ANTÓNIO HOOAISS ROBERTO AMARALNão é preciso ser pitonisa para prever o que nos aguarda: ação...

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ANTÓNIO HOOAISS ROBERTO AMARAL

SOCIAUSMO E

LIBERDJ\l:>E

, 7 4 Rio de Janeiro

J5s 1990

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Roberto Amaral: jornalista, escritor,

professor da PUCIRJ, Secretário-geral da

Comissão Executiva Nacional do Partido Socialista Brasileiro.

Antonio HouaJaa: escritor, filólogo, enciclopedista, ex-presidente do Partido Socialista Brasileiro, membro do Diretório Nacional doPSB

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Apresentação

UMA REFLEXÃO OPORTUNA E NECESSÁRIA

Se a ação é a essência dos partidos, como dizia Balzac, as idéias são o motor de cada ação conseqüente. Om projeto de verdadeira transformação social deve estar sempre emba­sado em reflexões que correspondam ao espírito e às neces­sidades de um povo em determinada época. Sem isso, qual­quer sistema político, por mais consenso que obtenha da sociedade, 'desemboca em distorções frustrantes.

O socialismo representa o mais avançado sistema para se alcançar as transformações exigidas pela sociedade brasi­leira nesta sua prolongada crise, gerada e agravada pelo capitalismo. São as crises, porém, que germinam idéias no­vas. Passadas as circunstâncias que as motivaram, essas idéias permanecem, como herança para as gerações se­guintes.

Estes escritos de Roberto Amaral e Antônio Houaiss configuram algumas das preocupações fundamentais do pensamento socialista contemporâneo. Questões como es­tratégia partidária, conjÚntura nacional, ideologia ''pós-mo­derna ·; os desafios da política de Frente, as mudanças no Leste Europeu são aqui discutidas em linguagem clara, por vezes irônica, e sempre em busca de respostas que, sem

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a pretensão de serem definitivas, possam contribuir para enriquecer o debate entre as esquerdas. Um trabalho útil não só para os militantes do Partido Socialista Brasileiro, mas para todos aqueles interessados em aprofundar seus conhecimentos teóricos. Pensar nosso futuro é também re­fletir sobre nosso passado, de modo a evitarmos reincidir em erros fatais.

Considerando que só nos últimos dez anos a produção teórica marxista brasileira pôde voltar a ser publicada e discu­tida abertamente no País, cada texto deste é também a reafirmação da maior das liberdades, que é a de pensamento e expressão. Sem isso, qualquer reflexão se perde no tempo.

Num momento em que desfrutamos dessa liberdade e vemos todo o arcabouço doutrinário socialista sendo rea­valiado, ler estes textos é mais do que oportuno, pois sinteti­zam a perplexidade e também a convicção de que, embora os caminhos possam ser vários, nosso objetivo é comum, e será atingido, caso tenhamos organização, disciplina e idéias.

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JAMIL HADDAD Presidente Nacional do PSB

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INTROOOÇÃO

Nosso Partido atrave~sa momento singular de sua histó­ria. De um lado, pela primeira vez desde sua reestruturação, em 1985, está preparado para intervir no processo eleitoral organizado em praticamente todos os Estados da Federa­ção; e em todas essas unidades vê-se desafiado a apresentar resultados que materializem, do ponto-de-vista eleitoral, os avanços obtidos no plano político. De outro lado, a trajetória do socialismo atravessa seu maior desafio histórico. O des­moronamento da burocracia nos países do leste europeu torna vital a necessidade de aprofundar o debate político, econômico e doutrinário sobre o futuro do socialismo, à luz de uma experiência que, se rica em erros, não foi menos rica de ensinamentos. No plano nacional, este será o primei­ro desafio eleitoral a que se submetem as esquerdas depois das eleições de 1989, as primeiras realizadas sob o Governo Collor, e sob sua previsível ofensiva.

Nada obstante um ou outro abalo, o Governo Collor manteve até aqui intacto o sistema de forças que assegurou sua eleição e ampliou seu apoio parlamentar, com a adesão dos governistas de sempre. Seu projeto de governo continua em plena implantação: a internacionalização da economia, precedida de sua desnacionalização, o nome real da privati­zação; o desmantelamento da infra-estrutura estatal, e a con-

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seqüente desorganização da produção industrial; o arrocho salarial, o desemprego, a recessão, a estagnação econômica, como preço ao combate à inflação. No plano político, pros­segue a tentativa de implantação de um governo autoritário, fundado. no desrespeito olímpico ao Congresso e ao Judiciá­rio, cujas prerrogativas constitucionais forceja por derrogar. Estamos em face de um governo de direita, antipovo, e antinação. Cumpre-nos combatê-lo sem tréguas.

O I e 11 Congressos Nacionais do PSB já refletiram, parcialmente é verdade, as interrogações sobre o futuro da esquerda e do socialismo. Essa discussão deve ser vertica­lizada, atingir a todas as instâncias partidárias e orientar nossa participação no próximo pleito. Ou engajamos o Par­tido nessa luta - a um só tempo teórica, política e doutri­nária, e prática - ou perderemos a oportunidade histórica de nos consolidarmos como corrente socialista, democrática e libertária em nosso País.

O PSB, nesses cinco anos de sua reorganização, vem-se impondo como Partido de esquerda, reconhecido como tal, respeitado pela coerência, pela firmeza e pela lucidez de sua prática. Desde sua reorganização, o Partido tem como objetivo político, expresso em todos os seus documentos mais importantes, em todos os seus Congressos e reuniões de suas instâncias dirigentes, a Frente de Esquerda. Para a consolidação partidária, há que destacar dois momentos da maior relevância histórica, a saber: a Constituinte e, nela, a participação destacada e honrosa de nossos parlamentares e a constituição e desempenho da Frente Brasil-Popular. Compreendemos que, se, historicamente, é desarrazoado defender a organização de um único partido de proposta socialista, é, em contrapartida, imperioso que esses partidos atuem de forma unitária, concertados nas frentes políticas e nas frentes eleitorais. Defendemos a frente parlamentar e popular de oposição ao Governo Collor, integrada não apenas pelos partidos socialistas, mas por todos os partidos

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de esquerda e os partidos e setores dos demais partidos democráticos que a ela queiram aderir. Defendemos a Fren­te de esquerda e popular para as eleições de 1990, como já havíamos defendido sua constituição no pleito presiden­cial. A frente política dos partidos de esquerda é forma efi­ciente de assegurar a diferença, manter a singularidade das diversas formações políticas, é a forma mais inteligente de conciliar a unidade na diversidade de opiniões e de idéias e projetos, mas é acima de tudo a única forma de enfrentar a unidade da direita.

Paralelamente, consideramos também que essa Frente não deve restringir-se ao plano puramente eleitoral e conjun­tural. Lembre-se que em outubro de 1987, em nosso I Con­gresso, quando lançamos a idéia da Frente-Brasil, retomada com toda força na memorável reunião do Diretório Nacional de dezembro de 1988, consolidada pelo documento de Tere­sópolis (fevereiro de 1989), afirmávamos o entendimento de que aquela Frente deveria constituir-se em projeto político de largo alcance, um "compromisso histórico' ' reunindo operários, camponeses, partidos e forças de esquerda, além de todas as demais forças políticas comprometidas com a transformação da sociedade brasileira.

Até aqui não conseguimos convencer nossos aliados e custa mesmo manter a Frente, encerrado o processo elei­toral de 1989.

Em que pese todas as dificuldades e incompreensões, respaldados na experiência recente, mantemos nossa deci­são de sustentar e ampliar a Frente. A base dessa ampliação é oferecida pelas forças políticas e sociais que apoiaram nossas candidaturas no segundo turno das eleições presi­denciais, ainda que algumas dessas forças tenham adotado posições dúbias, quando do enfrentamento político, naquela conjuntura, e agora na oposição ao Governo Collor. Conside­ramos, porém, que nosso papel é o de aproximar do campo popular essas forças políticas.

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As dificuldades acima descritas, de entendimento no plano nacional, têm sido superadas pela prática política nos Estados nestas eleições. Em todas as composições tem prevalecido a política de Frente, frente de esquerda e popular, e em muitos Estados foi reproduzida a Frente do segundo turno das eleições presidenciais.

É preciso compreender que neste periodo histórico da sociedade brasileira, o objetivo tático dos socialistas - não somente no plano da resistência à vaga neoliberal, como no justo plano da construção e consolidação do PSB -deve ser a eleição de uma bancada parlamentar numerosa, militante e comprometida com a transformação social e a democracia. É preciso eleger parlamentares que não sejam simples adornos de estruturas partidárias formais, mas, sim, porta-vozes orgânicos de uma corrente política da socie­dade, que luta pela superação dessa sociedade, ora fundada na desigualdade e na exploração do homem pelo homem.

A estratégia do PSB deve ser a formação da Frente de esquerda; o projeto tático eleitoral deve ser a eleição do maior número possível de parlamentares.

É preciso, porém, ter bastante clareza quanto ao caráter do Governo que nos incumbe enfrentar; uma nova direita supostamente neoliberal e falsamente modernizante que rompe a coalizão clássica entre o setor industrial e a oligar­quia rural, cujos vínculos com o Estado burocrático e milita­lizado por tantas décadas temos denunciado. Não se deve, todavia, apostar, no médio prazo, em fraturas de interesses no sistema governante; essa direita fará tantas concessões mútuas quantas forem necessárias para garantir o projeto que vislumbra em seu horizonte. Mais do que nunca inexis­tem contradições entre o projeto nacional burguês e o capita­lismo internacional, entre o chamado capital nacional e os interesses das grandes multinacionais ou do capital finan­ceiro internacional. O Governo Collor é o amálgama de tudo isso.

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Sem nenhum catastrofismo, é preciso ter presente que o espaço de resistêncja e avanço da luta popular está hoje muito mais reduzido do que estava há alguns meses, particu­larmente no período final do processo eleitoral de 1989. Vivemos uma nova realidade que põe de manifesto o novo papel a ser exercido no Parlamento pelos partidos de esquer­da e forças democráticas. Nosso papel, todavia, não se en­cerrará na resistência parlamentar legislativa aos projetos da direita. Relembre-se que a próxima legislatura exercerá, em todos os níveis, a grave tarefa da revisão constitucional (I 933). Não é preciso ser pitonisa para prever o que nos aguarda: ação concertada de todos os reacionários para derrogar as poucas conquistas alcançadas pelos trabalha­dores e democratas no texto constitucional de 1988. Cum­pre-nos também essa resistência. E eis uma razão a mais para a decisão de privilegiar os pleitos proporcionais.

Essa resistência, todavia, só se revelará possível, isto é, minimamente eficiente, se formos capazes de agregar, à ação parlamentar futura, a atuação da m~itáncia .

Este objetivo- e a precedê-lo temos ainda a formação de nossa militância - deve ser perseguido pelo partido com todos os seus recursos.

Uma última questão, tema aliás a ser discutido em nos­so próximo Congresso, é a unidade orgânica da esquerda socialista, proposta pelo PSB. Propõe o nosso Péfrtido que, respeitado o pluralismo como uma das características da formação histórica da esquerda brasileira, as correntes socia­listas trabalhem no sentido de sua unidade orgânica. Deci­da-se o projeto, as fórmulas virão como conseqüência.

Os artigos que compõem este volume procuram discu­tir essas questões e, como pano de fundo, a chamada "crise'" do leste europeu, ou a "crise"' do socialismo. Ou ainda, corno quer a direita, a morte do socialismo, o enterro da história, o fim do marxismo. Parecem-nos, todas essas, ques-

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tões da maior atualidade. Se esses artigos estimularem a discussão dos militantes, estaremos pagos, e bem pagos.

