Antoninho Lobo.docx

4
António de Sousa Lobo Júnior Antoninho Lobo Em 1960, nas vésperas da morte do meu pai, lembro-me duma serenata que ele fez á minha mãe. ‘Bôs odjos é preto e doce’, entrava com deleite através das persianas da janela, na voz forte e cálida de Antoninho Lobo. Antoninho Lobo tinha um vozeirão. Quando ele cantava parecia que tudo vibrava ao redor, num ritmo de paixão e amor, e, um fogo de sensibilidade e sentimento ecoava da sua alma, ganhava melodia na sua garganta e explodia nos corações de quem o ouvia. Um autodidata que dedicava muito do seu tempo lendo bons livros; Antoninho Lobo, homem culto e de firmes convicções sociais que adocicava o quotidiano com a sua alegria e inveterado romantismo. Conheci-o como funcionário das Alfâdegas, embora ao longo da sua vida tenha exercido profissões outras tais como carpinteiro, tipógrafo e relojoeiro. *Experimentou também a vida de marinheiro no navio Ildut, a convite do capitão José Lopes (Zezinho), que por ele tinha grande estima. Com a sua voz e a sua simpatia tornava menos penosos os horríveis dias na perigosa cabotagem pelas ilhas. Vivia com a sua família na localidade de Morro de Curral. Fomos vizinhos por largos anos e eu sentia grande prazer em o visitar, para, entre um trago e outro de boa aguardente, beber do seu vasto e diversificado conhecimento. De boas maneiras, humilde e arguto, cogitava sempre dos caminhos que a juventude salense estava trilhando. Preocupava-se com o futuro do Sal e nutria um indefectível amor ao seu torrão querido e uma simpatia de patriarca ás gentes da Ilha. Em casa do Ti Antoninho, como alguns familiares carinhosamente o tratavam, era uma alegria constante pois a sua prole era grande e a esposa D. Túlia ainda tinha gosto em receber cuidar de outros parentes provenientes da Boavista. Conheceu a esposa em 1955, e nove anos depois oficializaram a união, casando-se na

Transcript of Antoninho Lobo.docx

Page 1: Antoninho Lobo.docx

António de Sousa Lobo Júnior

Antoninho Lobo

Em 1960, nas vésperas da morte do meu pai, lembro-me duma serenata que ele fez á minha mãe. ‘Bôs odjos é preto e doce’, entrava com deleite através das persianas da janela, na voz forte e cálida de Antoninho Lobo.

Antoninho Lobo tinha um vozeirão. Quando ele cantava parecia que tudo vibrava ao redor, num ritmo de paixão e amor, e, um fogo de sensibilidade e sentimento ecoava da sua alma, ganhava melodia na sua garganta e explodia nos corações de quem o ouvia.

Um autodidata que dedicava muito do seu tempo lendo bons livros; Antoninho Lobo, homem culto e de firmes convicções sociais que adocicava o quotidiano com a sua alegria e inveterado romantismo.

Conheci-o como funcionário das Alfâdegas, embora ao longo da sua vida tenha exercido profissões outras tais como carpinteiro, tipógrafo e relojoeiro. *Experimentou também a vida de marinheiro no navio Ildut, a convite do capitão José Lopes (Zezinho), que por ele tinha grande estima. Com a sua voz e a sua simpatia tornava menos penosos os horríveis dias na perigosa cabotagem pelas ilhas.

Vivia com a sua família na localidade de Morro de Curral. Fomos vizinhos por largos anos e eu sentia grande prazer em o visitar, para, entre um trago e outro de boa aguardente, beber do seu vasto e diversificado conhecimento. De boas maneiras, humilde e arguto, cogitava sempre dos caminhos que a juventude salense estava trilhando. Preocupava-se com o futuro do Sal e nutria um indefectível amor ao seu torrão querido e uma simpatia de patriarca ás gentes da Ilha.

Em casa do Ti Antoninho, como alguns familiares carinhosamente o tratavam, era uma alegria constante pois a sua prole era grande e a esposa D. Túlia ainda tinha gosto em receber cuidar de outros parentes provenientes da Boavista. Conheceu a esposa em 1955, e nove anos depois oficializaram a união, casando-se na Povoação de Fundo das Figueiras em Boavista. Dessa união os filhos foram aparecendo, em número de sete, duas raparigas e cinco rapazes que se juntaram ao primogénito Ildo lobo e que a D. Túlia sempre tratou como se filho dela fosse.

