“EU, VIRGÍLIO DE OLIVEIRA, QUE ASSASSINEI A MINHA ESPOSA...

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DANIELLA ALVES TALARICO “EU, VIRGÍLIO DE OLIVEIRA, QUE ASSASSINEI A MINHA ESPOSA”: Uma análise sobre o discurso jurídico acerca da honra sexual (FLORIANÓPOLIS, 1900-1927) Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de História, do Centro de Ciências Humanas e da Educação, Universidade do Estado de Santa Catarina, no semestre 2011/1, como requisito parcial para a obtenção do Título de Bacharel e Licenciado em História. Orientadora: Profª Drª Silvia Maria Fávero Arend FLORIANÓPOLIS 2011

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DANIELLA ALVES TALARICO

“EU, VIRGÍLIO DE OLIVEIRA, QUE ASSASSINEI A MINHA ESPOSA”:

Uma análise sobre o discurso jurídico acerca da honra sexual

(FLORIANÓPOLIS, 1900-1927)

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de História, do Centro de Ciências Humanas e da Educação, Universidade do Estado de Santa Catarina, no semestre 2011/1, como requisito parcial para a obtenção do Título de Bacharel e Licenciado em História.

Orientadora: Profª Drª Silvia Maria Fávero Arend

FLORIANÓPOLIS2011

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DANIELLA ALVES TALARICO

“EU, VIRGÍLIO DE OLIVEIRA, QUE ASSASSINEI A MINHA ESPOSA”:

Uma análise sobre o discurso jurídico acerca da honra sexual

(FLORIANÓPOLIS, 1900-1927)

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de História, do Centro de

Ciências Humanas e da Educação, Universidade do Estado de Santa Catarina, no

semestre 2011/1, como requisito parcial para a obtenção do Título de Bacharel e

Licenciado em História.

Banca Examinadora

Orientadora: ______________________________________________ Profª. Drª. Silvia Maria Fávero Arend Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC

Membros: ______________________________________________ Profª Drª Marlene de Fáveri Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC

______________________________________________ MSc. Maria Cristina Cintra Tribunal de Justiça de Santa Catarina - TJSC

______________________________________________ MSc. Giovanna Maria Poeta Grazziotin

Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC

Florianópolis, 07 de julho de 2011

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À todos aqueles que acreditaram nas minhas escolhas e apoiaram minhas convicções. Em especial à minha mãe Izabel, aos meus irmãos Graziella e Marcello, ao meu pai Antônio que no meu coração, ainda é vivo, e ao meu anjo Renato.

Amo vocês!

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AGRADECIMENTOS

Escrever os agradecimentos sempre é uma tarefa gratificante, ainda que me

deixe um pouco apreensiva, pelo simples fato que por um lapso de memória, é

possível que uma pessoa que foi essencial para o desenvolvimento da pesquisa,

seja esquecida. Se por acaso isto ocorrer neste agradecimento, peço perdão de

antemão e afirmo que o esquecimento não foi ingratidão.

Em principio, serei eternamente grata à minha família: à minha irmã Graziella,

que com brincadeiras e choros me ensinou a ser o que sou hoje, ao meu irmão

Marcello, que com o meu medo de decepcioná-lo fez eu alcançar meus objetivos e a

minha mãe, Izabel, que com o broncas, seu amor, sua integridade e carinho, me

ensinou os valores mais essenciais para que eu fizesse as escolhas certas (ainda

que algumas foram erradas) para alcançar meus objetivos e me tornar o que sempre

desejei nesta vida: ser uma Historiadora. Amo vocês, por nunca terem duvidado da

minha capacidade, por terem me apoiado nas diversas escolhas que fiz e por

estarem ao meu lado nas adversidades.

Também sou grata ao meu companheiro, Renato, que nos últimos 2 anos

esteve ao meu lado, me ajudando a passar pelas dificuldades no percurso da

graduação, como um pilar que me manteve firme e forte, apesar das tempestades

de incertezas que passei. Ai Shiteiru!

Aos irmãos que a vida me deu, Gustavo e Rafael, que mesmo um pouco

distantes, vibravam até com as pequenas vitórias que tive no caminho da minha

formação.

Aos meus amigos de sala, que durante 4 anos me ajudaram a relaxar das

cobranças dos professores com comemorações em bares. Obrigada!

À minha orientadora, Silvia Arend, que aceitou me ajudar em uma das etapas

mais importantes da formação do Historiador: colocar em prática tudo que eu

aprendi nestes 4 anos de curso. E principalmente pela paciência em ouvir minhas

angústias. Obrigada por aceitar a missão!

Não posso deixar de agradecer à Cristina Cintra do Tribunal de Justiça de

Santa Catarina, que foi peça chave para que eu conseguisse localizar os processos

que fazem parte deste estudo. Muito obrigada, sem você talvez ele nem tivesse

iniciado.

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Durante minha trajetória no curso, muitas pessoas foram essenciais para que

eu conseguisse me formar. Este agradecimento é direcionado a todos que de

alguma forma ajudaram neste percurso. Sou grata à Leticia, Felipe, Ana, Rodrigo e

outros colegas da Scientia Consultoria Científica, que me orientaram e me

ensinaram muito sobre a profissão de arqueólogo, que depois de paixões e

separações, acredito que seja uma forte candidata para minha especialização.

Também agradeço ao Gunter, Alexandre, Gustavo e outras pessoas que

conheci no Ministério Público de Santa Catarina, local que passei 1 ano e 6 meses

aprendendo como construir um memorial para a Instituição e como fazer História

Oral e que, apesar das “pedras no caminho”, que de certa forma eu as coloquei, me

ensinaram a ser uma profissional (e uma pessoa) melhor. Sou grata!

Aos estagiários deste mesmo Projeto do MPSC, Thiago, Victor, Alan,

Gabriela, Anderson, que participaram deste meu aprendizado e principalmente ao

Bruno, que com conversas e discussões inteligentes fizeram com que minha

formação, enquanto pesquisadora e docente, fosse ainda mais completa. Valeu

gente!

Agradeço aos meus amigos da antiga faculdade, Unisantana, em especial

Chrystiano e Maycoln, que fizeram eu me apaixonar ainda mais pela História,

enquanto eu morava em outro estado, estando ao meu lado nas mais adversas

situações.

Também agradeço ao Felipe Polidoro, que sem seu apoio, minha trajetória

em direção à formação superior talvez sofresse maior atraso ou nem ocorresse. Sou

muito grata por sua ajuda!

Agradeço à UDESC, por manter o bom nível do curso pelas mãos dos

Professores, que orientaram o meu caminho. Espero não decepcioná-los e,

principalmente, passar adiante o conhecimento e experiência que adquiri com vocês.

Por fim, não posso deixar de citar um pequenino companheiro felino, Shiroi,

que com sua personalidade brincalhona me ajudou a relaxar quando as produções

da universidade esgotavam a minha mente. Tenho consciência que ele jamais

entenderá o quanto me ajudou, mas pelo menos quero que os leitores destes

agradecimentos saibam.

Obrigada a todos!

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“A honra é, objetivamente, a opinião dos outros acerca do nosso valor, e, subjetivamente, o nosso medo dessa opinião.”

Arthur Schopenhauer

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo analisar como se deu a construção da noção

de honra sexual em Florianópolis nas primeiras décadas do século XX, através de

dois estudos de caso: um processo criminal de 1900 e um inquérito policial de 1927.

Os dois acusados, um homem e uma mulher, cometeram crimes supostamente em

função de sua honra. O estudo é dividido em três capítulos. O primeiro contextualiza

a cidade e narra como ocorreram os crimes à partir dos depoimentos presentes nos

inquéritos. O segundo capítulo analisa o discurso jurídico, através das falas dos

promotores públicos, advogados e delegados, nos respectivos documentos e seus

argumentos sobre razão e desrazão. O terceiro capítulo procura compreender como

o caráter dos acusados e das vítimas foi descrito, através dos depoimentos e

também do réu e das questões propostas pelo tribunal do júri, assim como busca

analisar os resultados dos julgamentos.

