Antonio Conselheiro: de "inteligente, mas sem cultura" a "indivíduo perigoso"

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    Revista RBBA ISSN 23161205 Vitria da Conquista V. 1 n 2 P. 55 a 70 Dezembro/2012

    DE INTELIGENTE, MAS SEM CULTURA A INDIVDUOPERIGOSO: ANTNIO CONSELHEIRO NA IMPRENSA

    SOTEROPOLITANA (1876-1893)i

    DE INTELIGENTE, PERO SIN CULTURA A TIPO PELIGROSO:ANTONIO CONSELHEIRO EN LA IMPRENSA SOTEROPOLITANA(1876-1893)

    Joaquim Antonio de Novais Filho

    Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)/[email protected]

    Resumo:

    O artigo objetiva analisar o processo pelo qual AntonioConselheiro tornou-se matria de interesse da imprensa

    peridica da cidade de Salvador entre os anos de 1876 e1893. O perodo corresponde ao tempo de peregrinao deAntonio Conselheiro pelos sertes da Bahia e Sergipe.

    Nessa poca, na Bahia, a maior parte dos jornais pertenciaa grupos polticos, praticando um jornalismo opinativo,

    porta-voz de grupos oligrquicos. Diante desse corpus constitudo pelos diferentes registros sobre AntonioConselheiro publicados nesses jornais buscamos entoidentificar de que forma essas notcias contriburam para aconstituio de uma memria discursiva acerca do

    peregrino e dos seus seguidores.Palavras-chave: Antonio Conselheiro. Imprensa.Memria discursiva.

    Resumen:El artculo tiene como objetivo analizar el proceso por elcual Antonio Conselheiro se convirti en un asunto deinters de la prensa peridica de la ciudad de Salvador enlos aos 1876 y 1893. El perodo corresponde al tiempo de

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    la peregrinacin de Antonio Conselheiro por el sertn deBaha y Sergipe. A la poca, en Baha, la mayora de los

    peridicos pertenecan a grupos polticos, ejerciendo elperiodismo obstinado, portavoz de los grupos

    oligrquicos. Dado este corpus- que consta de diferentesregistros sobre Antonio Conselheiro publicados en estosperidicos buscamos entonces identificar cmo estasnoticias contribuyeron a la formacin de una memoriadiscursiva sobre el peregrino y sus seguidores.Palabras clave: Antonio Conselheiro. Media. Memoriadiscursiva.

    Desde o aparecimento nos sertes da Bahia, em meados de 1876ii, do peregrino

    cearense Antonio Vicente Mendes Maciel a imprensa soteropolitana demonstrou preocupaoe interesse em relao ao crescente prestgio desse lder religioso junto populao sertaneja.

    Em pouco tempo, o peregrino passaria a ser conhecido pela alcunha de Antonio Conselheiro.

    Duas dcadas aps esses primeiros registros, jornais da capital baiana se articulariam e em

    unssono se posicionariam em relao Campanha militar contra o arraial fundado por

    Antonio Conselheiro no ano de 1893. Defenderam todos, a destruio de Canudos como

    haveria de ficar conhecida a cidadela que resistiu a investida de quatro expedies militares

    entre novembro de 1896 e outubro de 1897.Analisar o processo pelo qual Antonio Conselheiro tornou-se matria de interesse de

    jornais publicados na cidade de Salvador entre os anos de 1876 e 1893 o objetivo principal

    desse artigo. O perodo corresponde ao tempo de peregrinao de Antonio Conselheiro. Nessa

    poca, na Bahia, a maior parte dos jornais pertencia a grupos polticos. Praticava-se,

    geralmente, um jornalismo opinativo, porta-voz de grupos oligrquicos e comprometidos com

    os partidos polticos. Diante desse corpus constitudo pelos diferentes registros sobre

    Antonio Conselheiro publicados nesses jornais buscamos ento identificar de que formaessas notcias contriburam para a constituio de uma memria discursivaiii acerca do

    peregrino e dos seus seguidores. Dessa forma consideramos importante pensar: em que

    medida a memria determina a ordem do enuncivel? (COURTINE, 2006, p. 10).

    Inicialmente, a crescente celebridade de Antonio Conselheiro foi abordada de

    diferentes maneiras pelos jornais soteropolitanos. Em meados de 1893, aps o embate entre o

    squito conselheirista e foras policiais na localidade de Masset evento que desdobraria na

    fundao do arraial uma sucesso de acontecimentos contribui para a homogeneizao do

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    posicionamento dos jornais. No ano de 1895, sucede uma tentativa da Igreja Catlica de

    dissolver o ajuntamento conselheirista. Malsucedida essa iniciativa o arraial fundado por

    Antonio Conselheiro passa a se tornar um incmodo, principalmente pelo grande afluxo de

    pessoas. Aps uma serie de boatos ocorre ento o assdio militar que renderia a mobilizao

    de quatro expedies militares que se sucederam at a destruio do arraial no incio de

    outubro de 1897.

    Durante o perodo que antecede a fundao do arraial o nome de Antonio Conselheiro

    aparece em alguns momentos na imprensa da capital baiana. Por meio dessas matrias eram

    divulgados esteretiposive clichsva respeito da conduta do lder religioso. Ora considerado

    louco, ora acusado de participao em crime na sua terra natal. Entre 1876 e 1893, portanto,

    os jornais publicados na cidade de Salvador repetem e reiteram discursos que propagam afama de Antonio Conselheiro por meio de notcias que eventualmente registram o seu nome

    nas pginas dos jornais.

