com uma fo to grafia de Manuela Eanes

legendada “as compa-nheiras deles”.

[16]

[17] Giorgio Cesarano. A Insurreição Erótica.

Lisboa: Antígona, 1979. Trad. Abel

Prazer

[18]

durante o franquismo. Eu ainda nem sequer tinha a editora e achei que esta fotografia um dia havia de servir para qualquer coisa». Sobre um dos cor-pos, foi desenhada uma cruz invertida, materiali-zada em buracos circulares, que deixam entrever sob ela a página vermelha do seu interior.

A afirmação da identidade: a linha gráfica, a tradução, a selecção dos textos a publicar

A capa da Declaração de Guerra não foi desenhada por Eduarda Feio e a de A Insurreição Erótica [17], de Giorgio Cesarano, segundo título lançado pela Antígona, também não. Mas, a partir de então – e durante 20 anos –, seria ela, pintora, licenciada em Belas-Artes, «companheira de vida e de aventura» de Luís Oliveira, que assumiria a res-ponsabilidade pela afirmação de uma identidade da editora que se coseu também com linhas gráfi-cas. Logo a começar pelo formato dos seus livros: quase todos eles têm uma dimensão de 13 cm X 21 cm, apenas os livros maiores surgem com 17 cm X 24 cm. «Mesmo sem colecções», sublinha Luís Oliveira, «realmente o formato deu personalidade à Antígona». Quanto ao design em si, mais do que o rigor gráfico, o que se procurou foi a pulsão afec-tiva, o risco, a força:

No caso desta capa [18], eu disse-lhe “quero uma coisa de comer crianças”. E ela arranjou este Saturno a devorar a criança que mete me-do às mães. Ela fez capas muito bonitas. Uma por exemplo é o Oskar Panizza. Nunca viram? Psychopathia criminalis [19]. Mas quando a editora fez 20 anos ela disse “já não domino os

Page 13: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Antígona

13

Luís Oliveira (org.). A Promessa de Antígona. Lisboa: Antígona, 1989 [livro-souvenir lançado para celebração dos 10 anos da editora]

[19]

Oskar Panizza. Psy-chopathia Criminalis. Lisboa: Antígona, 1989. Trad. Cristina Terra da Motta / José M. Justo

[20] George Orwell. Mil Novecentos e Oitenta e Quatro. Lisboa: Antí-gona, 1991. Trad. Ana Luísa Faria

[21]

programas”, ainda trabalhava com letraset, isto era tudo colado. Hoje trabalhamos com um designer [Rui Silva, da Alfaiataia], que tem feito um excelente trabalho. O Mil Novecentos e Oitenta e Quatro [20] agora tem uma capa moderna. A Eduarda tinha feito aquela com um soldado da Guerra do Golfo que parece que tem um tanque na cabeça, mas são uns óculos para a escuridão, aquilo [21] mete medo. Estão sempre a pedir essa edição. Esta capa [22] gra-ficamente tem erros, isto seria enquadrado de outra maneira, mas tem uma força...

Um dos pormenores que salta à vista nas capas da Antígona é a inscrição do nome do tradu-tor. O destaque dado a quem transporta uma obra da sua língua de origem para o português é, aci-ma de tudo, uma forma de dar valor ao trabalho do tradutor, colocando em evidência a importân-cia do seu papel na edição do livro tal qual ele nos chega às mãos.

Alguns editores acham que o tradutor é uma escumalha, não tem interesse. Ora, muitas ve-zes aqui eu apercebo-me de que os tradutores trabalham tanto como o próprio autor. Uma tradução exige uma reescrita do livro.

Dada a importância dos “tradutores-auto-res”, Luís Oliveira escolhe a dedo as mãos nas quais deposita os livros da Antígona. Da sua rede de con-fiança fazem parte alguns amigos que já colaboram com a editora há anos. É o caso de Manuel Portela. Professor, poeta e tradutor, Manuel Portela iniciou a sua colaboração em 1994.

Page 14: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Hoje há Editoras

14

[22] De A promessa deAntígona

[23] William Blake. Cantigas da Inocên-

cia e Experiência. Lisboa: Antígona,

1994. Trad. Manuel Portela

[24] Manuel Portela. O Comércio da Lite-

ratura. Lisboa: Antígona, 2003

[25] AA.VV. PULLLLLLLLLLLLL

Poesia Contempo-rânea do Canadá. Lisboa: Antígona,

2010. Trad. John Ha-velda, Isabel Patim e

Manuel Portela

Propus e publiquei na Antígona no final des-se ano a primeira versão da minha tradução da obra de William Blake, Songs of Innocence and of Experience [23], cuja publicação ori-ginal ocorrera 200 anos antes, em Londres. Foi a primeira tradução integral da obra em Portugal.

Desde então, revela-nos via e-mail, tem mantido uma relação de estreita proximidade com o projecto editorial de Luís Oliveira, tendo traduzido mais de uma dezena das obras que fa-zem hoje parte do catálogo da Antígona tal como o conhecemos. Nesta casa publicou ainda o tra-balho ensaístico O Comércio da Literatura [24], foi co-autor da antologia PULLLLLLLLLLLLL Poesia Contemporânea do Canadá [25], estiveram a seu cargo apresentações e lançamentos de livros da editora, sugere livros para publicação, escreve regularmente notas de leitura a livros que Luís Oliveira pondera publicar mas a respeito dos quais prefere ter primeiro uma opinião dos colaborados em quem confia. Usámos dos nossos recursos pa-ródicos, no bom sentido – se é que mau sentido existe –, e perguntámos a Manuel Portela se, com tão volumosa e variada colaboração, se sentia um «militante de base da Antígona». Como resposta, obtivemos a sua visão sobre o que é a editora:

Não sou propriamente militante – essa pala-vra tem uma implicação de cegueira sectária que é contrária ao projecto da Antígona. A Antígona tem expressão num catálogo de li-vros e nas ideias e formas desses livros. Esse catálogo é o resultado cumulativo de afinida-des e trocas de ideias entre um conjunto de

Page 15: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Antígona

15

pessoas que, ao longo dos anos, colaboraram com o editor, Luís Oliveira. Não há um progra-ma pré-definido, mas sim uma ideia constante de interpelação do presente e do passado e de conhecimento da nossa condição no mundo. Essa interpelação é feita através de múltiplos autores nos mais diversos géneros (ensaio, ro-mance, conto, poesia) escritos em muitas lín-guas. Esse corpo de vozes e de textos tomou forma progressivamente num conjunto de li-vros que têm um elemento em comum: a cren-ça na força do livro como instrumento essen-cial do pensamento e da experiência humana.