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Rio, junho de 1990. Roberto Amaral

Antônio Houaiss,

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Alguns destes textos foram pubUcados em jor­nais: Esquerda, vou ver; veremos (0 Povo, Fortaleza, 11 ,3,90), Os sociaUstas e a nova ordem partidária (Jornal do BrasU, Rio de Janeiro, 25-3-90), O leste europeu e os socialistas brasileiros (A Voz da Unida­de, maio/1990), A propósito de "o sociaHsmo mor­reu"Folha de S. Paulo, 27-6-90) e A unidade orgâ­nica da esquerda socialista (Jornal de Brasil/a, 15-5-90).

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ESQUERDA, VOCJ VER; VEREMOS

O pleito presidencial, recém-concluído, se oferece aos exegetas. A vitória e a derrota, seus autores e seus culpados, aguardam a sanha dos explicadores. Neste artigo preten­demos tão-simplesmente, assinalar duas de suas principais características, a saber: a) a fiXação do debate (e do voto) ideológico, quando tanto se anunciava sua morte; b) a emer­gência e renovação de dois velhos grupamentos políticos: a esquerda e a direita.

A NOVA ESQUERDA

Da esquerda digamos, inicialmente, que, pela vez pri­meira em nossa história, disputou com a direita a Presidência da República, concorrendo com quadro próprio, não mais tão-só para firmar posição, como em 1945, mas, já agora, para ganhar, e quase ganhando. De forma inédita, vimos realizada uma política de alianças partidárias sem que tenha cabido à esquerda (como em 1950, em 1955 e em 1960) simplesmente pendurar-se à cauda do projeto conservador.

Pela primeira vez a esquerda se uniu, e não foi na ca­deia ...

Há uma esquerda nova pensando o socialismo a partir da realidade brasileira, despida de modelos acabados, seja de Partido, seja de Revolução. Essa nova esquerda aprendeu,

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e parece haver incorporado ao seu ideário, que a liberdade é elemento essencial do humanismo socialista. Essa esquer­da aprendeu, também, que o pluralismo partidário é uma imposição da democracia e que, assim, não há como cons­truir em nosso País, seja para aceder ao poder, seja para administrá-lo, uma política de partido único ou partido hege­mônico; a revolução socialista e democrática, necessaria­mente democrática tanto quanto revolucionária, consagra­dora do humanismo e da liberdade, só se viabilizará com a construção coletiva de todos os partidos de esquerda con­certados em uma frente ampla. A esquerda aprendeu que nenhum de seus partidos crescerá simplesmente aditan­do-se a substância de outros partidos de esquerda, mas que todos crescerão se todos puderem crescer conjunta­mente, respeitadas as diversas e naturais potencialidades que podem levar esse ou aquele partido a melhor aproveitar as condições objetivas. Sem nenhum trocadilho perverso: cai por terra a política do Partidão de esquerda, substituída pelo pluripartidarismo também na esquerda, concertado na Frente, de que é exemplo histórico a composição do palan­que do comício com o qual, no Rio de Janeiro, Lula encerrou sua campanha eleitoral.

Não se suponha, todavia, que o crescimento das esquer­das e dos partidos de esquerda seja um determinismo; ele haverá de ser buscado mediante unia política concreta, que não descarte as condições subjetivas de avanço sem o que de nada valerão as condições objetivas hoje favoráveis. Pare­cem-nos criadas todas as condições para que cada partido de esquerda elabore sua própria política de crescimento, desde que essas políticas não sejam antípodas entre si; ao contrário - e daí dependerá o crescimento das esquerdas - , essas políticas devem ser complementares entre si para que se revelem convergentes e jamais errem, como tanto no passado, na identificação do inimigo comum ou principal; ao contrário do enfraquecimento dos partidos de esquerda,

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o pro.cesso histórico está a indicar a sobrevivência das siglas convrvendo em uma grande Frente,

A NOVA DIREITA

Com o risco de toda redução histórica, podemos afirmar que o modelo de desenvolvimento econômico brasileiro posto a cabo principalmente a partir da Revolução de 1930, teve, entre outras características - como o processo de urbanização acelerada - a concentração de poderes nas mãos do Estado, não apenas como agente do desenvol­~mento mesmo antes das práticas do planejamento, mas, rgualmente, como projeto de um incipiente capital nacional, que, de um lado, exigia desse Estado-paternalista mais e sempre mais proteção em face de sua dependência diante do capitalismo internacional, e, de outro, requeria essa mes­ma proteção em face das regras mesmas da economia de mercado, de cuja sobrevivência dependia. Daí resultou, no Estado burocrático-autoritário brasileiro, a criação de um capitalismo burocrático-cartorial, dependente externamente, engendrando uma economia que, de mercado, recusava todos os riscos da chamada livre iniciativa. Essa economia, para sobreviver, dependia de um Estado forte, armado de poderes políticos e econômicos que pudessem assegurar aos capitalistas, de par com a conservação da propriedade mesmo improdutiva, os lucros, estes vacinados contra as intempéries naturais do capitalismo e assim, as regras cegas do mercado (livre) foram substituídas pelas regras certas do Estado-burocrático administrando a economia cartorial, donde os subsídios, as reservas de mercado, a criação de infra-estrutura e de estatais destinadas a possibilitar não só os serviços e a base da produção, mas o lucro empresarial da produção industrial e mercantil privadas, dependentes dos custos~s investimentos sempre evitados pelo capital nacional. A correspondência, no plano político, desse Estado Leviatã seria a aliança do capitalismo (ainda ligado às oligar-

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quias as mais atrasadas, inclusive rurais) com o militarismo, donde os seguidos golpes-de-Estado substituindo a disputa eleitoral.

Nesse Brasil, em que pese ao papel desempenhado pela UDN e pelo PSD, e mais recentemente pelo PDS e pelo PFL, o partido do capitalismo cartorial, notadamente industrial e financeiro, têm sido as Forças Armadas, pois só um regime de força, mesmo quando em legalidade -formal como os regimes que se seguiram a 1964- poderia e pode garantir a sobrevivência de um governo voltado a assegurar a acumulação do lucro ao lado da redução dos salários, com uma brutal concentração de renda. Por isso mesmo, convivemos com o desamor da burguesia brasileira pela vida partidária e, dela decorrente, a fragilidade de nossos partidos, nenhum dos quais conseguiu mais de uma geração de sobrevivência continuada. O desenvolvimento da econo­mia, resultado dos investimentos estatais (muitos derivados de empréstimos externos) possibilitou o aparecimento de uma burguesia (mas também de um proletariado e de am­plas camadas assalariadas) que já se dispõe a apartar-se do Estado, mais precisamente, a livrar-se de seu controle e mais dele, porém, utilizar-se, na medida em que dele se autonomiza, para melhor continuar a geri-lo. Por isso, já agora, depois da administração burocrático-autoritária, o "novo" capitalismo se revela neoliberal, e, assim, vem reque­rer mais claramente a privatização do Estado, mediante seu gradual afastamento da economia, cedendo as estatais -que haviam palmilhado o caminho do desenvolvimento capi­talista moderno - isto é, seu próprio espaço, para que, em substituição a elas, reclamando lucro ou condenando a "estatização", opere a "livre iniciativa" . Para tal, porém, o capitalismo, a chamada iniciativa privada, teve de, por longos anos, ser antes cevada pela política clientelista, que associava o arrocho salarial, o crédito privilegiado, as taxas de câmbio favoráveis, a reserva de mercado até para multi na-

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cionais, os incentivos fiscais e, no caso dos bancos, um verdadeiro seguro contra perdas e má gestão. Após um mercantilismo agrário caduco (mas subsistente na expor­tação de produtos forrageiros a preço da fome interna), após um industrialismo montado sobre uma capitalização cafeeira nativa, após um capitalismo explodido provindo de uma dívida externa que relança o País ao mais baixo do Terceiro Mundo, um neocapitalismo tardio se afigura como a nova direita dita "neoliberal" que emerge vitoriosa do pleito. Seu projeto é a modernização da economia mediante con­cessões já anunciadas à interdependência crescente da eco­nomia, que, nos termos do desequilíbrio econômico interna­modernoso dessa nova direita fosse aspecto positivo nos

quadros da política tradicional brasileira acostumada à su­cessão da mesmice, não se poderia omitir a sobrevivência de outros setores da direita brasileira, mais atrasados, ligados às Forças Armadas e às oligarquias clássicas da História desse País, viciados no golpe de Estado e no paternalismo estatal.

O cenário, todavia, não está completo: entre uma e outra direitas, entre a nova direita e a esquerda nova emer­giram, igualmente fortes, um novo proletariadÕ e novas ca­madas assalariadas, principalmente urbanas, que deram o contorno eleitoral da maioria das regiões metropolitanas com sua clara opção pela proposta representada pela candi­datura da Frente Brasil-Popular, que se legitima como seu real representante. Essa realidade, no que se confirme, pode­rá consolidar o pluralismo partidário, consolidando também a disputa eleitoral, ensejadora, no futuro, de real alternância no poder substitutiva dos diktates dos quartéis.

A FRENTE BRASIL-POPULAR

A política recente oferece lição que haverá de ser con­servada por todos os democratas: a Constituição, pela vez

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primeira em toda a história republicana, de uma frente polí­tica com hegemonia da esquerda, assegurou a vitória de seu candidato no primeiro turno. Mais do que uma frente de partidos, a Frente Brasil-Popular se consolidou em frente realmente popular e democrática, na medida em que sua legitimação se deu pelo concurso da militância que se anteci­pou às decisões das lideranças partidárias.

A experiência indica não apenas o acerto daquela políti­ca, mas a necessidade de sua consolidação, em 1990, no embate social e sindical. Aponta para sua consolidação, mas aponta igualmente para sua ampliação. O palanque do se­gundo turno é o rumo.

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OS SOCIAUSTAS E A NOVA ORDEM PARTIDÁRIA

O Brasil parece, finalmente, dirigir-se para a construção de um efetivo sistema de partidos que se fortalece, promete fortalecer-se, na medida em que, com ele, o sistema demo­crático-representativo se fortalece na expectativa de uma nova história de pleitos sucessivos seguidos de posses su­cessivas, de mandatos respeitados, isto é, simplesmente uma democracia sem pronunciamentos militares, sem re­núncias intempestivas, sem golpes-de-Estado. Ainda não se fala, vê-se, em uma sociedade minimamente justa e só minimamente corrupta e perdulária. Isto fica para um outro futuro.

Para o presente de agora, o hoje, exige-se o máximo de engenho e arte para organizar os partidos e aquelas forças políticas que, sem cederem esse mínimo, querem almejar ao máximo. E o quase máximo viável nas condições dadas esteve em nossas mãos e por muito pouco não nos foi possível reter aquela que certamente seria a mais impor­tante conquista popular-institucional de nosso País. A força acumulada, nada obstante o grande avanço, mostrou-se, porém, ainda incapaz de promover a virada que a História do País aguarda há pelo menos um século. O avanço do

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processo democrático entre nós, demonstrando, na prática, a possibilidade de uma real alternância de poder, bem como os felizes eventos do leste europeu, reatualizaram, na esquer­da socialista, as teses em torno das vias democráticas de conquista do poder, e, com elas, inevitavelmente, o caráter e a conformação dos nossos ~~rtidos"

A lição da História parece apontar para a estratégia da unidade orgânica - vocativa, não compulsória - da esquerda socialista. Para tal futuro, revela-se como etapa presente, fundamental e inafastável, o fortalecimento dos partidos e da política de alianças e frente, cujo grande e pedagógico êxito foi a constituição da Frente Brasil-Popular e a vitória de Lula e Bisol no primeiro turno. Nos Estados e nas próximas eleições, essa política certamente será apro­fundada e sempre que possível ampliada, e, se o for, inevita­velmente formaremos uma grande bancada progressista em condições de defender as conquistas populares, em face do que promete o futuro governo.