    No rastro de Antonio Conselheiro

    A ocorrncia mais antiga de notcia publicada na imprensa soteropolitana acerca de

    Antonio Conselheiro aparece em meados de 1876. A priso do missionrio na vila de

    Itapicuru, no serto baiano, repercutiu em alguns jornais da capital.

    Esse episdio foi abordado de maneira distinta pelos diversos rgos da imprensa

    soteropolitana da poca, rendendo espao no Diario da Bahia,Jornal da Bahia, Correio da

    Bahia eDiario de Noticias, entre o final de junho e incio de agosto de 1876.

    O Diario da Bahia, na ocasio um jornal que defendia a poltica liberal contra os

    conservadores no poder, publicou duas notcias a respeito desse episdio. A primeira, datada

    de 29 de junho de 1876, apresenta uma descrio do peregrino e alerta para o seu crescente

    prestgio. Informa sobre a sua priso e a reao de seus seguidores, aos quais atribui o rtulo

    de ignorncia e simplicidade. A nota assevera ainda que Antonio Conselheiro no passa de

    um fantico. Veremos como essas expresses (fantico, ignorncia e simplicidade)

    vo, juntamente com outras, sedimentando uma memria discursiva na qual Antonio

    Conselheiro e seus seguidores sero insistentemente enquadrados no decorrer das duas

    dcadas seguintes.

    Conhecido com este nome, apareceu em nosso serto do norte, h cerca dedois anos, um individuo que se diz chamar-se Antonio Maciel e que nos

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    lugares onde se tem apresentado h exercido grande influncia no espritodas classes populares, servindo-se para isto do seu exterior misteriosocostumes ascticos com que impe ignorncia e simplicidade de nossoscamponses.Deixou crescer a barba e os cabelos, veste tnica de azulo pouco aceiada ealimenta-se muito tenuamente, sendo quase uma mmia.Acompanhado de duas mulheres, que diz serem professas, vive a rezar terose ladainhas e a pregar e dar conselhos s multides que rene onde lhe

    permitem os procos e movendo sentimentos religiosos vai arrebanhando opovo e guiando a seu gosto.Revela-se homem inteligente, mas sem cultura. [] (Diario da Bahia, 29

    jun. 1876. Grifos nossos).

    Nota-se nas expresses destacadas o esforo do jornal em apresentar Antonio

    Conselheiro inicialmente, como um indivduo que tm grande influncia no esprito das

    classes populares. Essa primeira expresso referencial apesar de pouco dizer sobre a pessoa

    de Antonio Conselheiro informa sobre o principal incmodo causado pela sua ao nesse

    momento: a mobilizao da populao pobre do serto. Seguem-se outras expresses, que,

    apesar de no se referirem especificamente pessoa do Conselheiro, acabam por sugerir

    alguns traos de seu carter. Entre outras coisas a notcia registra seu exterior misterioso e

    costumes ascticos com que impe ignorncia e simplicidade de nossos camponses. Tal

    descrio caracteriza o peregrino como um homem incomum, pois dotado de traos de

    personalidade que so discursivizados no jornal como sendo anormais. Essa caracterizao de

    seus traos psicolgicos reforada pela descrio de alguns traos fsicos e da indumentria

    do peregrino. Nesse trecho h tambm uma descrio do visual esqulido de Antonio

    Conselheiro. O que produz um efeito de sentido que o apresenta como uma figura estranha,

    esquisita. Efeito de sentido reforado no/pelo termo mmia, que sugere tambm um aspecto

    monstruoso.

    Nesses termos, os discursos materializados no jornal se constituem como ligados a um

    procedimento de controle, de normalizao. Pois, na medida em que descrevem a condutaincomum e a figura monstruosa de Antonio Conselheiro estabelecem um campo de

    normalidade do qual o peregrino estaria fora. Fora da ordem, Antonio Conselheiro ento

    descrito como uma espcie de monstro moralvi. Inscrito tanto como potencialmente

    perigoso para a sociedade, quanto como uma aberrao pelo menos do ponto de vista

    expresso pelos jornais publicados na capital baiana. Argumento reforado pelo trecho final,

    que sugere uma espcie de dupla inscrio de Antonio Conselheiro: inteligente, mas sem

    cultura. Entre a civilizao e o estado de natureza o indivduo Antonio Conselheiro

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    apresentado como uma ameaa ordem das coisas. Da, a contribuio para uma estratgia

    normalizadora registrada no discurso que circula na imprensa.

    A nota prossegue informando sobre a provenincia de Antonio Conselheiro e sobre

    sua priso na cidade de Itapicuru. As expresses persistem na descrio do peregrino como

    um ser misterioso e investem no levantamento de suspeitas em relao a sua conduta. Sem

    indicar os motivos pelos quais a polcia teria efetuado a priso de Conselheiro, a notcia do

    Diario da Bahiaespecula que ele seja um grande hipcrita, um tartufoviide nova espcie.

    Expresses que insinuam falsidade, hipocrisia, charlatanismo. A nota encerra ainda a suspeita

    de que Antonio Conselheiro no passa de um fantico. Quanto a esse ltimo termo,

    aplicado para designar uma pessoa que defende com ardor uma determinada doutrina ou que

    cr estar inspirado pela divindade, ser, no decorrer dos anos, insistentemente associado figura de Antonio Conselheiro e de seus seguidores e justificar a perseguio que culminar

    na campanha militar de 1897.

