Antonio Candido e Outros - A personagem de ficção (doc)(rev) (1)

download Antonio Candido e Outros - A personagem de ficção (doc)(rev) (1)

of 99

Transcript of Antonio Candido e Outros - A personagem de ficção (doc)(rev) (1)

A Personagem de FicoAntonio Candido, Anatol Rosenfeld, Decio de Almeida Prado e Paulo Emlio Sales Gomes

http://groups.google.com/group/digitalsource

A Personagem de FicoDebates por J. Guinsburg Conselho Editorial: Anatol Rosenfeld, Anita Novinsky, Aracy Amaral, Bons Schnaiderman, Celso Lafer, Gita K. Ghinzberg, Haroldo de Campos, Rosa Krausz, Sbato Magaldi, Zulmira Ribeiro Tavares.

Antonio Candido Anatol Rosenfeld Decio de Almeida Prado Paulo Emlio Sales Gomes A Personagem de Fico 2a edio Equipe de realizao: Geraldo Gerson de Souza, reviso; Moyss Baumstein, capa e trabalhos tcnicos. Editora Perspectiva So Paulo

1

PREFCIO(pag. 5)

O livro seguinte reproduz, com o mesmo ttulo, o Boletim n. 284 da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da. Universidade de So Paulo, publicado em 1964. Nascido de uma experincia de ensino, julgo oportuno reproduzir a parte do Prefcio que explicava a sua elaborao.1

Este livro foi digitalizado e distribudo GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a inteno de facilitar o acesso ao conhecimento a quem no pode pagar e tambm proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras. Se quiser outros ttulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, ser um prazer receb-lo em nosso grupo.

ste

Boletim

resulta

das

atividades

do

Seminrio

Interdisciplinar, iniciativa pela qual procuro dar aos cursos a meu cargo o carter de interrelao com outros pontos de vista, indispensveis ao estudo da Teoria Literria. Esta matria toca no apenas em outros domnios do saber,como a Filosofia e a Lingstica, mas na realidade viva das diversas artes. Da se encontrarem nesta publicao, como se encontraram nas atividades do Seminrio, estudiosos da Filosofia, da Literatura, do Teatro e do Cinema.

O curso de 1961 para o 4. ano versou Teoria e Anlise do Romance; dentre os seus tpicos, foi selecionado o referente Personagem (explanado no ms de abril), para os trabalhos do Seminrio. Eles se estenderam de outubro a novembro, depois de terminadas as aulas, constando de exposies sbre o problema geral da fico pelo Professor Anatol Rosenfeld; sbre a personagem de teatro, pelo Professor Dcio de Almeida Prado; sbre a personagem de cinema, pelo Professor Paulo Emlio Sales Gomes. A seguir, vieram outras atividades, como uma Mesa Redonda, com participao dos alunos e dos quatro docentes, para balano e esclarecimento de problemas; a projeo do filme La Dolce Vita, de Federico Fellini, comentado pelo Professor Paulo Emilio Sales Gomes do ngulo das tcnicas de caracterizao psicolgica; a representao da pea A Escada, de Jorge Andrade, seguida de debate sbre a caracterizao cnica, orientado pelo Professor Dcio de Almeida Prado, com a participao central do encenador, Flvio Rangel, e a colaborao da crtica de teatro Brbara Heliodora Carneiro de Mendona. Dessa maneira, procurou-se pr os estudantes em contato com vrias faces de um problema complexo, a fim de que a teoria e a anlise, do ponto de vista literrio, ficassem o mais esclarecidas possvel pela incidncia de outros focos. Neste Boletim, recolhem-se as aulas sbre personagem do professor do curso e as contribuies do Seminrio, redigidas especialmente para o caso. Como se ver, as exposies crticas sbre o problema no

romance, no teatro e no cinema giram estruturalmente em trno da exposio bsica sbre o problema geral da fico, embora cada autor tenha escrito a sua contribuio independentemente e com tda a liberdade. Na presente edio, suprimiu-se a pequena bibliografia final, de intersse meramente indicativo, e corrigiram-se alguns erros tipogrficos.

So Paulo, 31 de janeiro de 1968

Antonio Candido de Mello e Souza

Literatura e Personagem(Pag. 9)

Conceito de Literatura

Geralmente, quando nos referimos literatura, pensamos no que tradicionalmente se costuma chamar belas letras ou beletrstica. Trata-se, evidentemente, s de uma parcela da literatura. Na acepo lata, literatura tudo o que aparece fixado por meio de letras obras cientficas, reportagens, notcias, textos de propaganda, livros didticos, receitas de cozinha etc. Dentro dste vasto campo das

letras, as belas letras representam um setor restrito. Seu trao distintivo parece ser menos a beleza das letras do que seu carter fictcio ou imaginrio1. A delimitao do campo da beletrstica pelo carter ficcional ou imaginrio tem a vantagem de basear-se em momentos de lgica literria que, na maioria dos casos, podem ser verificados com certo rigor, sem que seja necessrio recorrer a valorizaes estticas. Contudo o critrio do carter ficcional ou imaginrio no satifaz inteiramenente o propsito de delimitar o campo da literatura no sentido restrito. A literatura de cordel tem carter ficcional, mas no se pode dizer o mesmo dos Sermes do Padre Vieira, nem dos escritos de Pascal, nem provvelmente dos dirios de Gide ou Kafka. Ser fico o poema didtico De rerum natura, de Lucrcio? No entanto, nenhum historiador da literatura hesitar em eliminar das suas obras os romances triviais de baixo entretenimento e em nelas acolher os escritos mencionados. Parece portanto impossvel renunciar por inteiro a critrios de valorizao, principalmente esttica, que como tais no atingem objetividade cientfica embora se possa ao menos postular certo consenso universal.

A Estrutura da Obra Literria

A estrutura de um texto qualquer, ficcional ou no, de valor esttico ou no, compe-se de uma srie de planos, dos quais o nico real, sensivelmente dado, o dos sinais tipogrficos impressos no papel. Mas ste plano, embora essencial fixao da obra literria, no tem funo especfica na sua constituio, a no ser que se trate de um texto concretista. No nexo dste trabalho, ste plano deve ser psto de lado, assim como tdas as consideraes sbre tendncias1

O significado dste trmo, no sentido usado neste trabalho, se esclarecer mais adiante, sem que haja qualquer pretenso de uma abordagem ampla e profunda dste conceito tradicional, desde a antiguidade objeto de muitas discusses. Contribuies recentes para a sua anlise encontram-se nas obras de 3.-P. Sartre, LImagination e LImaginaire, Roman Ingsrden, Das literarische Kunstwerk (A obra-de-arte literria) e Untersuchungen zur Ontol,ogle der Kunst (Investigaes acrca da ontologia da arte) M. Dufreune, Phnomnologje de lexprlence esthtique tdas baseadas nos mtodos de E. Husseri.

literrias recentssimas, cuja conceituao ainda se encontra em plena elaborao. Como camadas j irreais por no terem autonomia ntica, necessitando da atividade concretizadora e atualizadora do apreciador adequado encontramos as seguintes: a dos fonemas e das configuraes sonoras (oraes), percebidas apenas pelo ouvinte interior, quando se l o texto, mas diretamente dadas quando o texto recitado; a das unidades significativas de vrios graus, constitudas pelas oraes; graas a estas unidades, so (projetadas atravs de determinadas operaes lgicas, contextos objectuais (Sachverhalte), isto , certas relaes atribudas aos objetos e suas qualidades (a rosa vermelha; da flor emana um perfume; a roda gira). stes contextos objectuais determinam as objectualidades, por exemplo, as teses de uma obra cientfica ou o mundo imaginrio de um poema ou romance. Merc dos contextos bjectuais, constitui-se um plano intermedirio de certos vemos aspectos uma bola esquematizados de bilhar que, quando sbre o especialmente pano verde, preparados, determinam concretizaes especificas do leitor. Quando deslizando vivenciamos um fluxo continuo de aspectos variveis de um disco eliptide, de uma cr clara extremamente matizada; atravs dsses aspectos variveis -nos dada e se mantm inalterada a percepo da esfera branca da bola. Em geral, os textos apresentam-nos tais aspectos mediante os quais se constitui o objeto. Contudo, a preparao especial de selecionados aspectos esquemticos de importncia fundamental na obra ficcional particularmente quando de certo nvel esttico j que desta forma solicitada a imaginao concretizadora do apreciador. Tais aspectos esquemticos, ligados seleo cuidadosa e precisa da palavra certa com suas conotaes peculiares, podem referir-se aparncia fsica ou aos processos psquicos de um objeto ou personagem (ou de ambientes ou pessoas histricas etc.), podem salientar momentos visuais, tteis, auditivos etc.

Em poemas ou romances tradicionais, a preparao especial dos aspectos bem mais discursiva do que, por exemplo, em certos poemas elpticos de Ezra Pound ou do ltimo Brecht, em que a justaposio ou montagem de palavras ou oraes, sem nexo lgico, deve, como num ideograma, resultar na sntese intuitiva de uma imagem, graas participao intensa do leitor no prprio processo da criao (a teoria da montagem flmica de Eisenstein baseia-se nos mesmos princpios). Num quadro figurativo h s um aspecto para mediar os objetos, mas ste de uma concreo sensvel nunca alcanada numa obra literria. Esta, em compensao, apresenta grande nmero de aspectos, embora extremamente esquemticos. O cinema e o teatro apresentam muitos aspectos concretos, mas no podem, como a obra literria, apresentar diretamente aspectos psquicos, sem recurso mediao fsica do corpo, da fisionomia ou da voz. s camadas mencionadas devem ser acrescentadas, numa obra ficcional de elevado valor, vrias outras as dos significados espirituais mais profundos que transparecem atravs dos planos anteriores, principalmente o das objectualidades imaginrias, constitudas, em ltima nlise, pelas oraes 2. ste mundo fictcio ou mimtico que freqentemente reflete momentos selecionados e transfigurados da realidade emprica exterior obra, torna-se, portanto, representativo para algo alm dle, principalmente alm da realidade emprica, mas imanente obra.

