Antropologia Da Performance a Liminaridade e as Contradicoes Do Social

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42 ANTROPOLOGIA DA PERFORMANCE: A LIMINARIDADE E AS CONTRADIÇÕES DO SOCIAL Alexandre Ambiel Barros Gil Duarte Prof. Celso Vianna Bezerra de Menezes (Orientador) RESUMO Os estudos antropológicos acerca de eventos performáticos em muito nos ajudam a entender um novo contexto sociocultural de uma sociedade emergente. As questões propostas por tal abordagem teórica buscam entender uma nova lógica, marcada agora pela evidenciação das dicotomias sociais, pelas contradições e pelas novas formas de relações, específicas de uma nova ordem paradigmática. Esses conflitos por muito tempo foram percebidos dentro de uma estrutura que agregaria distinções endógenas. Mas, como percebeu Vitor Turner, as contradições podem ser percebidas de fora da estrutura social. Seu fértil conceito de liminaridade busca entender essas características evidenciadas pelos ritos, eventos nos quais uma antiestrutura se opõe a um status quo, abrindo assim possibilidades de transformação social. Esse estudo tem o objetivo de perceber como o conceito de liminaridade, nos moldes pensados por Vitor Turner, nos ajuda a entender as formas de “crise” expressas em práticas consideradas performáticas e como a antropologia da performance se apoia sobre o conceito de liminaridade e o (re)interpreta no contexto performático. Palavras-chave: antropologia da performance, liminaridade, conflitos

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ANTROPOLOGIA DA PERFORMANCE: A LIMINARIDADE E AS

CONTRADIÇÕES DO SOCIAL

Alexandre Ambiel Barros Gil Duarte Prof. Celso Vianna Bezerra de Menezes (Orientador)

RESUMO

Os estudos antropológicos acerca de eventos performáticos em muito nos

ajudam a entender um novo contexto sociocultural de uma sociedade emergente. As questões propostas por tal abordagem teórica buscam

entender uma nova lógica, marcada agora pela evidenciação das

dicotomias sociais, pelas contradições e pelas novas formas de relações, específicas de uma nova ordem paradigmática. Esses conflitos por muito

tempo foram percebidos dentro de uma estrutura que agregaria distinções endógenas. Mas, como percebeu Vitor Turner, as contradições podem ser

percebidas de fora da estrutura social. Seu fértil conceito de liminaridade busca entender essas características evidenciadas pelos ritos, eventos nos

quais uma antiestrutura se opõe a um status quo, abrindo assim possibilidades de transformação social.

Esse estudo tem o objetivo de perceber como o conceito de liminaridade, nos moldes pensados por Vitor Turner, nos ajuda a entender as formas de

“crise” expressas em práticas consideradas performáticas e como a antropologia da performance se apoia sobre o conceito de liminaridade e o

(re)interpreta no contexto performático.

Palavras-chave: antropologia da performance, liminaridade, conflitos

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Introdução

Esse trabalho faz parte da idéia inicial de um projeto de pesquisa

relacionado às preocupações sobre a antropologia da performance. Nele

proponho que a idéia de um estado liminar nos ritos de passagem

estudado principalmente por Vitor Turner influencia decisivamente a

antropologia da performance. Nessa última, a espetacularidade dos

eventos performáticos, seu objeto de estudo, presente também nos ritos e

mitos afora, acontece pela ocorrência de um estado liminar. É uma

liminaridade que consegue romper com a “ordem natural” da sociedade e

transformar as performances e os ritos em eventos significativos para as

sociedades em questão. Esse trabalho busca levantar apontamentos dessa

perspectiva, ainda a serem confirmadas ao longo do andamento do

projeto de pesquisa.

A recente antropologia da performance busca compreender as

dimensões de uma nova dinâmica social. Os problemas levantados por

essa nova perspectiva focam sua atenção na evidenciação das dicotomias

sociais, nas contradições e nas novas formas de relações, específicas de

um mundo fragmentado. Os estudos sobre performances surgem então

como um método de pesquisa dessa realidade que em muito nos

apresenta como avessa e conflituosa.

Esses conflitos por muito tempo foram percebidos dentro de uma

estrutura social estática e imutável. Mas, como percebeu Vitor Turner

(1974, 2005, 2008), as contradições podem se manifestar alheia ao

movimento cotidiano da sociedade, e, por isso mesmo, a negando e a

confrontando. A negação a uma estrutura acontece pela emergência do

momento liminar nos ritos. Esses, por sua vez, são eventos nos quais uma

antiestrutura se opõe a um status quo abrindo assim possibilidades de

transformação social.