    Entre acusaes de hipocrisia, tartufice e fanatismo que no implicavam legalmente

    uma conduta criminosa a notcia publicada noDiario da Bahiadeixa para a polcia baiana a

    resposta da questo sobre se Antonio Conselheiro Ser um criminoso?. Entretanto, com

    essa questo em aberto a notcia analisada parece sugerir que o perigo apresentado pela figura

    de Antonio Conselheiro no seria o mesmo de um bandido, mas sim a de um fantico,transtornado. Ou seja, mais importante do que teria feito o Conselheiro, era o que ele seria

    capaz de fazer, afetado pelo fanatismo e potencializado pelo seu crescente prestigio junto s

    classes populares sertanejas.

    Na semana seguinte, o Diario de Noticiasviii informa sobre a chegada de Antonio

    Conselheiro na capital baiana. A notcia adiciona uma informao a respeito da atuao do

    peregrino, que pregava sermes de sua lavra; e conclui, de maneira espirituosa, explicando

    o suposto motivo da priso.Priso de um missionrio.Entre soldados da policia atravessaram hontem as ruas desta cidade, vindosde Alagoinhas, Antonio Conselheiro, o Santo, e quatro dos seus aclitos,

    presos ultimamente em Itapicuru.Tocado da luz divina, pregava elle aos pobres tabareos uns sermes de sualavra, cujos fins no abonavam muito a sua boa f para com seus irmos emCristo.Tanto deram na vista suas misses, que a policia convidou-o a vir prega-losaos presos, da casa de deteno. (Diario de Noticias, 06 julho de 1876.Grifos nossos).

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    As expresses destacadas apontam para alguns traos da conduta atribuda a Antonio

    Conselheiro e para detalhes da sua priso registrados pelo jornal. J no ttulo, o termo

    missionrio traz implicaes que se desdobram no decorrer da curta notcia. Com um leve

    tom de ironia o texto descreve a conduta do missionrio a partir de um vocabulrio

    relacionado a prticas religiosas, que no seriam da competncia do peregrino. A expresso:

    tocado da luz divina, remete notcia publicada anteriormente pelo Dirio da Bahia.

    Sugere, por um lado, impostura do peregrino e, por outro, ao fanatismo da sua prtica. Por

    sua vez, pobres tabareos atribui ingenuidade aos adeptos do Conselheiro. Este aparece

    como santo e seus seguidores como aclitos. O termo aclito, sinnimo de ajudante /

    assistente, designa tambm uma das ordens menores, na Igreja Catlica, que d o poder de

    servir ao subdicono na missa, acender os crios, preparar e oferecer o vinho e a gua. Outroindcio da conduta religiosa de Antonio Conselheiro aparece na meno aos sermes de sua

    lavra. Assim, a nota em questo atravessada por uma estratgia de associao da figura de

    Antonio Conselheiro a um indivduo que se apropriava indevidamente das funes sagradas

    atribudas aos sacerdotes da Igreja. No conjunto do texto, as palavras: santo, aclito,

    missionrio, alm do carter da conduta, insinuam a falsidade das atitudes do pregador leigo

    e indicam a quebra do monoplio da palavra sagrada, que pertenceria de direito aos sacerdotes

    catlicosix

    .Ouvidas por um nmero crescente de sertanejos, as palavras de Antonio Conselheiro

    incomodavam as autoridades e membros poderosos da sociedade e do clero catlico. Nos

    jornais de Salvador, materializam-se ento discursos que se encontram dispersos em setores

    da sociedade baiana. A esse propsito se cristaliza a atribuio de fanatismo figura de

    Antonio Conselheiro. Porm, em outro momento, emergir um discurso baseado na

    patologizao do movimento conselheirista. nesse sentido que entra em circulao discursos

    que consistem no enquadramento psiquitrico da conduta do peregrino. Discursos queassociam loucura e crime, mas acabam por enfatizar um ou outro, atribuindo um carter

    perigoso ou inofensivo conduta de Antonio Conselheiro.

    Em notcias publicadas no dia 07 de julho de 1876, noJornal da Bahia eCorreio da

    Bahia,ainda por ocasio da passagem de Antonio Conselheiro como prisioneiro pela capital

    baiana, verificamos a atribuio de fanatismo associada criminalizao da conduta do

    peregrino. Nessa direo, o Jornal da Bahia, rgo do partido conservador e, na ocasio,

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    aliado do governo, sugere que o chefe de polcia deve ser considerado digno de louvor pela

    importante priso que acaba de realizar.

    [] Esse indivduo [Antonio Conselheiro] conseguiu insinuar-se no nimoda populao e adquiriu fanticos adeptos pelas doutrinas supersticiosas quepregava.S. Exa. Revdma, o sr. vigrio capitular, requisitou ao sr. dr. Chefe da Polciaa priso deste hipcrita, por haver as mais fundadas suspeitas de ser ele umdos clebres foragidos do terrvel morticnio que deu-se no Cear emnovembro de 1872 e cuja priso foi recomendada pelo dr. Chefe de Polciadaquela provincia. (Jornal da Bahia, 07 jul. 1876. Grifos nossos).

    A notcia persiste na caracterizao do peregrino como um indivduo que atribui a si

    mesmo uma santidade. H, por fim, a repetio da expresso hipcrita, que j havia

    aparecido na notcia publicada no Diario da Bahia, porta voz da oposio liberal, em 29 de

    junho de 1876. Destacamos ainda a expresso fanticos adeptos, que se refere aos

    seguidores de doutrinas supersticiosas. Essa expresso remete, assim como ocorre com a

    descrio psicolgica feita do Conselheiro, ao lugar da falta de razo, da loucura, do anormal.

