Ao Pe Da Escada - Lorrie Moore

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por dinheiro epoder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • CIP-BRASIL. CATALOGAO NAFONTE

    SINDICATO NACIONAL DOSEDITORES DE LIVROS, RJ.

    Moore, Lorrie, 1957-

    M813Ao p da escada [recurso

    eletrnico] / Lorrie Moore ;traduo de Maria C. Clarck. -Rio de Janeiro : Record, 2012.

    recurso digital

    Traduo de: A gate at thestairs Formato: ePub

    Requisitos do sistema:

  • Adobe Digital Editions Modo de acesso: WorldWide Web

    ISBN 978-85-01-09968-6(recurso eletrnico)

    1. Fico americana. 2.

    Livros eletrnicos. I. Clarck,Maria C. II. Ttulo.

    12-2100

    CDD: 813CDU:821.111(73)-3

  • TTULO ORIGINAL:A gate at the stairs Copyright 2009 by Lorrie Moore Texto revisado segundo o novoAcordo Ortogrfico da LnguaPortuguesa. Todos os direitos reservados.Proibida a reproduo, no todo ouem parte, atravs de quaisquermeios. Os direitos morais do autorforam assegurados.

  • Editorao Eletrnica da versoimpressa: Abreu's System Direitos exclusivos de publicaoem lngua portuguesa para o Brasiladquiridos pelaEDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina, 171 Rio de Janeiro,RJ 20921-380 Tel.: 2585-2000Produzido no Brasil ISBN 978-85-01-09968-6 Seja um leitorpreferencial Record.

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  • Este livro dedicado aVictoria Wilson e a Melanie Jackson

  • Quanto a viver a vida, deveramos deixar issopara os nossos servos.

    Villiers de Lisle-Adam, Axel

    Suzuki!Puccini, Madame Butterfly

    Todos os assentos dispem de vista idntica para o universo.Guia do Museu do Hayden Planetarium

  • AGRADECIMENTOS

    Meu mais profundo agradecimento a Max Garland e a Charles Baxter, por suas inmerasobservaes. Agradeo tambm a ajuda de Ashley Allen, de David McLimans, de ElizabethRea, da famlia Emily Mead Baldwin, do Instituto de Belas-Artes da Universidade deWisconsin, do Comit de Pesquisa de Ps-Graduao da Universidade de Wisconsin e doprograma WISELI/Vilas. Sou muito grata, igualmente, a Lannan Foundation.

  • OI

    frio chegou tarde, naquele outono, pegando os passarinhos de surpresa. Quando a neve eos vendavais comearam para valer, muitos ficaram desnorteados e, em vez de estaremvoando para o sul ou at de j terem voado, eles formaram bandos nos quintais daspessoas, encorujados em busca de um calorzinho sequer. Eu estava procurando emprego.Como era estudante e precisava de um trabalho como bab, andava de uma entrevista aoutra por esses bairros nobres, mas frios, em que bandos sombrios de sabis-americanosciscavam no piso congelado, com seus tons de cinza e marrom e sua agitao emboraque passarinho, na melhor das circunstncias, no iria parecer agitado? at que, porfim, quando j conclua minha busca, no final de uma semana, as aves desapareceram,surpreendentemente. Eu nem quis pensar no que tinha acontecido com elas. Bom, para sersincera, isso mera fora de expresso por educao, um falso sinal dedesprendimento porque, na verdade, elas no saam da minha cabea: imaginei queestavam mortas, em quantidades assustadoras, num milharal qualquer fora da cidade, ouque acabaram despencando do cu, de duas em duas ou de trs em trs, ao longo dafronteira do estado de Illinois.

    Naquele dezembro eu procurava um trabalho que comeasse em janeiro, no incio dosemestre. J tinha terminado as provas e respondia aos anncios do quadro de empregosna faculdade, que solicitavam assistente para cuidar de crianas. Gostava de crianas srio! ou, melhor, meio que gostava. s vezes, eram interessantes. Eu admirava suafora e sua inocncia. E levava jeito, fazia umas caretas engraadas para os bebs e, paraos maiorezinhos, ensinava uns truques com cartas e falava com um tom teatral esarcstico que desarmava e prendia a ateno deles. Mas no tinha l muito talento paracuidar deles por longos perodos; ficava de saco cheio, talvez como minha prpria me.Depois de muito tempo concentrada nas brincadeiras deles, minha mente ficava vida,ansiando se deleitar nas pginas do livro que eu levava na mochila. Eu sempre torcia paraque as crianas fossem para cama mais cedo ou tirassem umas sonecas prolongadas.

    Eu tinha vindo da escola Dellacrosse Central e de uma fazendinha na velha PerryvilleRoad para a cidade universitria de Troy, a Atenas do Meio-Oeste, como se tivesse sadode uma caverna, igual ao filho do xam de uma tribo colombiana, sobre quem li na aula deAntropologia Cultural, um garoto que se tornou mstico depois de ser mantido no escurodurante a maior parte da infncia, sem ter qualquer experincia do mundo exterior, apenaspelas histrias que escutava. Quando finalmente deixaram que o menino sasse luz dodia, ele ficou num estado permanente e sagrado de perplexidade e admirao; nenhumahistria podia se comparar experincia em si. E foi assim comigo tambm. Nada tinhame preparado de fato. Nem o dinheiro do cofrinho, economizado para a universidade, nemos ttulos da poupana feita pelos meus avs, nem a coleo usada de enciclopdias WorldBook, com os grficos coloridos e chamativos da produo internacional de trigo e asfotografias dos lugares de nascimento dos presidentes. O mundo verde e plano da fazendade meus pais, sem porcos nem cavalos a monotonia, as moscas, o silnciointerrompido diariamente pelos vapores e pelos roncos da maquinaria , tomou outra

  • forma, passando a me proporcionar uma vida urbana muito fecunda de livros, filmes eamigos espirituosos. Acenderam a luz. Me tiraram da caverna de Perryville Road. Meucrebro estava a toda com Chaucer, Sylvia Plath, Simone de Beauvoir. Duas vezes porsemana um professor jovem, chamado Thad, de jeans e gravata, ficava na frente de umauditrio cheio de alunos do interior, embasbacados como eu, e falava com entusiasmosobre Henry James e a masturbao da vrgula. Eu ficava boquiaberta. Nunca tinha vistoum cara usar jeans com gravata.

    A caverna tinha criado um ser mstico; minha infncia produziu apenas eu.Nos corredores, os alunos trocavam ideias sobre Bach, Beck, balcanizao e guerra

    biolgica. E me faziam perguntas do tipo: Voc l do interior, n? verdade que quemcome fgado de urso morre? Ou: J conheceu algum que fez voc-sabe-o-que com umavaca? E ainda: srio que porco no come banana? A nica coisa que eu sabia quebode no come lata, eles s gostam de lamber o molho no rtulo. Mas ningum nunca meperguntou isso.

    Do nosso ponto de vista naquele semestre, os eventos de setembro que a genteainda no chamava de 11 de Setembro pareciam ao mesmo tempo prximos edistantes. Os alunos de cincias polticas fizeram manifestaes e vociferaram nos ptiose nas zonas de pedestres: A gente colhe aquilo que planta! A gente colhe aquilo queplanta! Quando eu observei tudo aquilo a colheita, as plantas , foi como se estivesseem meio a uma multido que se acotovelava diante de uma proteo de vidro, como eusabia (por causa da aula de Histria da Arte) que as pessoas faziam para ver a Mona Lisano Louvre: La Gioconda!, seu prprio nome trazendo mente uma cobra, seu sorrisofurtivo e firme, misterioso a distncia, mas perscrutado cata de sinais significativos.Foi, como o prprio setembro, como um gato trazendo um monte de canrios na boca.Murph, que dividia o apartamento comigo uma loura de piercing no nariz da cidade deDubuque que rangia os dentes, usava sabonete e fio dental pretos, sempre dava opiniesduras (ela pronunciava Dubuque Du-ba-kiu) e que tinha uma vez deixado as professorasde ingls chocadas quando afirmou que o personagem que mais admirava, em toda aliteratura, era Dick Hickock, de A sangue-frio , tinha conhecido o namorado no dia 10 desetembro e, quando acordou na casa dele, me ligou, horrorizada e feliz, com a TV salturas.

    Eu sei, eu sei ela disse, com desdm. Foi um preo terrvel para pagar por umapaixo, mas foi preciso.

    Ergui a voz e exclamei com zombaria: Sua doente! Morreu um monte de gente! E voc a s pensando no prprio prazer!E ns duas camos numa espcie de histeria, gargalhadas assustadas, culpadas e

    desesperanadas que nunca cheguei a presenciar numa mulher com mais de 30. Bom comecei a dizer, percebendo que de repente no a veria muito dali para a

    frente , v se no rala e rola, no rala tanto, hein? Fala srio disse ela. Ralar roubada e no rola.Eu ia sentir falta dela.Apesar de as salas de cinema terem fechado por duas noites e de, durante uma

    semana, at a professora de ioga ter hasteado uma bandeira americana e se sentado

  • diante dela, na posio de ltus, de olhos fechados, dizendo: Vamos respirar fundo agora,em homenagem ao nosso grande pas (Eu olhava ao redor feito louca, sem nuncaconseguir chegar respirao correta), a maioria das nossas conversas se voltava, deforma chocante e flexvel, para outros assuntos: as backing vocals de Aretha Franklin ouqual restaurante coreano servia a melhor comida chinesa. Antes de ir para Troy, eu nuncatinha provado comida chinesa. Mas agora, a dois quarteires do meu apartamento, perto deuma sapataria, tinha um lugar chamado Caf Pequim, aonde eu ia sempre que podia paracomer Delcia de Buda. No caixa do restaurante, caixinhas de biscoitos da sorte quebradoseram vendidas com desconto. S quebrado biscoito, prometia a placa, no sorte.Prometi a mim mesma comprar uma caixa daqueles biscoitos um dia, para ver que tipo demensagem obscura, mstica ou mercenria, mas confuciana! estaria ali, a granel.Enquanto isso, eu os colecionava um por um, a cada vez que a conta chegava no final comum biscoito em cima, rpida e eficientemente, antes mesmo que eu acabasse de comer.Talvez eu demorasse demais. Cresci comendo fish and chips e vagem na manteiga ssextas-feiras (durante anos, contou minha me, a margarina, por ser considerada artigoestrangeiro, s podia ser comprada do outro lado da fronteira, em barracas montadas dequalquer jeito ao longo da estrada PARQUE DO PARKAY, diziam as placas logo depoisdo outdoor de boas-vindas do governador de Illinois, e os fazendeiros diziam, por entredentes, que s os judeus compravam ali). Ento, agora, aquelas verduras chinesasesquisitas pequenas e cheias de fungo, mergulhadas no molho shoyu exerciam emmim o fascnio de uma aventura ou de um ritual, um manifesto a ser apreciado. L emDellacrosse s havia dois tipos de jantar: o casual, em que se comia de p ou se levavaa comida para casa, e o sofisticado, que a gente chamava de refeio mesa. NoRestaurante Familiar Wie Haus, aonde amos para comer uma refeio mesa, ascadeiras eram de couro sinttico vermelho, e as paredes, decoradas com asgemtlichkeiten locais: painis escuros e quadros kitsch autnticos, de bobos da corte epastoras de olhos esbugalhados. No cardpio do caf da manh estava escrito GutenMorgen. Os molhos eram chamados de caldo. No menu do jantar tinha almndega decoalhada e fil cozido ao gosto do fregus. Sexta era dia de peixe frito com batata fritaou cozida, que eles faziam com peixes-advogado (lota-do-rio ou iota), assim chamadosporque tinham o corao na bunda. (Eles eram pescados no lago da regio, em cujasreas de piquenique havia latas de lixo com as seguintes palavras escritas: NO JOGARTRIPA DE PEIXE.) No domingo no s tinha marshmallow, salada de cereja ao marasquinoe uma coisa chamada Gelatina da vov como tambm costela com au jus oconhecimento de francs, ou de ingls ou at de corantes alimentares, no era o forte dorestaurante. la carte significava sopa ou salada; jantar queria dizer sopa e salada. Omolho de Roquefort era chamado de molho Rockford. O vinho da casa tinto, branco ouros possua os indispensveis buqus de rosa, sabonete e grafite, alm de umresqucio de feno e um toque de Cafund do Judas, apesar de o cardpio no mencionarnada disso, restringindo-se apenas a referncias simples a respeito de seu aroma. Servia-se cerveja clara e preta. De sobremesa geralmente tinha torta glckschmerz, cujaaparncia leve e cuja consistncia lembravam um montinho de neve. Depois da refeio

  • batia o sono.Mas agora, longe e sozinha, seduzida e versada em molho shoyu, eu me sentia mais

    magra e mais viva. Os donos asiticos do restaurante me deixavam fazer hora com meuslivros e ficar o tempo que quisesse:

    Pla qu plessa? Nada de colelia! diziam amavelmente, enquanto borrifavamdesinfetante nas mesas mais prximas.