Esta força do livro referida por Manuel Por-te la representa, na Antígona, uma força particular. Se pensarmos sobre o assunto, apercebemo-nos de que há livros no mercado que continuariam a existir mesmo que em determinado momento não tivessem sido publicados por determinada edi-tora. Uma qualquer outra editora inclui-los-ia no seu catálogo, pelos mais variados motivos, no ins-tante imediatamente a seguir. Quando falamos da Antígona, falamos também de livros que, se não ti-ves sem sido aqui publicados, podiam muito bem não circular hoje em Portugal. Questionado sobre a importância da editora na materialização de vá-rios dos trabalhos da sua autoria, Manuel Portela afirma:

A sua publicação surgiu, desde o início, asso-ciada à Antígona, quer pela natureza dos tex-tos, quer pelo papel que gradualmente fui as-sumindo como tradutor e autor. Ou seja, elas já foram pensadas, de certo modo, como obras para o catálogo da Antígona. Atendendo ao

Page 16: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Hoje há Editoras

16

baixo valor de mercado dos títulos que refe-re, provavelmente não teriam sido publicadas do mesmo modo por outras editoras. Um bom exemplo disso é a antologia de poesia cana-diana, cuja produção foi complexa e morosa, e que dificilmente teria encontrado outro editor.

Outra das pessoas da esfera de confiança de Luís Oliveira é Maria de Lurdes Afonso, que nos res-pondeu também a algumas perguntas por e-mail. Desde Março de 2011 a desempenhar funções de assistente editorial na Antígona, Lurdes con ta-nos como começou a sua relação com a editora.

Acompanhava o catálogo da Antígona há vá-rios anos e considerava esta editora uma ex-celente escola de edição. Quando soube que a Antígona precisava de uma assistente edi-torial, trabalhava como copywriter numa agência de publicidade, mas tinha já muitas saudades do mundo da edição; por isso, não hesitei em enviar o meu currículo e uma carta de motivação.

As suas tarefas estendem-se por todo o processo de concepção e produção do livro, desde o primeiro momento, quando é ainda apenas um objecto hipotético, até ao último momento, do lan-çamento, no qual se dá por inaugurada a viagem do livro até ao seu leitor.

As minhas funções prendem-se sobretudo com o trabalho de coordenação editorial, com o acompanhamento do livro ao longo de todas as etapas e de todos os intervenientes: numa fase inicial, a elaboração de pareceres de lei-

Page 17: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Antígona

17

tura, a compra de direitos (quer a agências e a editoras estrangeiras, quer directamente aos autores) e a contratação de obras; numa segunda fase, o acompanhamento do processo de tradução, revisão e concepção gráfica do li-vro (confiados a colaboradores externos); por fim, a elaboração de materiais promocionais (do texto de contracapa ao press release) e a divulgação do livro na imprensa, no website da editora e, recentemente, nas redes sociais. A organização dos lançamentos é também uma tarefa muito aliciante (e que exige vários Lexotans).

Lurdes Afonso dá-nos ainda pistas sobre o funcionamento de uma editora independente por oposição ao funcionamento das grandes casas e conglomerados editoriais.

Ao invés das grandes editoras, onde o traba-lho é geralmente muito compartimentado, na Antígona há uma grande concentração de funções em poucas pessoas que se desdobram em várias tarefas. Tem-se uma visão bastante completa e há uma grande participação, mui-to gratificante, em todas as fases do processo editorial.

Percebemos através do relato de Lurdes que o dia-a-dia de quem trabalha numa editora como a Antígona é um caminho atribulado pe-la dinâmica imprevisível entre os momentos de maior stress e os momentos de prazer e realização profissional – e também pessoal, se se acredita no projecto em que se trabalha, como é o caso con-fesso de Lurdes. Da sua experiência na Antígona,

Page 18: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Hoje há Editoras

18

[26] Anselm Jappe. Sobre a Balsa da Me-

dusa – Ensaios acerca da Decomposição do Capitalismo. Lisboa:

Antígona, 2012. Trad. José Alfaro

[27] Eudora Welty. As Maçãs Douradas. Lis-boa: Antígona, 2013.

Trad. Diana V. Almeida

[28] «Por graça, gos-taria de referir um leitor fiel de Nisa e

outro dos arredores do Porto (mantenho

o anonimato, mas en-vio-lhes saudações

refractárias caso pas-sem os olhos por estas linhas algum dia; eles

a assistente editorial destaca dois momentos em particular:

No ano passado, a vinda de Anselm Jappe ao nosso país, onde iria lançar Sobre a Balsa da Medusa – Ensaios acerca da Decomposição do Capitalismo [26], teve de ser adiada à úl-tima da hora devido a uma greve inesperada de controladores aéreos. Os convites tinham sido enviados, o lançamento fora divulgado, havia entrevistas agendadas, etc. Felizmente, conseguimos improvisar um sistema de tele-conferência em contra-relógio, num verdadei-ro sprint contra os imponderáveis desta vida. Um momento que me deu um prazer especial: a belíssima confissão amargurada de Hélia Correia, que apresentou recentemente As Maçãs Douradas [27], no lançamento do livro. Ouvi-la dizer que tinha odiado o livro devido à terrível dor de cotovelo que sentiu ao ler as linhas da Eudora Welty é algo impagável.

Lurdes Afonso acrescenta ainda à sua lista afectiva alguns momentos do trabalho quotidiano que diz serem «sempre muito especiais»: «o con-tacto com os leitores fiéis da Antígona nas feiras do livro, nos lançamentos e, até, por telefone [28].» Em 34 anos da editora, em 225 títulos pu-blicados, a verdade é que – surpresa, ou não – não existe um único livro no catálogo da Antígona que tenha resultado de uma proposta [29] vinda de fo-ra do seu núcleo de confiança – e que inclui, além de Manuel Portela, Lurdes Afonso e Eduarda Feio, também José Miranda Justo e Carlos da Fonseca, que foi professor na Universidade de Paris, inves-tigador na Sorbonne e há quatro décadas amigo

Page 19: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Antígona

19

de Luís Oliveira. No espaço dedicado às perguntas frequentes, no site da Antígona, é aliás deixado um alerta de inspiração bíblica: «É mais difícil um au-tor entrar na Antígona do que um camelo passar pelo buraco de uma agulha». Resultado: uma forte coerência [30] de conjunto, com razões por detrás de cada escolha que, muitas vezes, são mais de na-tureza olfactiva que objectiva.

Se me perguntar por que é que eu escolhi de-terminado livro, às vezes não sei. É um chei-ro, um instinto. O que me interessa é a inteli-gência vital, inteligência que exige uma com-preensão essencial do mundo no sentido do Homem. Como dizia o Marx, ser radical é ir à raiz das coisas; na raiz está o Homem. Se uma pessoa tem uma inteligência vital, está na raiz das coisas, está no Homem. Se não está e está na empresa e no dinheiro e no espectáculo e nisso tudo, para mim não é uma inteligência vital. Apesar de tudo é inteligência, mas terá outra classificação. Portanto, a minha, fiquem a saber, é instintiva, que é a mesma coisa que ser vital. É talvez essa inteligência que me guia pelos livros, muitas vezes eu não sei... não sei justificar.