    Logo, os seguidores de Antonio Conselheiro so, assim como ele, segregados por meio da

    suspeita de uma conduta que considerada anormal.

    No Correio da Bahia, a notcia adverte para o perigo que o Conselheiro representa ao

    fazer uma referncia ao movimento dosMuckersx

    ocorrido no Rio Grande do Sul entre 1868 e1874. Podemos perceber, aqui, a circulao de uma memria acerca de um episdio de

    mobilizao das classes populares em torno de uma liderana religiosa que resultou na

    interveno armada por parte das autoridades preocupadas em manter uma determinada

    ordem.

    [] Quem no se tiver esquecido do clebre Maurer, que como AntonioConselheiro apareceu dizendo-se Messias, quem lembrar-se de que estquente o sangue das vtimas de que foi causa este perturbador da ordem

    pblica na provncia do Rio Grande do Sul, certamente no poder deixar dereconhecer o acerto da providncia tomada pelo digno chefe de polcia destaProvincia. (Correio da Bahia, 07 jul. 1876. Grifos nossos).

    Observamos tambm um processo de sedimentao da memria discursiva, baseada

    at aqui nos registros da imprensa da capital baiana. Como temos visto, os jornais publicavam

    ttulos, expresses, falas e dizeres, que contribuam atravs da repetio para a

    cristalizao de um discurso sobre o lder sertanejo e seus seguidores; e serviam,

    consequentemente, como justificativa para a sua perseguio. Tais repeties esto

    relacionadas a uma memria discursiva que comea a funcionar como um repositrio de

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    lugares-comuns e esteretipos, atribudos ao peregrino e seus seguidores e revelam a

    circulao de um discurso anticonselheirista por parte da imprensa baiana.

    Esse discurso anticonselheirista mantm em distncia os dizeres, as falas do peregrino

    cearense e de seus seguidores. As menes a esse possvel discurso conselheirista nos chegam

    atravs desses meios de comunicao que registram, e fazem questo de assumir, uma postura

    discriminatria em relao ao Conselheiro. As declaraes de Antonio Conselheiro so

    expostas geralmente para conformar um desarranjo do qual o lder produto. Como podemos

    observar na seguinte transcrio de uma nota publicada originalmente na provncia de

    Pernambuco.

    L-se no Jornal do Recife de 29 de julho:

    Sobre este homem, de quem os nossos leitores j tiveram noticia quandopor aqui passou dizem as folhas do Cear que, sendo interrogado pelo dr.chefe de polcia dalli, declarou ser natural de Quixeramobim, para ondedesejava ser ardentemente remetido. Disse que sendo casado e no podendoviver em harmonia com a mulher, resolvera seguir uma vida de martyrio, e oseu fim nico era aconselhar o povo, tendo j erguido muitas igrejas econstrudo alguns cemitrios".J fora remetido para Quixeramobim. (Diario da Bahia, 02 ago 1876. Grifonosso).

    Alm de registrar a circulao do nome de Antonio Conselheiro na imprensa de outros

    estados, a nota, republicada noDiario da Bahia, acrescenta outras informaes acerca do lderreligioso. nesse sentido que a passagem destacada expe um aspecto da vida do peregrino.

    Aspecto revelado pelo prprio indivduo que, interrogado pela polcia, tenta esclarecer sua

    conduta. Elemento que revela o funcionamento da maquinaria penal, que exige do ru uma

    confisso, um exame de conscincia, uma explicao de si, um esclarecimento daquilo que se

    (FOUCAULT, 2008, p. 2). Essas informaes, fornecidas pelo prprio Conselheiro,

    compem a narrativa que tem por base a trajetria conturbada do lder religioso e que mais

    adiante explicar, teleologicamente, a sua vida peregrina e sua conduta religiosa.Ao chegar sua terra natal, a cidade de Quixeramobim, Antonio Conselheiro foi posto

    em liberdade aps ser reconhecida a improcedncia das acusaes que pesavam contra ele. No

    mesmo ano de 1876, ele reaparece nos sertes da Bahia, onde discpulos o aguardavam, e

    volta s suas atividades de construtor de igrejas, capelas, muros de cemitrios e audes. A

    regio de Itapicuru rea de atuao de Antonio Conselheiro at meados de 1893

    apresentava, no sculo XIX:

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    [] uma grande diversidade social e econmica. Ao lado das antigas aldeiasde franciscanos e jesutas, conviviam engenhos de acar estrategicamentelocalizados ao longo dos rios e riachos, fazendas de gado de diferentestamanhos, engenhocas de rapadura, casas de farinha e uma srie de rocinhasde subsistncia. O trabalho nas diversas propriedades, posses e tambm osofcios especializados eram realizados, ao menos at meados do sculo, porlivres, libertos e tambm escravos. (DANTAS, 2011, p. 317).

    Nas ltimas dcadas do sculo XIX ocorrera um aumento do controle das reas mais

    frteis por parte dos grandes fazendeiros. O que contribuiu para tornar mais rdua a vida da

    populao pobre dessa regio (DANTAS, 2011, p. 352-6). diante dessa dinmica, marcada

    pelo agravamento das dificuldades enfrentadas pela populao pobre, que vai se desenrolar a

    atuao de Antonio Conselheiro.