Palavras-Chave: História. Discurso. Poder Judiciário. Direito Penal. Honra.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Saneamento do Rio da Bulha 24

Figura 2: Construção da Ponte Hercílio Luz 26

Figura 3: Casa de Câmara e Cadeia 35

Figura 4: Tribunal de Justiça e Ministério Público em Florianópolis 36

Figura 5: 14º Batalhão de Caçadores 80

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LISTA DE ABREVIATURAS

MPSC – Ministério Público de Santa Catarina

TJSC – Tribunal de Justiça de Santa Catarina

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

1. CAPÍTULO UM - A FLORIANÓPOLIS DE VIRGÍLIO E DE CÉLIA 17

1.1. A Florianópolis de Virgílio: um crime de honra? 17

1.2. A Florianópolis de Célia: um crime de amor? 20

1.3. Uma Florianópolis Urbanizada 22

1.4. Uma Florianópolis Intelectualizada 27

2. CAPÍTULO DOIS - DISCURSO JURÍDICO: RAZÃO E DESRAZÃO 31

2.1. As vozes do processo e suas personagens 31

2.2. A voz da “razão”: o discurso jurídico oficial 36

2.3. A voz da “desrazão”: o discurso médico e psiquiátrico sobre a loucura 48

3. CAPÍTULO TRÊS – AS TESTEMUNHAS, O RÉU E OS JURADOS 54

3.1. A construção do caráter do acusado e da vitima e como ocorreu o

crime através dos depoimentos 54

3.2. A voz de Virgílio e do Júri: de médico, assassino e louco, todo mundo

tem um pouco 62

CONSIDERAÇÕES FINAIS 73

REFERÊNCIAS 74Bibliográficas 74Fontes Documentais 78Jornais 78

ANEXOS 79

Anexo 1 79Anexo 2 80Anexo 3 81Anexo 4 82Anexo 5 84

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INTRODUÇÃO

Nas primeiras décadas do século XX, a cidade de Florianópolis começa a

ganhar contornos e benfeitorias que caracterizaram este momento como a década

de modernização da cidade e de introdução da norma familiar burguesa. A

construção da primeira ponte que ligaria o continente à ilha, a construção da avenida

do saneamento (hoje a Avenida Hercílio Luz), a criação da central telefônica e a

distribuição de energia elétrica, são alguns dos principais acontecimentos deste

período. Ainda que estas melhorias fossem em teoria para toda a cidade, também foi

excludente, pois parte da população foi empurrada para os morros no entorno do

centro. No período havia inclusive regras que impediam a circulação de pessoas

“não desejadas”, assim como regras de vestimentas permitidas para essa incursão a

este centro. Aqueles que não se enquadravam nestes novos padrões de convivência

social eram consideradas atrasadas nos costumes que surgiam na cidade.

Mas, será que os valores que norteavam esta convivência social se

modificaram. E certamente mais importante ainda é verificar quais eram os valores

daquele momento em específico. É certo que esta sociedade baseava-se em uma

noção burguesa em que a figura do homem era a responsável pela família de um

modo geral, devendo prover a casa e seus dependentes através do trabalho. Às

mulheres, cabia a “carreira” do casamento, no papel de esposa e mãe, sempre sob a

tutoria de uma figura masculina. Se antes esta “tutoria” era de responsabilidade do

pai, esperava-se que com o casamento, a tutoria passasse ao marido.

Mais do que esposa e mãe, também deveriam zelar pela sua imagem, sendo

“mulheres honestas”1, ou seja, aquelas que não se enquadravam como infiel ou se

tinham qualquer conduta sexual divergente dos “exigidos” e divulgados por esta

sociedade. Valores como estes mostram que aquelas que precisavam trabalhar não

se enquadravam no papel de “mulher honesta” e poderiam ter sua honra colocada

em discussão. Florianópolis tentava se assemelhar à cidades, tal como o Rio de

Janeiro, que por sua vez importava o modelo europeu, principalmente o que

acontecia em Paris. As cidades tornavam-se mais “bonitas” com melhorias sanitárias

apenas para aqueles que faziam parte das elites, uma vez que os outros se 1 PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: Uma questão de classe. Florianópolis: Editora da UFSC, 1994.

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tornavam invisíveis nos morros que começaram a ser lentamente ocupados em

Florianópolis.

O intuito deste trabalho é tentar compreender em que medida estes valores

eram utilizados como argumentos para amenizar crimes contra a honra, previstos no

Código Penal de 1890, mais especificamente os assassinatos (ou a tentativa) para

recuperar a “honra”, processos denominados de crimes passionais. Pretendemos

analisar os discursos relativos a uma noção de honra em Florianópolis no século XX,

através dos processos criminais em que figura a paixão como atenuante dos

homicídios cometidos.

Um dos fatores que configurou a escolha dos processos criminais como fonte

documental a ser utilizada, é que dentro de cada processo encontramos diversas

“vozes” interpretando o ocorrido, cada uma com seus pontos de vista sobre o crime.

Estas “vozes” nada mais são do que discursos apropriados por um determinado

grupo social e reproduzido no julgamento de um caso. Dentre as “vozes” que

encontramos nestes autos, estão os discursos jurídicos, medico - psiquiátrico, das

pessoas das camadas populares, através dos depoimentos, a voz do próprio

acusado e, por fim, a voz da elite, através do tribunal do júri.

As falas jurídicas estão em concordância com os discursos da razão. Assim,

no caso de um assassinato, somente para aqueles considerados “sãos” se aplicam

na integra as leis, pois só pode ser punido alguém que agiu com plena consciência e

faculdade mental. Se por algum motivo esta “sanidade” é prejudicada por um

sentimento avassalador, atenua-se a pena, ainda que não o impute do crime. Isto

ajuda a compreender a concepção de honra em uma sociedade à partir do momento

em que “permite-se” que a parte traída recupere sua honra através do assassinato,

que só ocorreu devido a um sentimento de raiva / ciúme / impotência perante uma

traição.

Quando era verificado que o assassino possui alguma psicopatia, entrava em

cena o discurso médico sobre a loucura e a desrazão, retirando o réu do âmbito

judiciário no que diz respeito à punição por um crime. Assim, neste discurso, este

indivíduo tinha que ser retirado da convivência social para tratamento médico, pois

não respondia por seus atos. Na lógica da honra, aquele que agiu em “desrazão”

ficava impune por não ter consciência destes atos, ainda que esteja mergulhado na

lógica social de que era preciso “lavar” a honra com sangue.

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Mas, será que homens e mulheres que cometeram o mesmo tipo de crime

eram julgados da mesma forma? Se, provindos de diferentes classes sociais, o

julgamento era o mesmo? É certo que cada discurso (jurídico, médico e popular)

apresenta um determinado entendimento no que tange as relações de gênero.

Investigar estas relações através das “vozes” destes processos é outro de nossos

objetivos.

Dos significados: crime, do dicionário (Aurélio): “qualquer violação grave da lei

moral, civil ou religiosa; ato ilícito; contravenção; cometer um crime de assassínio. /

Ato condenável, de consequencias desagradáveis; ato ilícito de maior gravidade

para o qual a lei comina sanção de natureza penal”. Passional: “que concerne às

paixões, e particularmente ao amor, ou que dele depende”. Assim, um crime

passional se define quando o crime ocorre sob a influência da paixão e que, ainda

hoje, consta no código penal brasileiro como atenuante da pena para aquele que

cometeu o ato, uma vez que este estaria sob efeito de sentimentos e emoções não

patológicas que ameniza a pena. É a tensão entre o discurso jurídico baseado na

razão e do discurso médico da “desrazão”.

O Decreto nº. 847 de 11 de outubro de 1890, que promulga o Código Penal,

era que estava vigente no estudo dos casos deste trabalho. Este atenuava os crimes

que ocorrerem em legítima defesa da honra. O Capítulo IV, do referido Código trata

justamente da infidelidade prevendo o período de reclusão e a diferenciação que

havia para mulher – esta era considerada adúltera se tivesse, mesmo que por

apenas uma noite, estado com outro homem que não seu marido; enquanto para o

homem, o crime de adultério só se caracterizava caso “o marido tiver amante teúda

e manteúda”, mostrando a diferença de tratamento entre os gêneros para o que

fosse considerado adultério.

Podemos inferir que um crime passional, geralmente ocorria quando uma

esposa considerada infiel era morta por seu marido ou ainda pudesse ocorrer o caso

da esposa assassinar o marido ou a amante. Mas para refletimos sob estes

exemplos, temos que resolver uma questão: qual era a noção de honra da época?

Por ser uma sociedade burguesa, a traição feminina era interditada, pois isto

colocava em risco a paternidade e possibilitava o nascimento de “bastardos” (filhos

não reconhecidos, filhos nascidos de um casamento não - legitimo). A família se

constitui à partir do caráter biológico de seus descendentes, por isso um filho que

não fosse consanguíneo colocava em risco a herança familiar, já que a sociedade

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florianopolitana no inicio do século XX se configurava como patrilinear (forma de

filiação pela qual só conta o parentesco paterno). Assim, uma “mulher honesta” era

aquela que não se expunha para que não houvessem dúvidas sobre seu caráter

sexual, que na época era relacionado a virgindade, para as solteiras e a fidelidade,

para as casadas.

