Antonio Candido - o Observador Literário

download Antonio Candido - o Observador Literário

of 102

Transcript of Antonio Candido - o Observador Literário

  • O OBSERVADOR LITERRIO

    l

  • ANTNIO CNDIDO

    O OBSERVADOR LITERRIO 3a edio, revista e ampliada pelo autor

    * <

    Ouro sobre Azul I Rio de Janeiro 2004

  • A Carla de Queiroz, Marlyse Meyer, Sylvia Barbosa Ferraz - o vnculo das Letras

  • NDICE

    NOTA PRVIA 9

    PRIMEIRA PARTE

    Entre pastores 13

    A vida em resumo 21

    Msica e msica 27

    A compreenso da realidade 33

    SEGUNDA PARTE

    As rosas e o tempo 41

    La Figlia che Piange 51

    Notas sobre Ezra Pound 63

    Uma dimenso entre outras 69

    O portador 79

    TERCEIRA PARTE

    Lembrana de Mrio de Andrade 91

    Oswald viajante 97 Vincius 103

    Ungaretti em So Paulo 107

    As cartas do voluntrio 111

  • 9

    N O T A P R V I A

    A 2 a edio de O observador literrio diferia da Ia por ter trs tex-tos a mais e dois a menos. Estes eram: TERESINA, desenvolvido mais tarde num ensaio longo, e OSWALD VIAJANTE, que foi para o livro Vrios escritos e volta agora ao seu lugar nesta 3a edio, na qual con-servei os trs acrescentados 2a: NOTAS SOBRE EZRA POUND, VINCIUS E UNGARETTI EM SO PAULO. Depois de cada escrito esto os dados sobre a sua publicao original.

    Este livro foi organizado na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Assis, atualmente parte da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, onde ensinei Literatura Brasileira de mea-dos de 1958 ao fim de 1960. Quem leu ento os originais e fez comentrios animadores foi o caro colega e amigo Cassiano Nunes, a quem renovo os agradecimentos. Agradeo tambm aos colegas Carlos Erivany Fantinati, Jos Aluysio Reis de Andrade e Jos Castilho Marques Neto, todos da referida universidade, que mais tarde tive-ram a idia de compor um volume com o meu primeiro livro, este, uma entrevista e um discurso ligados Faculdade de Assis, com o ttulo: Brigada ligeira e outros escritos, Editora UNESP, 1992. Os dois livros aparecem agora separados, como representantes de momentos bem diferentes do meu trabalho crtico.

    ANTNIO CNDIDO DE MELLO E SOUZA I So Paulo I maio de 2004

  • PRIMEIRA PARTE

    .

  • 13

    ENTRE PASTORES

    U m fato curioso a relativa inexistncia de Toms Antnio Gonzaga como poeta antes de vir para Vila Rica. No h por enquanto vestgio pondervel da sua vida literria ini-cial, - seja trao de ligao com os autores do tempo, seja certeza de produo regular. Nem mesmo segurana em delimitar o que na sua obra, salvo algumas peas, corresponde quela fase. Teria comeado a escrever com abundncia apenas aos quarenta, ou quase, e j com mo de mestre? Pouco provvel; mas doutro lado indiscutvel que a maioria absoluta dos seus versos conhecidos pertence estadia nas Minas e priso no Rio de Janeiro.

    Enquanto algum investigador feliz ou arguto no destrinar o caso - como as pesquisas admirveis de Rodrigues Lapa destrin-aram a fase moambicana da sua vida, - resta arquitetar hipteses. Por exemplo: que havia produzido antes de 1782 uma obra exce-lente, ou quando menos promissora, perdida com outros papis. Mas ento, como ter permanecido obscuro? Sabemos que no era necessrio publicar para ter fama na estreita Lisboa de ento; as cpias circulavam, recitava-se grande, os autores logo se agrega-vam a grupos ou sociedades literrias, garantindo a publicidade. Corra Garao foi clebre antes da primeira edio, pstuma, de sua obra; a de Antnio Diniz da Cruz e Silva tambm s veio a lume depois da morte. Isso no seria, pois, impedimento maior. Mais dif-cil imaginar que um homem seguro de si, dotado como ele de per-sonalidade forte e afirmativa, ocultasse os versos e fugisse aos con-frades por timidez.

    Interessante a suposio j levantada por estudiosos: em Vila Rica, Toms Antnio aproveitou grande nmero de poemas anterio-res, arranjando-os em torno do nome de Marlia, que, substituindo outras pastoras, por isso ora loura, ora morena. Neste caso o poeta

  • O OBSERVADOR LITERRIO 14

    no seria novato, mas artfice experimentado, e o ciclo de Marlia apenas em parte foi criado na terra mineira.

    A idia engenhosa e talvez justa em parte. No resolve a dificul-dade acima proposta, da obscuridade completa na Me-Ptria; mas ajuda a explicar o brilho fecundo e aparentemente subitneo. No esqueamos, porm, que a inconfundvel fase da priso o melhor conjunto da sua lira; e os poemas que a compem se aproximam pelo tom e a fatura dos de metro longo da primeira parte. Postos lado a lado, distinguem-se das peas atribudas fase portuguesa, bem como, em geral, das peas de metro curto e corte anacrentico, que alis ocorrem pouco na fase da priso. Pode-se ento imaginar que o suposto trabalho de ajuste tenha visado principalmente a tais poe-mas, saltitantes e amaneirados; e que a parte mais nobre e slida, tc-nica e humanamente falando, mesmo constituda de versos conce-bidos e executados no Brasil, sob a inspirao do amor de Dorotia de Seixas e o estmulo intelectual de Cludio Manuel da Costa.

    Assim, o poeta anterior era de fato aprendiz, apesar de entrado nos trinta anos; e no teria tido repercusso porque escrevia, sem grande flama, peas de circunstncia, odezinhas convencionais e fr-volas, a algumas das quais imprimiu na reviso sentimento real e molde apurado. A hiptese talvez ganhe reforo no estudo de trs verses da mesma lira: a n 5 da terceira parte; a n 1 da primeira parte; a n 15 da segunda (numerao conforme a edio Rodrigues Lapa nos Clssicos S da Costa, a melhor at o momento quanto distribuio e numerao das liras).

    A primeira sem dvida mais antiga, e bem inferior s outras, precedendo com certeza os amores de Marlia:

    Eu no sou, minha Nise, pegureiro, que viva de guardar alheio gado; nem sou pastor grosseiro, dos frios gelos e do sol queimado, que veste as pardas ls do seu cordeiro.

    Graas, Nise bela, graas minha estrela!

  • 15 ENTRE PASTORES

    Esta estrofe inicial, alis a melhor, prope o assunto do poema: em imagens vazadas na vida pastoral o poeta afirma que, embora no seja rico, algum; possui com que viver, ocupa cargo elevado e tem virtudes mais valiosas que o dinheiro. Quem conhece a Marlia de Dirceu sabe que a esto alguns dos seus motivos condutores; alguns dos modos por que esse homem altivo aproveitava os lugares-co-muns da poesia clssica para lembrar a cada passo a prpria emi-nncia de carter e esprito.

    A segunda verso retoma e desenvolve a primeira, da qual conser-va a tcnica do estribilho; mas endereada a Marlia e vibra um extraordinrio encantamento amoroso, a que devemos alguns ver-sos belssimos, superando de longe a verso que arranjou. Passadas as duas estrofes iniciais - onde o quadro da sua pessoa delineado com o brio costumeiro - a tnica se transfere para o louvor da na-morada. E s mesmo um neoclssico poderia atingir a beleza atravs da estrita simplicidade, com o vocabulrio da vida corrente:

    Eu, Marlia, no sou algum vaqueiro, que viva de guardar alheio gado; de tosco trato, de expresses grosseiro, dos frios gelos e dos sis queimado. Tenho prprio casal e nele assisto; d-me vinho, legume, fruta, azeite; das brancas ovelhinhas tiro o leite, e mais as finas ls de que me visto.

    Graas,:Marlia bela, graas minha estrela!

    Eu vi o meu semblante numa fonte: dos anos inda no est cortado; os pastores que habitam este monte respeitam o poder do meu cajado. Com tal destreza toco a sanfoninha, que inveja at me tem o prprio Alceste: ao som dela concerto a voz celeste

  • O OBSERVADOR LITERRIO 16

    nem canto letra que no seja minha. Graas, Marlia bela, graas minha estrela!

    Este comeo de louvao pessoal, ressaltando a boa forma fsica, a posio social, a capacidade potica, desenvolve a formulao da lira anterior. Diz Toms Brando no seu valioso livro (Marlia de Dirceu) que, segundo uma tradio familiar, esta foi composta para replicar aos parentes de Dorotia, cuja prospia o ferira. possvel que en-globasse a situao presente na retomada do poema inicial.

    A estrofe seguinte por assim dizer rotativa, operando a passagem do poeta namorada, a quem oferece os "tantos dotes da ventura" e celebra em mais quatro estrofes, onde surgem versos de alto teor, como este:

    Papoula ou rosa delicada e fina.

    A terceira verso foi escrita no calabouo da ilha das Cobras; a mais perfeita, sendo a mais comovedora. O verso, igualmente puro, austero; desaparece o estribilho votivo, que dava um ar de frivoli-dade, e a situao de esperana amorosa retomada como amargu-ra serena, que deixa entrever no segundo plano a resignao ante a perda das iluses.

    Eu, Marlia, no fui nenhum vaqueiro, fui honrado pastor da tua aldeia; vestia finas ls e tinha sempre a minha choa do preciso cheia. Tiraram-me o casal e o manso gado, nem tenho, a que me encoste, um s cajado.

    Esta passagem dramtica do presente ao pretrito transfigura toda a parte de aluso amorosa, deslocada agora da corte e da esperana para a conscincia angustiada da privao. Talvez por isso mesmo seja ela do mais elevado nvel, ganhando a fora quase augusta que

  • 17 ENTRE PASTORES

    reveste, na misria, a evocao do tempo feliz - como no QUINTO CANTO do Inferno. Na evocao do idlio campestre Gonzaga obtm alguns dos versos mais bonitos e despojados da poesia luso-brasi-leira, mostrando a sua capacidade de criar o belo sem sair de uma naturalidade que se diria familiar:

    Propunha-me dormir no teu regao as quentes horas da comprida sesta, escrever teus louvores nos olmeiros, toucar-te de papoulas na floresta.

    E adiante:

    Se no tivermos ls e peles finas, podem mui bem cobrir as carnes nossas as peles dos cordeiros mal curtidas, e os panos feitos com as ls mais grossas.

    Considerando as trs verses, to separadas pelo tempo e as con-dies da vida, somos levados a pensar que, se recorreu trs vezes a este tipo de imagens e argumentos poticos, foi porque eles corres-pondiam, como sugeri, a algo profundo na sua personalidade. Mas no se deve pensar que os inventou, porque na verdade eles cons-tituem temas habituais na tradio buclica, voltada justamente para as virtudes da urea mediania e o disfarce do sentimento pessoal pelo molde genrico da condio rstica.

    mesmo possvel apontar, bem perto de Gonzaga, uma fonte eventual de inspirao para a sua primeira lira, que seria, no caso, no fruto de experincia vivida, mas uma espcie de exerccio, talvez estimulado por situao real e mais tarde aproveitado para descre-ver o seu sentimento de valia no caso amoroso com a filha dos orgu-lhosos Ferres de Vila Rica. Refiro-me a um soneto de Pedro Antnio Corra Garo, de nmero 61 na edio Azevedo Costa:

  • O OBSERVADOR LITERRIO 18

    No cobre vastos campos o meu gado, O maioral no sou da nossa aldeia, Do meu trabalho como, mas, Dircia, Ainda que sou pobre vivo honrado.