A Obra Literria Ficcional 1) O problema ontolgico: A verificao do carter ficcional de um escrito independe de critrios de valor. Trata-se de problemas ontolgicos, lgicos e epistemolgicos. Como foi exposto antes uma das funes essenciais da orao a de projetar, como correlato,um contexto objectual que transcendente ao mero contedo significativo, embora tenha nle seu fundamento

ntico. Assim, a orao Mrio estava de pijama projeta um correlato objectual que constitui certo ser fora da orao. Mas o Mrio assim projetado deve ser rigorosamente distinguido de certo Mrio real, possivelmente visado pela orao. Como tal, o correlato da orao pode referir-se tanto a um rapaz que existe independentemente da orao, numa esfera ntica autnoma (no caso, a da realidade), como permanecer sem referncia a nenhum mo real. Todo texto, artstico ou no, ficcional ou no, projeta tais contextos objectuais puramente intencionais que podem referir-se ou no a objetos nticamente autnomos. Imaginemos que eu esteja vendo diante de mim o Mrio real; evidente que na minha conscincia h s uma imagem dle, alis no notada por mim, j que me refiro diretamente ao Mrio real. Posso chamar ste objeto o Mrio real de tambm intencional, visto o mesmo existir no por graa do meu ato, mas ter plena autonomia, mesmo quando visado por mim num ato intencional, como agora. Todavia, a imagem dle, a qual o representa na minha conscincia (embora no a note), puramente intencional, visto no possuir autonomia ntica e existir por graa do meu ato. Posso reproduzi-la at certo ponto na minha mente, mesmo sem ver o rapaz autnomo; posso tambm transform-la merc de certas operaes espontneas. bvio que as oraes s podem projetar tais correlatos puramente intencionais, j que no lhes dado tampouco como minha conscincia encerrar os objetos tambm intencionais. Ainda assim, as objectualidades puramente intencionais projetadas por intermdio de oraes tm certa tendncia a se constiturem como realidade. Se a orao Mrio estava de pijama apresenta o mo pela primeira vez, ste torna-se portador do traje a ele atribudo; portador graas funo especfica de sujeito da orao; e portador de algo, em virtude da funo significativa da cpula. O pretrito, apesar de em certos casos ter o cunho fictcio do era uma vez, tem em geral mais fra realizadora e individualizadora do que a voz do presente (O elefante pesa no mnimo uma tonelada pode ser o enunciado de

um zologo sbre os elefantes em geral; mas o elefante pesava no mnimo uma tonelada refere-se a um elefante individual, existente em determinado momento). De qualquer modo, a orao projeta o objeto Mrio como um ser independente. Com efeito, ela sugere que Mrio j existia e j estava de pijama antes de a orao assinalar ste fato. Ao seguir a prxima orao: le batia uma carta na mquina de escrever, Mrio j se emancipou de tal modo das oraes,. que os contextos objectuais, embora estejam pouco a pouco constituindo e produzindo o mo, parecem ao contrrio apenas revelar pormenores de um ser autnomo. E isso ao ponto de o mundo objectual assim constitudo pelas oraes (mas que se insinua como independente, apenas descrito pelas oraes) se apresentar como um contnuo, apesar de as oraes serem naturalmente descontnuas como os fotogramas de uma fita de cinema. base das oraes, o leitor atribui a Mrio uma vida anterior sua criao pelas oraes; coloca a mquina sbre uma mesa (no mencionada) e o rapaz sbre uma cadeira; o conjunto num quarto, ste numa casa, esta numa cidade embora nada disso tenha sido mencionado. Uma das diferenas entre o texto ficcional e outros textos reside no fato de, no primeiro, as oraes projetarem contextos objectuais e, atravs dstes, sres e mundos puramente intencionais, que no se referem, a no ser de modo indireto, a sres tambm intencionais (nticamente autnonios), ou seja, a objetos determinados que independem do texto. Na obra de fico, o raio da inteno detm-se nestes sres puramente intencinais, smente se teferindo de um modo indireto e isso nem em todos os casos a qualquer tipo de realidade extraliterria. J nas oraes de outros escritos, por exemplo, de um historiador, ou qumico, uma reprter vez etc., na as sua objectualidades abstrao ou puramente intencionais no costumam ter por si s nenhum (ou pouco) pso densidade, que, esquematizao maior ou menor, no tendem a conter em geral esquemas especialmente preparados de aspectos que solicitam o preenchimento concretizador. O raio de inteno passa atravs delas

diretamente aos objetos tambm intencionais, semelhana do que se verifica no caso de eu ver diante de mim o mo acima citado, quando nem sequer noto a presena de uma imagem interposta. H um processo semelhante no caso de um jornal

cinematogrfico ou de uma foto de identificao. Trata-se de imagens puramente intencionais que, no entanto, procuram omitir-se para franquear a viso da prpria realidade. J num retrato artstico a imagem puramente intencional adquire valor prprio, certa densidade que fcilmente ofusca a pessoa retratada. Alis, mesmo diante de um fotgrafo despretensioso a pessoa tende a compor-se, tomar uma pose, tornar-se personagem; de certa forma passa a ser cpia antecipada da sua prpria cpia. Chega a fingir a alegria que deveras sente. 2) O problema lgico. Os enunciados de uma obra cientfica e, na maioria dos casos, de notcias, reportagens, cartas, dirios etc., constituem juzos, isto , as objectualidades puramente intencionais pretendem corresponder, adequar-se exatamente aos sres reais (ou ideais, quando se trata de objetos matemticos, valores, essncias, leis etc.) referidos. Fala-se ento de adequatio orationis ad rem. H nestes enunciados a inteno sria de verdade. Precisamente por isso pode-se falar, nestes casos, de enunciados errados ou falsos e mesmo de mentira e fraude, quando se trata de uma notcia ou reportagem em que se pressupe inteno sria. O trmo verdade, quando usado com referncia a obras de arte ou de fico, tem significado diverso. Designa com freqncia qualquer coisa como a genuinidade, sinceridade ou autenticidade (trmos que em geral visam atitude subjetiva do autor); ou a verossimilhana, isto , na expresso de Aristteles, no a adequao quilo que aconteceu, mas quilo que poderia ter acontecido; ou a coerncia interna no que tange ao mundo imaginrio das personagens e situaes mimticas; ou mesmo a viso profunda de ordem filosfica, psicolgica ou sociolgica da realidade.

At neste ltimo caso, porm, no se pode falar de juzos no sentido preciso. Seria incorreto aplicar aos enunciados fictcios critrios de veracidade cognoscitiva. Sentimos que a obra de Kafka nos apresenta certa viso profunda da realidade humana, sem que, contudo, seja possvel verificar a maioria dos enunciados individuais ou todos les em conjunto, quer em trmos empricos, quer puramente lgicos. Na obra de Knut Hamsun h uma viso profunda inteiramente diversa da realidade, mas seria impossvel chamar a maioria dos enunciados ou o conjunto dles de falsos. Quando chamamos falsos um romance trivial ou uma fita medocre, fazemo-lo, por exemplo, porque percebemos que nles se aplicam padres do conto de carochinha a situaes que pretendem representar a realidade cotidiana. Os mesmos padres que funcionam muito bem no mundo mgico-demonaco do conto de fadas revelam-se falsos e caricatos quando aplicados representao do universo profano da nossa sociedade atual (a no ser que esta prpria aplicao se torne temtica). Falso seria tambm um prdio com portal e trio de mrmore que encobrissem apartamentos miserveis. esta incoerncia que falsa. Mas ningum pensaria em chamar de falso um autntico conto de fadas, apesar de o seu mundo imaginrio corresponder muito menos realidade emprica do que o de qualquer romance de entretenimento. Ainda assim a estrutura das oraes ficcionais parece ser em geral a mesma daquela de outros textos. Parece tratar-se de juzos. O que os diferencia dos verdadeiros a inteno diversa isto , a inteno que se dtm nas objectualidades puramente intencionais (e nos significados mais profundos por elas sugeridos), sem atravess-las, diretamente, em direo a quaisquer objetos autnomos, como ocorre, no nosso exemplo, na viso do mo real. essa inteno diversa no necessriamente visvel na estrutura dos enunciados que transforma as oraes de uma obra ficcional em quase-juzos3. A sua inteno no sria4. O autor convida o leitor a deter o raio de inteno na imagem de

Mrio, sem buscar correspondncias exatas com qualquer pessoa real dste mesmo nome5. Todavia, os textos ficcionais, apesar de seus enunciados costumarem ostentar o hbito exterior de juzos, revelam nitidamente a inteno ficcional, mesmo quando esta inteno no objetivada na capa do livro, atravs da indicao romance, novela etc. Ainda que a obra no se distinga pela energia expressiva da linguagem ou por qualquer valor especfico, notar-se- o esfro de particularizar, concretizar e individualizar os contextos objectuais, mediante a preparao de aspectos esquematizados e uma multiplicidade de pormenores circunstanciais, que visam a dar aparncia real situao imaginria. paradoxalmente esta intensa aparncia de realidade que revela a inteno ficcional ou mimtica. Graas ao vigor dos detalhes, veracidade de dados insignificantes, coerncia interna, lgica das motivaes, causalidade dos eventos etc.,

3. A expresso usada por Roman Ingarden em Das literarische Kunstwerk. J.-P. Sartre, em LImagination, formula: Il y a l un type daffirmation, un type dexistence intermdiaire entre les assertions fausses du rve et les certitudes de la veille: et ce type dexistence est videmment celui des crations imaginaires. Faire de celles-ci des actes judicatifs, cest leur donner trop (p.137). 4. Quando da publicao de seus Buddenbrooks, Th. Mann foi violentamente atacado devido ao retratamenso de pessoas e aspectos da cidade de Lbeck. Tais incidentes so freqentes na histria da literatura. Num ensaio sbre o caso (Bilse und ich), Th. Mann declarou: Quando fao de uma coisa uma orao que tem que ver esta coisa com a orao? O fato que mesmo uma cidade realmente existente torna-se fico no contexto fictcio, j que representa determinado papel no mundo imaginrio. Isso se refere tambm s imagens de filmes tomadas no ambiente real correspondente ao enrdo: o ambiente, embora em si real, situa-se agora num espao fictcio e torna-se igualmente fictcio. Um enunciado como dois e dois so quatro sempre verdico; mas quando preferido por uma personagem, com inteno sria, esta inteno sria , por sua vez, fictcia; e quando ocorre na prpria narrao, a inteno fictcia transforma o enunciado em quase-juzo, embora em si certo. Quando, em Lio, de Ionesco, o professor e a aluna se debatem com multiplicaes astronmicas, ningum pensaria em verificar os resultados. A funo

dos juzos aritmticos, no contexto fictcio, no esta.