Para o presente trabalho, as fontes documentais escolhidas foram: um

processo criminal de 1900, de aproximadamente 500 páginas, cujo réu foi um

pescador. O processo inicia com a denúncia do promotor, seguindo-se pelo inquérito

policial com as investigações sobre o crime. Neste, há os depoimentos de

testemunhas e do pescador. O exame de corpo e delito demonstra a violência

empregada no crime. Após o inquérito, inicia-se o processo criminal, com as atas

dos julgamentos e documentos de recursos. Ao total, foram cinco julgamentos.

O outro documento utilizado para esta análise foi um Inquérito Policial de 15

páginas, em que figura como ré a filha do ex-governador Hercílio Luz, Célia da Luz

Simões. O crime, ocorrido em 1927 caiu no esquecimento jurídico, prescrevendo e

jamais tornou a ser investigado.

É importante ressaltar que este trabalho é um estudo destes dois casos, com

foco principalmente no processo criminal de Virgílio, o pescador que assassinou sua

esposa. Isto ocorreu principalmente devido a imensa dificuldade em localizar mais

processos sob esta temática, já que as condições de armazenamento dos processos

no Arquivo do Tribunal de Justiça em Santa Catarina se encontram em situação

deplorável. Tais processos não estavam cadastrados em local algum, as caixas que

estes se encontravam, estavam perdidas entre tantas outras, sob ação de mofo,

insetos e roedores. Foi necessário abrir cada caixa, olhar cada processo, para

localizá-los. Estes, misturados com outros processos de temporalidades diversas e

tipos de crimes diversos. Eram processos civis e inventários misturados a processos

criminais, desde processos de 1900 a 1950.

Vencidas tais dificuldades devido à ajuda de poucos funcionários do Museu

do Judiciário Catarinense, conseguimos “salvar” diversos processos do arquivo,

movendo-os ao Museu. Mesmo lá, tais documentos se encontram em situação

precária. Não há um local adequado para armazenamento, não há um cadastro e

sistematização do que existe lá. O pouco que tem, deve-se mais a ação de outros

pesquisadores, que identificam os processos e colam as descrições nas caixas. Por

fim, isto explica porque foram localizados apenas dois documentos sob tal temática,

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já que em pesquisa feito nos jornais do recorte temporal escolhido, foram localizados

cerca de 15 crimes. Os jornais, neste caso, serviram apenas para localizar os

crimes, não como fonte de análise deste trabalho. Nem os inquéritos, nem os

processos destes outros crimes foram encontrados.

Quando este trabalho saiu do campo das idéias e tornou-se, primeiramente

um projeto, as escritas de Michel Foucault foram essenciais para a produção deste,

devido às considerações acerca dos discursos produzidos e reproduzidos. Inspirei-

me principalmente nas produções organizadas e coordenadas por Foucault no livro

“Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão”, pela

“similaridade” entre as vozes que falam no processo de Rivière e no processo de

Virgílio. Salva as proporções, Virgílio nos diz bastante sobre essa Florianópolis e os

valores (e hipocrisias) daqueles que o julgaram.

O trabalho está dividido em três capítulos e diversos sub-capítulos. No

primeiro, é apresentada a contextualização histórica dos processos, como estes

ocorreram e como era a cidade nos momentos dos respectivos crimes, servindo

como indícios dos valores burgueses que eram divulgados na cidade, assim como a

transformação urbana, política, economia e educação em Florianópolis. Isto auxilia

na compreensão de como era o perfil social da cidade. Para este levantamento,

foram utilizados autores que trabalharam tal temática nos diversos períodos

apresentados. A produção de Virgílio Varzea em 1900, Claudia Mortari sobre os

locais de socialização da camada popular, Rosangela Cherem, no início da república

em Santa Catarina, entre outros autores como Joana Maria Pedro, Hermetes Reis

Araújo, entre outros.

O segundo capítulo localiza e apresenta os discursos sobre a razão e como

este é construído, assim como os discursos de “desrazão e loucura”, na tentativa de

inocentar os réus. Também foram apresentado os personagens dos processos:

advogado, promotor, delegado, os réis, o tribunal de júri e as testemunhas, suas

atribuições e possíveis classes sociais. Um breve histórico do Tribunal de Justiça e o

Ministério Público de Santa Catarina foi apresentado assim como seus objetivos

enquanto instituição. O Código Penal de 1890 foi apresentado em contrapartida aos

processos. Sobre a razão, autores que escrevem sobre o Direito; e outros sobre

relações de gênero no Brasil foram utilizados, como Gunter Axt, Sueann Cauldfield,

Michele Perrot e Joana Maria Pedro, entre outros. Sobre o discurso da loucura, foi

utilizado como referencial teórico as escritas de Sigmund Freud, por ser considerado

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o pai da psiquiatria moderna, Michel Foulcault por sua produção sobre a História da

Loucura que não a contrapõe à razão, como grande parte dos autores escrevem.

O terceiro capítulo localiza o discurso popular através dos depoimentos no

processo e no inquérito policial, construindo o caráter do acusado e da vítima, com

suas próprias idéias de como e porque ocorreram os crimes e por fim, a voz do réu

Virgílio, as mudanças de versão sobre o crime e a voz do tribunal do júri, como

poder final nos julgamentos, e sobre o contrato social que existia em Florianópolis.

Por haver comparação entre Virgílio e Rivière, as produções de Jean-Pierre Peter,

Jeanne Favret, Michel Foucault, Patrícia Moulink Blandine Barret-Kriegel, Riot,

Castel e Alexandre Fontana figuram entre os principais pesquisadores utilizados

para análise do processo. Por fim, é apresentado qual argumentação “venceu” no

fim de cada um dos cinco julgamentos que Virgílio passou e o possível porque do

inquérito de Célia não ter se tornado um processo. O presente trabalho identifica o

jogo de poderes sobre os discursos produzidos, principalmente sob a ótica da honra,

afim localizar os valores divergentes produzidos nos processos estudados.

Norbert Elias aponta que desde que o homem convive em sociedade, houve a

criação de leis e punições para aqueles que não agem de acordo com estas regras

sociais, desta forma,

“A transformação da coação externa da instituição social do tempo em uma pauta de auto-coação que abarca toda a existência do indivíduo, é um exemplo gráfico da maneira em que o processo civilizador contribui para modelar uma atitude social que forma parte integrante da estrutura da personalidade do indivíduo”2

De acordo com o autor, a sociedade impõe regras para o indivíduo. Portanto,

mais do que meramente crimes de honra, os crimes passionais são “reflexos” das

relações sociais, morais e religiosos em que estavam imersos os habitantes da

Florianópolis do século XX e os processos criminais, que carregam diversas “vozes”

dentro de sí, são as pistas que podemos utilizar para interpretar este contexto.

2 ELIAS, Norbert. Processo Civilizador. São Paulo: Jorge Zahar, 1994, p.21.

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CAPÍTULO UM

A FLORIANÓPOLIS DE VIRGÍLIO E DE CÉLIA

1.1 - A FLORIANÓPOLIS DE VIRGILIO: UM CRIME DE HONRA?

A noite parece ser a cúmplice preferida dos crimes premeditados. Também

era noite do dia 13 de julho de 1900, quando Virgilio João de Oliveira, um pescador

com seus 27 anos, caminhou em direção à casa de sua suposta esposa, Maria

Alexandrina da Conceição, três anos mais nova, filha de João Feliciano da Silva, na

Freguesia do Rio Vermelho na localidade da Praia dos Ingleses. Suposta, porque

estes, apesar de casados há 6 anos, jamais viveram maritalmente.

Esta estranha situação era explicada pela própria forma que o casamento

acontecera: Alexandrina abrira um processo contra Virgilio, afirmando que este

deflorou-a3 sob promessa matrimonio. Em um dos tantos julgamentos feitos neste

teor, esta conseguiu provar sua “honestidade”, e o Poder Judiciário deu duas opções

ao homem: ou se casava, ou era preso. Este optou pelo casamento. Porém, no

mesmo dia em que cumpriu o exigido, cada um foi para a casa de seus respectivos

pais. Virgilio não tardou para deixar a cidade, refugiando-se na cidade de Santos,

localizada no estado de São Paulo, por aproximadamente 5 anos.