    O choque de Masset e a fundao do Arraial do Bello Monte

    Instalada a Repblica no Brasil no ano de 1889, o conflito entre as autoridades

    pblicas e Antonio Conselheiro agravado. O peregrino continuou reparando e construindo

    igrejas, capelas, muros de cemitrios e audes e tendo, a cada dia, mais seguidores e

    consolidando a sua liderana religiosa (VILLA, 1997, p.52). Entretanto, algumas medidas

    implantadas pelo regime republicano, como a instituio do casamento civil e a criao de

    novos impostos contriburam para que o lder religioso se pronunciasse contra a Repblica.

    A atitude do peregrino repercute na populao menos favorecida. Fossem livres, ex-

    escravos e mesmo ndios, essa populao demonstrava disposio a reagir se necessrio

    com violncia contra situaes que lhes eram desfavorveis ou ameaadoras. Desde os

    ltimos momentos do Imprio, um quadro de problemas era enfrentado pela populao do

    serto baiano: secas; concentrao fundiria; dificuldades ligadas questo de mo de obra

    (DANTAS, 2011, p. 363). Diante desse quadro, agravado pela cobrana de impostos, emmeados de 1893, o peregrino volta a ser notcia nos jornais baianos. O motivo? O embate

    entre seus seguidores e a fora policial baiana em Masset, localidade de Tucano. A

    destruio e incndio das tabuletas contendo leis e oramentos municipais foram imputados

    aos seguidores do peregrino e legitimaram, por alegao de distrbio da ordem, a remessa da

    fora policial.

    Do embate com a polcia baiana resultou o deslocamento do lder sertanejo e grande

    nmero de adeptos em direo a fazenda Canudos, onde se fixaram no dia de Santo Antonio,

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    13 de junho, rebatizando o lugar com o nome de Bello Monte. Desse momento em diante, o

    arraial passou a constituir preocupao dos jornais baianos [e os] correspondentes

    interioranos frequentemente enviavam suas notcias, muitas vezes transformadas em apelos ao

    governo para adotar providncias (CALASANS, 1997, p. 17). O teor das correspondncias

    demonstrava o temor em relao ao crescimento do arraial, onde as autoridades republicanas

    no eram respeitadas.

    O apelo dos correspondentes interioranos registra em suas formulaes a ativao de

    uma memria discursiva acerca de Antonio Conselheiro e seus seguidores. Numa srie de

    artigos enviados ao Diario de Notcias pelo correspondente localizado em Monte Santo

    verifica-se o empenho em difundir um discurso anticonselheirista, rotulando o peregrino

    como fantico, subversivo, monarquista, pernicioso e cruel, e exigindo urgncia dogoverno no emprego da fora. o caso do artigo intitulado Graves acontecimentos

    publicado em 31 de maio de 1893, do qual, a seguir, transcrevemos parte substancial:

    O clebre fantico, conhecido, entre as turbas que o acompanham, porConselheiro, tem levantado uma cruzada contra o pagamento de impostos,incutindo no nimo dos seus ouvintes as mais subversivas teorias.Rodeado de grande massa popular, vai aquele individuo se constituindo oterror das autoridades, que no dispem de meios para o cumprimento da lei.Dizem-nos que h poucos dias deu-se nas imediaes do Bom Conselho um

    encontro entre cerca de 50 soldados de policia e mil e tantos adeptos doConselheiro, sendo os soldados completamente derrotados.Para que se avalie a gravidade desse acontecimento, basta-nos observar queseguem brevemente para o lugar do conflito 100 praas de linha.[] Se as informaes que temos so efetivamente exatas, urge que ogoverno empregue toda a energia, a fim de evitarem-se cenas de maiorgravidade.O Conselheiro um indivduo perigoso, um elemento de desordem, desdeo tempo do imprio; dispe de grande prestgio entre as populaes, s quaisilude com prticas religiosas. [] (Diario de Notcias, 31 maio 1893. Grifosnossos).

    As expresses destacadas so incisivas na caracterizao de Antonio Conselheiro

    como perigo para a ordem estabelecida. O texto retoma a atribuio de fanatismo e reconhece

    a celebridade do Conselheiro, visvel na grande massa popular que o acompanha. A notcia

    acrescenta elementos que propagam o medo. Nesse sentido, as expresses terror das

    autoridades, indivduo perigoso, elemento de desordem contribuem para assinalar o

    peregrino como um criminoso. O correspondente indica que desde o tempo do imprio a

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    conduta do Conselheiro j era considerada perniciosa pelas autoridades e acusa o peregrino de

    liderar uma cruzada contra o pagamento de impostos.

    Diferentemente do Diario de Notcias, o Jornal de Notcias publica uma srie de

    correspondncias que consideram Antonio Conselheiro um indivduo inofensivo. Uma das

    cartas assinada Obscuris Civise publicada em 10 de junho com o ttulo: O clebre fantico

    Antonio Conselheiro informa sobre o avultado nmero de pessoas que seguem o

    missionrio sui generis. Contra os relatos divulgados no Diario de Noticias, o missivista

    defende que o Conselheiro um homem altrusta, abnegado e extremamente humanitrio.

    Entretanto, corrobora as manifestaes anteriores ao considerar o Conselheiro um fantico.

