Antropologia Ciborgue Zelia Lopes 2014

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FACULDADES INTEGRADAS HÉLIO ALONSO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL Zélia Maria de Melo Lopes ANTROPOLOGIA CIBORGUE: A ONIPRESENÇA DA TECNOLOGIA E A CONDIÇÃO HUMANA NO CIBERESPAÇO Rio de Janeiro 2014

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O presente trabalho pretende mostrar a presença absoluta da tecnologia nas nossas vidas e em que situações nos colocamos a partir de suas convergências. A condição humana - influenciada por informações, condicionada a reflexões e transformada a partir da influência das máquinas – será a abordagem principal desse estudo.

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FACULDADES INTEGRADAS HÉLIO ALONSO

CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Zélia Maria de Melo Lopes

ANTROPOLOGIA CIBORGUE:

A ONIPRESENÇA DA TECNOLOGIA

E A CONDIÇÃO HUMANA NO CIBERESPAÇO

Rio de Janeiro

2014

Page 2: Antropologia Ciborgue Zelia Lopes 2014

Zélia Maria de Melo Lopes

ANTROPOLOGIA CIBORGUE:

A ONIPRESENÇA DA TECNOLOGIA

E A CONDIÇÃO HUMANA NO CIBERESPAÇO

Monografia apresentada ao Curso de

Graduação em Publicidade e Propaganda das

Faculdades Integradas Hélio Alonso, como

requisito parcial para a obtenção do título de

Bacharel em Publicidade e Propaganda sob a

orientação do Professor Luiz Agner.

Rio de Janeiro

2014

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Lopes, Zélia Maria de Melo.

Antropologia ciborgue: a onipresença da tecnologia e a condição humana no ciberespaço / Zélia Maria de Melo Lopes.- Rio de Janeiro: FACHA, 2014. 47 f.

Orientador: Luiz Carlos Agner. Monografia (Graduação em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda) FACHA, 2014.

1. 1. Antropologia ciborgue. 2. Pós-humanismo. 3. Cibercultura. 4. Internet. 5. Computação vestível I. Agner, Luiz Carlos. II. FACHA. III. Título.

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ANTROPOLOGIA CIBORGUE:

A ONIPRESENÇA DA TECNOLOGIA

E A CONDIÇÃO HUMANA NO CIBERESPAÇO

Zélia Maria de Melo Lopes

Monografia apresentada ao Curso de

Graduação em Publicidade e Propaganda das

Faculdades Integradas Hélio Alonso, como

requisito parcial para obtenção do título de

Bacharel em Publicidade e Propaganda,

submetida à aprovação da seguinte Banca

Examinadora:

__________________________________

Prof. Orientador

__________________________________

Membro da Banca

__________________________________

Membro da Banca

Data da Defesa: ________

Nota da Defesa: ________

Rio de Janeiro

2014

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Agradeço a todos que me incentivaram a

concluir o curso após uma longa jornada. Por

vocês aprendi o valor do tempo, das etapas,

das pausas e dos esforços para seguir em

frente, em busca de aprendizados eternos e

transformadores.

Page 6: Antropologia Ciborgue Zelia Lopes 2014

Dedico esse trabalho ao meu pai, que me

estimulou a conhecer o irreconhecível e a

desvendar fantasias com sagacidade,

profundidade e alegria.

Page 7: Antropologia Ciborgue Zelia Lopes 2014

“A maquina nao e uma coisa a ser animada,

idolatrada e dominada. A maquina coincide

conosco, com nossos processos; ela e um

aspecto de nossa corporificação. Podemos ser

responsáveis pelas maquinas; elas nao nos

dominam ou nos ameacam. Nos somos

responsaveis pelas fronteiras; nos somos essas

fronteiras.” Donna Haraway

Page 8: Antropologia Ciborgue Zelia Lopes 2014

RESUMO

“É somente por meio das ciências da vida que se pode mudar radicalmente a

qualidade desta”. Diante desta afirmação do escritor inglês Aldoux Huxley, vamos entender a

tecnologia sob uma abordagem humana. Entenderemos o papel do homem ao ser influenciado

pela tecnologia em sua vida, como ele formulou teorias e reformulou hábitos para se

transformar através das máquinas. Vamos estudar conceitos como Antropologia Ciborgue,

Pós-humanismo, cibernética, ciberespaço, cibercultura, internet das coisas e computação

vestível e de que forma eles se aplicam sob a perspectiva da coexistência do ser humano com

as máquinas. De que forma a evolução da tecnologia permitiu o nascimento de um ser híbrido,

consciente do seu poder sobre as máquinas e de sua fragilidade perante elas. Entenderemos

como as novas tecnologias estão afetando positiva e negativamente nossos cérebros e nossos

relacionamentos. De que forma a indústria e o Estado inserem a tecnologia nos contextos do

capitalismo para dominar a sociedade digital – vamos entender por que os dados que circulam

na rede são o que há de mais valioso para a indústria do consumo no momento. Por fim,

apresentaremos como exemplo alguns dos aparatos tecnológicos que nos seduzem, facilitam e

sublimam nosso tempo e espaço, todos os dias.

Palavras-chave: Antropologia ciborgue. Pós-humanismo. Cibercultura. Ciberespaço. Internet

das coisas. Computação vestível.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Imagem n° 1 – Capa do livro “Admiravel Mundo Novo”, de Aldoux Huxley................ pág. 14

Imagem nº 2 – Capa revista “Superman”.

Fonte: http://www.dialbforblog.com/archives/305/......................................................... pág. 16

Imagem nº 3 – Imagem Apocalipse zumbi. Fonte: http://www.9gag.com ..................... pág. 25

Imagem nº 4 – Jovens interagindo com celulares. Fonte: http://www.flickr.com .......... pág. 28

Imagem nº5 – imagem de tela do aplicativo para celular do banco Bradesco. Fonte:

https://itunes.apple.com/br/app/bradesco/id336954985?mt=8 ........................................ pág. 29

Imagem nº6 - adesivo do projeto Not available on the App Store. Fonte da imagem:

http://notonappstore.com ................................................................................................. pág. 30

Imagem nº 7: Imagem aparatos tecnológicos de 20 anos atrás. Fonte da imagem:

http://www.9gag.com ...................................................................................................... pág. 31

Imagem nº 8: Chris Dancy. Fonte da imagem:

http://www.tecmundo.com.br/tendencias/53008-conheca-chris-dancy-o-homem-mais-

conectado-do-mundo.htm ................................................................................................ pág. 33

Imagem nº 9: gráfico comparativo dos produtos Nike. Fonte da imagem:

http://www.nike.com.br ................................................................................................... pág. 33

Imagem nº 10: Apple iWatch. Fonte da imagem: http://www.apple.com ...................... pág. 34

Imagem nº 11: Google Glass. Fonte da imagem: http://apps.oi.com.br/blogapps/saiba-como-

funciona-o-google-glass-e-suas-especificacoes-tecnicas ................................................ pág. 35

Imagem nº 12: Uso do Google Glass. Fonte da imagem:

http://infocletico.com.br/2014/04/liberada-a-venda-do-google-glass.html ..................... pág. 35

Imagem nº 13: tela do aplicativo Missle Beyond. Fonte da imagem:

http://www.glassappsource.com ...................................................................................... pág. 36

Imagem nº 14: tela do aplicativo Blackjack. Fonte da imagem:

http://www.glassappsource.com ...................................................................................... pág. 36

Imagem nº 15: tela do aplicativo AR Glass for Wikipedia. Fonte da imagem:

http://www.glassappsource.com ...................................................................................... pág. 37

Imagem nº 16: tela do aplicativo CNN iReport. Fonte da imagem:

http://www.glassappsource.com ...................................................................................... pág. 37

Imagem nº 17: tela do aplicativo NY Times Glass app. Fonte da imagem:

http://www.glassappsource.com ...................................................................................... pág. 37

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Imagem nº 18: tela do aplicativo Fullscreen Beam. Fonte da imagem:

http://www.glassappsource.com ...................................................................................... pág. 38

Imagem nº 19: tela do aplicativo Elle Glassware app. Fonte da imagem:

http://www.glassappsource.com ...................................................................................... pág. 38

Imagem nº 20: diretor do Bradesco. Fonte da imagem:

http://www.youtube.com/watch?v=2a2dFr-mFB8 .......................................................... pág. 39

Imagem nº 21: imagem do comercial do aplicativo da Bradesco. Fonte da imagem:

http://www.youtube.com/watch?v=6mwoSoydK3A ...................................................... pág. 39

Imagem nº 22: participante do lançamento do aplicativo Bradesco. Fonte da imagem:

http://www.youtube.com/watch?v=1iMHjhJ3jwg .......................................................... pág. 40

Imagem nº 23: imagem dos óculos de realidade virtual da Samsung. Fonte da imagem:

http://www.samsung.com/global/microsite/gearvr/gearvr_features.html ....................... pág. 41

Imagem nº 24: eleição dos Papas, no Vaticano.