O que fez por lá em relação a sua vida amorosa não há como saber. Mas,

como frequentemente era cobrado das mulheres, o que Alexandrina fez era sabido –

e pontuado, por todos. Esta, como havia sido abandonada, continuou sua vida e,

apesar de ter se relacionado com outro homem, de cor preta, sempre enfatizado nos

depoimentos, e ter tido um filho com este, conseguiu ser considerada uma mulher

honesta.

Virgílio retornou à Freguesia do Rio Vermelho e foi morar com seu pai. Todos

acreditaram que este voltara arrependido e desejava fazer às pazes com

Alexandrina. Passaram-se 10 meses, para que este decidisse que tinha direito de

lavar sua honra com o sangue da infiel “esposa” – ou vingar-se, por ter sido obrigado

a casar.

Ao contrário de Célia, Virgílio tinha o breu total a seu favor. O ano era de

1900, não havia energia elétrica e o calçamento era precário, permitindo a

3 Deflorar: Tirar a flor; fazer perder o viço, a beleza, tirar a virgindade mediante promessa ou ameaça.

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passagem de carroças com tração animal para locomoção, ou caminhando, como

era comum. E foi caminhando no silêncio da noite, com uma barba falsa para

dificultar sua identificação, que Virgílio foi até a residência de sua “esposa”, que

agora morava com a irmã.

Um tiro na fechadura da porta foi suficiente para derrubá-la. Por infelicidade,

Alexandrina estava em casa, que era iluminada com lamparinas que queimavam

óleo de baleia. O que esta sofreu pode ser traduzido pelo exame de corpo e delito.

Com sorte, ela morreu no primeiro tiro, ao total foram 17 disparos contra seu corpo.

Quatro deles foram desferidos nas costas, talvez tenha tentado fugir, em vão. Mas

não parou por ai. Houve quatro perfurações com objeto cortante, além dos tiros.

Uma delas, introduzido no canal vaginal.

Um choro de criança foi ouvido pela manhã, na mesma casa em que

descobririam o corpo mutilado de Alexandrina. Não era seu filho, este havia falecido

quando pequeno. Era uma sobrinha, testemunha, não ocular, mas auricular da cena

que sua tia havia sofrido. Quanto a Virgílio? No dia seguinte agiu normalmente. Foi

ao bar da localidade, sem fingir tristeza pelo ocorrido que rapidamente se espalhou.

A polícia logo soube do caso e foi até a localidade para colher depoimentos, a fim de

esclarecer o caso. Foi através destes depoimentos que os policiais finalmente

chegaram até Virgílio, que confessou o crime, sem deixar clara a motivação. O

homem foi preso, mas não continuaria assim pelo tempo necessário para cumprir a

pena do crime que cometeu, como será explicitado posteriormente.

Virgílio não viveu no contexto urbano que será posto a seguir. Ele viveu à

margem da cidade, distante, na Freguesia da Praia dos Ingleses, na Florianópolis do

início do século XX. O transporte entre a ilha de Santa Catarina e o continente dava-

se através de um serviço precário de balsa. A melhoria da malha viária, iniciada pelo

governo de Felipe Schmidt (1890 a 1902) já existia, porém a locomoção das

pessoas era feita, na maioria das vezes, através de carroças. As carretas e

automóveis ainda eram caros para a população, sendo que uma viagem da

Freguesia da Praia dos Ingleses até o centro da cidade era considerada longa e

cansativa. A viagem poderia também ser feita através de barcos, mas era um trajeto

também demorado.

Virgílio, como afirmamos, era pescador. Esta era uma das únicas atividades

possíveis para as populações ribeirinhas no final do século XIX. Com o terreno

litorâneo com pouquíssimas extensões aráveis, a agricultura se tornou imprópria.

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Assim, a Ilha de Santa Catarina possuía como principal fonte de renda o comércio

pesqueiro e com uma pequena atividade agrícola associada. Com o declínio da

pesca da baleia a indústria começou a ter lugar de destaque com o crescimento

urbano,

A indústria na volta de 1900 em Florianópolis: Já contam aí – uma fundição de pontos de pariz (sic), empregando grande número de operários, pertencentes à casa Carl Hoepcke e Cia, duas fábricas de preparo de peixe em lata; três cervejarias, salientando=se entre elas a de Daniel Krapp e a de Antônio Freysleben, que exportam o seu produto para as circunvizinhanças e localidades do sul do Estado; uma de sabão e velas; uma fábrica de massas alimentícias. ”4

A área urbana ia criando uma experiência diferente captando capital de

investimento que era investido na cidade, o que “justificou” as modificações que

Florianópolis sofreu. Já em 1904, ainda que o autor acredite que a indústria não era

desenvolvida como seria desejado, a cidade possui outras fábricas,

armadoras de artefatos estrangeiros. Uma fabrica de pregos, duas ou três olarias de tijolos, algumas marcenarias, sendo uma delas à vapor, duas fabricas de açúcar, vinhos de frutas até duas fábricas de vinagre, duas de farinha de bananas, uma oficina mecânica, alguns engenhos de açúcar e aguardente e pouco mais, eis toda a industria do município. A pesca é talvez o principal meio de atividade da população”5

Apesar dos incentivos posteriores à introdução da indústria, como a lei nº.

338, de 31 de outubro de 1912, de proteção a indústria, que dava isenção dos

impostos municipais por 10 anos para aquelas que se estabeleçam e utilizem como

energia o vapor, a água, a eletricidade, o petróleo e a gasolina ou semelhantes, a

cidade ainda tinha espaço para pescadores, como Virgílio.

O personagem, mesmo distante do centro urbano da capital da recém

renomeada Florianópolis, convivia com os valores sociais, que serviram de

justificativa para o crime que este cometeu: o assassinato de sua esposa, que não

vivia maritalmente desde o casamento, sob uma suposta traição que esta cometeu.

Valores estes, que curiosamente causavam sentimentos diversos na elite jurídica.

Estas pessoas que habitavam nas freguesias, viviam sob uma ótica própria.

Frequentavam bares, questionava a “justiça”, tinham sua própria moral

transformada, que também paradoxalmente, se apoiava nos novos valores

burgueses. As sociabilidades eram diferentes, mas a hierarquia entre homens e

mulheres, seja das elites ou dos populares, se mantinha estranhamente parecida.

4 VARZEA Virgilio apud PAULI, Evaldo. Santa Catarina. Rio de Janeiro, 1900, p.45.5 PAULI, Evaldo. Santa Catarina. Rio de Janeiro, 1900.

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1.2 - A FLORIANÓPOLIS DE CÉLIA: UM CRIME DE AMOR?

Era o ano de 1927. Já era noite, do dia dezembro, quando Célia da Luz

Simões, filha do ex-governador Hercílio Luz, com seus 25 anos, apareceu no portão

do 14º Batalhão de Caçadores, situado na Rua Bocaiúva, à procura do Tenente

Almerindo Fernandes Cardoso. Este homem, em seus plenos 30 anos, fora

comunicado da presença da jovem senhora, que lhe aguardava. Esta, proibida de

entrar no quartel em função do adiantado da hora, permaneceu no portão,

esperando. A iluminação da cidade já era feita através da energia elétrica e não

mais com lamparinas à base de óleo ou querosene.

Os boatos que se ouviam eram que Almerindo e Célia eram amantes,

situação delicada já que ambos eram comprometidos. Ela, casada com Manoel

Simões, comerciante da capital de Santa Catarina, bem relacionado com políticos,

intelectuais e magistrados da cidade. Ele, casado e com filhos, mantinha o trabalho

no quartel para manter sua família. Possivelmente, foi tal boato que levou Célia ao

portão do Batalhão naquela noite.

A iluminação elétrica já estava disponível na cidade, como dito anteriormente,

e a preocupação com as saúde pública e higienização já havia transformado a

paisagem urbana, assim como as ruas já tinham condições de permitir a passagem

de automóveis, poucos na época, tornando a mão de obra daqueles que sabiam

guiá-los, indispensável. Estes eram os chauffeurs. Um sistema de registro destes

veículos já figurava na cidade, sendo o cadastro dos automóveis associados ao

chauffeur que o dirigia. Assim, tais veículos poderiam ser alugados, com seus

motoristas, quase como ocorre quando chamamos um taxi. Já havia distribuição de

água encanada, ainda que isto trouxesse, de vez em quando, notícia nos jornais de

cobras saindo pelas torneiras. Os locais de sociabilidades, que não ferissem a moral

e os bons costumes, já estavam estabelecidos. O teatro, as livrarias, os cafés,

clubes e bailes figuravam entre estes locais. Já era uma Florianópolis com

pretensões de mais letrada, um pouco mais urbanizada e embelezada, com jardins e

em principio saneada, pelo menos para as pessoas oriundas das elites.