    Eu comia manga e mamo e usava um palito sabor canela para tirar os restinhos decomida dos dentes. Apreciava um biscoito elegantemente dobrado, com um nervinho depapel assado dentro da orelha de massa comestvel. E, numa xcara sem ala, tomava umch quente e inspido que era requentado depois de retirado do frigorfico, onde ficavaguardado num balde.

    Eu puxava o pedacinho de papel das dobras rgidas do biscoito e o usava comomarcador de pgina. Todos os meus livros tinham tirinhas com mensagens de sorteprojetando-se das folhas como rabinhos. Voc o noodle crocante na salada da vida. Voc dono do prprio destino. Murph costumava acrescentar a frase na cama a qualquermensagem desses biscoitinhos, ento, mentalmente, eu tambm os lia assim: Voc dono do prprio destino. Na cama. Bom, era verdade. A dvida sedutora e mentirosa. Nacama. Ou s vezes no funcionava to bem: Seu destino vai florescer feito uma flor.

    E ainda aquela tipo engraadinha: Uma mudana reconfortante est para ocorrer. svezes, para tirar onda, eu acrescentava s que NO na cama.

    Voc ganhar dinheiro em breve. Ou A riqueza o homem da mulher esperta.S que NO na cama.Ento eu precisava arrumar trabalho. J tinha doado plasma um monto de vezes em

    troca de dinheiro, mas da ltima vez que eu fora clnica haviam me mandado embora,alegando que meu plasma estava turvo porque eu tinha comido queijo na noite anterior.Plasma turvo! Melhor virar contrabaixista! Era muito difcil no comer queijo. At mesmoo requeijo, que a gente chamava zombeteiramente de queijo pedreiro (porque podia serusado como massa corrida ou argamassa de rejuntar ladrilhos) tinha um certo apeloreconfortante. Eu dava uma olhada nos classificados todos os dias. Cuidar de crianasestava em alta: assim que terminei meus trabalhos finais fui atrs das vagas.

    Uma aps a outra, grvidas quarentonas penduravam meu casaco, me convidavam asentar na sala da casa delas, iam feito patas at a cozinha, pegavam meu ch e voltavamfeito patas, uma das mos segurando as costas, a outra, que carregava a xcara,derramando ch no pires, e comeando as perguntas. O que voc faria se meu bebezinhocomeasse a chorar sem parar? Tem disponibilidade noite? O que consideraria umaatividade educacional saudvel para uma criana pequena? Eu no fazia ideia. Nunca tinhavisto tanta mulher grvida em to pouco tempo cinco, no total. Fiquei impressionada.Elas no pareciam radiantes de felicidade. Pareciam avermelhadas pela presso sanguneaalta e assustadas. Eu colocaria o beb no carrinho e o levaria para passear, respondi.Sabia que minha me nunca tinha feito essas perguntas para ningum.

    Meu bem ela me disse uma vez , se o lugar fosse minimamente resistente aofogo, eu deixaria voc em qualquer parte.

    Minimamente? retruquei.

  • Ela quase nunca me chamava pelo meu nome, Tassie. Dizia Bem, Meu bem, Benzinhoou Tassita.

    Eu no iria me preocupar e ficar me metendo na sua vida.A nica judia que conheci que pensava assim. Se bem que ela era uma judia casada

    com um fazendeiro luterano chamado Bo, e talvez por isso agisse com o mesmodesprendimento indiferente das mes das minhas amigas. J na metade da infncia eu medei conta de que ela era praticamente cega tambm. Era a nica explicao possvel paraos culos fundo de garrafa, que, na maioria das vezes, nem conseguia encontrar. Ou parao caleidoscpio de vasos sanguneos estourados, como uma petnia, em seus olhos, o tomescarlate despontando no branco por causa de uma simples vista cansada ou por um golpedescuidado da mo. Isso explicava o seu jeito estranho de evitar meu olhar quando a genteconversava, olhando fixamente para a mesa ou para o piso de cermica, como seplanejasse, desanimada, limp-los, enquanto a fria raramente contida jorrava de minhaboca em frases que eu esperava que atuassem, embora talvez no naquele momento, esim mais tarde, como canivetes em sua mente.

    Voc vai viajar na poca do Natal? perguntou a grvida.Tomei um gole do ch. Sim, vou para casa. Mas volto em janeiro. Que dia de janeiro?Dei minhas referncias s futuras mes, assim como um resumo escrito da minha

    experincia profissional. Que no era muita eu s tinha trabalhado com os Pitsky e osSchultz, l na minha terra. Alm disso, uma vez, para um trabalho sobre reproduohumana, eu tinha carregado durante uma semana inteira um saco de farinha deconsistncia e peso iguais aos de um beb. Eu o cobri, abracei, coloquei em lugaresseguros e acolchoados para tirar umas sonecas, mas uma vez, quando ningum olhava,soquei-o na mochila junto com um monte de canetas pontudas, e ele acabou furando. Meuslivros, cheios de p branco durante o resto do semestre, viraram motivo de piada na sala.Bom, no inclu isso no currculo. Mas o resto estava tudo l. E, para fechar com chave deouro, como dizia meu pai, eu fui s entrevistas com o que as lojas de departamentochamavam de terninho profissional, pois achei que as mulheres poderiam curtir umpouco de seriedade. Afinal, elas eram profissionais. Duas eram advogadas, uma jornalista,outra, mdica e a quinta, professora. Onde que estavam os maridos? Ah, no trabalho,elas respondiam, vagamente. Todas exceto a jornalista, que exclamou:

    Boa pergunta!A ltima residncia era uma casa em estilo campestre de estuque acinzentado, com

    uma chamin coberta de hera seca. Eu tinha passado por ali na semana anterior ficavanum terreno de esquina e visto muitos passarinhos por l. Agora restava apenas umarea branca e plana. Uma cerca baixa circundava essa brancura e, quando abri o porto,ele se inclinou um pouco; uma das dobradias estava solta, sem um dos pregos. Fuiobrigada a ergu-lo para fech-lo. Essa manobra, que eu tinha feito vrias vezes na vida,remeteu-me a coisas boas organizao, restaurao, meu toque mgico! quando, naverdade, deveria ter transmitido outra coisa: a decadncia maldisfarada de algum,objetos negligenciados, consertados sem cuidado, tratados com displicncia pelo dono. Dali

  • a pouco todo o porto precisaria ser amarrado com uma corda elstica, como o meu paifez, certa vez, com a porta no celeiro.

    Dois degraus de ardsia de cores estranhamente diferentes conduziam a uma caladade lajotas mais abaixo, que, assim como a grama, estava inteiramente coberta por umafina camada de neve eu imprimi ali as primeiras pegadas do dia; talvez a porta dafrente raramente fosse usada. Havia alguns crisntemos, mesmo secos, nos vasinhos davaranda. O gelo congelara as flores. Uma p e um ancinho estavam apoiados na parede dacasa, e dois catlogos de telefone tinham sido largados num canto, ainda com o invlucrode plstico.

    A dona da casa abriu a porta. Era plida e mida, sem flacidez nem bolsas sob os olhos, apele branca firme sobre a estrutura ssea. Nas mas do rosto havia passado um blushescuro que lembrava o plen de um lrio asitico. Tinha os cabelos bem curtos e tingidoscom um brilhante castanho-avermelhado fashion, como o de uma joaninha. Os brincoseram botes de um laranja intenso; a caa legging, cor de mogno; o suter, ferrugem; eos lbios, marrons. Ela parecia um experimento rigorosamente controlado de oxidao.

    Entre disse ela, e foi o que fiz, no incio calada e em seguida, como sempre,pedindo desculpas, como se estivesse atrasada, apesar de no estar.

    Naquela poca eu nunca me atrasava. S um ano depois eu comearia a ter, de umahora para outra, dificuldade para me apegar a qualquer noo de tempo, inevitavelmentedeixando amigas sentadas esperando por uma meia hora aqui e ali. O tempo passariavoando por mim de um jeito indetectvel ou absurdo risvel, quando eu podia rir , emquantidades impossveis de se contar ou obedecer.

    Mas naquela poca, aos 20 anos, eu era pontual como um padre. Padres so pontuais?Criada na caverna, no torpor divino, eu achava que sim.

    A mulher fechou a porta de carvalho macio quando entrei, e eu bati os ps no capachotranado sobre o qual me encontrava, para tirar a neve. Ento, fiz meno de tirar ossapatos.

    Ah, no precisa disse ela. A cidade j est cheia dessa frescura japonesa. Podetrazer a lama.

    Ela deu um sorriso largo, exagerado, meio desvairado. Eu j tinha me esquecido donome dela e esperava que a mulher o dissesse logo; se no o fizesse em breve,provavelmente no o faria mais.

    Tassie Keltjin apresentei-me, estendendo a mo.Ela pegou minha mo e esquadrinhou meu rosto. Claro disse, lenta e distraidamente, perscrutando cada um de meus olhos de

    forma desconcertante. O olhar traou um crculo vagaroso e observador em torno do meunariz e da minha boca. Sarah Brink acrescentou, por fim.

    Eu no estava acostumada a ser olhada to minuciosamente, nem que o objeto para oqual eu olhava me olhasse de volta. Minha me com certeza nunca tinha feito isso e, demodo geral, meu rosto transmitia o tipo de expresso tapada que no incentivava umescrutnio universal. Eu sempre me sentia to escondida quanto o talo de um morango, to

  • secreta e fetal quanto a mensagem da sorte enrolada dentro de um biscoito, e essaclandestinidade tinha l suas vantagens, seus egocentrismos, suas grandiosidadesalimentadas por mgoa. Bom, me d seu casaco disse Sarah Brink por fim, e sento, enquanto ela o pegava e percorria o hall de entrada para pendur-lo, eu me deiconta de que era uma mulher magra feito um palito, nem de longe grvida.

    Sarah me levou at a sala, parando antes ao janelo que dava para os fundos. Eu fuiatrs, tentando acompanhar o que ela fazia. No jardim, boa parte de um carvalho partidopor um relmpago havia sido cortado e empilhado prximo garagem, para servir de lenhano inverno. Perto do toco antigo, outra rvore delgada, nova, com a aparncia de umpalito de coquetel tinha sido plantada, apoiada e cercada com trelia. Mas Sarah noestava analisando as rvores.

    Ah, pelo amor de Deus, olhe s aqueles pobres cachorros comentou.Ns ficamos ali paradas, observando. Uma cerca eltrica invisvel mantinha os ces do

    vizinho no jardim. Um deles, um pastor-alemo, j entendera o funcionamento da cerca,mas o outro, um terrier pequeno, no. O maior deu incio brincadeira de correr atrs domenor, levando-o direto para o limite da rea, mas parando antes e deixando o outro ir atoda de encontro eletricidade. A o terrier, aturdido, recuava correndo, ganindo de dor.Isso divertia o pastor-alemo, que continuava com o jogo, e o pequeno, louco para brincar,acabava esquecendo e recomeava, vindo a bater de novo na barreira eltrica e a uivar.