5. A conscincia do carter ficcional no tem sido sempre ntida. Wolfgang Kayser (em: Die Wahrheit der Dlchter A verdade dos Poetas) demonstra que no sculo XVI os leitores de romance no tinham a noo ntida de que os enunciados respectivos eram fictcios.

tende a constituir-se a verossimilhana do mundo imaginrio. Mesmo sem alguns dstes elementos o texto pode alcanar tamanha fra de convico que at estrias fantsticas se impem como quase-reais . Todavia, a aparncia da realidade no renega o seu carter de aparncia. No se produzir, na verdadeira fico, a decepo da mentira ou da fraude. Trata-se de um verdadeiro ser aparencial (Julian Matias), baseado na conivncia entre autor e leitor. O leitor, parceiro da emprsa ldica, entra no jgo e participa da no -seriedade dos quase-juzos e do fazer de conta. Uma orao como esta: Enquanto falava, a mulherzinha deitava sbre o marechal os grande olhos que despediam chispas. Floriano parecia incomodado com aqule chamejar; era como se temesse derreter-se ao calor daquele olhar. . . (Lima Barreto, Triste Fim de Policarpo Quaresma) revela de imediato, apesar do contexto histrico, a inteno ficcional. O autor parece convidar o leitor a permanecer na camada imaginria que se sobrepe e encobre a realidade histrica. 3 ) O problema epistemolgico (a personagem). porm a personagem que com mais nitidez torna patente a fico, e atravs dela a camada imaginria se adensa e se cristaliza. Isto pouco evidente na poesia lrica, em que no parece haver personagem. Todavia, expresso ou no, costuma manifestar-se no poema um Eu lrico que no deve ser confundido com o Eu emprico do autor. Sem dvida, houve no decurso da histria grandes variaes neste campo. No se devem aplicar os mesmos padres e conceitos a poemas da Grcia antiga, a poemas romnticos e a poemas atuais. Parece, contudo, que se pode negar em geral a opinio de que nas oraes de poemas lricos se trata de juzos, de enunciados existenciais acrca

de determinada realidade psquica do poeta ou qualquer realidade exterior a le. precisamente no poema que so mobilizadas tdas as virtualidades expressivas da lngua e toda a energia imaginativa. No caso de versos como stes: A chuva de outono molha O pso da minha altura E tal rosa que desfolha Tenho ptalas na figura6

seria absurdo falar de juzos, mesmo subjetivos, referentes, passo a passo, a estados psquicos reais da poetisa 7. perfeitamente possvel que haja referncia indireta a vivncias reais; estas, porm, foram transfiguradas pela energia da imaginao e da linguagem potica que visam a uma expresso mais verdadeira, mais definitiva e mais absoluta do que outros textos. O poema no uma foto e nem sequer um retrato artstico de estados psquicos; exprime uma viso estilizada, altamente simblica, de certas experincias. Mesmo em versos aparentemente confessionais como stes de Safo: A lua se ps e as Pliades, pelo meio anda a noite, esvai-se a juventude, mas eu estou deitada, szinha no se deve confundir o Eu lrico dentro do poema com o Eu emprico fora dle. ste ltimo se desdobra e objetiva, atravs das categorias estticas, constituindo-se na personagem universal da mulher ansiosa por amor. At um poeta como Goethe que, na sua fase romntica, considerava a poesia a mais poderosa expresso da verdade, como revelao da intimidade, chegou, j aos vinte anos, concluso de Fernando Pessoa (o poeta finge mesmo a dor que deveras sente), porque o poema , antes de tudo, Gestalt, forma viva, beleza. Variando concepes de Plato, declara que a beleza no luz e no noite; cre-

6 Lupe Cotrlm Garaude, Raiz Comum. 7. Tal , contudo, a opinio de Kaethe Hamburger em Die Logik der Dichrung (A Lgica da Fico); segundo a autora, os enunciados de um poema lrico seriam juzos existenciais, juzos subjetivos, mas juzos.

psculo;

resultado

da

verdade

e

no-verdade.

Coisa

intermediria. So quase os trmos com que Sartre descreve a fico. Contudo, a personagem do poema lrico no se define nitidamente. Antes de tudo pelo fato de o Eu lrico manifestar-se apenas no monlogo, fundido com o mundo (A chuva de outono molha / O pso da minha altura), de modo que no adquire contornos marcantes; depois, porque exprime em geral apenas estados enquanto a personagem se define com nitidez smente na distenso temporal do evento ou da ao. Como indicadora mais manifesta da fico por isso bem mais marcante a funo da personagem na literatura narrativa (pica). H numerosos romances que se iniciam com a descrio de um ambiente ou paisagem. Como tal poderiam possivelmente constar de uma carta, um dirio, uma obra histrica. geralmente com o surgir de um ser humano que se declara o carter fictcio (ou no-fictcio) do texto, por resultar da a totalidade de uma situao concreta em que o acrscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaborao imaginria. No nosso exemplo de Mrio seria possvel que as oraes Mrio estava de pijama. ele batia uma carta na mquina de escrever constassem de um relato policial que prosseguisse assim: . . . quando entrou o ladro. . . Se o texto, porm, prosseguir assim: Sem dvida ainda iria alcan-la. Afinal, Lcia decerto no podia partir depois-deamanh, sabemos que se trata de fico. Notamos, talvez sem reconhecer as causas, que Mrio no urna pessoa e sim uma personagem. Certas palavras sem importncia aparente nos colocam dentro da conscincia de Mrio, fazem-nos participar de sua intimidade: sem dvida, afinal, decerto, depois-de-amanh. Tais palavras indicam que se verificou uma espcie de identificao

com Mrio, de modo que o leitor levado, sutilmente, a viver a experincia dle. Mais evidentes seriam verbos definidores de processos psquicos, como pensava, duvidava, receava, os quais, quando referidos experincia temporalmente determinada de uma pessoa, no podem, por razes epistemolgicas, surgir num escrito histrico ou psicolgico. Numa obra histrica pode constar que Napoleo acreditava poder conquistar a Rssia; mas no que, naquele momento, cogitava desta possibilidade. S com o surgir da personagem tornam-se possveis oraes categorialmente diversas de qualquer enunciado em situaes reais ou em textos no-fictcios: Bem cedo ela comeava a enfeitar a rvore. Amanh era Natal (Alice Berend, Os Noivos de Babette Bomberling); ... and of course he was coming to her party to-night (Virgnia Woolf, Mrs. Dallowcry); A revolta veio acabar da a dias (Lima Barreto, Triste Fim de Policarpo Quaresma); Da a pouco vieram chegando da direita muitas caleas. . . (Machado de Assis, Quincas Barba). altamente improvvel que um historiador recorra jamais a tais oraes. Advrbios de tempo (e em menor grau de lugar) como amanh, hoje, ontem, da a pouco, da a dias, aqui, ali, tm sentido smente a partir do ponto zero do sistema de coordenadas espcio-temporal de quem est falando ou pensando. Se surgem num escrito, so possveis smente a partir do narrador fictcio, ou do foco narrativo colocado dentro da personagem, ou onisciente, ou de algum modo identificado com ela. O amanh do primeiro exemplo citado pe o foco dentro da personagem, cujo pensamento expresso atravs do estilo indireto livre: no caso, os pensamentos so reproduzidos a partir da perspectiva da prpria personagem, mas a manuteno da terceira pessoa e do imperfeito finge o relato impessoal do narrador. Seriam possveis outros recursos: Ela pensava: Amanh ser Natal; Ela pensava que no dia seguinte seria Natal; mas nenhum como o indicado (alis j usado na literatura latina, na literatura francesa desde o sculo XII e com bem mais

freqncia no romance do sculo XIX, desde Jane Austen e Flaubert) revela o carter categorialmente singular do discurso fictcio. Em nenhuma situao real o amanh poderia ser ligado ao era; e o historiador teria de dizer no dia seguinte j que no pode identificarse com a perspectiva de uma pessoa, sob pena de transform-la em personagem. Embora tais formas no surjam nem na poesia lrica, nem na dramaturgia, e no necessriamente na literatura narrativa, o fenmeno como tal extremamente revelador para todos os tipos de fico, j que a anlise dste sintoma da fico indica, ao que parece, estruturas inerentes a todos os textos fictcios, mesmo nos casos em que o sintoma no se manifesta. O sintoma lingstico evidentemente s pode surgir no gnero pico (narrativo), porque nle que o narrador em geral finge distinguir-se das personagens, ao passo que no gnero lrico e dramtico, ou est identificado com o Eu do monlogo ou, aparentemente, ausente do mundo dramtico das personagens. Assim, smente no. gnero narrativo podem surgir formas de discurso ambguas, projetadas ao mesmo tempo de duas perspectivas: a da personagem e a do narrador fictcio. Mas a estrutura bsica do discurso fictcio parece ser a mesma tambm nos outros gneros. O sintoma lingstico, bvio nos exemplos apresentados, revela, precisamente atravs da personagem, que o narrar pico estruturalmente de outra ordem que o enunciar do historiador, do correspondente de um jornal ou de outros autores de enunciados reais. A diferena fundamental que o historiador se situa, como enunciador real das oraes, no ponto zero do sistema de coordenadas espciotemporal, por exemplo, no ano de 1963 (e na cidade de So Paulo), projetando a partir dste ponto zero, atravs do pretrito plenamente real, o mundo do passado histrico igualmente real de que le, naturalmente, no faz parte. Ao sujeito real (emprico) dos enunciados corresponde a realidade dos objetos projetados pelos enunciados (e s neste contexto possvel falar de mentira, fraude, rro etc.). Na fico

narrativa desaparece o enunciador real. Constitui-se um narrador fictcio que passa a fazer parte do mundo narrado, identificando-se por vzes (ou sempre) com uma ou outra das personagens, ou tornando-se onisciente etc . Nota-se tambm que o pretrito perde a sua funo real (histrica) de pretrito, j que o leitor, junto com o narrador fictcio, presencia os eventos. O pretrito mantido com a funo do era uma vez, mero substrato fictcio da narrao, o qual, contudo, preserva a sua funo de posio existencial, de grande vigor individualizador, e continua fingindo a distncia pica de quem narra coisas h muito acontecidas. A modificao do discurso indica que na fico (e isso se refere tambm poesia e dramaturgia) no h um narrador real em face de um campo de sres autnomos. ste campo existe smente graas ao ato narrativo (ou ao enunciar lrico, dramtico). O narrador fictcio no sujeito real de oraes, como o historiador ou o qumico; desdobra-se imaginriamente e torna-se manipulador da funo narrativa (dramtica, lrica), como o pintor manipula o pincel e a cr; no narra de pessoas, eventos ou estados; narra pessoas (personagens), eventos e estados. E isso verdade mesmo no caso de um romance histrico 8. As pessoas (histricas), ao se tornarem ponto zero de orientao, ou ao serem focalizadas pelo narrador onisciente, passam a ser personagens; deixam de ser objetos e transformam-se em sujeitos, sres que sabem dizer eu.

8.

Kaethe

Hamburger,

na

obra

citada,

estuda

agudamente os vrios problemas envolvidos. A rainha se lembrava neste momento das palavras que dissera ao rei tal orao no pode ocorrer no, escrito de um historiador, j que ste, nos seus juzos, smente pode referirr-se a objetos, apreendendo-os exclusivamente de fora, mesmo nos casos da mais sutil compreenso psicolgica, baseada em documentos e

inferncias. Smente o criador de Napoleo, isto , o romancista que o narra, em vez de narrar dle, lhe conhece a intimidade de dentro.

A

personagem

nos

vrios

gneros

literrios

e

no

espetculo teatral e cinematogrfico.

