“CALA A BOCA! FICA QUIETA, SENÃO VOU TE FURAR TODINHA.” … · 2016-07-19 · “CALA A BOCA!...
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“CALA A BOCA! FICA QUIETA, SENÃO VOU TE FURAR TODINHA.” – A VIOLÊNCIA
OBSTÉTRICA COMO UMA VIOLÊNCIA DE GÊNERO.
Karina Caetano1
Por que tanto as mulheres que decidem ter um parto, quanto aquelas que abortam estão expostas à
violência em nossos hospitais? A fala que dá nome ao artigo “Cala a boca! Fica quieta, senão vou te
furar todinha”, ouvida em um relato de parto do Dossiê da Violência Obstétrica “Parirás com dor”
(PARTO DO PRINCÍPIO, 2012), representa as muitas formas de violência por que passam
mulheres impedidas de protagonizar seus partos. Pretendemos analisar a questão da violência
obstétrica como mais uma das muitas dimensões da violência contra a mulher, fomentada pelas
relações desiguais de poder, sempre atravessadas pela questão de gênero. Utilizando referenciais
dos estudos de gênero como Guacira Louro e dos estudos decoloniais feministas como María
Lugones discutiremos o conceito de gênero destacando sua dimensão sócio-histórica, a fim de
pautar a questão das feminilidades e as relações de poder a elas implicadas. Nesse percurso, após
apresentar como uma perspectiva binária e biologizante de gênero, que historicamente
subalternaliza e invisibiliza as mulheres, analisaremos a questão do parto e nascimento no Brasil.
Por que essa violência, comum justamente no momento que a mulher necessita de cuidados e
amparo, é tão recorrente em nosso Sistema de Saúde? A partir do Dossiê da Violência Obstétrica
(PARTO DO PRINCÍPIO, 2012), produzido para CMPI da Violência Contra a Mulher, e do debate
acerca da humanização do parto e nascimento articulado aos estudos de gênero e decolonialidade
pretendemos refletir sobre essa questão. Por fim, com vistas a indicar caminhos para enfrentar a
violência obstétrica apresentaremos iniciativas de educação popular de mulheres dirigidas a, com e
por doulas, gestantes e puérperas engajadas em construir relações humanizadas para parir e nascer.
Palavras - chaves: violência obstétrica, humanização, educação popular e decolonial de mulheres.
1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, Comunicação e Cultura em Periferias Urbanas onde desenvolve sua pesquisa junto ao NuDES – Núcleo de Estudos e Pesquisa “Diferença, Gênero e Sexualidades”. É graduada em filosofia e pesquisa a relação entre educação popular de mulheres e a humanização do parto e nascimento desde 2008. Contatos são bem vindos pelo email [email protected].
Introdução
Um estudo é sempre uma tomada de posição, uma intervenção política, um discurso de
poder. Se anteriormente as teorias desenvolvidas pela hegemonia masculina se diziam
imparciais, os estudos feministas decoloniais trabalham para romper com essa perspectiva.
Sabem que por detrás dessa suposta neutralidade se escondem silenciamentos e
invisibilizações.
A utilização da neutralidade do discurso científico pode ser constatada, por exemplo, pelo
uso da biologia para subsidiar afirmações binárias sobre gênero, que apontam para "a
distinção sexual, [que] serve para compreender — e justificar — a desigualdade social"
(LOURO, G., 2003, p. 21) entre homens e mulheres. Sabemos que discurso o biologizante
é determinista com relação às sexualidades, nesse caso prefixadas pelos órgãos genitais e
reprodutivos de nascimento. No caso das mulheres, o simples fato de possuir tais órgãos
atua como se houvesse um instinto que empurra e prepara a todas para maternidade2
reforçando paradigmas cisgêneros e heteronormativos, bem como as encerrando em papéis
sociais relacionados à vida doméstica. Este estudo não pretende reforçar esses estereótipos
que qualificam como telos das mulheres se tornarem mães, mas pensar algumas relações de
exploração, opressão (SAFIOTTI, 2004) e resistência vivenciadas pelas mulheres que
engravidam.