Não demorou para que Almerindo chegasse ao portão, logo reconhecendo a

mulher que o aguardava. Esta, com a permissão do tenente, caminhou por entre as

estruturas do quartel. Era clara a intenção que esta queria falar com o homem, em

algum lugar com maior privacidade. Quando finalmente estavam à sós, longe das

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vistas dos outros soldados, que também serviam naquela noite, não tardou para que

um estampido de tiro fosse ouvido. Surpresa! Correria! Soldados se aproximavam.

O que encontraram, foi o homem com uma das mãos ensangüentada, enquanto

segurava um revolver com a outra. A mulher, visivelmente transtornada, não falava

uma palavra, devido ao seu claro “estado de nervos”, palavra das testemunhas.

Sem compreender muito bem o que se passava, João Benício Cabral, Oficial

responsável pelo quartel naquela noite, após tentar acalmar a jovem e pedir socorro

a Almerindo que sangrava, deu voz de prisão a ambos. Logo, Almerindo tentou se

explicar, informando que tudo não passava de um mal entendido, que a arma havia

disparado por acidente. Em função de tal explicação, não houve a prometida prisão,

porém foram informados que tal ocorrência seria levada à Chefatura de Polícia para

averiguações.

Encaminhado para a Enfermaria, Almerindo teve o ferimento tratado, sem por

risco a sua vida. No Exame de Corpo e Delito, constou um orifício de entrada na

palma da mão e um de saída, mostrando que o projétil atravessou-a. Célia,

acalmada, foi encaminhada para o Portão. Chegando lá, havia um automóvel não

reconhecido pelo soldado que a acompanhou, esperando por ela. Esta adentrou o

veículo, e este, seguiu pela rua, até não ser mais visto.

Mais tarde, o depoimento do agredido, mostra com clareza que não se tratou

de um acidente. Célia puxou a arma de sua bolsa e apontou para o homem. Este,

segurando-a pelo pulso com uma das mãos, tentou desarmá-la antes, foi quando

ocorreu o disparo. Quais os motivos de Célia? Porque Almerindo tentou protegê-la?

Estas são perguntas que não podemos responder, a não ser por cogitações, já que

o Inquérito Policial cria mais dúvidas do que esclarecimentos.

Tal narrativa foi baseada nos depoimentos contidos no Inquérito Policial,

ainda que este não tenha colhido o testemunho de Célia. Para compreender o

cenário descrito e os personagens envolvidos, faz-se necessário conhecer um pouco

a cidade em que tal ação ocorreu. É preciso desvendar esta Florianópolis nova, seu

ideário e valores, para entender os personagens desta narrativa e principalmente,

compreender o caminho que o Inquérito Policial tomou.

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1.3 - UMA FLORIANÓPOLIS URBANIZADA

A propagação do ideário burguês e das correntes científicas européias no

mundo ocidental tornou possível que estas, ao atingir o Brasil, rapidamente se

espalhassem entre as elites que buscavam formas de conduta, ancorados em

princípios do Liberalismo econômico e do Positivismo. Isso fez com que tais

princípios norteassem ações para alcançar o nível de “modernização e urbanidade”

desejada para as populações “civilizadas e avançadas”. Tal ideário, ao chegar ao

Estado de Santa Catarina, difundiu-se entre homens e mulheres da elite política

local que realizou um conjunto de ações para colocar a recém renomeada cidade de

Florianópolis, seguindo os padrões de higienização que circulavam por Rio de

Janeiro, na época, capital do país. Se antes a Capital do Estado era uma

Cidade pequena, possuía ruas estreitas e sujas, lugar de depósito de dejetos e animais mortos. Ao redor da praça Matriz, (praça XV de novembro), encontrava-se a administração pública, ou seja, o Palácio do Governo e a Casa da Câmara e Cadeia; o mercado que funcionava apenas aos domingos; e as residências.6

Logo, o desejo de torná-la a porta de entrada do Estado fez com que ações

no estilo “Bota abaixo” ocorressem na cidade, sob os olhares dessa elite que

navegava nesta proposta de República, ignorando completamente as relações

sociais das populações pobres, muitos moradores do Bairro da Figueira,(...) onde se

localizava a prostituição; as casas do Beco Sujo, nas imediações da atual Hercílio

Luz; A Tronqueira, habitado por soldados, prostitutas e lavadeiras que tinham o rio

como o seu local de trabalho.7 Assim, no final do século XIX e nas primeiras

décadas do século XX, a cidade de Florianópolis passou por transformações. A

implantação da rede de energia elétrica permitindo no futuro o funcionamento de

maquinário eram promessas de uma mudanças.

6 MORTARI, Claudia. Territórios negros em Florianópolis. In Brancher, Ana (Org). História de Santa Catarina: estudos contemporâneos. Florianópolis: Letras contemporâneas, 2004. p.86.7 Ibidem, p.86

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(Figura 1 - Saneamento do Rio da Bulha – Atual Av. Hercílio Luz, 1922. Fotografia do Acervo Pessoal de José Arthur Boiteux preservado pelo Instituto Histórico Geográfico de Santa Catarina.)

A construção da rede de esgotos, a distribuição de água encanada e a

edificação da avenida do saneamento (ilustração acima) para diminuir a “incomoda”

insalubridade da cidade, foi um passo inicial para a versão do “bota abaixo”, em que

diversas construções, cortiços e casas de populares foram desalojadas e destruídas,

para abrir caminho em direção ao progresso. Quanto aos populares, estes foram

redirecionados para o entorno do centro da cidade, sob o argumento que tais

populações eram as responsáveis por doenças, epidemias e mal-feitorias, graças a

sua forma “atrasada” de viver, sendo lavando roupa nas águas do rio, criando os

animais soltos em quintais sem demarcação, entre outras ações.

Para isso, as moléstias que já atingiam Florianópolis desde há muito tempo e

que antes não eram apontadas como culpadas por seu suposto “atraso”, tornou-se o

motivo de preocupação para este embelezamento e crescimento exigido das

cidades com pretensões de serem urbanas e prósperas. Se antes, “boa parte dos

habitantes reconhecia a Ilha de Santa Catarina como pequena, pobre e atrasada”

agora “desejavam o seu avesso, sonhando com sua grandeza, prosperidade e

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civilização.”8 Tal frase transmite basicamente ao que se resumiu o ideário burguês

estabelecido na Florianópolis com pretensões de Republicana: era preciso

embelezar a cidade, ainda que este fosse somente na “porta de entrada” da

mesma..Era necessário um controle de quem poderia circular pela parte central da

cidade seja controlando as vestimentas, o que poderia carregar consigo ou como

deveria se portar socialmente no local. Dessa forma ignorava-se que foram tais

populações que faziam mover a economia da cidade há longa data.

Houve a pretensão e preocupação em achar culpados por esta pobreza e

miséria que a cidade vivia, sendo que este “problema” seria sanado em breve,

quando os populares (ou seja, as pessoas de baixa renda, não proprietários de

comércio ou vindos de uma elite política ou jurídica), foram, como já exposto,

expulsos do centro da cidade, “moderna e urbanizada”...

A preocupação com o saneamento e com a saúde pública foi tão intensa e

repentina que dá a impressão que em Florianópolis jamais teve doenças ou

epidemias. Como fica claro nas produções historiográficas sobre o tema, a cidade

estava tentando se adequar a ações que ocorriam em outras cidades brasileiras,

sobretudo, o Rio de Janeiro. Esta inverdade, de que os problemas de saúde e

sanitários surgiram repentinamente, se fortificou na Capital principalmente através

dos discursos da imprensa, na época, os jornais – um dos veículos de divulgação e

perpetuação do ideário burguês; dos discursos médicos, das autoridades e dos

políticos – “que descreviam de maneira dramática os problemas de saneamento e

propunham medidas de toda ordem, que envolviam desde a distribuição gratuita de

remédios até o controle dos movimentos da população no espaço urbano.”9 Mas, de

acordo com Hermetes Reis Araújo, tais epidemias e doenças não eram

acontecimentos inusitados para a época.