Em trmos lgicos e ontolgicos, a fico define-se nitidamente como tal, independentemente das personagens. Todavia, o critrio revelador mais bvio o epistemolgico, atravs da personagem, merc da qual se patenteia s vzes mesmo por meio de um discurso especificamente fictcio a estrutura peculiar da literatura imaginria. Razes mais intimamente poetolgicas mostram que a personagem realmente constitui a fico. A descrio de uma paisagem, de um animal ou de objetos quaisquer pode resultar, talvez, em excelente prosa de arte. Mas esta excelncia resulta em fico smente quando a paisagem ou o animal (como no poema A pantera, de Rilke) se animam e se humanizam atravs da imaginao pessoal. No caso da poesia lrica, atravs da fuso do Eu, do foco lrico, com o objeto. No fundo, isso que Lessing pretende dizer no seu Laocoonte ao criticar um poema descritivo por lhe faltar o que chama segundo a terminologia do sculo XVIII a iluso (Taeuschung), ou seja, a impresso da presena real do objeto. Tal iluso smente possvel pela colocao do leitor dentro do mundo imaginrio, merc do foco personal que deve animar o poema e que lhe d o carter fictcio. No poema isto conseguido, antes de tudo, atravs da fra expressiva da linguagem, que transforma a mera descrio em vivncia duma personagem que erradamente se costuma confundir com o autor emprico. Mas, enquanto a poesia, na sua forma mais pura, se atm vivncia de um estado, o gnero narrativo (e dramtico) transforma o estado em processo, em distenso temporal. Smente assim se define a personagem com nitidez, na durao de estados sucessivos. A

narrao

P4re1 mesmo a no-fictcia , para no se tornar em

mera descrio ou em relato, exige, portanto, que no haja ausncias demasiado prolongadas do elemento humano (ste, naturalmente, pode ser substitudo por outros sres, quando antropomorfizados) porque o homem o nico ente que no se situa smente no tempo, mas que essencialmente tempo 9. Se Lessing recomenda, no ensaio acima citado, a dissoluo da descrio em narrao porque a palavra, recurso sucessivo, no pode apreender adequad amente a simultaneidade de um objeto, ambiente ou paisagem (que a nossa viso apreende de um s relance), o que no fundo exige a presena de personagens que atuam. Homero, em vez de descrever o traje de Agamenon, narra como o rei se veste, e em vez de descrever o seu cetro, narra-lhe a histria desde o momento em que Vulcano o fz. Assim, o leitor participa dos eventos em vez de se perder numa descrio fria que nunca lhe dar a imagem da coisa. Antes de abordar, mesmo marginalmente, a fico dramtica, convm ressaltar que verbos como dizer, responder etc., desempenham na fico em geral funo semelhante aos que revelam processos psquicos (recear, pensar, duvidar), particularmente quando

9. Pode-se escrever e j se escreveram contos sbre baratas. Mas h de se tratar, ao menos, de uma baratinha. O diminutivo afetuoso desde logo humaniza o bicho. O mais terrvel na Metamorfose de Kafka a lenta desumanizao do inseto. As fbulas e os desenhos cinematogrficos baseiam-se nesta humanizao. O homem, afinal, s pelo homem se interessa e s com ele pode identificar-se realmente.

acompanham uma fala em voz direta, referida a momentos temporais determinados (determinados no tempo irreal da fico). Tais verbos indicam em geral a presena do foco narrativo no campo fictcio. Ademais, personagens, ao falarem, revelam-se de um modo mais completo do que as pessoas reais, mesmo quando mentem ou

procuram disfarar a sua opinio verdadeira. O prprio disfarce costuma patentear o cunho de disfarce. Esta franqueza quase total da fala e essa transparncia do prprio disfarce (pense-se no aparte teatral) so ndices evidentes da oniscincia ficcional. A funo narrativa, que no texto dramtico se mantm humildemente nas rubricas ( nelas que se localiza o foco), extingue-se totalmente no palco, o qual, com os atres e cenrios, intervm para assumi-la. Desaparece o sujeito fictcio dos enunciados pelo menos na aparncia , visto as prprias personagens se manifestarem diretamente atravs do dilogo, de modo que mesmo o mais ocasional disse le, respondeu ela do narrador se torna suprfluo. Agora, porm, estamos no domnio de uma outra arte. No so mais as palavras que constituem as personagens e seu ambiente. So as personagens (e o mundo fictcio da cena) que absorveram as palavras do texto e passa a constitu-las, tornando-se a fonte delas exatamente como ocorre na realidade. Contudo, o mundo mediado no palco pelos atres e cenrios de objectualidade puramente intencionais. Estas no tm referncia exata a qualquer realidade, determinada e adquirem tamanha densidade que encobrem por inteiro a realidade histrica a que, possivelmente, dizem respeito. A fico ou mimesis reveste-se de tal fra que se substi tu ou superpe realidade. talvez devido velha teoria da iluso da realidade supostamente criada pela cena, devido, portanto, ao altssimo vigor da fico cnica, que no se atribui ao teatro o qualificativo de fico. Contudo, o dilogo tem na dramaturgia a mesma funo do amanh era Natal.Compe-se, para o pblico, de quase-juzos, embora os atres se comportem como se se tratasse de juzos, j que as personagens levam os enunciados a srio. Embora seja apresentado ao pblico em forma semelhante s condies reais, o dilogo concebido de dentro das personagens, tornando-as transparentes em alto grau. verdade que, no teatro moderno, esta conveno da franqueza dialgica ficou abalada ao ponto de se tornar temtica (Tchecov, Pirandello, Th.Wilder, Ionesco, Beckett etc.). Temos aqui uma

das razes para a mobilizao de recursos picos, narrativos. Quando Brecht pede ao ator que no se identifique com a personagem, para poder critic-la, pe um foco narrativo fora dela, representado pelo ator que assume o papel de narrador fictcio. Isso indica claramente que a identificao do ator com a personagem significa que o foco se encontra dentro dela: a aparente ausncia do narrador fictcio, no palco clssico, explica-se pelo simples fato de que ele se solidarizou ou identificou totalmente com uma ou vrias personagens, de tal modo que j no pode ser discernido como foco distinto. por isso tambm que, o palco dssico depende inteiramente do ator-personagem, porque no pode haver foco fora dle. O prprio cenrio permanece papelo pintado at surgir o foco fictcio da personagem que, de imediato, projeta em trno de si o espao e tempo irreais e transforma, como por um golpe de magia, o papelo em paisagem, templo ou salo. No que se refere ao cinema, deve ser concebido como de carter pico-dramtico; ao que parece, mais pico do que dramtico. verdade que o mundo das objectualidades puramente intencionais se apresenta neste caso, semelhana do teatro, atravs de imagens, como espetculo percebido (espetculo visto e ouvido; na verdade quase-visto e quase-ouvido; pois o mundo imaginrio no exatamente objeto de percepo). Mas a cmara, atravs de seu movimento, exerce no cinema uma funo nitidamente narrativa, inexistente no teatro. Focaliza, comenta, recorta, aproxima, expe, descreve. O close up, o travelling, o panoranomizar so recursos tipicamente representam um estado ou narrativos. estria, a personagem realmente Em tdas as artes literrias e nas que exprimem, narram ou constitui a fico. Contudo, no teatro a personagem no s constitui a fico mas funda, nticamente, o prprio espetculo (atravs do ator). que o teatro integralmente fico, ao passo que o cinema e a literatura podem servir, atravs das imagens e palavras, a outros fins (documento, cincia, jornal). Isso possvel porque no cinema e na

literatura

so

as

imagens

e

as

palavras

que

fundam

as

objectualidades puramente intencionais, no as personagens. precisamente por isso que no prprio cinema e literatura ficcionais as personagens, embora realmente constituam a fico, e a evidenciem de forma marcante, podem ser dispensadas por certo tempo, o que no possvel no teatro. O palco no pode permanecer vazio. stes momentos realam o cunho narrativo do cinema. A imagem (como a palavra) tem a possibili dad de descrever e animar ambientes, paisagens, objetos. Estes sem personagem podem mesmo representar fatres de grande importncia. A fita e o romance podem fazer viver uma cidade como tal. Ademais, no teatro uma s personagem presente no palco no pode manter-se calada; tem de proferir um monlogo. Uma personagem muda no pode permanecer szinha no palco. J no cinema ou romance, a personagem pode permanecer calada durante bastante tempo, porque as palavras ou imagens do narrador ou da cmara narradora se encarregam de comunicar-nos os seus pensamentos, ou, simplesmente, os seus afazeres, o seu passeio solitrio etc. o homem centro do universo. O uso de recursos picos o cro, o palco simultneo etc., so recursos picos indica que o homem no se concebe em posio to exclusiva.

A pessoa e a personagem.

A diferena profunda entre a realidade e as objectualidades puramente intencionais imaginrias ou no, de um escrito, quadro, foto, apresentao teatral etc. reside no fato de que as ltimas nunca alcanam a determinao completa da primeira. As pessoas reais, assim como todos os objetos reais, so totalmente determinados

apresentando-se colhidos e

como

unidades por

concretas, de

integradas

de

uma

infinidade de predicados, dos quais smente alguns podem ser retirados meio operaes cognoscitivas especiais. Tais operaes so sempre finitas, no podendo por isso nunca esgotar a multiplicidade infinita das determinaes do ser real, individual, que inefvel. Isso se refere naturalmente em particular a sres humanos, dos sres sres psicofsicos, humanos sres espirituais, que se desenvolvem e atuam. A nossa viso da realidade em geral, e em particular individuais, extremamente fragmentria e limitada. De certa forma, as oraes de um texto projetam um mundo bem mais fragmentrio do que a nossa viso j fragmentria da realidade. Uma expresso nominal como mesa projeta o objeto na sua unidade concreta, mas isso apenas formaliter, como esquema que contm apenas potencialmente uma infinidade de determinaes. Atravs das funes significativas da orao posso atribuir (ou retirar) a essa unidade uma ou outra determinao (a mesa azul, alta, redonda, bem lustrada); mas por mais que a descreva ou lance mo de aspectos especialmente preparados, capazes de suscitar o preenchimento imaginrio do leitor (a mesa era um daqueles mveis tradicionais em trno do qual, antes do surgir da televiso, a famflia costumava reunirse para o jantar), as objectualidades puramente intencionais constitudas por oraes sempre apresentaro vastas regies indeterminadas, porque o nmero das oraes finito. Assim psmiagemde um romance (e ainda mais de um poema ou de uma pea teatral) eum configurao esquemtica, .tanto no sentido fsico como psquico, embora formaliter seja projetada como um indivduo real, totalmente determinado. ste fato das zonas indeterminadas do texto possibilita at certo ponto a vida da obra literria, a variedade das concretizaes, assim como a funo do diretor de teatro, chamado a preencher as mltiplas indeterminaes de um texto dramtico. Isso, porm, se deve variedade dos leitores, atravs dos tempos, no variabilidade da

obra, cujas personagens no rnutabilidade e a infinitude das de de seres humanos reais. As concretizaes podem variar, mas a obra como tal no muda. Comparada ao texto, a personagem cnica tem a grande vantagem de mostrar os aspectos esquematizados pelas oraes em plena concreo e, nas fases projetadas pelo discurso literrio descontnuo, em plena continuidade. Isso comunica representao a sua fra de presena existencial. A existncia se d smente percepo (o fato de que o mundo imaginrio tambm neste caso no prpriamente percebido quase negligencivel). Isso naturalmente no quer dizer que a representao no tenha zonas mdeterminadas caractersticas de tdas as objectualidades puramente intencionais. Os atres, stes sim, so reais e totalmente determinados, mas no os sres imaginrios de que apresentam apenas alguns aspectos visuais e auditivos e, atravs dles, aspectos psquicos e espirituais, O fato que a pea e sua representao mostram em geral muito menos aspectos das personagens do que os romances, mas stes poucos aspectos aparecem de modo sensvel e contnuo, dando s personagens teatrais um poder extraordinrio. ste poder no diminudo pelo fato de no teatro clssico (por exemplo, Racine) as personagens terem o carter quase de silhuetas, porque se confrontam com poucas personagens, aparecem em poucas situaes e se esgotam quase totalmente nos aspectos proporcionados pela ao especfica da pea, de modo que seria difcil imagin-las fora do contexto desta ao peculiar. J nas peas de cunho mais aberto pico pense-se em diversas obras de Shakespeare as figuras adquirem maior plasticidade, podendo ser imaginadas fora da pea. Tais diferenas, porm, no implicam um juzo de valor. Trata-se de outros estilos. O curioso que o leitor ou espectador no nota as zonas indeterminadas (que tambm no filme so mltiplas). Antes de tudo porque se atm ao que positivamente dado e que, precisamente por isso, encobre as zonas indeterminadas; depois, porque tende a