Fonte da imagem: http://www.bbc.com .......................................................................... pág. 44

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 12

2 O PENSAMENTO CIBERNÉTICO ................................................................................ 14

2.1 Nietzsche: Metafísica e maquinação ................................................................................. 15

2.2 Aliadas ou Inimigas? Cibernética e dualidade funcional das máquinas ........................... 17

2.3 Ciberespaço e Cibercultura: o advento do universal sem totalidade ................................ 18

3 A ANTROPOLOGIA CIBORGUE .................................................................................. 21

3.1 As Teorias do Ciborgue e o Pós-Humanismo ................................................................... 21

3.2 Donna Haraway e os limites homem-máquina ................................................................. 23

3.3 Amber Case: tecnologia e excesso de informação ............................................................ 27

3.4 Devices e dilemas: fugas e facilidades para o dia a dia .................................................... 28

4 ESTUDO DE CASO: GOOGLE GLASS ........................................................................ 31

4.1 Corpo e ciberespaço .......................................................................................................... 31

4.2 Computação vestível ......................................................................................................... 32

4.3 Aplicativos para Google Glass .......................................................................................... 34

4.4 Análise................................................................................................................................41

5 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 43

6 REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 46

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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende mostrar a presença absoluta da tecnologia nas nossas

vidas e em que situações nos colocamos a partir de suas convergências. A condição humana -

influenciada por informações, condicionada a reflexões e transformada a partir da influência

das máquinas – será a abordagem principal desse estudo.

Falar sobre tecnologia abrange um universo tão grande quanto subjetivo; tão rico

quanto misterioso; tão revolucionário quanto dominador. Mergulhamos, no início do século

XX, num universo totalmente novo a partir da criação das máquinas - em virtude da

coexistência delas conosco. A partir daí, fomos entendendo que era preciso nos reconhecer

enquanto seres humanos. Quem nos tornamos ao coexistir com elas? Quais os cenários

formados à nossa volta a partir da tecnologia e quais fantasias criadas a partir do novo mundo

cibernético que passamos a habitar? Vamos entender como Nietzsche delimitou a temática

antes mesmo das revoluções industriais, nos aprofundar sobre a cibercultura e a riqueza de

suas manifestações sociais a partir das influências tecnológicas, perceber o ciberespaço e as

possibilidades infinitas de trânsito de dados, que abrem margem para o estudo da

Antropologia Ciborgue, o Pós-humanismo e a presença da mobilidade em nossas vidas. Será

que a evolução do ciberespaço pressupõe a evolução da civilização? De que forma a

tecnologia afeta a cultura? Quais os limites entre o homem e a máquina? E qual a real

necessidade de nos mantermos conectados ao ciberespaço o tempo todo?

O objetivo desse estudo é contextualizar o leitor sobre a evolução da tecnologia sob

uma visão humanista, dando a ele a oportunidade de perceber o universo ciborgue, ao

entender os meios de desvendar dominações e colaborações ao mesmo tempo, por meio do

estudo da bibliografia relacionada aos temas abordados.

A dualidade estará presente em vários momentos ao longo desse trabalho. Seremos

induzidos a ser condutores e receptores em relação às máquinas, a coadjuvantes e

protagonistas, a atuações ora técnicas, ora estratégicas nessa coexistência. Resta a nós

entendermos ou não que somos parte delas e elas de nós, sendo o homem a peça principal e

vital do circuito maquínico da sua própria natureza.

A metodologia baseou-se em leitura e análise de livros, publicações e palestras,

relacionadas aos temas em questão. Autores renomados do meio acadêmico foram

exaustivamente citados e confrontados, de forma a induzir o pensamento crítico do leitor.

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No decorrer do trabalho vamos entender que o desenvolvimento da tecnologia elevou

o estudo da cibernética, que levou o homem a se aprofundar no conhecimento das máquinas.

Surgia, no início do século XIX, uma nova ordem social: o homem passara a entender o

universo das máquinas como determinante para a transição evolucional da raça humana. A

tecnologia começava a ser entendida como catalisadora dos limites humanos. A energia das

máquinas passa a ser usada a favor do homem. Tornam-se facilitadoras do progresso social. É

inevitável perceber o culto à novidade desse universo sedutor da tecnologia, que se alimenta

de inovações e proporciona no homem o culto às máquinas desde a primeira revolução

industrial. Surge o medo de que os níveis de automatismo façam o homem perder o controle

sobre as máquinas – Hollywood comercializa este tema com a trilogia “Matrix” no início dos

anos 2000, um dos melhores filmes do gênero.

O universo da tecnologia promove o advento do ciberespaço, que determina uma nova

ordem de linguagem para a humanidade: comunicação, conhecimento e percepção humanas

são reinventados sob influência da cibercultura. O tempo e o espaço se comprimem,

vantagens e desvantagens da aplicabilidade da tecnologia nas nossas vidas.

A convergência das máquinas no nosso cotidiano – brilhantemente vislumbrada por

Steve Jobs nos anos 90 – permitiu que assumíssemos uma relação simbiótica com a

tecnologia: os dispositivos móveis se tornaram a extensão física dos nossos corpos, nossa

mente e nossos desejos. O mote de Jobs no comando da inovadora Apple - “Stay hungry. Stay

foolish”(“Permaneça faminto. Permaneça tolo”) - se tornaria o slogan das gerações

posteriores à influência do universo digital: quanto mais informação, mais temos a aprender.

Entenderemos como o dispositivo Google Glass se tornou um revolucionário artefato

que mudou a forma como usamos a tecnologia e como a percebemos em nossas vidas. Ao

alcance dos olhos e dos comandos de voz, veremos como marcas inovadoras lançaram

aplicativos para o dispositivo e se posicionaram com pioneirismo no mercado – como o banco

brasileiro Bradesco, a revista francesa Elle e as gigantes redes de comunicação norte-

americanas CNN e The New York Times.

O caminho do mundo digital é uma trilha sem volta, então a jornada dessa leitura

pretende ser interativa, dedutiva e conclusiva. Vamos partir rumo ao ciberespaço. Onde a

navegação por dados é o que faz o melhor marinheiro na rede.

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2 O PENSAMENTO CIBERNÉTICO

“Eu vos anuncio o Super-homem”1

Foi no século XX que o homem começou a experimentar a tecnologia em sua vida e a

usar as máquinas para seu progresso pessoal e social. As heranças das revoluções industriais

trouxeram muito mais do que máquinas para o cotidiano do ser humano: a força física do

homem foi sendo substituída gradativamente pela energia das máquinas. Esse foi apenas o

primeiro passo de uma série de caminhos trilhados pela tecnologia com o ser humano.

O prenúncio da realidade que experimentamos hoje foi vislumbrado nos anos 40 pelo

escritor inglês Aldoux Huxley, na qual a condição humana de coadjuvante em relação à

tecnologia projetara um futuro surpreendente e ameaçador, onde cultuaríamos as máquinas e a

racionalização: a predominância de uma sociedade que promove uma falsa liberdade

individual com impossibilidade de fuga do sistema. “Uma paz rica e viva” (HUXLEY, 1941,

pág. 52). O estímulo frequente e vital à novidade seria uma das formas de dominação do

Estado e está nesse padrão exposto por Huxley, no qual o conhecimento é vedado em nome

do consumo padronizado. O homem passa a conhecer múltiplas realidades como num imenso

leque de possibilidades ilusórias. Assim, passa a “escolher” viver em paz com as maquinas –

uma forma sublime de dominação do Estado.

Figura 1: Capa do livro “Admiravel Mundo Novo”, na qual Huxley anuncia

o cenário de dominação dos humanos pelas máquinas e suas influências vitais sobre nossas vidas.

1 NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. São Paulo: Ebooks Brasil, 1886. 536 p.

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A tecnologia, em constante evolução, elevou a capacidade das máquinas de forma a

sublimar a capacidade motora do homem. Percebemos uma nova cultura, sem precedentes de

avanços tecnológicos na história da vida humana, que traz a informação, a transformação e a

reflexão como pilares de atuação na raça humana.

Nesse capítulo vamos conhecer a origem do pensamento relacionado à influência das

maquinas na vida humana: a hipotese do “super-homem” de Nietzsche, o nascimento do

pensamento cibernético – de que forma permeou as ideologias modernas com suas influências

após as grandes revoluções industriais, e o nascimento da cibercultura com a imensidão de

canais convergentes e estruturas de pensamento hiperconectado.

2.1 Nietzsche – Metafísica e maquinação

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche usou uma metáfora em 1885 para anunciar a

transição evolucional entre o humano e o animal: ao dizer que o homem é uma corda

estendida sobre o abismo, pretendeu teorizar que o ser humano está posicionado entre o

animal e o além-do-humano na escala evolucional – derivando que a espécie não deve durar

para sempre, mas a heresia política que não há razão (moral e metafísica) para sermos eternos

como homens (RUDIGER, 2002, pág. 77). A tendência do homem ser híbrido com as

máquinas existe à medida de que elas o catalisam além de suas limitações, definindo assim a

sobrevivência humana. Dessa forma, Nietzsche teve por objetivo despertar no homem a

necessidade de ter coragem para se superar enquanto ser insuperável na natureza e despertar

nele o amor à terra para nela investir o melhor de si, já que o ser humano é o sentido da vida

no planeta.