E quanto ao facto de serem escassos os nomes de autores portugueses editados pela Antígona, a justificação será mais racional? O es-critor americano Phil Mailer [31] avança uma hi-pótese: «É verdade que não há em Portugal uma tradição literária subversiva e por isso será difícil descobrir autores que se integrem neste projecto voltado para a liquidação social». Luís Oliveira co-menta:

sabem quem são!), que todos os meses nos ligam para saber se há um catálogo no vo em vista ou para estarem informados das novidades. Outros há, nas feiras do livro, que apontam para um título e excla-mam para os amigos: “Aquele livro mudou a minha vida!” Haverá coisa mais gratificante do que poder contri-buir de alguma forma para mudar a vida das pessoas?»

[29] «Mas não estou a dizer para não apresentarem uma proposta. Podem mandar para aí uma proposta.»

[30] «Coerente, sabe de onde vem? Sabe o sentido etimológico? Vem de coração. Eu tenho coração, sou coerente.»

[31] Phil Mailer. “An-tígona vista de Nova Iorque” in A promessa

Page 20: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Hoje há Editoras

20

de Antígona. Lisboa: Antígona, 1989. p. 73

[32] Étienne de la Boétie. Discurso Sobre a Servidão Voluntária.

Lisboa: Antígona, 1986. Trad. Manuel

João Gomes

[33] Fernando Pessoa.O Banqueiro Anarquis-

ta. Lisboa: Antígona, 1981

Eu próprio tenho dito isso. Não há muito, não. Temos o Manuel Laranjeira e poucos outros autores. Mas não há uma tradição subversi-va, há desvios... O Eça de Queirós era, de certa maneira, subversivo na linguagem, mas não era um subversivo. O Camilo também não era, nem o Lobo Antunes, nem ninguém des-sa gente. E quando chegamos a França temos um Jean Meslier, um La Boétie, um Montaigne, por aí fora, nunca mais acaba, eram de fac-to subversivos. Quando vemos ainda hoje o Discurso Sobre a Servidão Voluntária [32], com 500 anos, do La Boétie, há uma altura em que ele diz “é preciso libertarmo-nos dos nos-sos libertadores”. Isto é uma frase universal, é a pedra de toque para o conhecimento da humanidade. As pessoas não se libertam dos pais, não se libertam dos namorados, das na-moradas, dos chefes, não sei quê, não se liber-tam dos libertadores, não estão libertas. Estão influenciadas e manipuladas.

Existe, pois, pouco mais de uma dezena de nomes portugueses entre os quase 150 publicados pela Antígona, mas é um deles que está na base de um dos seus maiores êxitos editoriais e de uma das mais surpreendentes histórias que pontuam a sua história: Fernando Pessoa e o seu O Banqueiro Anarquista [33], editado sem licença e distribuído sem distribuidora, em 1981. Na altura, os direitos da obra do poeta da Tabacaria estavam nas mãos da editora Ática, da fa mília Gonçalves Pereira, advogados e professo-res na Faculdade de Direito de Lisboa, que terão olhado para este como o “patinho feio” dos textos de Pessoa e não o publicaram – «os gajos eram de

Page 21: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Antígona

21

[34] «Hoje são pla-fonds. A Fnac se comprar 500 livros quer mais dois por cento, mas continua esse vício. Se comprar 10 automóveis não lhe dão nenhum.»

direita e aquele livro não lhes convinha porque pu-nha o Fernando Pessoa anarquista», justifica Luís Oliveira. «Um dia digo assim “vou publicar isto, sem direitos, sem nada, a ver o que acontece”». Dito e feito. Os senhores das leis não demoraram na res-posta e enviaram a tudo quanto era distribui dora uma carta com promessa de processo caso o livro fosse levado até às livrarias. «E se nós fôssemos distribuir o livro? Vamos de carro por aí acima...», sugeriu então Eduarda Feio. Sugerido e feito:

E foi fantástico. Começámos por aí fora, em Coim bra sei que vivemos quase oito dias no Palácio do Buçaco, fizemos lá o Natal de 1981. Na altura, era o 12-13, ou seja, em ca-da 12 livros comprados havia um oferecido [34]. Quando chegámos a Coimbra, um livreiro disse “quero 100” – entregava 108 e factura-va 100 e pagavam logo, com medo de que o livro esgotasse, porque eu anunciei só 1000 exemplares e foi o milagre dos pães. A tipo-grafia que me fazia os livros chegou a estar a trabalhar dias inteiros só a fazer reedições. Chegámos a ter os livros na mala do carro com notas de 1000 escudos e 500 escudos lá pelo meio, nem sabíamos que dinheiro lá esta-va. Vivemos à grande e à francesa.

Aventuras à parte, havia ainda que prepa-rar o embate com os legítimos detentores dos di-reitos de autor e foi com essa intenção que Luís Oliveira decidiu distribuir o livro também pelas li-vrarias da Ática, que não hesitaram em comprá-los e, mais do que isso, em colocá-los em destaque nas suas montras. «Eles estavam a ganhar dinheiro com a ilegalidade», salienta o editor. E verdade é

Page 22: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Hoje há Editoras

22

que a quezília teria o seu ponto final num simples telefonema:

São oito da manhã, ainda estava a dormir, telefona-me o senhor Gonçalves Pereira. “Eu gostava de falar com o senhor Luís Oliveira”. “Sou o próprio”. “Isto aqui assim é o Gonçalves Pereira, o detentor dos direitos do Pessoa, is-to assim assim, você fez isto, vou-lhe meter um processo-crime”. E eu disse “não tem ne-nhum problema, mais vendo; se isso for proi-bido mais vendo”. “Pois, mas ninguém lhe vai distribuir o livro, já mandámos cartas para as distribuidoras”. Já nós o estávamos a ven-der directamente. E eu disse assim “olhe, não faz mal, se for preciso eu peço ao meu amigo Kadafi que mande cá uns homens para ajudar a distribuir o livro”. Passou-me aquela, po-dia ter falado no Jacques Mesrine ou noutro qualquer. Não sei se aquilo bateu ali na ca-beça ou se o homem pensou – já era velhote – “é pá, estou metido com piratas”. Até hoje, vendi milhares e milhares e ainda continua a vender. Posso vendê-lo agora a cinco euros. O Banqueiro foi um banqueiro que me pôs a vi-ver muito bem.

O Banqueiro Anarquista e O Papalagui [35]

têm sido os grandes sustentáculos das contas de uma editora que pouco liga a contas – «gasto tu-do o que tenho e o que não tenho», diz o editor. Curiosamente, em 2012, Fernando Pessoa voltou a ser um dos êxitos de vendas, agora com Contos Completos [36], segundo título de Pessoa no catá-logo da Antígona. Caminhada [37], de Henry David Thoreau, com tradução de Maria de Lurdes Afonso

[35] O Papalagui – Dis-cursos de Tuiavii, chefe de tribo de Tiavéa nos mares do Sul. Lisboa:

Antígona, 1982, Trad. Luiza Neto Jorge

[36] Fernando Pessoa. Contos Completos.

Page 23: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Antígona

23

– terceiro livro do autor americano editado pela Antígona, depois de Walden [38] e A Desobediência Civil [39] – foi outro.

