antologiitol a 50L IDARIEDflDE DOS ESCÓIS d ci vida£o em seres profundamen te diversos pela idade,...

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IDARIEDflDE itol antologia 50L (tradução e selecção de CLÁUDIO REVEL) I Solidariedade dos Escóis..., fórmula bartera, dir-lse-á, tentativa nefasta de unificar o que, por natureza, é indivi- dual, dissímil, lndòmitamente pessoal. Não o creio, a não ser que atribuamos àquelas palavras um significado alheio ao meu pensamento. Entendo por solidariedade dos Escóis, essa comunidade de visão em seres profundamen- te diversos pela idade, raça e carácter, vivendo nas mais diferentes latitudes, desco- nhecendo-sc a maioria das vezes, mas dando ao enigma do mundo solução idêntica, na sua essência, mau grado inu- meráveis diferenças na ex- pressão de tal desejo. O uni- verso e o homem aparecem- Ihe a uma nova luz, mais harmoniosa, mais brilhante, mais quente. Faiam-nos de unidade entre as coisas, de amizade entre os homens. Fa- 'lam-nos duma «religião» ain- da por nascer, duma «natu- reza» ainda incompreendida, duma «vida» mais larga. A sua voz pouca ressonância achou no mundo, porque o mundo até hoje não vibrou no mesmo desejo. Esses poucos homens, no emtanito, são os primeiros cidadãos, hoje ocul- tos e solitários, duma. demo- cracia, cuja orientação, polí- tica nenhum a decifrou ainda. Longe de lançarem à huma- nidade quie os cerca com as suas vagas movediças um olhar de altivez ou de des- prezo, esses novos homens têm para ela palavras de amor ou de forte esperança, deolarando-se-lhe presos por todas as suas fibras, por todos os seus anseios. Mas, que enxergaram então esses «novos homens»? Esses poucos homens, liga- dos aos destinos mais estra- nhamente dissemelhantes, le- varam a cabo o mais singular descobrimento que Imaginas- se pode. Eles entreviram, pre- cisemo-lo bem, um mundo novo e um novo homem, ou antes, consideraram o velho mundo e o velho homem com olhos novos. Quero dizer que realmente descobriram neste mundo que nos cerca, neste mundo pró- ximo ou remoto, uma natu- reza totalmente diferente da- quela que conhecíamos; e no homem a quem falamos na seis rua, no homem que vive lon- ge de nós sob outros céus, no homem que sois vós, no ho- mem que eu sou, um ser ra- dicalmente novo por sua na- tureza e vida, um ser que pa- rece energia qual nova haste do seio duma terra virgem. Extraordinário e pungente descobrimento esse que pre- tende revelar na antiga na- tureza e na velha humani- dade um rosto e um coração até então desconhecidos... Para esclarecer o que pa- rece um mistério, vou dar a palavra àqueles homens que cingiram o mundo vivo num abraço tal que êle saiu dos seus braços pletórico de entu- siasmo e juventude. Deixemos que falem três deles, dis- tantes e multo afastados en- tre si. A sua simples voz fará luz neste caos. Um deles é um Inglês, mor- to em 1822, na idade de trinta anos, vítima dum temporal no GOLFO de Nápoles: Shelley. O outro, um Francês, histo- riador e filósofo, morto perto de vinte e cinco anos: Michelet. O terceiro é um Americano, estranho homem e poeta inda mais estranho, que se extin- guia em Camden, nos Estados Unidos, poucos anos (D, saudado por alguns como um apóstolo, estigmatizado como louco e imoral pela maioria dos seus compatriotas: Walt Whltman. Este Inglês, êste Francês, êste Americano, disseram-nos muitas coisas, e nós somente fixaremos aqui as mais sur- preendentes. Comecemos por ouvir o primeiro, Shelley. Tudo o que uma forma hu- mana pode encerrar de ter- nura, de cordialidade e sabe- doria se continha neste ho- mem, nesta alma