    Eles esto assim h semanas. A vida a dois... comentei, e Sarah voltou a cabea em minha direo, para me

    avaliar de novo.Naquele momento, notei que ela era pelo menos 5 centmetros mais alta que eu; dava

    at para espiar dentro das narinas dela, no emaranhado de pelinhos parecido com osgalhos entrecruzados vistos da base de uma rvore. Ela sorriu, o que fez com que asmas do rosto se elevassem e o blush sobre elas parecesse sombrio e inapropriado.Enrubesci. Vida a dois? O que que eu sabia sobre isso? A garota que dividia oapartamento comigo, Murph, era quem se encarregava dos relacionamentos, e basicamentetinha me abandonado para ir passar todas as noites com o cara que acabara de conhecer.Mas tinha deixado como herana o vibrador, um troo que girava e zunia e que, quandoligado na velocidade mxima, rodopiava no ar como um dedo gordo e entediado de algum.Com que pnis ele poderia ser comparado? Talvez com o de um homem que tivessetrabalhado num circo! Quem sabe Burt Lancaster, em Trapzio. Aquele treco continuou nobalco da cozinha, onde Murph o tinha deixado, e de vez em quando eu o usava paramisturar o leite com chocolate. Uma vez, no ano anterior, eu at havia tido um encontro;me preparei para o momento, em estado de transe, indo a uma loja de lingerie ecomprando um suti preto taiwans de 45 dlares, com enchimento de leo e gua, aro desustentao e toque natural um seio completo em si, fosse l quem o usasse; quando ocoloquei no meu prprio peito, ele pareceu um bichinho escuro, encaixado ali para mamar.Eu tinha a agradvel sensao de estar flutuando quando o usava; me sentia animada edisposta a qualquer sacrifcio, como se aquele suti aumentasse minhas chances desucesso no mundo, tendo o meu peito de verdade ficado (brinquei certa vez) num pedestaldo subsolo da biblioteca da Dellacrosse, para eu melhorar minha postura.

  • Toda essa preparao acabou tendo o mesmo efeito que o ftil enfeitar-se de umamosca: o coitado do rapaz pigarreou e me confessou ser gay. Ficamos deitados juntos naminha cama, s parcialmente nus, nossa roupa ntima preta fazendo uma propagandaenganosa da experincia. As costas dele estavam rosadas de tanta acne: as verdadeirasespinhas dorsais, segundo ele. Passei a ponta do dedo naquelas bolinhas, uma espcie debraile, e a mensagem que transmitiam era a de energia e preocupao.

    Mais gay que a fita do chapu do Dick anunciou ele, a franqueza, ou a simulaodela, tornando-se o ataque mais eficaz e vil contra a esperana (uma esperana que, parausar a expresso de meu pai, fora folheada a covardia e se transformara em expectativa).

    A fita do chapu de Dick? repeti, fitando o teto. Eu no fazia ideia do que aquilosignificava. Pensei, calada e pasma, na fita de um chapu que Dick Hickock possivelmenteusaria. Ficamos acordados por uma hora aps a confisso dele, ambos trmulos echorosos, quando ento nos levantamos e, sabe-se l por qu, resolvemos fazer um bolo.A inteno era fazer sexo e acabamos fazendo um bolo? Eu gosto muito, muito mesmode voc comentei, assim que o bolo ficou pronto, e, como ele no disse nada, umsilncio persistente e pesado espalhou-se no ambiente e reverberou como um rudo.Acrescentei, sem graa: Tem eco aqui?

    Ele me olhou com pena e disse: Bem que eu gostaria que tivesse, mas no tem.Ento ele foi ao banheiro e saiu de l com a minha maquiagem toda no rosto, o que,

    por algum motivo, acabou me deixando com a sensao de que ele estava mentindo sobreaquela histria de ser gay.

    Sabe comecei a dizer, testando o cara mas tambm, e acima de tudo, implorando, se voc se concentrasse, podia ser htero. Tenho certeza. s relaxar, fechar os olhosde vez em quando e mandar brasa. A heterossexualidade... bem, exige muita concentrao! acrescentei, com um tom de voz suplicante. Exige muito de todo mundo!

    Provavelmente mais do que eu tenho para dar ressaltou ele.Eu lhe fiz um caf ele pediu leite, depois leite gelado, depois guardanapos e, em

    seguida, foi embora, levando uma fatia de bolo quente.Nunca mais vi o sujeito de novo, salvo uma vez, rapidamente, do outro lado da rua,

    quando eu ia para a aula, caminhando. Ele tinha raspado a cabea, usava botas roxas eestava na chuva sem capa. Andava num zigue-zague saltitante, como se desviando dasbalas de um franco-atirador. Ia com uma mulher de mais de 1,80m e um pomo de adoto grande que era como se tivesse engolido uma das mos fechada. Um cachecolcomprido dele ou dela? No sei; em alguns momentos parecia ser dos dois esvoaava exuberantemente atrs deles, como a rabiola de uma pipa.

    Sarah se virou novamente para o janelo. Os vizinhos acabaram de instalar essa cerca invisvel. Em novembro. Tenho certeza

    que causa esclerose mltipla ou algo assim. Quem so? eu quis saber. Quer dizer, os vizinhos.Eu demonstraria um interesse antropolgico pelo bairro. Nenhuma das mulheres que me

    entrevistaram tinha ligado de volta. Talvez estivessem em busca de algum queassumisse o controle e fosse animada e eu lhes houvesse dado a impresso de ser sem

  • sal, difcil de me relacionar. Eu j tinha comeado a me preocupar, pois, se no tomassecuidado com minha passividade, isso poderia se tornar um hbito, um tique, algopermanentemente incorporado, que minhas idiossincrasias continuariam a expressardurante toda a vida, independentemente de meus esforos como uma alcolatra que,apesar de ter deixado o vcio, continuava a cambalear e a engolir as palavras como umabbada.

    Os vizinhos? A expresso de Sarah Brink pareceu falsamente animada, com osolhos arregalados. O tom de voz se tornou montono e teatral. Bom, ali naquele canilmora Catherine Welbourne, o marido dela, Stuart, e o amante dele, Michael Batt. OsWelbourne e os Batt. Quem poderia inventar sobrenomes assim?

    Ento Michael gay? quis saber, talvez sem demonstrar muito interesse. Bom, . As pessoas comentam muito isso. Michael gay, os vizinhos cochicham,

    Michael gay. Michael gay. Tudo bem, Michael gay. Mas claro que o caso aqui tema ver com o fato de Stuart ser gay.

    Os olhos de Sarah brilharam de satisfao, com o fulgor frentico mas banal daestao natalina e suas baboseiras.

    Pigarreei. E o que Catherine pensa disso tudo? arrisquei. Tentei sorrir. Catherine. Sarah suspirou e se afastou do janelo. Catherine. Catherine. Bom,

    ela passa muito tempo no quarto, ouvindo Erik Satie. A mulher que serve de fachada,coitada, geralmente a ltima a saber. Mas olha s. Ela quis mudar de assunto naquelemomento e tratar do que precisava. Sente-se. Vamos ao que interessa. Fez um gestocom o brao, movimentando-o bruscamente, em um espasmo. Cuidar de criana comeou a dizer, mas parou de repente, como se aquilo bastasse.

    Eu me sentei num sofazinho estofado, com uma espcie de capa. Em ingls, os termosCuidar de crianas, tal como Cuidar da sade, tinham, cada um deles, sido englobados emuma nica palavra, childcare e healthcare. E eu estava para me incumbir da primeira. Abriminha mochila e comecei a fuar dentro dela, procurando uma cpia do meu currculo.Sarah se sentou na minha frente, em outro sof, tambm encapado. Ela ergueu e enroscouas pernas de tal forma, que a parte inferior de uma pareceu se projetar da metadesuperior da outra, como se ela tivesse os joelhos de uma gara, voltados para trs. Comocomeou a pigarrear, parei de remexer e pus a mochila ao meu lado.

    Este ar de inverno j est me afetando comentou Sarah. Ela se virou e tossiu denovo, com fora, aquela tosse seca que os mdicos chamam de no produtiva. Bateu deleve na barriga lisa. O negcio o seguinte repetiu. Ns vamos adotar.

    Adotar? Um beb. Vamos adotar um beb daqui a duas semanas. por isso que colocamos o

    anncio em busca de uma bab. Queramos providenciar algum com antecedncia, paraficar em alguns horrios predeterminados.

    Eu no sabia nada sobre adoo. No mximo tinha conhecido uma garota adotadaquando era mais nova, Becky Sussluch, uma menina mimada e bonita que, aos 16 anos, jestava tendo um caso com um monitor confuso e bonito que eu mesma vinha paquerando.De modo geral eu pensava em adoo do mesmo jeito que pensava na maior parte das

  • coisas da vida: com inquietude. Parecia ser ao mesmo tempo uma piada cruel e um sonhobom uma forma interessante de evitar o sangue e a dor do parto ou, do ponto de vistada criana, a fantasia realizada de seus pais no serem seus pais de verdade. Seus genespoderiam erguer um dos braos e comemorar. Beleza! Voc no era de fato parente deles!Por incrvel que parecesse, na mquina de selos do correio, eu tinha acabado de compraros recm-emitidos selos sobre adoo Adote uma criana, Forme uma famlia, Crie ummundo e, animadamente, usei vrios nas cartas que mandei para minha me, em casa.Senti que tinha o direito a essa ligeira maldade. Discreta e passvel de ser negada.

    Parabns! sussurrei, naquele momento, para Sarah. Era isso que se deveria dizer?A face dela se animou de imediato, agradecida, como se ningum lhe tivesse dito ainda

    uma palavra encorajadora sequer sobre aquilo. Puxa, obrigada! Tenho tanto trabalho no restaurante que as pessoas para quem conto

    isso agem de um jeito peculiar e reservado, mostrando uma preocupao irritante comigo.Exclamam mesmo!?, e toda a tenso se concentra na boca deles. Acham que estouvelha demais.

    Concordei com a cabea, sem querer. No sabia, no que dizia respeito conversa, emque p estvamos. Eu me esforcei, como me via fazendo at demais, para encontrar aspalavras ou at mesmo o tom de voz para usar no dilogo. Fiquei imaginando quantos anosela devia ter.

    Sou dona do Le Petit Moulin acrescentou Sarah Brink.Le Petit Moulin. J tinha ouvido falar, ainda que pouco. Era um daqueles restaurantes

    caros do centro da cidade, cada prato enfeitado com raminhos de endro fresco, cada sopae sobremesa to refinadamente gotejada quanto um Pollock, cada costela e fil salpicadocom p de alfazema de fadas; o tipo de estabelecimento nunca frequentado porestudantes, a menos que estivessem comeando a sair com um cara de uma fraternidadeou a namorar um assistente de decano ou se estivessem mostrando o lugar em queviviam aos preocupados pais que vinham do subrbio para visit-las. Eu sabia que o LePetit Moulin servia pratos com nomes que lembravam instrumentos timbales equenelles e que s Deus sabia o que eram. Uma vez tentei avaliar o cardpio na vitrineiluminada prxima entrada e, enquanto fitava as palavras, a dor do meu prprio exlio fezmeus olhos marejarem. Naquele restaurante provavelmente serviam as batatas do meupai, embora ele no tivesse condies de entrar ali. O jantar mais barato custava 22dlares, o mais caro, 45. Quarenta e cinco! Dava para comprar um suti com enchimentode gua e leo com esse dinheiro!

    Busquei meu currculo de novo, na bolsa; por fim, encontrei-o dobrado e amassado,mas o entreguei assim mesmo para Sarah. Comentei:

    Meu pai era fornecedor para alguns dos restaurantes daqui. Acho que j faz algunsanos.