(Nenhuma estratégia de curto prazo, este entendido como as eleições de outubro-novembro próximos, todavia, deve apostar, tão-só, no prematuro fracasso popular do novo governante, cuja capacidade de administrar apoios, tanto quanto sua identidade com o projeto do capitalismo, em suas diversas versões, não devem ser subestimadas. Pensa­mos mesmo que grandes serão nossas dificuldades eleito­rais, no primeiro enfrentamento. Daí, sobre todas as questões estratégicas impõe-se ainda mais a política de coligações e de frente popular e de esquerda instrumento indispensável seja para assegurarmos a representação popular, seja para assegurarmos o êxito do movimento nacional de oposição ao próximo governo.)

A experiência político-partidária brasileira, a partir de 1964, revelou as virtudes, poucas, e os defeitos, muitos, do bipartidarismo -já que, fora dos dois autorizados, isto é, compelidos a existir, pelo regime, os partidos que tentavam

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sobreviver fora da ilharga militar tiveram de resguardar-se à clandestinidade, conservada até 1984.

A Arena, P?<Je. assim, num dado momento ~e euforia ufanista fascistóide, dizer que era o maior partido do mundo ocidental (estigma que mais tarde, mas mais cedo do que se esperava, alcançou o PMDB): os políticos, toda a burgue­sia - com sua indústria, seu comércio, seus serviços -estavam nela presentes, ex officio, porque, no essencial, quem estava mesmo era a vontade do poder militar que se alçara a gestor ditatorial do País. Esse unanimismo, po­rém, era falso - e o MDB, depois PMDB, foi prova disso, crescente. Prova, inclusive, da inconsistência das filiações compulsórias e das composições doutrinárias gelatinosas: o MDB chegou a ter, contemporaneamente, em seus qua­dros, parlamentares tão díspares como Amaral Netto e Dou­te! de Andrade; Tancredo Neves, certa feita, desgostoso da companhia de Miguel ~rraes, aliou-se a Magalhães Pinto, autonomeado comandante civil do golpe de 64 (lembram­se?) para fazer o efêmero PP, do qual sairia parare-reunir-se no MDB rebatizado de PMDB, com os companheiros de jornada, para, eleito senador e em seguida governador, ele­ger-se também Presidente da República com os votos dos dissidentes do PDS, que fundaram o PFL, que indicou o vice da chapa do PMDB, o futuro presidente aleatório, o ex-Presidente do PDS ... Aliás, esse vaivém nas siglas sem caráter comportou e ainda tanto comporta outras composi­ções-recomposições só aparentemente esdrúxulas, aqui lembradas, algumas delas, meramente pelo seu vezo para­digmático: assim, enquanto Tancredo (retomamos àquela mesma saga) saía do MDB para o infausto PP, seu colega Amaral Peixoto (seu colega de Governo Vargas, seu colega de PSD e seu colega de MDB) saía do oposicionista MDB para o governista PDS, de quem, de imediato, seu genro, deputado federal eleito pelo MDB, seria candidato, e candi­dato do General Figueiredo ao governo fluminense (1982);

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bom aluno, o mesmo genro, já nas eleições seguintes (1986), seria de novo cândidato ao governo fluminense, mas já agora pelo PMDB, e já agora para ser eleito; enquanto isso Amaral Peixoto permaneceria no PDS, onde chegaria à presidência nacional em tempo de•colaborar com a eleição indireta de Tancredo contra as esperanças do rejeitado can­didato oficial de seu Partido ... ). O resto da história não precisa ser contado.

Com efeito, à medida que o regime se desgastava, e desgastava sua face partidária, toda a oposição convergia para o PMDB, que se caracterizou, num dado momento, até a frente reacionária em que se convertera o PDS, numa frente que ia da direita ao revolucionarismo liberal e de esquerda, com o caleidoscópio que bem conheceu a Nação. De fato, em lugar de .um bipartidarismo, logramos chegar a duas frentes, num bifrontismo. No PMDB por muito tempo permaneceriam muitos militantes, quadros e políticos dos partidos obrigados a viver na clandestinidade, que, para a quase totalidade deles, jamais foi uma opção tática.

Escusado rememorar em pormenores o que foi a con­quista, lenta, só recente, do pluripartidarismo subseqüente. Ele se mostrava atrofiado, capenga, até a grande vitória do PMDB de 1986, que exprimiu a rejeição nacional ao estado de coisas instituído pelo militarismo. Era chegada a hora de aquele PMDB, para seu azar - vimos - , procla­mar-se também ele, e à sua vez, o maior partido do mundo ocidental...

Não se tratava, porém, de um partido: sua essência política era de frente e já vinha sendo assim marcado por rombos à direita, poucos, e à esquerda, continuados; assim, já desde as eleições de 1982, com o fracasso do PP (em que tanto investiram Tancredo e os estrategistas do Planalto, Golbery e Portela destacadamente) se haviam organizado o PT e, depois, o PDT.

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Na eleição indireta de Presidente da República, em 1984, ruiu a estratégia governista, graças à política também de frente que Tancredo Neves soube consagrar e levar ã vitória, que não logrou usufruir. De todos os modos, todos esses fatos provam a quase impotência dos grandes políticos brasileiros - e sabemos quão efêmera é essa grandeza - que, no fundo, é o melancólico quadro brasileiro desde a Independência, e, se quiserem uma precisão, principal­mente desde o 11 Reinado: de um lado, os que estão no governo (podendo estar na oposição), de outro, os que estão momentaneamente contra esse governo, mas buscam ser o governo, inconsoláveis por ainda não sê-lo ... Idéias, progra­mas, propostas transformadoras, foram quase sempre aci­dentes não programáticos que podiam mudar de mão com a rotação muitas vezes programada dos governantes, iguais entre si, embora representando siglas nominalmente diver­sas entre si. Isso sob o Império, isso sob a República, serenís­sima. Sob a República tanto quanto sob o Império, o biparti­darismo, como o bifrontismo, foi sempre um frentismo car­torial.

A eleição presidencial de 1989 pode - se bem explo­rado nas suas conseqüências profundas- gerar novos hori­zontes partidários. Não há negar que a grande maioria dos partidos que se apresentou à liça - no primeiro turno -buscava oferecer algo como um programa para a grande crise nacional - que é totalizante. Mas o fato é que a prefe­rência popular redundou, de novo, num aparente bipartida­rismo, este, episódico, e buscado pelo sistema dos dois turnos, que não está sob críticas. De fato, à Frente Brasil-Po­pular - com programas, tendências, quadros - opós-se uma frente info"rmal - sem programa, sem definição, sem quadros (que serão amealhados como saldos do adesismo) que alegadamente buscará tirar o Brasil da crise.

É óbvio que não conseguirá, faça o que fiZer, dentro dos seus espasmos possíveis na legalidade: sabidamente

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não enfrentará as raízes da inflação, não enfrentará as duas dívidas, nem enfrentará o longo prazo do nosso atraso social já - pelo menos - bissecular, mas cumulativo, enquanto não for explosivo: nenhum salvador-da-Pá~ poderá encami­nhar para bom porto este espectro de problemas sem uma maciça continuidade de investimentos por duas décadas, pelo menos. Com quê? Esmolas internacionais, nacionais, vicinais? Falta ao futuro governo (como faltará ao governo entrante) o que tem em excesso para com os banqueiros sempre beneficiários: falta-lhe legitimidade para o indispen­sável diálogo com os trabalhadores, pois que a massa /um­pen-proletária que votou nele está certa do milagre do b<!m­estar, para o qual dá prazo e prazo curto. Depois, virá o quê?

É óbvio que o novo governo não enfrentará os proble­ma:; básicos de nossa sociedade, posto que isso seria, além de uma violência, trair os interesses fundamentais de classe que o levaram ao poder, e amanhã podem desestabilizá-lo. O projeto explícito é administrar o nosso capitalismo real, isto é, administrar a fome e a concentração de renda, sem prejuízo de um mínimo de harmonia social ao preço de concessões secundárias no que for secundário, de sorte que a estrutura institucional não sofra um mínimo de ameaça e sem ameaças permaneça a estrutura de dominação. Em qualquer hipótese, a conta será paga, e já está sendo cobra­da. Mas não faltará ao novo governo recursos de prestidi­gitação e maquiagem para, por algum tempo, com pão ou não, manter o circo em cena aberta, bilheterias liberadas, e, graças aos mecanismos de mistificação das massas e de dominação ideológica, tão ao seu dispor, prorrogar o controle das elites dominantes que nominalmente desafia quanto mais serve aos seus projetos históricos.

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O LESTE EUROPEU E OS SOCIAUSTAS BRASILEIROS

Diante daquilo que a imprensa, no geral, vem batizando como "crise do leste europeu", as análises, apressadas, têm circundado duas reduções igualmente falsas, se bem que antípodas. De um lado, o conservadorismo catastrofista pro­clama a "morte do comunismo"; de outro, comunistas ou socialistas ou esquerdistas retardatários proclamam a gran­de demonstração de "vitalidade do socialismo".

(Há ainda uma outra tese, ingênua ou alienada, a dos que simplesmente dizem: nada temos a ver com isto, porque esses regimes não são, não eram, socialistas. A "crise" não diz respeito ao socialismo, portanto ... Ou seja, a velha e sediça experiência do avestruz enterrando a cabeça no pri­meiro buraco para esquecer a realidade, mas nem por isso deixando de ser presa fácil dos caçadores ... )

Recusando esse simplismo, afirmamos que aqueles eventos- que não se circunscrevem, tão-só, àquela demar­cação geográfica- têm, em comum, duas superações (e, simultaneamente, duas condenações), a saber: a) do modelo de tomada (via assalto) do poder operado naqueles países; e b) do modelo político-econômico do socialismo soviético­burocrático-autoritário. A conjunção desses elementos está

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na raiz da crise, que não é só meramente política, cujos çlesdobramentos têm revelado, até aqui, pelo menos, dois conjuntos de alternativas: a) a revisão do "modelo" de "socia­lismo real" em uns, e b) a retomada mesmo da economia de mercado, em outros. Em todos eles. uma saudável lufada de democracia, no seu sentido clássico. representada pela recuperação do Parlamento e do parlamentarismo. (Repe­tindo a conhecida resposta bumerangue, aqueles efeitos começam a incidir sobre a sociedade matriz das mudanças, a qual, propiciadora das reformas fora de seus limites, se, num primeiro momento, se mostrava infensa às modifi­cações desencadeadas, parece agora por elas atingida; as conseqüências do rompimento, em processo, do monoli­tismo do PCUS não podem ainda ser criteriosamente anali­sadas neste texto, tanto quanto carecemos de elementos para avaliar o que será a inevitável recomposição das nacio­nalidades naquela federação, quanc'o a união dos Estados então vocativamente reunidos e assim realmente livres à secessão, não se dever, como originariamente, a imposição de uma geopolítica fundada na estratégia da guerra inevi­tável.

Em todos esses países, nesses nos quais a crise é explo­siva, e naqueles nos quais a crise é latente ou ainda não se manifestou (mas se manifestará, em breve, sem surpresa para o analista atento), um traço dentre todos é comum, ainda como resultado daquele modelo imposto de forrna exógena: nada obstante os avanços sociais inequivocamente alcançados. ficou igualmente posta a nu a fragilidade da democracia nos termos de sua matriz ocidental - matriz e valores por tantos anos e em tantos países desconside­rados. A história revelará um dia os prejuízos causados ao socialismo, seja como experiência real, seja como doutrina, por esse desvio. Se sua origem. sabemos hoje, remonta à história da implantação do "socialismo em um só Estado" (e em outra oportunidade haveremos de discutir as conse­qüências das diversas formas e oportunidade de implan-

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tação dos regimes socialistas nas diversas partes do mundo), a procura de legitimação impôs ao marxismo um empobre­cimento tal que faz hoje com que muitos dos fatos desen­volvidos no leste europeu tenham entre muitos de nós assi­milação difícil e ainda mais difícil explicação. As dificuldades atingem tanto os teóricos quanto as instituições ortodoxas da revolução socialista. Estas se apresentam, em todo o mundo, despreparadas para a construção do futuro, e nos­sos teóricos não parecem suficientemente preparados para a reconstrução das concepções leninistas de partido, de partido único e de ditadura do proletariado, reconstrução que implicará, necessariamente, a recuperação de seus fun­damentos democráticos originais, incompatíveis com as "contribuições" pragmáticas do "socialismo real", cujas fon­tes remontam a um stalinismo que jamais será suficiente­mente exorcizado. Fora daí, será brigar com a história, o que não fica bem em nenhum marxista ...