de fogo que penetrava, enlaçava, infla- mava as criaturas e as coisas à sua volta. O animal hu- mano tão largamente desen- volvido torna-se o animal- deus. A sua curta vida não é senão uma perpétua conquis- ta do amor e da liberdade. Ac- ção e sonho combinam-se; combate pelo amor e sonha um amor mais ardente, com as mesmas palavras apaixo- nadas e candentes onde se in- tumece e remoinha um sopro vivo da natureza. Ele diz-nos: A natureza é um todo vivo, simultaneamente corpo e al- ma, orbe imenso de fusão e harmonia. TODA a lei humana se resolve no amor; é ao rit- mo do amor que bate o co- ração do homem, o coração imenso de todos os homens, que se expande a vida total de todos nós. Estreita aliança no selo dos mundos de vida em que mergulhamos, aliança p o r íntima dos corações humanos, alegria e justiça, tal é a sua profissão de panteísta. Imaginai um ser que é a en- carnação dum sonho enorme e Contumaz, que vive em peT- pétua embriaguez desbordan- te; não um sonho inconsis- tente e muito distante da terra para nela se imiscuir, mas um sonho modelado na carne e alimentado com o mesmo sangue, um sonho in- tensamente ligado às ca'-as vitais, animado pelo sopro da vida total, «onde rugem as seivas e se elaboram as ger- minações esplêndidas» (2) e então entreverels o poeta. E' por ter despertado essa legião de esperanças adorme- cidas que Shelley com a anti- guidade de quási um século, é ainda hoje, entre nós, o mais afim, o mais real e o melhor dos amigos. E' por se ter identificado com a vida inteira, a mais humilde, a mais vária, é por tê-la como aue empregnado dum sabor inédito, sem deixar de pros- seguir, para lá das formas actuais, no anseio mais deses- perado duma mais rica reali- dade de nós próprios que êste Inglês, maldito e desprezado no seu tempo, deve ser consi- derado um dos mais potentes renovadores do sentido da vida. De Shelley a Mlchelet, do Inglês ao Francês, vai grande distância. enormes diver- gências que não permitem associá-los, mas não tão enor- mes no emtanto. que não pos- samos, escutando o seu pen- samento intimo, reconhecer num e noutro êste sinal ca- racterístico dos génios herói- cos: o amor da vida real e o desejo da sua livre expansão. Que nos ensina o historia- dor-f llOsofo Mlchelet? For toda a maneira, ao longo da sua existência, afirma e rea- firma com a mais intensa energia que toda a grandesa humana, todo o prazer, toda a beleza, toda a alegria e todo o equilíbrio têm por base, nor condição necessária e por ali- mento, uma sã vitalidade. Eis aqui, penso eu. uma afirma- ção capital, vinda dum ho- mem que deu a volta com- pleta à história e à vida, a autorizada opinião dum na- turalista e dum poeta: uma vitalidade, tal é o seu có- digo e a sua moral. Ele quere corpos vigorosos e ágeis, cére- bros nutridos de ciência real, naturezas vigorosas e livres, transfiguradas, como êle mes- mo diz, «nessa luz heTóic.a a que o bom homem Lutero chamou nobremente a Ale- gria». Para êle, o homem, durante L E' O N largos séculos, sofreu um en- torse violento do cérebro, quando «viver» equivalia a «vegetar». «Que os nossos olhares se desviem do funesto passado! diz-nos êle. Escute- mos antes aquela que é um eterno presente, que não va- ria, a Natureza». Dez séculos de anemia cerebral, impedi- ram a planta humana de lan- çar ramos vigorosos para o espaço, constranigeram-na às magras florescênclas despidas de cores novas. Afastemos com a mão as sombras dum pretérito nefando. Mlchelet patenteia aos nossos olhos a forma viva e palpitante da humanidade que somos, fa- zendo jorrar da sua livre fe- cundidade a sua