A chegada do livro ao leitor: a publicidade, as críticas, os prémios

Apesar de O Papalagui já ter tido várias rei-mpressões, a informação que figura nos últimos exemplares publicados fica-se pela referência à 7.ª edição. Falta de rigor? Decisão ponderada, explica Luís Oliveira, e que espelha a relação que a editora quer – e aquela que não quer – estabelecer com os seus leitores:

Não quero que o leitor chegue ao livro através de uma informação que o aliene, porque há ainda gente que chega a uma livraria, vê “500 000 exemplares vendidos” e compra o livro. E um leitor que chega a um livro através dessa informação, ou da “20.ª edição”, já está alie-nado. Chega ao livro não a partir de uma in-formação correcta do que ele é, mas por uma imposição da própria publicidade. Sou contra isso, não faço publicidade.

Quanto à atenção que a imprensa dedica aos seus títulos, Luís Oliveira assinala que, dos cer-ca de 12 livros que a Antígona edita anualmente, pelos menos metade tem recensões nas publica-ções da especialidade [40]. Contudo, isso não o en-tusiasma muito.

Já não me interessa o que os jornalistas dizem sobre os livros e já não preciso, em boa ver-

Lisboa: Antígona, 2012

[37] Henry David Tho-reau. Caminhada. Lis-boa: Antígona, 2012. Trad. Maria Afonso

[38] Henry David Tho-reau. Walden – ou a vida nos bosques. Lis-boa: Antígona, 2009. Trad. Astrid Cabral

[39] Henry David Tho-reau. A Desobediência Civil – seguido de Defesa de John Brown. Lisboa: Antígona, 2005. Trad. Manuel Jorão Gomes

[40] «Nos últimos dois, três anos abrandou, porque não há revis-tas literárias, não há suplementos... Um suplemento traz três

Page 24: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Hoje há Editoras

24

dade. Não vejam isto como uma vaidade, mas como uma forma orgulhosa de falar – e o or-gu lho é uma qualidade superior do espírito, a vaidade é uma qualidade inferior, acho eu, é uma definição minha. Às vezes é melhor não es creverem do que escreverem, porque dizem asneiras e não percebem muito bem os livros. O jornalista que é efectivo não lê o livro, lê a no ta de badana. A pessoa que está fora, que é freelancer e que lê os livros, às vezes faz tra-balhos muito interessantes. Sobre o Platónov [41] saiu uma recensão de um crítico, o Rui Catalão, que leu de facto o livro e leu-o duas vezes.

Menos ainda, entusiasmam-no os prémios. Em 2010, os Prémios de Edição Ler/Booktailors re solveram atribuir-lhe uma distinção Especial Car reira, assinalando os 30 anos cumpridos da fun-dação da Antígona e querendo homenagear a «per-sistência e dedicação deste grande editor», lê-se na nota [42] publicada à data. Luís Oliveira recusou.

Eu não fui lá, nem quis saber disso para na-da. E digo-lhe: para mim a Booktailors é uma banalidade de base, não tem grande prestígio nem têm grande interesse os prémios deles. Mas nenhum prémio tem grande interesse. Mesmo os gajos que vão receber o Nobel não são grande coisa. Porque houve muitos que recusaram. O Sartre, por exemplo, recusou. E o homem não era grande coisa, foi à Rússia e disse que aquilo era um paraíso. Muitos recu-saram o Nobel da Literatura, disto e daquilo. Os prémios são sempre uma avaliação. E uma avaliação, seja na vida, seja na literatura, é

livros no meio de 1000 que se publicam

por mês, ou 500, não faço ideia.»

41] Andrei Platónov. A Escavação. Lisboa:

Antígona, 2011. Trad. António Pescada

[42] «Há 30 anos, Luís Oliveira fundava a

Antígona – Editores Refractários, um

projecto independen-te e contestatário que

pretendia lutar sem-pre contra a corrente,

publicando o que de melhor houvesse para publicar. Três décadas

depois, a Antígona e Luís Oliveira man-

têm-se iguais, com a mesma irreverência

Page 25: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Antígona

25

e qualidade. Este prémio pretende homenagear a per-sistência e dedicação deste grande editor em publicar obras essenciais para a cul-tura literária, segundo inalienáveis princípios de qualidade.»

[43] «A Antígona não aspira conquistar um lugar, modesto que fosse, no mundo das artes e das letras, nem na história assaz “res-peitável” da edição. Se por infelicidade um panteão lhe ofereces-sem, o único que lhe conviria seria o dos grandes cataclismos, ao lado dos terramo-tos ou do da peste. Da peste; sem dúvida!» pp. 10-11

[44] Entretanto, até à data de redacção deste texto, foram lançados mais três.

sempre uma coisa duvidosa. Para haver uma avaliação é preciso haver quem avalie. E os que avaliam têm o quê? Dotes superiores aos outros? Têm qualidades especiais?

Até o próprio título de “editor” tem alguma dificuldade em aceitar, preferindo antes afirmar-se como alguém que gosta de «certos livros», que os selecciona e que os dá a ler – sem grande von ta de de fazer parte desse tal “mundo editorial” dos pré-mios, das críticas, da publicidade do livro. Aliás, já no prólogo do acima citado A promessa de An tí go-na, Luís Oliveira o afirmava [43]. Agora, reitera:

Alguns editores são gelatina, não interessam nada. São raros os editores corajosos. A maior parte publica livros só para ganhar dinhei-ro, muitas vezes não os lêem. No outro dia foi entrevistado um editor na televisão que dizia que tinham tido dois êxitos naquele ano: de um lembrava-se, do outro não. Seria impossí-vel na Antígona, porque eu passo uma manhã a colocar uma vírgula, como dizia Oscar Wilde, e uma tarde para a tirar. Nos 222 [44] livros que publiquei, sei onde está a vírgula a cortar o predicado do sujeito e, mesmo em livros com 20, 30 anos, se forem reeditados, eu sei onde está a gralha, sei onde está o verbo mal colo-cado. Vivo dentro e para os livros. Os meus.

A teia textual: as palavras de ordem e as palavras desordeiras

Muitos são os slogans que, ao longo do tem-po, têm alimentado a teia de citações que serve de

Page 26: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Hoje há Editoras

26

apresentação da Antígona ao mundo. Uns são afo-rísticos, outros são sarcásticos, todos reflectem o projecto editorial da Antígona: o que é e como é. O capital social da empresa, por exemplo, recusa--se a vir expresso em números. Em todos os docu-mentos onde é referido encontramos a inscrição «enquanto existir dinheiro, nunca haverá bastante para todos.» Claro está, esta frase capital só surge mes mo voltada para o social, isto é, para as pes-so as, para os leitores que seguem o trabalho da Antígona. Para os bancos, o capital é de 5000 eu-ros. Seria caricato ir ao balcão de um banco afir-mar que todo o dinheiro do mundo não é suficien-te para todas as pessoas do mundo. Seria abusivo até, depois de ter tido a Antígona uma ajuda tão grande por parte de um determinado banqueiro, como vimos atrás. Outro elemento que ironicamente tem fun-cionado como ajudante da Antígona no seu trajec-to actual é o sistema capitalista, como faz notar Luís Oliveira:

Nas crises do capitalismo a Antígona vende muito mais. Quer dizer, é anti-capitalista e alimenta-se das crises capitalistas. É curioso. Neste momento nós vendemos muito. Nunca tive tanto dinheiro como agora.