O que, linhas atrás, denominamos de "lufada de demo­cracia", sabemos, não se trata de fenômeno adstrito aos países socialistas europeus. Talvez a característica mais des­tacável da última década do século seja a retomada do conceito de democracia como valor válido para a humani­dade, alinhando em um só processo, simultaneamente, paí­ses desenvolvidos e países subdesenvolvidos, países socia­listas e. países capitalistas, o hemisfério sul e o hemisfério norte.

Esses, os temas que pretendemos abordar neste texto. Discutamos, inicialmente, a questão da democracia.

O conceito de democracia implica as liberdades políti­cas e civis consagradas a partir do liberalismo e da Revolução Francesa, e, como conquistas burguesas, incorporadas -de forma jamais uniforme, isto é, democrática, sabemos nós - ao patrimônio ético-político da humanidade, nada obs­tante a resistência e mesmo os preconceitos de muitos de nós, marxistas. Esta é uma verdade necessária, mas não

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suficiente, uma vez que o conceito de democracia também implica - e implica necessariamente (e nesse porito os marxistas estiveram sempre certos)-o conceito e a realiza­ção da justiça e da igualdade sociais, conquistas sociais incorporadas ao patrimônio ético-político da humanidade desde o sucesso dos sovietes. Em outras palavras, queremos dizer que democracia não é, sozinha, quer uma categoria política, quer uma categoria econômico-social, posto que é, a um sô tempo, uma só categoria, político-econômico­social - na qual esses elementos todos não se sucedem: vigem simultaneamente, e só simultaneamente.

É nesse sentido, e por isso, que a humanidade ainda não conhece a plenitude democrática, mas não será por isso que ela se tornará menos urgente e seu pleito menos necessário.

Se a humanidade não conhece a plenitude democrática, assim como concebida linhas atrás, conhece, porém, a expe­riência da democracia burguesa. Esta atingiu seu auge, até agora, no capitalismo avançado, que se vai caracterizando pelo respeito formal da própria lei que conseguiu implantar no seu seio, atribuindo à própria lei as deficiências sociais que continua a alimentar, e das quais irrecusavelmente de­pende sua riqueza, mais ou menos concentrada. O jogo político é, assim, no seu seio, um jogo legal, que avança à medida que avançam as condições legais para que as injustiças sociais - va!e dizer as desigualdades sociais -sejam minoradas, administradas, não dizemos superadas. A transformação ou mudança social de capitalismo avan­çado em socialismo - (e não estamos dizendo que seja essa, necessariamente, a seqüência} - não é objeto de pregação partidária ou de partido catastrofista, nem é objeto de uma política do quanto pior melhor.

Cada passo à frente é conquistado, lutado, mas cons­cientemente, com o que a estruturação dos partidos de esquerda se faz como condição da própria existência do

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império da lei. O império da lei não é nem o império da justiça nem o império da igualdade; é, tão-só, o império da legalidade, de uma legalidade especifica, cuja ritualística tem por objeto assegurar a administração das desigualda­des, de sorte que, assegurando a sobrevivência do domi­nado, assegure também a sobrevivência do dominante, aquele por este. No capitalismo avançado em que há formas legais parafascistas de prescrição das esquerdas, a plenitude democrática mesma, só burguesa, não floresce, com o que se exibe mais grosseiramente seu caráter de exploração de classes (ainda que} legal. Neste sentido, a Alemanha Federal, os Estados escandinavos, a França com seu "socia­lismo" larvar mas in fieri, a Itália e países comparáveis reve­lam uma saúde democrática superior ao bipartidarismo nor­te-americano, biburguês, inferior de longe ao bipartidarismo Inglês. Ressalte-se uma vez mais que, em todos os Estados nos quais a social-democracia logrou avanços sociais e polí­ticos, esses se deveram e se apóiam ainda na sobreexplo­raçáo histórica e contemporânea dos povos das nações sub­desenvolvidas, e, em todos os casos, funda-se na exploração do homem pelo homem, que o socialismo tem como destino superar.

Se se toma o quadro político do socialismo dito real do leste europeu - mais ou menos desenvolvido e mais catastrófico em seu trânsito quanto menos democrático -ver-se-á que nele se exibe, inequivocamente, o malogro da democracia no seu conceito político. Os avanços econó­micos espetaculares que teve de início, a solução dos proble­mas básicos da instrução, alimentação e instrumentação física da vida social, tudo isto se necrosou na medida em que crescia o monolitismo do partido único e as grandes massas populares o evitaram, carentes que estavam de re­gras de um jogo igual a que todos pudessem aceder.

O estrangulamento foi tal que - espetacularmente -a sede de democracia aceitou pór em risco a construção social!

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Entre os extremos - uma Alemanha Democrática prós­pera mas não democrática e uma Romênia próspera (único país do mundo que saldou sua dívida externa!) mas stalinista - de um lado aflorou a democracia, numa festa cívica, de outro lado a luta intestina, pesada e sangrenta. A peres­troika com sua glasnost, fez soltar os freios do monolitismo e do monopolismo do jogo político e - soltando também os freios das crises raciais, nacionais, religiosas, culturais, sotopostas pelo autoritarismo- deu um exemplo de trânsito que lhe está custando um alto preço, sobretudo naquelas áreas em que a democracia entre etnias e diferenças ideoló­gicas-religiosas-históricas foram desconhecidas mas não superadas.

Nos países de capitalismo subdesenvolvido, a demo­cracia - e os partidos que a postulam sinceramente -são mais numerosos, não porque o jogo do império da lei seja mais fecundo, mas porque entre a realidade social das grandes massas-'- em que o império da "democracia'' fica a critério dos poderosos e os poderosos legislam sempre em causa própria - as aspirações partidárias se cifram a um simulacro de luta legal entre dois partidos ligados à burguesia, a dominante e a aspirante ao revezamento, enquanto os partidos realm~nte oposicionistas (descartados os personalistas que existem a reboque de um "salvador" carismático) se estraçalham, na afirmação de cada um de que é o "verdadeiro" intérprete da "verdadeira" doutrina socialista: socialismo verdadeiro, socialismo puro, socialis­mo salvador, socialismo monolítico, socialismo democrãti­co-unipartidário. Se há troca de siglas no governo, não há alternância no poder.

O quadro brasileiro, a este respeito, é característico. As "cisões" -que sempre existiram - foram sempre histo­ricamente justas, porque injustos e inviáveis (fora do golpe) eram o unicismo partidário e o monolitismo, que expulsavam

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de seu próprio seio a democracia partidária, e, ipso facto, a própria democracia, pura e simplesmente.

A razão de ser do socialismo não consiste em realizar a categoria político-econômico-social dentro de fronteiras nacionais. A humanidade- enquanto aceitar o jogo interna­cional de país~s avançados e países atrasados, quer dizer, de países desenvolvidos e países subdesenvolvidos, vale di­zer, de pá~ses beneficiários da vida internacional e países tributários da vida internacional - não fugirá à necessidade do socialismo. Por isso, não há futuro sem o socialismo - forma '"natural" de ser dos homens e da humanidade de amanhã. Este, em fronteiras nacionais, é sempre univer­salista, o que o capitalismo tem mostrado não ser: cosmo­polita, com o colonialismo tomou conta do mundo inteiro, que, agora, mais capaz, mantém no atraso, para benefício dos seus nacionais {sua maioria) e de minorias dos países que sustenta no neocolonialismo. Esta visão do mundo é que matiza a inevitável diferença dos partidos de esquerda no mundo contemporâneo, e mais do que nunca após os eventos do leste europeu.

Há assim, uma inevitável presença necessária do socia­lismo no mundo. Sem essa presença ideológica e progra­mática, a social-democracia burguesa, de tipo escandinavo, por exemplo- que logrou sua relativa estabilidade burguesa graças a uma eficaz inserção no sistema internacional de exploração e produção, com requintada riqueza persona­lizada e funda tributação social, que garante, por sua alta produtividade, alta preparação dos seus recursos humanos e alta tributação, uma previdência social poderosa que prati­camente exclui do seu seio a miséria e o subdesenvolvimento - não existiria. Mesmo assim isso tem que ser a preço da desigualdade e assimetria do desenvolvimento interna­cional. No bojo da prosperidade escandinava- para tomá-la como termo de referência exemplar ou privilegiado - há

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a força do socialismo emergente, ainda não internaciona­lizado.

O que o ufanismo capitalista não pode çonfessar é de clareza meridiana: ele não pode nascei, crescer e consoli­dar-se senão através de um desenvolvimento que, concen­trando as benesses, explora. Para diminuir a exploração na­cional, criando a sua forma moderna da social-democracia, tem que sustentar a divisão internacional do mundo- entre "desenvolvidos" e "subdesenvolvidos". Como já bem obser­vou o Senador Jamil Haddad~ "o quadro humano atual mos­tra que o capitalismo continua selvagem e mais selvagem ainda o é nos países subdesenvolvidos: multiplica em todos os pontos da terra a população humana como "exército de reserva" e como mercado consumidor, aviltado, mas lucrativo. Degrada essas populações pela monstruosa con­centração de riqueza e de renda, pela sonegação de recursos para a recuperação ambiental, para a saúde, para a educação e para a ampliação e melhoria da Previdência Social".

É incontestável que a luta pela sobrevivência do capita­lismo tem requintado a pesquisa científica de interesse hu­mano geral e sua aplicação tecnológica, algumas das quais obviamente parasitárias, numa aferição de interesses huma­nos globais Uá se imaginou uma humanidade com o poder de compra do chamado cidadão "médio" norte-americano, com seu consumo per capita de energia, com sua detenção personalizada de automóveis?). E evidente, porém, que esta tecnologia é suicida, e, antes de suicida, assassina, genocida, porque nos seus aspectos suntuários hedonísticos foi em outros pontos tão longe que criou fatalmente o mais prós­pero e perdurante sistema de desigualdade humana. Num ponto, porém, contra sua própria expectativa, superando-se a si mesma, em lugar de criar a arma que lhe desse o poder absoluto eterno, criou a arma que lhe retirou definitiva­mente este poder: a bomba atômica e os seus filhotes. Hoje,

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a ÜRSS, humildemente, com a prática da "defesa suficiente", está pondo no lixo da história este sonho de poder absoluto.

O leste europeu - com todas as mazelas exibidas na hora presente - revelou uma notável capacidade distribu­tivista, ainda que alimentando uma nomenk/atura, inevitável no seu monolitismo unipartidário. Foi aí que se puseram em risco os ideais socialistas: a dialética do político-econômi­co-social concomitantemente afogada pelo monolitismo unipartidário antidemocrático foi superior às mazelas, ace­nando com uma superação que se está fazendo por via pacífica, essencialmente: se se descarta o stalinismo não superado da nomenklatura romena e se se compreendem os ajustamentos interétnicos da área, pode-se ver que o processo do socialismo, longe de ser liquidatório, é renas­cente. E insubstituível no subdesenvolvimento, já que, mes­mo quando não acede ao poder, força a burguesia a com­preender que, sem concessões substanciais, se asfiXiará sua própria incapacidade distributivista.

Discurso no Senado Federal , 6 de março de 1986

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O SOCIAUSMO E O "PROJETO NACIONAL" BRASILEIRO

Qualquer existência partidária é uma mistificação social se não se eixa num programa, de curto prazo e de longo prazo, de transformação coletiva, sob uma ideologia ou ne­cessidade mais ou menos caracterizadas e fundamentadas. Essa ideologia, qualquer que seja, coloca-se como uma aspiração que pode - e deve - ser discutida, mas só pode ser polemizada- numa democracia- quando ponha em risco o bem conquistado pela maioria da sociedade.