vida física e espiritual, alimentada ela pró- pria das suas divinas energias que a fazem renascer, cons- ciente por fim das suas eter- nas riquezas. Escutai essa voz profética: «Ampliemos Deus!» Dlderot, que proferia esta sublime sen- tença, conhecla-.lhe a profun- deza, os sentidos diversos, ad- miráveis e fecundos? ^Emancipemos a vida divi- na. Ela reside na energia hu- mana; fermenta ai; tem 1 pressa de expandir-se em obras vivas. Ela reside na na- tureza, ali ferve em cachão, quereria espalhar-se em tor- rentes. «Não vedes que a terra an- seia produzir e enriquecer- nos, dar fontes e frutos, criar raças novas, mais resistentes e sãs, criar sem medida searas e povos? «Sejamos inteligentes. Fe- chemos o.s livros por um mo- mento. Reabramos o grande livro da vida. Trabalhemos! Dispamos o hábito! Liberte- mos êste espirito fecundo que quere sair, abramos-lhe as barreiras. Para longe as en- traves, os obstáculos. Amplie- mos Deus!» Estas poucas linhas basta- riam para apreendermos o profundo significado da obra de Michelet e verificarmos que o objecto do seu ardente desvelo espiritual já não é um céu quimérico, mas uma terra que existe e que todos nós, desde o mais humilde ao mais forte, devemos lavrar e se- mear, se não quisermos que a fome nos devore. A obra de Michelet, mau grado as suas lacunas e por vezes as suas fraquezas, obra de sol e de força, de calor e saúde assi- nala com vivo resplandOr a aurora duma fresca vitalida- de, o gérmen dum pensamen 1 - to que adquire a consciência de sl próprio. Ousarei falar do americano Walt Whltman, o último dos saí nascente l <mu1111II 1 1ii*.«I i tnI um m i iii'iir*"i I «li MM n- mi IIIMII Iw IHl «IMIM DOS ESCÓIS B A Z A L nossos três «novos homens»? Não o farei sem temor, com- penetrado da minha própria impotência para relembrar o que foi êste homem. Como pintar a figura e a alma dum ser que viveu e cantou todos os aspectos, todas as vidas do universo, que foi sucessiva- mente carpinteiro, clérigo, impressor, Jardineiro, mestre escola, jornalista, enfermeiro, director de Jornal, empreitei- to de construções, empregado do governo, e que descreveu' nos seus versos, com uma ri- queza incomparável de rea- lismo, os milhões de espectá- culos e de sentimentos dos quais participou? Imaginai um homem de formas atléticas, de rosto ma- gnífico, pleno de sedução e bondade, que passeia nas ruas, vestido como um operá- rio, conversando famillar- men' com todos, rindo, In- terrogando ou consolando, bemquisto de toda a gente pela doce magestade, cordia- lidade e humor alegre: que toma banho e em seeulda. nu, passeia na erva húmida ao sol. _ declarando que «talvez aquele ou aquela a quem o êxtase livre e exaltante da nudez em plena natureza não foi revelado, jamais conheceu o sentimento da pureza, nem o que são na sua essência a fé. a arte ou a saúde»; que percorre o camioo ou trata os feridos da iruerra civil: que prega a exaltação de todas as forcas novas do lnd'viduo, e vai onde a todo. homem ou mulher, de mãos estendidas e nos lábios um sorriso eoTdial; numa palavra, que realiza na sua completa acepção. Inda não conieoruTada. o homem da Democracia americana, ou antes da Democracia univer- sal. Seria nreciso um volume de fortes d^ensões para fa- zer pressentir tudo o nue êste homem invuVar continha em sl. Assim, dizendo nue Walt Whltman foi o PTimeiro a re- conhecer plenamente o ca- racter sagrado de toda a rea- lidade, nue contemplou com olhos radicalmente novos a mais ínfima narte de univer- so, oue enrloueceu com um sentido riiVmo as mais .triviais acções das nossas vidas, nue criou o sentimento