Por que motivo isto acontece? Talvez por-que a Antígona, não tendo respostas absolutas e universais sobre a sociedade em que vivemos para dar aos seus leitores – talvez porque as respostas absolutas e universais não existem –, tem «livros que pelo menos podem dar uma compreensão do mundo às pessoas». Ainda assim, no meio do sucesso que a edi-

Page 27: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Antígona

27

tora tem vindo a ter e que tem permitido o aumen-to do número de livros publicados por ano, há mo-mentos menos bons em termos de negócio. Mas Luís Oliveira encara-os com naturalidade, sem lhes dar grande importância, eventualmente por saber que nem sempre o facto de um livro não ser vendido está relacionado com o facto de ser um bom ou um mau livro. O caso de Memória [45], de Jean Meslier, é disso exemplo.

O Jean Meslier era um padre que dizia missa durante o dia e que durante a noite escrevia que aquilo era tudo mentira. Era mentira a Igreja, a religião, os sermões. Ia dar a missa e dizer no seu discurso o que a Bíblia lhe ensi-nou. E depois ia para casa e escrevia sobre a miséria em que a sociedade ainda vivia. Falava de si próprio, explicava que havia ali um intui-to para ganhar a vida e que escreveu o que escreveu no testamento, umas 1000 páginas ou mais, para si próprio. Andei anos, sempre que ia a Paris, a procurar aquele original. Até que um dia encontro Memoires, Jean Meslier, um resumo. Não vendemos o livro. Coloquei-o há pouco tempo em saldo. E mesmo em saldo não está a vender. Mas é praticamente o úni-co desaire que temos na Antígona. E não es-tou arrependido de o fazer! Porque ele agora vai para aí para os saldos e alguém há-de ler aquilo. Aquilo é uma coisa [46]...

O arrependimento parece ser um sentimen-to demasiado católico e Luís Oliveira não se arre-pende de ter publicado nenhum dos livros que fa-zem parte do catálogo da Antígona. Uma vez mais, parece ficar clara a ancoragem do projecto edito-

[45] Jean Meslier. Me-mória. Lisboa: Antí-gona, 2003. Trad. Luís Leitão

[46] «Ele tem uma frase em que diz que a humanidade será livre quando o último pa-dre for enforcado com as tripas do último rei, ou uma coisa assim.

Page 28: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Hoje há Editoras

28

rial da Antígona à figura do seu editor, aos seus gostos, aos seus interesses, às suas inquietações. Pelo canto superior direito do site da An tí-go na desfilam as linhas de força da editora, verti-das por citações dos autores que publica. George Orwell («Nunca se pode ter grande coisa em troca de coisa nenhuma»), Jacques Rigaut («Não há ra-zões para viver, mas para morrer também não»), Sade («Deus é o único equívoco que eu não pos-so perdoar ao homem»), Raoul Vaneigem («O tra-balho foi aquilo que o homem achou de melhor pa ra nada fazer da sua vida»), Georges Bataille («Proibição não significa forçosamente abstenção, mas a sua prática sob a forma de transgressão») e La Boétie («É muito próprio do vulgo descon-fiar de quem o estima e confiar nos que o enga-nam») são alguns deles. A que se somam muitos outros, como Henry David Thoreau, Eudora Welty, Reinaldo Arenas, Evgueni Zamiatine, Karl Kraus, Stig Dagerman, Jack London, William Blake, Guy Debord, Albert Cossery, Marquês de Sade ou To-más da Fonseca, alguns nunca antes publicados em Portugal, todos encontrando na Antígona a edi tora que subscreve cada uma das suas palavras, destaca Lurdes Afonso. Para a assistente editorial da Antígona é esta a postura – «a total identifica-ção entre a filosofia da Antígona e os livros que pu-blica, sem desvios» – que faz a editora distinguir--se das demais.

Além de um vocabulário muito próprio de contestação, inconformismo e irreverência que ressalta nos contactos com o exterior e em todas as actividades da editora – e que forma já a imagem de marca da Antígona –, a qua-lidade dos livros publicados (os tais livros que

Os fenómenos do Maio de 68 desviam para “nós seremos livres

quando o último buro-crata for enforcado

nas tripas do último tecnocrata”.»

Page 29: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Antígona

29

mudam vidas), um catálogo ultracoerente, a linha editorial intransigente que não cede a modas de mercado e que não trata os leito-res como energúmenos, o posicionamento no mundo, o programa ideológico-editorial (a editora com uma palavra a dizer, que «em-purra as palavras contra a ordem dominan-te» e que subscreve cada linha que publica), o carisma e o empenho do editor, a qualidade do trabalho de edição e de concretização grá-fica do livro, aspectos que se traduzem em lei-tores muito fiéis que sabem com o que podem contar mal folheiam um livro da Antígona.

E na opinião de Manuel Portela, os leitores são um dos dois elementos que marcam a impres-são digital da Antígona.

Do lado da produção, é o facto de os seus au-tores, tradutores, organizadores, prefaciado-res, revisores e designers se identificarem com uma ideia de livro como projecto de conheci-mento do mundo e como modo humano de co-municação. Do lado da recepção, é o facto de uma grande parte dos seus leitores reconhe-cerem nos livros (isto é, na unidade concep-tual e material que a palavra livro designa) a mesma ideia de livro como projecto de conhe-cimento e de existência. Isto significa que os livros são produzidos por quem os faz e lidos por quem os lê como parte de um todo maior do que o objecto singular que naquele mo-mento têm nas mãos. É a existência desse ho-rizonte partilhado que garante a intensidade da atenção que define um livro da Antígona: cada projecto de livro é também um projecto

Page 30: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Hoje há Editoras

30

de mundo e de existência humana no mundo.

Uma existência que se quer subversiva, de-sobediente, crítica, rebelde, refractária, como não se cansa de sublinhar Luís Oliveira. E, dessa forma, livre – até no modo como se aceita um convite para um lançamento de livros. É que na Antígona, aí co-mo em tudo, até no nosso texto, «a entrada é livre e a saída também».

Page 31: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

MATÉRIA-PRIMASem mAtériA-PrimA não Se Põe mãoS

à OBRA

A editora Matéria-Prima, que alia o lado mais tradicional da edição à gestão moderna e profissional, foi fundada em 2010 por Liliana Valpaços e Inês Queiroz. Dedica-se sobretudo à publicação de livros de não-ficção – que vão da política à culi-nária, passando pela saúde, psicologia e história, com especial foco nos autores nacionais.

Ágata Xavier

Page 32: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-
Page 33: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Matéria-Prima

33

«Matéria-Prima»: s.f. Substância essencial à fabricação de um produto, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

*

Fomos recebidos pela Liliana, responsável editorial, e pela Leonor Viana, que coordena a comunicação e divulgação. O terceiro elemento, a Inês estava de licença de parto quando começámos a entrevista e em trabalho de parto quando a ter-minámos. No final do dia, a Matéria-Prima ganhou mais um nome: Alice.