Para a vida dos homens em sociedade, não há regime político, Estado, Nação, estrutura social, povo, cultura, eco­nomia, ética, que seja a perfeição - isto é, algo acabado, consumado, definitivamente realizado; por isso há o impera­tivo humano de buscá-la sempre, sabendo que sempre a buscaremos. Mas não é um trabalho de Sísifo - o de levar sempre ao topo da montanha a pedra que cairá de novo. Na busca, há conquista, que só se perde nas catástrofes: aqui, quanto melhor, melhor.

Mas a prática ideológica vem polarizando os homens em dois feixes ideológicos: o dos que postulam que acima de tudo importa preservar as conquistas conseguidas rumo da perfeição e o dos que postulam a urgente necessidade

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de acrescentar às conquistas havidas novas conquistas, a fim de que a liberdade possa ser um bem concreto vivido pelo maior número possível de cidadãos e concidadãos.

O PSB se coloca, programaticamente, no segundo feixe, sem equívocos. E o faz com a consciência clara de que o socialismo é uma ideologia que tem de assumir, a cada caso nacional, uma feição programática, prática, política, diferente, em respeito ao próprio passado nacional e às potencialidades nacionais imediatas e futuras.

Isso implica - no momento em que o processo holís­tico, quer dizer, total, global, dos homens sobre a terra passa, como agora mais do que nunca, por uma reavaliação geral, que só é negado pelo mais empedernido conservan­tismo, que não pode ceder um nada do seu imobilismo estrutural - , isso implica relembrar e reestimar certos con­ceitos e práticas universais.

Há, presentemente- pelo menos na propaganda ideo­lógica do capitalismo - um triunfalismo quase caricatura!, não fosse ele verdadeira manifestação de perplexidade e medo. Com efeito, no " fracasso" do socialismo do Leste e de seus conexos, não se alardeia a espantosa saúde cívica com que pôde transitar, do monolitismo, para a busca na liberdade de seus novos caminhos e não se realça que as manifestações de retomo à grande propriedade privada dos bens de produção são mínimas e não estão no cerne do problema. Omite-se, entretanto, que o "triunfo" do capita­lismo tem sido o preço de uma permanente e progressiva concentração dos seus bens e méritos em mãos de minorias internacionais e nacionais usufrutuárias do esforço humano geral, ao preço da marginalização de pelo menos dois terços da humanidade - da humanidade internacional, entre paí­ses avançados e das "humanidades" nacionais dos países atrasados (ou, eufemisticamente subdesenvolvidos e, hipo­critamente, em vias de desenvolvimento), em que um baixo percentual de cada população goza dos benefícios sociais

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mais altos, em óbvio conluio- sempre- com os "avança­dos" dos países avançados. Omite-se o preço humano social e internacional - com a sobreexploração dos povos dos países atrasados. Omite-se mesmo a miséria real do capita­lismo real dos países ricos. Omite-se que, na rica Inglaterra de Margareth Tatcher, a miséria, em um só ano, fez matar 400 crianças de menos de um ano; omite-se que na França da social democracia "socialista" de Mitterrand, nos úhimos dez anos, o número de famílias pobres cresceu duas vezes mais rápido que o global da população; todos os parãmetros estatísticos indicam escandaloso crescimento da desigual­dade social e da miséria. Na rica Montreal, 20 mil cidadãos recebem diariamente socorro alimentar de organizações as­sistenciais, sem o que não teriam como sobreviver. Há cinco anos esses pobres-miseráveis eram menos de seis mil pes­soas. Nos EUA, há 30 milhões de "miseráveis", estatísca­mente.

No caso concreto do Brasil, os partidos de ideologia socialista ou afins têm de repensar o "nacional".

Somos herdeiros históricos de um colonialismo unitá­rio, centralizador, autocrático, escravista, impositivo. Essas marcas perduraram durante o Império. A República, formal­mente, fez-se federalista, descentralizada, liberal, consensual - não por acaso, do ponto de vista das aspirações dos seus pró-homens, mas, também não por acaso, só teorica­mente, na realização dos seus beneficiários e usufrutuários tradicionais. Ao mesmo tempo que se liberava do escravismo jurídico e real, instituía o escravismo despistado dos salários vis, até o coroamento aperfeiçoado do salário mínimo, trans­formado em salário legal tão infame quanto a paga que o escravo tinha ou não tinha.

Ao mesmo tempo que criava a Federação, instituía a "política dos governadores" , a do "salvacionismo" e do "ca­fé-com-leite" e, sobretudo, a dos "regimes militares" (Flo­riano, Hermes da Fonseca, o primeiro getulismo, os regimes

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militares e paramilitares de 1954-1955 e o "gloriosismo de 64-84"), que reduziram os ideais republicanos a um magro saldo de esperanças frustradas.

Mas o estigma original ficou e aí está ainda, latente: ficou no voto, que só no último pleito presidencial pôde ser "igual", nos limites de nossa imensa desigualdade real, voto que corre os riscos dos recuos tradicionais, se os parti­dos progressistas e socializantes se deixarem empulhar por manobras eleitoreiras. Ficou na própria Constituição, cons­truída para ser organicamente parlamentarista, mas recau­chutada à última hora como presidencialista e correndo o risco de-no presidencialismo como no parlamentarismo -ser capenga, por indefinição do voto (distrital, majoritário, proporcional?), da representação, da regionalidade, da esta­talidade - e os partidos socialistas e progressistas não po­dem ignorar que as indefinições jurídicas e constitucionais sempre existiram e existem para proveito dos reacionários, da grande elite brasileira, usufrutuária da riqueza concen­trada, beneficiária histórica do trabalho coletivo e da miséria, beneficiária fundamentalmente da exploração nacional das grandes potências, beneficiárias internamente da exploração infame do homem pelo homem que produz a riqueza de poucos e a miséria de quase todos, preço daquela.

Somos herdeiros de um ideal lingüístico do certo único, que tornou o senhorio de nossa língua algo inacessível a quase todos, primeiro, pelo artificio de suas regras, segundo, pela ausência sistemática de um ensino de base decoroso, instrumento que, faltando como falta desde sempre e hoje degradado ao máximo, impede, efetivamente, que 70% dos brasileiros possamos aceder a uma cidadania consciente moderna e a uma profissionalização produtiva, já que quase 100% das profissóes modernas exigem, pelo menos, um ensino de 8 anos, de 8 horas por dia, com 240-260 dias por ano (na prática, em média, nem um quarto disso se dá à criança brasileira - e neste País se fala em politica de recursos humanos!)

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No Brasil, o nacional não é a expressão concertada de um ideal lingüístico nacional, de um ideal cultural nacio­nal, de um ideal social - de sociedade - nacional, de um ideal racial inter-racial, mas um nacional de valores parti­culares de uma elite pouco nacional e nada popular, que impõe sua vontade, seus valores, sua visão do mundo, sua cultura e sua incultura para a absorção passiva das grandes massas nacionais desaparelhadas de instrumentos de resis­tência.

Temos de repensar o "nacional", como temos de repen­sar o "nacionalismo" e seus corolários, o "patriotismo" e o "civismo". Não se trata de reviver o "civilismo versus milita­rismo", mas trata-se, sim, de postular permanentemente que não pode haver o monopólio cartorial da definição de "nacionalismo" e de "patriotismo" em mãos (ou cabeças) ou punhos ou espadas, pois a ninguém cabe disciplinar a esse respeito sem audiência de todos os brasileiros, via Congresso Nacional. A "segurança nacional" não é função do pensamento de uma fração mínima do País, por mais qualificada que esta seja ou se presuma: seus dramas e aspirações só poderão ser representativos quando forem antes os da imensa maioria da Nação. Não é representativa da realidade brasileira uma idealização tal da juventude brasi­leira que sua impotência, em idade de conscrição, é sistema­ticamente rejeitada, por ausência de condições de saúde fisica ou mental - o que pede que os militares repensem esse desvio, investindo na saúde e alimentação parte do que gastam na modernização material de umas forças arma­das que, para funcionarem segundo sua eficácia ideal, pode­rão demandar, em lugar de patriotas, mercenários saudáveis mas não brasileiros.

Assim, se o quadro social brasileiro é retardatário em matéria de direito e propriedade agrária, de direito e proprie­dade urbana, de direito às liberdades civis e cívicas, às práti­cas sociais modernas, é preciso que fique patente que é

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correlativamente retardatário em quase tudo por que se pos· sa manifestar um País que queira oferecer aos seus cidadãos um mínimo de decência de vida, para que se possa criar o clima de decência moral, de decência ética, de decência profissional, de decência hígida, de decência alimentar, de decência infantil, de decência juvenil, de decência feminil, de decência sexual, de decência intelectual - de decência.

É claro que os partidos não socialistas "lutam desas­sombradamente'' contra todas essas indecências - mas com a lógica dos sem-culpa. Essa hediondez - dizem -não foi construída por eles, não foi desejada por eles, não é decorrência de sua voracidade no abocanhar a parte do leão da produção coletiva. Ela provém alegadamente de nossa história, de nossa preguiça, de nossa falta de saúde, de nosso zé-povinho sem fé nem garra: em suma, o brasileiro é um infeliz porque é "brasileiro", isto é, está condenado a não querer estudar, a não querer trabalhar, a só querer folgar, a só querer reivindicar. Há, como se vê, nisso, um apartheid mais perfeito que o original, pois não precisa con­fessar-se como tal.

Essa ideologia que contesta a miséria dos explorados como se desejada deliberadamente pelos explorados mes­mos se manifesta em todas as oportunidades dos debates ideológicos. Isso tem que ser discutido e rediscutido perma­nentemente: um partido socialista ou progressista que não denunciar permanentemente isso, que não politizar perma­nentemente seus quadros nessa direção, estará fadado a pouco contribuir, nos entrebates necessários do multiparti­darismo, para o avanço subjetivo e objetivo da nossa vida coletiva.

Se o caminho do catastrofismo e do armismo lhes é vocativamente vedado no mundo de hoje, não lhes é veda­da a análise concreta do abjeto monopólio da terra rural e urbana, do ensino, da saúde, da locomoção, da alimen­tação, da dignidade mínima de viver.

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É claro que temos, a tal respeito, que mostrar que essas instituições barram o nosso progresso social, não apenas porque o barraram em outros países que souberam liber­tar-se desses entraves: é preciso que vejamos como aqui se desenvolveram, como aqui se radicaram, como aqui se tornaram e são fontes do imobilismo social e estrutural, como aqui ditam o que pode o que não pode haver -transformando em exploração vergonhosa, eJcibida nos meios de comunicação de massas como algo natural cuja culpa não é de ninguém ou é, no máximo ou mínimo, do próprio explorado. lmpingiram-nos a ideologia do carnaval: no Brasil, só é infeliz quem quer, pois todos podemos ser rei... Mas continuamos os danados da terra.

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A UNIDADE ORGÂNICA DA ESQUERDA SOCIAUSTA

Qualquer regime razoavelmente democrático depende de um sistema de partidos razoavelmente livre e consolidado. Ora, sem partidos não há horizontes possíveis, não há hori­zontes políticos - entendendo por horizontes políticos pos­síveis os horizontes políticos democráticos, caminho sem o qual jamais construiremos os horizontes políticos demo­cráticos sociais - isto é, sem a fome da imensa maioria, imensa maioria sem educação e sem instrução, sem saúde e sem sanitariedade, em suma, sem um pseudo-Brasil que só conhece a menos de 30% dos seus filhos. Ou seja, sem que menos de 1 % , a imensa minoria, tenha vida nababesca e marajônica -com direito a vida "privada" e a vilegiaturas as mais exóticas - para que os outros vegetem na miséria nacional.