O Brasil lidera o ranking de cesárias eletivas (PARTO DO PRINCÍPIO, 2012), isto é, de um
procedimento cirúrgico indicado (muitas vezes sem necessidade) por muitos médicos que
2 Vale destacar que ao questionarmos a ideia do inatismo da maternidade, que também é socialmente
construída em cada tempo e espaço, não intencionamos negar essa possibilidade geradora de vida, sem a qual
a humanidade desapareceria, mas, sim, destacar a autonomia das mulheres em suas escolhas.
desencorajam as mulheres a parir. Outros procedimentos e posições são impostos e, ainda, é
comum, durante o trabalho de parto, elas serem xingadas, expostas ou ficarem isoladas
(apesar da legislação que lhes garante acompanhamento no parto e um tratamento
humanizado). Mas por que tanta hostilidade em um dos momentos da vida em que a mulher
mais precisa mais precisa de apoio?
Para refletir sobre essa questão, discutiremos no capítulo Gênero e decolonialidade como
essas categorias estão relacionadas e seus impactos na vida das mulheres. Diante disso,
abordaremos a questão da violência obstétrica como uma das muitas formas de violência de
gênero no capítulo Violência de gênero: obstétrica e neonatal. Em conclusão, discutiremos no
capítulo Pairamos: resistência e formas enfrentamento, como a Humanização e as redes de
apoio as gestantes contribuem na transformação de relações de poder desiguais.
Gênero e decolonialidade
Inscrever a violência obstétrica no âmbito da violência de gênero é uma escolha política e
ética amparada por epistemologias e práticas decoloniais, haja visto o contexto de
desumanização a que estão historicamente expostas as mulheres. María Lugones (2014),
por exemplo, destaca que a princípio as nativas das colônias eram compreendidas como
fêmeas, ou seja, não humanas. Devido a seus outros modos de ser, saber, curar e partejar
elas também foram perseguidas como bruxas e seus conhecimentos tradicionais ocultados.
Se o domínio masculino sobre parto e nascimento foi uma das maneiras de coerção colonial
e pós-colonial utilizadas para subalternalizar e invisibilizar os saberes populares femininos,
a violência obstétrica pertence ao âmbito da violência de gênero.
Lembramos que quando falamos sobre processos colonizatórios não podemos retirar o
papel da igreja nessa história.
Assim, à medida que o cristianismo tornou-se o instrumento mais
poderoso da missão de transformação, a normatividade que conectava
gênero e civilização concentrou-se no apagamento das práticas
comunitárias ecológicas, saberes de cultivo, de tecelagem, do cosmos, e
não somente na mudança e no controle de práticas reprodutivas e sexuais
(LUGONES, M., 2014, 938).
Ainda hoje, as políticas emancipatórias no âmbito do gênero sofrem ataques dos setores
conservadores, representados no Legislativo, sobretudo pela bancada da Bíblia.
Acreditamos que combater a violência de gênero e fomentar formas de resistência auxilia
na construção de uma política decolonial e uma educação fundamentada nos direitos
humanos.
Gênero é uma categoria histórica e socialmente construída que analisa as relações entre
homens e mulheres, mulheres e mulheres, e homens e homens sem hierarquizar essas
pessoas (SAFIOTTI, H., 2004). É necessário "perceber o gênero fazendo parte do sujeito,
constituindo-o" (LOURO, G., 2003, p. 25), sem fixar identidades. Afinal, não estamos no
âmbito das determinações, mas sim, no campo fenomênico-existencial aonde o gênero se
torna manifesto de múltiplas maneiras ao longo da história de um sujeito individual ou
coletivo.
Nesse sentido, coadunamos com discursos que negam perspectivas universalizantes e
binarismos por entender que esse tipo de categorização reforça a lógica colonial onde
importa o homem, branco, europeu, cis e heterossexual e violenta aquelxs que fogem dessa
normatividade. Se múltiplas opressões, explorações, invisibilizações e resistências marcam
a história de quem escapa a essa norma, faz-se necessário pensar a decolonialidade a partir
da trama interseccional articulando gênero a classe, raça, idade, territorialidade e etc.