O filósofo criou a figura do Übermensch (Além-Homem), mostrando que existem

novas possibilidades para o ser humano que rejeita a imposição do bem e do mal. O homem

de Nietzsche é o novo legislador, tem muita vontade de viver e constrói sua própria moral,

sendo ele senhor de si, o que impede que seja julgado por Deus. Ele se sente constantemente

incompleto, tendo assim a possibilidade infinita de superação - por perspectiva e anseio ao

poder, sem apego à moral cristã, fatores determinantes para essa evolução. Esse novo homem

de Nietzsche rejeita o céu cristão, mas deseja a eternidade. Toda sociedade deveria se preparar

para a chegada desse “homem evoluído”, entendendo que o culto à ciência e fundamental para

construir e reconstruir a figura humana. Para formar esse novo ciclo social, a moral de

Nietzsche eleva os que entendem sua filosofia e rebaixa os considerados inferiores por ainda

serem dominados pela doutrina cristã e tocados pela compaixão pelos oprimidos – seriam

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esses os homens que estariam avessos à tecnologia, oferecendo rejeição à influência das

máquinas no cenário atual.

Nietzsche era avesso à democracia, ao socialismo, ao liberalismo, ao feminismo e ao

cristianismo, considerados por ele manifestações de debilidade de homens fracos e de

covardes - portanto, inferiores. Ele se manifestou de forma visionária com o objetivo de

pregar um novo evangelho sem os dogmas cristãos e demais valores que, segundo ele,

enfraqueciam o potencial humano. Sua crítica à modernidade criou uma nova ordem social,

onde o humano passa a ser metafísico, submetido a uma maquinação tecnológica desenfreada.

Nietzsche enxergava que poderíamos usar o melhor das máquinas a nosso favor, elevando a

raça humana a uma evolução sem precedentes.

O advento do “Super-homem” de Nietzsche permite vislumbrar o homem do futuro.

Mudar a essência humana, conferindo a ela autonomia completa e apagando a fragilidade do

homem abre uma hipótese dúbia: ou o homem vai fundir-se com as máquinas ou vai

desintegrar-se em meio ao aparato tecnológico (RUDIGER, 2002).

Figura 2: Em destaque, o personagem de poderes extraordinarios “Superman”, criado pelo ilustrador

norte-americano Jerry Siegel em 1933, logo após a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha –

ilustrando a soberania de um homem superior (ideologia dominante do nazismo). O sentido original do

“super-homem” de Nietzsche estava completamente adulterado e canibalizado pelas massas. Fonte da

imagem: http://www.dialbforblog.com/archives/305/

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2.2 Aliadas ou Inimigas? Cibernética e dualidade funcional das máquinas

O homem, com sua genialidade e inestimável capacidade de observação, aprendeu a

reconhecer que os sistemas cibernéticos construídos por ele tinham os mesmos sistemas de

retorno que a natureza constrói - ambos em conformidade sob o mesmo modelo de atuação. A

partir desta constatação, nasceu o estudo da cibernética, fundada em 1894 pelo matemático

estadunidense Norbert Wiener. Consta como base e diferencial do seu pensamento a atenção

ao automatismo: devemos observar o que é automático nas máquinas e o que não é, assim

como revelar nos animais e nos homens também. Somente desta forma podemos entender os

níveis de maquinação para mantê-los a nosso favor.

A cibernética nasceu quando o homem aprendeu a refletir a partir do seu poder sobre

as máquinas (IDATTE, 1972). A finalidade da aplicação da tecnologia em benefício do

homem tem interpretações dúbias desde a criação das máquinas. Para explicar esta afirmação,

analisemos as duas primeiras Revoluções Industriais e suas ideologias: a Primeira (1780-

1830) pretendeu substituir a energia física do homem ou do animal pelas máquinas, enquanto

a Segunda (1850-1870) substituiu o homem - figura decisória e processadora da informação

capaz de corrigir desvios dos sistemas projetados - por dispositivos reguladores programados

para esta finalidade (WIENER, apud EPSTEIN, 1986). Esse mecanismo de interação da

segunda revolução industrial foi o ajuste perfeito para equilibrar o sistema social, permitindo

adaptabilidade para constantes transformações. Ou seja, o homem entendia as máquinas como

facilitadoras para a evolução social, cuja premissa desse fator está associada à busca de

estabilidade do sistema – o movimento oriundo da perturbação do equilíbrio desse sistema

permite que o progresso aconteça.

As máquinas têm um papel facilitador para que sejamos capazes de atingir nossos

objetivos. Esta proposta já havia sido concebida por Ampère (1775-1836), quando definiu a

cibernética como a arte de guiar um navio (AMPÈRE, apud EPSTEIN, 1986), como todas as

suas engrenagens maquinistas guiadas pelas hierarquias humanas e suas relações de poder,

permitindo que cada ato dessa interação funcionasse em conjunto, em prol de uma meta. Um

ideal claramente Iluminista, que atribui às máquinas a capacidade de conduzir a sociedade à

sua evolução. Em uma era determinada pela razão, o conhecimento humano foi aplicado sem

medo do novo, ou seja, a ação visando a evolução permanente da sociedade.

Fazendo uma analogia à gestão de um Estado, como bem observou Isaac Epstein

(1986, pág. 9), são atribuídas às máquinas balizas para sua operacionalidade pela própria

natureza dos sistemas sócio-político-econômicos, restando para os centros de decisão alguma

Page 18: Antropologia Ciborgue Zelia Lopes 2014

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margem de manobra. As máquinas realizarão tais operações às quais estarão previamente

demandadas pelos homens, desde que estes saibam retirar delas o melhor que as máquinas

puderem fazer por eles.

Neste sentido, a dualidade homem versus máquina e suas convergências colocam uma

outra sintonia em voga, premissa da Terceira Revolução Industrial (1970 até hoje): a

inteligência artificial pode ser criativa no sentido de descobrir novos caminhos num sistema

pré-delimitado. Os momentos criativos ocorrem de forma tão arrebatadora na sociedade que

não há poder suficiente no campo do saber para frear a evolução latente. Ela pode infringir

regras vigentes, já que, segundo Epstein, o conflito entre estas ocorre na arena da plenitude

pragmática do social, do cultural e do econômico.

A cibernética foi o estopim para um cenário amplo que se originou a partir dela: o

ciberespaço e a cibercultura anunciaram um novo mundo virtual, com identidade própria e

sem fronteiras ou antecedentes históricos, que abriu as portas para uma revolução de

conhecimento, comunicação e percepção nos seres humanos.

2.3 Ciberespaço e Cibercultura: o advento do universal sem totalidade

Para que seja possível compreender os conceitos de ciberespaço e cibercultura –

heranças de uma nova sociedade cibernética após as transformações citadas anteriormente -

primeiro é preciso contextualizar sobre os signos da linguagem, sob a ótica das novas redes de

comunicação.

As relações com o saber mudaram com a influência dos novos meios conectados em

rede e isso afetou diretamente a forma como a comunicação acontece entre os indivíduos. Um

grande paradoxo se instaura quando pensamos no conceito de universal: a totalidade

tradicionalizada anteriormente - pela possibilidade de padronizar formatos – se restringe ao

poder de alcance, sem fronteiras no mundo. O cenário da cibercultura – devido às mutações

do ciberespaço – não se totaliza mais pelo sentido, e sim pelo contato, pela interação geral dos

envolvidos (LÉVY, 1999). Ou seja, passamos a assimilar informação com mais velocidade

sob o risco dela sofrer mutações do que guardamos com mais rapidez, devido à natureza

cíclica do que predomina nas redes. E essas informações assumem graus de relevância

conforme ciclos criados na própria rede: a informação passa a ter o valor que damos a ela, já

que o conceito de colaboração constrói e destrói cenários na rede com a mesma velocidade.

O conceito de ciberespaço foi usado pela primeira vez pelo escritor estadunidense

William Gibson em 1984 em seu romance “Neuromancer” e pretendia significar “universo de

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redes digitais, campo de batalha entre multinacionais, palco de conflitos mundiais, nova

fronteira econômica e cultural”. É no ciberespaço que os dados da sociedade conectada em

redes circulam com grande velocidade ao redor do planeta, no espaço invisível da geografia

móvel dos dados. O filósofo francês Pierre Lévy conceitualiza ciberespaço como um novo

meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores, contemplando

não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo de

informações que ele abriga e os seres humanos que navegam e alimentam esse universo (que

rompe conceitos de significação, provocando a descontextualização de signos).

Esse ambiente até então inédito passa a proporcionar novas redes de comunicação para

a vida social e cultural das sociedades. O homem aprende a tecer relações entre dados,

adaptando-se à mutação da forma tradicional de comunicação que estava acostumado a lidar.

Surge um novo universal, independente do conteúdo recebido ou de significações, construído

pela interconexão de mensagens entre si por meio das redes. Nascem novos sentidos, em

renovação permanente. A interação passa a ter recepção passiva e isolada – o individual

funciona no ciberespaço, já que cada um pode criar conteúdo e transformar sua realidade

virtual com a máxima autonomia, sem necessitar de um receptor para validar seu

experimento.

O neologismo “cibercultura” compreende um conjunto de tecnicas materiais e

intelectuais práticas, atitudes, modos de pensamento e valores que se desenvolvem em

conjunto com o ciberespaço, conforme leitura de Lévy (1999). O conceito de universal na

cibercultura não possui centro nem linha diretriz. Possui conteúdo particular, indeterminado,

gerado sob a ótica do internauta e seus princípios e julgamentos, a ser difundido para milhões

de pessoas ou para ninguém. Segundo Lévy, torna-se inviável separar o ser humano de seu

ambiente material e de seus signos e a tecnologia passa a ser produto das sociedades e das

culturas. A aceleração generalizada do material que circula no ciberespaço propicia menor

efeito de exclusão à informação, porém ameaça um dos principais motores da cibercultura, a

inteligência coletiva – com sua formulação do saber compartilhado, que dificulta a formação

de consenso. A informação circulante no virtual possui capacidade de abrangência ilimitada,

ao mesmo tempo que pode ser difundida e deturpada com mais facilidade ao ser

compartilhada na rede, que elege autores particulares para tudo o que nela circula.