Antes do verbo, os números. 2010 é o ano do lança-mento da editora; 47 são os livros que constam do catálogo; 30 são os metros quadrados onde tudo acontece; 10, tal como em Downing Street, é o lote que alberga pessoas ilustres; 5 (de Outubro) é a rua lisboeta onde se instalam e três não é apenas a conta que Deus fez mas também o número de pessoas que compõe a Matéria-Prima.

Agora o verbo. Na altura da entrevista, «acarditar» era a acção do dia. «Já assinou pelo Benfica?», ouvia-se uma cabeça por trás do monitor perguntar. «Diz aqui que sim», respondia a outra. «Espera, afinal não está confirmado» (sus-piro). Bolas, que é sobre bola que recai o lançamento do dia: a biografia de Jorge Jesus. E as últimas semanas têm sido com-plicadas não só para o Benfica, que ficou “em primeiro dos úl-timos” de tudo o que participou, como para a Matéria-Prima, que apostou na história de vida do treinador que permitiu que tal acontecesse. Como é que uma editora chega à história de vida de um treinador? Por que é que o decide editar? «Não temos preten-

Page 34: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Hoje há Editoras

34

sões literárias», conta a nossa entrevistada Liliana Valpaços, «trabalhamos mais ao nível da não-ficção, sobretudo. Temos desde o Paulo Oom com Não te volto a dizer, direccionado pa-ra pais, ao José Gameiro, que escreve uma ficção a partir de casos concretos.» E continua: «Vivemos muito a actualidade e às vezes devolvemos a actualidade à actualidade. Hoje foi para o mercado um livro sobre o Jorge Jesus, feito num mês.» A Liliana Valpaços é uma das metades fundadoras da Matéria-Prima e é a responsável editorial. À outra metade, Inês Queiroz, cabe a gestão comercial e o marketing. Numa es-trutura tão pequena é natural que ambas troquem de posição e se suportem. Mais recentemente, juntou-se à equipa Leonor Viana, que trata da comunicação e divulgação dos livros. Liliana e Inês começaram por ser jornalistas até che-garem ao mundo dos livros. Trabalharam vários anos em edi-toras, sobretudo na Oficina do Livro, chancela do grupo Leya, até decidirem investir no seu próprio projecto. «Saímos [da Oficina do Livro] com uma diferença de três, quatro meses, e quando o fizemos percebemos que podíamos criar uma edito-ra que fosse ao encontro das nossas expectativas e do nosso interesse de trabalho», diz Liliana. «Quando se trabalha num grupo grande aprende-se muito porque as coisas têm sem-pre uma escala maior. É bom como aprendizagem, mas por outro lado, às vezes distancia-te daquilo que mais gostas de fazer porque é um animal grande. A forma como responde às várias coisas que tem em mãos ao mesmo tempo é diferen-te. Sentimos que as nossas tarefas se estavam a tornar isso mesmo: tarefas. Estávamos a afastar-nos do nosso gosto da edição. Quando digo edição não me refiro apenas à revisão do texto; falo do projecto em si, da construção, acompanhamen-to, do diálogo com o autor.» Pensado o projecto, meteram mãos às obra. O IEFP (Instituto de Emprego e Formação Profissional) permite criar auto-emprego através do pedido de todas as prestações de subsídio de desemprego ao mesmo tempo. A dupla recebeu esse dinheiro depois de aprovado um business plan. «O que

Page 35: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Matéria-Prima

35

assustava muito o Estado era não termos máquinas ou coisas que eles pudessem penhorar, caso corresse mal. Os autores são os nossos activos, mas não podem ser penhorados, claro», conta.

Mais números. Criaram a editora com um capital so-cial de 100 mil euros. Há cerca de um ano concorreram ao programa PME e receberam 50 mil euros. Este valor, mesmo para uma editora que tem uma menor actividade, é pouco. «Há três anos achava 100 mil euros um elefante, agora, quan-do começa a rolar, vejo que não é tanto.» A gestão de cada livro é diferente e sempre dispendiosa. «Gerimos cada livro como se fosse uma unidade de negócio. Fazemos uma estimativa de quanto devíamos vender por ano para saber se as despesas são compensadas», explica Liliana, e continua: «Temos de ter uma baliza. para saber onde devemos acertar — às vezes sai fora, outras vezes para dentro, noutras vai à barra».

Novamente o verbo: aplicar. Destinaram toda a sua experiência a um projecto mais pequeno, com objectivos de facturação razoáveis e interessantes, mas tão ambicioso co-mo qualquer outro. Além disso, combinaram também um lado mais artesanal (embora não trabalhem numa oficina) com as novas técnicas de produção conseguindo, dessa maneira, fa-zer 25 a 30 livros por ano. «O que percebi e defendo é que uma editora vende li-vros mas o nosso maior activo são os autores. Mas eles não são teus empregados e não os podes gerir como se fossem e dependessem de ti», diz a editora. «Falamos de um país em que quase ninguém vive de escrever. A relação com os autores é fundamental para uma editora se manter, renovar e cons-truir uma coisa a prazo. É uma ligação intangível e muito frá-gil baseada em confiança e cumplicidade.» E vai mais longe: «Quando trabalhei como jornalista tinha do outro lado um adversário — “o que é que esta vai fazer com o que eu lhe vou dizer”. Quando trabalhei numa consultora era mais “eu pago-

Page 36: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Hoje há Editoras

36

te um serviço e tu apresentas relatórios, dados e números”. É muito unilateral. Como editora o trabalho é todo partilha-do. Por isso é que tirámos dos contratos todas as cláusulas de preferência ou exclusividade. A luta deve ser nas bases das ideias e da satisfação. Se eu estou satisfeita em trabalhar com o autor, e se ele está muito satisfeito com o meu trabalho, ele não sai por “dá cá aquela palha”. As pessoas devem ficar por-que querem e porque lhes garantimos um bom trabalho a to-dos os níveis.» E conclui: «Primeiro conquistas e depois é um casamento.»

Mercado. Podemos questionar como é que uma edito-ra que lança trinta livros por ano, tantos quanto uma grande editora lança por mês, sobrevive. A Matéria-Prima não é um caso isolado. Pequenas editoras têm vindo a garantir o seu espaço e a ser distinguidas, ano após ano, no mercado edito-rial nacional e internacional. A Tinta-da-China foi distinguida em Fevereiro pelos Prémios Ler/Booktailors como Editora do Ano e já publica no Brasil, enquanto que a Planeta Tangerina foi eleita a melhor editora europeia de livros para a infância na Feira do Livro Infantil de Bolonha. A Matéria-Prima tam-bém segue a máxima de menos (e melhor) ser mais.