    S. Luzia, 3 de junho de 1893.

    Estas linhas eu escrevo em parte como retificao e em parte comoaditamento a um artigo ultimamente publicado pela ilustrada redao doDiario de Noticias acerca dos tristes acontecimentos que se estodesdobrando em diversas localidades do norte deste estado. A fim de seevitarem brbaros morticnios em toda a zona aludida, imprescindvel quesobre esses fatos se projete em toda sua intensidade a luz da verdade. []Cerca de trs mil pessoas, entre homens, mulheres e crianas, formamatualmente o squito, que cada dia se engrossa, do missionriosui generis.[] No impele aos romeiros nenhum pensamento poltico, comoimpatrioticamente informaram; domina-os, sim, o fanatismo religioso, o piorde todos os fanatismos. Chegam a atribuir ao Conselheiroo dom do milagre.[] Pelo que me tm informado a respeito do Conselheiro, estoucompenetrado de que ele no um perverso, um homem de maus instintos;, pelo contrrio, um homem em extremo humanitrio todo abnegao,todo altrusmo.Tem sido ultimamente causa indireta de grandes males, verdade; mas suasintenes so boas. Traz iludida grande parte do povo, porm, ele prprio o

    primeiro dupe; tanto assim que se entrega a jejuns contnuos e rigorosos, amaceraes e s corresponde s saudaes de qualquer pessoa, se elas foremexpressas pelo clssico Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.O Conselheiro , nada mais nada menos, do que um doente de monomaniareligiosa. []. Obscuris Civis (Jornal de Noticias 10 de junho de 1893.Grifos nossos)

    Das expresses destacadas, as que se referem diretamente figura do Conselheiro

    revelam uma abordagem parcialmente diferente das manifestaes anteriores. Entretanto, o

    cidado de Santa Luzia emprega, da mesma forma que nas outras manifestaes vistas at

    aqui, o termo fanatismo para caracterizar a ao do peregrino. Ressalva ainda que o

    fanatismo do Conselheiro o pior de todos, pois se trata de fanatismo religioso. Porm,

    assevera que o lder religioso no um perverso, mas sim um homem em extremo

    humanitrio. Sugere tambm que Antonio Conselheiro no passa de um dupe termo que

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    pode ser traduzido do francs, por joguete , pois, alm de iludir grande parte do povo, se

    engana ao entregar-se a penitncias contnuas.

    O mais curioso na manifestao desse correspondente sertanejo o emprego de um

    vocabulrio psiquitrico na descrio de Antonio Conselheiro, que diagnosticado como

    doente de monomania religiosa. Trao do discurso de patologizao que encontraria seu

    clmax na interpretao do mdico psiquiatra Raimundo Nina Rodriguesxi. Definida como

    uma espcie de alienao mental, em que uma ideia fixa parece absorver e determinar o

    pensamento e a ao do indivduo, a monomania se insere aqui nesse discurso de

    patologizao da conduta de Antonio Conselheiro.

    Em carta publicada na edio de 14 de junho de 1893 do Jornal de Noticias, temos

    outra manifestao que se refere mania religiosa da qual Antonio Conselheiro seriadevoto. Trata-se de uma carta enviada por Durval V. Aguiar, coronel da policia baiana, que no

    incio dos anos 1880 j havia dado notcia de Antonio Conselheiro para o jornal Diario da

    Bahiaxii

    Amigo sr. redator. J tendo uma vez me referido, na pgina 76, de umaobscura obra que corre a imprensa, sob o ttulo de Descries Prticas da

    Bahia, ao indivduo conhecido por Antonio Conselheiro, do qual se temocupado ultimamente a imprensa, e, j pela segunda vez, o governo daBahia, que aqui j o mandou buscar, h cerca de 10 anos, sou obrigado a vir

    imprensa declarar que esse indivduo, longe de ser um facnora perigoso, apenas um inofensivo ente devotado a uma mania religiosa h cerca de 16anos em que vegeta pelos sertes do Norte, rezando nas igrejas e fazendo

    prdicas, que so assistidas pelas populaes inteiras das localidades em quese acha, onde sempre procura prestar algum servio na edificao ereedificao de templos e cemitrios.[] verdade que o Conselheiro, nas suas peregrinaes, anda acompanhado

    por enorme squito; mas essa gente, tambm inofensiva, s se assanha nadefesa do Conselheiro, o qual mantm as mesmas honras, as mesmas

    prticas e o mesmo acompanhamento de que se rodeiam os missionrios,pois, como estes, aconselha o casamento, os batizados, as oraes e os bons

    costumes, se bem que em linguagem menos correta.[]O crime de hoje o mesmo de outrora; por cuja razo parece mais humano,mais prudente e mais patritico, que em lugar de massacrar esses grupos defanticos, plvora de bala, se lhe envie um virtuoso e inteligentemissionrio para os conter, e boas doutrinas para os chamar ao trabalho.Fora disto ensaguentar-se inutilmente o serto e prevenir-se o todescuidoso esprito de nosso sertanejo para uma rancorosa resistncia, com aqual a poltica, de certo, viria em breve especular.Sou, com maior estima e considerao, vosso patrcio e amigo Durval V.Aguiar. (Jornal de Noticias 14 junho de 1893. Grifos nossos).

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    Da correspondncia, destacamos as expresses clebre fantico e grupos de

    fanticos, termos comuns entre os que consideravam necessria a ao violenta (caso das

    manifestaes publicadas noDiario de Noticias) e os que defendiam medidas pacficas a fim

    de dispersar a multido de seguidores do Conselheiro. O correspondente argumenta ento que,

    longe de ser um facnora perigoso, o peregrino somente um incuo ente devotado a uma

    mania religiosa. E se posiciona contra a soluo armada como desfecho da situao. Sugere

    ento o envio de um virtuoso e inteligente missionrio para conter [] esses grupos de

    fanticos.

    O envio de uma misso religiosa tambm sugerido em outra carta publicada no

    Jornal de Noticias, em 16 de junho de 1893. O missivista apela para que sejam adotados

    meios brandos para restituir o povo que acompanha o Conselheiro ao seio de suasfamlias. E argumenta em defesa do carter inofensivo do peregrino cearense, com o qual

    teria entabulado conversa quando de passagem pela localidade de Bom Jesus.