Os partidos - essa instituição fundamental da vida político-democrática que no entanto sobrevive - no quadro brasileiro de hoje, podem, grosso modo, oferecer dois mode­los de estruturação, a saber: a) partidos nos quais a existência de tendências diferenciais é admitida, subordinada, todavia, nas questões substantivas, à obediência às decisões partidá­rias coletivas em que concorrem em igualdade de condições;

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e b) partidos nos quais, ademais dessas tendências, é admi­tida a existência de tendências outras, organizadas, autôno­mas, com direção própria, formal ou informal.

Alguns partidos buscam alinhar-se no modelo supra, como é o caso do PSB. Fora dessa tentativa de classificação, estão os partidos leninistas-ortodoxos e, deles hoje aparta­das, as organizações que não assimilaram preferentement~ a via legal como instrumento de conquista do poder. A margem dessa tentativa de classificação estão ainda os mo­vimentos, ou partidos-frente, ou partidos-ônibus, ou parti­dos-kombi, como queiram: aqueles ajuntamentos de interes­ses que não perseguem um projeto comum e coletivo de tomada do poder e organização do governo. Dispensados os exemplos.

Para quem acompanha a evolução dos acontecimentos internacionais, a via legal e pluralista na Europa desenvolvida e em grande parte da América Latina é a só alternativa oferecida à democracia e às conquistas sociais, se não se quiser ·O aventureirismo e o catastrofismo do quanto-pior­melhor, posto que, sabemos já, quanto-pior, pior mesmo. É também a via pela qual é possível construirmos um mundo em que se buscará, progressivamente, espancar o espectro da guerra, mais, o espectro da guerra total, seja, o espectro da extinção da espécie. Em nossos países, um genocídio silencioso, sem tiros, sem cogumelos atômicos; aqui, a espé­cie se extingue de fome. A condição humana se degrada, a humanidade se animaliza na miséria abjeta que anula a cidadania.

A vocação ao unipartidarismo está arraigada nos so­nhos dos políticos de direita - donde as ditaduras sem-nú­mero que o confirmam ao longo da história do mundo moderno -, como também o foi nas políticas de esquerda, a partir da revolução bolchevique.

Os eventos do leste europeu desta hora estão ensi­nando que aquela política era uma doença senil do direitis-

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mo; esses eventos abrem caminho para a afirmação inequí· voca do pluripartidarismo e para a função construtiva, sem exclusivismo, do socialismo democrático - ou da demo­cracia socialista - que continua, isso sim, a ser o farol de uma humanidade sem guerra, sem fome, sem exploração do homem pelo homem.

Ainda aqueles eventos do leste europeu ensinam, final­mente, que a política de partidão, do grande e único partido de todas as esquerdas (brasileiras, em particular) é um velho cacoete da direita. E do stalinismo.

As novas concepções e as novas experiências- dentre elas destacando-se a formação e o desenvolvimento da Frente Brasil-Popular- mostram a possibilidade, até então controvertida, da unidade das esquerdas e do movimento popular. Mostram, igualmente, o seu veículo, a política de Frente, que unifica a cada conjuntura as diferenças, que devem ser respeitadas, entre partidos e movimentos de es­querda. Parece evidente- e aí a história recente do leste eu­ropeu melhor relata -que o partido único é prática peremp­ta. Há de ser substituída pelo pluralismo de partidos, de especial de partidos de esquerda, pela existência de tantas organizações a quantas corresponda o leque das divergên­cias significativas.

É, fundamentalmente, por essa razão, que não parece corresponder à realidade do desenvolvimento político de nosso País a retomada de antigas propostas de organização de um grande e único partido de esquerda, como se fosse possível uma organização tão ampla que pudesse, sem des­caracterizar-se, abranger espectro tão vasto. Entendemos exatamente o contrário, ou seja, que esta é a hora de fortale­cermos os atuais partidos de esquerda, mesmo lato sensu, mesmo os não socialistas, e aprofundarmos entre nós a frutuosa prática da Frente. Isso é tanto mais correto quanto a nova disciplina eleitoral possibilita as coligações, tanto

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proporcionais quanto majoritárias, e, quanto a estas, enseja o segundo turno, modelo pelo qual tanto nos batemos para vê-lo consagrado na Constituição de 1988.

Seja do ponto de vista tático, seja do ponto de vista estratégico, a política de frente, de frente de partidos, que pressupõe, é quase um truísmo, o pluralismo partidário, é a melhor política para o processo democrático como um todo, e, de particular, para o avanço das forças populares e socialistas.

A política de frente, para conservar-se vitoriosa, carecerá de partidos fortes a sustentá-la; como já dissemos, ela é incompatível com o monolitismo ou com a hegemonia que destrói o parceiro. Aliás, essa foi uma das dificuldades mais presentes na administração da Frente Brasil-Popular, a fla­grante desproporção de forças entre os partidos seus inte­grantes. Se a longo prazo a luz da história ilumina o caminho da pleiteada unificação orgânica - vocativa e não compul­sória- da esquerda socialista, a política prática requer desse projeto, hoje, a política de frente, de frente popular com hegemonia dos partidos de esquerda, que, por seu turno, requer, inafastavelmente, o pluralismo partidário e ainda o pluralismo de esquerda, mas o pluralismo de partidos em condições de promover o diálogo entre iguais, ou quase iguais.

A UNIDADE ORGÂNICA DA ESQUERDA SOCIAUSTA

A conseqüência mais imediata da Frente Brasil-Popular será a unidade orgânica - vocativa - da esquerda socia­lista.

A política de Frente indica a política de unificação orgâ­nica da esquerda socialista; como unificação orgânica enten­demos a consolidação institucional das diversas tendências em uma só estrutura partidária, propiciando a organização

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e a atuação efetiva de um Partido (um entre os demais, jamais um só partido) forte, flexível, ágil, militante, inserido no movimento social, capc.; de assimilar, dar unidade e seqüência, conseqüente às mais variadas formas de luta, adequando-se à diversidade regional e às especificidades das reivindicações trabalhistas, com as quais estará substan­tivamente comprometido, sem jamais perder de vista a ques­tão nacional predominante, à qual as questões regionais e estamentárias estarão subordinadas, tática e estrategica­mente. Vários e diversificados são os passos que podem levar a esse partido da esquerda socialista - cujo estuário pode e deve ser o Partido Socialista Brasileiro -, o primeiro dos quais é a atuação comum e unificada na vida política real, no movimento social e na atividade parlamentar, tanto quanto na via eleitoral dos diversos segmentos e tendências socialistas. A pedagógica atuação comum- aprofundando em todos os segmentos laborais e da sociedade a expe­riência frutuosa da atuação comum da esquerda e dos pro­gressistas na Constituinte- poderá consolidar-se mediante a elaboração de um programa comum da esquerda socia­lista, apontando para o ainda indefinido projeto nacional brasileiro socialista, isso do ponto de vista estratégico; e, do ponto-de-vista tático, indicando as alianças adequadas, os caminhos que poderão, deverão, levar um dia à sociali­zação dos meios fundamentais de produção. Trata-se, por­tanto, de um reencontro histórico, necessário e inadiável da esquerda socialista e democrática, o qual poderá iniciar­se com a efetivação da atuação comum da militância nos vários campos de sua atuação política e partidária.

Uma vez mais, a sociedade, a vida prática- a inserção social - , resolverá os probiemas que as lideranças têm dificuldade de encaminhar.

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A FALSIACAÇÃO DA HISTÓRIA

Os raciocínios "fundadores" de certas práticas, mais que teorias, de certa parte da imprensa internacional e da quase totalidade da "boa" imprensa terceiro-mundista e, nela, conspicuamente, a brasileira, é uma ciranda de lógicas e paralógicas que assumem ares de filosofia da História - se fazem triunfalistas, condenando não apenas os erros passados, mas -como são oniscientes -os erros presentes e os erros futuros: fora do capitalismo- com suas moraliza­ções, o imperialismo (o colonialismo bruto é residual, deixe­mo-lo como está, não faz mal a ninguém ... salvo aos pró­prios, hoje tão poucos, colonizados), o transcapitalismo, o gerencialismo, o oligomonopolismo, o monopólio da mente, da técnica, da ciência e da informação e formação - fora do capitalismo (repitamos) não há salvação, tanto (é o óbvio) para os já salvos, quanto (é muito mais óbvio, nas suas lógicas) para os salvandos, salváveis e salvaturos: a estes, só se lhes pede compreensão, inteligência e paciência. Mais dois, três seculozinhos, quem sabe?

A scíence fiction está tomando o lugar da outra face da História, a relatada, a escrita, a propriamente dita historio­grafia. E já que o passado vive pulsante como o presente, e o futuro é mero presente e passado de dentro em pouco,

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tudo o que está acontecendo continua acontecendo e já está (perdoem-nos) antecipadamente acontecido. Fora do capitalismo - "verdadeiro" fim e finalidade e escopo da História - não há salvação!

E vamos à fantasia que começa a medrar por aí: como a essência da vocação social e política humana- e a fantasia vai além, porque não só humana, senão que zoológica, botá­nica, mineral, intersticial - como essa essência é demo­crática, pergunta-se: por que não decidir que o eixo de tudo - passado-presente-futuro - é perfectível, mas persona­líssimo: logo, eu (e somos hoje quase seis bilhões de seres humanos, nenhum "mais" valioso ou importante do que os outros - oh! esplêndida hipostasia ou hipocrisia equali­zante!) tenho o meu eixo total, que uso como quero, corrigin­do-o como quero, não interferindo - democraticamente - no eixo de cada um: a História só existe para cada um, só é manipulável por- sabemos- cada um, só é corrigível por iniciativa de cada um para si mesmo: isso explica a expansão espantosa dos universos, pois por ora são mais ou menos em função do nascimento ou da morte de cada um ... Isso explica a ostensiva "pobreza" do número de cren­ças, credos, crendices, religiões, que da Índia aos Estados Unidos da América, passando pelo Brasil, se multiplicam, em "denominações" salvadoras. Fora do capitalismo-per­doem! - do irracionalismo, não há salvação.

E este é o cerne do problema: a pós-modernidade -proposta como algo defmido no espaço, no tempo, na men­te, no raciocínio, na lógica e nas ciências e fllosofia{s) -é algo que, como a modernidade, é conceito (ou mera noção ou idéia) fluido, que, por "estar" no tempo, se desloca ou destemporaliza sempre: hoje é, amanhã não é, depois de amanhã não se sabe o que será, como disse o Poeta.

Isso é o cerne de uma neossemãntica - uma nova te~ria burguesa dos significados e sentidos - que vai além, po1s é uma neossematoontologia - isto é, uma nova teoria

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que, delimitando ou criando novos significados e sentidos, " cria", ipso facto, novas coisas; se eu tivesse criado as noções " felicidade" e "riqueza", eu as teria dado a todos. Estamos no reino da irracionalidade, com o qual a burguesia quer fundar o mundo de amanhã, fazendo suportável o de hoje que, a bem da verdade, é "quase" bom para os seus usufru­tuários. A democracia é um bem tão real em si mesmo que a da Grécia clássica (onde nasceu, mas apenas para um, em cada quatro-cinco seres humanos, pois os outros ou eram metecos "estrangeiros" ou escravos) ou a da Bolívia são iguais. É contra essa "igualdade" que o socialismo­em todas as suas modalidades, utópica, real, vocativa e cer­teira - existe. E irá construir o mundo de amanhã.

O ideologismo neossemântico inventa palavras, concei­tos, cria mesmo realidades, produz cortes epistemológicos, gnoseológicos, doutrinas, tempos. Isso não é novo. Tem a idade da história.