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O que propomos nesse estudo é uma atenção ao conceito de

liminaridade desenvolvido por Vitor Turner no seus estudos sobre a

sociedade Ndembu no noroeste da Zâmbia, África Central. Se

contextualizarmos suas formulações sobre tal conceito, verificamos que

ele está ligado às interpretações sobre os ritos de passagem. As teorias da

antropologia da performance, como veremos, se fazem em grande medida

ancorada nesses momentos de rupturas que os momentos liminares

permitem. A diferença de tais abordagens, a de rituais e a de

performances, é uma questão a ser levantada. Mas, no enfoque desse

estudo, mais importante é a compreensão de como o conceito de

liminaridade se reformula, ou não, para dar conta de uma nova realidade

em vigor.

Sobre os rituais

Inicialmente a interpretação das culturas e a compreensão das

sociedades eram sempre consideradas dentro de um plano estático, no

qual a mudança social era considerada uma aculturação ou uma falência

social, momento em que os estudos sociais, principalmente a sociologia,

lutavam para garantir sua significância científica, quando a exatidão sobre

o funcionamento da sociedade era prioridade acadêmica. As questões

sobre o “não funcionamento” das sociedades eram sempre interpretadas

visando à explicação de seu sentido inverso. Era adotado, portanto, uma

elaboração abstrata de um modelo normativo que explicasse o

comportamento dos indivíduos em sociedade. O conceito de cultura já

teve esse sentido, segundo o qual não há espaço para sujeitos da prática

social, somente as regras instituídas e moralmente aceitas em sociedade.

Eram as regras e a dinâmica em sociedade os responsáveis pelas ações

individuais.

Mais contemporaneamente, os estudos sociais passaram a

considerar as transformações dentro das estruturas das sociedades.

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Considera-se agora o papel de atores sociais, que são capazes de conduzir

a alterações nas relações estabelecidas (PEIRANO, 2002, p. 18). Quando

foi aberta a percepção da atuação de um agente transformador no seio de

uma cultura, que possibilitasse então o entendimento sobre o como essa

sociedade pode mudar ao longo do tempo. Ainda que exista uma

dicotomia entre indivíduo e sociedade, micro e macro, parte e todo, não

cabe aqui e, nos estudos sociais em geral, determinar a predominância de

um sobre o outro, mas de conferir as resultantes que colocam a sociedade

em movimento. Consideramos, portanto, que tanto os indivíduos

influenciam a sociedade como a sociedade influencia os indivíduos. Sobre

os níveis dessa dialética não podemos tirar mais conclusões sem a

aproximação que as pesquisas etnográficas podem nos dar. A grande

questão que podemos levantar é sobre as ocasiões nas quais uma

mudança em potencial acontece.

Assim sendo, ganha cada vez mais espaço os estudos sobre

rituais, suas determinações teóricas e suas implicações na pesquisa de

campo, e relacionada com o ofício dos antropólogos, a pesquisa

etnográfica.

A importância dos eventos ritualísticos nas diversas sociedades já

estudadas por antropólogos não pode ser medida ou mensurada, só se

sabe que são fundamentais para a dinâmica da comunidade (TURNER,

2005). Suas propriedades simbólicas são um fértil fomento de

transformação ou afirmação de uma ordem vivente. Mas como? Em que

medida os ritos mantém essas propriedades de definição?

O rito é a interrupção da vida rotineira. É a teatralização e a

dramatização daquilo que é contínuo na sociedade, segundo uma vontade

e uma simbologia que não está inscrita em um “manual cultural”

(TURNER, 2005). As regras e normas a serem seguidas pelos nativos dão

lugar a uma criatividade não regulada, exatamente por isso,

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potencialmente transformadora. É um rompimento com as formas

tradicionais de representação do mundo. Um fato extraordinário e

relevante para as configurações da vida em comunidade. Assim sendo, os

ritos levantam contradições e divergências, pois costumam fugir da

coerência e do sentido comumente atribuído aos fatos de uma estrutura

social. Ao mesmo tempo, os rituais são elementos de conscientização da

vida social. O momento no qual aquilo que a sociedade é e deve ser (a

ordem vigente e sua manutenção) se legitima naquilo que ela não deve

ser (as contradições expostas pelos rituais). Ainda que isso não aconteça

de forma consciente para os nativos, seja qual sociedade for, os rituais

tem o poder de legitimar o comportamento social.