    Sr. redator do Jornal de NoticiasTenho acompanhado a questo que atualmente se tem agitado na imprensarelativamente a Antonio Conselheiro e julguei dar a minha opinio.Conheo-o pessoalmente.[]Em suas praticas, s aconselha o bem do povo; e se este o acompanha

    porque quer, disto fui circunstanciadamente informado.Em sua peregrinao, s tem feito benefcios, levantado templos ecemitrios, dos quais conheo um lindo e elegante templo no Bom Jesus,outro no Mocambo, outro na Rainha dos Anjos, e um cemitrio na vila daRibeira do Pau Grande.Como, pois, ofensivo este cidado?A quem j fez ele mal?Reputo o cnego Agripino Borges capaz de retirar o povo, que o acompanha,ao seio de suas famlias.O Conselheiro aconselha ao povo para no abandonar seus lares por causadele; o povo recalcitra esta ordem e por fora do fanatismo o acompanha. um homem honrado, tanto assim que se ele quisesse ser rico de um dia

    para o outro o seria; mas s aceita alimentao e nada mais.O governo bem pode retirar este povo, em beneficio de tantas famliasabandonadas, por meios brandos, e, como j disse, reputo muito capaz ocnego Agripino Borges.Seu constante leitor Maximiniano Jos Ribeiro (Jornal de Noticias, 16

    junho de 1893).

    No exemplo, notamos a circulao de uma nuance a respeito do peregrino. Ele

    apresentado como um homem inofensivo e, at mesmo, honrado. Entretanto, so seus

    seguidores, a quem o correspondente atribui fanatismo, que abandonam seus lares e

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    acompanham o missionrio. Nesse caso, verifica-se uma espcie de polarizao dos discursos

    acerca de Antonio Conselheiro: ora apresentado como um subversivo, um perigo sociedade;

    ora apresentado como um homem honrado e inofensivo. Mas, em todos esses discursos, existe

    algo que permanece: a imagem de um homem com uma conduta incomum, capaz de agregar

    pessoas, de reunir ao seu redor uma multido. H, portanto, a configurao e reconfigurao

    de diferentes discursos que circulam na sociedade nesses tempos que vo dos ltimos

    momentos do Imprio aos primeiros anos da Repblica no Brasil e que mantm, em diferentes

    nveis, uma relao com uma memria discursiva, segundo a qual todo aquele que no

    sendo autorizado pelas instituies mantenedoras da ordem consegue agregar em torno de si

    um grande nmero de seguidores deve ser perseguido e combatido pelo Estado.

    Referncias

    AMOSSY, Ruth y PIERROT, Anne Herschberg. Estereotipos y Clichs. Buenos Aires:Editorial Universitaria de Buenos Aires, 2001.

    CALASANS, Jos. Cartografia de Canudos. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo,EGBA, 1997.

    CARVALHO, Aloysio de. A Imprensa na Bahia em 100 anos. (1923) in: TAVARES, L. G.

    P. (org.)Apontamentos para a histria da imprensa na Bahia.2005.CORREIO DA BAHIA. 07 JUL. 1876.

    COURTINE, Jean-Jacques. O tecido da memria: algumas perspectivas de trabalho histriconas cincias da linguagem. Trad. Roberto Leiser Baronas & Nilton Milanez.Polifonia.CuiabEdUFMT v. 12 n.2. p. 1-13. 2006.

    DANTAS, Monica Duarte. O Serto do Conselheiro: Dinmica social e transformaeseconmicas na comarca de Itapicuru (Sculo XIX) in: NEVES, E. F. (Org.) Os Sertes da

    Bahia.Salvador: Ed. Arcdia. 2011.

    DIARIO DA BAHIA. 02 AGO 1876; 29 JUN. 1876.

    DIARIO DE NOTICIAS. 06 JULHO DE 1876; 31 MAIO 1893.FOUCAULT, Michel. A evoluo da noo de indivduo perigoso' na Psiquiatria Legal dosculo XIX. In: MOTTA, M. B. (org.). Ditos e escritos V: tica, sexualidade, poltica.Trad.de Elisa Monteiro e Ins A. D. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense, pp.1-25. 2008.

    JORNAL DA BAHIA. 07 JUL. 1876.

    JORNAL DE NOTICIAS. 10, 14 e 16 DE JUNHO DE 1893.

    MOLIRE. O Tartufo; Escola de mulheres; O Burgus fidalgo. Rio de Janeiro: AbrilCultural, 1983.

    RODRIGUES, R. Nina.As Coletividades Anormais.Braslia, Senado Federal, 2006.

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    VILLA, Marco Antonio. Canudos o povo da terra.2 ed. So Paulo: tica. 1997.