    No jogo da carreira e do cajado At o destro Algano me receia, Qual loura espiga de grozinhos cheia, Me alegra ver teu rosto delicado.

    Se queres minha ser, fala a verdade, No vestirs as peles mais vistosas, As finas ls tecidas na cidade.

    Trajars da que eu trajo as mais mimosas, Fa-las- de mais preo a s vontade Com que quisera dar-te as mais custosas.

    mais ou menos o avesso da lira de Gonzaga, e h um elemento de humildade que contrasta com a sua altiva jactncia. Mas h muito de comum com as suas duas primeiras verses, notadamente o torneio estilstico inicial e os prprios conceitos, ou ainda a invocao comparativa da destreza (aqui fsica, l potica). Isto, e mais o faro, que vale ou no mas no se pode justificar, me levam a pensar que Toms Antnio teria partido do soneto de Garo, - para fazer, seja dito, obra infinitamente melhor - embora a recorrncia dos tpicos na literatura pastoral permita supor e quem sabe localizar alguma fonte anterior em que ambos beberam.

    Resta uma questo: este soneto no veio nas obras de Garo em 1778; foi publicado pela primeira vez por Azevedo Castro na sua bela edio romana de 1888, em cuja introduo lemos que era in-dito, tendo sido tomado a uma coletnea manuscrita do cnego Figueiredo, que o recebera, com outros, da prpria viva do poeta.

    Sendo assim, Gonzaga s o teria conhecido por contacto direto (que no sabemos se ocorreu), e mais provavelmente por cpia ou

  • 19 ENTRE PASTORES

    recitao de terceiro, embora Garo - informa Azevedo Castro -fosse "avaro na divulgao das composies entre amigos e admi-radores do seu gnio". Caso esta suposio seja inaceitvel, fica de p a da fonte comum, para mostrar mais uma vez que em literatura o bem de um bem de todos, e que o gnio brilha tanto na estrada nova quanto nos caminhos mais pisados'.

    Suplemento Literrio d'O Estado de S. Paulo I 1958

    1 I Nota da 2a edio: "Imitao direta da cloga II de Virglio e indireta dos idlios VI e XI de Tecrito", diz Alberto Faria em Marlia de Dirceu (Seleo das liras autnticas), Rio: Anurio do Brasil, 1922, p.l 19, referindo-se lira 1 da parte I. A pressuposta fonte comum seria pois a famosa cloga em que Coridon procura cap-tar o belo Alexis com ofertas e alegaes do prprio valor; e que funcionaria como modelo inicial. Mas no h certamente imitao direta, e sim homologia da idia geral como ponto de partida e raros traos comuns, ao modo dos que aparecem na segun-da estrofe da lira. Gonzaga fez obra muito pessoal, bem diferente como imagens, encaminhamento e concluso.

  • 21

    A VIDA EM RESUMO

    P or definio, o soneto deveria sempre sugerir um mundo fechado, cerceado pelos quatorze versos sem sada e o blo-queio da chave de ouro. Mas o fato que alguns parecem menos auto-suficientes, prolongando-se pelo eco dos seus proble-mas ou da sua sonoridade.

    O soneto camoniano, por exemplo, apesar do escoro inevitvel, mais aberto que o parnasiano: talvez porque nele predomine o carter dialtico, e a forma expositiva d lugar a certos desenvolvimentos lgicos sob os quais sentimos um pensamento que se desdobra, uma sensibilidade que no se aplaca na chave de ouro, multiplicando-se em ondas sucessivas no universo da natureza e do esprito.

    Seria pitoresco estabelecer alguns esquemas relativamente arbi-trrios, embora teis, dizendo que na lngua portuguesa o soneto passou por trs momentos ideais e tpicos: o da dialtica mais ou menos pura; o da dialtica mais pesadamente lastreada de realidade; o da realidade representada com predomnio sobre a dialtica. Ou seja, respectivamente: o soneto aberto, o soneto entreaberto (ou entrefechado), o soneto fechado, - cujos representantes mais tpicos poderiam ser (excludo qualquer intuito de comparao valorativa) Cames, Bocge e Francisca Jlia.

    No caso, o Parnasianismo representou uma funo importante, e j se pde dizer, em relao literatura francesa, que o seu feito mais original, nico realmente tpico, o soneto de Heredia, - de quem foi seguidora estrita a nossa poetisa.

    No Parnasianismo brasileiro o soneto adquiriu um carter pro-priamente plstico, que ressaltou a sua capacidade de incluir, ou abranger. Da uma estrutura que se poderia chamar de quadro, -estrutura de obra plstica fechando em si mesma um universo com-pleto. O soneto pictrico dos parnasianos (como os de Heredia)

  • O OBSERVADOR LITERRIO 22

    chega de fato s conseqncias ltimas e de certo modo naturais, ao encerrar hermeticamente um pedao do mundo ou da vida na mi-niatura dos quatorze versos, como certos pintores encerravam no reflexo polido dum pequeno espelho, ou num caixilho de janela, tre-chos autnomos do exterior. Em conseqncia imps-se uma pre-ciso estrita, um rigor em cada palavra, j que todas desempenham funo indispensvel de sonoridade ou sentido. Vejam-se, a propsi-to, os escrpulos de Alberto Faria, em Acendalhas, sobre a traduo dessa jia de poesia plstica e descritiva dos Trofus, SUR LE PONT-VlEUX.

    Olavo Bilac talvez seja o mais variado dos parnasianos no campo do soneto, recapitulando as suas possibilidades desde a marcha dia-ltica at o cromo, desde a estrutura aberta at os pequenos esque-mas cerrados. Mas de modo geral h nele inclinao pelo cromo e o esquema, e embora segundo Pricles Eugnio da Silva Ramos a sua potica seja fortemente bocagiana, h nela as caractersticas bsicas do Parnasianismo. Posto - em termos da classificao sugerida acima - entre o soneto entreaberto de Bocage e o soneto fechado de Francisca Jlia, na maioria das vezes o seu tem uma ressonncia e um alcance humano reduzidos pela exigidade do gnero. Em alguns casos a beleza algo estrita, embora rutilante, devida brevi-dade lapidar com que sabe reunir uma grande soma de elementos.

    Veja-se SAHARA VITAE, nas Saras de Fogo, diretamente inspirado, alis, em La Caravane, do seu mestre Thophile Gautier:

    L vo eles, l vo! O cu se arqueia Como um teto de bronze infindo e quente, E o sol fuzila e, fuzilando, ardente Criva de flechas de ao o mar de areia.

    L vo, com os olhos onde a sede ateia Um fogo estranho, procurando em frente Esse osis de amor que, claramente, Alm, belo e falaz, se delineia.

  • 23 A VtDA EM RESUMO

    Mas o simum da morte sopra: a tromba Convulsa envolve-os, prostra-os; e aplacada Sobre si mesma roda e exausta tomba...

    E o sol de novo no gneo cu fuzila... E sobre a gerao exterminada A areia dorme, plcida e tranqila.

    A alegoria clara, e o seu interesse do ponto de vista esttico reside no fato de o tema central (a vida como luta do homem contra a adversidade de um mundo insensvel) se desenvolver em trs etapas descritivas, cheias de elementos alusivos. Os motivos, com efeito, so uma caminhada, nos dois quartetos; uma hecatombe, no primeiro terceto; um panorama final, no segundo. Isto vivifica a alegoria, apresentando-a como ao, drama coletivo que se desdobra, rpida mas fortemente, nos versos breves. O efeito reforado pelo carter antittico, pois o motivo da caminhada prope uma realidade hu-mana logo contrariada pela morte, resultando na desolao de um mundo vazio, espera de novas jornadas.

    Esta expectativa funciona como ressonncia, que prolonga a fora de convico do tema e, deste modo, apesar da estrutura completa em si mesma, deixa entrever, sob o eplogo destruidor, um retorno infindvel de esforos estraalhados pelas mesmas catstrofes. Mas no so estes elementos de ordem geral os responsveis diretos pelo impacto em nossa sensibilidade; eles so apenas enquadramentos dos recursos particulares de que o poeta se vale para tal fim: vocabu-lrio, imagens, versificao, que criam o universo potico dentro do qual a idia parece essencial, ganhando realidade e eficcia.

    As imagens, pelas quais ela se exprime de modo imediato, so aqui muito coerentes, formando um sistema de agressiva dureza. O cu, por exemplo, comparado a um teto de bronze, cuja ferocidade met-lica se completa em nossa mente pelo sentimento de implacabili-dade moral. Ou os raios de sol, equiparados a flechas de ao, mate-rializando no seu carter dilacerante a fereza das coisas e, por exten-so, de todo o mundo. Note-se que estas e outras imagens so simples

  • O O B S E R V A D O R L I T E R R I O 24

    e mesmo banais, como o deserto-mar de areia, a iluso-miragem, a morte-borrasca. No entanto, em conjunto, exercem efeito, devido simplicidade forte do vocabulrio que as apoia e se articula num sis-tema contundente e desolador.

    De fato, h neste soneto trs tipos de substantivos virtuais, latentes por assim dizer nas locues, dotados de uma fora adjetiva de caracterizao que os torna verdadeiros vocbulos-chave: metal, fogo e vento. Dada a sua consistncia decrescente, dado o impacto maior ou menor com que se integram na nossa representao, eles propiciam uma espcie de mobilidade no jogo dos tormentos, sendo os ncleos expressivos das trs estrofes que os descrevem e se orde-nam em torno dos sintagmas aludidos: "teto de bronze" e "flechas de ao"; "fogo estranho"; "simum da morte" e "tromba convulsa". Deste modo, forma-se no nosso esprito uma srie de representaes em cadeia, originando a sensao de um mundo fechado, inelutvel. Tanto mais quanto os verbos so todos, ou quase, de tenso e vio-lncia: arquear, fuzilar, crivar, atear, soprar, envolver, prostrar, tombar, exterminar.

    Alm disso, h contrastes entremeados com sutileza para reforar o tom geral, como a iluso da miragem, ou a doura enganadora do deserto, mediante discretos efeitos aliterativos de consoantes lquidas:

    (...) claramente Alm, belo e falaz, se delineia; (...)

    A areia dorme, plcida e tranqila, - (...)

    que alis colidem com outros recursos do mesmo tipo, em sentido inverso de dureza arrasadora, zunindo nas sibilantes, batendo nas oclusivas:

    Mas o simum da morte sopra: a tromba Convulsa envolve-os, prostra-os; e aplacada Sobre si mesma roda e exausta tomba.

  • 25 A VIDA EM RESUMO

    Vistos deste modo, os recursos do poeta (e outros que no foram discriminados) parecem bastante simples e quase elementares. No entanto, - preciso insistir - a sua fora vem justamente da banali-dade dessa atmosfera opressiva e dolorosa, que no obstante a da vida. Atmosfera que define um mundo fechado, caro aos naturalis-tas, onde a existncia um ciclo sem perspectivas, que a estrutura do soneto permite configurar. O terceto final que, retomando o panora-ma do incio ("o gneo cu fuzila") e apresilhando com ele o ambi-ente, acentua a insensibilidade da natureza em face da dor humana, poderia fazer lembrar o famoso verso das Destines, de Vigny:

    Plus que tout votre rgne et que ses splendeurs vaines, J'aime Ia majest des souffrances humaines.