O ciberespaço é o instrumento da inteligência coletiva ao ser um ambiente propício

para a comunicação interativa e comunitária – possibilita o feedback entre emissor e receptor,

fenômeno interativo inédito em demais meios de comunicação. Ou seja, a evolução do

ciberespaço e suas redes pressupõe a evolução da civilização. Sendo esta condicionada por

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20

técnicas, demonstra estranheza para proporcionar o aprendizado, dada a velocidade de

transformação constante do ciberespaço - onde a informação digital é fluida, em constante

mutação. Quanto mais se amplia o ciberespaço, mais universal se torna a informação e menos

generalizado se torna o padrão comunicacional.

Percebemos o ciberespaço com um olhar caótico, desprovido de um significado

central. Um sistema de desordem e uma transparência labiríntica, sendo estes os prismas do

conceito do universal sem totalidade – a informacao que “cai” na rede e pretende ser unificada

é inevitavelmente personalizada no ambiente virtual e assimilada “conforme demanda” de

quem a procura – eis a essência paradoxal da cibercultura, conforme abordagem de Pierre

Lévy.

Page 21: Antropologia Ciborgue Zelia Lopes 2014

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3 A ANTROPOLOGIA CIBORGUE

A tradicionalidade da antropologia e a inovação dos ciborgues – dois temas

aparentemente opostos – formam a Antropologia Ciborgue, estudo sobre a interação entre

humanos e tecnologia e de que forma a tecnologia afeta a cultura (CASE, 2012). Ambos são

temas recheados de ideologias, talvez por isso sejam formas encantadoras de entender o ser

humano em seu meio sob a influência das máquinas.

O termo “ciborgue” e originario dos anos 60, quando buscava descrever o “homem

ampliado”, numa época em que o homem iniciava aventuras espaciais. Ele só poderia ir ao

espaço mediante aparatos tecnológicos específicos (dispositivos externos) que permitissem

desafiar a falta de gravidade, realizando as suas funções fisiológicas com normalidade. Dessa

forma, o corpo humano começava a ser modificado ciberneticamente para adaptar-se a um

ambiente hostil. Nascia o ser humano híbrido.

As análises a seguir abordarão as problemáticas sociais e visões de futuro sob a

perspectiva de uma herança histórica tão familiar quanto consideramos hoje nossos celulares.

As origens da tendência da entrega cotidiana do homem ao dispositivo móvel movem –

sobretudo – a necessidade de conectar-se para pertencer ao nosso meio.

As ciências da comunicação e a biologia caracterizam-se como construções

de objetos tecnonaturais de conhecimento, nas quais a diferença entre

máquina e organismo torna-se totalmente borrada; a mente, o corpo e o

instrumento mantêm, entre si, uma relação de grande intimidade.

(HARAWAY, 2000, pág. 67)

As semelhanças entre máquinas e humanos vão desaparecendo cada vez mais,

mantendo o homem e a máquina em uma simbiose constante. A inteligência humana se

relaciona com as máquinas e com elas transcende seus limites físicos e psicológicos, criando

uma relação quase vital de colaboração e evolução mútua.

3.1 As Teorias do Ciborgue e o Pós-Humanismo

Para a professora Lucia Santaella (2007), o “pos-humano” refere-se à convergência

geral dos organismos com as tecnologias até o ponto de tornarem-se indistinguíveis. As

tecnologias pós-humanas apresentam-se em variedade: a realidade virtual, a comunicação

global, a prostética e nanotecnologia, as redes neurais, os algoritmos genéticos, a manipulação

genética e vida artificial representam uma nova era no desenvolvimento humano: a formação

da era pós-humanista. Ela reforça que ao reivindicar a existência de corpos pós-humanos

pretende-se deslocar, tirar do lugar as velhas identidades e orientações hierárquicas,

Page 22: Antropologia Ciborgue Zelia Lopes 2014

22

patriarcais, desestabilizando o homem de suas seguranças. Essa instabilidade tende a crescer,

à medida que o estudo da cultura da mobilidade (fruto das mídias de comunicação móveis)

cita a presença mediada, telepresença, presença ausente, distância virtual e ubiquidade - todas

elas expressões que colocam em questão antigas certezas sobre a nossa corporeidade.

Para Rudiger (2007), considera-se “pos-humano” a pessoa que possui capacidades

físicas e intelectuais sem precedentes. Sendo potencialmente imortal, e “pos-humana”, seja

ciborgue ou máquina de inteligência artificial.

Outra forma apropriada de traduzir o conceito de “pos-humano” e tratar de Sociologia

da Tecnologia. Como pensamos o futuro do humano? O sociólogo Laymert Garcia dos Santos

(2005) defende que devemos considerar as maquinações, ou seja, a técnica e não a máquina.

Ele questiona as relações entre o humano e o não-humano e que transformações poderiam ser

atualizadas no humano. Sendo assim, o humano não pode ser considerado obsoleto, ou seria

inviável capitalizar a tecnologia – esta ainda é uma questão política, já que está ligada à

comercialização dos bens de consumo. O sociólogo reforça que o que importa é pensar a

tecnologia como um processo de individualizacao. Cita o termo “realidade pré-individual”

para questionar em que ponto nos identificamos e diferenciamos das máquinas: de que forma,

ao nos individualizarmos, atualizamos uma potência virtual com as máquinas? Uma

competição intrínseca a essa relação é gerada, e move a dinâmica existente.

Um ponto de vista muito interessante do sociólogo é a relação entre o Xamanismo

(conjunto de práticas para estabelecer contato com o mundo espiritual) e a tecnologia. Talvez

uma forma precisa de demonstrar a tradição e a inovação citadas na introdução desse capítulo.

Ele acredita que estamos vivendo uma era de ausência de mitos, ou seja, temos um problema

para o futuro, pois já não imaginamos mais novos mitos. Cita que ouvira de dois pajés de

tribos diferentes que foram eles que inventaram a tecnologia que temos hoje, só que não se

interessaram em desenvolvê-la. O conhecimento da natureza dos índios é infinitamente maior

do que o do homem social, ou seja, por esse prisma, não podemos nos considerar

tecnologicamente mais desenvolvidos do que eles. A capacidade dos índios viverem com

muito menos material os coloca num papel mais sofisticado do que o homem que vive em

sociedade. Por fim, ele defende que a busca do mito está menos na movimentação

arqueológica e mais na troca entre os povos, entre as diferentes chaves e temporalidades.

A professora Lucia Santaella (2007) adota o termo “biocibernetico” ao inves de

“ciborgue”. Segundo ela, o significado torna-se mais amplo para expor o cenário híbrido entre

o biológico e o cibernético de maneira mais explícita. O termo “biocibernetico” nao está

culturalmente tao sobrecarregado quanto “ciborgue”, com as conotações triunfalistas ou

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23

sombrias do imaginário midiático, expostos em filmes hollywoodianos como “Mad Max”

(1980) e “Exterminador do Futuro” (1984). Sobre o pós-humano, ela enuncia que o termo

significa a superação das fragilidades e vulnerabilidades da nossa condição humana através da

ajuda das máquinas para tornar os humanos indestrutíveis, sobretudo pelo nosso destino físico

que envolve o envelhecimento e a morte.

Francisco Rüdiger (2011) cita que o conceito do híbrido homem-máquina originou-se

nos anos 60, entre as vanguardas tecnocráticas engajadas nos planos de ação e projetos de

pesquisa do complexo econômico-militar norte-americano. Com o surgimento dos

computadores pessoais e as redes temáticas de comunicação, combinado com os progressos

avançados da engenharia genética e ciências médicas, o tema alcançou os meios de

comunicação. A tecnocultura trabalhou o tema de remodelagem do corpo humano e difundiu

o modelo de homem-máquina como sendo a evolução da espécie e a salvação da raça humana

no planeta Terra.

3.2 Donna Haraway e os limites homem-máquina

“Prefiro ser uma ciborgue a ser uma deusa”2

Quais são os limites entre o homem e a máquina? Ao pensar no mito do ciborgue,

trocamos a pergunta: ao invés de querer descobrir a natureza das máquinas, queremos

descobrir quem somos nós. Passamos a perceber os ciborgues como uma forma de saída do

labirinto do dualismo por meio do qual temos explicado nossos corpos e nossos instrumentos

para nós mesmos. O ciborgue gera identificação do humano e passa a ser o álibi perfeito para

descrever nossa presença social e nossos comportamentos, a sós e no meio em que vivemos.

A renomada bióloga e ativista política estadunidense Donna Haraway, nascida em

1970, ascende ao tema da antropologia ciborgue a partir da década de 80, persistindo como

grande referência atual nos estudos sobre ciborgues e sobre a relação entre eles e a

transformação da natureza humana através das máquinas. Ela define o ciborgue como um

organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e

também uma criatura de ficção. Produto de um mundo pós-gênero, com o ciborgue a natureza

e a cultura são reestruturadas – uma não pode mais ser incorporada ou apropriada pela outra,

dadas as suas particularidades e complementaridades entre si.