    Ela leu meu currculo. Voc parente de Bo Keltjin, das batatas Keltjin?Fiquei surpresa ao ouvi-la citar as batatas do meu pai Kennebcs, Norlands, Pontiacs,

    Yukon Gold, algumas do tamanho de bolinhas de gude, outras grandes como um melo,dependendo dos perodos de estiagem e de plantio, bem como do que os besouros

  • andavam aprontando ali, na sala da casa dela. o meu pai. Puxa, eu me lembro bem dele. As batatas Klamath Pearl que ele vendia eram

    famosas. E tambm as selvagens, alongadas feito dedos. Ele foi o primeiro a vender assortidas, em tons de rosa e roxo, nas cestinhas de frutas, como se fossem joias. Eaquelas batatas novas que resolveu chamar de ovos de pato Keltjin. Eu tinha uma teoriasobre elas.

    Assenti. Ao voltar da lua de mel na Inglaterra com minha me, meu pai tinha passadoclandestinamente pela alfndega de Chicago com uma batata Jersey Royal com vriosbrotos. Assim que chegou a Dellacrosse, ele passou a cultiv-las em vasos e tinas noceleiro, durante o inverno, e no solo, na primavera. Ele vendia essas batatas para osrestaurantes como ovos de pato.

    Eu ia correndo para o mercado agrcola s 6 da manh para compr-las. Todo msde abril eu as inclua de novo no cardpio. Ela estava comeando a devanear. Aindaassim, foi bom ouvir elogios a meu pai. Ele no era muito respeitado como fazendeiro lna nossa regio: o pessoal o considerava um amador, um hortaliceiro, um sujeito semacres suficientes, com apenas alguns patos (que todo outono estupravam uns aos outroscom tanta violncia, que nunca nos acostumamos), um cachorro, um trator, um site nainternet (um site, pelo amor de Deus!) e duas vacas simplesmente decorativas, de caramalhada e produo leiteira aleatria. (Chamavam-se Bess e Guess, ou Leiteira e Adubeira,segundo meu pai, e ele no as deixava pisotear nas margens do riacho, como a maioriados fazendeiros das redondezas fazia com as vacas deles. Uma vez eu tirei leite da Bess,tomando o cuidado de cortar as unhas antes, para no a machucar; o contato ntimodemais com a teta peluda e cheia de veias cor de alfazema quase me fez vomitar. Estbem, voc no precisa fazer isso de novo no, disse meu pai. Que tipo de filha defazendeiro eu era? Eu tinha apoiado a testa no flanco de Bess para me equilibrar, e aquelecalor repentino, juntamente com meu prprio mal-estar, fez com que eu tivesse asensao de que a adorava.) A gente tambm teve uma porca agitada chamada Helen, queatendia quando a chamvamos pelo nome e sorria feito um golfinho quando falvamoscom ela. At que ela sumiu por uns dias e, numa bela manh, quando comamos ovos ebacon, meu irmo perguntou:

    Isso a Helen?Eu deixei o garfo cair e gritei: Isso a Helen? a Helen?!Minha me tambm parou de comer e olhou fixamente para meu pai: Bo, a Helen?Nunca chegamos a conhecer o outro porco que tivemos; o nome dele era #WK3746.

    Depois compramos uma cabra fofa mas caprichosa, chamada Lucy, que s vezes, juntocom nosso cachorro, Blot, perambulava pelo jardim, livre como um passarinho.

    Meu pai era menosprezado entre os outros fazendeiros por ter apenas alguns gnerosalimentcios. A fazenda dele era uma reles horta que fugira levemente do controle sum pouco mesmo. E ele no tinha pintado o celeiro com aquele tom vermelho ordinrio,prprio para camuflar sangue, que o restante do pas usava (e que, em contraste com os

  • campos e arbustos verdes, fazia minha me se lembrar demais do Natal), mas combranco e azul-celeste, e esse detalhe era citado com frequncia nos armazns domunicpio. (Embora eu achasse que as cores agradassem minha me por fazerem comque se recordasse do Chanuca e de Israel, ela afirmava que desdenhava ambos. Acapacidade de ser feliz da minha me equivalia a um minsculo osso de mocot paratemperar um panelo inteiro.) Alm do mais, nossa casa era sofisticada demais para ospadres locais tijolos de tom creme misturados com outros avermelhados formavamum padro dourado e rosa-escuro, e o telhado de mansarda de um fazendeiro prspero,embora meu pai no o fosse. Meu pai pintava as tbuas de madeira dos beirais ora demarrom ora de laranja ora de roxo berrante ele mudava a cor todo vero. Quem elepensava que era, um veadinho do Bal de Minnesota? s vezes fazia-se de surdo e ia emfrente, seguindo o prprio rumo e seu senso de humor. Construiu sozinho uma sala deestar baseada nos preceitos ecolgicos, a primeira da regio; ele mesmo preparou umamistura de argamassa de barro e a chapiscou nos fardos tranados de palha metidos entreas vigas. Os vizinhos no ficaram impressionados: Cruz credo! O Bo construiu umacabana de barro e palha junto da maldita casa dele. As soleiras eram de calcrio, mas dotipo reconstitudo, e meu pai s as despejou l. Ele quase nunca se deixava dissuadir.Adorava o velho celeiro azul de laticnios, com os baldes enferrujados jamais descartados,e o riacho adjacente, que ainda gelava o leite e flua at um criadouro de peixinhos.Possua um arboreto e alguns campos cultivveis. Na verdade era uma mera agricultura demontanha, mas para os habitantes locais meu pai parecia ser um sujeito meio desprezvel,excntrico demais. O pessoal achava que as idiossincrasias dele ultrapassavam a esferada autenticidade social e ingressavam no mbito das questes de Deus, do ser humano eda existncia. Meu pai tentava no usar sementes hbridas no plantava nem pepinocom propriedades digestivas , ento a alface florescia precocemente. Talvez elesachassem aquilo hilrio bem como a propriedade reduzida, a frequente ausncia nosjantares da igreja e nas feiras anuais, alm de uma esposa esquisita, de etnia incerta, queia dormir tarde demais para uma mulher de fazendeiro e no se mantinha ocupada obastante com os afazeres. (Minha me tinha instalado grandes espelhos na parte de trsdos canteiros de flores para aumentar a aparncia do jardim, em vez de aumentar suaextenso real.) Era pior do que se estivesse se baseando num livro: no, meu pai pareciase orientar por algum artigo de revista; at os criadores de ginseng eram maisrespeitados que ele. Ainda assim, ele tentava agradar plantava uma pequena rea desoja chamariz para revigorar o solo e atrair as pragas da alfafa dos vizinhos, dando umamozinha para eles. Costumava alternar os cultivos, no apenas por causa do solo comotambm para fazer uma brincadeira divertida e confundir o inimigo: se um ano plantavatrigo na rea em que estavam as batatas e as batatas no lugar da soja, raramente ocorriabroca. Ou dava broca brocha sem a excitao necessria para localizar uma refeiorpida. Nosso solo parecia achocolatado, era encorpado como vinho, ao passo que a terracheia de atrazina dos nossos vizinhos muitas vezes se assemelhava a um amontoadohorroroso de pedaos secos e acinzentados. Meu pai era nativo, verde, orgnico eacertadamente lento, mas anos antes tinha se recusado a fazer parte das cooperativas deprodutos sem agrotxicos, as quais estavam absorvendo as velhas fazendas que vendiam

  • em larga escala para mercados distantes. Isso o isolou ainda mais. Era conhecido comoTom Tofu ou Bo, o Prncipe do Tofu, ou s vezes simplesmente Bofu, apesar de cultivarapenas batatas.

    , as batatas dele tm boa reputao... pelo menos em alguns lugares apressei-me em acrescentar. At minha me, uma pessoa difcil de agradar, gostava dasbatatas. Uma vez ela as qualificou de divinas, e costumava cham-las de pommes deterres de lair. , eu simplesmente estava falando demais.

    Que engraado comentou Sarah. Pois . Ela achava que no existia nenhuma palavra que descrevesse aquelas batatas

    direito. E provavelmente ela tinha razo. Que interessante.Tive medo de que Sarah fosse uma daquelas mulheres que, em vez de rir, diziam Que

    engraado ou, em vez de sorrir, comentavam Que interessante, ou ainda que, em vez deenunciar Voc uma idiota completa, falavam Bom, acho que um pouco maiscomplicado que isso. Eu ficava sem saber como agir perto de gente assim, especialmentedaquelas que, logo que se fazia um comentrio, gostavam de dizer, de um jeitoenigmtico, Entendo. De modo geral, eu me limitava a ficar calada.

    Sabe, o pai da Joana DArc cultivava batata acrescentou Sarah. Foi nasplantaes dele que ela escutou as vozes pela primeira vez. Isso que so batatasfamosas.

    D para entender. Eu mesma j escutei vozes nos campos do meu pai. Masgeralmente era o rdio-gravador do meu irmo encaixado na parte de trs do trator.

    Ela assentiu. Eu no tinha conseguido faz-la rir. Talvez porque no tivesse sido umapiada engraada.

    Seu pai j plantou inhame? quis saber.Inhame! Um tubrculo com rabinho de rato, que tinha se tornado motivo de escndalo

    na arte contempornea, assunto a respeito do qual eu lera no ano anterior. No respondi. Receei que, no mbito das entrevistas, eu ia de mal a pior. No

    sabia ao certo por que estvamos dizendo o que estvamos dizendo. As batatascrescem dos brotos de outras batatas acrescentei, a troco de qu, s Deus sabia.

    . Sarah me fitou de forma penetrante. No inverno, meu irmo e eu costumvamos atir-las de canos, com fogos de

    artifcio disse eu, naquele momento j falando abertamente. Armas de batata. Eraum tremendo passatempo quando a gente era pequeno. Com as batatas armazenadas nosilo e alguns canos de PVC, formvamos miniexrcitos e lutvamos.

    Ento foi a vez de Sarah divagar: Quando eu tinha a sua idade, fiz um intercmbio,por seis meses, na Frana. Fiquei com uma famlia. Eu disse a Marie-Jeanne, a filha deles,que estava na mesma srie que eu: engraado que no francs canadense se diga patatee aqui na Frana vocs digam pommes de terres, e ela comentou: Ah, a gente falapatate. Quando eu contei isso ao pai dela, ele ficou srio e disse: Marie-Jeanne dissepatate? Ela nunca deveria usar essa palavra!

    Ri, meio sem saber bem por qu, mas achando que descobriria em breve. Umalembrana longnqua me veio mente, a de um bilhetinho que um garoto babaca me

  • passara no stimo ano: Ria menos.Sarah sorriu. Seu pai parecia ser um bom sujeito. No me lembro da sua me. Ela quase nunca vinha para Troy. mesmo? Bom, s vezes minha me levava as flores dela ao mercado. Bocas-de-leo e

    gladolos. Mas o pessoal l dizia gladioli, ela no gostava. concordou Sarah, sorrindo. Eu tambm no gosto. Estvamos no modo

    educado, de harmonia gratuita.Prossegui: Ela cultivava flores e fazia buqus com elsticos. Acho que custavam 1 dlar.Na verdade, minha me tinha certo orgulho dessas flores; fertilizava-as com matria

    vegetal em decomposio que pegava do lago. Mas meu pai se orgulhava ainda mais dasbatatas dele, nas quais jamais teria usado esse adubo. Dizia que continha metal pesado.Uma vez, caiu um avio de uma banda de rock naquele lago, brincava, e, apesar de umaaeronave ter mesmo despencado ali, o conjunto era, tecnicamente, de R&B. Ainda assim,ele tinha razo quanto gua: na melhor das hipteses, era suja, por causa da extrao degipsita no norte.