Não me esqueço da forma suave e repleta de ternura que, vezes várias, a Tuia passava a mão, com cuidado e carinho pelo cabelo de ti Antonim acariciando-lhe e compondo-lhe algum fio possivelmente desalinhado. A tal “Moreninha sem par” e a “Feiticeira di cor morena” que ele tantas vezes cantava encontravam-se personalizados nessa forte e meiga mulher que Antoninho Lobo escolheu como sua companheira, sua “Camponesa formosa”, que tanto gostava de cantar. Outras canções que me deliciavam ouvir nessa linda voz eram “Malandrinha” e “A volta do boémio”

Homem da sua boemia, juntava-se muitas vezes ao Alcindo Leite, Gastão, Jorge Rendall, Toi Linda, Mané Chinchinha, Pedro Guimar e outros, para bons momentos de optimo convivio e

Page 2: Antoninho Lobo.docx

muita música à mistura. Bastava um garrafgão de vinho, algum peixe seco, uns grãos de milho e um violão... que a voz estava lá, a voz do ti Antoninho.

Do livro « Quejas, Tchufe e Lobo – ‘Reis crioulos do samba, fado e morna dos anos 30’» de Alveno Figueiredo e Silva tenho o privilégio de, com todo o respeito, transcrever as seguintes passagens, assim como um parágrafo escrito atrás e assinalado com o asterisco *:

«Nasceu a 20 de Maio de 1910, na Vila de Santa Maria – ilha do Sal

Reformou-se como Auxiliar de Verificação, após ingressar como Fiel da Balança do quadro do pessoal da Direcção Geral das Alfândegas de Cabo Verde. Iniciou as actividades na Circunscrição Aduaneira da Praia, tendo sido transferido mais tarde para S. Vicente e posteriormente colocado em definitivo no Sal donde era natural.

Era um romântico, mostrava apetência para a pescaria, adorava bons livros, nas horas de lazer dedicava-se à ‘bricolage’. Bom garfo por excelência, apreciava a boa conversa. Era um fumador inveterado, hábito que intercalcava com um e outro copo. Enfim, ele foi um eterno apaixonado pela vida.

Na música, tinha propensão para as mornas de Eugénio Tavares, B. Léza e outras populares que revezava com sambas, modinhas, canções, boleros e fados em voga na sua época.

“A minha voz e as canções que eu escolhia criteriosamente (românticas) lograram-me conhecer moças de grande classe da minha época em Cabo Verde. Namorei professoras e passoras (palavra inventada por ele para não especificar classes)”, recordava frequentemente o cantador.

Lobo não se distinguiu apenas pela voz. A isso juntava uma articulação exemplar dos versos e um reportório criteriosamente escolhido que se distiguia pelo bom gosto, a mensagem e a melodia. Rematou esse conjunto com uma postura elegante e expressiva em palco.

A discrição por que pautou Antoninho Lobo após arredar das andanças da música, conjugada com a sua aposentadoria da Alfândega, contribuiu a um tempo para que o seu passado fosse ignorado. Normalmente, nesses casos a memória dos homens costuma ser curta. “Não visto, não lembrado” diz a voz popular. Esta afirmação ajusta-se na perfeição a este e a outros casos semelhantes.

Os anos 80 do século passado podem ser considerados os de despedida de Lobo da música, embora trauteasse de vez em quando uma ou outra canção por insistência de um amigo íntimo. Assim, a certa altura, quem olhasse para Antoninho talvez não imaginasse a nobreza da sua garganta, que espalhou melodias nos ouvidos saudosos das gentes das ilhas.

Antoninho Lobo era uma pessoa de hábitos apurados e os resguardava como princípios sagrados que, aliás, modelaram toda a sua vida. Após a aposentadoria, passou a frequentar diariamente a castiça pensão “Arcada” onde cavaqueava com antigos confrades como Manuel Adolfo de Pinto Osório, Hugo Vera-Cruz, Hugo Rodrigues e outros.

Naturalmente, quando a tarde/noite tombava sobre o insípido povoado dos Espargos, o Velho Lobo, numa das suas derradeiras rotinas, metia-se pela estrada, rumo ao Morro de Curral, de boina preta e bengala na mão. Terá sido porventura

Page 3: Antoninho Lobo.docx

este um dos seus últimos costumes antes da sua voz se calar de vez, deixando como lenitivo um grande legado na música de Cabo Verde.

Antoninho Lobo morreu na ilha do Sal a 25 de Dezembro de 1991. »

Nesse dia, no dia de Natal, o Sal morreu um pouco e a nossa gente emudeceu de tristeza e dor. Morro de Curral silenciou... e o Sal chorou a partida desse filho de voz de ouro e coração de tamanho do Mundo, e eu perdi um amigo e uma das fontes de conhecimento e saber.

Morro de Curral nunca mais voltou a ser como era!

Antoninho Lobo foi a enterrar no cemitério de Santa Maria acompanhado da sua morna preferida 'Avezinha di rapina' na voz do seu filho Ildo Lobo. Acompanhou o cortejo fúnebre um mar de gente, todos chorando no momento de despedida desse querido filho salense: ti Antoninho- a voz de ouro deste torrão salgado, Dja d'Sal.

Se o Antoninho Lobo ainda vivesse faria hoje 104 anos. Por isso, e em sua homenagem e memória, bem assim como lembrança da sua doce companheira, a razão deste pequeno trabalho.

Antoninho Lobo Tulia Lobo