2 HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari; TADEU, Tomaz. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-

humano. 2. ed. Belo Horizonte: Autentica, 2000. 128 p.

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24

Haraway foi uma veterana da contracultura na década de 60, pioneira no estudo sobre

as influências da biotecnologia na construção dos corpos humanos. Apontou o viés

masculinista da cultura científica e a questão da aplicação da ética na engenharia genética.

Tornou-se ícone de uma geração que se intitulou “ciberfeministas”, enxergando a relação

entre a tecnologia da informação e a libertação das mulheres – a sublimação do gênero na

busca da objetividade científica tem como consequência a perda de significados, que onera o

papel social da mulher pela atribuição de sentido ao homem enquanto referência humana para

a ciência.

Adotou o termo “promíscuo acoplamento” para caracterizar o ambíguo: de um lado, a

mecanização e a eletrificação do componente humano, que se dissolve como unidade; de

outro, a humanização e a subjetivação das máquinas, originando os ciborgues. “A ideia do

ciborgue, a realidade do ciborgue, tal como a possibilidade da clonagem, é aterrorizante,

não porque coloca em dúvida a origem divina do humano, mas porque coloca em xeque a

originalidade do humano” (HARAWAY, 2000, pág. 14). A bióloga afirma que a nossa

relação íntima com a tecnologia não permite delimitarmos onde terminam nossos corpos e

começam as máquinas. Somos seres híbridos, os ciborgues nos incorporam. E a clonagem é

uma possibilidade muito próxima para que o ser humano se torne imortal e eterno (já que o

corpo deixa de cumprir seus ciclos vitais e com isso não envelhece), características que a

engenharia genética atribuiu aos seres humanos para que se tornem cada vez mais perfeitos.

O avanço dos estudos nos campos da medicina, robótica e inteligência artificial tem

aproximado o que um dia foram simples sonhos de ficção científica a realidades não mais tão

paralelas assim. O texto Manifesto Ciborgue (HARAWAY, 1991) expõe com naturalidade a

imersão do humano na tecnologia, a relação do homem com seu ciclo e com seus objetos.

Desde o início da década de 90, a autora já identificara a surpreendente predisposição do

homem para se compreender como criatura conectada por meio de redes. Ciência, tecnologia

e sociedade estão cada vez mais convergentes e influentes. Com a interligação em redes, os

seres humanos se tornaram ciborgues.

Alguns anos depois, Haraway (2000) defende que o sistema imunológico humano é

um exemplo de consciência de rede na era do ciborgue – nosso corpo está todo interligado e o

funcionamento depende de cooperação entre os órgãos e da nossa própria colaboração. É

justamente o que nos diferencia das máquinas, por termos capacidade analítica perante nosso

sistema imunológico. A intensificação das relações máquina-corpo se relacionam com a

reprodução e aos fenômenos de estresse. Surgem novas doenças, historicamente específicas. É

essencial citar também a defesa da autora sobre política estar dentro da tecnocultura – a

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25

definição de quem vive e quem morre é crucial nesse movimento, uma responsabilidade do

Estado e uma forma de dominação amplamente difundida conforme objetivos de dominação.

Adota o termo “orgia ciborguiana” para falar das guerras modernas, um misto de

comando, controle, comunicação e inteligência. As relações entre organismo e máquina

determinam uma guerra de fronteiras, uma disputa pelos territórios de produção, da

reprodução e da imaginação (com a indústria do entretenimento, sobretudo). Cita como

principal problema dos ciborgues eles serem filhos ilegítimos do militarismo e do capitalismo

patriarcal, explicando que o mito ciborgue compreendido por ela significa fronteiras

transgredidas, potentes fusões e perigosas possibilidades.

A teoria de Haraway expõe que a ciência e a tecnologia provocam sentimentos dúbios

no ser humano: o extremo prazer que estão capacitadas a proporcionar e a dominação

extremamente complexa que submetem por essa sedução. Um mundo de ciborgues significa

a imposição de dominação maquínica sobre o planeta, em contrapartida, pode significar

também a concessão humana de permitir identidades temporais, posições contraditórias e

afinidades entre animais e máquinas. Tal cenário hipotético é perfeitamente compreendido ao

olharmos para cenas comuns de nosso dia-a-dia, quando percebemos a influência dos

dispositivos móveis nas nossas vidas cotidianas.

Figura 3: Uma cena cotidiana da atualidade, com a legenda “aqui esta nosso apocalipse

zumbi”. As maquinas tornaram-se perturbadoramente vivas, enquanto

os seres humanos, assustadoramente inertes” (HARAWAY, 2000).

Fonte da imagem: http://www.9gag.com

O feminismo é um tema amplamente relevante para Haraway, que fala sobre a

“feminizacao da pobreza” (as mulheres passam a ocupar camadas sociais menos favorecidas),

oriunda da influência dos novos arranjos econômicos da sociedade. As mulheres passaram a

ser pressionadas para que assumissem o sustento da vida cotidiana - tanto para elas quanto

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26

para seus dependentes. A sexualidade, a reprodução, a família e a vida em comunidade

formam um ciclo econômico que produz interferências em gêneros e raças humanas. Este

cenário gera uma projeção de desemprego como consequência das novas tecnologias –

geração de subempregos como influência das máquinas substituírem a qualificação de mão de

obra.

Uma questão feminista muito relevante para Haraway (2000) é a delimitação das

fronteiras do corpo da mulher – vide manifestos nos anos 70, quando as mulheres retomaram

o controle dos seus corpos. Ela fala sobre a necessidade de regeneração para a reconstituição

da mulher como sonho utópico de um mundo sem gênero e a construcao de uma “política

socialista-feminista” para alocar as mulheres em categorias ocupacionais privilegiadas e na

produção de ciência e tecnologia (responsável pela construção de discursos, processos e

objetos tecnocientíficos).

Haraway (2000) cita que tecnologias como videogames e “aparelhos de televisão

extremamente miniaturizados” (vislumbrando os futuros smartphones) seriam cruciais para as

formas modernas de “vida privada”, ja que a cultura dos videogames incita a competicao

individual e a guerra espacial, gerando uma imaginação que pode vislumbrar a destruição do

planeta com um cenário de ficção científica. Essas tecnologias permitem a mobilidade e a

troca perfeita, encaixando nesse cenário o crescimento voraz da indústria do turismo – pela

possibilidade de divulgar territórios terrestres por via das conexões em rede e interatividade

entre as pessoas. Com este cenário, a “informatica da dominacao” (manobra de poder do

Estado visando seus interesses econômicos e sociais) se caracteriza com a aguda

intensificação do empobrecimento cultural e da insegurança do povo, que se torna cada vez

mais vulnerável e permissivo. A sociedade é manipulada para aderir ao consumo desenfreado

de tecnologia, enquanto outros bens de consumo que visam bem-estar perdem relevância.

Francisco Rudiger (2011) contextualiza que, para Donna Haraway, a tecnologia

contemporânea se presta às empresas de controle e exploração conduzidas pelos sistemas de

poder vigentes, mas também pode nos ajudar a transformar em sentido libertário nossas

experiências com nossa cultura, nosso trabalho, nosso modo de vida, nossas relações sociais e

nossas identidades individuais.

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3.3 Amber Case: tecnologia e excesso de informação

A antropóloga ciborgue norte-americana Amber Case, em palestra no evento sobre

interatividade “South by Southwest” no Texas (2012), pediu para que a plateia de 3200

ouvintes levantasse seus smartphones. Um mar de telas aparecia na sua frente. “A tecnologia

nos tornou ciborgues”, completou.

E ela não se referia aos personagens Robocop ou Exterminador do Futuro, onde a

ficção científica personifica o “super-homem de Freud”. Nao eram apenas telefones em riste.

Eram e são muito mais do que isso. A tecnologia está em nossas mãos, no nosso cotidiano,

nos nossos desejos. Nossa relação com nossos telefones é simbiótica, eles tornaram-se uma

extensão física dos nossos corpos, completa.

Suas descobertas influenciaram a arquitetura da informação, usabilidade e

produtividade. Ela pesquisou o comportamento humano e sua relação com a tecnologia, com

foco em como será o futuro da interface. Segundo ela, estamos progressivamente sedentos

que a tecnologia se adapte a tudo. Com isso, notamos cada vez menos a interferência da

tecnologia nas pequenas coisas, já que a criatividade aplicada permite que ela nos chegue

através de uma usabilidade tão precisa que nos adaptamos ao meio imposto sem perceber.

Amber Case palestrou sobre Antropologia Ciborgue no TED (2010), falando sobre

como os humanos e a tecnologia interagem em conjunto, como projetamos nossa

personalidade, nos comunicamos, trabalhamos, jogamos e compartilhamos ideias e valores,

através das redes de computadores. Ela observou que estamos vivendo um momento sem

precedentes na comunicação devido à convergência de tecnologias, que nos propicia um

aprendizado rápido e inédito na história. Com isso, estamos nos tornando uma versão de

Homo sapiens olhadores de telas e clicadores de botão. Diante desse cenário, dependemos de

“cerebros externos” (celulares e computadores) para nos comunicar, lembrar e ate mesmo

para viver vidas secundárias (queremos interagir quando não estamos presentes fisicamente).