E o sucesso acontece. Conta Liliana: «No natal passa-do, estava na Fnac e reparei que no top tinham em primeiro lugar As 50 sombras de Grey [Lua de Papel/ Leya], a seguir o Basta do Camilo Lourenço [Matéria-Prima], depois o Ricardo Araújo Pereira com o livro de crónicas [Tinta-da-China] e a seguir o Jamie Oliver ou o Gordon Ramsey, já não me recordo. Tínhamos um top nacional entre ficção e não-ficção, que equi-librava editoras independentes e grupos editoriais. Um gru-po editorial forte, que tem uma máquina de produção firme, pega num fenómeno internacional e fá-lo crescer ainda mais (Grey ou Oliver).» Mas ao mesmo tempo, e como se viu, con-segue-se ser igualmente competitivo com boas ideias. «Essas grandes editoras às vezes não têm tempo para se debruçar so-

Page 37: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Matéria-Prima

37

bre outras coisas», diz Liliana, «ou não foram suficientemente rápidas. Tenho sempre a premissa de que se me lembro de alguma coisa é porque alguém já se deve ter lembrado disso antes, por isso tento ser rápida e ágil.» E segue o jogo: «É um bocadinho como o Messi quando dizia que tinha problemas de crescimento e aprendeu a jogar rasteiro. Temos de pensar qual o nosso ponto forte, estar consciente do que não corre bem — e para saber isso temos de errar muitas vezes —, e depois temos de aprender a fortalecer aquilo que nos torna mais eficazes do que os outros concorrentes — algo que serve para este sector mas também para qualquer outro.»

Selecção natural. Como é feita a escolha dos livros, dos autores e das ideias? O que faz afinal um editor enveredar por um caminho sem que este aparente ser fácil ou directo? Estará ele a «acarditar» constantemente que o seu livro ven-cerá tudo? Liliana fala-nos novamente da sua experiência pes-soal: «Os livros que eu escolhi há três anos são diferentes dos que eu escolho agora para editar. O raciocínio de um editor de não-ficção é um pouco como o dos jornalistas: estamos aten-tos aos sinais do mundo e, se possível, percebemos o que as pessoas querem. Numa estrutura pequena é mais fácil tomar uma decisão do que nas grandes, porque há menos pessoas a decidir, menos etapas de. Para além de editarmos ao sabor do mundo — por exemplo, fizemos o Pronto a comer, um li-vro de receitas para marmita quando se voltou a falar do uso dela nos locais de trabalho —, o tipo de edição que se faz ho-je depende muito da conjuntura do mercado. Edita-se menos porque as pessoas compram menos. Temos de entrar nesta combinação de factores entre o que o mundo quer e o que lhe queremos dar.» Alguns sonhos de principiante são destruídos ou tor-nados realidade consoante o tempo e a experiência que se ga-nha. «Quando se começa uma editora está-se cheio de ideias. Quando trabalhava em não-ficção na Oficina do Livro pensa-va: “quero fazer isto ou quero fazer aquilo”, mas por algum

Page 38: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Hoje há Editoras

38

motivo não era possível. Agora percebo que querer muito não é suficiente. Temos de trabalhar todos os pormenores. Desde que tens a ideia do livro, quando começas a pensar nisso, se trabalhas bem o conteúdo com originalidade, se trabalhas bem a capa, se geres bem o autor e o timing de edição as coi-sas podem funcionar bem, mas tens de ser muito detalhado para ir à luta.» E conclui: «Agora prefiro não editar logo e esperar para melhorar o livro. Quando se entra numa livraria há 500 livros a gritar me, me, me, me. Trabalhamos na lógica da semelhança e da diferença. Na tentativa de criar valor temos de ver sem-pre o que há sem ser seguidista, tentando fazer a diferença.»

trabalho, trabalho, trabalho. Liliana Valpaços foi jornalista da TSF, colaboradora da Grande Reportagem e da Notícias Magazine. Trabalhou como consultora de gestão de talento na Heidrick & Struggles. Em 2007, começou a traba-lhar como coordenadora editorial da Sebenta e da Academia do Livro, a marca de não-ficção da Oficina do Livro. Inês Queiroz, ausente por estar na iminência de ser mãe, também começou pelo jornalismo, tendo integrado as equipas da re-vista Visão e dos jornais Diário Económico, A Capital, entre outros. Tornou-se editora na Palavra, editora do grupo Asa, em 2004, e em 2007 integrou a Oficina do Livro como respon-sável pela comunicação e marketing. Já sabiam como funcio-nava uma editora antes de se aventurarem na criação de uma sua, mas há sempre ponderações a fazer, sobretudo no que a gastos diz respeito. «Quando sentes que a coisa é tua sentes um peso maior», diz Liliana, «pensas muito mais e és menos impetuosa quando o dinheiro é teu. Eu e a Inês dividimos isto de forma igualitária, defendemo-nos uma à outra». Mas, inevitavelmen-te, entram em jogo outras figuras literárias: «Ter um bom con-tabilista é importante porque a contabilidade de uma editora é uma loucura. Não é bom falar com o contabilista sem se saber o básico. Não digo para tirarem todos um curso mas sa-

Page 39: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Matéria-Prima

39

ber as bases da gestão — o que é o break even, etc. —, ajuda a tomar decisões mais sustentadas.» Foi por isso que a editora investiu num mestrado em gestão empresarial no ISCTE, mas, como a própria afirma, é como tirar a carta de condução: só se aprende fazendo. «Há coisas que só entendemos quando estão à nossa frente, mas no fundo a gestão de tesouraria é como gerir uma casa: caem as facturas disto e daquilo. Estar à frente de uma empresa é como estar à frente de uma família. Se falta dinheiro, tens de pôr coisas a trabalhar para garantir sustento», resume.

o que demora mais: ter um filho, plantar uma ár-vore ou editar um livro? Os dois primeiros podem ser bas-tante mais rápidos de fazer. O processo de editar um livro demora o que demorar. No caso dos autores estrangeiros há que garantir os direitos de autor e publicação; nos nacionais há que, numa fase inicial, salvaguardar que o autor tenha os meios de que necessita para concretizar o livro que propôs (ou foi convidado a fazer), debater os direitos de autor e, pos-teriormente, tratar da revisão, dar uma forma e capa ao livro, avançar com a sua promoção e distribuição. É demorado. Há uma grande envolvência com os autores e a sensa-ção de um trabalho partilhado. «Não nos podemos esquecer de que um livro é sempre um acontecimento marcante na vi-da de uma pessoa e que essa sensação deve ser sempre res-peitada», diz Liliana. A editora adianta que esse envolvimento por vezes não ajuda ao distanciamento necessário da obra, e, por isso, conta com uma equipa para a acompanhar. São fun-cionários que fazem alguns dos trabalhos essenciais mas cuja presença no espaço não se vê: revisão, tradução (quando ne-cessário) e paginação. Esta equipa fantasma, que trabalha a partir de casa, é sempre a mesma, o que garante maior solidez e confiança no projecto. O livro costuma ir duas vezes para revisão, depois disso é paginado e, por fim, pensa-se na capa: formato, desenho e título. «Às vezes culpamos o preço ou a capa pelo resultado