    No entanto, nesta alegoria de Bilac no vislumbramos qualquer afirmativa da grandeza do homem pelo sofrimento. Graas tcni-ca parnasiana do soneto fechado, temos uma atmosfera naturalista de passividade ante o esmagamento do ser pelas coisas, descartada a miragem fugidia da iluso e reintegrada a natureza devoradora na sua insensibilidade. Filosofia aparentada de Quincas Borba, mas sem o alvio aparente do humor. Filosofia de naturalista amargo, embora sereno sob a perfeio formal, que no consegue, porm, granjear a nossa adeso profunda; e isto ocorre na maioria dos ver-sos desse admirvel poeta superficial. O motivo se encontra em parte no fato de no ser ele muitas vezes capaz de ver mais que um espetculo, um pretexto para "dobrar a estrofe cristalina". Nestes casos o seu timbre pessoal consiste em transferir o interesse da pes-soa coisa, j que para ele a pessoa em grande parte uma coisa a ser manipulada pela arte, - no obstante o esforo passional de alguns dos seus poemas. As virgens mortas so estrelas e vo com-por um Armamento de devaneio; o quarto, as jias, as roupas da moa que volta do baile so apresentados de modo a se tornarem to importantes, to vivos, que de repente as graas nuas parecem obje-tos, como eles; Frinia, esta chega a ser tratada como pea de anato-mia ou carne em retalho. No entanto, este empobrecimento relativo

  • O OBSERVADOR LITERRIO 26

    condio do poeta construir o seu universo, limitado, mas perfeito, pois a sujeio coisa leva muitas vezes a confiar na fora prpria da imagem que a exprime. A superioridade deste soneto sobre o de Gautier, que lhe serviu com certeza de modelo, provm da ressonn-cia, indicada acima, e da confiana na atuao das palavras que descrevem o ambiente de modo concreto, sem necessidade de recor-rer ao elemento discursivo para mostrar o seu carter alegrico. J o francs utiliza o elemento descritivo como ponte para a reflexo sen-tenciosa, misturando-se ambas inextricavelmente nos tercetos finais:

    Von avance toujours, et voici que Von voit Quelque chose de vert que Von se montre au doigt: Cest un bois de cyprs, sem de Manches pierres.

    Dieu, pour vous rposer, dans le dsert du temps, Comme des osis, a mis les cimetires: Couchez-vous et dormez, voyageurs haletants.

    No soneto XII da Via Lctea, -

    Sonhei que me esperavas, e sonhando Sa, ansioso por te ver - (...)

    em que a natureza noturna conversa com o amoroso sem que vejamos a amada, ocorre no plano da euforia e do idlio o mesmo processo de SAHARA VITAE. Em ambos, o que importa a elaborao dum ambiente, onde as coisas de certo modo substituem o homem e adquirem, pela sua articulao, um valor de expresso reflexa. Este gosto pelo exterior permite miniaturas admirveis de lugares-co-muns, graas ao encanto especfico do soneto, o "pequeno alade" do poeta ingls. quanto basta para estimular o nosso desejo de sentir a vida em resumo, - isto , a arte.

    Suplemento Literrio d' O Estado de S. Paulo I 1958

  • n

    M S I C A E M S I C A

    M achado de Assis foi bastante musical. Na sua obra per-passa um gosto discreto mas constante, mostrando que o partidrio juvenil das brigas por causa de cantoras se refinou at ultrapassar a mdia dos amadores do tempo, estimando Schumann e Wagner enquanto o visconde de Taunay e Tobias Bar-reto discutiam Meyerbeer. Mas o fato que a impregnao musical da sua obra leve, parecendo mais recurso de composio e anlise do que propriamente emoo profunda. Usou-a como terminologia irnica para o TRIO EM L MENOR; motivo melanclico na CANTIGA DE ESPONSAIS; revestimento admirvel do tema da perfeio no mais pungente dos seus contos, UM HOMEM CLEBRE.

    No Memorial de Aires ela entra para manifestar o amor nascente entre Fidlia (nome beethoveniano) e Tristo (nome wagneriano). Por entre as linhas sbrias, flui como smbolo da paixo primaveril e crescente, marcando o retorno da bela viva s emoes da vida e o enlevo do moo, que por causa de Fidlia deixa as ambies polti-cas. Graas tcnica progressiva do dirio, disfarando a oniscincia do romancista,: o narrador ignora em teoria o que se passar na en-trada seguinte. E esta candura de presente do indicativo o deixa tecer com verossimilhana a fora premonitria da msica. Quando o con-selheiro abre os olhos, o casal de jovens j est em pleno dilogo de reticncias, que para Brs Cubas era o de Ado e Eva.

    Antes disso, na entrada de trinta e um de agosto, Aires conta uma serata de piano, levando a narrativa com uma simplicidade to des-preocupada, espalhando to bem de permeio as banalidades, que a msica pode vibrar quase apagadamente em segundo plano, como sm-bolo, para se destacar no primeiro como rito banal de boa sociedade.

  • O OBSERVADOR LITERRIO 28

    Como eu ainda gosto de msica! A noite passada, em casa do Aguiar, ramos treze pessoas... Treze! S agora, ao contar de me-mria, vejo que ramos treze; ningum deu ento por este nmero, nem na sala, nem mesa do ch de famlia.

    Aqui a msica mera introduo ao assunto; tudo leva a supor que o essencial esteja nas consideraes banais que seguem, afastan-do qualquer premonio do esprito do leitor. Habilmente dosados, os ingredientes do quotidiano dissolvem o rompante do incio ("Como eu ainda gosto de msica!"). Quando a frase seguinte reintroduz o motivo, estamos desarmados e no chegamos a perceber que se trata de um retorno:

    Conversamos de cousas vrias, at que Tristo tocou um pouco de Mozart ao piano, a pedido da madrinha.

    Ainda nessa altura parece que a nica funo da msica alinha-var as partes de uma cena mundana, mas o prosseguimento j deixa o leitor desconfiado:

    A execuo veio porque falamos tambm de msica, assunto em que a viva acompanhou o recm-chegado com tal gosto e discrio, que ele acabou pedindo-lhe que tocasse tambm. Fidlia recusou modestamente, ele insistiu, d. Carmo reforou o pedido do afilhado, e assim o marido; Fidlia acabou cedendo e tocou um pequeno tre-cho, uma reminiscncia de Schumann. Todos gostamos muito.

    Por que tanta msica? - pensamos primeira leitura. Mas se estivermos relendo, a percepo se torna facilmente aguda; mais que a do conselheiro Aires, que renunciou machadianamente ao deleite de parecer esperto e continua, at a consumao dos scu-los, ignorando em trinta e um de agosto o que acontecer em Io de setembro, sobretudo em quinze de maio do ano seguinte, quando o par j aparece casado. Ns, sabendo na releitura que isto se dar, aguamos o ouvido para esta melodia aparentemente neutra e vamos

  • 29 MSICA E MUSICA

    sentindo que ela avatar da paixo nascente, enredando os jovens no seu fluido simblico.

    Tristo voltou ainda uma vez ao piano, e pareceram apreciar os talentos um do outro. Eu sa encantado de ambos.

    Remoado pelo espetculo e, mais ainda, revolvido nas profundas pela vitalidade dos jovens, o conselheiro volta para casa com a cabea cheia desta msica alusiva, que agora adquire um matiz de nostalgia que o faz voltar ao passado, ao tempo dos instintos prontos:

    A msica veio comigo, no querendo que eu dormisse. Cheguei cedo a casa, onze horas, e s perto da uma comecei a conciliar o sono; todo o tempo da rua, da casa e da cama foi consumido em repetir trechos e trechos que ouvira na minha vida.

    Esse encontro com as razes amortecidas da existncia traz o velho Aires ao plano consciente duma meditao sobre a sua prpria (como foi, como teria sido...), num desses encontros finais em que se pesa o bagao de todos os Eus frustrados, imolados pelo caminho ao que afinal veio a ser nico e por isso mesmo insatisfatrio.

    A msica foi sempre uma das minhas inclinaes, e, se no fosse temer o potico e acaso o pattico, diria que hoje uma das sau-dades. Se a tivesse aprendido, tocaria agora, ou comporia, quem sabe? No.me quis dar a ela, por causa do ofcio diplomtico, e foi um erro. A diplomacia que exerci em minha vida era antes funo decorativa que outra coisa; no fiz tratados de comrcio nem de limites, no celebrei alianas de guerra; podia acomodar-me s melodias de sala ou de gabinete. Agora vivo do que ouo aos outros.

    Agora j tarde... Sob a carreira convencional do personagem sen-timos a tentao de vislumbrar um desabafo do escritor; mas qual a utilidade duma conjectura que arrasta para o terreno liso das filia-es biogrficas? melhor pensar em qualquer homem, qualquer

  • O OBSERVADOR LITERRIO 30

    um de ns, - os seis pronomes pessoais feitos da mesma massa de recalques, adoada por compensaes duvidosas ou amargurada pela franca mutilao. Portanto, pensemos s no homem voltando para casa depois de ter ouvido a frauta pastoril que lhe deixou entrever Dafnis e Cloe na inocncia certeira dos seus jogos; frauta cuja sono-ridade lmpida e frgil vai trazendo de volta bela Fidlia o desejo de tocar novamente as canes da vida.

    H dois ou trs meses ouvi dizer a Fidlia que nunca mais tocaria, tendo desde muito suspendido o exerccio da msica. Repliquei-lhe ento que um dia, a ss consigo, tocaria para recordar, e a recor-dao traria o exerccio outra vez.

    J que falamos no romance de Longus, no custa dizer que a msi-ca foi o medianeiro, o Filetas deste caso, como o romance arturiano no de Paolo Malatesta e Francesca da Rimini.

    Ontem bastaram as instncias da gente Aguiar para mover uma vontade j disposta, ao que parece. O exemplo de Tristo ajudou-a a sair do silncio. Repito que sa de l encantado de ambos.

    S na filigrana esta msica sutil se manifesta como elemento cen-tral de composio, estruturando o texto e constituindo o seu movi-mento psicolgico profundo. A cena mundana, a caminhada notur-na, a reflexo final se coordenam graas a ela, que apenas aparente-mente pretexto, sendo na verdade o ncleo a que tudo mais se subordina. A fora germinal da paixo se refina atravs dela num arabesco simblico, que tambm elemento de conhecimento e confronto, na linha da contida riqueza machadiana.

    Se quisermos avaliar este fato, faamos a comparao com um escritor menos reticente, menos indireto psicologicamente, em tre-cho onde a msica aparea para traduzir emoes fundamentais. Seja Raul Pompia, no captulo final d'O Ateneu, quando o nar-rador, sozinho na enfermaria do colgio, vive o episdio equvoco das relaes com a mulher do diretor:

  • 31 MUSICA

    Msica estranha, na hora clida. Devia ser Gottschalk. Aquele esforo agonizante dos sons, lentos, pungidos, angstia deliciosa de extremo gozo em que pode ficar a vida porque fora uma con-cluso triunfal. Notas graves, uma, uma; pausas de silncio e treva em que o instrumento sucumbe e logo um dia claro de renascena, que ilumina o mundo como o momento fantstico do relmpago, que a escurido novamente abate.

    Os sons so aqui descritos, pelo modo como repercutem na sensi-bilidade; e o fazem com tal vigor material, que se tornam por ins-tantes o sujeito literrio, qualificados quase psicologicamente, indi-vidualizados pelo silncio das pausas, que alternam com eles, for-mando um contraponto de momentos visuais de claridade e escu-rido. O movimento do perodo se deve caracterizao impres-sionista do ritmo, feito de impactos e suspenses em relao ao nar-rador. Da uma densidade sensorial que o leva a passar da descrio ao efeito dos sons, pela transio de duas linhas:

    H reminiscncias sonoras que ficam perptuas como um eco do passado. Recorda-me, s vezes, o piano, ressurge-me aquela data.