    WANDERLEI, Leandro Aquino. A romanizao catlica no serto de canudos.Vitria daConquista. 2008 (mimeo)

    NOTAS

    iEste texto apresenta parte da dissertao de mestrado intitulada Memria e Discurso nas narrativas sobre aguerra de Canudos, defendida no mbito do Programa de Ps-graduao Memria: Linguagem e Sociedade,da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. A pesquisa contou com bolsa da Fundao de Apoio a Pesquisada Bahia (Fapesb) e foi orientada pela prof. Dr. Edvania Gomes da Silva.iiProvavelmente a primeira notcia impressa sobre Antonio Conselheiro apareceu em 22 de novembro de 1874no semanrio sergipano O Rabudo.iii As reflexes de Courtine (2006) acerca da relao entre memria e discurso so sugestivas. O autor expe essa

    articulao assinalando que a linguagem o tecido da memria (COURTINE, 2006, p.9). Se levarmos emconta que a abordagem feita pelos jornais baianos acerca de Antonio Conselheiro e Canudos registrou e fezcircular uma linguagem na qual o termo fanatismo predomina, podemos identificar a indcios da constituiode uma memria discursiva.ivPara uma definio de esteretipo recorremos a Ruth Amossy e Anne Pierrot (2001). Conforme as autoras, osesteretipos considerados como um procedimento mental esquematizam e categorizam, so indispensveis

    para a cognio, ainda quando conduzem a uma simplificao e generalizao s vezes excessivas (2001, p. 33.Traduo nossa). O conceito de esteretipo permite analisar as relaes do sujeito com o outro e consigo mesmo,ou relaes entre grupos e seus diferentes sujeitos. O esteretipo tambm apresentado como uma representaosimplificada, associada a uma palavra. dessa forma que entendemos o termo fanatismo como resultado de umaestereotipizao de Conselheiro e de seus seguidores. Processo to forte que perduraria por anos nasinterpretaes sobre o acontecimento Canudos, inclusive na historiografia. Tal processo indicava tambm uma

    zona de incompreenso em relao aos sertanejos. Em 28 de setembro de 1897, poucos dias antes do assalto finalao arraial sertanejo, Euclides da Cunha sintetizou essa relao com a seguinte expresso, registrada em uma desuas reportagens enviadas ao jornal O Estado de S. Paulo: Incompreensvel e brbaro inimigo (CUNHA, 2003,

    p. 104).v Utilizamos o termo clich para compreender a repetio massiva de impresses a respeito do Conselheiro,

    pois, segundo Amossy e Pierrot (2001), alm de revelar um procedimento tipogrfico, o termo sugere tambm repetio. notvel a repetio de termos como fantico e fanatismo quando os jornais analisados fazemreferncia a Antonio Conselheiro. Essa operao de repetio contribuiu sobremaneira para cristalizao dediscursos acerca de Antonio Conselheiro, de seus seguidores e do arraial de Canudos.vi Foucault (2010a, p. 64, 69 e 78) observar que os monstros morais so construdos a partir das vrias instnciasdisciplinares que visam normalizar a populao.Todos aqueles que escapam ao normal visto como monstro

    potencial.

    vii8Escrita em 1664, por Molire, a comdia O Tartufodespertou a hostilidade de autoridades religiosas e atmesmo a oposio do rei. O personagem que d nome pea era um falso devoto que havia conquistado aconfiana de um rico burgus, tornando-se uma espcie de diretor espiritual desse ltimo. O nome Tartufo j

    parecia significar, antes da pea, mentiroso e charlato. Tambm se associa esse nome a palavra truffer(enganar). Entretanto, a fama alcanada pela comdia de Molire que impulsiona a circulao do termo,empregado como sinnimo de impostor, hipcrita, enganador ou, mais especificamente, falso devoto(MOLIRE, 1983).viiiFundado em 1875, o Diario de Noticias considerado criador da imprensa barata, da imprensa popular noBrasil (CARVALHO, 1923, p.51). Outra caracterstica desse rgo, conforme Aloysio de Carvalho seria oalheamento em relao s disputas entre liberais e conservadores em torno da poltica imperial na Bahia.

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    ixPor volta da dcada de 1870 a Igreja Catlica no Brasil, orientada pela Santa S, ir combater um quadroreligioso do catolicismo popular marcadamente heterodoxo, leigo, e privado. Tal movimento inscreve-se noque ficou conhecido por romanizao catlica, e tem por objetivo moldar o catolicismo brasileiro conforme omodelo romano expresso pelo Conclio Vaticano I 1869-70 presidido pelo Papa Pio IX. (WANDERLEI,

    2008, p.5)xMovimento de inspirao anabatista e liderado pelo jovem casal Jacobina Mentz e Joo Jorge Maurer na antigacolnia alem de So Leopoldo. Em 1874, depois que incndios e outros crimes foram atribudos a eles, a polciasolicitou o apoio do exrcito e, juntos, perseguiram os colonos envolvidos, que na poca eram cerca 150 pessoas.O conflito com aqueles que apoiavam o movimento iniciou em 25 de junho de 1874 e foi chamado de Revoltados Muckers, o ataque final do exrcito matou todos aqueles que no haviam conseguido fugir, inclusive a

    prpria Jacobina. Cf. REVISTA DE HISTRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL(http://www.revistadehistoria.com.br/secao/almanaque/almanaque-junho-2011).xi A loucura epidmica de Canudos, publicado na Revista Brasileira, III Ano, tomo XII, pg. 69, de 01 denovembro de 1897 e nos Annales mdico-psychologiques de Paris, 1898, maio-junho; A loucura das multides:nova contribuio ao estudo das loucuras epidmicas no Brasil, publicado nos Annales mdico-psychologiques,

    janeiro-agosto de 1901(RODRIGUES. 2006, p. 13-4).xiiAutor das Descries prticas da Provncia da Bahia.

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    Sobre o Autor

    Joaquim Antonio de Novais Filho - Mestre em Memria:Linguagem e Sociedade (2012); graduado em Histria -Licenciatura Plena - (2004); e especialista em Teoria eHistria Literria (2010) pela Universidade Estadual doSudoeste da Bahia. (UESB).

    E-mail: [email protected]