Aos ritos de passagem cabe uma atenção peculiar, pois com eles

podemos perceber as formas que a estrutura social assume e suas

características constitutivas. Os ritos de passagem marcam a transição de

um estado social para outro, ele o reivindica e o legitima, o torna passível

de ser, se não compreendido completamente, pelo menos aceito

culturalmente. Aos indivíduos que a eles se submetem cabe uma total

disposição essa nova etapa de sua vida social, pois como afirma Turner,

não somente um novo saber será adotado, mas uma modificação

ontológica está inscrita em sua trajetória.

A transição interestrutural, ou seja, a transição entre estados ou

posições sociais específicas, por revelar contradições e barreiras a um

status quo, pode assumir características como violência e bizarrice. O

bizarro é aquilo que não faz sentido, pois não está configurado na ordem

lógica dos significados simbólicos. E a violência muitas vezes é a negação

expressa fisicamente das formas estranhas e alheias à regularidade social.

Desde Arnold Van Gennep (VAN GENNEP, 1978), os ritos de

passagem são entendidos segundo três principais pontos, podendo variar

dependendo da compreensão dos autores, mas que essencialmente segue

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essa lógica: a „separação‟, quando o sujeito do ritual se separa de suas

antigas regalias e deveres para com seu meio social; a „transição‟, o

momento liminar, central na transformação ontológica dos indivíduos; e a

„incorporação‟, ou reincorporação a um novo estado de responsabilidades

a ser desempenhado.

A passagem de um estado social para outro, marcada pelos ritos

de passagem, não pode ser considerada algo simples e fácil. Esse

momento, para ter uma validade, deve ser diferenciado da rotina diária.

Assim, as crises, as dicotomias, as contradições, que no cotidiano são

escondidas e falsificadas, aparecem, muitas vezes, de formas

estereotipadas e estranhas. Essas exceções da vida diária lidam até

mesmo com tabus sociais, com aquilo que é crítico, caótico e

incompreensível. No rito de passagem, essas crises estão situadas no que

seria um limbo da passagem interestrutural. Nesse momento da

passagem, o ser transicional, que deixou de fazer parte de um estado,

ainda não passou completamente para a nova condição. Ele não estaria

situado em nenhuma forma reconhecida pela sociedade e, portanto, não

“seria ninguém ou nada”. Ele seria exatamente aquilo que a sociedade não

quer e não pode expressar. É exatamente esse momento que o conceito

de liminaridade tenta compreender.

Da liminaridade à performance

A liminaridade é uma forma expressiva que os atos culturais

assumem, ela possibilita a criatividade e, por isso mesmo, também a

transformação. Voltada às teorias que interpretam a dinâmica social como

um espaço de relações sociais, o foco naquilo que os agentes sociais

fazem é primordial. Sua preocupação estética é, portanto, uma derivação

que questionarei mais à frente. Nunca antes um autor focou tanto sua

atenção sobre aquilo que é feito (atos) em sociedade e disso extrair uma

fértil teoria de mudança e/ou legitimidade dentro de comunidades. Esse é

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o mérito de Victor Turner em sua pesquisa de campo entre o povo

Ndembu, no noroeste da Zâmbia. Também é seu grande rompimento com

as teorias na qual a cultura “coordena” as ações sociais. Ao focar sua

atenção naquilo que é feito, não somente naquilo que é pensado, essa

visão parte do princípio de que a cultura é produzida nas relações sociais e

na interação dos sujeitos.

Vitor Turner, portanto, concentra suas atenções nos fenômenos

de liminaridade e em suas características dentro de uma dinâmica social.

Suas principais referências sobre liminaridade são encontradas em

“Floresta de Símbolos” (TURNER, 2005) e “O processo Ritual” (TURNER,

1974). Seus estudos sobre rituais são explorados segundo sua pesquisa

de campo entre o povo Ndembu de Zâmbia e que tornou o autor

conhecido por sua grande contribuição teórica sobre os ritos ancorados

principalmente na idéia de um estado liminar do ritual.