    Preservado na memria, s vezes o impacto original das notas volta, trazendo inteiro aquele momento sob as sensaes experi-mentadas de novo:

    Do fundo repouso cado de convalescente, serenidade extenua-da em que nos deixa a febre, infantilizados no enfraquecimento como a recomear a vida, inermes contra a sensao por um requinte mrbido da sensibilidade - eu aspirava a msica como a embriaguez dulcssima de um perfume funesto; a msica envol-via-me num contgio de vibrao, como se houvesse nervos no ar. As notas distantes cresciam-me n'alma em ressonncia enorme de cisterna; eu sofria, como das palpitaes fortes do corao quando o sentimento exacerba-se - a sensualidade dissolvente dos sons.

  • O OBSERVADOR LITERRIO 32

    Agora, patente a rotao de atitude: em vez de evocar a realidade material da msica, Srgio volta sobre si e descreve o estado da sen-sibilidade sob o seu efeito. Vista de dentro, ela receptividade, e o Eu do narrador se equipara a uma cisterna, vibrando em escala ampli-ficada as notas percebidas. A volpia se distende, morosa e pesada, graas rejeio de complementos da clusula ou sobrecarga muito bem calculada de longas intercalaes grvidas de adjetivos. O esta-do de fraqueza da convalescena se junta ao choque sonoro, tornan-do a msica um dissolvente sutil; o Eu se projeta fora do narrador, vivifica o ambiente, deixando-o como percorrido por fibrilas ner-vosas; o corpo todo reage ao influxo, traduzindo a emoo em pal-pitao cardaca, segundo o gosto naturalista.

    Afinal, dada esta atuao profunda sobre a sensibilidade, a msi-ca suprime a vontade, quebra a iniciativa, abre as comportas ao devaneio:

    Lasso, sob os lenis, em conforto ideal de tmulo, que a von-tade morrera, eu deixava martirizar-me o encanto. A imaginao, de asas crescidas, fugia solta.

    Disso tudo resulta uma combinao de violncia naturalista e enervamento decadentista, deixando longe o mistrio insinuante do velho Aires. que o narrador adolescente; a msica no pode ainda ter para ele a imaterialidade tnue que sugere sem mostrar. So coisas que o tempo h de trazer quando ele ficar conselheiro, como toda gente.

    Suplemento Literrio d'O Estado de S. Paulo I 1958

  • 33

    A COMPREENSO DA REALIDADE

    H no romance (mas de modo algum na poesia) dois ngu-los principais que regem a viso do escritor, condicionan-do a sua arte de escrever: ou investiga a realidade como algo subordinado conscincia, - que envolve tudo e fica em primeiro plano, - ou pe a conscincia a servio de uma realidade considerada algo existente fora dela. Um ngulo de subjetivismo, outro de obje-tividade, que se combinam segundo os mais vrios matizes mas no passam essencialmente de dois. Tertius infictione non datur...

    As obras mais completas so em geral as que manifestam simul-taneamente os dois aspectos da realidade - o interior e o exterior -tratados, porm, como se o romancista houvesse estabelecido com o seu material uma relao de sujeito a objeto. Mais raramente (sobre-tudo mais dificilmente) a grandeza literria alcanada no romance pela reduo a um dos ngulos, como ocorre em Kafka. Quase sem-pre os escritores alcanam a plenitude quando so capazes de passar do subjetivismo adolescente - que faz da realidade um conjunto de impresses e emoes - para uma posio de anlise objetiva, que reconhece a existncia prpria do mundo onde o sujeito se insere. Muitos crticos j enxergaram em certas formas superiores de realis-mo o ponto culminante do romance moderno, que, segundo Lukcs, no se encontra no naturalismo de Zola nem na introjeo de Joyce ou Proust, mas em Stendhal, Balzac, Tolstoi.

    A afirmao discutvel; mas de qualquer modo devemos reco-nhecer que no romance a passagem da impresso observao construtiva, na medida em que pressupe a interveno da inteli-gncia para organizar a indisciplina das emoes espontneas. Mesmo quando o escritor prefere introjetar o mundo, violando as fronteiras do real, esta operao geralmente s vlida se suceder a uma fase prvia de conhecimento objetivo do mundo, como a deformao dos

  • O OBSERVADOR LITERRIO 34

    pintores modernos, que transcende mas no ignora as formas natu-rais. Assim, Joyce apresentara Dublin realisticamente nos contos, antes de engolf-la na corrente da conscincia; como Proust efetuara, antes da fluidez mgica de La Recherche du Temps Perdu, o exerc-cio preparatrio de Jean Santeuil. Compreende-se que assim seja, pois a atitude bsica na vida perceber o Eu em relao com o mundo, e organizar tanto a conduta quanto o conhecimento de acordo com esta percepo bsica.

    A obra de Jos Lins do Rego valiosa para estudar esses proble-mas, porque um amadurecimento, com desvios e recuos, no senti-do do realismo mais pleno, a partir de uma verde e espontnea ado-lescncia literria. Para simplificar a discusso, fiquemos nos seis livros onde pintou o seu mundo originrio; e veremos que a maturidade grandiosa de Fogo morto foi devida a uma libertao progressiva da fixao autobiogrfica, em benefcio da observao, que pressupe, por parte do sujeito, uma atitude conscientemente destacada do objeto.

    (...) comecei querendo apenas escrever umas memrias que fos-sem as de todos os meninos criados nas casas-grandes dos enge-nhos nordestinos. Seria apenas um pedao de vida o que eu que-ria contar. Sucede, porm, que um romancista o instrumento apenas de foras que se acham escondidas no seu interior.

    Estas palavras do curto prefcio de Usina indicam o processo e desvendam os seus motivos profundos, entre os quais a aquisio de um claro discernimento da realidade como objeto autnomo, devi-do alterao progressiva das relaes entre a personalidade que se forma e o mundo onde se forma.

    No Jos Lins do Rego inicial h, como tem sido dito pela crtica, um homem preocupado em sondar a prpria infncia, compondo os farrapos da memria num quadro coerente. Se escolheu a fico em lugar da autobiografia direta, foi talvez pela maior liberdade que ela dava para retocar, preencher, generalizar, de modo a conferir maior amplitude ao dado pessoal, aproximando-o do carter de para-

  • 35 A COMPREENSO DA REALIDADE

    digma, que diz expressamente ter visado ("... as de todos os meni-nos..."). Mas medida que avanou de um livro para outro, o me-morialista algo perdido na poesia evocativa deu lugar ao romancista, adstrito s leis da fico, compreendendo e analisando cada vez mais a realidade que antes englobava numa apreenso indiscriminada, exuberante mas primria.

    Este artigo pretende sugerir que a sua obra se desenvolveu, por altos e baixos, como passagem da apreenso compreenso, visvel tanto na marcha da viso do mundo quanto na do estilo. Aquela, implicando distino progressiva da atitude do sujeito em face do objeto; este, progressiva conquista do escrito sobre o oral. Ambos os movimentos exprimem a passagem do espontneo ao elaborado, ou, segundo os conceitos utilizados aqui, do modo apreensivo ao modo compreensivo.

    Quem abre Menino de engenho (como o abriu aos quinze anos a minha gerao, que o viu surgir, entre deslumbrada e surpresa) nota desde logo uma linguagem tateante, que procura localizar e cercar as imagens imprecisas da infncia. Nota que, maneira do que sucede nas primeiras etapas da vida, no h separao ntida entre sujeito e objeto, e que a realidade literria no o menino nem o engenho, mas menino e engenho, unidos, indiscernveis. O fascnio pelo uni-verso colorido e pastoso da terra de cana suscitou, no romance de Jos Lins do Rego, como na sociologia de Gilberto Freyre, uma des-truio de barreiras entre o quadro geogrfico e o grupo humano. Deu lugar a uma compenetrao de ambos, como se a consistncia pegajosa do barro, tantas vezes evocado, servisse para receber a marca do homem, deixando neste, reciprocamente, a sua cor e a pesada volpia que associamos idia de viscosidade.

    Por isso, a expanso do menino no engenho sugere uma expanso ttil do Eu sobre o mundo; uma personalidade que se constri na medida em que, encontrando a resistncia das coisas, apreende-as, engloba-as, e ao mesmo tempo nelas se engasta. Este movimento de preenso explica o tateio do estilo, que tambm procede por toques, registros curtos, dando ao romance um carter envolvente, primiti-vo e saboroso, na sua seiva irregular.

  • O OBSERVADOR LITERRIO 36

    "S quando houver alcanado o conhecimento de todas as coisas que o homem poder conhecer-se a si mesmo, pois as coisas no passam de fronteiras do homem." Este aforismo de Nietzsche lem-bra que o conhecimento da coisa essencial ao conhecimento do Eu, pois este existe em grande parte na medida em que se situa com relao a ela. Neste sentido, e talvez forando a finalidade com que foi redigido, o aforismo pode servir para indicar o movimento esboado a partir de Menino de engenho e definido nos livros seguin-tes, - onde a apreenso das coisas, que amplia cegamente o Eu e o projeta sobre o mundo, vai se tornando inteligncia da coisa e faz do mundo realidade compreendida, depois de apreendida.

    pois uma espcie de aprendizagem, ntida a partir de Doidinho, no qual afastado o cenrio do engenho e o narrador se encontra em face dele mesmo, ao chocar-se com um mundo que desafia a preen-sibilidade da sua expanso. Um mundo duro, compacto, de profes-sores tirnicos, colegas maus, - todo arestas e superfcies lisas que o Eu no penetra. Em conseqncia, dobra-se sobre si, forado a compor-se como unidade, desligado da placenta acolhedora pela qual se ajustava ao universo lbil do engenho. A essa altura a persona-lidade literria j ia amadurecendo, concatenando melhor os elemen-tos que integram um universo fictcio, compondo o dado existencial e passando, em matria de estilo, do registro organizao.

    Poderamos dizer que Doidinho esboa o segundo elemento da arte de Jos Lins do Rego, pois significa, completando a apalpao do mundo, uma apalpao do Eu, que em Bang se tornar quase sondagem, fazendo deste livro sntese e fecho da fase inicial da sua obra de aprendiz. Nele a apreenso exterior vai se tornando com-preenso medida que o narrador esboa uma atitude analtica em relao ao seu ambiente e a si mesmo. Esta atitude facilitada pelo mundo de Bang, onde se renem a plasticidade do de Menino de engenho e a rigidez do de Doidinho. Ante o narrador adulto, estende-se o mesmo universo viscoso de terra mole e guas invasoras, - tpi-do bagao de cana e submisso bagao humano. Os trabalhadores se dobram, as mulheres se entregam, o grito de mando rasga facilmente uma dimenso arbitrria para a vontade. Mas o poder apreensivo do

  • 37 A COMPREENSO DA REALIDADE

    narrador diminuiu, com a passagem idade adulta. O mundo no matria de percepo; requer cada vez mais atos incisivos e coorde-nados, que a sua alma titubeante, precariamente instalada na herana do av, no lhe pode dar. Sucede ento uma espcie de endu-recimento do mundo; uma transformao crescente do limite em obstculo, acuando o narrador priso da sua inpcia. Sob a pas-sividade dos cabras de engenho desponta a resistncia do "moleque" Jos Marreira; e enquanto a generosidade da terra como ressequida pelo gravame das hipotecas, o ritmo tradicional se rompe pela presso do capitalismo e da tcnica, encarnados na usina que espreita o velho bang do Santa Rosa.

    O elemento de ligao entre o fluido mundo perdido e a rigidez do mundo novo a mulher pela qual se apaixona o narrador, Maria Lusa, ao mesmo tempo acessvel como as servas do engenho (sob este aspecto, permitindo a expanso conquistadora do Eu), e inabor-dvel, por ser casada e pertencer a outro mundo de valores (sob este aspecto, opondo-se plenitude do Eu e confinando-o nos prprios limites). O desequilbrio que assalta o narrador aps a partida de Maria Lusa eqivale, no plano da experincia pessoal, ao pavor do fazendeiro derrotado, que o obriga finalmente, no plano da ao, a retirar-se, vendendo o Santa Rosa.