Os locais que passaram por estas transformações foram basicamente

aqueles em que haveria um maior número de visitantes estrangeiros. Assim, as

medidas de profilaxia,

baseadas nas práticas da polícia sanitária e no principio de que a melhoria das condições de saúde deveriam erradicar a pobreza e o atraso, também dissociavam a luta contra a doença da necessidade de se promover

8 CHEREM, Rosângela Miranda. Do sonho ao despertar: expectativas sociais e paixões políticas no inicio republicano na capital de Santa Catarina. In BRANCHER, Ana; AREND, Silvia M. Fávero. (Org). História de Santa Catarina no Século XIX. Florianópolis: EDUFSC, 2001, p. 297.9 ARAUJO, Hermetes Reis. Fronteiras internas urbanização e saúde pública em Florianópolis nos anos 20. In: BRANCHER, Ana (Org.). História de Santa Catarina: estudos contemporâneos. Florianópolis: Letras contemporâneas, 2004.2ª edição, p.103

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mudanças sociais. (...) as atividades visaram sobretudo combater as moléstias em relação as quais eram particularmente suscetíveis aos europeus e norte-americanos que se dirigiam para os trópicos. Desse modo, a atenção era voltada às zonas urbanas e portuárias, lugares de maior concentração de imigrantes e onde os “casos típicos” de febre amarela (...) e de malária se manifestavam de forma epidêmica.10

As mudanças urgentes ocorreram na parte urbanizada, como afirma o autor,

sendo deixando de lado os bairros mais afastados, mesmo porque, se a aparência

de progresso fosse mantida no centro da Capital – o local de maior circulação de

“visitantes e investidores” - não haveria motivos para implementar infra-estrutura nos

bairros mais afastados, em que os pobres, em linhas gerais, agora moravam. Além

de proibições impostas para aqueles que desejavam circular pelo centro da cidade,

em nome desse saneamento, a população foi sendo progressivamente excluída de

alguns espaços da cidade, através de medidas legais, tais como: a exigência que

todos andassem calçados e asseados; proibindo a mendicância pelas ruas da

capital; mais tarde, ficou expressamente proibida a entrada de pessoas portando

cargas ou outros volumes em mãos ou em cima de carroças.

(Figura 2 - Construção da Ponte Hercílio Luz, sem data, acervo iconográfico da Casa da Memória)

A ligação direta da cidade com o continente era necessária o crescimento de

Florianópolis. Para isso, uma medida tomada foi a transferência do antigo cemitério,

10 Ibidem, p.106)

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ás vistas de todos, causando odores e poluição graças a matéria orgânica se

decompondo no solo, para um local afastado do centro da cidade, ainda que em seu

entorno. Assim, abriu-se espaço para a construção da Ponte Hercílio Luz, como

mostra a ilustração acima, que facilitaria o crescimento da cidade, pois a travessia

de pessoas e mercadorias era feita através de balsas, que não ofereciam proteção

contra o sol ou a chuva.

A cidade sofreu estas e outras transformações significativas na sua paisagem

no período. Porém, as alterações não podem ser limitadas somente a questões de

urbanização, embelezamento e arquitetura. Uma mudança social se acentuava

neste período. Como afirma Mirian Alves do Nascimento, sabemos que a abolição

da escravidão e a instituição da República foram fatos importantes para tais

mudanças. Porém, a autora infere que, houve outras motivações importantes.

Afinal, o que era ser civilizado, nessa nova cidade que surgia?

Os núcleos da elite que monopolizavam os serviços de transporte e comércio da região, bem como em oposição às camadas médias alfabetizadas, ligadas aos cargos públicos civis e militares, e aos profissionais liberais. Todos estes ou eram ou viriam a ser os cidadãos civilizados.11

Um dos meios de divulgação deste “novo” ideário foi a imprensa que, mantida

por estas mesmas elites letradas. Ainda que houvesse ambições de divulgar este

ideário entre os populares, eram poucos os que de fato tinham acesso aos jornais ou

que sabiam ler. Mesmo assim, tal ideário,

(...) na sua constituição, contou com o apoio de toda uma população de pequenos funcionários públicos, pequenos comerciantes e proprietários. Camada letrada que encontrava, nos jornais, formas de expansão de suas aspirações de ascensão social, expondo modelos idealizados para os novos sujeitos que se construíam.12

Ou seja, eram estas mesmas elites que, utilizavam a imprensa como outra

forma de exclusão destes populares, que contribuíam para mover a economia da

cidade.

11 NASCIMENTO, Mirian Alves. Ajustes e desajustes em Florianópolis (1890-1930). Revista Santa Catarina em História. Florianópolis: UFSC, 2008. v.1, n.1. p. 50.12 PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: Uma questão de classe.Florianópolis: Editora da UFSC, 1994, p.17.

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1.4 - UMA FLORIANÓPOLIS INTELECTUALIZADA

Como afirmado anteriormente, a cidade de Florianópolis modificava-se na

virada do século XIX para o XX, a partir de reformas urbanas. Esta última serviu

como mais uma forma de difundir um padrão moral e os valores burgueses nesta

sociedade. Com este intuito, no governo de Vidal Ramos (1902 e 1906 e 1910 e

1914), houve a primeira reforma do ensino no Estado de Santa Catarina, sob a

orientação de Orestes Guimarães, professor paulista. Carlos Humberto P. Correa,

afirma que

A elite intelectual, portanto, geralmente conduz o processo cultural ampliando-o ou estrangulando-o, dependendo da maior ou menor suscetibilidade em atirá-lo ao encontro do público e projetá-lo através dos palcos, das publicações ou, mais recentemente, da mídia, ou simplesmente encerrá-lo entre as quatro paredes de uma sala, onde somente alguns iniciados participam e dele usufruem” 13

A maioria da população de Florianópolis deste período era composta de

pessoas pobres, que possuíam outros códigos de conduta. Tais práticas, quando

chegavam na esfera jurídica ou na imprensa ( os jornais da época eram quase todos

– se não todos, de posse destas elites políticas) eram julgadas sob a conduta e

moral das elites. Ainda que seja um sinal claro de resistência ou reversão de uma

ordem, estas pessoas quando se deparavam com as regras advindas dos poderes

oficiais, utilizam dessa mesma ferramentas jurídicas burguesas, muitas vezes como

sinal de resistência.

Mas, voltando as elites intelectuais, não podemos esquecer de citar Henrique

da Silva Fontes, escritor catarinense e Magistrado do Tribunal de Justiça. Dentro do

ideário da reforma do ensino, o professor Henrique da Silva Fontes criou quatro

livros de leitura em 1920. A publicação trazia idéias que aparecem nos processos

penais, demonstrando assim que esse ideário burguês que caminhava entre

diversos lugares sociais. Logo no primeiro livro, como cita Correa, Henrique da Silva

Fontes preocupa-se sempre em mostrar a figura delicada da mãe ligada aos

afazeres domésticos, à educação e cuidado com os filhos enquanto o pai,

geralmente ausente da casa porque tem que trabalhar para garantir o sustento da

família.14 Tais livros foram responsáveis pela formação de muitos jovens

13 CORREA, Carlos Humberto P. História da Cultura Catarinense: o Estado e as Idéias, v.1. Florianópolis: UFSC, 1997, p.99.14 CORREA, Carlos Humberto P. op. cit., p.115.

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catarinenses por décadas, moldando-os a estes conceitos de civismo e moral

instituídos por esta reforma de ensino, que tinham explicitas intenções e sem dúvida,

concordava com o espírito civilizador, positivista – e excludente, da primeira

república.

Apesar de haver críticas sobre a produção intelectual dentro da literatura

catarinense na passagem do século XIX para o XX, citado por Correa15, foi neste

período que surgiram algumas instituições voltadas para esta mesma produção

intelectual. O Instituto Histórico Geográfico de Santa Catarina foi criado durante o

governo de Hercílio Luz (1896) e sob o comando do Secretário do Governo, José

Arthur Boiteux, jornalista e político, com o apoio de outras personalidades

catarinenses: os desembargadores José Roberto Viana Guilhon, o primeiro de Santa

Catarina no início da República, Francisco Cunha Machado Beltrão, Manoel

Cavalcanti de Arruda Câmara, o juiz Joaquim Thiago da Fonseca; os comerciantes

Antonio Pereira e Oliveira - também político, José Maria Carneiro Junior e Tomáz

Cardoso da Costa Júnior; os Jornalistas, José Boiteux e Afonso Cavalcanti do

Livramento e o professor Emílio Grams, como outras pessoas que a imprensa

relatou.16

A fundação da Academia Catarinense de Letras, também se deu nas

primeiras décadas do século XX, onde somente “grandes” intelectuais (julgados pela

mesma elite que a criou) poderiam ingressar. O apoio dos integrantes da Academia

Catarinense de Letras à política local demonstra o entrosamento entre as relações

que se davam no âmbito da política, da cultura e do judiciário. Mais tarde, foi

fundado o Centro Catarinense de Letras, que abrigou outros intelectuais, afros

descendentes e mulheres, criando certo desconforto e uma “rixa” entre a Academia

Catarinense de Letras e o Centro Catarinense de Letras sendo que o primeiro não

legitimava a existência deste último. Mesmo tendo pouco tempo de existência, o

Centro Catarinense de Letras teve importante lugar na História Catarinense,

representou uma oposição às discutíveis idéias estéticas emanadas pela Academia

Catarinense de Letras num período morno de sua existência17.