de plena confiança e de liberdade para connosco e para com os ou- tros, aue ôlp emflm (e è nara nós o pontio eanltal) desco- briu noslt.lvamente um novo sentidn dn vida. eu terei ane- rias traçado o nalldo esboço duma cena gieante. Não pretendo ter dado nes- tas noucas linhas uma nítida e. fiel imatrem desses três ho- mens, oue desempenharam' papeis diferentes, mas capl- sat nascente G E T T E tais, na evolução do pensa- mento moderno; mas se con- segui mostrar o objecto co- mum das suas realizações e esforços, isto é o alcance cada SltJUI Z9A epB» 'IB9I STBUI Z3A perfeito, cada vez mais rico duma claTa posse da vida, dos seus milhões de formas, da sua liberdade e mobilidade in- finitas, eu terei com suficiên- cia atingido o meu alvo que é o de cravar a atenção neste ponto central. Resumindo: que nos ensi- naram pois os três «novos ho- mens»? Shelley. desvendando-nos a riqueza e a universalidade do amor, manlfestou-nos em sl aquela força de identificação do universo e do homem que é. por assim dizer, a única lei viva deste mundo. M'ichelet. recflamando para todos, a vida sã. vigorosa, sin- cera e livre, fez desta pro- funda saúde e realidade a condição primacial e básica de toda a vitalidade comum ou superior. Walt Whltman. finalmente, deu-nos o exemolo da mais Integral expansão na carne e na vida universal. Más todos três nos mostra- Tam o caminho da regenera- ção e da salvação num mes- mo acordo no seio da única rea.lldade divina, numa arrei- gada amizade sob a asa do todo. Todos três nos aponta- ram energicamente o cami- nho do novo mundo e da nova vida. Eis como eles «compreende- ram» a natureza, como eles pressagiaram a «divindade» do homem solidário dos seres e das coisas, como eles anun- ciaram uma «religião» culo grandioso panteísmo invade e abraça o mundo infinito das criaturas oue é um real senfmento vivaz do nosso pa- rentesco com o universo, uma penetração e assimilação por nós. seres ínfimos ou seres de escol, do todo vivo: religião da Qual pressentimos a ex- pansão futura. (1)—Isto foi «irrito em JSÍ1S. (2) Octnve Mlrhc&o. (Conclue no próximo nú- mero) LEITOR: Compra cs teus livros por nosso intermédio. Isso nos auxiliará. o parto d ci vida As horas soaram irremediáveis, e os ruídos dos sinos ecoam ainda, repercutindo-se no espaço silencioso. Tudo lembra o girar constante do tempo. Os sinos soaram anunciando as horas, e o dia amanhã será outro, na sucessão imperecível e renovadora da vida correndo pelo espaço. O ontem vai insensível a perder-se, a esvafr-se para o nada donde veio. Ontem, os corpos tinham a solidez da pedra, erguiam-se no orgulho de jovens, mas hoje procuram o ponto de partida, gastos c tristes, velhos e infelizes. Ontem, ainda seus corpos lutavam, seus braços destruíam mundos, e seus desejos procuravam outros corpos, hoje, ficam inertes e fracos, desfeitos os seus músculos de aço, mortos para sempre todos os desejos. Cintando, de busto erguido, outros vieram na sucessão imperecível do tempo, outros pegaram nos martelos c bateram, outros pegaram nas enxadas e cavaram, e os seus braços não param dc bater, nem de cavar. Insatisfeitos sorven. o prazer até ao fim. Nos olhos tristes dos de ontem, paira a saudade da vida que não souberam viver, quedou-se a amargura da sua inutilidade. E seus corpos procuram a terra... Mas os que hoje se erguem viris e oferecem generosamente a sua força, arrastarão também sua velhice na saudade de tudo o que está distante. Amanhã, sempre, até ao minuto do fim, o tempo rolará irremediavelmente, na sucessão veloz de toda a vida humana. ARMANDO VENTURA PARREIRA sete