As mudanças paradigmáticas das ciências sociais aconteceram de

forma aguda nos conturbados anos 1960 e 1970. Justamente quando uma

antropologia do paradoxo (citação Da matta) parecia emergir com mais

fôlego. Dessa nova ordem, em decorrência das teorias sobre rituais, uma

antropologia se preocupa agora com uma simbologia e formas estéticas

dos atos comunicativos. É a antropologia da performance. Entretanto, o

foco performático dos olhares antropológicos foi feito depois, na década

de 1980, com o próprio Turner no que se convencionou a chamar de

segunda fase da vida desse autor, quando ele começa a confrontar suas

idéias sobre rituais na sociedade industrial contemporânea.

Se antes pensávamos nos rituais como instâncias de uma

liminaridade latente, agora não podemos mais pensar em um quadro com

esse, já que muitas diferenças opõem a sociedade Ndembu da

contemporânea industrial. Os rituais nesses dois tipos de sociedades não

expressam as mesmas características fundamentais. Uma dessas

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características é que as posições sociais, os estamentos de uma sociedade

tribal são definidos de forma mais clara. Já nas sociedades tribais,

acontece uma fragmentação dos atos simbólicos. O que é essa

fragmentação simbólica dos rituais é o que a os estudos sobre

performance buscam compreender. Turner, portanto, se vê na urgência de

avançar sua proposta de liminaridade, agora para uma antropologia da

performance, com o conceito de liminóide.

A antropologia da performance busca refinar a compreensão

sobre rituais. A fragmentação da ordem social numa sociedade pós-

moderna dificulta pensar sobre as determinações clássicas do processo

ritual como estratégia de pesquisa. Não podemos é claro dispensar todo o

arcabouço teórico formulado por Van Gennep, Turner (em sua primeira

fase, quando pensava sociedades tribais), Durkheim e outros, mas sim

nos apoiar nessas teorias e para então nos iluminar nos difíceis desafios

que a sociedade industrial contemporânea expõe.

Entretanto, algumas distinções se fazem necessárias. Nas

sociedades complexas, por exemplo, as imposições culturais acontecem

de forma menos enérgica. Os envolvidos nos atos performáticos não estão

necessariamente ligados “ontologicamente” ao processo transformativo. O

teatro é um bom exemplo para explicar as relações estabelecidas nas

performances. Os atores conduzem o ato dramático. Eles ministram a

organização de sua prática de forma a negociar com o público seu

desempenho. O público, no entanto, não necessariamente se sente na

obrigação de prestigiar a performance, quanto mais de atribuir

características da tradição ou da norma social como ponto legitimador da

prática social. A relação do público com o ator não é, e não pode ser,

controlada por pressupostos comportamentais de uma organização

institucional. Até mesmo um simples acaso pode ganhar significância no

decorrer das performances. Essa ideia é originária dos ritos liminares,

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segundo o qual a lógica social se inverte, o que antes era proibido agora

pode ser feito.

Entretanto, como aponta Jean Langdon (LANGDON, 1996) o

performer, aquele que orienta os momentos performáticos, estabelece

para com a platéia certa hierarquia segundo uma ordem pela qual a

comunicação se estabelece. Essa hierarquia é totalmente diferente das

regras formais de comportamento outrora conhecidas. O que pode, ou não

ser feito dentro dos atos performáticos é ajustado e promovido de forma

inovadora, e assim “podemos dizer que a estrutura social emerge na

performance, ela é realizada” (LANGDON, 1996, p. 27). Ou seja, a

performance, por apresentar momentos críticos e de conflitos de uma

sociedade, assim como sua ordem liminar, ou liminóide, não se faz em

cima de um momento anárquico. A sociabilidade desenvolvida entre

neófitos nos ritos estudados por Turner, que acontece sem imposições

morais de uma estrutura social, possibilita a formação de uma

sociabilidade até então desconhecida aos olhos dos próprios nativos. A

homogeneidade entre seres transicionais, que juntos atravessam um

momento liminar, potencialmente criam uma nova forma organizacional. A

essa nova criação social humana, Turner chamou de comunnitas

(TURNER, 1974, p. 118). Entretanto, essa nova estrutura emergente

ameaça a tradição. Essa, na verdade, é a idéia do autor quando alertou

sobre as contradições que os rituais expõem, apresentando uma anti-

estrutura no interior da sociedade (TURNER, 1974, p. 130). A liminaridade

não é bem vinda quando transpassa sua função dentro dos ritos. Quando

uma emergente comunnitas ganha força e estabilidade fora dos limites do

ritual ela então deve abdicar de sua liminaridade para garantir coerência

com o resto da sociedade. Mas o que é esse movimento se não uma

transformação social? Assim, temos mais um ponto de aproximação entre

teorias de performances e rituais, mediadas pelo conceito de liminaridade.