Mesmo diante do debate interseccional, precisamos refletir que devido à colonialidade, o
paradigma hegemônico permanece nas concepções de classe, raça, gênero, educação ou
saúde, como em tantas outras categorias que perpassam nosso ser e viver. Assim, é
continuado o processo de colocar nossos saberes e fazeres no não lugar da desumanização.
No caso das mulheres, por exemplo, as violências contra elas estão de tal modo arraigadas
pela perspectiva colonial que podemos notar seu caráter apriorístico: "Un gravísimo
problema, contra el cual han luchado históricamente las mujeres en el planeta entero es la
violencia que se ejerce contra ellas por el solo hecho de serlo" (VENEZUELA, 2007, p.
03). Acreditamos que essa violência é um fruto da polarização do gênero que coloca um
elemento subalterno a outro e perpetua estereótipos. Por isso, é constante nossa luta pelo
direito a vida, reconhecimento e representatividade.
Ao pensar a questão da colonialidade podemos nos aproximar da perspectiva da filósofa
María Lugones (2014, p. 939) a fim de
(...) nomear não somente uma classificação de povos em termos de
colonialidade de poder e de gênero, mas também o processo de redução
ativa das pessoas, a desumanização que as torna aptas para a classificação,
o processo de sujeitificação e a investida de tornar o/a colonizado/a menos
que seres humanos.
Esse processo tende a delegar a mulher um papel de mãe, a partir da crença na maternidade
universal, ainda utilizada para fixar o lugar e a definição da mulher. Com essa premissa as
sociedades patriarcais enclausuraram as mulheres nos lares3 (e ainda as ameaçam no mundo
do trabalho). Nós, ao contrário, reconhecemos na maternidade uma das possibilidades de
manifestação da feminilidade e jamais uma prerrogativa.
A participação das mulheres urbanas e do campo no mundo do trabalho assalariado e a
constante reivindicação delas para romperem com obrigações restritas aos cuidados e a
educação, isto é, ao âmbito doméstico foi fundamental para estabelecer outras formas de
pensar as feminilidades. Como é assinalado por M. Foucault (1999) se não há resistência ao
poder, há apenas violência. No sentido de resistir e criar epistemologias-outras, estudos de
feministas negras e estudos lésbicos, gays e trans, e mais recentemente a teoria queer são
3 Devemos compreender as proposições sobre o que é ser mulher e mãe em constante disputa e transformação. Segundo Maria Marta de Luna Freire (2008), no Brasil, a partir de 1920 a mesma maternidade que era um imperativo categórico para manter as mulheres presas em suas casas, começa se transformar, nas classes hegemônicas, em possibilidade de acesso da mulher ao mundo acadêmico por meio da maternidade científica. Nesse período, o saber hegemônico passa a requisitar das mulheres certos conhecimentos específicos sobre educação e saúde acessados nas universidades. Esse fato do início do século XX, apesar de ficar restrito a classes dominantes, evidencia um mecanismo emancipatório empreendido pelas mães diante da colonialidade do saber.
essenciais para reforçar a pergunta “O que é ser mulher?”. Pergunta constantemente refeita
e que transforma as relações de poder.
Ao evidenciar sua ausência na produção de conhecimento, nas artes e na política4, assim
como a desigualdade salarial e de direitos os movimentos de feministas denunciam o
quanto o âmbito do feminino sofre com processos coloniais de exclusão e violência. A luta
pela humanização e contra a violência obstétrica se soma a esse enfrentamento. Com
profundas implicações no campo do gênero, a questão da violência obstétrica diz respeito
ao conjunto da humanidade, sejam mães e pais ou filhas e filhos que, em qualquer um dos
lugares que ocupem, têm na gestação, parto e nascimento um marco em suas vidas. Nesta
pesquisa, dialogamos com teorias fundamentadas nas epistemologias do Sul5
(BOAVENTIRA, 2007) para pautar o lugar de nossas feminilidades e da maternidade.