atualizar certos esquemas preparados; finalmente, porque costuma ultrapassar o que dado no texto, embora geralmente guiado por le. De qualquer modo, o que resulta que precisamente a limitao da obra ficcional a sua maior conquista. Precisamente porque o nmero das oraes necessriamente passam quase limitado (enquanto as as zonas indeterminadas despercebidas), personagens

adquirem um cunho definido e

definitivo que a observao das

pessoas reais, e mesmo o convvio com elas, dificilmente nos pode proporcionar a tal ponto. Precisamente porque se trata de oraes e no de realidades, o autor pode realar aspectos essenciais pela seleo dos aspectos que apresenta, dando s personagens um carter mais ntido do que a observao da realidade costuma a sugerir levando-as, ademais, atravs de situaes mais decisivas e significativas do que costuma ocorrer na vida. Precisamente pela limitao das oraes, as personagens tm maior coerncia do que as pessoas reais (e mesmo quando incoerentes mostram pelo menos nisso coerncia); maior exemplaridade (mesmo quando banais; pensese na banalidade exemplar de certas personagens de Tchecov ou Ionesco); maior significao; e, paradoxalmente, tambm maior riqueza no por serem mais ricas do que as pessoas reais, e sim em virtude da concentrao, seleo, densidade e estilizao do contexto imaginrio, que rene os fios dispersos e esfarrapados da realidade num padro firme e consistente. Antes de tudo, porm, a fico nico lugar em trmos epistemolgicos em que os sres humanos se tornam transparentes nossa viso, por se tratar de seres puramente intencionais a sres autnomos; de sres totalmente projetados por oraes. E isso a tal ponto que os grandes autores, levando a fico fictciamente s suas ltimas conseqncias, refazem o mistrio do ser humano, atravs da apresentao de aspectos que produzem certa opalizao e iridescncia, e reconstituem, em certa medida, a opacidade da pessoa real. precisamente o modo pelo qai p autor dirige o nosso olhar,

atravs de aspectos selecionados de certas situaes de aparncia fsica e do comportamento sintomticos de certos estados ou processos psquicos ou diretamente atravs de aspectos da intimidade das personagens tudo isso de tal modo que tambm as zonas indeterminadas comeam a funcionar precisamente atravs de todos sses e outros recursos que o autor torna a personagem at certo ponto de nvo inesgotvel e insondvel.

A valorizao esttica

A exposio do problema da fico foi numerosas vzes ultrapassada por descries que de fato j introduziam certas valorizaes estticas. Quando, por exemplo, foi afirmado que os grandes autores tendem a refazer o mistrio humano, o campo da lgica ficcional, assim como os aspectos puramente epistemolgicos e ontolgicos, foram abandonados em favor de consideraes estticas; a mesma falta de rigor se verificou na abordagem da vibrao verbal da poesia do problema da verdade ficcional (que no fundo de ordem esttica) e da questo dos aspectos esquemticos especialmente preparados para suscitar preenchimentos determinados do leitor. A preparao de tais aspectos depende em alto grau da escolha da palavra justa, insubstituvel da sonoridade especfica dos fonemas, das conotaes das palavras, da carga de suas zonas semnticas marginais, do jgo metafrico, do estilo ou seja, da organizao dos contextos de unidades significativas e de muitos outros elementos de carter esttico. stes momentos inerentes s camsdsas exteriores da obra literria esto, naturalmente, relacionados com a necessidade de concretizar e enriquee a camada das objectualidades puramente intencionais, e de dar a ste piano imaginrio certa transparncia ou iridescncia em direo a significados mais profundos, em que se revela o sentido, a idia da obra. No pocesso da criao stes planos mais profundos certamente

condicionaram, de modo consciente ou inconsciente, o rigor seletivo aplicado s camadas mais externas (embora num poema todo o processo criavo possa iniciar-se a partir de uma sequncia rtmica de palavras). A dificuldade de abordar o fenmeno da fico sem recorrer a valorizaes estticas indica que ste problema e o do nvel esttico no mantm relaes de indiferena. Sem dvida, h fico de baixo nvel esttico, de grande pobreza imaginativa (clichs), com personagens sem vida e situaes sem significado profundo, tudo isso relacionado com a inexpressividade completa dos contextos verbais (que por vzes, contudo, so afetados e pretensiosos, sem economia e sem funo no todo, sem que sua exagerada riqueza corresponda qualquer coisa na camada imaginria e nos planos mais profundos). Todavia a criao de um vigoroso mundo imaginrio, de personagens vivas situaes verdadeiras, j em si de alto valor esttico, exige em geral a mobilizao de todos os recursos da lngua, assim como de muito outros elementos da composio literria, tanto no plano horizontal da organiza das partes sucessivas, como no vertical das camadas; enfim, de todos os rneios tendem a constituir a obra-de-arte literria. De outro lado, a mobilizao plena dsses recursos dar obra, mesmo a despeito da inteno possivelmente cientfica ou filosfica, um carter seno imaginrio, ao menos imaginativo, que a aproximar at certo ponto da fico. Exemplos caractersticos seriam os dilogos de Plato (que, em parte, podem ser lidos como comdias), certos escritos de Kierkegaard, Pascal, Nietzsche, a obra de Schopenhauer (cuja vontade metafsica se torna quase personagem de uma epopia) etc. Deve-se admitir, na delimitao do que seja literatura no sentido restrito, amplas zonas de transio em que se situariam obras de grande poder e preciso verbais, na medida em que se ligam agudeza da observao, perspiccia psicolgica e riqueza de idias. Na descrio da estrutura da obra literria em sentido lato (pp. 2-3) verificou-se que, em essncia, se trata da associao de camadas mais

sensveis (das quais a nica realmente mais profundos projetados por

foi posta de lado) e de planos aquelas. Esta estrutura

fundamentalmente a de tdas as objetivaes espirituais (todos os produtos humanos) e, em especial, de tdas as obras de arte. Em tdas as objetivaes espirituais associam-se a uma camada material, sensvel, real, uma ou vrias camadas irreais, no apreendidas diretamente pelos sentidos, mas mediadas pelos exteriores. Entretanto, graas ao material em jgo no caso de uma sinfonia, de um quadro ou de uma apresentao teatral, evidencia-se a sua inteno esttica, mesmo que no se tenha cristalizado em relevante obra de arte. No. caso da literatura, bem ao contrrio, o material em jgo a lngua tanto pode servir para fins tericos ou prticos como para fins estticos. a isso que Hegel se refere quando chama a literatura (as belas letras) aquela arte peculiar em que a arte... dissolver-se..., passando a ser ponto de transio para a prosa do pensamento cientfico. Principalmente neste campo, portanto, surge o problema de diferenciar entre prosa comum e arte. A diferena entre um documento literrio qualquer e a obra-de-arte literria reside, antes de tudo, no valor diverso da camada quasesensvel das palavras (sensvel quando o texto lido a viva voz). ste plano quase-sensvel das palavras e de seus contextos maiores tem na literatura em sentido lato funo puramente instrumental: a de projetar, como vimos, objectualidades puramente intencionais que, por sua vez, sem serem notadas como tais, se referem aos objetos visados. O que importa so os significados que se identificam com os objetos visados, no os significantes. stes ltimos ai palavras se omitem por completo (da mesma Forma que as objectualidades puramente intencionais); podem ser substitudos por, quaisquer outros que constituam os mesmos significados. A relao entre a camada quasesensvel e a camada espiritual , portanto, inteiramente convencional. A inteno do leitor passa diretamente ao sentido e aos objetos visados. Na obra-de-arte literria, esta relao deixa de ser convencional,

apresenta necessidade e grande firmeza e consistncia. Em casos extremos (particularmente na poesia), a mais ligeira modificao da camada exterior (e na poesia concretista, mesmo da distribuio dos sinais tipogrficos) destri o sentido de tda a obra, devido ao valor expressivo das palavras, agora usadas como se fssem relaes de cres ou sons na pintura ou msica. A camada verbal adquire, pois, valor prprio e passa a fazer parte integral da obra. Isso vale particularmente para contextos maiores, que passam a constituir o ritmo, o estilo, o jgo das repeties e associaes e que se tornam momentos inseparveis do todo, de modo que a modificao da estrutura das oraes e da maneira como se organizam os significados afeta profundamente o sentido total da obra (imagine-se uma edio de Proust com as oraes simplificadas!) ao passo que num texto cientfico ou filosfico as mesmas teses podem ser mediadas por contexto diversos de oraes (isso no se refere a filsofos como Heidegger; mas neste caso a prosa comum do pensamento cientfico abandonada em favor de especulaes teosficas que requerem o uso da arquipalavra admica). isso que Lessing tem em mente quando chama o poema um discurso totalmente sensvel ou quando Hegel, num sentido mais geral, define a beleza como o aparecer (luzir) sensvel da idia. O significado se disso ligam que na os planos de arte de fundo (os ou mais no) espirituais) obra (literria

de um modo indissolvel ao seu modo de aparecer,

concreto,

individual, singular. a isso que Croce chama de intuio. O sentimento do valor esttico, o prazer especfico em que se anuncia a presena do valor esttico, refere-se precisamente totalidade da obra literria ou, mais de perto, ao modo de aparecer sensvel (quasesensvel) dos objetos mediados. As camadas exteriores impem a sua presena em virtude da organizao e vibrao peculiares de seus elementos. O raio de inteno, ao atravessar estas camadas exteriores, conota-as, assimila-as no mesmo ato de apreenso das camadas mais profundas. Isso, em parte, se verifica tambm em virtude de uma