    Era estranho pensar que aquela mulher, Sarah, conhecia meu pai. Voc vinha para a cidade com eles? perguntou.Eu me remexi um pouco, desconfortvel. No esperava ter que voltar ao passado

    daquela forma; resumi-lo e relembr-lo era trazer tona algo que no queria serrelembrado.

    No muito. Acho que s uma ou duas vezes eu e meu irmo fomos com eles;ficamos correndo de um lado para o outro, irritando as pessoas. Eu me lembro de uma vezque fiquei lendo um livro, sentada, embaixo de uma mesa bamba em que meus paisvendiam seus produtos. Acho que teve outra em que simplesmente fiquei no caminho. Ou talvez tivesse sido em Milwaukee. Eu no lembrava direito. Eles continuamproduzindo? No vejo mais seu pai no mercado, de manh.

    Ah, no muito. Eles venderam boa parte da fazenda para um grupo Amish e agoraesto semiaposentados. Eu adorava dizer semi. Vinha usando muito esse prefixo, emvez de meio ou tipo, e tinha virado uma mania. Estou semipronta, anunciava. Ou Estouno modo semi hoje. Murph me chamava de Semita. Ou de Seminarista. Ou de garotasemilouca. Ou quase isso acrescentei.

    Na verdade, meu pai no era um semiaposentado, era um semibbado. Embora nofosse velho, agia como um... desmiolado. Para se divertir, costumava ir com acolheitadeira at as ruas principais da regio e fazia o trfego ficar mais lento depropsito.

    Deixei uns 17 carros atrs de mim vangloriou-se para minha me, uma vez. Ento tinha um bocado de gente ela ressaltou. Melhor tomar cuidado. Seu pai est com quantos anos, agora? quis saber Sarah Brink. Quarenta e cinco. Quarenta e cinco? Nossa, eu tenho 45. Isso significa que tenho idade suficiente para

  • ser... Ela respirou fundo, ainda processando o prprio espanto. Meu pai? perguntei.Uma brincadeira. No quis dar a entender que ela no era muito feminina. Se no deu

    certo como piada, ento foi um elogio, pois eu no queria, nem em pensamento, nem porum instante, confundir aquela mulher sofisticada com minha me, uma mulher to simplese sem noo que tinha me dado uma vez para mim! para experimentar! para usar! sua calcinha de renda preta que encolhera na secadora quando eu s tinha 10 anos.

    Sarah Brink riu, um semirriso, um riso socialmente construdo uma coletnea deentonaes predeterminadas, como os toques de uma campainha.

    Ento, aqui est a descrio do emprego disse ela, quando o sorriso se esvaiu.

    Na volta para casa, caminhando, passei por um esquilo que tinha sido atropelado por umcarro. As tripas suaves, de tom avermelhado, haviam sado da boca do bichinho, formandoum balo de histria em quadrinhos, e o vento esvoaava o pelo de seu rabo, dando aimpresso de que ele ainda estava vivo. Tentei me lembrar de tudo que Sarah Brink tinhame dito. Ainda faltava 1 quilmetro para chegar em casa, ento recapitulei trechos longosdela discorrendo, apesar de o ar estar gelado a ponto de intimidar os pedestres e provocarneles uma mudeza mental. Esse um posto que consideramos fundamental, apesar deestarmos contratando em cima da hora. Se escolhermos voc, queremos que participe detudo, desde o primeiro dia. Nossa ideia que se sinta um membro da famlia, j que,claro, far parte dela. Tentei pensar em quem Sarah me fazia lembrar, embora tivessecerteza de que no era algum que eu tivesse conhecido. Na certa ela me trazia mentealgum personagem de um seriado de TV que eu tinha visto anos antes. Mas no daprotagonista do programa. Definitivamente, no da protagonista. Talvez da amigapatricinha da protagonista ou da prima dela, uma desmiolada de Cleveland. Eu sabia quemesmo quando Sarah tivesse um beb, nunca perderia o estilo tia Mame, de A mulher dosculo, ao exercer o papel de me. Tinha coisa pior, pensei.

    No cu, a claridade se esvaa, tnue. O crepsculo j iniciara, apesar de serem apenas15 horas. O sol se punha cedo naqueles dias que precediam o Natal os mais curtos doano, ou seja, os mais escuros , o que tornava a caminhada de volta para casa aindamais solitria. Eu morava num apartamento daquelas casas antigas de madeira, perto docampus, na rea estudantil contgua ao estdio da universidade. Era uma construo deesquina, e o apartamento de primeiro andar, que era o que eu dividia com Murph, ficavanos fundos, esquerda de quem subia as escadas para a varanda. O nome completo dela,Elizabeth Murphy Krueger, enfeitava a caixa de correio juntamente com o meu, numa fichade arquivo, escrito com cola verde brilhosa. Do outro lado da rua, o muro de concretocinza do estdio era trs vezes mais alto que qualquer construo das redondezas, deforma que escurecia o bairro de uma forma lgubre e brutal. Na primavera e no outono,bandas militares, com tubas e tambores, viviam fazendo nossas vidraas vibrarem. O sols penetrava no nosso apartamento nas pocas em que estava bem alto em maio, aomeio-dia ou numa manh de inverno, quando refletia por causa de algum desvio fortuitode uma tempestade de neve, ou de tarde, quando o ngulo em que se punha fazia com que

  • ele entrasse brevemente pela janela dos fundos, na cozinha. Quando um retnguloensolarado e alongado aparecia no cho, era uma delcia ficar de p nele. (Eu era velha ounova demais para sentir prazer com isso? Com certeza no estava na idade certa.) Depoisde um temporal ou na poca do degelo, quando se andava perto do estdio dava para ouvira gua escorrendo l por dentro, iniciando das cadeiras no alto e caindo fileira por fileiraembaixo, numa cachoeira perfeitamente graduada. s vezes o som da gua, capturado eampliado pela construo de concreto, fazia um ruidoso chu. E era comum as pessoaspararem ao longo das caladas e apontarem para o muro externo da construo,comentando: O estdio no est vazio? Que barulho esse, hein?

    a revoluo Murph gostava de responder.Ela considerava os estdios lugares nos quais os rebeldes eram assassinados, o que a

    levava a ter sentimentos antagnicos por viver to perto de um; sem falar no que sentiaquanto aos jogos locais de futebol americano, quando praticamente no restava espao nomeio-fio porque os carros estacionados dos visitantes lotavam as ruas, os aplausos datorcida percorrendo a cidade como um vento uivante e o vermelho da camisa dostorcedores lembrando uma invaso de insetos. Nas manhs de domingo, no dia seguinte aodos jogos, a calada ficava cheia de cartazes de papelo com a frase Preciso deingressos.

    Murph agora dividia o apartamento comigo apenas na teoria, j que na prtica passavaa maior parte do tempo a 1 quilmetro dali, num condomnio sublocado, com o novonamorado, um cara do sexto ano. Muitas vezes eu me esquecia disso ficava louca paracontar algo para ela, pensava no que podamos preparar para o jantar, esperava encontrarminha amiga l, devaneando, com o suter jogado nos ombros e as mangas amarradas nopescoo, um visual que ficava timo nela, mas que em mim me faria parecer uma louca.Mas assim que eu entrava em casa me dava conta de que, mais uma vez, estaria s. Eladeixava a srie reveladora de objetos descartados, roupas trocadas s pressas, bilhetesescritos sem cuidado. A, Tass, tomei o restinho de leite foi mal. Ento me restava aambivalncia de ter que pagar com a solido por um apartamento pelo qual no podiapagar sozinha. No chegava a ser deprimente muitas vezes ela no me fazia a menorfalta. Mas s vezes eu sentia uma pontada rpida e pungente, quando entrava e via queMurph no estava l. Duas vezes, porm, tive a mesma sensao de inquietude quando elaestava l.

    Os degraus porosos e carcomidos da entrada ainda aguentavam peso seis inquilinasmagras, em fila indiana mas sempre que eu subia neles pensava que talvez seria altima vez: com certeza, na seguinte, meu p passaria direto e eu teria que ser retiradados destroos cheios de lascas por uma unidade de resgate chamada pela atenta Kay, doandar de cima. O proprietrio, Sr. Wettersten, era o tpico ausente, embora acreditasse embons boilers e, no perodo de aulas, no limitasse o aquecimento, talvez temendo aesjudiciais de algum pai. Dava para tomar banho vrias vezes por dia ou no ltimo minuto:os cabelos secavam num piscar de olhos perto dos aquecedores. s vezes ficava toquente no meu apartamento que minhas unhas secavam, rachavam e quebravam nasluvas, e pedacinhos delas prendiam nas pontas dos dedos de l. Naquele momento, ao abrira porta para entrar, os canos trepidavam com as pequenas exploses internas; nenhum

  • tinha estourado ainda, mas quando o boiler fazia esse barulho de noite, o tremor chegava anos acordar. s vezes parecia que vivamos numa fbrica. Kay, que morava noapartamento maior, era uma mulher de meia-idade, a nica no estudante. Estava sempremetida em algum desentendimento com o proprietrio por causa da manuteno dopequeno prdio.

    Ele no faz ideia do que vai ter que enfrentar, deixando esta casa largada do jeitoque est Kay me disse certa vez. Quando tem algo errado aqui, eu no sossego.Sabe, no tenho outra ocupao. Posso me dedicar a este lugar. Ele nem imagina o que vaienfrentar. Vai lidar com algum que no tem mais o que fazer. Ento todas nsdeixvamos Kay se encarregar dos problemas da casa. Fazia mais de uma dcada que elamorava ali. s vezes Murph se referia s inquilinas como Famlia Clutter, um apelido queeu supunha (esperava, rezava) fazer meno desordem que causavam.*

    Quando atravessei a sala para jogar minhas coisas no sof, as tbuas do assoalho, aomesmo tempo gastas e mal-encaixadas, rangeram alto ainda mais tendo toda aumidade ido embora. Apesar do estrpito barulhento e lamentoso da tubulao e do piso, acasa estava numa solido invernal. A lareira, fria e inutilizada, era um perigo para asegurana como desfrutar de um pouco de conforto sem correr o risco de morrerqueimada? deveramos correr esse risco? sim, implorei uma vez, sim! era usada paraguardar CDs. No canto estavam apoiados meu baixo e o amplificador, implorando porserem usados, embora eu os ignorasse. Meu baixo era um Lucite, totalmente transparente,da Dan Armstrong, igual ao de Jack Bruce, do Cream. Eu tinha aprendido a improvisar unssolos no muito usados no baixo: conhecia um pouco de Modest Mouse, de ViolentFemmes e Sleater-Kinney (No aquele hospital de cncer de Nova York?, meu irmome perguntou uma vez), alm dos clssicos, Jimi Hendrix, Milestones, Barbara Ann,Barbara Allen, My Favorite Things e Happy Birthday (como se tocada por Hendrix,mas no baixo!). Uma vez, em Dellacrosse, eu tinha concordado em fazer um show deverdade toquei Blue Bells of Scotland e usei um kilt. Um saiote escocs e umaguitarra transparente, que conseguiu fazer um som bem parecido com o de uma gaita defoles; como a apresentao fazia parte de uma feira anual, eles me deram um lao verdecom as palavras Mooila Lrica. Na minha opinio, todo mundo naquela feira ridcula erameio idiota, incluindo eu, e nunca mais toquei l.

    No corredor do apartamento, a luz do telefone estava piscando, ento apertei o botoda secretria eletrnica, aumentei o volume e fui at o quarto, onde me joguei na cama,ao pr do sol islands, com a porta aberta, para escutar vozes de mulheres, uma aps aoutra, e seus diversos desejos e pedidos.