Page 40: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Hoje há Editoras

40

das vendas. A posteriori, são sempre os culpados. É fácil ques-tionar as decisões depois. Trabalhamos com pessoas, expec-tativas e comportamentos e nunca sabemos como as coisas vão funcionar. Tentamos arriscar, mais ou menos, mas nunca sabemos como vai correr.» E exemplifica: «Fiz o primeiro livro sobre finanças pessoais pós-2008, que se chamava A econo-mia cá de casa, com uma capa muito vermelha e um carrinho de compras. Mas o livro que mais vendeu na altura foi um que se chamava O meu primeiro milhão, com um porquinho mea-lheiro. Achava que o meu ia ser um sucesso. Cheguei a casa e mostrei à minha mãe que disse “oh filha, o carrinho está vazio, que deprimente”. Aí percebi: eu devia ter vendido o sonho, o carrinho cheio [tal como o mealheiro a transbordar] e fiz o contrário. É por isso que é importante falar com as pessoas. Eu sempre gostei muito de conversar com os comerciais por-que eles têm muito tempo de rua. Às vezes lembram-se de ca-pas parecidas e dão opiniões como “cuidado, houve um com uma capa parecida que não resultou”. Eles usam muito o ar-gumento de que um livro deve ser parecido com o outro que vendeu muito. Vivem dessa argumentação para justificar o porquê da loja querer comprar o livro. É bom saber disso mas também não pode ser uma regra. Se for, não fazemos nada de diferente». No fim Liliana remata, «é um “achómetro” alimen-tado pela experiência e sobretudo pelo erro. Erro, erro, erro, erro.» Sobre os conteúdos, Liliana conta que variam con-soante aquilo que lhe é permitido fazer. «Numa grande edito-ra, com lucro, posso apostar numa edição bombom de poesia. Neste momento não posso. Há livros que não edito agora mas se o país estivesse melhor economicamente, e eu facturasse muito, pensaria em editar um livro apenas por gosto, agora não.»

O diabo e a cruz. Quanto às tiragens, dependem do mercado, que ultimamente tem diminuído o número de exem-plares. Antigamente, avançava-se facilmente para edições de

Page 41: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Matéria-Prima

41

4000 exemplares, agora a edição média ronda os 2500, 3000. A Matéria-Prima não faz tiragens menores de 2500 exempla-res, tanto por uma questão de estratégia — «Para venderes um livro numa loja tens de ter uma mancha de ocupação sig-nificativa» — como por uma questão de lógica editorial — «Se acho que um livro não merece 2500 exemplares é porque se calhar não o devo editar, já que só edito cerca de 25 por ano.» A imprevisibilidade dos desaires comerciais são uma constante. Livros actuais que não vendem, temas fracturantes que não alcançam os objectivos esperados, reedições que saí-ram mal: «Quando um livro esgota num determinado ponto de venda pedem-nos mais exemplares em vez de verem no sistema se há a mais noutra loja do mesmo grupo. É como o poker: às tantas questionamos até que ponto é uma jogada realista [fazer novas edições].» A Matéria-Prima é distribuída pelo Clube do Autor, que, para além da sua própria chancela, distribui também a Parsifal. Grande parte das pessoas que lá trabalham eram da Oficina do Livro e da Planeta. Há entre elas um grau de conhecimento e confiança, mas, embora dividam o mesmo stand na Feira do Livro, não partilham relações editoriais, apenas de distribuição. «Não temos mega-condições», diz Liliana, «levam sempre 50 a 60% do valor da capa do livro, mas garantem-nos boa colocação, boa cobrança e boa capacidade de reacção.»

Diz que disse. Em termos de comunicação e divulga-ção, a editora trata cada livro como se fosse único e não tem uma lista de etapas a cumprir que seja comum a todos. Tirando os press-releases e o envio de exemplares para os jornalistas, arriscam de acordo com o livro. «Nada é caro se tivermos retorno. Se o Miguel Sousa Tavares quiser editar comigo, eu forro a Avenida da República com cartazes dele», confidencia Liliana a rir, e dá alguns exemplos: «Com o Camilo [Lourenço] fizemos Camilos em tamanho real, por exemplo. Tudo isto au-menta o orçamento. Fizemos um anúncio de TV com o Ruy de

Page 42: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Hoje há Editoras

42

Carvalho porque ele é actor da TVI e reconhecido por isso.» Em regra, fazem acções no ponto de venda (compra de montras, destaque nas lojas, etc.), compra de espaço em folhetos, anúncios, cartazes de rua e tentam assegurar pre-senças na TV. «Tem mais impacto nas vendas conseguires que o Manuel Luís Goucha pegue num livro e diga que gostou mui-to de o ler — tanto ele como a Cristina Ferreira lêem mesmo os livros que recomendam). Isso é vantajoso para nós porque para além da exposição, assegura-nos que os entrevistadores estão mais preparados para receber o autor e fazer um bom trabalho.» O mais importante na relação com os media é saber como pensa um director de programas ou um jornalista, e conseguir que se interessem pelo livro. «Já apresentámos a um programa de televisão testemunhos de pessoas sobre um livro que editámos e correu muito bem. É preciso tempo, cal-ma e perspectiva para se ser original nestas coisas.»

O livro sem papel. Quanto à edição de livros elec-trónicos, Liliana adopta uma postura de São Tomé: ver para crer. «Tenho para mim que é o principal inimigo dos autores portugueses», conta, «se for um autor americano ou chinês consegue chegar a muito mais gente através do e-book, ago-ra cá fazemos livros para o mercado nacional; não há edição brasileira ou angolana que o valha). Não sei se num mercado como o nosso o e-book vai ser atractivo o suficiente para os autores do ponto de vista financeiro. Deixo esse campeonato para grupos com estrutura que tenham recursos para procu-rar soluções.» E termina: «Em Portugal quem lê digital tam-bém lê em papel. Têm sempre gosto em ir às livrarias e com-prar o livro em papel, mas os hábitos mudam e talvez daqui a 10 anos seja diferente. Logo veremos.»

Pela Estrada Fora. A entrevista mudou de rumo no fi-nal, mais concretamente, passou da sala que serve de escritó-rio à Matéria-Prima, na 5 de Outubro, para um carro em direc-

Page 43: ANTÍGONA · ANTÍGONA CONTRA O QUOTIDIANO SECO DO MUNDO Fundada em Lisboa em 1979, a Antígona é a editora refractá-ria de Luís Oliveira. Tem 225 títulos publicados até ao momen-

Matéria-Prima

43

ção a Santa Apolónia. Pelo caminho, Liliana partilhou algumas experiências gratificantes de ser editora: «Envolvemo-nos muito com o texto, o que a partir de determinado momento não proporciona grande distanciamento, mas conto com uma equipa que me ajuda nisso. É bom ver um projecto crescer, po-der partilhar essas emoções com o autor. Depois há apresen-tações fabulosas. A apresentação do livro do Marques Mendes pareceu um evento político, com muitas pessoas, de vários partidos, que se reuniram em torno do livro.» Curiosamente, não deu para muito mais. A viagem foi curta e mais curta ficou quando outro assunto monopolizou a conversa: a Inês telefonou a dizer que já estava na maternida-de porque a Alice vinha a caminho. Vamos ter de esperar 10 anos para saber o que lê e como lê.