Um dos oficios da dominação de classe é a dominação ideológica: a mesma estrutura que controla a economia - por exemplo, privatizando a produção e o consumo -controla o sentido das palavras, os valores, os gostos, as idéias. A livre expressão do pensamento - controlado na sua raiz e através dos mecanismos de reprodução - é também, desta forma, e por isso, uma mera ideologia, um conceito à espera de conteúdo. Assim foi criado o "mundo livre··, em oposição ao mundo socialista, assim necessa­riamente não-livre; da mesma forma, o conceito de "demo­cracia" passou a ser a negação do conceito de socialismo, ou vice-versa, e o mundo passou a ser dividido entre países democráticos e países socialistas, como se democráticos fossem os países capitalistas, como se democráticos não pudessem ser os países socialistas. Assim também foi criado o conceito de "livre-imprensa" ou "imprensa-livre", sucedâ­neo de grande imprensa, em oposição à outra, que, necessa-

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riamente, não pode ser livre. E assim não se fala em manipu­lação da informação monopolizada.

Depois do assassinato da história, insepulta, diga-se de passagem, mata-se o tempo: o contemporâneo vira pas­sado e o presente transita do moderno para o pós-moderno, e, assim, já não mais estamos no hoje, ou, por outras pala­vras, quem está hoje está passado, pois o up-to-date é o moderno que se ultrapassa a si mesmo, e fora do pós-mo­derno tudo é arcaico. O mesmo ideologismo neossemântico que recria os conceitos põe neles tudo o que é do seu interesse pôr, e assim decide o que é moderno (quase inváli­do) ou pós-moderno (o superválido), e o que não é nem uma coisa nem outra é inválido, é o passado, isto é, não é nada, ou, permitam-nos a expressão, "não está com nada"! E desta forma, ou seja, arbitrariamente, foi decidido que "direita" e "esquerda" são conceitos ultrapassados, que o socialismo morreu, que o marxismo "já era", que o Estado "já era". Em nome dessa modernidade super up-to-date há até uma "esquerda" que já defende o Jaissez-faire. E o liberalismo, depois de haver fracassado em todo o mundo (se a história não estivesse "morta", diríamos: o liberalismo é um conceito historicamente superado), faz-se contem­porâneo e moderno, e o moderno volta a ser a velha história da liberdade da raposa no galinheiro: a liquidação da força produtiva nacional, o desmantelamento do Estado como agente de desenvolvimento econômico, a entr-::ga dos recur­sos minerais, a abertura das fronteiras alfandegárias para o "livre-comércio" (de que nos falava a Inglaterra já no século XVIII), livre negociação entre patrões e operários pré-desem­pregados. Ser moderno é voltar a Adam Smith e redescobrir a iniciativa privada como panacéia para todos os problemas da economia brasileira, é bater no funcionalismo público, é demitir sem gerar empregos ou seguro-desemprego, ser moderno é reduzir todos os problemas estruturais ao nosso pobre, incompetente, anacrônico, arcaico, assistencialista,

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populista, paternalista e usurpado Estado. O máximo do moderno na voz do tecnocrata é ainda mais desnaciona­lização; e todos os modernos e pós-modernos, técnicos e tecnocratas e tecnoburocratas querem insaciavelmente, ca­da vez mais, a anulação dos avanços alcançados às custas de tantos sacrificios. Ser moderno é esquecer-se de que o Brasil já tentou de tudo em termos de teorias e práticas capitalistas: já fomos fisiocratas, liberais, ultraliberais, margi­nalistas, entreguistas, entreguistas radicais, schunpeterianos, keynesianos, friedmanianos, fundação-getúlio-varguistas, desenvolvimentistas, recessistas, inHacionistas, desinHacio­nistas, eugenio-gudenistas, campistas, bulhonistas, delfinis­tas, simonistas, funaristas e o desenvolvimento não veio. Certo crescimento, muito concentrado, muito regionalizado, muito injusto, muito imperfeito e sabotado, mas algo capaz de nos permitir sonhar com tempos futuros melhores, só veio mesmo com a aplicação de princípios tímidos derivados da experiência socialista, ou de princípios nacionalistas e nacionalizantes, estatizantes e protecionistas.

Mas isto deixou de ser moderno. Ser moderno é reduzir o capitalismo à riqueza da Suécia,

do Japão, dos Estados Unidos, esquecido de suas contra­dições, esquecido de que capitalista é a África do Sul com seu apartheid, é o Terceiro Mundo faminto e explorado, eram os fornos crematórios de Hitler, as cãmaras de tortura de todos os Somozas e de todos os Batistas, capitalismo é o Brasil, no qual 40 milhões de seres humanos vivem na miséria mais abjeta. Ser moderno é esquecer que o "mun­do livre" -capitalista derramou Napalm sobre as populações civis do Vietnam, assassinou Salvador Allende, Patrice Lu­mumba e Rosa Luxemburgo, financiou os "contra" da Nica­rágua; que em nome da "democracia" a tortura e o assas­sínio se tornaram legais no Brasil dos militares.

Estamos, pois, no auge do voluntarismo: cada um quer que os fatos, as coisas, os eventos sejam tanto quanto e quando quer, para não impor, antidemocraticamente, a nin-

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guém, o que quer que seja; e, por isso, quer além: multiplica o l.niverso e dá a cada um o direito de ser Deus no seu universo de cada um, sem colisões nem coerções.

Não se trata de caricatura. Trata-se de ciência e prática políticas inauguradas, de um lado, pela crítica histórica e social dos socialistas reais -da URSS, da Hungria, da Tche­coslováquia, da Polônia etc. - e, de outro lado, da França e sua periferia cultural, na crítica da Revolução Francesa, tornada, já agora, metodologia histórico-historiográfica "uni­versal" e, por isso, neototalitária: que a China, que Cuba et caterva se compenetrem de que não estão no compasso democrático (neototalitário), pois não ousam aceitar eleições democráticas devidamente inspecionadas pelos veridemo­cratas - os do very e os da veritas.

E o que são eleições democráticas e o que é um sistema representativo democrático aceitável pelos veridemocratas e sua ideologia rede-globalizada? Isso ninguém discute, pois outra vez estamos em face de conceitos que dispensam demonstração. "Democrático" é o sistema eleitoral-repre­sentativo dos países "democráticos". E ponto. (Assim, pela mesma "lógica"-ideológica-neossemântica, é eticamente in­defensável e realmente é, a ditadura da URSS sobre as repú­blicas sem direito à secessão; mas não é imoral, ao contrário é defensabilíssima, a ditadura anglicano-canadense-otawen­se sobre os franceses de Quebec, tanto quanto é defensabi­líssima a invasão do Panamá, como o dizem não só a direita americana e inglesa como a "esquerda" socialista de Miter­rand). São eleições censitárias, de tão caras? E o controle da vida política por um-dois partidos (Partido Democrata, Partido Republicano; Partido Conservador, Partido Traba­lhista), é o monopólio da informação, toda ela, portanto da informação política, controlando o acesso aos meios de comunicação?

Não há modernidade que justifique a exploração do homem pelo homem.

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COMO SE FAZ ACJTOCRínCA

O socialismo, num pólo, toma vergonha do seu passado e, num processo de crítica e autocrítica desse seu passado, busca redimi-lo sem abjurá-lo, corrigi-lo, revisá-lo; enrique­cê-lo fazendo-o incorporar certas categorias que pareciam esquecidas; o capitalismo, no outro pólo, se ufana de seu futuro, e o Terceiro Mundo -os dois terços ou três quartos ou quatro quíntos -, aspirando não incidir nos erros do primeiro pólo, decreta sua entrada voluntária (mas com quê?) no outw pólo. Haja ciência e prática ou pragmática políticas!

Mas há uma sinalização como fato consumado, fait accompli, res ada, res gesta: agora que já não se pode recorrer à guerra-total-pré-bomba, agora que o socialismo­real se resigna à "defesa suficiente" - que em boa lógica só será usada como ultima ratio e apenas como represália ao seu uso prévio por outrem (quando iremos todos -com o respeito da boa palavra- "prá cucuia") -,agora que o socialismo-real exibe e confessa seus erros e aceita internamente a manifestação democrática de todas as opi­niões, de individues, de grupos, frações, seções, segmentos, tendências e partidos emergentes, agora que, com todos os seus erros, aceita o jogo democrático rea1 - isto é, com

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ou sem o poder arrasador do capital investido de forma oligárquica nos meios de comunicação de massa - , agora que suas populações lograram o milagre de um distribu­tivismo real que permitiu seu nível de instrução geral avan­çado, de habitação média decorosa, de alimentação e nutri­ção universal, e de saúde, sanitarização e sanidade garan­tidas, agora que tudo isso se conquistou malgrado os erres e desacertos praticados por sua nomenklatura, agora que o socialismo-real aceita, num banho cívico de que a huma­nidade (se informada) devia orgulhar-se (malgrado o "catas­trófico" genocídio romeno de quase um milhar de pessoas), agora:

1) alega-se que o capitalismo venceu economicamente e fortaleceu a sua persona internacional, o imperialismo: a) não respeitando o seu "quintal" e interferindo brutalmente nos pequenos (por ora) Estados soberanos para alinhá-los à democracia plutocrática; b) coonestando, assim, como lógica e natural e eterna, a divisão de classes e- amorosa­mente - a exploração de classes, graças às quais; c) a concentração de capital (e sua fruição requintada) pelos Estados exploradores - os quais dominam suas contra­dições de classes internas, ao poderem dar à maioria de suas populações propinas sociais compensatórias, mais um grande saldo para garantir nos Estados explorados minorias ultracapitalistas que ferreamente dominam as grandes mas­sas exploradas do Terceiro Mundo (isto é, por exemplo, o Brasil) - esses dois terços ou três quartos ou quatro quintos de párias que são párias, porque- crêem os despis­tada mas intrinsecamente racistas - têm vocação biológica ou sociológica para sê-lo;

2) alega-se que o capitalismo venceu, graças à sua filosofia do liberalismo, do neoliberalismo e do liberismo, com a coop~ão cega de intelectuais coorgânicos ansiosos de "subirem" e "participarem" dos prêmios por sua pensa­ção, e graças, iObretudo, à morte do marxismo, à morte

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do marxismo-leninismo, à morte do maoísmo, do fidelismo etc., pela tática de unificando-os sob um mesmo denomi­nador comum e não lhes vendo os dois traços essenciais (o da especificidade para cada caso nacional-cultural e o da temporalidade em função da luta democrático-equali­zante possível) - assim os decretarem mortos;

3) alega-se que o capitalismo venceu, inclusive em cada país subdesenvolvido - cons.!lgrando a guerra invisível que mata pela fome milhares de recém-nascidos ou que inutiliza milhares de homens pelo desemprego - , de que podemos tomar um como exemplo, o Brasil e seus intelectuais e sobretudo economistas, sociólogos, politólogos, filósofos, comunicólogos - que devem estar orgulhosíssimos de te­rem sido e serem arautos do liberalismo/neoliberalismollibe­rismo e antiestatismo e antinacionalismo, pois agora sim!, demolido o mal maior, o marxismo e suas variações, pode­rão sem constrangimentos realizar suas façanhas que em dois séculos de capitalismo brasileiro endógeno e exógeno (sem contar com os três séculos de colonialismo e sem contar com a inexistênci~ do marxismo em quatro quintos desse lapso de tempo) não construíram, com terem convi­vido a) coro uma das mais vergonhosas dívidas externas do mundo, que não terão o cinismo de dizerem que foi contraída pelo " povo brasileiro", mas não têm dúvida de jogá-la na sua cara e sobre seus ombros e trabalho; b) com uma das mais vergonhosas dívidas internas, que é fonte de enriquecimento cabalístico dos ricos e se , e solverá -se resolvida algum dia- pelo seqüestro " igual" (aí, sim!) de todos os "poupadores", classe média baixa, classe média média, classe média alta, na mesma proporção de ban­queiros e grandes fortunas; c) com uma das mais infames educações de base do mundo, ademais de um contingente de crianças e escolarizandos sem escola (não contados os adultos) que §Ornam entre 7 a 9 milhões de pré-párias e fatais pá rias futuros (se não morrerem no ínterim) ... O rosário

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fica nisso: o fato de que certa intelligentsia brasileira se está rejubilando com a morte do socialismo-real, do marxismo e do socialismo, teórico ou prático, acenando com uma social-democracia possível, a que se compadece com o grande capitalismo, coonestando todas as truculências deste ou protestando pro forma (e em geral em surdina).