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I D A R I E D f l D E itol antologia 5 0 L ( t r a d u ç ã o e se l ecção de CLÁUDIO R E V E L )

I

Solidariedade dos Escóis . . . , fórmula b a r t e r a , dir-lse-á, tenta t iva nefas ta de unif icar o que, por natureza, é indivi­dual, dissímil, lndòmitamente pessoal. Não o creio, a não ser que atr ibuamos àquelas p a l a v r a s um significado a lhe io ao meu pensamento. Entendo por solidariedade dos Escóis, essa comunidade de visão em seres profundamen­te diversos pela idade, r a ç a e carác ter , vivendo n a s mais diferentes latitudes, desco-nhecendo-sc a maioria das vezes, mas dando ao enigma do mundo solução idêntica, na sua essência, mau grado inu­meráveis diferenças na e x ­pressão de t a l desejo. O uni­verso e o homem aparecem-Ihe a uma nova luz, mais harmoniosa, mais br i lhante , mais quente. Fa i am-nos de unidade entre as coisas, de amizade entre os homens. F a -'lam-nos duma «religião» a in ­d a por nascer , duma «natu­reza» a inda incompreendida, duma «vida» mais larga . A sua voz pouca ressonância achou n o mundo, porque o mundo a té hoje não vibrou no mesmo desejo. Esses poucos homens, no emtanito, são os primeiros cidadãos, ho je ocul­tos e solitários, duma. demo­crac ia , cu ja orientação, polí­tica nenhum a decifrou ainda. Longe de lançarem à h u m a ­nidade quie os cerca com as suas vagas movediças um olhar de altivez ou de des­prezo, esses novos homens só t êm p a r a ela palavras de amor ou de forte esperança, deolarando-se-lhe presos por todas as suas fibras, por todos os seus anseios.

Mas, que enxergaram en tão esses «novos homens»?

Esses poucos homens, l iga­dos aos destinos m a i s e s t r a ­nhamente dissemelhantes, l e ­varam a cabo o mais singular descobrimento que Imaginas­se pode. Eles entreviram, pre­cisemo-lo bem, um mundo novo e um novo homem, ou antes, consideraram o velho mundo e o velho homem com olhos novos.

Quero dizer que realmente descobriram neste mundo que nos cerca , nes te mundo pró­ximo ou remoto, uma n a t u ­reza totalmente diferente da­quela que conhecíamos; e no homem a quem falamos na

seis

rua, no homem que vive lon­ge de nós sob outros céus, no homem que sois vós, no ho­mem que eu sou, um ser r a ­dicalmente novo por sua na ­tureza e vida, um ser que pa­rece energia qual nova has te do seio duma te r ra virgem.

Ext raordinár io e pungente descobrimento esse que pre­tende revelar na ant iga n a ­tureza e na velha humani ­dade um rosto e um coração a té en tão desconhecidos.. .

P a r a esc larecer o que pa­rece um mistério, vou dar a palavra àqueles homens que cingiram o mundo vivo num abraço tal que êle saiu dos seus braços pletórico de en tu­siasmo e juventude. Deixemos que falem três deles, j á dis­tantes e multo afastados en­tre si. A sua simples voz fará luz nes te caos.

Um deles é um Inglês, mor­to em 1822, n a idade de t r in ta anos, ví t ima dum temporal no GOLFO de Nápoles: Shelley.

O outro, um Francês , his to­riador e filósofo, morto há perto de vinte e cinco anos: Michelet .

O terceiro é um Americano, es t ranho homem e poeta inda mais estranho, que se ex t in ­guia em Camden, nos Estados Unidos, h á poucos anos ( D , saudado por alguns como um apóstolo, estigmatizado como louco e imoral pela maior ia dos seus compatr iotas : Wa l t Whl tman.

Este Inglês, êste Francês , êste Americano, disseram-nos mui tas coisas, e nós somente fixaremos aqui as mais sur­preendentes. Comecemos por ouvir o primeiro, Shelley.