    A leitura de Bang mostra que, embora falando na primeira pes-soa, o romancista aprendeu a descrever o mundo exterior como realidade que se compreende, - inclusive pela presena dos proble-mas sociais, - e que deixou de ser prolongamento do Eu. Este, por sua vez, cornps-se afinal como conscincia de si e das coisas, su-perando a indiscriminao inicial.

    Restava ao escritor explorar esta conquista, abandonando o tom autobiogrfico e instalando-se na posio normal de observador duma realidade claramente percebida, isto , literariamente falando, a ter-ceira pessoa, - utilizada nos dois ltimos livros do "Ciclo da Cana-de-Acar": Moleque Ricardo e Usina. Neste, o universo do engenho, antes contnuo sensibilidade do narrador, existe afinal como obje-to nitidamente separado do sujeito, que o englobava na sua apreen-so absorvente.

  • O OBSERVADOR LITERRIO 38

    Mais tarde, aps longas voltas, nem sempre felizes, o romancista sentiu necessidade de aplicar a fora do seu realismo lentamente conquistado ao material das evocaes infantis. Produziu ento a sua obra-prima, Fogo morto, onde a identidade do narrador se oblitera pela pujana do romancista e as conquistas tcnicas e psicolgicas da compreenso se ligam intimamente espontaneidade subjetiva da apreenso. O mundo e os seres, que antes esculpira no movi-mento caprichoso da autobiografia, voltam marcados pela objetivi-dade serena e pattica do realismo superior, situados por meio duma descrio calorosa, demarcados pela caracterizao psicolgica, movidos graas tcnica finalmente dominada do dilogo.

    Enquanto certos escritores se tornam grandes engolfando na sub-jetividade, Jos Lins do Rego s se realizou integralmente medida que dela se libertou, destacando uma viso objetiva do mundo den-tre as penumbras do tateio autobiogrfico. Por isso, seria o caso de arriscar um paradoxo e dizer que apenas aparentemente a memria constitui o elemento fundamental na sua arte, - pois ele cresceu medida que foi se libertando dela. Tanto assim que no fim da vida, ao recorrer autobiografia pura, em Meus verdes anos, fez algo primrio e pouco expressivo, que vale apenas como subsdio dos romances, nos quais incluiu toda a seiva da sua histria pessoal, mas progredindo obscuramente, at encontrar a objetividade do mais ldimo realismo, em contraste com o tosco naturalismo confidencial de que partiu.

    Suplemento Literrio d'O Estado de S. Paulo I 1957

  • 39

    SEGUNDA PARTE

  • 41

    AS ROSAS E O TEMPO

    O tema do convite amoroso, com o argumento de que o tempo foge, a carne se desfaz e a recusa terminar por encher de re-morso a dama esquiva, encontra as expresses mais claras nos momentos de impregnao da cultura clssica, isto , do sculo XV ao sculo XVIII. Ocorre antes e depois, no h dvida; mas sem a naturalidade no encantamento carnal que os gregos e latinos mani-festaram livremente e o cristianismo abafou. Por isso mesmo um tema anticristo sua maneira, apresentando a castidade como algo desumano, a virtude como privao de vida. como se o rumor apaixonado e (para ns) desabrido dos versos de Catulo envolvesse e ameaasse o ardor difano e mental da Vita Nuova.

    Os estudiosos contam que o imaterial amor corts, transposto em parte do culto Virgem Maria, foi uma fora civilizadora, uma ne-cessidade social imperiosa, ante a desenfreada bestialidade da Alta Idade Mdia. Poder-se-ia ento dizer que o rompante carnal da arte e da literatura, no Renascimento, foi por sua vez corretivo s bar-reiras impostas (embora mal observadas) pela moral religiosa e a etiqueta. O que seria verdadeiro em parte. A outra parte formada pela prpria natureza do jogo amoroso, o seu carter de labirinto estabelecido pela sociedade e pelos parceiros segundo um mapa in-sidioso e variado, onde nem todos encontram o fio salvador.

    A mulher um precioso bem de troca, diriam os etnlogos; a sua circulao deve estar sujeita a normas precisas, que evitem subverter as relaes no grupo. Ora, as condies propostas pelo grupo so dados inevitveis com que devemos contar; portanto no tardamos em incorpor-las ao nosso modo de ser, como se partissem da nossa natureza, imaginando, por exemplo, a existncia de uma natureza feminina, que se nega a uma natureza masculina avanando sua busca no Labirinto. Perfdia das mulheres, dizem os homens.

  • O OBSERVADOR LITERRIO 42

    Mas o tempo corre, e pela prpria essncia o Labirinto difcil. Entram ento em cena os poetas, estimulados pelo jogo de barreiras e encruzilhadas, bradando aos quatro cantos o convite que teria a fora mgica de suscitar a presa nalguma esquina perdida do monumento. No fundo, sonham com a Ariadne providencial, - que no aparece, bvio, pois sabe que o destino das Ariadnes perecerem abando-nadas no rochedo de Naxos. E enquanto bradam no escuro, os poetas supem uma presena capciosa e esquiva que foge; cultivam a idia de que ela gil e calculada, quer experimentar o aventureiro e, com soberana inconscincia, malbaratar o Tempo, de que a deusa im-placvel e oculta.

    Neste ponto exato cristaliza a dialtica do apelo sob forma de con-vite, que compete mulher ignorar ou repelir, porque faz parte da sua natureza temer o escolho de Naxos. Mas os poetas insistem -desde antes do Renascimento. "Bebe bastante, enquanto o regato corre -,(...)."

    Or buvezfort, tant que ru peut courir (...)

    - prope Villon, mestre na pintura da carne decadente:

    Ung tems viendra quifera dessechier, Jaunir, flestrir vostre espanye fleur -(...)

    acrescentando filosoficamente que no adiantar ento o sarcasmo vingativo, pois tambm a sua pobre carcaa nada mais ser:

    Je trien risse, se tantpeusse maschier Lors; mais nennil, ce seroit doncfoleur: Vielje seray; vous, laide, sans couleur.

    - Olha o exemplo da rosa, logo desfolhada, lembra Ronsard, cem anos depois:

  • 43 AS ROSAS E O TEMPO

    Cueillez, cueillez, votre jeunesse: Comme cettefleur Ia vieillesse Fera ternir votre beaut.

    Mais caviloso, Thomas Carew no sculo seguinte avisa que peca-do no conceder o que a Natureza deu para ser frudo, mormente quando o proveito (diz ele) maior para quem dispensa:

    But 'twere a madness not to grant That which affords (ifyou consent) To you, the giver, more content Than me, the beggar.

    E termina por lembrar com sensatez que o broto fenece e a flor murcha:

    Spend not in vain your life's short hour, But crop in time your beauty's flower, Which will away, and both together Both bud and fade, both blow and wither.

    Numa ode curta e bonita de Lovelace, o apoio metafrico se deslo-ca do vegetal para o mineral, para a dureza fria e resplandecente da amada inabordvel, desmaterializada pela ausncia em apario im-palpvel e muda, - tudo no breve arabesco da mesma estrofe:

    Harder than the orient stone, Like an apparition, Or as a pale shadow gone, Dumb and deafshe hence isflown.

    Por isso ela no deve ser amada: o corao de mrmore o seu tmulo e a sua maldio.

  • ( I I H I M K V A D O R L I T E R R I O (4

    Um quase contemporneo francs, o arrebatado Thophile de Viau, homem de carne imperiosa e paixes desregradas, prefere atacar pelo lado do cinismo e da ironia:

    Pour tre divine et humaine, Ilfaut en jeunesse sentir Les plaisirs de Ia Madeleine, Etpuis, vieille, sen repentir.

    Bem mais tarde, o leviano Parny consegue um momento de beleza, num poema alis medocre, ao encerrar na leve imagem de um toque alado a fora arrasadora do Tempo fugitivo:

    le Temps du bout de son aile Touchera vos traits en passant (...)

    e ameaa:

    Ds demain vous serez moins belle, Et moi peut-tre moins pressant.

    Mas preciso voltar ao sculo XVII para encontrar quem, acima de todos os outros, chegou a uma verdadeira metafsica da carne efmera, breve equilbrio de graa e fora logo dissolvido na cor-rente das horas: Andrew Marvell. - No que a espera me canse, nem a conquista (o nosso Labirinto) me desanime, diz ele; toda a Eternidade seria pouca para te esperar, e o meu amor cresceria sur-damente, mais vasto que os imprios, mais lento que eles:

    My vegetable love should grow Vaster than empires, and more slow;

    For, lady, you deserve this state, Nor would I love at lower rate.

  • 45 AS ROSAS E O TEMPO

    Mas o carro do Tempo se precipita com as rodas aladas e a Eter-nidade um deserto onde mal tremeluzimos. Por isso (neste ponto a demonstrao j quase abalou a moradora do Labirinto, anestesiada com o canto admirvel, perigosamente esquecida do rochedo de Naxos), por isso, vencer o Tempo da nica maneira possvel: livrar-se do sentimento do seu curso pela imerso no instante, esgotando todas as possibilidades deste. O convite tremendo:

    (...) let us sport us while we may; And now, like amorous birds ofprey, Rather at once our time devour Than languish in his slow-chapped power.

    Se resistir a Marvell, ela resistir a tudo, na maior insensatez, des-denhando colher as rosas da vida, apresentadas em ramo no soneto de Ronsard:

    Cueillez ds aujourd'hui les roses de Ia vie.

    No sero por certo os brasileiros que conseguiro demov-la, em-bora, pensando bem, j tenhamos formulado pelo menos dois ape-los que nos permitem ficar em boa posio no tema do convite: um poema de Baslio da Gama e outro de Gonzaga. Este, mais velado e carinhoso; aquele, direto e premente: ambos, admirveis.

    A situao do poeta Dirceu era delicada. Ia pela casa dos quarenta, entrando na etapa final em que ainda pode caber a aspirao s Marlias primaveris. Da o sentimento agudo de que as horas so preciosas, insubstituveis, rondadas pela "devorante mo da negra morte"; e que as oportunidades so nicas: uma vez desprezadas, no se refazem.

    Ah! enquanto os destinos impiedosos no voltam contra ns a face irada, faamos, sim, faamos, doce amada, os nossos breves dias mais ditosos.

  • O OBSERVADOR LITERRIO 46

    Um corao que, frouxo, a grata posse do seu bem difere, a si, Marlia, a si prprio rouba,

    e a si prprio fere.

    Depois da sbia argumentao vem o convite, pastoral e lrico, na singeleza que s esse grande artfice soube obter em nossa literatura onde "farfalham os adjetivos":

    Ornemos nossas testas com as flores, e faamos de feno um brando leito; prendamo-nos, Marlia, em lao estreito, gozemos do prazer de sos amores.

    Sobre as nossas cabeas, sem que o possam deter, o tempo corre; e para ns o tempo, que se passa,

    tambm, Marlia, morre.

    Resta-lhe agora terminar, mostrando a perspectiva aberta pela inde-ciso ou a recusa:

    Que havemos de esperar, Marlia bela? Que vo passando os florescentes dias? As glrias que vm tarde, j vm frias; e pode enfim mudar-se a nossa estrela.

    Ah! no minha Marlia, aproveite-se o tempo antes que faa o estrago de roubar ao corpo as foras,

    e ao semblante a graa.

    No soneto de Baslio, notamos ausncia completa do tom de splica, tradicional na estratgia dos namorados, avultando o carter mas-culino, afirmativo, prprio ao tema. A ternura cede lugar ao sarcas-mo e uns laivos de humor, que aparecem tambm em Marvell, Carew, Parny. Marfisa se recusa ao poeta; no faz mal, diz ele; a velhice roer

  • 47 AS ROSAS E O TEMPO

    a tua beleza, e ento vers se valeu a pena. Aqui o nosso Termindo Siplio retoma a linha de um dos sonetos a Helena, onde Ronsard a mostra, velha,

    Regrettant mon amour et votrefier ddain: (...)