    A primeira foi a irm de Murph. Oi, a Lynn. Sei que voc no est a, mas me liguemais tarde, quando estiver. Depois, minha me. Al, Tassie? a sua me. Seguido deum rudo e de um baque enquanto ela desligava. Ser que tinha deixado o telefone cair ouera s mais um exemplo de seu estranho estilo pessoal? Depois, minha orientadora etambm decana das alunas: Ol, aqui a decana Andersen, eu queria falar com TassieJane Keltjin. Eu sempre esquecia que a nossa mensagem no indicava de quem era otelefone. Era s a Murph gritando (de um jeito que a gente achava hilrio): Deixe suamensagem aps o sinal, se realmente quiser! A gente super no est aqui! O tom de voz

  • da decana Andersen era amvel mas enrgico, uma combinao que eu passaria muitashoras da minha vida tentando imitar, embora pudesse ser algo mais bem empregado nalngua persa. Tassie, voc poderia deixar uma cpia dos papis da sua matrcula para oprximo perodo na minha caixa de correspondncia no Ellis Hall? Muito obrigada. Precisoaprovar sua inscrio oficialmente, o que acho que ainda no fiz, embora eu no saiba porqu. Aproveite as frias. Houve um silncio prolongado e hesitante antes da ltimamensagem. Ah, al, aqui Sarah Brink, estou procurando Tassie Keltjin. Outro silncioprolongado e hesitante. Eu me sentei na hora, para ver se havia algo mais. Ser que elapoderia me ligar mais tarde, hoje noite? Muito obrigada. 357-7649.

    Primeiro liguei para minha me. Como ela no tinha secretria eletrnica, deixei otelefone tocar dez vezes e desliguei. Ento rebobinei a fita e escutei de novo a mensagemde Sarah Brink. O que estava me assustando? Eu no sabia ao certo. Mas decidi esperarat a manh do dia seguinte para retornar a ligao. Vesti minha camisola, fiz um queijoquente com ch de hortel, levei tudo para o quarto e comi na cama. Cercada de farelos egordura, jornais e livro, acabei dormindo.

    Acordei com uma claridade intensa. Eu tinha esquecido de fechar a persiana e nevaradurante a noite; os primeiros raios de sol refletiam na neve, no peitoril e no telhado baixoadjacente, iluminando o quarto. Tentei no pensar na minha vida. Eu no tinha um planoconcreto e bom para ela a longo prazo tampouco um ruim; simplesmente, nenhumplano e a desorientao causada por isso, comparada com as bvias ambies deminhas amigas (casamento, filhos, faculdade de direito), s vezes me envergonhava. Emoutras ocasies, eu defendia mentalmente essa condio como sendo moral eintelectualmente superior minha vida estava aberta, livre e desimpedida o que no atornava menos solitria. Eu me levantei, dei uma andada longa e penosa pelo piso gelado,descala, e preparei caf, com um filtro de plstico marrom e um papel-toalha, deixando olquido pingar numa caneca do Chal de Madeira do Alce. Murph tinha ido passar um fim desemana l, com o novo namorado.

    O telefone tocou de novo antes que o caf surtisse efeito e me desse as palavrascertas; ainda assim, atendi.

    Al, a Tassie? quis saber a voz recm-familiar. Sim.Engasguei desesperadamente com o caf. Que horas eram? Cedo demais para

    telefonemas. Aqui Sarah Brink. Acordei voc? Desculpe. Estou ligando cedo demais, no ? No, no respondi, com medo que ela me achasse uma vagabunda preguiosa.

    Melhor ser uma mentirosa de merda. Fiquei sem saber se tinha deixado a mensagem no telefone certo ou no. E queria

    falar com voc o mais rpido possvel, antes que aceitasse a oferta de outra pessoa. Mal sabia ela. Eu conversei com meu marido; queremos dar a vaga a voc. Ser que elaj entrara em contato com as referncias que eu lhe tinha dado? Teria tido tempo paraisso?

  • Ah, obrigada respondi. Vamos comear com 10 dlares a hora, com a possibilidade de aumento depois. Tudo bem.Dei um gole no caf, tentando despertar a mente. Que o caf falasse! A questo a seguinte. Voc comea hoje. Hoje?Outro gole. , me desculpe. Estamos indo para Kronenkee, conhecer a me biolgica, e

    gostaramos que voc fosse com a gente. Ah sim, tudo bem, acho que d. Voc aceita o trabalho? Acho que sim. Aceita? No imagina o quanto me deixa feliz! mesmo?Perguntei a mim mesma enquanto isso: Cad a sesso introdutria do primeiro dia do

    funcionrio? Cad a apresentao de PowerPoint: Voc escolheu um excelente local paratrabalhar? O caf comeava a surtir efeito, mas ainda no estava ajudando.

    Com certeza, muito mesmo. Pode chegar aqui antes do meio-dia?

    * * *

    O encontro com a me biolgica estava marcado para as 14 horas, no restaurante Perkins,em Kronenkee, cidade que ficava a uma hora, com um nome metade alemo metadeindgena que sempre achei que fizesse referncia ao colar de conchas feito pelos nativos.A assistente social que administrava a agncia de adoo deveria ir at l com a mebiolgica, e todos se analisariam animadamente. Eu tinha feito a caminhada de meia horaat a casa de Sarah Brink e, ento, esperara vinte minutos enquanto ela andava de umlado para o outro cuidando de pequenas tarefas, fazendo ligaes breves para orestaurante Meeska, o coulis de Concord tem que ser mais que uma geleia de uva! ou procurava, desesperada, os culos escuros Odeio a neve ofuscante naquelasestradas de pista dupla , me pedindo desculpas o tempo todo, do outro cmodo. Nocarro, a caminho, eu me sentei ao lado dela, j que o marido, Edward, que, estranhamente,eu ainda no conhecia, no pudera sair de uma reunio ou algo assim e, pelo visto, disseraa Sarah para ir sem ele.

    Casamento disse ela, suspirando.Como se eu fizesse alguma ideia do que aquilo significava. S que parecia mesmo

    estranho ele no estar com ela e mais estranho ainda eu estar indo no lugar dele.Mas assenti. Provavelmente est ocupado comentei, dando a Edward o benefcio da dvida,

    embora eu comeasse a achar que ele talvez fosse, bom, um babaca.Olhei de esguelha para Sarah, que estava sem gorro, com um longo cachecol vinho

    dando duas voltas no pescoo. O sol brilhava em seu penteado e nos tufos soltos de lbranca de sua jaqueta grossa. Ainda assim, especialmente por causa dos culos escuros

  • no inverno algo que eu quase nunca tinha visto antes , ela me pareceu glamorosa. Euno estava l muito acostumada a conversar com adultos, ento me senti vontade s deficar ao lado de Sarah, em silncio; dali a pouco ela ligou o rdio, na estao de msicaclssica, e ouvimos Quadros de uma exposio e Uma noite em Monte Calvo durante aviagem.

    Eles me contaram que a me biolgica muito bonita comentou Sarah, a certaaltura. E eu fiquei calada, j que no sabia o que dizer.

    Eu e ela esperamos no segundo salo do Perkins, sentadas do mesmo lado da mesapara deixar o lugar nossa frente totalmente livre para as duas pessoas queaguardvamos. Sarah pediu caf para ns, e eu me limitei a olhar para o cardpioplastificado do restaurante, com pequenas fotos de batatas fritas douradas dispostas emalfaces crespas bem verdes, ao lado de fatias de tomate do tamanho de relgios de pulso.O que eu ia pedir? Tinha a Salada na Cesta de Po, a Omelete das Terras Centrais evrias bebidas infinitas (ou seja, com direito a refil), para os gulosos e sedentos e eureceava ser ambos. Sarah pediu o Bule Infinito de Caf Perkins para todos mesa, e agaronete foi providenciar.

    Ah, olhe, elas chegaram sussurrou Sarah.Ergui os olhos e vi uma mulher de meia-idade com maquiagem pesada, usando uma

    parca rosa-escura e segurando o brao de uma moa provavelmente da minha idade,talvez mais nova, bem grvida, muito bonita e que, quando sorriu para ns, deixou claro,at mesmo quela distncia, que mal tinha dentes. Ns nos levantamos e caminhamos atelas. A jovem usava um rastreador eletrnico no pulso, mas era evidente que isso no aconstrangia nem um pouco, porque ergueu a mo animadamente para fora da manga paranos saudar. Cumprimentei-a.

    Oi disse ela para mim.Eu me perguntei o que teria feito e por que o rastreador no fora colocado no tornozelo.

    Talvez houvesse se comportado to mal que tinha um em cada lugar. Oi respondi, tentando sorrir amigavelmente e desgrudar os olhos da barriga dela. Aqui, esta a me a mulher de parca rosa informou grvida, apontando para

    Sarah. Sarah Brink? Amber Bowers. Oi. maravilhoso conhecer voc.Sarah agarrou a mo de Amber com entusiasmo e a apertou por tempo demais. A

    jovem ficava olhando de um jeito esperanoso para mim, como se estivesse to perplexaquanto eu por estar na companhia daquelas misteriosas mulheres de meia-idade.

    Sou Tassie Keltjin acrescentei depressa, apertando outra vez a mo j penalizadade Amber. Os ossinhos delicados de seus pulsos e os dedos elegantes contrastavamestranhamente com a boca desdentada e o bracelete de plstico rgido de liberdadecondicional. Vou trabalhar para Sarah, cuidando do beb.

    E eu sou Letitia Gherlich informou a mulher da agncia de adoo, apertandominha mo sem soltar a manga do casaco de Amber, como se ela pudesse escapar.

    A jovem tinha mesmo o jeito, no fosse pelo corpo atual, de algum que, talvez atmais de uma vez, sara correndo de repente.

  • Ol, Letitia disse Sarah, abraando-a como se j fossem velhas amigas, embora amulher tenha se retesado um pouco. Bom, venham sentar. A garonete vai trazer caf.

    Depois disso, tudo transcorreu com rapidez e constrangimento, como algo ao mesmotempo resistente e despedaado. Penduramos nossos casacos; fizemos nossos pedidos;comemos, batemos papo sobre comida e neve.

    Ah, olha l meu supervisor da condicional contou Amber com risadinhas, aexpresso mais animada do mundo, como se estivesse a fim do cara. Acho que elepode ver a gente. Est sentado bem ali, perto da janela. Ns nos viramos para ver osujeito, ainda de veste azul, o refrigerante diet infinito cheio de gelo. Um gal emdecadncia em capa de chuva: o mundo parecia cheio deles. Todas o fitamos, acho quepara ganhar tempo e evitar a pergunta direta sobre os crimes de Amber.

    Letitia comeou a falar com Sarah, em nome da jovem: Amber est feliz em conhecer Tassie e voc, Sarah. A essa altura, a moa me

    olhou e revirou os olhos, como se fssemos duas jovens num passeio com as respectivasmes constrangedoras. Eu vinha observando o rosto dela, que era lindo, mas petulante,com uma energia estranha animando-a; sem os dentes, ela dava a impresso de ser umacaipira ligeiramente instruda ou uma aberrao infantil. Seus cabelos eram entre o loiro eo ruivo, to lisos e grossos quanto o rabo de um cavalo. Ela gostaria de saber, claro,quais seriam seus planos quanto religio do beb. Gostaria muito que ele fosse batizadona igreja catlica, no mesmo, Amber?

    Aham. Isso o mais importante disse ela, puxando a frente protuberante dosuter elstico e soltando-o para que voltasse ao lugar depressa.

    E, claro, ela espera tambm que o filho seja crismado, quando for a hora. Podemos fazer isso. Com certeza faremos concordou Sarah. Voc de famlia catlica? quis saber Amber. Hum, bem, no, mas meus primos eram catlicos acrescentou Sarah, como se

    isso resolvesse tudo.Letitia, nervosa com relao s partes mais delicadas do trato, contou alegremente: O pai biolgico branco. J mencionei isso a voc, no foi?Sarah ficou calada, a expresso ligeiramente inescrutvel. Pegou uma batata frita

    solitria e gelada, que a garonete ainda no tinha levado, e comeou a mastigar.Letitia prosseguiu. Alto e bonito, como Amber.A jovem sorriu, satisfeita. A gente terminou acrescentou ela, dando de ombros. Mas voc teria uma foto dele? Para mostrar a Sarah? Letitia vendia a ideia do pai

    jovem, branco e charmoso. Eu acho que nunca tive uma foto dele disse Amber, balanando a cabea. Olhava

    agora para mim, abrindo um grande sorriso. S na minha cabea. Minha cabea umaexposio permanente.