Tudo o que uma forma hu­mana pode encer ra r de ter ­nura, de cordialidade e sabe­doria se cont inha neste ho ­mem, nes ta a lma de fogo que penetrava , enlaçava, inf la­mava as cr ia turas e as coisas à sua volta. O animal hu­m a n o tão largamente desen­volvido to rna-se o an imal -deus. A sua cur ta vida não é senão uma perpétua conquis­t a do amor e da liberdade. Ac­ção e sonho combinam-se; combate pelo amor e sonha um amor mais ardente, com as mesmas palavras apaixo­nadas e candentes onde se i n -tumece e remoinha um sopro vivo da natureza. Ele diz-nos: A natureza é um todo vivo, s imul taneamente corpo e a l ­ma, orbe imenso de fusão e harmonia . TODA a lei humana se resolve no amor ; é ao r i t ­mo do amor que ba te o co­ração do homem, o coração imenso de todos os homens, que se expande a vida total de todos nós. Es t re i ta a l iança no selo dos mundos de vida em que mergulhamos, a l i ança

p o r

ínt ima dos corações humanos, alegria e jus t iça , ta l é a sua profissão de fé panteís ta . Imaginai um ser que é a en ­ca rnação dum sonho enorme e Contumaz, que vive em peT-pétua embriaguez desbordan-te; n ã o um sonho inconsis­tente e mui to distante da terra para nela se imiscuir, mas um sonho modelado na carne e a l imentado com o mesmo sangue, um sonho in­tensamente ligado às ca ' - a s vitais, animado pelo sopro da vida total, «onde rugem as seivas e se elaboram as ger­minações esplêndidas» (2) e então entreverels o poeta.

E ' por ter despertado essa legião de esperanças adorme­cidas que Shelley com a an t i ­guidade de quási um século, é a inda hoje, entre nós, o mais afim, o mais real e o melhor dos amigos. E ' por se t e r identificado com a vida inteira, a mais humilde, a mais vária, é por tê- la como aue empregnado dum sabor inédito, sem deixar de pros­seguir, para lá das formas actuais, no anseio mais deses­perado duma mais r i ca rea l i ­dade de nós próprios que êste Inglês, maldito e desprezado no seu tempo, deve ser cons i ­derado um dos mais potentes renovadores do sentido da vida.

De Shelley a Mlchelet, do Inglês ao Francês , vai grande distância. Há enormes diver­gências que não permitem associá-los, mas não tão enor ­mes no emtanto . que não pos­samos, escutando o seu pen­samento intimo, reconhecer num e noutro êste sinal c a ­racteríst ico dos génios herói­cos : o amor da vida real e o desejo da sua livre expansão.

Que nos ensina o his tor ia-dor- f llOsofo Mlchelet? F o r toda a maneira , ao longo da sua existência, a f i rma e r ea ­firma c o m a mais intensa energia que toda a grandesa humana, todo o prazer, toda a beleza, toda a alegria e todo o equilíbrio t êm por base, nor condição necessár ia e por a l i ­mento, uma sã vitalidade. Eis aqui, penso eu. uma af i rma­ção capital , vinda dum ho­mem que deu a volta com­pleta à história e à vida, a autorizada opinião dum n a ­turalista e dum poe ta : uma sã vitalidade, tal é o seu có­digo e a sua moral . Ele quere corpos vigorosos e ágeis, cére­bros nutridos de c iência real, naturezas vigorosas e livres, transfiguradas, como êle mes­mo diz, «nessa luz heTóic.a a que o bom homem Lutero chamou nobremente a Ale­gria».

Para êle, o homem, durante

L E' O N

largos séculos, sofreu um en ­torse violento do cérebro, quando «viver» equivalia a «vegetar». «Que os nossos olhares se desviem do funesto passado! diz-nos êle. Escu te ­mos antes aquela que é um eterno presente, que não va­ria, a Natureza». Dez séculos de anemia cerebral , impedi­ram a planta humana de lan­çar ramos vigorosos para o espaço, constranigeram-na às magras florescênclas despidas de cores novas. Afastemos com a mão as sombras dum pretéri to nefando. Mlchelet pa ten te ia aos nossos olhos a forma viva e palpi tante da humanidade que somos, f a ­zendo jo r r a r da sua livre f e ­cundidade a sua vida física e espiritual, a l imentada ela pró­pria das suas divinas energias que a fazem renascer , cons­c ien te por fim das suas eter­nas riquezas. Escutai essa voz profét ica:

«Ampliemos Deus!» Dlderot, que proferia esta sublime sen­tença, conhecla-.lhe a profun­deza, os sentidos diversos, ad­miráveis e fecundos?