    J, Marfisa cruel, me no maltrata Saber que usas comigo de cautelas, Qu'inda te espero ver, por causa delas, Arrependida de ter sido ingrata.

    Com o tempo, que tudo desbarata, Teus olhos deixaro de ser estrelas; Vers murchar no rosto as faces belas, E as trancas d'oiro converter-se em prata.

    Da (desta base tradicional, e to pouco rendosa que os poetas no fazem mais que retom-la) parte o convite, direto e sem peias:

    Pois se sabes que a tua formosura Por fora h de sofrer da idade os danos, Por 5que me negas hoje esta ventura?

    Mas a linha nflete, e depois duma ltima exortao o soneto se enche de melancolia, terminando por um verso de nostalgia sonhadora (com uma frase posta psicologicamente entre parnteses) que anula o sarcasmo, graas ao sentimento, j encontrado em Villon, de que a punio de Marfisa pelo remorso acaba tambm sendo a dele, pri-vado da sua graa e da sua posse:

    Guarda para seu tempo os desenganos, Gozemo-nos agora, enquanto dura, J que dura to pouco, a flor dos anos.

  • O OBSERVADOR LITERRIO 48

    Insisto na frase interposta, no parntese virtual -

    J que dura to pouco (...)

    reticenciosa suspenso que abre um mundo de devaneio cativo. Mas tero os nossos poetas logrado convencer a moradora do La-

    birinto? Caso contrrio, o derradeiro assalto s poder ser feito nou-tra linha - romntica e mrbida. Se a vitalidade carnal dos convites no funcionou, recorra-se s imagens sepulcrais, ao reino da Morte, onde a argumentao no se processa mais no sentido da esperana, mas da privao irremedivel.

    Vamos pois a Baudelaire e sua amada inacessvel, que apenas che-gada campa sente em quanto importou no haver conhecido "aquilo que os mortos choram". O estojo de pedra que a comprime repete, como um eco, a objurgatria do poeta; a memria fantstica das coisas da vida cria um tormento contnuo para a sua frustrao; os prprios vermes, ao trabalharem por transform-la na "soberba carcaa", celebrada noutro poema, lembram incessantemente a tolice do passado desdm:

    Et le ver rongera ta peau, comme un remords.

    Remorso pstumo (logo irresgatvel), diz o ttulo do soneto. Com Baudelaire entramos no macabro, que Marvell, fiel ao espri-

    to vivo e saudvel do tema, havia contornado com ironia:

    The grave's a fine and private place, But none, I think, do there embrace.

    possvel que a idia do tmulo, negro e mido, lembre mora-dora do Labirinto que este tambm ao seu modo um receptculo de morte, se o fio no chega s mos do solicitador. Mas - pobre Ariadne - a anteviso do abandono em Naxos igualmente dura. Alm do mais h a Vita Nuova e a virtude, alis, Virtude, que tam-bm um "clebre sentimento", como o amor. De maneira que fica o

  • 49 AS ROSAS E O TEMPO

    dito por no dito e louvada a cautelosa negaa das bem-amadas ingratas, que, do spero Villon ao frvolo Parny, despistaram os poetas malandros. Tranqilizem-se as eventuais leitoras, deles e desta nota: no se colhero as rosas da vida, na nica oportunidade em que seria possvel, como queria Andrew Marvell, criar a Eternidade devoran-do o instante fugidio.

    Suplemento Literrio d'O Estado de S. Paulo I 1956

  • 51

    LA FIGLIA CHE PIANGE Weave, weave the sunlight in your hair.

    O sentimento genrico despertado em ns por uma cidade repousa, a bem dizer, na limitada experincia de certo bair-ro, certa casa ou um renque de rvores particularmente acolhedor. Como nas cidades que habitamos a experincia se reno-va, a imaginao presa, ora por um bairro, ora por outro, cujo en-canto no percebramos at vspera, e que amanh talvez no nos toque mais, seja porque uma administrao insensvel mandou cor-tar duas rvores ou calar de novo uma rua; seja porque algum pro-prietrio deformou a fisionomia habitual das suas casas.

    A leitura da obra de Proust mostra que quando enunciamos um nome de lugar brota ao lado a viso de conjunto, graas qual julga-mos apreender a sua substncia - como se as diferentes emoes se ordenassem regularmente num carto-postal abstrato. Na verdade, a mente no faz mais do que emprestar aos detalhes percebidos uma generalidade logicamente cavilosa, mas legtima em face da experi-ncia afetiva que orientou a compreenso.

    Por isso, o conhecimento pormenorizado nem sempre acrescenta qualitativamente grande coisa ao sentimento de um lugar que nos impressionou de relance, atravs da fixao de alguns pormenores. Nessas experincias, o detalhe sensvel penetra o entendimento e dis-pensa a articulao sistemtica do conjunto.

    Da mesma natureza a viso do amador de poemas, para o qual o nome da obra - Remate de males - ou do poeta - Mrio de Andrade -evoca uma qualidade geral de tom, intensidade, consistncia, cor, prpria s deles e inconfundvel com os demais. No entanto, esta emoo geral e indiscriminada resulta dum feixe relativamente pequeno de emoes parciais. Deve haver um leitor constante de Manuel Bandeira para quem o fulcro insuspeitado de todo o amor pelo poeta, e do prazer que lhe causam os seus versos, uma presena peculiar da estrela Vsper, que

  • O OBSERVADOR LITERRIO 52

    (...) caiu cheia de pudor na minha cama Vsper em cuja ardncia no havia a menor parcela de sensuali-dade; (...)

    ou a cor azul de tantos poemas, - ora ostensiva, como no organdi do vestido de Maria Elvira, ora virtual, como na CANO DAS DUAS IN-DIAS, ou em BRISA:

    Vamos viver de brisa, Anarina.

    As imagens do poeta se repartem desigualmente entre os leitores, cada um dos quais se apropria como coisa sua daquelas que mais di-reta, ou mais misteriosamente, preenchem a sua disponibilidade afetiva. Como no podemos realmente sentir seno o que vai acor-dar uma perdida componente da infncia, ou preencher a longa es-pera de alguma virtualidade, a leitura do verso eqivale procura mgica dos traos que o nosso esprito pode assimilar, a fim de com-por uma nova emoo com as velhas ressonncias que eles desper-tam. E a viso das coisas se torna tanto mais rica, quanto ma!S nca se tornar esta espcie de memria afetiva.

    Assim, a aventura pessoal no domnio da poesia consiste em bus-car contactos atravs dos poemas. Todo leitor consciente e um vaso novo, onde os cantos do poeta iro combinar-se de modo especia e quase nico, pois o matiz pessoal da emoo potica irredutvel e intransmissvel. Por isso mesmo, no somos capazes de compreen-der devidamente a totalidade das imagens de um autor, muito menos as de todos os autores. O excesso daquilo que os crticos de lngua inglesa costumam louvar, chamando catholkity af toste, - o univer-salismo compreensivo do gosto - parece no raro com a indiscrimi-nado, porque normalmente dispomos duma intuio mais ou menos limitada, cuja incidncia abrange determinada zona de poe-sia Freqentemente esta zona varia com a idade, os dias, e mesmo as horas do dia; de tal maneira que se por vezes somos capazes de ampliar o mbito da nossa compreenso, no raro perdermos a sensibilidade para certa ordem de emoes, na passagem de um

  • 53 LA FIGL1A CHE P1ANGE

    perodo a outro. A proporo permanece, deste modo, e ns temos os nossos poetas, dentro de cuja obra elegemos os nossos poemas, nos quais, ainda, selecionamos as nossas imagens. O que chamamos compreenso de um poeta consiste em generalizar o significado des-ses aspectos nos quais se fixou a nossa contemplao.

    No poema A terra estril, de T.S. Eliot, h uma personagem miste-riosa que prende a minha ateno e procuro esclarecer a cada leitu-ra, porque ela contribui, como poucas entre as demais, para fixar a minha verso pessoal: a "donzela dos jacintos", da parte I, O ENTERRO DOS MORTOS.

    Sabemos que Eliot procurou, entre outras coisas, simbolizar a crise moderna de valores como perda de fervor nos atos praticados. Como no tem f nem convices profundas, o homem repete ma-quinalmente o que dantes praticava numa tenso elevada de emoo e sentimento. o "mundo caduco", familiar aos leitores de Carlos Drummond de Andrade.

    Para definir este estado de coisas, Eliot organizou, em torno de uma peregrinao livre pelo mundo, um jogo de imagens compara-tivas entre a secura do comportamento moderno e o esplendor das grandes criaes do passado. Estas imagens ressaltam o contraste entre esterilidade e fecundidade, impotncia e vigor, fervor e automatismo. So muitas; so quase todo o poema. Quem esquecer a mundana neurastnica, em cujo boudoir um quadro,

    Como janela aberta sobre a cena agreste, (...)

    irrompe com a tempestuosa aventura de Filomela; ou o contrapon-to obsedante da parte V, onde o par antittico "gua e rochedo" retoma e desenvolve o tema da terra sem vio? Nesta nota procurarei sugerir uma interpretao para a "donzela dos jacintos", principi-ando por uma verso literal do incio do poema, a fim de facilitar o comentrio:

    Abril o mais cruel dos meses, gerando lilases na terra morta, misturando lembrana e desejo, excitando razes trpidas com

  • O O B S E R V A D O R L I T E R R I O 54

    chuva primaveril. O inverno nos aquece, cobrindo a terra de neve esquecedora, nutrindo com tubrculos ressecados uma vidazinha latente. O vero nos surpreendeu, ao cair sobre o Starnbergersee com uma chuvarada; detivemo-nos na colunata e prosseguimos pelo sol, no Hofgarten; tomamos caf e conversamos uma hora. Bin gar keine Russin, stamrnaus Litauen, echt deutsch. Quando meninos, em casa do arquiduque, meu primo, ele me levou num tren e eu tive medo. Disse ele: Marie, Marie, segura firme. E l escorregamos. Como a gente se sente livre nas montanhas. Li boa parte da noite, e prossegui no inverno, rumo ao sul.

    Que razes se agarram, que ramos nascem desse rebotalho pe-dregoso? Filho do homem, no podes falar nem supor, porque s conheces um feixe de imagens rotas, em que bate o sol, e a rvore morta no d abrigo, o grilo no d trgua, nem murmrio d'gua a pedra seca. Mas h sombra, debaixo desta pedra rubra, vem, na sombra desta pedra rubra, e eu te mostrarei algo diverso, quer da tua sombra, pela manh, estendida atrs de ti, quer da tua sombra, tarde, erguendo-se para te encontrar; mostrar-te-ei o medo num punhado de p.

    Frisch weht der Wind Der Heimat zu, Mein Irisch Kind, Wo weilest du?

    Primeiro deste-me jacintos, h um ano atrs; chamavam-me a donzela dos jacintos. - No entanto, ao voltarmos, tarde, do jardim dos jacintos, teus braos cheios, e teu cabelo molhado, no pude falar, meus olhos desfaleceram, eu no estava vivo nem morto e de nada sabia, olhando no cerne da luz, o silncio.

    Oed' und ler das Meer (...)

    Os versos iniciais descobrem todo o jogo posterior dos temas: a primavera, estao da fertilidade, da fora criadora, incmoda a

  • 55 LA FIGLIA CHE PIANGE

    uma era desvitalizada, pela exuberncia germinal com que remexe os sentimentos e traz tona desejos perigosos; o inverno, ao con-trrio, protege com a anestesia da sua esterilidade, que nada exige, contentando-se com uma vitalidade mortia.