O tempo e espaço se comprimiram. Este contraponto de realidade permite a criação de

novos rituais, a extensão mental (podemos viajar mais depressa, nos comunicar de forma

diferente), pressupõe sentimentos de perda (ao lidarmos com a tecnologia de forma

simbiótica, assumimos uma relação visceral com o virtual). Somos uma sociedade de novos

paleontólogos – ao invés de buscarmos por registros biológicos do nosso passado no planeta,

passamos a buscar coisas que perdemos em nossos cérebros externos, que carregamos em

nossos bolsos.

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Figura 4: Um tradicional encontro entre jovens e suas interações com telas, ao invés das interações

pessoais, cena muito comum atualmente. Fonte da imagem: http://www.flickr.com

Case observou também que os browsers (navegadores do ciberespaço) permitem

estruturar uma arquitetura do pânico: estamos agarrados à linha de montagem de informação

que não conseguimos acompanhar. Não temos tempo para a reflexão mental, não estamos

mais sozinhos ou em silêncio. Isso causa efeitos psicológicos, nos sentimos constantemente

ansiosos por um volume assustador de informação que não conseguimos consumir – o efeito

chamado “information overload” (sobrecarga de informacao) trazendo isso para o espaco

social. O ritmo cotidiano força que nossos cérebros se transformem em processadores de

computador na “era da informacao”- herança da Terceira Revolução Industrial que estamos

vivendo – estamos sedentos por informação acreditando que quando a dominamos, teremos

mais poder. Porém o processo é inverso. Segundo Wurman (2001), “O exagero na quantidade

de informação começa a nublar as diferenças marcantes entre dados e informação, entre fatos

e conhecimentos fazendo com que nossos canais de percepção entrem em curto-circuito”.

3.4 Devices e dilemas: fugas e facilidades para o dia a dia

Continuando com a abordagem defendida pela antropóloga Amber Case (2010), ela

demonstra que a tecnologia móvel facilita estar quase em qualquer lugar do mundo,

sussurrarmos algo e ser ouvido em outro lugar. Estes dispositivos que vivem em nossos

bolsos precisam ser alimentados a cada noite e exigem nossa atenção frequente. Em apenas

alguns anos, esses dispositivos tornaram-se costurados no tecido das nossas vidas diárias.

Ela aborda um tema muito em voga no momento, a chamada “internet das coisas”

(internet of things), que nos faz entender que todos os dispositivos móveis são sensores de

realidade – sons, barulhos, temperaturas, imagens, localizações, qualidade do ar, etc. Temos a

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29

possibilidade de “tirar uma radiografia” de como esta nossa saúde. E todos esses dados sao

interessantes por si só.

Segundo Case, se um dispositivo é capaz de identificar um estado de espírito, um

estado de fome e localização em um determinado momento do dia, poderia descobrir se um

determinado humor fez uma pessoa querer comer, ou se foi infeliz no trabalho e induz um

desejo de procurar um emprego diferente. Os dados cruzados são capazes de correlacionar a

quantidade de sono com o ganho de peso, e assim por diante. O que precisamos é de uma

linguagem comum que permite que todos esses dispositivos se comuniquem uns com os

outros e conosco.

Ao capturarmos uma quantidade de dados em mapas, podemos realmente começar a

compreender a realidade de diferentes maneiras, como onde construir uma casa para aumentar

a felicidade das pessoas em seu interior, rotas que evitem acidentes e como criar melhores

sistemas urbanos.

Desta forma, o ciberespaço ganha o trânsito das ruas e as pessoas se conectam a vários

lugares simultaneamente com o mínimo deslocamento físico. Com o mundo cada vez mais

conectado em rede, os dados se tornaram imensamente importantes para entender o

consumidor e essenciais para facilitar sua decisão de compra. É possível entender cada vez

mais claramente os hábitos das pessoas e transformar dados em produtos adequados que

facilitem seu cotidiano. Dados estão presentes em todos os momentos e ofertados de volta

para as pessoas em forma de produtos e serviços.

Figura 5: Exemplo de oferta via captura de dados: imagem do aplicativo para dispositivos móveis do

banco Bradesco: ao clicar no banner “Precisa de dinheiro? Contrate agora”, e possível conseguir um

empréstimo após efetuar o login na conta corrente. Fonte da imagem:

https://itunes.apple.com/br/app/bradesco/id336954985?mt=8

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30

Uma iniciativa crítica à fuga humana em direção aos devices foi criada por dois

brasileiros que moram na Suécia. “Not Available on Apple Store” (“Nao disponível na Apple

Store”) é um site que disponibiliza adesivos criados para colar em brincadeiras e situações

que não podem ser adquiridas pelo tablet ou smartphone.

Figura 6: Modelo de adesivo do projeto que incentiva que as pessoas saiam mais

do mundo virtual e vivam os momentos fora do ciberespaço. Fonte da imagem:

http://notonappstore.com

A ideia do grupo surgiu ao observar pessoas em situações cotidianas, onde é comum

encontrá-las mergulhadas em aparelhos eletrônicos, deixando de lado as brincadeiras do dia a

dia. Até abril a iniciativa já tinha atingido mais de 50 países e mais de 7.000 adesivos estavam

espalhados pelos espaços urbanos. Um dos melhores feedbacks citados pelos idealizadores do

projeto foi a de um pai que estava prestes a comprar um iPad para o filho, mas viu o site e

desistiu.

Para concluir o capítulo sobre Antropologia Ciborgue, Amber Case (2010) afirmou

que não estamos ligados a todas as pessoas o tempo todo, mas a qualquer momento podemos

nos conectar a quem quisermos. As máquinas estão nos ajudando a nos tornar mais humanos,

nos ligando uns aos outros, independente da geografia. Case afirma que é a primeira vez na

história da humanidade que interagimos desta maneira. Se estamos experimentando um

momento sem precedentes na história humana, é natural que estejamos nos enxergando uns

aos outros sob a ótica dos dispositivos móveis, com toda deturpação e encanto que isso possa

causar. Só vamos entender as consequências disso à medida que o tempo passar – e a

tecnologia interceder ainda mais sobre nós.

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4 ESTUDO DE CASO: GOOGLE GLASS

Para contextualizar o estudo de caso abordado nesse capítulo, vamos antes entender a

relação do corpo com o ciberespaço e suas influências no contexto da convergência de

tecnologias e dispositivos móveis em que estamos vivendo. As condições corporais

proporcionadas pela mobilidade permitem que a percepção seja avaliada de forma inédita e

que mude definitivamente a forma como as pessoas interagem com tecnologia, que já esteve

ao alcance das nossas mãos e hoje está ao alcance dos nossos olhos - permitindo que a

informação esteja em todos os lugares, facilitando nosso dia a dia. Há apenas 20 anos,

fazíamos uso da tecnologia com enormes aparatos tecnológicos. Hoje, podemos carregar o

que precisamos nos nossos bolsos.

Figura 7: Principais aparatos tecnológicos comuns nos anos 90, quando ainda não se pensava sequer

em convergência digital. Fonte da imagem: http://www.9gag.com

4.1 Corpo e ciberespaço

As concepções de tempo e espaço foram intimamente influenciadas pela mobilidade,

pois o aparelho sensorial humano está em interação constante com o meio ambiente e por ele

é influenciado.

Se a realidade percebida apresenta múltiplos níveis, a realidade simulada integra-se ao

ecossistema como um de seus níveis, principalmente porque ambientes simulados constituem-

se em um novo tipo de ambiente ao qual a percepção, como um sistema evolutivo, se adapta.

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A professora Lucia Santaella (2009) destaca que para revisitar o corpo na era da

mobilidade é fundamental usar a semiótica para abordar a diferença entre corpos reais e

virtuais, redefinindo os conceitos para “corpos carnais” e “corpos alternativos”. Segundo ela,

não existe oposição epistemológica mais equivocada do que aquela que opõe o virtual ao real

ou o virtual ao físico, como se as representações virtuais não fossem também físicas e reais. A

diferença não está mais em ser real ou não-real, mas nos tipos de realidade e de fisicalidade

que são distintas nesses casos. Ou seja, para falarmos de percepção na era da mobilidade é

preciso entender o corpo e os múltiplos canais alternativos e suas projeções no ciberespaço.

Para o julgamento de percepção, há duas distintas e simultâneas representações do

corpo: o corpo carnal e os corpos alternativos (ou dispositivos móveis), não importa quantos

nem quais sejam, nas projeções fora do corpo. As fronteiras do corpo no ciberespaço

apresentam constantes mutações: não há mais distinções nem limitações entre o real e o

virtual. Sendo assim, a percepção humana não deve mais ser julgada enquanto influenciada

por meios distintos (real ou virtual) pois os meios são híbridos entre si.

4.2 Computação vestível

A chamada wearable computing (“computacao vestível”) se refere a dispositivos ou

equipamentos movidos por computador que podem ser usados por um usuário, incluindo

roupas, relógios, óculos, sapatos e itens semelhantes. Estes dispositivos mais avançados de

computação wearable geralmente podem permitir ao utilizador tirar e ver fotos ou vídeos, ler

mensagens de texto e e-mails, responder a comandos de voz, navegar na web e demais

funcionalidades. Uma pesquisa publicada pela consultoria Strategy Analytics (2014) constatou

que 27% dos desenvolvedores de TI estadunidenses têm intenção de criar um aplicativo para

dispositivos vestíveis ainda este ano.