Mas voltemos ao que queríamos, ao diagnóstico das grandezas do pensamento humano up-to-date: a) a História parou, acabou, atingida que está a perfeição, o consuma­menta e a consumação do pensável e factível pelo homem - como pensado e feito no paraíso ianque, modelo para todos, farol de tudo- embora exclusivo (dois traços exclu­sivos: a inextrapolabidade de seu modelo para o mundo, a sua abalabilidade pela mera emergência do padrão japo­nês, que o corrói nos alicerces e superestruturas): a História parou mesmo?; b) tudo é pensável, sobretudo os irraciona­lismos nesta pós-modernidade: tudo é penSável, sim, sobre­tudo para o homem mostrar ao homem que, só com pensar, o homem pode fazer ludismo, arte gratuita, esperanças, ilu­sões, sonhos - mas não pode construir as coisas e as idéias com que venha a vencer a indigência, a carência, a miséria, a pobreza e o universo de podridão que a atual prosperidade capitalística sem limites de alguns gera na existência da maioria; c) pois o que importa é o marketing e suas variações, graças aos meios de comunicação de massas monopolizados pelo Estado através dos seus senho­res, os monopólios privados - pois com o marketing se pode desinformar o real e informar o falso, se pode amestrar e pagar o pequeno segmento social produtor do marketing, se pode convencer grandes seções ou segmentos sociais de que todos teremos nossos problemas vis - os materiais - resolvidos graças ao bicho, à loteca, ao terno, à quadra, à quina, à sena, à cachaça, ao samba, ao carnaval, numa dupla operação de acanalhamento e mercantilização da festa com que o povo busca sobreviver à mágoa e tristeza, e

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de nobilitação da pulha, oficial, com o jogo de rapina; d) e a utopia, a ética, a moral, a dignidade, a honra - e toda uma série de valores humanos - são bobices em que só crêem os imbecis, pois só dando é que se recebe, só levando vantagem, só fornicando em todos os sentidos se chega ao céu dos espertos, quase nunca expertos.

Cada um de nós se salvará com sua vontade, mas a vontade de cada um contra a de todos: é uma luta fácil, pois já se pode corrigir a História - passada, presente e futura - , sobretudo agora que ela já parou. E que o socia­lismo morreu. Mas morreu mesmo? Quem viver, verá.

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A PROPÓSITO DE .. 0 SOCIAUSMO MORREU"

A História- como matéria humana acontecida, havida, como fato consumado, elegantemente dito em francês fait accompli e já antes, mais elegantemente, dito em latim res ada e melhor res gesta - tem sido, depois do advento da escrita e dos arquivos, objeto permanente de busca, inter­pretação, heurística, exegese. Partindo de suas próprias hipó­teses, certezas, crenças, convicções e esperanças, cada es­cola de historiadores, cada historiador, busca saber e recons­tituir, pela mente analítica ou sintética, o que houve, como foi, por que o houve e o foi. Nisso, não há ser humano que não seja historiador, no grandíssimo. ou pequeníssimo campo de sua cogitação. Assim, qualquer um, muito timida­mente, ousa admitir que o seu passado - e, por isso, o seu presente - poderia não ter sido como o foi e o é; se ...

O mais famoso "se" de exegese histórica foi, continua sendo, provavelmente será ainda, o nariz de Cleópatra: "se" ela não o tivesse, nem César nem Antônio se teriam amoro­samente rendido a ela; e não se tendo amorosamente rendi­do, a História - com o advento do Império Romano, com sua expansão militar e civilizatória, com a contra-expansão

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da barbárie desejosa de deferir a ci·lilização assim antes · expandida, com a decadência daí resultante, com o inter­regno fragmentador da Idade Média -a História, repitamos, não teria sido como foi... E não tendo sido como o foi - teriam sobrevindo, como sobrevieram o Renascimento, o Ilusionismo, a Modernidade? Não! Logo, o Ocidente se deve ao nariz de Cleópatra ...

Não se cogita, nessa exegese alucinada, de fazer-lhe a própria exegese - e tirar a única conclusão "histórica" possível: .a de que a aventura de cada ser humano, homem ou mulher, pode mudar de curso - para ele ou para ela ou para ambos- por causa do nariz (ou lábios, ou busto, ou pescoço, ou cintura, ou nádegas, ou pernas, ou pés ... ou - por que não? - graça, ou donaire, ou espírito, ou dengue ... ) de um dos dois ...

Estamos vivendo, nesta nossa contemporaneidade ou neste nosso eterno hoje, uma nova forma (a rigor, nada nova) do "se". Não levamos em conta, primeiro, que qual­quer hoje, onde quer que haja seres humanos, sempre inova mesmo para pior. Segundo, que a crítica histórica, além de buscar saber como tem sido a História, tem buscado saber e descobrir os "erros" no/do passado e, conseqüente­mente, tem ousado imaginar - sem microcampos histó­ricos ou microanálises históricas- a História sem tais erros ou tem ousado, mais comedidamente, buscar lições que permitam aos seres humanos não repeti-los.

A rigor, neste instante, vivemos duas versões algo dife­rentes desse fenômeno - sem contar um estruturalismo cíclico e acrônico e intemporal, negação da própria História, mas essa é outra questão, pois só serve aos que crêem que não houve, não há, não haverá História, pois não há tempo - quando tudo foi e está previsto.

1 ) Com a crítica apologética, redentora, forçosamente laudatória da Revolução Francesa naquilo que ela teve de

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positivo para a História subseqüente (e, por isso, forçosa­mente denegridora naquilo que ela teve para a História sub­seqüente), inaugurou-se pública e sonoramente o 'julga­mento" de massas da História: primeiro, trombeteou-se o fato de que, na imensa maioria dessa crítica, se elogiou o lado "reacionário", detratando-se o lado "revolucionário" da Revolução; segundo, pediu-se que os cidadãos franceses, na relativa euforia do estado de coisas presente (que s6 "tem a ver" com a Revolução naquilo em que ela foi "boazi­nha"), votassem em favor ou contra ares gesta: impingia-se, nwn didatismo complacente, a certeza de que a Revolução em causa - daí, qualquer "revolução" - foi/é/será um mal, wn erro, wn desvio - e pede-se à humanidade que não pense em soluções catastróficas para seus problemas; mas pede-se isso à humanidade como um todo, tanto à fração liberta e revolucionada e próspera que se beneficiou da Revolução Francesa e suas equivalentes anteriores ou posteriores, quanto à "fração" (dois terços ou mesmo três quartos) não "liberta" nem "revolucionada": que esta pacien­te, que domestique sua esperança e ame a história "natural", a trazida pela evolução gradual, a que flui graças ao amparo generoso, material e espiritual, dos que têm e podem aos que não têm e não podem: e tão generosos têm sido e prometem ser ...

2) Com a perestroika ou "reestruturação" e a glasnost ou "transparência" denunciam-se, como eixo da crítica, os crimes do stalinismo, com suas seqüelas; não se trata, se bem compreendidas as denúncias, de repetir o "nariz de Oeópatra": trata-se de teconhecer que houve tais ou quais erros ou monstruosidades e que, podendo ou não terem sido ao tempo evitados, é do interesse humano (ou, no mínimo, da área humana mais diretamente afetada) não incidir de novo neles: é o esforço de fazer da História a "mestra dos homens", ou da vida, não porque corramos o risco de repeti-la, mas de repetir os "erros", isto é, em

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situações assemelháveis ou comparáveis, resolvê-las do mesmo modo - catastrófico ou exemplar. Em tudo há algo, aprioristicamente, da "certeza" ou convicção de que a História não se repete, embora freqüentes vezes configÚre situações esquematicamente semelhantes. Pensemos na "comparabilidade" Jãnio-Collor: pensemos em duas situa­ções " repetitivas", provavelmente catastróficas ambas, a de um "parlamentarismo" castrado, antes de uma recidiva da "gloriosa 1964", ou de uma terceira via, inédita, que é dúplice - ou uma renúncia no seio da constitucionalidade ou a da instauração do parlamentarismo, no seio ainda da consti­tucionalidade, com o encaminhamento pactuado de solu­ções ou resoluções das brutais distorções financeiro-eco­nômicas e sociais que vigoram no Brasil , fazendo dessa "oitava (sétima?, ou sexta?) economia ocidental" uma das mais desiguais, indignas, torpes, vitimizadoras e, a curto lapso de tempo, invariáveis sociedades contemporâneas.

A experiência do leste europeu - que aos poucos co­meça a pôr em xeque o ufanismo triunfalista capitalista­ocidental rede-globista - desmente também o reducionis­mo reacionário do fim da história, decretado pela vitória completa e definitiva do liberalismo sobre uma série de is­mos sem parentesco defensável... o absolutismo, o fascismo, o marxismo. Se não ocorreu o " triunfo do processo revolu­cionário mundial" (uma certa "apologética" de um certo ··marxismo"}, muito menos ocorreu o "triunfo do libera­lismo" (uma certa "apologética" de uma direita real}. O socialismo administràtivo-estatal, correntemente burocráti­co-autoritário - tanto mais ineficiente e autoritário quanto mais burocrático- entrou em crise, ou revisão (o que apon­ta um futuro}, verdade que não pode encobrir uma outra, nada obstante o esforço do marketing internacional: o fracas­so do liberalismo em resolver os problemas fundamentais da sociedade e do homem, a igualdade social como primeiro patamar. E na medida em que as antes fechadas sociedades

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do chamado leste europeu se "liberalizam", mais se eviden­ciam as deficiências do ''capitalismo liberal", mesmo em sociedades razoavelmente desenvolvidas: os recentíssimos choques romenos - na Romênia exorcizada - entre minei­ros e estudantes-intelectuais, talvez possam servir a alguma exegese do que está por vir.

Enquanto a exegese não se revela - nem os fatos futuros são trazidos para o presente - o socialismo -o socialismo real, o socialismo utópico, o socialismo possí­vel, o socialismo, enfim, em qualquer de suas possibilidades - ataca com pena de morte o burocratismo e o autorita­rismo, nega-os como categorias que se pensaram suas, em face do stalinismo e sua proeminência - via modelos os mais diversos - sobre o socialismo real. Nem por isso as sociedades capitalistas deixaram de ser menos autori­tárias e injustas, injustas e autoritárias, e não precisamos sair deste país para dar ao leitor exemplo convincente. Repi­tamos: o autoritarismo é categoria intrínseca ao capitalismo. No socialismo é uma excrescência. Quer tudo isso dizer que a "crise" do final do século antecipa o que será, poderá 5er, deverá ser a sociedade do terceiro milênio, para cujo horizonte devem estar olhando os marxistas não positivistas: uma sociedade civil igualitária, autônoma na gestão do Esta­do democratizado, em função dos direitos humanos, sociais, econômicos, civis, políticos, culturais, ampliados, normal­mente ampliados, necessariamente ampliados. Um novo Le­viatã, pois esse devorará o Estado todo-poderoso e alimen­tará a liberdade.

Ao invés do "enterro da História", vivemos sua revives­cência.

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ÍNDICE

Pág.

Apresentação ............................................. ..................................... 9

Introdução ...... ... .................................................................. A.......... 11

1. Esquerda, vou ver; veremos ............................................... 19

2. Os socialistas e a nova ordem partidária ... ....................... 25

3. O leste europeu e os socialistas brasileiros ....... ........... ..... 31

4. O socialismo e o "projeto nacional" brasileiro ................ 41

5. A unidade orgânica da esquerda socialista ...................... 49

6. A falsificação da história ............. .. ......................................... 55

7. Como se faz autocrítica ............ .. .......................................... 61

8. A propósito de "o socialismo morreu" .............................. 67

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