Violência de gênero: obstétrica e neonatal
Ao observarmos os aspectos coloniais que ainda vigoram notamos um paradigma que
legitima a violência contra a mulher e se utiliza da culpa para responsabilizá-las (haja vista
os casos de violência em que a vítima é culpabilizada e não o agressor). No Ocidente, e por
4 Perspectiva que vergonhosamente, ainda, vigora no cenário político nacional. Apesar de sermos maioria numérica 51% da população (IBGE, 2010) ainda ocupamos 9,9% na Câmara dos Deputadxs e 13% no Senado segundo portal da Câmara dos Deputadxs. 5 Pensamos essas epistemologias em diálogo com Boaventura de Souza Santos (2007), onde o Sul é geopolítico e não geográfico. Tais epistemologias visam criar formas mais humanas e adequadas a cada contexto sócio-histórico para encarar velhos problemas, que não são compreendidos em sua complexidade porque seus pressupostos teóricos são concebidos a partir de um conhecimento eurocêntrico, racista, heteronormativo, capitalista e patriarcal. Esse diálogo é possível ao nos referenciarmos a Sociologia das Ausências que busca romper com paradigmas hegemônicos nomeados por Boaventura (2007, p. 29) como monoculturas. Para pensar a questão da violência obstétrica destacamos: 1) “Monocultura do saber e do rigor da ciência européia” que desconsidera tudo que está para além dela e promove "epistemicídio" de todo conhecimento alternativo; 2) “Monocultura de naturalização das diferenças”, de gênero, raça-etnia ou classe (e outras como religiosa ou cultural) a qual subalternaliza as diferenças e invisibiliza sujeitos; 3) “Monocultura da escala dominante” a partir do universalismo e da globalização o particular e o local são desconsiderados. No intuito de combater essas monoculturas o autor cria uma ecologia para cada uma delas.
onde esse se expandiu com auxílio do cristianismo, a responsabilidade pelo pecado original
imputado à “primeira” mulher reforçou uma cultura de violência onde a culpa é sempre
dela (JONES; R, 2004, p. 97). Muitos mecanismos de silenciamento fortalecidos por essa
ideia foram utilizados para docilizar os corpos que fugiam à norma.
Não por acaso, são recorrentes os relatos de parto que narram parturientes expostas à
violência psicológica, obrigadas a ouvir: “Na hora que você estava fazendo, você não tava
gritando desse jeito, né? (...) Na hora de fazer, você gostou, né?” (PARTO DO PRINCÍPIO,
2012, p.02). Muitas vezes essas palavras são seguidas de xingamentos e maus tratos.
Vítimas de violência no momento de dar a luz ou abortar sofrem com
(…) la apropiación del cuerpo y procesos reproductivos de las mujeres
por personal de salud, que se expresa en un trato deshumanizador, en un
abuso de medicalización y patologización de los procesos naturales,
trayendo consigo pérdida de autonomía y capacidad de decidir (…).
(VENEZUELA, 2007, p.30)
À medida que as mulheres foram afastadas da companhia de outras e perderam o domínio
sobre os modos de parir observamos uma série de violências serem naturalizadas
contribuindo para índices altos de mortalidade materna6, sobretudo entre as mulheres
negras (BRASIL, 2011, p. 356).
No século XVIII, com o início da obstetrícia as mulheres passam a ser sedadas, o parto
induzido e o bebê retirado com auxílio de fórceps e outros instrumentos. A partir dos anos
20 do século passado, as intervenções médicas permanecem com práticas que lembram
cenas de tortura:
(...) as mulheres deveriam viver o parto (agora conscientes) imobilizadas,
com as pernas abertas e levantadas, o funcionamento de seu útero
acelerado ou reduzido, assistidas por pessoas desconhecidas. Separada de
seus parentes, pertences, roupas, dentadura, óculos, a mulher é submetida
à chamada "cascata de procedimentos” (PARTO DO PRINCÍPIO, 2012, p.
12).