Para compreender o alcance da tecnologia vestível, podemos considerar o cotidiano do

homem mais conectado do mundo: o desenvolvedor de softwares norte-americano Chris

Dancy está plugado em rede através de 11 dispositivos, os quais funcionam para rastrear

grande parte das informações da sua vida: são capturadas e transmitidas via lembretes por e-

mails ou avisos recebidos nos dispositivos móveis. Assim, tornam-se dados organizados,

graças a um serviço digital chamado Google Agenda. Alguns dados são monitorados em

tempo real e no fim de cada dia, Chris faz uma avaliação de seu desempenho. Se ele acordar

estressado ou com algum mal-estar, a iluminação da casa fica de determinada forma e uma

música agradável pode ser executada para melhorar seu humor. Graças a essa exaustiva rotina

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digital, conseguiu perder mais de 45 kg apenas monitorando seus hábitos de sono e

alimentação e tomando medidas corretivas. Segundo ele, todos estamos caminhando para essa

realidade, é só uma questão de tempo.

Figura 8: Chris Dancy, considerado o homem mais conectado do mundo. Fonte da imagem:

http://www.tecmundo.com.br/tendencias/53008-conheca-chris-dancy-o-homem-mais-conectado-do-

mundo.htm

A tecnologia vestível influencia diretamente uma indústria poderosa: a do bem-estar.

Objetos super modernos nos conectam para medir desempenhos nos mais variados

dispositivos e controlam rirmos e rotinas de treinamentos, oferecendo uma visão detalhada

para que o desempenho e a saúde estejam sempre o mais sintonizados possíveis.

Figura 9: a marca norte-americana Nike e o cenário comparativo de desempenho dos seus

dispositivos digitais: exemplo de inovação multiplataforma. Fonte da imagem:

http://www.nike.com.br

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34

Ao tratarmos de convergência digital, foi graças à Steve Jobs e seu mote “pensar

diferente” que foi possível criar o “hub digital” em 2001, quando o fundador da Apple lançou

um dispositivo que coordenava uma variedade de dispositivos - aparelhos de música,

gravadores de vídeo e câmeras. O iPod revolucionou o início do século XXI ao ser o

dispositivo precursor do iPhone, iPad e iWatch, este a ser lançado em 2015.

Figura 10: Apple iWatch, que pretende ser uma ferramenta de fitness para os usuários, ao capturar

características biométricas para serem compartilhadas diretamente com o médico do usuário.Além da

usabilidade característica da Apple, deverá ser desenvolvido com a resistente tela de safira.

Fonte da imagem: http://www.apple.com

Estamos tão sedentos de informação que percebemos objetos como extensão dos

nossos corpos. Precisamos que eles tenham um desempenho tão preciso que criamos

conexões emocionais com eles. Além da aparência refinada e sedutora que estimula o

consumo, percebemos os dispositivos como facilitadores do nosso cotidiano, ainda mais se

pudermos comandá-los por voz, com o mínimo esforço: os projetos de óculos vestíveis do

Google e da Samsung anunciam os super poderes que estão ao alcance dos nossos olhos e dos

nossos desejos, como veremos no estudo de caso a seguir.

4.3 Aplicativos para Google Glass

O Google, empresa de serviços online e softwares norte-americana, lançou de forma

pioneira no mercado em 2013 o óculos interativo, o chamado Google Glass, que permite obter

informações diretamente na nossa linha de visão por um minúsculo computador acoplado em

um dos seus lados. Tudo ao alcance dos olhos, permitindo mais do que nunca que

subvertamos o tempo e permitindo a convergência digital sem fronteiras.

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Figura 11: Google Glass: um pequeno projetor libera uma imagem através de um prisma que

coloca a imagem diretamente na retina do usuário, criando uma pequena camada sobre a realidade em

segundo plano. Fonte da imagem: http://apps.oi.com.br/blogapps/saiba-como-funciona-o-google-

glass-e-suas-especificacoes-tecnicas

O dispositivo deve ser usado da seguinte forma: precisa ser apoiado na parte frontal da

cabeça e funciona por meio de conteúdos de realidade aumentada. Permite tirar fotos a partir

de comandos de voz, enviar mensagens instantâneas, realizar videoconferências e demais

funcionalidades já disponíveis nos dispositivos móveis.

Figura 12: A posição do dispositivo também é ajustável, tornando a camada de tela capaz de ser

posicionada em várias zonas dentro do campo de visão de quem o utiliza. Fonte da imagem:

http://infocletico.com.br/2014/04/liberada-a-venda-do-google-glass.html

O dispositivo permite ao usuário experimentar comandos inovadores e muito

interativos, com isso os aplicativos desenvolvidos para o Glass chegam no mercado com um

diferencial de funcionalidade e experiência. Jogos como o Missle Beyond (com mira ocular

para atingir “alvos” celestes) e Blackjack (jogo de cartas com ambientação visual de um

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cassino) trazem muito mais entretenimento do que outros dispositivos móveis anteriores ao

Google Glass.

Figura 13: tela do aplicativo Missle Beyond. Fonte da imagem: http://www.glassappsource.com

Figura 14: tela do aplicativo Blackjack. Fonte da imagem: http://www.glassappsource.com

O Google Glass é considerado uma plataforma de comunicação inovadora, por

oferecer mobilidade instantânea e colaboração interativa por geolocalização com os usuários.

O AR Glass for Wikipedia (dados da enciclopédia virtual gerados por geolocalização)

permitem que os usuários explorem o dispositivo de forma inovadora e bastante funcional: os

dados são mostrados por demanda e localidade real, com a interatividade ocular do usuário.

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37

Figura 15: tela do aplicativo AR Glass for Wikipedia. Fonte da imagem:

http://www.glassappsource.com

A rede de notícias norte-americana CNN lançou seu aplicativo colaborativo para o

Google Glass: com ele, o usuário pode contribuir com histórias cotidianas via fotos e vídeos

para o aplicativo e fomentar informação na rede e também pode receber informações da rede

diretamente no aplicativo.

Figura 16: tela do aplicativo CNN iReport. Fonte da imagem: http://www.glassappsource.com

O jornal norte-americano The New York Times - que ingressou no universo digital em

1996 e desde então se posicionou como referência em jornalismo online – também está

presente no Google Glass, com a missão de levar informação ao usuário onde quer que ele

esteja, usando as ferramentas do dispositivo para melhorar a usabilidade da informação.

Figura 17: tela do aplicativo NY Times Glass app. Fonte da imagem: http://www.glassappsource.com

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38

Seguindo o mesmo contexto jornalístico, o aplicativo Fullscreen Beam permite que os

vídeos capturados pelo Glass do usuário sejam direcionados para seu próprio canal no

Youtube.

Figura 18: tela do aplicativo Fullscreen Beam. Fonte da imagem: http://www.glassappsource.com

Um aplicativo voltado para beleza e moda deixaria Donna Haraway satisfeita, ao ver

mulheres interativas com seus óculos estilosos do Google usando o aplicativo da revista ELLE

- interagindo com os conteúdos de maior audiência da revista e também os mais

compartilhados online pelos leitores. Com o aplicativo, a publicação se posiciona com

inovação no mercado, uma das diretrizes da marca.

Figura 19: tela do aplicativo Elle Glassware app. Fonte da imagem: http://www.glassappsource.com

A saúde e a mobilidade caminham juntas, como vimos anteriormente, e a tecnologia

dos óculos interativos já permite que pacientes se conectem a médicos com rapidez e precisão.

O aplicativo Remedy3 permite que os especialistas vejam através dos olhos do médico para

3 Mais informações disponíveis em: http://www.proxxima.com.br/home/mobile/2014/08/20/App-para-Google-

Glass-conecta-medicos-e-pacientes.html

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recomendar um procedimento, plano de tratamento ou diagnóstico. A interatividade acontece

através da rede de dados dos dispositivos conectados: médico e paciente se veem e

conversam, além de poderem usar as demais funcionalidades que forem necessárias para que

seja possível se aprofundar em informações médicas. Dessa forma, uma consulta de uma hora

é feita em apenas dois minutos.

A necessidade de inovar num mercado progressivamente competitivo levou o Banco

Bradesco, um dos 50 maiores bancos do país em 2013, conforme pesquisa da Revista Exame,

a investir de forma pioneira no mercado financeiro mundial num aplicativo para o óculos

interativo do Google. O aplicativo do banco permite ao usuário acessar lista de agências

bancárias, máquinas de auto-atendimento e hospitais referenciados da empresa. A tecnologia

de geolocalização indica os locais mais próximos através da funcionalidade Google Maps, que

demonstra a rota do caminho a ser percorrido.

Figura 20: o diretor do Bradesco Maurício Machado de Minas fazendo uma demonstração do projeto

para a mídia no lançamento do aplicativo, em novembro de 2013. Fonte da imagem:

http://www.youtube.com/watch?v=2a2dFr-mFB8

O projeto pretende gerar mais interação da empresa com seus clientes, aproximar a

marca do cotidiano das pessoas de forma funcional e melhorar o atendimento com seus

clientes através da inovação.

Figura 21: imagem do comercial do aplicativo do Bradesco para Google Glass.

Fonte da imagem: http://www.youtube.com/watch?v=6mwoSoydK3A

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40

Além do aplicativo, a estratégia de lançamento da empresa contemplou dois óculos

interativos disponíveis para clientes e não clientes na agência-conceito de tecnologia e

referência em inovação do banco, a Bradesco Next, situada no shopping JK Iguatemi, em São

Paulo.