    A seguir, o poeta narra um encontro em Munique, e talvez nas regies adjacentes, (o lago, Starnbergersee, distante da cidade, em cujo permetro se localiza o parque, Hofgarten), com uma mulher cuja nacionalidade parece duvidosa, ("No sou russa; sou pura alem da Litunia"), que se diz prima dum arquiduque e conta episdios que podem ser interpretados num sentido de experincia ertica ("ele me levou no tren e eu tive medo... E l fomos escorre-gando..."), mas que podem ser tambm um mero registro, sem valor alegrico. O verso - "Li boa parte da noite, e prossegui no inverno, rumo ao sul" - poderia sugerir, no caso da primeira interpretao, uma indiferena essencial pelo ato praticado, e mal destacado dos outros atos banais da vida. Isto simbolizaria a secura passional do mundo contemporneo e estaria de acordo com outros colquios de amor desapaixonado, como o da elegante neurastnica na parte II e o da datilografa com o moo cheio de espinhas, na parte III. De qual-quer forma, essa conversa casual de viagem ao estrangeiro, em meio s insignificncias do quotidiano, provoca no poeta o sentimento da esterilidade, a cuja sombra infrutfera se acolhe o homem moderno ("Que razes se agarram" etc). Relaes frias e mundo estril con-vergem para despertar nele, por contraste, a nsia de plenitude e energia passional, que se concretiza numa lembrana de Tristo e Isolda, protagonistas duma histria por excelncia do impulso autntico e indomvel do amor. A lembrana vem sob a forma da cano do grumete, no Io ato da pera de Wagner:

    Fresco o vento que sopra rumo terra natal; minha pequena irlandesa, por onde te atardas?

    A invocao da donzela irlandesa impele a emoo para a fase cul-minante do processo mental e afetivo desta seqncia inicial, em que a experincia do poeta se interioriza. Ele identifica o apelo do grande

  • O OBSERVADOR LITERRIO 56

    mito amoroso a uma experincia distante e profunda, vivida ou inventada, no importa: a lembrana da donzela dos jacintos, cuja viso, num jardim molhado de chuva (como o Hofgarten, onde toma ch com a mulher enigmtica) o encheu de um transporte ine-fvel, que se renova agora:

    (...) no estava vivo nem morto (...) o cerne da luz, o silncio (...)

    - palavras que simbolizam o aniquilamento do Eu na morte pro-visria do xtase amoroso, contrapondo-se fria lucidez do amor sem paixo, como o que lhe narra, ou lhe sugere a companheira da cidade bvara.

    A lembrana desta grande experincia afetiva aumenta o senti-mento de vazio e privao, expressos por um verso do 3o ato da pera de Wagner, na cena em que o pastor informa Kuvernal que nada se v no mar, isto , que Isolda no vem aplacar o anseio de Tristo moribundo:

    Oed' un leer das Meer - (...)

    "Vazio e imenso o mar". Esta solido desoladora o impele a buscar a emoo, a vitalidade autntica, perdida para ele e os seus contem-porneos. quando (no irnico trecho seguinte) vai consultar a car-tomante, Madame Sosostris, caricatura dos velhos ritos, que perde-ram contedo e persistem como artimanha de saltimbanco.

    Essa misteriosa donzela dos jacintos, - 'The Hyacinth Girl' - que os exegetas apontam como recordao de mocidade do autor, , exa-tamente, uma reapario de La Figlia che Piange, personagem do poema deste nome, ltimo do livro Prufrock and Other Observations:

    LA FIGLIA CHE PIANGE O quam te memorem virgo.

    Fica no degrau mais alto da escada - debrua sobre a urna do jardim - tece, tece a luz do sol no teu cabelo - aperta as flores contra

  • 57 LA FIGLIA CHE PIANGF.

    o peito em dolorosa surpresa - espalha-as pelo cho e volta-te com um ressentimento fugidio nos olhos: mas tece, tece a luz do sol no teu cabelo.

    Assim quisera eu que ele partisse, assim quisera eu ficasse ela e penasse, assim haveria ele partido como a alma deixa o corpo dila-cerado e contundido, como o esprito deixa o corpo que gastou. Eu encontraria algum jeito incomparavelmente leve e abafado, algum jeito que ambos compreenderamos, simples e sem f como um sorriso ou um aperto de mos.

    Ela afastou-se, mas junto com o vento do outono me ocupou muitos dias a imaginao, muitos dias e muitas horas: seu cabelo sobre os braos e os braos cheios de flores. E cismo como puderam estar juntos! Eu deveria ter perdido o gesto e o porte. Algumas vezes tais cogitaes ainda espantam o meio da noite perturbada e o repouso da sesta.

    Este emocionado poema o ltimo de uma coletnea em que pre-dominam a ironia e o humor. A epgrafe latina acentua a densidade da experincia, real ou imaginria, que marcou o poeta de maneira profunda. Num sistema visual plasticamente admirvel, embora sugerido com a maior parcimnia (o jardim, a presena do cabelo que absorve a luz solar, a harmonia dos gestos e dos movimentos, traindo a paixo) ele cravou o drama de um abandono que deixa a alma vazia e a vontade perturbada. LA FIGLIA CHE PIANGE pode ser o padro ideal do amor, entrevisto pela inteligncia e o corao, ou a nostalgia de uma;experincia decisiva, elevada pela recordao cate-goria de absoluto. De qualquer modo, exprime na poesia de Eliot a presena do ideal amoroso, cuja perda, ou cuja no-obteno, indi-cam a mutilao afetiva e espiritual, que para ele o maior proble-ma do mundo moderno. A separao da donzela inatingida se deu,

    (...) como a alma deixa o corpo dilacerado (...) como o esprito deixa o corpo que gastou.

    E para selar esta viuvez do corpo desertado, ele aspirou a

  • O OBSERVADOR LITERRIO 58

    (...) um jeito (...) simples e sem f, (...)

    como os que se repetem na etiqueta das relaes humanas desprovi-das de sentimento profundo.

    Desse drama - um furo alm do

    (...) trgico fulgor das incompatibilidades humanas (...)

    de que fala Mrio de Andrade - o poeta conservou, de muito seu, a imagem de uma triste Flora em cujo aspecto se compe a trama dos cabelos esparsos sobre braos que enlaam flores. Composio pro-fundamente gravada na sua viso do mundo como smbolo, pois ela que lhe trar, anos depois, em A terra estril, o sentimento do amor puro, total e inatingido, contrastando com a secura exaustiva do erotismo contemporneo, cujo carter de gozo superficial condi-cionou a enorme e torturada revolta de D. H. Lawrence, - exilado no rebotalho pedregoso dos nossos dias.

    Passados oito anos, no poema alegrico Quarta-feira de cinzas, em que celebra a sua converso, a imagem inefvel reaparece, tambm no incio de uma procura:

    Na primeira volta da terceira escada estava a janela sacudida, inchada como um figo, e alm do espinheiro branco e da cena campestre, a encorpada figura vestida de azul e verde encantava a primavera com uma frauta antiga. doce o cabelo em desalinho, cabelo castanho jogado sobre a boca, cabelo lils e castanho.

    Em meio terrvel subida purificadora com que simboliza a con-verso (de olhos postos no exemplo de Dante) o nico momento de doura vem dessa figura feminina, avistada de longe, caracterizada pela magia dos cabelos e situada numa cena vegetal, no jardim de LA FIGLIA CHE PIANGE e A terra estril; no jardim que desde os mitos babilnicos alegoriza o paraso dos sentidos, a presena da paixo e da fertilidade. De fato, a misteriosa donzela, que acabar em Quarta-feira de cinzas por se confundir com a Virgem Maria, possui

  • 59 LA FIGLIA CHE PIANGE

    (se atentarmos para o seu papel nos contextos em que aparece) a vir-tude de criar a nostalgia de uma plenitude perdida (primeiro con-texto); isso, e mais o impulso para readquiri-la (segundo contexto). O que a caracteriza, portanto, uma virtude vivificadora e fecun-dante, reforada pela coexistncia do jardim alegrico e dos smbo-los originais de fertilidade e fora reprodutiva (cabelos, gua, sol, vento, flores). Esta virtude tal, que sem ela o corpo se encontra como vazio da alma (primeiro contexto) e abandonado no deserto (segundo contexto). No se confunde com a capacidade fsica de amar, cuja ausncia a maldio do Rei Pescador, no antigo mito de que Eliot extraiu o fio condutor de A terra estril; e que cantara de modo irnico e algo cruel em "Burbank with a Baedecker: Bleistein with a Cigar". Mais do que ela, (apenas uma das suas manifestaes), a prpria fora natural da vida, que anima e movimenta os seres, e da qual brota a prpria f. Em A terra estril, a f e o amor aparecem igualmente mutilados pela decadncia desta fora nos homens. Em Quarta-feira de cinzas, da fora de vida que emerge a fora mais pura de crer, quando a imagem avistada ao longe, na ascenso, se refina, como Beatriz, em emissria quase celeste, marcada pelas cores da Virgem:

    Quem andava por entre as vrias filas do variado verde, de bran-co e azul, das cores de Maria, falando de coisas triviais, na igno-rncia e no conhecimento da eterna dor; que se movia entre os outros quando andavam, e que ento fortaleceu as fontes e refres-cou as nascentes.

    Esfriou a rocha seca e formou a areia, de azul cor de pervinca, azul cor de Maria, Sovegna vos.

    Por intermdio da misteriosa donzela - cuja categoria no presente contexto definida pela invocao de prece - realiza-se o prodgio que ficara suspenso no fim de A terra estril, onde repontava uma esperana na frmula do Upanishad - 'Shantih shantih shantih' -mas onde tudo estava novamente por comear:

  • O OBSERVADOR LITERRIO 60

    Jernimo enlouqueceu de novo. Agora, a gua brota e fertiliza a terra ermada; a f est finalmente

    atingida, e a intercessora invocada como

    Irm bendita, me santificada, esprito da fonte, esprito do jardim.

    "La Figlia che Piange", a "donzela dos jacintos", a "encorpada figu-ra", a que "andava (...) de azul e branco" - se hipostasiaram na prpria me de Deus. Da terra estril brotou a f para o poeta, graas quela virtude germinal.

    Assim, a donzela (perdido ou alcanado amor, que realizado teria feito florir a vida, e que traz finalmente a plenitude) se confunde com um princpio mgico de fertilizao, complementar do Rei Pes-cador, dos espritos da vegetao. A sua busca (busca da primitiva virilidade do rei; busca do princpio fertilizante) motiva e norteia o poeta, exilado na secura da "rocha morta". Identifica-se, desta forma, s rainhas e reis dos ritos primitivos de vegetao, cuja celebrao est na base das teogonias do Oriente Prximo, com suas etapas (lembrando as do culto de Adnis) de suplcio, morte e ressurreio do deus-mrtir, smbolo do processo vegetal. O ramo dourado, de Frazer, traz sobre o assunto uma documentao abundante, colhida no apenas nos povos primitivos e nas civilizaes da Antigidade, mas nas sobrevivncias que prolongam em nossos dias as velhas prticas rituais. luz desta documentao A terra estril fica singu-larmente esclarecida '. Compare-se o trecho seguinte:

    Freqentemente o esprito da vegetao na primavera repre-sentado por uma rainha em vez de um rei. Na vizinhana de Libchovic (Bomia), no quarto domingo da quaresma, moas

    1 I Veja-se a nota de Eliot ao poema: "Sou devedor, de modo geral, a outra obra de antropologia, que influenciou profundamente a nossa gerao; quero referir-me a O ramo dourado, de que utilizei especialmente os dois volumes sobre 'Adnis, Attis, Osiris'. Qualquer pessoa familiarizada com essas obras reconhecer imediatamente, no poema, certas referncias a cerimnias de vegetao."