Em relação às sociabilidades destas elites, a medida que a capital do Estado

de Santa Catarina foi modernizando-se, surgiam sociedades, clubes e bailes, assim

15 CORREA, Carlos Humberto P. Op. cit., p.71.16 REPÚBLICA, Desterro, 19 de Novembro de 1894, p.1.17 CORREA, Carlos Humberto P. Op. cit., p.176

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como locais para a arte, tais como o teatro, locais para música e canto. As festas

civis tinham certo destaque por unirem a proposta de nacionalidade e permitir a

sociabilidade. Bibliotecas e livrarias também ganhavam destaque nesta crescente

ordem burguesa, ao que tudo indica, colabora para se desconstruir a idéia já batida

de que a cidade sempre foi uma ilha isolada dos principais fatos culturais de seu

tempo, fossem eles nacionais ou estrangeiros.18 Portanto, havia norteamentos

sociais do que era permitido enquanto lazer seja para homens e mulheres,

independente de classe social. Sem dúvida a realidade foi um pouco diferente, a

contar que os locais de sociabilidade destas elites eram em muitos pontos,

interditados aos populares.

É neste cenário urbano que viveu a personagem feminina principal deste

estudo. Célia pertencia à elite florianopolitana uma vez que era filha de Hercílio Luz.

Sendo casada com um comerciante da capital. Esta era acusada de atentar contra a

vida de um tenente, supostamente seu amante. O código penal que acompanhava

toda essa modernização também era novo, ainda que tivesse vestígios de valores

presentes em tempos muito anteriores. É neste ambiente de visível desigualdade e

progresso social que nossa personagem vive. Uma cidade com ruas que permitiam

a passagem de automóveis, que pelo valor elevado eram poucos e todos

numerados, como demonstra o próprio inquérito sob o suposto crime, cometido em

1927. A cidade já possuía a “Ponte da Independência”, já passara pelo saneamento,

já possuía abastecimento de água e iluminação elétrica, já tinha a malha de

telégrafos expandida e já tinha instalada a rede telefônica. Santa Catarina e sua

capital começavam (...) a respirar de fato, os ares do século XX.19

Devemos pensar é se os tais valores que norteavam a convivência social se

modificavam. É certo que esta sociedade baseava-se em uma noção burguesa em

que a figura do homem era a responsável pela família de um modo geral, devendo

prover a casa e seus dependentes através de um trabalho honesto. Enquanto à

mulher, cabia o papel de esposa e mãe, sempre sob a tutoria de uma figura

masculina. Porém, se antes esta “tutoria” era de responsabilidade do pai, esperava-

se que com o casamento, a tutoria passasse ao marido. Ainda que esta realidade se

18 MATOS, Felipe. Uma ilha de leitura: notas para uma História de Florianópolis através de suas livrarias, livreiros e livros (1830-1950). Florianópolis: UFSC, 2008, p.53.19 MAAR, Alexander; PERON, André; NETTO, Fernando Del Pra. Santa Catarina: História, Espaço Geográfico e Meio Ambiente. Florianópolis: Insular, 2009, p.122.

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aplique a qualquer classe social, a cobrança mudava de uma para outra. Enquanto

das mulheres da elite, era exigido que acompanhasse seu esposo em seus locais de

sociabilidade, mantendo-se ainda em relativa reclusão, a mulher pobre deveria ser a

“guardiã” do lar, ou seja, deveria impedir que seus filhos e marido freqüentassem os

lugares considerados insalubres e imorais.

Somente quando levados a outra esfera - a jurídica, por exemplo, tais ações

se tornavam condenatórias. O delito cometido por Célia, membro de uma “boa”

família de Florianópolis, ocorreu em um quartel da cidade, situado em área urbana.

Seus atos nem mesmo foram investigados com a devida densidade. Isso demonstra

como veremos posteriormente, que o Código Penal de 1890 não era aplicado pelos

magistrados, da mesma forma para os diferentes grupos sociais.

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31

CAPÍTULO DOIS

DISCURSO JURÍDICO: RAZÃO E DESRAZÃO

2.1 - AS VOZES DO PROCESSO E SUAS PERSONAGENS

As “vozes” presentes em um processo são os diversos discursos

reproduzidos pelos personagens participantes deste processo. Foucault já supunha

que em toda sociedade, a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,

selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem

por função conjurar seus poderes, dominar seu conhecimento (...)20. Isso significa

dizer que se um discurso existe “em detrimento” de outro, mostra uma escolha ou

sinais de coerção para aquele que não é repassado. Então, para compreender este,

dentro do processo criminal e do inquérito policial, fontes documentais do presente

estudo, se faz necessário entender, primeiramente, quem são estes personagens e

em linhas gerais, qual o contexto social e temporal em que estão inseridos.

O local em que ocorreram os crimes foi descrito no capitulo anterior. O

momento histórico em questão está situado nas primeiras décadas do século XX,

primeiramente com o crime perpetrado por Virgílio ao assassinar sua esposa

Alexandrina21, logo no ano que marca a virada do século e a suposta tentativa de

homicídio realizado por Célia contra o tenente Almerindo22, seu possível amante, em

1927. Assim temos nossos primeiros (e principais) personagens: Virgílio – homem

da classe popular, pescador, provindo da população ribeirinha e alfabetizada; e

Célia, mulher da elite florianopolitana, filha do ex-governador Hercílio Luz, dona de

casa, letrada. O que estes dois personagens eles tem em comum são as vozes

produzidas em seus processos. Porém, realizado uma breve comparação, enquanto

no processo de Virgílio é possível verificar alguns discursos curiosamente

divergentes, o inquérito de Célia está repleto de silêncios. Silêncios estes, que

também “falam”.

Alguns personagens são comuns aos dois processos, começando

representante pelo Poder Judiciário, ou seja, o juiz de Direito. A instalação do

Tribunal de Justiça de Santa Catarina e os norteamentos para as ações destes no

20 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2009, p.921 Processo Criminal nº 189 de 1900. Museu do Judiciário Catarinense.22 Inquérito Policial nº 17 de 1927. Museu do Judiciário Catarinense

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estado ocorreram em 1º de outubro de 1891, isto é, depois da implementação da

República e da introdução do sistema dual de Justiça Federal e Justiça dos Estados.

Ainda que cada unidade estadual fosse regida pelas constituições e leis que

adotasse, todas deveriam respeitar os princípios constitucionais da União. Assim, a

instalação do Superior Tribunal de Justiça em Santa Catarina pode ser considerada

um acontecimento político-administrativo importante para a História catarinense.23

A primeira Constituição Estadual da República, no mesmo ano de 1891,

apresenta a estrutura do Poder Judiciário no Estado e define o papel do juiz de

direito na sociedade que se reformulava no plano das elites. Se no século XVIII a

elite catarinense era formada por militares de alta patente e mais tarde somaram-se

funcionários civis para cargos de administração e comerciantes oriundos do

transporte de mercadorias24, com o advento da República, essa nova elite se

reordenava25.

Na Florianópolis do início da república, o cargo de juiz era exercido por

formandos em Direito que residiam nesta capital, nomeados pelo governador do

Estado de Santa Catarina. Isto demonstra que, apesar da Constituição Catarinense

de 1891 explicitar três poderes distintos (Executivo, Legislativo e Judiciário) e que

estes seriam independentes e harmoniosos entre si, fica claro a intervenção do

Poder Executivo nos outros poderes. Isto se dava em função do que a cidade

passava neste momento histórico. Entre as principais atribuições do juiz, no plano

criminal, estava interpretar as leis para cessar conflitos entre as partes, nomear as

penas a partir do código penal nacional, levando em conta atenuantes e agravantes,

decidir se um inquérito se tornaria processo ou se esse deveria ser arquivado,

através da denúncia do promotor.