atitude diversa em face de escritos de valor esttico. Na vida cotidiana ou na leitura de textos no-estticos, a nossa inteno geralmente atravessa a superfcie sensvel devido imposio de valores prticos, vitais, tericos etc. O raio da inteno, sem deterse nas exterioridades sensveis, dirige-se diretamente ao que interessa, por exemplo, s atitudes e palavras, amabilidade, clera, disposio geral do interlocutor (a no ser que se trate de pessoa de grande encanto fsico, dificilmente nos lembramos de seus traos e jgo fisionmico) ou topografia de um bosque (quando o observador um engenheiro de estradas de ferro) ou ao valor til das rvores (quando se trata de um negociante de madeiras) ou teoria dos genes (exposta num tratado de gentica). A experincia esttica, bem ao contrrio, desinteressada, isto , o objeto j no meio para outros fins, nada nos interessa seno o prprio objeto como tal que, em certa medida, se emancipa do tecido de relaes vitais que costumam solicitar a nossa vontade. o fenmeno da moldura que, nas vrias artes, de modo diverso, isola o objeto esttico, como rea ldica, de situaes reais (s quais, contudo, pode referir-se indiretamente). Esta atitude desinteressada j condicionou a elaborao do objeto e a configurao altamente seletiva das camadas exteriores. A experincia do apreciador adequado, atendendo s virtualidades especficas do objeto, se caracterizar por uma espcie de repouso na totalidade dle. le no se ater apenas idia expressa, nem smente configurao sensvel em que ela aparece, mas ao aparecer como tal, ao modo como aparece; ao todo, portanto. No primeiro caso, um atesta seria incapaz de apreciar Dante ou um antimarxista, Brecht. No segundo caso, tratar-se- provvelmente de um crtico que s examina fenmenos tcnicos, sem referi-los ao todo. Nem aqules, nem ste apreendero o objeto com aquela peculiar emoo valorizadora do prazer esttico, que se liga a atos de apreenso referidos ao objeto total. ste tipo de apreciao, facilitado pelo isolamento em face de situaes vitais, permite uma experincia intensa, quase arcaica, das

objectualidades objectualidades

mediadas

(particularmente que se

quando

se

trata

de

imaginrias),

apresentam

com

grande

concreo, graas aos aspectos especialmente preparados e forte coapreenso dos momentos mais sensveis. A apreenso do mundo fictcio acompanhada de intensas tonalidades emocionais, tudo se carrega de mood, atmosfera, disposies anmicas. Em obras de inteno filosfica ou cientfica, ste cunho esttico pode representar fator de perturbao, j que desvia o raio de inteno da passagem reta aos objetos visados. Contudo, mesmo na obra fictcia, ste retrocesso a tipor mais puros e intensos de percepo e emocionalidade no realmente, uma volta a fases mais primitivas no provoca tiros contra o palco ou a tela. As prprias lgrimas tm, por assim dizer, menos teor salino. Ao forte envolvimento emocional liga-se, no apreciador adequado, a conscincia do Contexto ldico, da moldura. Mantm-se intata a distncia contemplativa. O prazer esttico no modo de aparecer do mundo mediado integra e suspende em si a participao nas dores e mgoas do heri. ste prazer possvel smente porque o apreciador sabe encontrar-se em face de quase-juzos, em face de objectualidades puramente intencionais, sem referncia direta a objetos tambm intencionais.

A obra-de-arte literria ficcional

Os momentos descritos so de importncia na valorizao esttica da obra literria fictcia. Na fico. em geral, tambm na de cunho trivial, o raio de inteno se dirige camada imaginria, sem passar diretamente s realidades por assim empricas dizer, possivelmente plano de representadas. Detm-se, neste

personagens, situaes ou estados (lricos), fazendo viver o leitor, imaginriamente, os destinos e aventuras dos heris. Boa parte dos leitores, porm, pe o mundo imaginrio quase imediatamente referncia coma realidade exterior obra, j que as objectualidades

puramente intencionais, embora tendam a prender a inteno, so tomadas na sua funo mimtica, como reflexo do mundo emprico. Isto , em muitos casos, perfeitamente legtimo; mas esta apreciao, quando muito unilateral, tende a deformar e empobrecer a apreenso da totalidade literria, assim como o pleno prazer esttico no modo de aparecer do que aparece. Na medida em que se acentua o valor esttico da obra ficcional o mundo imaginrio se enriquece e se aprofunda, prendendo o raio de inteno dentro da obra e tornando-se, por sua vez, transparente a planos mais profundos, imanentes prpria obra. S agora a obra manifesta tdas as virtualidades de revelao revelao que no se deve confundir com qualquer ato cognoscitivo explcito, j que em plena imediatez concreta que das o mediado se revela, e na na individualidade quase-sensvel camadas exteriores

singularidade das personagens e situaes. Neste sentido, a cogitatio pode de certa forma ser contida na apreenso esttica, mas ela ultrapassada por uma espcie de visio, ou viso intuitiva, que ao mesmo tempo superior e inferior ao conhecimento cientfico preciso. Tampouco deve-se comparar o prazer desta revelao ao prazer do conhecimento. esttico integra e suspende a distncia da contemplao, o intenso envolvimento emocional e a revelao profunda; pode manifestar-se mesmo nos casos em que o contedo desta revelao se ope a tdas as nossas concepes (bem tarde T. S. Eliot reconheceu isso com referncia a Goethe e Shakespeare, visceralmente contrrios sua concepo do mundo). Seria tautolgico dizer que essa riqueza e profundidade da camada imaginria e dos planos por ela revelados pressupem uma imaginao que o autor de romances triviais no possui, assim como capacidades especiais de observao, intuio psicolgica etc. Tudo isso, porm, adquire relevncia esttica smente na medida em que o autor consegue projetar ste mundo imaginrio base de oraes, isto , merc da preciso da palavra, do ritmo e do estilo, dos aspectos esquemticos especialmente preparados, sobretudo no que se refere

ao comportamento e vida ntima das personagens; aspectos stes cujo preparo, por sua vez, se relaciona mntimamente composio estilstica e camada sonora dos fonemas. Na medida em que a obra ficcional tambm uma de obra-de-arte, estas camadas exteriores so co-percebidas com muito mais fra do que ocorre em geral. Se, na obra cientfica, a inteno atravessa estas e a camada objectual, sem not-las, para incidir sbre os objetos exteriores obra (que, como tal, quase no notada, j que ela apenas meio) e na obra de fico em geral h certo repouso na camada objectual, na obra-de-arte ficcional h, alm disso, ainda certo repouso nas camadas exteriores; h como que um fraccionamento do raio (sem que isso afete a unidade do ato de apreenso), em virtude do fascnio verbal e estilstico. Falando metafisicamente, o raio adquire certo effet e, graas a isso, maior capacidade de penetrao nas camadas mais profundas da obra. Na cena do sonho do heri de A Morte em Veneza (Thomas Mann), o acmulo de certos ditongos faz-nos ouvir as flautas e o ulular do squito dionisaco; as oraes assindticas, as aliteraes, o ritmo acelerado, os aspectos tteis e olfativos apresentados que sugerem um mundo pnico e primitivo reforam a impresso do xtase e da presena embriagadora do Deus estranho, assim como a sugesto de todo um plano de fundo arcaico, de evocaes mticas, j antes suscitadas por trechos de prosa que tomam, quase imperceptivelmente, o compasso dactlico do hexmetro. O enrdo a camada imaginria trata do amor de um escritor envelhecido por um formoso rapaz. As camadas exteriores retiram a ste tema algo do seu aspecto melindroso por cerc-lo de atmosfera grega, colocando-o, de certo modo, numa constelao mais universal e numa grande tradio. o estilo, atravs das sugestes arcaicas por ele mediadas, que nos leva a intuir os planos mais profundos, o significado das objectualidades puramente intencionais: o perigo de retrocesso arcaico que ameaa o homem, particularmente o artista fascinado pela beleza, pelo puro aparecer, independentemente do que aparece; o perigo,

portanto, da existncia esttica. H nisso uma parfrase levemente irnica da expulso dos artistas do Estado platnico ironia que se anuncia na grecizao do estilo, no uso de palavras homricas (tambm Homero deveria ser expulso do Estado platnico). Seria fcil prosseguir na interpretao da novela, atravs da anlise da organizao polifnica das camadas; todavia, em determinado ponto a interpretao deve deter-se. A grande obra de arte inesgotvel em trmos conceituais; stes s podem aproximarse dos significados mais profundos. O essencial revela-se, em tda a sua fra imediata, smente prpria experincia esttica.

O Papel de Personagem Se reunirmos os vrios momentos expostos, verificaremos que a grande obra-de-arte literria (ficcional) o lugar em que nos defrontamos com sres humanos de contornos definidos e definitivos, em ampla medida transparentes, vivendo situaes exemplares de um modo exemplar (exemplar tambem no sentido negativo). Como sres humanos encontram-se integrados num denso tecido de valores de ordem cognoscitiva, religiosa, moral, poltico-social e tomam determinadas atitudes em face dsses valores. Muitas vzes debatemse com a necessidade de decidir-se em face da coliso de valores, passam por terrveis conflitos e enfrentam situaes-limite em que se revelam aspectos sublimes, essenciais da vida humana: aspectos trgicos, grotescos ou luminosos. Estes aspectos demonacos,

profundos, muitas vzes de ordem metafsica, incomunicveis em tda a sua plenitude atravs do conceito, revelam-se, como num momento de iluminao, na plena concreo do ser humano individual. So momentos supremos, sua maneira perfeitos, que a vida emprica, no seu fluir cinzento e cotidiano, geralmente no apresenta de um modo to ntido e coerente, nem de forma to transparente e seletiva que possamos perceber as motivaes mais intmas, os conflitos e crises

mais recnditos na sua concatenao e no seu desenvolvimento. O prprio cotidiano, quando se torna tema da fico, adquire outra relevncia e condensa-se na situao-limite do tdio, da angstia e da nusea. Todavia, o que mais importa que no s contemplamos stes destinos e conflitos distncia. Graas seleo dos aspectos esquemticos preparados e ao potencial das zonas indeterminadas, as personagens atingem a uma validade universal que em nada diminui a sua concreo individual; e merc dsse fato liga-se, na experincia esttica, contemplao, a intensa participao emocional. Assim, o leitor contempla e ao mesmo tempo vive as possibilidades humanas que a sua vida pessoal diflcilmente lhe permite viver e contemplar, pela crescente reduo de possibilidades. De resto, quem realmente vivesse sses momentos extremos, no poderia contempl-los por estar demasiado envolvido nles. E se os contemplasse distncia (no crculo dos conhecidos) ou atravs da conceituao abstrata de uma obra filosfica, no os viveria. precisamente a fico que possibilita viver e contemplar tais possibilidades, graas ao modo irreaal de suas amadas profundas, graas aos quase-juzos que fingem referir-se a realidades sem realmente se referirem a sres reais; e graas ao modo de aparecer concreto e quase-sensvel dste mundo imaginrio nas camadas exteriores. importante observar que no poder apreender estticamentea totalidade e plenitude de uma obra de arte ficcional, quem no fr capaz de sentir vivamente tdas as nuanas dos valores no-estticos religiosos, morais polticos-sociais, vitais, hedonsticos etc. que sempre esto em jgo onde se defrontam sres humanos. Todos stes valores em si no-estticos, assim como o valor at certo ponto cognoscitivo de uma profunda interpretao do mundo e da vida humana, que fundam o valor esttico, isso , que so pressupostos e tornam possvel o seu aparecimento, de modo algum o determinam. O fato de os valores morais representados numa tragdia