    Estranhamente, a frase lembrava o Mussorgsky que tnhamos acabado de escutar nocarro. E a boca de Amber, com os dentes escassos e deformados, pedaos de concha superfcie no recife da gengiva, parecia um lar curioso para sua voz, que pouco a pouco ia

  • surpreendendo, com sua inteligncia e humor. Houve uma calmaria naquele momento. Derepente a jovem se recostou, sentindo desconforto fsico.

    Ento, cad seu marido? perguntou ela a Sarah.Eu perscrutei o rosto de Sarah em busca do semblante tenso de quem acaba de ser

    acusado. Ele... h est numa reunio que o laboratrio dele marcou com a universidade.

    Como sou dona de um restaurante na cidade, posso fazer meu prprio horrio quandotenho compromissos. Mas ele, bem, ele trabalha como contratado, pelo menos hoje.

    Voc acha que vai ter mesmo tempo para uma criana, sendo dona de restaurante etudo o mais?

    Amber no era tmida. Se ela fosse acanhada, nenhuma de ns estaria no Perkinsnaquele momento. Sarah no ficou nervosa. J tinha ouvido esse tipo de observao ummonte de vezes. Mas, antes que pudesse responder, Letitia o fez por ela:

    por isso que Tassie veio. Ela vai ser um apoio importante. Mas Sarah estarsempre por perto. Ser a me. E pode se dedicar a boa parte do trabalho em casa mesmo,no verdade, Sarah?

    O que ela podia fazer de casa? Gritar com Meeska por causa do coulis? Com certeza respondeu Sarah. Ah, j ia esquecendo. Trouxe um presente para

    voc, Amber. E pegou um CD da bolsa. Aqui tem as minhas msicas clssicasfavoritas.

    Amber pegou o CD e meteu-o na bolsa, olhando-o de relance, da forma mais fugazpossvel. Talvez j tivesse tido um monte desses almoos, como forma de ganharquinquilharias para vender no eBay.

    E eu tambm tenho um presente para voc disse a jovem, dando a Sarah umpacotinho de manteiga, que pegou da mesa. Est embrulhado! acrescentou, sorrindomaliciosamente.

    O CD no fora embrulhado. Uma expresso descarada tomou conta de seu rosto, emseguida uma espcie de culpa, e depois uma evidente apatia, como se fossem msicasaleatrias num jukebox, tocadas a esmo.

    Obrigada! exclamou Sarah, espirituosamente. Era preciso tirar o chapu para ela,que abriu a manteiga e passou-a na boca como se fosse manteiga de cacau. Previnerachaduras.

    De nada disse Amber.Quando fomos at o estacionamento, o supervisor de liberdade condicional nos seguiu.

    A bandeira americana adejava de forma ruidosa perto da placa do Perkins; o vento tinhaaumentado e estava nevando mais. O supervisor entrou no prprio carro, mas no ligou omotor. A expresso de Amber deixava transparecer sua empolgao. Percebi que estavaapaixonadssima por ele. Ela no se concentrava em ns, e algo nessa atitude instigouSarah.

    Bom... disse ela, analisando Amber com um sorriso forado. Bem, isso! exclamou a jovem. Certo, ento disse Letitia. Posso lhe dar um conselho, Amber? perguntou Sarah, parada ali, enquanto Letitia

  • apertava ainda mais a jovem.A mulher da agncia estava feliz da vida por ter a me biolgica branca a reboque,

    como um pozinho branco no forno, e no queria que uma concorrente a tomasse dela.Pelo menos o que Sarah diria depois. O supervisor, com sua capa de chuva, acenou e foiembora.

    O qu? perguntou Amber a Sarah, mas sorriu para mim e comentou: Eleestava me seguindo mesmo.

    Quando eu era da sua idade, tinha umas ideias rebeldes. De vez em quando eu memetia em confuso, mas ento me dei conta de que era porque vinha me concentrando emreas nas quais no tinha talento. Olhe s para isso. Bateu de leve no rastreadoreletrnico dela com o indicador coberto pela luva. Voc tem 18 anos. No venda drogas.No leva jeito. Procure se dedicar ao que tem talento para fazer.

    Eu sabia que Sarah tinha passado aquele sermo na melhor das intenes, mas aafronta fez Amber ficar vermelha e fechar a cara.

    o que estou tentando fazer ela respondeu, indignada, e, soltando-se das garrasde Letitia, foi at o que devia ser o carro da mulher da agncia. Sentou no banco docarona.

    Cara, t um frio do cacete l fora, teria dito Murph se estivesse ali. A gente conversa depois disse Letitia a Sarah, acenando e indo depressa at a

    jovem. A bandeira do Perkins esvoaava ruidosamente em meio ao vento e neve. Bom Sarah comeou a dizer ao entrarmos no automvel dela. Foi, para todos

    os efeitos, um desastre completo. Ela ligou o carro. Sabe? Eu sempre tomo deciseserradas. Fao muito isso; tanto que, quando acerto em cheio, tanta emoo que acaboesquecendo que sempre tomo as decises erradas.

    Voltamos para casa praticamente em silncio; no caminho Sarah me ofereceu chiclete,depois pastilha para garganta, e eu fui aceitando, agradecida. Quando olhei de soslaio paraela, dirigindo sem os culos escuros e com o leno envolvendo a cabea como se fosseuma babushka, tive a impresso de que estava chorosa, distante, perdida em pensamentose me perguntei como uma moa legal e atraente pois achei ter vislumbrado no caminhoat l a jovem que imaginei que ela foi um dia, com a face imvel e pensativa, os cabelosreluzindo com os raios de sol se tornara uma mulher to solitria, com um pedao depano velho em volta da cabea, e ficara daquele jeito, seja l qual fosse ele. Depois depassar a infncia louca para me tornar adulta, eu j no ansiava mais por isso. Destinosinesperados tinham comeado a me chamar ateno. Essas mulheres de meia-idade mepareciam muito cansadas, como se a esperana j houvesse sido usurpada delas esubstituda por uma espcie de sonambulismo mortal.

    O celular de Sarah comeou a tocar o incio de Eine kleine Natchmusik, seu sommetlico dinmico nem um pouco diferente de um cravo, ento no de todo ofensivo aoesprito de Mozart, que provavelmente, como muitos de seus colegas, no precisara revirarmuito na cova desde o surgimento da parafernlia eletrnica.

    Sarah pegou o celular na bolsa e desacelerou um pouco. Com licena disse, dirigindo-se a mim. Al?

  • Ela atendeu, apesar do adesivo no carro que dizia VOC COM CERTEZA DIRIGIRIAMELHOR COM ESSE CELULAR NA BUNDA. Tambm havia um com SE DEUS FALA PORMEIO DO ARBUSHTO ARDENTE, VAMOS QUEIMAR BUSH PARA VER O QUE DEUS DIZ. Erainteressante constatar que Sarah, com aquela tremenda violncia retrica estampada nocarro, tivesse passado pelos processos de seleo da agncia de adoo, fossem l quaisfossem. Havia ainda um terceiro adesivo com as palavras S SE NASCE UMA VEZ, emborafosse justamente por meio de celulares e do cristianismo que ela conseguiria ser me. Oquarto adesivo no era mais promissor: POR TRS DE UMA GRANDE MULHER H SEMPREELA MESMA.

    No sei por que eu podia ouvir to bem talvez por Sarah ser um pouco surda edeixar o volume de tudo no mximo.

    Oi, Sarah, a Letitia escutei. Oi, Letitia.Como eu achava que no deveria ficar ouvindo a conversa, observei a paisagem,

    coberta com a neve lgubre, pela janela; o sol estava baixo e fraco, dissolvendo-seembranquecido como uma pastilha de limo. Em todas as cidades pelas quais passvamoshavia um Dairy Queen, com filas mesmo no inverno. Quando voltei a olhar para Sarah, visua pele cheia de base, fina como uma panqueca, com as mesmas manchinhas de tombege de um crepe, a mo nodosa, artrtica de tanto picar ervas, passando pelos cabelosruivos eriados, derrubando o leno. Como a cabeleira espetada conseguia desafiar agravidade e o peso extra de um pano? Por que o meu prprio cabelo sempre ficavalambido e escorrido, derrotado por todo tipo de propriedade fsica atmosfrica, inalteradoat mesmo pelo gel grudento mais famoso? A instruo no enlevara minhaspreocupaes na vida. Na certa no tinha nem contribudo para minhas anlises delas,apesar de isso ser o mximo que eu podia esperar. Eu ainda era jovem demais, recm-sada da infncia. No inconsciente, os recnditos de minha mente continuavam sendo umarmrio cheio de contos de fada; creio que ainda acreditava que, se uma mulher bonitatinha deixado de ser bela, era porque ela fizera algo de errado para merecer isso. Eu tinhaa crena de menina de que esse tipo de envelhecimento negativo nunca aconteceriacomigo. A morte sim disso sabia por ter lido poesia inglesa. Mas ficar seca, corcunda,desbotada, manca, fraca, pesada, esmaecida e lerda? No deixaria que nada dissoacontecesse avec moi.

    Sarah colocou o celular outra orelha, de forma que ficou mais difcil escutar, mas emseguida trocou-o de novo e desacelerou para deixar um comboio de caminhes passar.Pude ouvir Letitia:

    Se no der certo com Amber, h bebs no mercado internacional. Temos tido muitasorte na Amrica do Sul. O Paraguai est acessvel de novo, e outros pases tambm. Eno so todos morenos l. Existe muita influncia alem; algumas das crianas so lindas,louras ou de olhos azuis ou at as duas coisas.

    Obrigada pela informao disse Sarah, bruscamente. Me d um retorno sobreAmber. Ento Letitia fez um comentrio que no consegui escutar, ao que Sara

  • respondeu, depressa: Tenho que desligar, vou passar por um trecho com gelo. Edesligou o celular. Bebs de nazistas comentou Sarah, balanando a cabea. Estovendendo bebs nazistas. De raa superior. Inacreditvel. Passou os dedos outra vezpela grama desrtica brilhante que era seu cabelo. No perguntei como um bebezinhopoderia ser nazista. E o que que eu sabia? Talvez fosse. Olhos azuis! gritou. Araa humana realmente progrediu muito! Meneou a cabea de novo, dessa vezsuspirando, fungando e resfolegando de desgosto. Tinha um cara na minha escola deculinria que era um judeu de olhos azuis. Ele contou que seus espermatozoides estavamsendo muito requisitados no banco de esperma e que vinha ganhando muito dinheiro extra.No incio, foi uma histria engraada para ns, mas, depois, virou uma espcie deexpresso que sempre usvamos: Vencendo as dificuldades como judeu de olho azul embanco de esperma.

    Hum disse eu, estupidamente. Talvez voc seja jovem demais para entender isso, mas um belo dia vai olhar ao

    redor e perceber: Os nazistas sempre riem por ltimo.Ento ficamos sem palavras, e passamos em silncio pelas cidades de Terre Noir e

    Fond du Mer, lugares que receberam nomes extravagantes e medonhos dos traficantes depele franceses, antes que as subsequentes pronncias montonas dos fazendeirosescandinavos os tornasse ainda mais absurdos: Tr Nu e Fonde Dumr.

    Voc vai ver que eu deixo transparecer uns 89 por cento do que passa pela minhacabea informou Sarah. Para os outros 11 por cento? Uso a sauna. Colocou umCD. Sute francesa nmero 1, de Bach. Conhece?