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O conceito sobre as ocasiões liminares é tão convincente que é

difícil pensar em transformação social sem pensar em um momento

liminar bem definido e que possibilite tal mudança. É claro que tal

afirmação deve ser feita com muitos receios, já que o foco de Turner

estava voltado para os atos endógenos de uma sociedade, configurados

principalmente nos rituais de passagem.

Entretanto, quando tratamos das performances, antes de pensar

na formação de comunnitas ou em formas anti-estruturais, devemos nos

alertar para o fato de que o contexto vivido por Turner na década de 1960

e 1970, quando ele publicou seus estudos sobre o povo Ndembu, é

completamente diferente do atual. Ainda estamos comparando o que

cuidadosamente chamamos de sociedades tradicionais e sociedades

complexas. A dinâmica nas sociedades que passaram pela revolução

industrial é bastante diversa neste século XXI. Aquilo que é conflituoso e

contraditório deve passar por um exame de relativismo, e perceber a

estética performática desses verdadeiros cismas sociais é o desafio dessa

antropologia da performance. Mas perceber suas características liminares

pode ser um desafio ainda maior.

O conceito de liminaridade estudado nos moldes de Victor Turner

está relacionado aos rituais em sociedades tradicionais e de pequena

escala, como o povo Ndembu. Assim sendo, essas sociedades, segundo o

próprio autor, apresentam ritos de passagem bem definidos, pois suas

posições sócio-estruturais também são bem definidas. Os problemas e

características da vida social estão mais relacionados com as questões

biológicas, principalmente de gênero, ou climáticas. Nessas sociedades os

rituais de passagem são, por excelência, mais marcantes ou relevantes.

Assim sendo, os momentos liminares tendem a serem mais extremados e

suas características simbólicas maximizadas em oposições estruturais.

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É certo que o conceito de liminaridade em Turner influência todo

um arcabouço teórico na antropologia da performance. Se pensarmos nos

atos e simbolismos referentes aos neófitos ou ao ser transicional nos ritos

de passagem, verificamos que muitos desses elementos são elucidativos

do comportamento performático. Sem maiores dúvidas, percebemos que

tanto rituais quanto performances nos revelam rupturas da ordem social.

O que apresentamos como uma ligação, como que por um cordão

umbilical, o conceito de liminaridade e o conceito de liminóide.

Os apontamentos

Após a elucidação das questões sobre rituais e performances

cabe-nos fomentar algumas provocações a fim de discorrer sobre a

trajetória que pretendo dar a esse projeto. Como apresentado, todas as

questões levantadas nesse trabalho buscam a compreensão do conceito

de liminaridade desenvolvido por Vitor Turner exposto em novos

contextos sociais e problemas levantados pela antropologia da

performance. Entretanto, centraremos nosso entendimento a uma

pergunta fundamental, e, a partir dela, poderemos avançar nos estudos

desse projeto. Ou seja, devemos compreender o que é liminaridade no

ritual para entendermos o que é liminóide nas performances. Assim

sendo, nos perguntamos a seguir: Como acontece a reformulação do

conceito de liminaridade nas teorias sobre performance, mais

especificamente a passagem do liminar ao liminóide? O que na realidade

levantamos com essa questão é uma clássica distinção de sociedades

“estáticas” e a moderna industrial. O que mais chama a atenção a grande

atenção ao indivíduo como agente social que as teorias mais recentes,

como a antropologia da performance, concede atenção. Muitas definições

ainda perduram sem um consenso sobre tal dicotomia. Sociedades frias e

quentes, sociedades mecânicas e orgânicas, são alguns dos termos

utilizados,, a dicotomia que proponho discorrer ao longo do projeto de

pesquisa é o momento liminar e o momento liminóide. Para uma questão

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tão antiga nas ciências sociais de modo geral, a ação do indivíduo sobre a

sociedade e da sociedade sobre o indivíduo ainda gera uma grande

discussão paradigmática latente.

Bibliografia:

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Perspectiva, 1976. p. 19-56.

LANGDON, Jean. “Performance e preocupações pós modernas em antropologia”. In: TEIXEIRA, João Gabriel L. C. (org). Performáticos,

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