serem mais elevados do que os de uma comdia no influi no valor esttico desta ou daquela. O valor esttico aparece nas costas (expresso usada por Max Scheler e Nicolai Hartmann) dstes outros valores, mas o nvel qualitativo dste valor no condicionado pela elevao dos valores morais ou religiosos em choque, nem pela interpretao especfica do mundo e da vida. O valor esttico suspende o peos real dos outros valores (embora os faa aparecer em tda a sua seriedade e fra); integra-os no reino ldico da fico, transformaos em parte da organizao esttica lhes d certo papel no todo. A isso corresponde o fenmeno de que o prazer esttico integra no seu mbito o sofrimento e a risada, o dio e a simpatia, a repugnncia e a ternura, a aprovao e a desaprovao com que o apreciador reage ao contemplar e participar dos eventos. Tanto a nobre Antgone como o terrvel Macbeth sucumbem; as emes com que participamos de seus destinos so profundamente diversas. Mas o prazer suscitado pelo valor esttico, pelo modo como aparecem stes destinos diversos, tal prazer, como que consome estas emoes divergentes; nutrindo-se delas, ele as assimila; e embora no renegue a variedade das emoes que contribuem para fund-lo e que o tingem de tonalidades distintas, o prazer como tal, na sua qualidade de prazer esttico e na sua intensidade, tende a convergir em ambos os casos. Quanto ao valor cognoscitivo que como tal no pode ser plenamente visado por quase-juzos substitudo pela revelao e vivncia de determinadas interpretaes profundas da vida humana, pela contemplao e participao de certas possibilidades humanas. Todavia, a profundeza e coerncia dessas interpretaes no tm valor por si, como teriam numa obra filosfica, mas smente na medida em que so integradas no todo esttico, tomando se viso e vivncia, enriquecendo o prazer esttico. O extraordinrio que podemos, de certo modo, participar destas interpretaes por mais que na vida real nos sejam contrrias, por mais que as combatamos na vida real. evidente que h, nesta apreciao esttica, limites. Ao que esta descrio visa expor o fenmeno esttico como tal na sua mxima

pureza. Contudo, no existe o Homo aestheticus. Mesmo dentro da moldura valorizar da rea ldica no ocorre a suspenso total das responsabilidades. Normalmente, o homem um ser incapaz de apenas estticamente o mundo humano mesmo quando imaginrio; a literatura no uma esfera segregada. Glorificar a arte, maneira de Schopenhauer, como quietivo ou entorpecente da nossa vontade, resulta em desvirtuamento da funo que a arte exerce na sociedade. Isso, porm, no exclui, antes pressupe que a grande obra de arte literria nos restitua uma liberdade o imenso reino do possvel que a vida real no nos concede. A fico um lugar ontolgico privilegiado: lugar em que o homem pode viver e contemplar, atravs de personagens variadas a plenitude da sua condio, e em que se torna transparente a si mesmo; lugar em que, transformando-se imaginriamente no outro, vivendo outros papis e destacando-se de si mesmo, verifica, realiza e vive a sua condio fundamental de ser autoconsciente e livre, capaz de desdobrar-se, distanciar-se de si mesmo e de objetivar a sua prpria situao. A plenitude de enriquecimento e libertao, que desta forma a grande fico nos pode proporcionar, torna-se acessvel smente a quem sabe ater-se, antes de tudo, apreciao esttica que, enquanto suspende o pso real das outras valorizaes, lhes assimila ao mesmo tempo a essncia e seriedade em todos os matizes. Smente quando o apreciador se entrega com certa inocncia a tdas as virtualidades da grande obra de arte, esta por sua vez lhe entregar tda a riqueza encerrada no seu contexto. Neste sentido pode-se dizer com Ernst Cassirer que afastandose da realidade e elevando-se a um mundo simblico o homem, ao voltar realidade, lhe apreende melhor a riqueza e profundidade. Atravs da arte, disse Goethe, distanciamo-nos e ao mesmo tempo aproximamo-nos da realidade.

A PERSONAGEM DO ROMANCE(pag. 51)

Geralmente, da leitura de um romance fica a impresso duma srie de fatos, organizados em enrdo, e de personagens que vivem stes fatos. uma impresso prticamente indissolvel: quando pensamos no enrdo, pensamos simultneamente nas personagens; quando pensamos nestas, pensamos simultneamente na vida que vivem, nos problemas em que se enredam, na linha do seu destino traada conforme uma certa durao temporal, referida a determinadas condies de ambiente. O enrdo existe atravs das personagens; as personagens vivem no enrdo. Enrdo e personagem exprimem, ligados, os intuitos do romance, a viso da vida que decorre dle, os significados e valores que o animam. Nunca expor idias a no ser em funo dos temperamentos e dos caracteres1. Tome-se a palavra idia como sinnimo dos mencionados valores e significados, e ter-se- uma expresso sinttica do que foi dito. Portanto, os trs elementos centrais dum desenvolvimento novelstico (o enrdo e a personagem, que representam a sua matria; as idias, que representam o seu significado, e que so no conjunto elaborados pela tcnica), stes trs elementos s existem intimamente ligados, inseparveis, nos romances bens realizados. No meio dles, avulta a personagem, que representa a possibilidade de adeso afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificaes, projeo, transferncia etc. A personagem vive o enrdo e as idias, e os torna vivos. Eis uma imagem feliz de Gide: Tento enrolar os fios variados do enrdo e a complexidade dos meus pensamentos em tmo destas pequenas bobinas vivas que so cada uma das minhas personagens (ob. cit., p. 26). No espanta, portanto, que a personagem parea o que h de mais vivo no romance; e que a leitura dste dependa bsicamente da

aceitao da verdade da personagem por parte do leitor. Tanto assim, que ns perdoamos os mais graves defeitos de enrdo e de idia aos grandes criadores de personagens. Isto nos leva ao rro, freqentemente repetido em crtica, de pensar que o essencial do romance a personagem, como se esta pudesse existir separada das outras ralidades que encarna, que ela vive, que lhe do vida. Feita esta ressalva, todavia, pode-se dizer que o elemento mais atuante, mais comunicativo da arte novelstica moderna, como se configurou nos sculos XVIII, XIX e como do XX; mas que s adquire pleno significado

1. Gide, Journal des Faux-Monnayeurs, 6.me dition, Gallmard, Pule 1927, p. 12.

no contexto, e que, portanto, no fim de contas a construo estrutural o maior responsvel pela fra e eficcia de um romance. A personagem um ser fictcio, expresso que soa como paradoxo. De fato, como pode uma fico ser? Como pode existir o que no existe? No entanto, a criao literria repousa sbre ste paradoxo, e o problema da verossimilhana no romance depende desta possibilidade de um ser fictcio, isto , algo que, sendo uma criao da fantasia, comunica a impresso da mais ldima verdade existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relao entre o ser vivo e o ser fictcio, manifestada atravs da personagem, que a concretizao dste. Verifiquemos, inicialmente, que h afinidades e diferenas essenciais entre o ser vivo e os entes de fico, e que as diferenas so to importantes quanto as afinidades para criar o sentimento de verdade, que a verossimilhana. Tentemos uma investigao sumria sbre as condies de existncia essencial da personagem, como um tipo de ser, mesmo fictcio, comeando por descrever do modo mais emprico possvel a nossa percepo do semelhante. Quando abordamos o conhecimento direto das pessoas, um dos dados

fundamentais do problema o contraste entre a continuidade relativa da percepo fsica (em que fundamos o nosso conhecimento) e a descontinuidade da percepo, digamos, espiritual, que parece freqentemente romper a unidade antes apreendida. No ser uno que a vista ou o contato nos apresenta, a convivncia espiritual mostra uma variedade de modos-de-ser, de qualidades por vzes contraditrias. A primeira idia que nos vem, quando refletimos sbre isso, a de que tal fato ocorre porque no somos capazes de abranger a personalidade do outro com a mesma unidade com que somos capazes de abranger a sua configurao externa. E conclumos, talvez, que esta diferena devida a uma diferena de natureza dos prprios objetos da nossa percepo. De fato, pensamos o primeiro tipo de conhecimento se dirige a um domnio finito, que coincide com a superfcie do corpo; enquanto o segundo tipo se dirige a um domnio infinito, pois a sua natureza oculta explorao de qualquer sentido e no pode, em conseqncia, ser aprendida numa integridade que essencialmente no possui. Da concluirmos que a noo a respeito de um ser, elaborada por outro ser, sempre incompleta, em relao percepo fsica inicial. E que o conhecimento dos sres fragmentrio. Esta impresso se acentua quando investigamos os, por assim dizer, fragmentos de ser, que nos so dados por uma conversa, um ato, uma seqncia de atos, uma afirmao, uma informao. Cada um dsses fragmentos, mesmo considerado um todo, uma unidade total, no uno, nem contnuo. le permite um conhecimento mais ou menos adequado ao estabelecimento da nossa conduta, com base num juzo sbre o outro ser; permite, mesmo, uma noo conjunta e coerente dste ser; mas essa noo oscilante, aproximativa, descontnua. Os sres so, por sua natureza, misteriosos, inesperados. Da a psicologia moderna ter ampliado e investigado sistemticamente as noes de subconsciente e inconsciente, que explicariam o que h de inslito nas pessoas que reputamos conhecer, e no entanto nos surpreendem, como se uma outra pessoa entrasse nelas, invadindo inesperadamente

a sua rea de essncia e de existncia. Esta constatao, mesmo feita de maneira no-sistemtica, fundamental em tda a literatura moderna, onde se desenvolveu antes das investigaes tcnicas dos psiclogos, e depois se beneficiou dos resultados destas. claro que a noo do mistrio dos sres, produzindo as condutas inesperadas, sempre estve presente na criao de forma mais ou menos consciente, bastando lembrar o mundo das personagens de Shakespeare. Mas s foi conscientemente desenvolvida por certos escritores do sculo XIX, como tentativa de sugerir e desvendar, seja o mistrio psicolgico dos sres, seja o mistrio metafsico da prpria existncia. A partir de investigaes metdicas em psicologia, como, por exemplo, as da psicanlise, essa investigao ganhou um aspecto mais sistemtico e voluntrio, sem com isso ultrapassar necessriamente as grandes intuies dos escritores que iniciaram e desenvolveram essa viso na literatura. Escritores como Baudelaire, Nerval, Dostoievski, Emily Bronte (aos quais se liga por alguns aspectos, isolado na segregao do seu meio cultural acanhado, o nosso Machado de Assis), que preparam o caminho para escritores como Proust, Joyce, Kafka, Pirandello, Gide. Nas obras de uns e outros, a dificuldade em descobrir a coerncia e a unidade dos sres vem refletida, de maneira por vzes trgica, sob a forma de incomunicabilidade nas relaes. ste talvez o nascedouro, em literatura, das noes de verdade plural (Pirandello), de absurdo (Kafka), de ato gratuito (Gide), de sucesso de modos de ser no tempo (Proust), de infinitude do mundo interior (Joyce). Concorrem para isso, de modo direto ou indireto, certas concepes filosficas e psicolgicas voltadas para o desvendamento das aparncias no homem e na sociedade, revolucionando o conceito de personalidade, tomada em si e com relao ao seu meio. o caso, entre outros, do marxismo e da psicanlise, que, em seguida obra dos escritores mencionados, atuam na concepo de homem, e portanto de personagem, influindo na prpria atividade criadora do romance, da poesia, do teatro. Essas consideraes visam a mostrar que o romance, ao abordar as