6 Em 2011 a Razão de Mortalidade Materna era “68 óbitos maternos por 100 mil nascidos vivos” (BRASIL, 2011, p. 350), quase o dobro da meta prevista segundo os Objetivos do Milênio (NAÇÕES UNIDAS, 2013) para 2015, onde o Brasil deveria reduzir seu quadro de mortalidade materna para 35 óbitos.
Ainda hoje muitos desses procedimentos fazem parte da rotina nos hospitais brasileiros, o
que nos faz compreender a escolha não esclarecida de muitas pela cesariana7 eletiva com a
intenção de que vivenciem o nascimento de seus filhos sem sofrimento e dor. Mas,
submeter uma pessoa sã a uma cirurgia quando essa não é necessária não é também uma
violência? E o pós-cirúrgico não perpetua a dor mesmo após o parto?
A violência obstétrica geralmente vem acompanhada de outros tipos de agressões como
esterilização forçada, racismo, discriminação social, violência psicológica e intimidação
(estas últimas exemplificadas pela fala que dá nome a esse artigo “Se você não calar a boca,
vou te furar todinha” (PARTO DO PRINCÍPIO, 2012, p.02)). Em casos de aborto é
recorrente as mulheres serem tratadas como suspeitas ou criminosas, ameaçadas de serem
entregues à polícia ou ficarem aguardando demasiadamente.
Quando falamos em violência obstétrica tratamos também de violência institucional.
Assim, podemos observar relações de poder desiguais implicadas nas rotinas dos
profissionais da saúde que mantêm uma prática desumanizada, onde as decisões são
centralizadas na figura do médico. Esses e suas equipes, muitas vezes encarcerados em seus
procedimentos de rotina, demonstram grande resistência em reconhecer a violência em suas
práticas. Essa falta de reflexão dificulta o desenvolvimento da humanização da saúde no
Brasil, especialmente por esta alienação estar aliada a motivações financeiras (no caso das
cirurgias cesarianas eletivas que demandam menos tempo que o parto normal e são mais
lucrativas) e motivações religiosas (sobretudo, em casos de aborto um tabu intimamente
ligado a questão do parto e nascimento).
7 “A realização de parto cesáreo aumentou no País de 38,0% em 2000 para 52,3% em 2010” (BRASIL, 2011, p. 23). Observamos na referência apresentada pelo governo brasileiro uma discordância com profissionais da saúde ativistas pelo parto humanizado, que consideram parto os nascimentos pelas vias normais, não reconhecendo a cesariana como parto, mas, sim como cirurgia. Ainda sobre as cesárias, evidenciamos que “Segundo a publicação da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) que analisa a situação de todos os países, taxas de cesariana acima de 15% sugerem uso abusivo deste procedimento” (BRASIL, 2011, p. 26).
Diferente de outros eventos médicos onde a paciente ou sua família é avisada e/ou
consultada sobre os procedimentos a serem realizados, quando se trata de saúde reprodutiva
é rotineira a violação ao direito à informação e a tomada de decisão esclarecida. É comum
também a infantilização das “mãezinhas” o que reforça o quanto o sistema de saúde não as
reconhece como sujeitos pelo simples fato de serem mulheres e mães. Não compreendidas
como pessoas com autonomia sobre seus corpos é comum relatos de mulheres que foram
obrigadas a fazer cirurgia cesariana, que tiveram as trompas ligadas ou que a elas ou seus
filhos foram ministrados medicações ou feitos procedimentos sem que lhes fosse
informado. Quando se necessita de seu consentimento é comum o procedimento se reduzir
a um "assine aqui" retirando da mulher o protagonismo na hora de parir.
Outra forma de violência obstétrica se dá por meio das omissões da equipe médica,
sobretudo nos casos de aborto (natural ou induzido). É comum a equipe se omitir a aplicar
anestesias; a prestar informações e permitir que a mulher tome decisões esclarecidas; a
respeitar a intimidade da mulher, bem como suas questões culturais e sociais. “Muchas
pacientes desconocen que tratamiento recibieron porque no se les informó y si esto se hizo
fue con términos y expresiones que no entendieron”. (GUERRA, 2008, apud PARTO DO
PRICÍPIO, 2012, p. 36)
Pairamos8: resistências e formas de enfrentamento
Podemos nos perguntar: como as mulheres resistiram diante do saber médico que se ocupou
do parto e nascimento, deixando grande parte das mulheres alheias a esse acontecimento de
corpo? Como enfrentar algo que não se conhece?