    Aps alguns estalidos e esttica, ela comeou, grandiosa e triste. Acho que sim respondi, sem a menor certeza. Minhas amigas j tinham comeado

    a mentir, simulando uma sofisticao que, a seu ver, passado o blefe de dez segundos,tornava-se real. Acontece que eu no s no tinha muita inclinao para aquilo, comotambm era menos habilidosa. Talvez no acrescentei. E em seguida: Espere,acho que conheo sim.

    Ah, a coisa mais linda disse ela. Ainda mais com esse pianista.Era algum cantarolando com os lbios fechados, acompanhando a cano suave de

    Bach. Mais tarde, eu teria todas as maravilhosas gravaes disponveis de Glenn Gould,mas ali no carro, com Sarah, foi a primeira vez que o ouvi tocar. A pea parecia umainterrogao elegante feita de filamentos intricados, uma indagao de um sujeito bem-vestido num caixo, ainda com vida. Prosseguia devagar, como uma equao minuciosa, eda mudava de rumo: se x = y, se maior = menor, se a morte equivale parte da vida ea vida parte da morte, ento, qual a soma das notas infinitas dessa frase? A msicaperguntava, respondia, reindagava, sua volatilidade exigindo uma relutncia ou uma aversoelaboradas. Eu nunca escutara uma melodia como aquela.

    Voc mora perto do estdio, no ? quis saber Sarah.J tnhamos chegado a Troy. Ela fez a curva na Campus Avenue, rumo ruela onde eu

    vivia, Brickhurst. Os bairros perto da universidade j estavam praticamente vazios porcausa das frias de dezembro, mas nas casas que no eram residncias universitriasmuitas vezes havia luzes penduradas nas fachadas, e as calhas reluzentes pareciam gritar

  • alegremente: ESTAMOS AQUI! Estamos aqui! Eu moro na Brickhurst, 201 informei. Brickhurst?Suspeitei de que ela fosse uma daquelas pessoas de fora do estado que havia se

    mudado para c fazia pouco e tinha apenas um conhecimento fragmentado da cidade, ummapa mental montado estritamente com base na necessidade. Mas chegou l em menosde um minuto.

    Sarah colocou o carro em ponto morto. Deu umas batidinhas de leve no meu ombro e,em seguida, deixou a mo escorregar at a manga do meu casaco.

    Obrigada. Me ligue quando voltar, depois do Natal.Seu semblante mostrava-se incrivelmente triste. Certo respondi, sem saber mais o que dizer. Est bem. Era essa a resposta

    da jovem interiorana para tudo.

  • Nota

    * Clutter o sobrenome da famlia cujo assassinato foi documentado no romance Asangue-frio, de Truman Capote. O substantivo clutter significa, em ingls, baguna,desordem. (N. do T.)

  • NII

    a manh de Natal eu dormi at tarde. E tambm meu irmo mais novo, que tinha ido mepegar no terminal de nibus de Dellacrosse na noite anterior, com o caminho do meu pai,aquele com os dizeres QUEM PLANTA BATATAS COLHE AMOR no para-choque. Ele tinhaficado no estacionamento me esperando, com a jaqueta marrom barata e sem gorro,parecendo feliz em me ver, como se at tivesse algo para me contar, embora eu noesperasse nada: meu irmo raramente conversava. Ajudou-me com a mala e o baixo (queacabei resolvendo levar), e colocou os dois na parte de trs do caminho, sem fazer ocomentrio de sempre sobre baixo ser um instrumento de homem. A guitarra tinha sidoinventada a apenas 80 quilmetros dali! Eu estava pronta para contestar, a ningum emespecial, j que o prprio Robert era to versado nos mitos locais sobre Les Paul quantoeu. Tambm tinha um contrabaixo em casa, no quarto, com um saco de arcos reservaspreso parte central. Parecia um arqueiro gorducho, abandonado num canto, a aljava cheiade flechas, acumulando poeira. Robert o chamava de Velho Bob, ao carreg-lopenosamente com a ajuda de meu pai.

    Ainda bem que voc no trouxe o Velho Bob ele comentou.Sempre achei que Robert nunca conseguira se aplicar nem na msica nem nos

    estudos. Talvez ter uma irm mais velha tenha sido um obstculo para ele. Ele sabia queeu amava minha guitarra em silncio. A parte judaica de ns dois meio que entendia queadorar a Deus era evitar a venerao de parafernlias e como gostvamos delas! (meusinstrumentos tinham seguros altssimos) mas nem sempre as coisas funcionavamassim: s vezes, Deus se apegava a algo material, fsico e mundano, da tudo ficava umtanto nostlgico para o dono dos apetrechos. Mas meu irmo era bacana comigo nesseaspecto; na verdade, quando eu pensava em como passamos tantos anos juntos, elesempre tinha sido, no fundo, legal, apesar de ter acelerado com um pouco mais deentusiasmo do que o necessrio quando samos do estacionamento. Os amigos dele oconheciam como P de Chumbo, um apelido que os meus pais odiavam.

    Na ida para casa, ele me contou como estava indo, embora eu tivesse tido queperguntar duas vezes. De vez em quando ele gaguejava, o que o deixava meio hesitante nahora de conversar tenho certeza de que sentia que a fala estrangulada e distorcida norefletia bem seus pensamentos, embora, sabe-se l, de repente at refletisse. s vezesdava para notar que ele tentava falar mais depressa, a velocidade facilitando a situao efazendo a frase terminar logo. Bem P de Chumbo.

    Eu no tinha comido nada alm de sushi do supermercado; metade dele aindacontinuava na minha bolsa, na bandeja de plstico, e a fome durante a viagem fazia demim uma ouvinte ainda mais ansiosa. Cada palavra lembrava um bocadinho de comida.Meu irmo estava no ltimo ano do ensino mdio e detestava o colgio. Tinha tirado um3,5 e quatro 1,0 no semestre anterior. Mas no demonstrava o menor desnimo ao contarisso. Ele contou que papai, nem sempre o tipo dedicado a uma educao sria, tinha olhadopara o boletim e dito: Bom, Robert, o que que eu posso dizer? Um 3,5 e quatro 1,0?Parece que voc est passando tempo demais numa aula s! Meu irmo deu uma

  • risadinha irnica, depois de contar a histria. E ficamos quietos, indo sem pressa paracasa, passando, ao longo da estrada, pelas rvores escuras com os galhos constrastandocom a luz do cu vespertino como um broche pontiagudo ou os ps de cambaxirra numacaixa forrada de algodo. Passamos pela Primeira Igreja Metodista e seu prespio decompensado iluminado, no qual as expresses dos carneiros sonolentos eram as menosbobas do cenrio. Uma placa na frente indicava o tema do sermo natalino: AME SEUSINIMIGOS, FOI VOC QUEM OS CRIOU. Passamos pela antiga quinta dos Vanmares; elestinham decorado o quintal, mais uma vez, de um jeito festivo totalmente inusitado:silhuetas de pinguins, palmeiras, gansos e pirulitos em forma de bengala, tudo luzindocomo se eles fossem amigos que no se viam fazia tempo, reunidos. Ainda assim, eu noera imune s reaes de outras pessoas ao Natal, suas criaes discrepantes, fossem elasartsticas ou simplesmente exuberantes. Extravagncia e espalhafato ainda me chamavama ateno.

    Peguei o sushi e comecei a comer. Quer um pouco? ofereci ao meu irmo. De jeito nenhum! ele respondeu.Passamos pelo Sem Rumo, um hotel barato de beira de estrada que perdera o o do

    nome e virara Sem Rum. O estacionamento do Boliche Roada do Cervo estava lotado porcausa de algum torneio knockerheimer. Percorremos a rua principal de Dellacrosse, na qualhavia inmeras fachadas de estabelecimentos comerciais trreos e vagas diagonais nafrente. Espremidas, lado a lado, estavam a Larry Revendas, a Terry Taxidermia (antigaDick Destripadora) e a Walt Larvas, todas pelas quais passamos rapidamente. Mastigando,me concentrei mais ainda na paisagem, como se fosse mesmo a estranha que sentia ser,observando o zigue-zague de metal da ponte sobre o riacho Wahapa. Transitamos pelaestrada do depsito de lixo da cidade e no desvio, observamos a cabana do lixeiro, que eletinha enfeitado orgulhosa e espetacularmente com objetos recolhidos no prprio lixo. Noalto do telhado, havia uma rena grande e brilhante com os chifres quebrados.

    Guardando o sushi, perguntei: Se voc comer fgado de urso, morre?Robert riu. No fao ideia. Ento acrescentou: Mas sei que se voc um esquilo, tem que

    ficar bem longe dos quadros de distribuio eltrica ou vai ser to eletrocutado que seusdentes vo derreter. E apontou para um troo pavoroso, na linha de transmisso defora, que margeava a nossa estrada, perto da entrada de cascalho.

    Como vai a mame? perguntei, antes de entrarmos em casa. Os faris docaminho j deviam ter indicado a nossa chegada.

    Anda meio emo. Ou seja, est a mesma coisa ele respondeu, pegando de novo amala e o baixo para mim, coisa que os caras da universidade raramente faziam.

    Meus pais tinham criado um jovem fazendeiro, embora eu me perguntasse se elessabiam disso. No havia sido seu objetivo premente e consciente. Eu ia seguir Robert, masele fez sinal para que eu fosse na frente. Subi a escada da varanda e bati na porta extrade alumnio, da a abri e gritei ol. Minha me nunca ligou para a vspera do Natal, ento,

  • quando eu voltava para casa nas frias, muitas vezes era recebida como uma vizinhafazendo uma visita no domingo depois da missa, uma vizinha que ela via o tempo todo ecom a qual no queria ser indelicada.

    Ah disse mame. Oi.Naquele ano, havia o cheiro de gengibre assando no ar. Fiquei impressionada de novo

    com o desleixo aconchegante e a pobreza digna da casa; a escada estilo Hitchcock, queestava desgastada e abandonada, nunca tratada como relquia especial, mas algo til queprecisava fazer jus existncia neste planeta da forma mais complicada: ali na nossaresidncia, uma espcie de local de provaes para mveis.

    Minha me decidiu tomar eggnog e uma tacinha de conhaque, e, apesar de meu pai jter ido dormir, ficamos eu, ela e Robert sentados uns vinte minutos, com um briqueteecolgico de casca de caf ardendo lentamente na lareira e um prato de biscoitos degengibre na cornija antes que estivssemos todos cansados demais para disfarar. Essetipo de lenha reciclada era a favorita da minha me, embora para mim cheirasse mais asapato queimado que a caf.

    Eu acenderia a menor comentou ela , mas vocs se lembram do que aconteceuano passado, no? Das cortinas pegando fogo?

    Nossas cortinas haviam incendiado, e a gente teve que jogar uma tigela grande deeggnog nelas para apagar as chamas, e o lquido fez um chiado de fritura e cozinhou notecido, e a casa inteira ficou fedendo a omelete.

    Tudo bem eu disse. Amanh eu acendo a menor para a senhora.Mas eu acabaria esquecendo. E, como era sempre eu a encarregada de limp-la e de

    tirar a cera do ano anterior com alfinetes e um garfo, talvez meu esquecimento fosseconveniente.

    Obrigada, docinho. Mame nunca me chamava assim. Quase nunca. A TV estavaligada, sussurrando e cintilando suas cores. Mame a desligou, aborrecida. Um grinchque roubou o Natal? Com tudo o que anda acontecendo no mundo, a gente ainda tem queaguentar isso?

    Pela manh, eu e meu irmo descemos quase na mesma hora, um intervalo de apenasdez minutos entre um e outro. A rvore de Natal naquele ano a cicuta do Chanuca,como minha me ainda a chamava j vinha com o pisca-pisca, tinha sido comprada pelainternet. A fazenda de rvores natalinas dos McLellans falira havia pouco, e meus paistinham apelado para um pinheiro de plst