personagens de modo fragmentrio, nada mais faz do que retomar, no plano da tcnica de caracterizao, a maneira fragmentria, insatisfatria, incompleta, com que elaboramos o conhecimento dos nossos semelhantes. Todavia, h uma diferena bsica entre uma posio e outra: na vida, a viso fragmentria imanente nossa prpria experincia; uma condio que no estabelecemos, mas a que nos submetemos. No romance, ela criada, estabelecida e racionalmente dirigida pelo escritor, que delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que , na vida, o conhecimento do outro. Da a necessria simplificao, que pode consistir numa escolha de gestos, de frases, de objetos significativos, marcando a personagem para a identificao do leitor, sem com isso diminuir a impresso de complexidade e riqueza. Assim, em Fogo Morto, Jos Lins do Rgo nos mostrar o admirvel Mestre Jos Amaro por meio da cr amarela da pele, do olhar raivoso, da brutalidade impaciente, do martelo e da faca de trabalho, do remoer incessante do sentimento de inferioridade. No temos mais que sses elementos essenciais. No entanto, a sua combinao, a sua repetio, a sua evocao nos mais variados contextos nos permite formar uma idia completa, suficiente e convincente daquela forte criao fictcia. Na vida, estabelecemos uma interpretao de cada pessoa, a fim de podermos conferir certa unidade sua diversificao essencial, sucesso dos seus modos-de- -ser. No romance, o escritor estabelece algo mais coeso, menos varivel, que a lgica da personagem. A nossa interpretao dos sres vivos mais fluida, variando de acrdo com o tempo ou as condies da conduta. No romance, podemos variar relativamente a nossa interpretao da personagem; mas o escritor lhe deu, desde logo, uma linha de coerncia fixada para sempre, delimitando a curva da sua existncia e a natureza do seu modo-deser. Da ser ela relativamente mais lgica, mais fixa do que ns. E isto no quer dizer que seja menos profunda; mas que a sua profundidade um universo cujos dados esto todos mostra, foram prestabelecidos pelo seu criador, que os selecionou e limitou em busca

de lgica. A fra das grandes personagens vem do fato de que o sentimento que temos da sua complexidade mximo; mas isso, devido unidade, simplificao estrutural que o romancista lhe deu. Graas aos recursos de caracterizao (isto , os elementos que o romancista utiliza para descrever e definir a personagem, de maneira a que ela possa dar a impresso de vida, configurando-se ante o leitor), graas a tais recursos, o romancista capaz de dar a impresso de um ser ilimitado, contraditrio, infinito na sua riqueza; mas ns apreendemos, sobrevoamos essa riqueza, temos a personagem como um todo coeso ante a nossa imaginao. Portanto, a compreenso que nos vem do romance, sendo estabelecida de uma vez por tdas, muito mais precisa do que a que nos vem da existncia. Da podermos dizer que a personagem mais lgica, embora no mais simples, do que o ser vivo. O romance moderno procurou, justamente, aumentar cada vez mais sse sentimento de dificuldade do ser fictcio, diminuir a idia de esquema fixo, de ente delimitado, que decorre do trabalho de seleo do romancista. Isto possvel justamente porque o trabalho de seleo e posterior combinao permite uma decisiva margem de experincia, de maneira a criar o mximo de complexidade, de variedade, com um mnimo de traos psquicos, de atos e de idias. A personagem complexa e mltipla porque o romancista pode combinar com percia os elementos de caracterizao, cujo nmero sempre limitado se os compararmos com o mximo de traos humanos que pululam, a cada instante, no modo-de-ser das pessoas. Quando se teve noo mais clara do mistrio dos sres, acima referido, renunciou-se ao mesmo tempo, em psicologia literria, a uma geografia precisa dos caracteres; e vrios escritores tentaram, justamente, conferir s suas personagens uma natureza aberta, sem limites. Mas volta sempre o conceito enunciado h pouco: essa natureza uma estrutura limitada, obtida no pela admisso catica dum sem-nmero de elementos, mas pela escolha de alguns elementos, organizados segundo uma certa lgica de composio, que

cria a iluso do ilimitado. Assim, numa pequena tela, o pintor pode comunicar o sentimento dum espao sem barreiras. Isso psto, podemos ir frente e verificar que a marcha do romance moderno (do sculo XVIII ao como do sculo XX) foi no rumo de uma complicao crescente da psicologia das personagens, dentro da inevitvel simplificao tcnica imposta pela necessidade de caracterizao. Ao fazer isto, nada mais fz do que desenvolver e explorar uma tendncia constante do romance de todos os tempos, acentuada no perodo mencionado, isto , tratar as personagens de dois modos principais: 1) como sres ntegros e fcilmente delimitveis, marcados duma vez por tdas com certos traos que os caracterizam; 2) como sres complicados, que no se esgotam nos traos caractersticos, mas tm certos poos profundos, de onde pode jorrar a cada instante o desconhecido e o mistrio. Dste ponto de vista, poderamos dizer que a revoluo sofrida pelo romance no sculo XVIII consistiu numa passagem do enrdo complicado com personagem simples, para o enrdo simples (coerente, uno) com personagem complicada. O senso da complexidade da personagem, ligado ao da simplificao dos incidentes da narrativa e unidade relativa de ao, marca o romance moderno, cujo pice, a ste respeito, foi o Ulysses, de James Joyce, ao mesmo tempo sinal duma subverso do gnero. Assim, pois, temos que houve na evoluo tcnica do romance um esfro para compor sres ntegros e coerentes, por meio de fragmentos de percepo e de conhecimento que servem de base nossa interpretao das pessoas. Por isso, na tcnica de caracterizao definiram-se, desde logo, duas famlias de personagens, que j no sculo XVIII Johnson chamava personagens de costumes e personagens de natureza, definindo com a primeira expresso os de Fielding, com a segunda os de Richardson: H uma diferena completa entre personagens de natureza e personagens de costumes, e nisto reside a diferena entre as de Fielding e as de Richardson. As personagens de costumes so muito divertidas; mas podem ser mais bem compreendidas por um observador superficial do que as de

natureza, nas quais preciso ser capaz de mergulhar nos recessos do corao humano.. (...) A diferena entre les (Richardson e Fielding) to grande quanto a que h entre um homem que sabe como feito um relgio e um outro que sabe dizer as horas olhando para o mostrador2

As personagens de costumes so, portanto, apresentadas por meio de traos distintivos, fortemente escolhidos e marcados; por meio, em suma, de tudo aquilo que os distingue vistos de fora. stes traos so fixados de uma vez para sempre, e cada vez que a personagem surge na ao, basta invocar um dles. Como se v, o processo fundamental da caricatura, e de fato ele teve2. Cit. por Walter Scott, ap. Minam AIlott, Novelists on the Novel, Routledge and Kegan Paul, London, 1960, p. 276.

o seu apogeu, e tem ainda a sua eficcia mxima, na caracterizao de personagens cmicos, pitorescos, invarivelmente sentimentais ou acentuadamente trgicos. Personagens, em suma, dominados com exclusividade por uma caracterstica invarivel e desde logo revelada. As personagens de natureza so apresentadas, alm dos traos superficiais, pelo seu modo ntimo de ser, e isto impede que tenham a regularidade dos outros. No so imediatamente identificveis, e o autor precisa, a cada mudana do seu modo de ser, lanar mo de uma caracterizao diferente, geralmente analtica, no pitoresca. Traduzindo em lingugem atual a terminologia setecentista de Johnson, pode-se dizer que o romancista de costumes v o homem pelo seu comportamento em sociedade, pelo tecido das suas relaes e pela viso normal que temos do prximo. J o romancista de natureza o v luz da sua existncia profunda, que no se patenteia observao corrente, nem se explica pelo mecanismo das relaes. Em nossos dias, Forster retomou a distino de modo sugestivo e mais amplo, falando pitorescamente em personagens planas (flat

characters)

e

personagens

esfricas

(round

characters).

As personagens planas eram chamadas temperamentos (humours) no sculo XVII, e so por vzes chamadas tipos, por vzes caricaturas. Na sua forma mais pura, so construdas em trno de uma nica idia ou qualidade; quando h mais de um fator nles, temos o como de uma curva em direo esfera. A personagem realmente plana pode ser expressa numa frase, como: Nunca hei de deixar Mr. Micawber. A est Mrs. Micawber. Ela diz que no deixar Mr. Micawber; de fato no deixa, nisso est ela. Tais personagens so fdilmente reconhecveis sempre que surgem; so, em seguida, fdilmente lembradas pelo leitor. Permanecem inalteradas no esprito porque no mudam com as circunstncias3. As personagens esfricas no so claramente definidas por Forster, mas serem, conclumos portanto, que as suas com caractersticas maior se reduzem e, em essencialmente ao fato de terem trs, e no duas dimenses; de organizadas complexidade conseqncia, capazes de nos surpreender. A prova de uma personagem esfrica a sua capacidade de nos surpreender de maneira convincente. Se nunca surpreende, plana. Se no convence, plana com pretenso a esfrica. Ela traz em si a imprevisibilidade da vida, traz a vida dentro das pginas de um livro (Ob. Cit., p.75). Decorre que as personagens planas no constituem, em si, realizaes to altas quanto as esfricas, e que rendem mais quando cmicas. Uma personagem plana sria ou trgica arrisca tornar-se aborrecida (Ob. cit., p. 70). O mesmo Forster, no seu livrinho despretensioso e agudo, estabelece uma distino pitoresca entre a personagem de fico e a pessoa viva, de um modo expressivo e fcil, que traduz rpidamente a discusso inicial dste estudo. a comparao entre o Homo fictus e o Homo sapiens. O Homo fictus e no equivalente ao Homo sapiens, pois vive segundo as mesmas linhas de ao e sensibilidade, mas numa proporo diferente e conforme avaliao tambm diferente. Come e

dorme pouco, por exemplo; mas vive muito mais intensamente certas relaes humanas, sobretudo as amorosas. Do ponto de vista do leitor, a importncia est na possibilidade de ser ele conhecido muito mais cabalmente, pois enquanto s conhecemos o nosso prximo do exterior, o romancista nos leva para dentro da personagem, porque o

3. E. M. Forster, Aspects of the Novel, Edward Arnold, London, 1949, pp. 66-67.

seu criador e narrador so a mesma pessoa (Ob. cit., p. 55). Neste ponto tocamos numa das funes capitais da fico, que a de nos dar um conhecimento mais completo, mais coerente do que o conhecimento decepcionante e fragmentrio que temos dos sres. Mais ainda: de poder comunicar-nos ste conhecimento. De fato, dada a circunstncia de ser o criador da realidade que apresenta, o romancista, como o artista em geral, domina-a, delimita-a, mostra-a de modo coerente, e nos comunica esta realidade como um tipo de conhecimento que, em conseqncia, muito mais coeso e completo (portanto mais satisfatrio) do que o conhecimento fragmentrio ou a falta de conhecimento real que nos atormenta nas relaes com as pessoas. Po