Diante das múltiplas formas de violência as mulheres têm criado variados modos de
resistência e enfrentamento. Essas iniciativas encampadas por elas vêm romper com seus
8 Conjugação do verbo parir, modo imperativo, na 1ª pessoa do plural, bem como conjugação do verbo pairar, na 1º pessoa do plural, no presente do indicativo. Escolhemos a utilização deste vocábulo por sua ambivalência ao sugerir que nós mulheres voltemos a parir em um contexto menos cesarista e ao indicar aquilo que está por chegar.
silêncios diante da violência que o patriarcado, aliado aos saberes tecnocráticos (fruto de
seu domínio e com uma falsa imparcialidade a seu serviço) inseriu nos eventos de parto e
nascimento.
A partir dos movimentos feministas vemos ressurgir esforços de recuperação dos saberes
tradicionais referentes ao parto. Mais que indicar um momento de protagonismo e
intimidade da mulher com seu corpo, o parto passa a ser compreendido como parte dos seus
direitos reprodutivos e sexuais, um momento de manifestação profunda de suas paixões da
alma e, até, uma experiência de gozo.
Notamos também o crescimento de iniciativas de humanização do parto e nascimento, por
meio de políticas públicas construídas a partir da luta da sociedade civil, onde destacamos o
Programa de Humanização do atendimento ao pré-natal, parto, puerpério e
aborto/Humaniza SUS (BRASIL, 2014) e no Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade
Materna e Neonatal (BRASIL, 2004).
Conforme o Dossiê da Violência Obstétrica “Parirás com dor” (2012) o vocábulo
humanização já foi utilizado para balizar posições cartesianas concernentes ao corpo e a
medicina. Por outro lado, atualmente podemos conceber a humanização como um conjunto
de saberes e práticas que respeitam os sujeitos em suas múltiplas dimensões corporais,
psíquicas, sociais, de gênero, de raça e tantas outras possibilidades de ser, poder e saber. De
tal modo, não cabe uma inferiorização das mulheres que fizeram cesariana diante daquelas
conseguiram ter um parto. Afinal, compreendemos a humanização do parto e nascimento
como aquele evento em que a mulher faz uma escolha consciente de como ter seu filho e é
respeitada em sua decisão.
Na humanização do parto e nascimento a atenção se dirige à mulher. Nesse momento de
ruptura9 são respeitadas suas escolhas conscientes e evitada a violência e o sofrimento.
9 Compreender o parto como momento de ruptura se refere, conforme a psicanálise, a dimensão de vida e morte vivenciada pela mulher.
A humanização da assistência, nas suas muitas versões, expressa uma
mudança na compreensão do parto como experiência humana e, para quem
o assiste, uma mudança no que fazer diante do sofrimento do outro
humano. No caso, trata-se do sofrimento da outra, de uma mulher. O
modelo anterior da assistência médica, tutelada pela Igreja Católica,
descrevia o sofrimento no parto como desígnio divino, pena pelo pecado
original, sendo dificultado e mesmo ilegalizado qualquer apoio que
aliviasse os riscos e dores do parto (PARTO DO PRINCÍPIO, 2012, p. 11,
[grifo das autoras]).