^Emancipemos a vida divi­na. E la reside na energia hu­m a n a ; fermenta a i ; tem 1

pressa de expandir-se em obras vivas. E la reside na n a ­tureza, a l i ferve em cachão, quereria espalhar-se em tor­rentes.

«Não vedes que a terra a n ­seia produzir e enriquecer-nos, dar fontes e frutos, c r iar r aças novas, mais resistentes e sãs, cr iar sem medida searas e povos?

«Sejamos inteligentes. F e ­chemos o.s livros por um mo­mento. Reabramos o grande livro d a vida. Traba lhemos! Dispamos o hábi to! Liberte­mos êste espirito fecundo que quere sair, abramos-lhe as barreiras. P a r a longe as en ­traves, os obstáculos. Amplie­mos Deus!»

Estas poucas l inhas bas ta ­r i am para apreendermos o profundo significado da obra de Michele t e verif icarmos que o objecto do seu ardente desvelo espiritual j á não é um céu quimérico, mas uma terra que existe e que todos nós, desde o mais humilde ao mais forte, devemos lavrar e s e ­mear , se não quisermos que a fome nos devore. A obra de Michelet , mau grado as suas lacunas e por vezes as suas fraquezas, obra de sol e de força, de ca lor e saúde ass i ­na la com vivo resplandOr a aurora duma fresca vital ida­de, o gérmen dum pensamen 1-to que adquire a consciência de sl próprio.

Ousarei falar do amer icano Walt Whl tman , o último dos

saí nascente l < m u 1111 II 11 ii* .«I i tn I um m i • iii'iir*"i I «li MM n - mi • IIIMII • I w I Hl «IMIM

DOS E S C Ó I S B A Z A L

nossos três «novos homens»? Não o farei sem temor, com­penetrado da minha própria impotência para re lembrar o que foi êste homem. Como pin tar a figura e a a lma dum ser que viveu e cantou todos os aspectos, todas as vidas do universo, que foi sucessiva­mente carpinteiro, c lér igo, impressor, Jardineiro, mestre escola, jornal is ta , enfermeiro, director de Jornal , empreitei-t o de construções, empregado do governo, e que descreveu' nos seus versos, com uma r i ­queza incomparável de r ea ­lismo, os milhões de espectá­culos e de sent imentos dos quais par t ic ipou?

Imaginai um homem de formas at lét icas, de rosto ma­gnífico, pleno de sedução e bondade, que passeia nas ruas, vestido como um operá­rio, conversando fami l la r -m e n ' com todos, rindo, In­terrogando ou consolando, bemquisto de toda a gente pela doce magestade, cordia­lidade e humor alegre: que toma banho e em seeulda. nu, passeia na erva húmida ao sol. _ declarando que «talvez aquele ou aquela a quem o êxtase livre e exal tante da nudez em plena natureza não foi revelado, j ama i s conheceu o sent imento da pureza, nem o que são n a sua essência a fé. a arte ou a saúde»; que percorre o camioo ou t r a t a os feridos da iruerra civil: que prega a exal tação d e todas as forcas novas do lnd'viduo, e vai onde a todo. homem ou mulher, de mãos estendidas e nos lábios um sorriso e o T d i a l ; numa palavra, que realiza n a sua completa acepção. Inda não conieoruTada. o homem d a Democracia amer icana , ou antes da Democracia un iver ­sal . Ser ia nreciso um volume de fortes d ^ e n s õ e s para f a ­zer pressentir tudo o nue êste h o m e m invuVar cont inha em sl. Assim, dizendo nue Wal t Whl tman foi o PTime i ro a r e ­conhecer p lenamente o c a ­rac te r sagrado de toda a r e a ­l idade , nue contemplou com olhos radica lmente novos a mais ínfima narte de univer­so, oue enr loueceu com um sentido riiVmo as ma i s .triviais acções das nossas vidas, nue criou o sent imento de plena conf iança e de liberdade para connosco e para com os ou­tros, aue ô l p emflm (e è nara nós o pontio ean l ta l ) desco ­briu noslt.lvamente um novo sentidn dn vida. eu terei ane -rias t raçado o na l ldo esboço duma cena g ieante .