Figura 22: participante do evento de lançamento do aplicativo na agência Bradesco Next. Fonte da

imagem: http://www.youtube.com/watch?v=1iMHjhJ3jwg

Enquanto o mercado aguardava que, em setembro de 2014, num evento de tecnologia

da Alemanha, fosse lançado o Samsung Galaxy Glass - que seria o concorrente dos óculos do

Google - a marca coreana de tecnologia pausou este projeto e preferiu mudar os rumos de seu

posicionamento no mercado digital: foi pioneira e apresentou este mês ao mercado o Gear

VR4, o primeiro óculos de realidade virtual de todos os tempos. O usuário encaixa no

dispositivo o smartphone e os próprios óculos interagem com ele. A amplitude angular de

visão do usuário com o dispositivo é de 96°, ou seja, a realidade projetada não deixa

praticamente nada a desejar em relação à vida real.

4 Mais informações disponíveis em: http://mashable.com/2014/09/03/samsung-gear-vr/

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41

Figura 23: imagem dos óculos de realidade virtual da Samsung e projeção sobre a visão que ele

proporciona. O dispositivo foi lançado em outubro de 2014. Fonte da imagem:

http://www.samsung.com/global/microsite/gearvr/gearvr_features.html

A tendência do mercado para os próximos anos é lançar dispositivos que

proporcionem à nossa percepção uma tendência híbrida a confundir cada vez mais os espaços

físicos com os virtuais. Esses objetos vão nos permitir realizar tarefas cotidianas com

progressiva rapidez e proporcionar cada vez mais interatividade entre nossos corpos e os

dispositivos - por meio de dados disponíveis na rede – uma oportunidade inedita para que a

indústria conheça desejos do consumidor com análise dos seus comportamentos de navegação

no ciberespaço.

4.4 Análise

O aplicativo do Bradesco para Google Glass foi uma grande inovação no

mercado nacional de mobilidade como um todo. O banco se posicionou com pioneirismo e

deu bastante visibilidade para os serviços que oferece no aplicativo, com ainda mais

praticidade de acesso à informação, graças aos requisitos funcionais do dispositivo – a

geolocalização permite a mobilidade total do usuário para localizar serviços e ser guiado até o

local que deseja chegar. Estar ao lado do cliente quando ele mais precisar é o grande objetivo

desse projeto. O lançamento foi uma grande “jogada de marca”, já que foi uma manobra

pioneira no mercado.

Ainda que o Google Glass não esteja amplamente comercializado no País,

marcar presença num dispositivo tão inovador e objeto de desejo das pessoas foi uma

iniciativa estratégica da empresa, a fim de sair à frente da concorrência e ser lembrada no

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quesito inovação. As funcionalidades oferecidas possibilitam a busca de médicos, agências e

terminais de autoatendimento e oferecem grande praticidade aos usuários. Permitem que os

clientes ganhem tempo para usar os serviços, o que provoca dinamismo na interação com o

banco e consequentemente, elevado índice de satisfação dos clientes.

O lançamento é considerado a primeira fase do projeto: o banco pretende

desenvolver o aplicativo de forma a agregar outras funcionalidades presentes no ambiente

digital – como programação de transferências de valores e saques em máquinas de

autoatendimento. Reforçar a segurança das transações, utilizar outros requisitos como a

biometria para proteger dados e assegurar a presença do cliente no momento das transações

são próximos passos que o banco pretende considerar para deixar o aplicativo ainda mais

interessante.

Considerando que o dispositivo responde a comandos que dispensam que

mudemos o que estamos fazendo para fazer outra atividade – a exemplo do que são os

smartphones – marcar presença nesse dispositivo do Google significa muito mais do que se

pretender uma empresa inovadora: significa se posicionar de forma cognitiva ao lado do

cliente, reforçando de forma singular o relacionamento com seus consumidores.

Os aplicativos disponíveis para os óculos do Google são bastante inovadores,

pois aproveitam a usabilidade do dispositivo para proporcionar alta funcionalidade para seus

usuários. Estamos diante de um dispositivo que mudou a forma como percebemos a influência

da máquina na vida do homem e ao entendermos ainda mais a tecnologia como facilitadora do

nosso dia a dia, a tendência é que ela contribua progressivamente para nossas funções

cotidianas.

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43

5 CONCLUSÃO

As máquinas trouxeram uma nova identidade ao ser humano que - desde os

primórdios da criação das primeiras máquinas, e quando se lançou no espaço sideral usando

aparatos tecnológicos para superar a falta de gravidade do ambiente - se mostrou com

coragem essencial para mover a sociedade rumo à transformação.

Conviver com as máquinas de forma pacífica e inspiradora exigiu desde o

início que o homem interpretasse as diferenças de forma a usar, a favor dele, o que as

máquinas tinham e ele não, ignorando a possibilidade de ameaça às suas imperfeições pelas

qualidades das máquinas (que as limitações físicas do homem o impediam de transcender). O

discernimento humano possibilitou a criação de uma realidade paralela, onde circulam dados

e rastros que os olhos não podem ver se não se pretendem a observar. O homem se encantou

pelas máquinas e a partir delas conseguiu evoluir sua qualidade de vida, convivendo com a

tecnologia em sua vida real.

A Antropologia Ciborgue, campo de estudo abordado inicialmente pela

pesquisadora norte-americana Donna Haraway, permite entender as influências da tecnologia

no homem à medida que ele se transforma por ela. Os cenários da cibernética – o ciberespaço

e a cibercultura - definiram a releitura do ser humano. O chamado pós-humanismo nos

denominou ciborgues e isso não causa mais o estranhamento utópico dos personagens

hollywoodianos dos anos 90, como o Exterminador do Futuro ou Robocop: nos tornamos

robôs sem precisar de próteses - basta estarmos conectados em rede por meio de dispositivos

móveis.

Vamos analisar a seguir dois momentos históricos muito interessantes que

demonstram a mudança da relação humana com os dispositivos móveis: são eles as eleições

dos Papas Bento XVI (2005) e de Francisco (2013) na Basílica de São Pedro, em Roma.

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Figura 24: eleição dos Papas, no Vaticano: a realidade capturada pelos dispositivos móveis e

enxergada pelas telas das máquinas. Fonte da imagem: http://www.bbc.com

Na imagem inferior da montagem acima, as pessoas preferiram registrar o momento

histórico através dos seus dispositivos, ao invés de presenciarem com seus olhares sem

intervenções externas, como retratado na imagem superior.

Quanto mais tempo passamos olhando para telas, mais adiamos a presença e é

justamente aí que a tecnologia alcança seu objetivo. Priorizamos o registro digital em

detrimento do nosso próprio olhar. Passamos a lidar com uma nova perspectiva de tempo e a

enxergar a vida através dos nossos dispositivos. Como afirmou o filósofo e sociólogo francês

Jean Baudrillard (1992), “There is no aphrodisiac like innocence”(“Não existe afrodisíaco

melhor do que a inocência”) - ao nos mantermos inquestionáveis, somos sedutoramente

dominados pelas máquinas. Porém, ao questionarmos a coexistência das máquinas conosco,

refletimos e reagimos ao que nos afeta e não somos dominados pelo lado oculto da

manipulação de dados que circulam na rede.

As consequências desse movimento digital em relação à influência da

tecnologia nas nossas percepções ainda são hipóteses, como a ansiedade da informação

(WURMAN, 2001), a evolução da civilização pela tecnologia (CASE, 2012) e os limites entre

mundos real e virtual (SANTAELLA, 2007). Já entendemos bastante sobre os benefícios da

tecnologia em nossas vidas, mas sabemos muito pouco sobre os danos que pode nos causar.

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Os primeiros sinais sobre danos ao cérebro já aparecem: o único caso registrado no

mundo5 de vício no Google Glass aconteceu nos Extados Unidos, em setembro de 2013. Um

homem de 31 anos, que trabalhava para a marinha americana, procurou um centro de

recuperação de dependentes químicos para solucionar sua dependência de álcool e cigarro.

Como norma do tratamento, o paciente havia sido afastado por 35 dias do que lhe causava

dependência - inclusive do dispositivo, que ele usava por 18 horas diárias. Durante o

tratamento, foi diagnosticada uma perda excessiva da linha de pensamento do paciente, que

relatava que seus sonhos eram vistos através de uma janela cinza, semelhante à do aparelho. A

urgência em voltar a usar o Glass para relembrar informações era latente e o paciente afirmou

que os sintomas de abstinência do dispositivo eram piores do que os do álcool.

Diversos estudos estão sendo feitos para entender os efeitos da mobilidade nos

nossos cérebros e possíveis danos a longo prazo, como o estudo6 da Academia de Ciências de

Wuhan, na China. A única certeza é que as máquinas são parte de nós e sem elas a vida hoje

seria muito menos interativa e muito mais difícil, sem a redescoberta de nós mesmos, sob o

ponto de vista da atuação da tecnologia em nossas vidas.

5 Mais informações disponíveis em: http://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/11/primeiro-caso-de-bvicio-em-

google-glassb-abstinencia-e-pior-que-do-alcool.html 6 Mais informações disponíveis em: http://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2012/01/viciados-em-internet-

sofrem-danos-cerebrais-semelhantes-ao-efeito-de-drogas.html

Page 46: Antropologia Ciborgue Zelia Lopes 2014

46

6 REFERÊNCIAS

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