Outra forma de atenuar o sofrimento no parto e a violência obstétrica se dá pelo apoio
oferecido pelas doulas. Elas são acompanhantes de parto que possibilitam amparo na
gestação, parto e pós-parto; auxiliam a mulher com a utilização de métodos não
farmacológicos para alívio da dor; e promovem a formação das gestantes por meio de
grupos de apoio ao parto que visam subsidiar as mulheres um conjunto de informações para
que possam fazer escolhas esclarecidas sobre seus partos. "Já há algumas décadas, grupos
organizados e intelectuais vêm provocando importantes transformações que dizem respeito
a quem está autorizado a conhecer, ao que pode ser conhecido e às formas de se chegar ao
conhecimento" (LOURO, G., 2007, p.211). Constatamos uma crescente demanda pela re-
apropriação dos saberes relativos à saúde perinatal (BRASIL, 2011), muitos deles quase
extintos pela hegemonia do saber colonial. Nesse caso, podemos observar a importância
dos grupos de apoio ao parto, promotores de espaços de trocas de saberes, categorizados
aqui como ações de educação popular e decolonial de mulheres no que concerne parto e
nascimento.
Essa educação é decolonial à medida que apresenta às gestantes “conhecimentos – outros”
amparados em saberes tradicionais sobre o partejar e a criação de filho; onde nós mesmas
recuperamos e elaboramos nossos próprios saberes com relação ao parto e nascimento.
Afinal, quando se trata de enfrentamento à violência obstétrica "Qualquer que seja a
hipótese eleita para investigação, o método apresentará falha, se omitir a voz do principal
sujeito ativo, protagonista do parto: a mulher" (PARTO DO PRINCÍPIO, 2012, p. 19).
Inscrevemos essas iniciativas no âmbito da educação popular uma vez que tanto as doulas,
quanto as profissionais engajadxs na humanização da saúde em diálogo com as mães
passam a
(...) participar do trabalho de produção e reprodução de um saber popular,
aportando a ele, ao longo do trabalho social e/ou político de classe, a sua
contribuição específica de educador: o seu saber erudito (o da ciência em
que se profissionalizou, por exemplo) em função das necessidades e em
adequação com as possibilidades de incorporação dele às práticas e à
construção de um saber popular (BRANDÃO, R., 2006, p. 47).
No caso dos grupos de apoio ao parto, mais que um trabalho de classe, é desenvolvido um
trabalho de gênero visando condições de saúde mais humanas para as mulheres.
Os conhecimentos compartilhados nesses espaços variam em sua complexidade, podendo
tratar de relatos de experiências cotidianas sobre cuidados com o bebê e relações familiares
e, até de procedimentos obstétricos bem específicos. Essas ações de educação popular e
decolonial têm a intenção de transformar não só o modo das mulheres lidarem com suas
gestações e partos em particular, mas também de gerar políticas públicas. Assim, tornam-se
“(...) instrumento político de conscientização e politização, através da construção de um
novo saber, ao invés de ser apenas um meio de transferência seletiva, a sujeitos e grupos
populares” (BRANDÃO, C., 2006, p. 46).
Essas iniciativas enfrentam a distribuição desigual do saber e, por isso, encontram inúmeras
resistências por parte dos profissionais da saúde. As informações fomentadas possibilitam
às mulheres tomarem decisões esclarecidas. A partir da compreensão do comportamento do
seu próprio corpo durante o parto e das rotinas médicas, elas são capazes de escolher,
perguntar e até sugerir à equipe médica quais intervenções podem ser feitas nela e no seu
bebê. Esse esclarecimento evita que ela seja submetida a tratamentos degradantes e cruéis,
bem como atenua o medo. A educação popular e decolonial de gestantes e puérperas se
soma aos esforços no campo da saúde da assistência baseada em diretos ao garantir o "(...)
direito à condição de pessoa (direito à escolha informada sobre os procedimentos)"
(RATTNER, 2009 apud PARTO DO PRINCÍPIO, 2012, p. 15).
Acreditamos que enfrentando a divisão desigual do saber, as relações de poder também se
transformam. Há muito por fazer. Por isso, afirmamos a necessidade de que essa rede de
resistência e de educação se amplie chegando a classes menos privilegiadas, bem como a
territorialidades periféricas. Uma educação que incorpore não apenas gênero, mas que seja
capaz abranger as classes historicamente invisibilizadas, maiores vítimas de violência. Que
o acesso a saúde humanizada seja uma constante no Sistema Único de Saúde e que o gênero
não seja fundamento para perpetuação da violência.
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