Não pretendo ter dado n e s ­t a s noucas l inhas uma nítida e. fiel imatrem desses três h o ­mens, oue desempenharam' papeis diferentes, mas cap l -

sat nascente

G E T T E

tais , n a evolução do pensa­mento moderno; mas se con­segui mostrar o objecto co ­mum das suas realizações e esforços, isto é o alcance cada SltJUI Z9A e p B » 'IB9I STBUI Z3A perfeito, cada vez mais r ico duma claTa posse da vida, dos seus milhões de formas, da sua liberdade e mobilidade in­finitas, eu terei com suficiên­cia atingido o meu alvo que é o de cravar a a tenção neste ponto central .

Resumindo: que nos ensi ­naram pois os três «novos ho­mens»?

Shelley. desvendando-nos a riqueza e a universalidade do amor, manlfestou-nos em sl aquela força de identificação do universo e do homem que é. por assim dizer, a única lei viva deste mundo.

M'ichelet. recflamando para todos, a vida sã . vigorosa, s in­c e r a e livre, fez desta pro­funda saúde e realidade a condição primacial e bás ica de toda a vitalidade comum ou superior.

Wal t Whltman. f inalmente, deu-nos o exemolo da mais Integral expansão na carne e na vida universal.

Más todos três nos mostra-Tam o caminho da regenera­ção e da salvação num mes­mo acordo no seio da única rea.lldade divina, n u m a arre i ­gada amizade sob a a sa do todo. Todos três nos apon ta ­r a m energ icamente o c a m i ­nho do novo mundo e da nova vida.

Eis como eles «compreende­ram» a natureza, como eles pressagiaram a «divindade» do homem solidário dos seres e das coisas, como eles anun­ciaram uma «religião» culo grandioso pante ísmo invade e ab raça o mundo infinito das cr ia turas oue é um real s e n f m e n t o vivaz do nosso pa­rentesco com o universo, uma pene t ração e assimilação por nós. seres ínfimos ou seres de escol, do todo vivo: religião da Qual pressentimos a e x ­pansão futura.

( 1 ) — I s t o foi « i r r i t o em JSÍ1S.

( 2 ) Octnve Mlrhc&o.

(Conclue n o próximo nú­mero)

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o p a r t o

d ci v i d a As horas soaram irremediáveis,

e os ruídos dos sinos ecoam ainda,

repercutindo-se no espaço silencioso.

Tudo lembra o girar constante do tempo.

Os sinos soaram anunciando as horas,

e o dia amanhã será já outro,

na sucessão imperecível e renovadora

da vida correndo pelo espaço.

O ontem vai insensível a perder-se,

a esvafr-se para o nada donde veio.

Ontem, os corpos tinham a solidez da pedra,

erguiam-se no orgulho de jovens,

mas hoje procuram o ponto de partida,

gastos c tristes, velhos e infelizes.

Ontem, ainda seus corpos lutavam,

seus braços destruíam mundos,

e seus desejos procuravam outros corpos,

hoje, ficam inertes e fracos,

desfeitos os seus músculos de aço,

mortos para sempre todos os desejos.

Cintando, de busto erguido, outros vieram

na sucessão imperecível do tempo,

outros pegaram nos martelos c bateram,

outros pegaram nas enxadas e cavaram,

e os seus braços não param dc bater, nem de cavar.

Insatisfeitos sorven. o prazer até ao fim.

Nos olhos tristes dos de ontem,

paira a saudade da vida que não souberam viver,

quedou-se a amargura da sua inutilidade.

E seus corpos procuram a ter ra . . .

Mas os que hoje se erguem viris

e oferecem generosamente a sua força,

arrastarão também sua velhice

na saudade de tudo o que está já distante.

Amanhã, sempre, até ao minuto do fim,

o tempo rolará irremediavelmente,

na sucessão veloz de toda a vida humana.

A R M A N D O V E N T U R A P A R R E I R A

sete