  • 61 LA FIGLIA CHE PIANGE

    vestidas de branco, adornados os cabelos com as primeiras flores da primavera, como violetas e margaridas, conduzem atravs da aldeia uma moa que chamada a Rainha e coroada de flores (...) Em cada casa, a Rainha anuncia a chegada da Primavera. (The Golden Bough, p. 131 da edio abreviada).

    A est a genealogia provvel do significado atribudo pelo poeta donzela dos jacintos, esclarecendo o profundo sentido da sua ocor-rncia na obra de Eliot e, principalmente, em A terra estril. No pre-tendo afirmar que tivesse, de incio, o intuito de identificar a figlia che piange com os smbolos germinais dos ritos agrrios, mas apenas sugerir que o sentimento especial despertado por ela veio mais tarde enriquecer o seu intento simblico, mostrando talvez que a experi-ncia pessoal lhe fazia compreender melhor o sentimento de pleni-tude germinal que sublinha a paixo e a f. Quando teve de acentuar a esterilidade do nosso comportamento moderno, reportou-se a temas da sua poesia anterior, j marcada pela obsesso de confundir a decadncia dos valores com a decadncia vital, como se v nos poemas que falam da timidez de Prufrock, da decrepitude de "Ge-rontium", da impotncia sexual de Burbank. Da mesma maneira, querendo dar corpo ao mistrio da germinao, corporificado nos ritos agrrios, evocou da memria a forma inefvel da figlia che piange, - quem sabe uma dompna soiseubuda, mulher idealmente composta, como a que Bertrand de Born inventou para enfeixar as graas indescritveis da Dama de Montaignac, e Ezra Pound incor-porou a um dos poemas de Personae.

    Se analisarmos mais a fundo, talvez cheguemos a concluir que essa misteriosa jovem, cujo amor to essencial que se confunde com a nossa alma; que am-la como morrer; que ser por ela amado nascer para uma vida nova, - que essa misteriosa jovem corres-ponde, no nvel em que germinam as imagens, fora bsica na natureza, que faz viver as plantas e os animais. Para Otto Rank o mito eqivale, nos povos, ao sonho nos indivduos. Imaginemos que T.S. Eliot pretendeu, em A terra estril, fundir o sonho no mito, dando universalidade s imagens do seu esprito e, ao mesmo tempo, reco-

  • O OBSERVADOR LITERRIO 62

    lhendo nele a mitologia sempre viva, como se ela fosse a prpria substncia da imaginao criadora.

    RS. Quando este artigo foi publicado a primeira vez (Revista Brasileira de Poesia, II, Abril, 1948), o poeta Pricles Eugnio da Silva Ramos me chamou a ateno para o fato de F. O. Mathiessen, em seu livro The Achievement of T. S. Eliot, numa nota, aproximar LA FIGLIA CHE PIANGE da donzela dos jacintos e ambas da figura misteriosa de Ash Wednesday, - fato que eu ento ignorava. Alis, cifra-se nisto o encontro do meu ponto de vista com a indicao do malogrado e eminente crtico. (1959)

  • 63

    NOTAS SOBRE EZRA POUND

    Eliot e Pound Um dos traos mais vivos de Ezra Pound a capacidade de

    expresso direta, sem desenvolvimentos nem meios-tons no s nas imagens, como no prprio pensamento. Da nos dar idia de maior energia vital do que Eliot. A tcnica deste trabalha as mais das vezes como bicho-da-seda, encasulando os dados imediatos da experin-cia numa rede sutil, mas nem sempre compensadora, que amortece o impacto inicial da realidade sensvel ou intelectual. Os seus poe-mas menores - ainda sob a influncia do Imagismo - so bastante diretos. No entanto, comparando-os com os de Pound podemos avaliar no s a maior fora com que este sente e transmite a reali-dade, como a sua menor capacidade especulativa. Por isso mesmo afina melhor com o Modernismo dos pases latinos, baseado em boa parte na redescrio do mundo.

    Descrevendo uma figura feminina em seu quarto, em The Waste Land, Eliot imagina a cena fulgurante que todos conhecemos:

    The chair she sat in, like a burnished throne (...)

    Ou, em traduo duvidosa:

    Sentada na cadeira, como num trono resplendente que luzia no mrmore, onde o espelho, sustentado por colunas esculpidas de vinhas carregadas, das quais espreitava um Amor dourado (outro, escondia os olhos sob as asas), redobrava a chama de sete grandes candelabros refletindo, sobre a mesa, uma luz que se encontrava com o brilho de suas jias, vertidas em profuso dos estojos de cetim etc.

  • O OBSERVADOR LITERRIO 64

    Um violento processo de encasular a imagem fundamental - mu-lher sentada - em imagens secundrias, dispostas segundo um con-traponto erudito de aluses.

    Pound, no poema ALBATRE (Lustra), descreve do modo seguinte uma mulher, igualmente sentada em seu quarto:

    Esta senhora de roupo branco, por ela chamado peignoir, por enquanto a amante do meu amigo, e os brancos, delicados ps do seu cozinho branco no so mais delicados do que ela, nem o prprio Gautier desprezaria os seus contrastes em brancura - ela, sentada na poltrona, entre duas velas indolentes.

    Poesia imagista por excelncia, com a imagem desataviada, direta-mente proposta em termos visuais, sem transies, quase sem de-senvolvimento. Mas quando se trata de idias, a expresso direta de Pound se torna ainda mais contundente, em contraste com a cincia harmnica de Eliot - que prefere forjar um sistema complexo de imagens, quando no elaborar um smbolo, a fim de exprimir (por exemplo) a decadncia burguesa. Terra estril, sem irrigao da f; o hipoptamo chafurdado na lama do pecado; a orgia de Sweeney, trespassada pelo canto noturno do rouxinol. Jamais ousaria, no en-tanto, escrever como Pound, sem medo de roar pela prosa. (Com-mission, Lustra):

    Vai, meu canto, ao solitrio e ao mal satisfeito; vai tambm ao neurastnico, vai ao escravo da conveno (...) Vai burguesia, que est morrendo de tdio.

    Poesia e fascismo interessante que o grupo imagista no produziu um s poeta de

    esquerda. Foi um grupo conservador e mesmo reacionrio em poltica ("odeio a democracia", teria dito certa vez John Gould Fletcher), embora tenha sido radical e mesmo revolucionrio em matria po-tica. Quando os poetas se limitam literatura, impertinente inda-gar da sua atitude poltica; mas o fato que desse grupo pelo menos

  • 65 NOTAS SOBRE EZRA POUND

    trs ( verdade que o terceiro foi apenas simpatizante do movimen-to, no pertenceu a ele) desenvolveram teorias poltico-sociais: Pound, Lawrence e Eliot.

    Pound se tornou fascista por volta de 1930. Admirador pessoal de Mussolini, elaborou (alis, adaptou) uma teoria econmica para servir de panacia compulsria aos males do Ocidente. Um dos seus livros a respeito se intitula claramente Jefferson and/or Mussolini. Acu-sado de alta traio por ter irradiado contra a ptria, de estaes ita-lianas, durante a guerra, est agora recolhido a uma casa de sade sob alegao de desequilbrio - bem provvel num homem cujo exibi-cionismo irrequieto tinha laivos de parania.

    Lawrence teve as maiores simpatias por Mussolini e esboou uma utopia de tipo fascista no seu romance sobre o Mxico, - A serpente de plumas. A ideologia do nazismo coincide em mais de um ponto com vrias das suas idias sobre o culto dos instintos obscuros, a lide-rana anti-racional etc. Um grupo de nazistas ingleses, reivindican-do-o como mestre, chegou a fundar uma revista com o nome do seu smbolo, Fnix.

    Eliot um doutrinador da monarquia, concebida sob caractersti-cas quase teocrticas. Enquanto o fascismo de Pound e o parafascismo de Lawrence (sobretudo este) podem ser considerados como desvios de um sentimento revolucionrio e antiburgus, a sua Ordem repre-senta um pensamento lucidamente reacionrio, baseado em senti-mento profundamente conservador.

    Terico e inspirador do Imagismo foi o misterioso T. E. Hulme, pensador soreliaaio que deixou oito poemas de circunstncia e um enunciado breve do seu sistema, e cujas tendncias de certo modo pr-fascistas devem ter infludo nos admiradores.

    Seria instrutivo analisar o processo de formao dessa conscin-cia, num grupo de intelectuais e artistas que, nauseados com o artificialismo pantanoso da vida burguesa, reagiram pelo culto do herosmo, do fervor, da exaltao purificadora. A tendncia egocn-trica levou certamente a maioria deles a propor a questo em termos individualistas de destino pessoal e, mais ainda, prprio. Da a pre-ferncia pelas doutrinas que procuram reajustar a coletividade em

  • O OBSERVADOR LITERRIO 66

    funo do tipo considerado superior de indivduo (tipo historica-mente relativo, mas transformado em absoluto pelo sentimento de classe, que se caracteriza por ele), e no o indivduo em funo do tipo considerado superior de coletividade (processo normal da histria, graas ao qual se criam condies culturais para definir um novo tipo de indivduo).

    O orgulho da criao - exaltando o criador - atua to fortemente, que mesmo um Lawrence, proletrio, apaixonado pelo povo e com-preendendo admiravelmente muitos dos seus problemas, levado, por um desvio deste amor, a rever a Histria em funo das exign-cias drsticas do Eu. Na Irlanda, Yeats chegou a uma viso aristocrtica segundo a qual a beleza, para se manifestar, exigiria uma organiza-o social implacavelmente hierrquica. Mais tpico de todos, Stefan George, na Alemanha, criou uma filosofia e uma esttica da liderana e da submisso, regidas pelo culto totalitrio da beleza. Mas rejeitou o totalitarismo poltico, recusando os favores do nazismo, que o aclamava como mestre, e se retirando voluntariamente para a Sua, tal o afastamento entre a realidade e os sonhos no raro perigosos dos poetas...

    Pound e fascismo Nos poemas de Pound encontramos a cada passo indcios reve-

    ladores do processo indicado acima. Um nojo crnico dos valores burgueses, uma nostalgia da violncia profiltica de heris e legis-ladores. Eis duas estrofes de um poema de 1919 ou 1920 (E. P. - ODE POR L'ELECTION DE SON SEPULCHRE, de Poemsfrom Lustra):

    Os homens so iguais, segundo a lei. Livres de Pisstrato, esco-lhemos um velhaco ou um eunuco para nos governar.

    lcido Apoio, tn ndra, tn hera, tina then. Qual deus, homem ou heri cingiremos do diadema de lato?

    Ou o poema transposto de um velho canto anglo-saxo (THE SEA-FARER, de Ripostes):

  • 67 NOTAS SOBRE EZRA POUND

    Dias pouco durveis, com toda a arrogncia dos ricos da terra; e no h mais reis, nem Csares, nem senhores como os de outro-ra, dispensadores de ouro.

    Ao lado dessas nostalgias cesaristas, uma veia brilhante e quase histrinica de sarcasmo - que as explica de certo modo (SALVA-TIONISTS, de Lustra):

    Vinde, meus cantos, vamos nos armar contra esse mar de estu-pidez - a comear com Mumpodorus;

    E contra esse mar de vulgaridade - a comear com Nimmin; E contra esse mar de imbecis - todos os beletristas Bulmenianos '.

    Contra o terno, polido Housman e sua melancolia bem-pensante, sua placidez elegaca, um curto poema satrico verdadeiramente admirvel:

    A mensagem de Mr. Housman

    Ai de mim, ai. As gentes nascem e morrem; tambm ns morreremos daqui a

    pouco; portanto, agir como se j estivssemos mortos. O pssaro canta no galho, mas tambm ele acaba morrendo. Alguns moos morrem n