O Tribunal de Justiça e a Procuradora Geral do Estado - que quase um

século depois se dividiria em Procuradoria Geral de Justiça e Ministério Público

eram instituições necessárias para o completo andamento de um processo, sendo

os membros do Ministério Público, em princípio, considerados como auxiliares das

autoridades judiciárias26, em prol do Poder Executivo. Com pretensões de defender

23 Ver http://www.tj.sc.gov.br/institucional/museu/historico.htm24 PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas, mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis, UFSC, 1998,p.19.25 Ibidem, p. 53.26 BRÜNING, Raulino Jacó. História do Ministério Público Catarinense. Florianópolis: Habitus, 2001.

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o cidadão, seus bens comuns27 e bens indisponíveis28, quem representava a

instituição era a figura do Promotor, nomeado pelo Procurador-Geral, que por sua

vez era designado entre os magistrados do Tribunal de Justiça.

Entre as atribuições do promotor, estava executar à denuncia à partir do

inquérito policial realizado pelo delegado, com base nas informações colhidas, assim

como representar a sociedade em acusação nos julgamentos de Tribunais de Júri.

Um problema de credibilidade em relação aos promotores ocorreu devido ao que

cargo de Promotor Adjunto, que era escolhido pelo titular nomeado, para substituí-lo

quando necessário. O grande problema é que poucos eram os promotores adjuntos

formados em direito, o que poderia comprometer o argumento que estes utilizavam

para apelações em processos, assim como “ferir” a linguagem que juízes e

advogados exigiam aos casos. Profissões como barbeiro, açougueiro são exemplos

de pessoas que nomeadas na época para exercer como Promotor Adjunto,

mostrando, possivelmente, pouca desenvoltura na execução do cargo, que exige

conhecimentos específicos.29

Fisicamente, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) e o Ministério

Público de Santa Catarina (MPSC) estiveram juntos nas sedes, sendo este segundo,

tendo disponível apenas algumas salas. Durante o período dos processos

estudados, estes se localizavam na Casa de Câmara e Cadeia em frente à Praça XV

de Novembro, no marco zero da cidade de Florianópolis, permanecendo ali até

1908.

27 Bem comum é, como o nome sugere, um bem comum a todos, em que a sociedade seja “proprietária”, como o meio ambiente, por exemplo.28 Bem Indisponível é aquele que não se pode vender, alugar ou se desfazer mesmo que por livre e espontânea vontade, como o direito à vida e a saúde, entre outros.29 AXT, Gunter (org.) Histórias de Vida. Os Procuradores-Gerais de Justiça. Florianópolis: CEAF/Memorial do Ministério Público de Santa Catarina, 2011

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(Figura 3 – Casa de Câmara e Cadeia, sem data.)

E em seguida, as duas instituições, TJSC e MPSC, estabeleceram-se em um

Prédio que primeiramente abrigou a Assembléia Legislativa, no cruzamento das ruas

Jerônimo Coelho e Tenente Silveira, no centro da cidade.

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(Figura 4 – Sede do Tribunal de Justiça e do Ministério Público de Santa Catarina em 1908)

Outra figura que temos em comum nos dois processos é o delegado de

Polícia, responsável em presidir os Inquéritos Policiais, apreender objetos

correlacionados com o crime, executar prisões, requisitar perícias para a

formalização da prova criminal e orientando as investigações. Este também colhia

depoimentos e relatava as conclusões sobre o Inquérito, repassando ao promotor

público em seguida. Considerada como uma estrutura de justiça em primeira

instância dava autonomia aos delegados para investigações e fez com que muitos

destes delegados fizessem o possível para serem reconhecidos e ganharem

destaque por casos resolvidos.30

Por fim, a última figura presente ativamente nos processos criminais é o

advogado. No caso deste estudo, este só aparece no processo de Virgílio, sendo

responsável pela defesa do mesmo, utilizando dos mais diversos argumentos, seja

para desacreditar o promotor, seja para desacreditar a vítima, visando conseguir a

absolvição do cito réu confesso.

30 OLIVEIRA, Gilberto Callado. Filosofia da Política Jurídica. Florianópolis: UNIVALI, 2001.

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2.2 - “A VOZ DA RAZÃO”: O DISCURSO JURÍDICO OFICIAL

Segundo Gunter Axt, o Código Criminal de 1890 tinha caráter híbrido, pois

incorporava elementos da doutrina clássica e do direito positivo 31, parafraseando o

autor, isso significa dizer que o foco da penalidade estava no crime e não no

criminoso. Nesta perspectiva existiam a prescrição do crime, a anistia, o perdão do

ofendido e a impunidade do mandante e prezava a materialidade do crime. Segundo

o autor

Uma das contradições mais salientes suscitadas pela aplicação do Código de 1890 dizia respeito à distinção entre crime e contravenção. A definição de contravenção abriu espaço para o controle pelas autoridades policiais de um grande número de pequenos delitos. Além disso, se observadas à luz do artigo 27, que define as inimputabilidades, encontra-se uma conceituação maleável que permite a impunidade da violência policial. De fato, o CP de 1890 dava à polícia uma condição de destaque na ordem jurídica. A polícia operava claramente como uma espécie de justiça em primeira instância. Note-se, igualmente, que embora largamente utilizada, a idéia de privação temporária dos sentidos não chegou a ser regulamentada durante a vigência do Código, beneficiando muitos réus que podiam financiar bons advogados... Vários, enfim, foram as propostas e os pleitos para a reforma do Código durante a República Velha.32

Por sua vez, Sueann Caulfield afirma que,

Embora poucos juristas fossem membros do apostolado positivista ou apoiassem o positivismo ortodoxo de algumas facções políticas radicais do inicio do período republicano, muitos sustentavam as idéias comtianas sobre o progresso do homem e o aperfeiçoamento da sociedade por meio da aplicação radical de princípios científicos,33

A autora afirma também que, apesar desse novo pensamento jurídico, o

Código Penal de 1890 era baseado no direito clássico que já permeava o código

imperial de 1830. Isso trazia um problema, pois além do código, segundo os juristas

da época, já ter nascido obsoleto34, ele era interpretado por estes mesmos juristas,

de “escolas diferentes” do próprio código, assim como o tribunal de júri era orientado

a partir do direito positivista. Em outras palavras, o código dava margem para as

mais diversas interpretações e os adeptos da escola positiva não conseguiram não

31 AXT, Gunter. Conferência proferida na Jornadas de Ciência Penal e Constituição - 65 anos do Código Penal. O contexto político-institucional do surgimento do Código Penal (1890 – 1940).Proferido em 2005.32 Ibidem.33 CAULFIELD, SUEANN. Em defesa da Honra. Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918 -1940). Campinas: UNICAMP, 2000.34 CAMPOS, Francisco. Exposição de motivos in Brasil. Leis penais. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1949.

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conseguiram influenciar a redação do novo código penal (...) que seguia os moldes

clássicos.35

Michel Foucault demonstra em seu estudo Vigiar e Punir, como chegamos ao

modelo do código penal que está vigente na atualidade no Brasil. Se antes, a

punição era feita através do carrasco ou executor e era um suplício para o corpo,

houve um pretenso foco na “humanidade” do criminoso, não no crime, que norteou a

idéia em sistematizar todos os crimes em um código único. Como defende o autor,

ao se referir ao pensamento norteador, “era preciso que a justiça criminal puna em

vez de se vingar”.36 Porém, entre outros problemas, nesta perspectiva era

necessário definir quais penas, para cada tipo de crime.

Aplicar uma multa para uma pessoa rica, por exemplo, não era eficaz, mesmo

porque o foco das possíveis penas não era para punir o criminoso, mas em principio,

para que a idéia da punição impedisse o crime e que, se ainda assim este fosse

feito, a punição inibisse a repetição.37 O que não era levado em consideração é que

muitos daqueles que realizavam um crime, não pretendiam serem descobertos.

Nesta perspectiva, o foco do código penal estava tanto no criminoso, quando se

assume a “humanidade”, quanto no crime, quando se tentava controlar suas ações.

Sem dúvida, o código penal foi um dos mecanismos de disciplinar os corpos, como

também explicita Michel Foucault.

É a partir deste “olha” que é possível identificar a “voz jurídica” e seus

norteamentos no processo criminal de Virgílio. Na primeira página verificamos este

fato na denúncia do promotor:

“Exmo. Sr. Dr. Juiz da ComarcaO Promotor Público interino abaixo assinado em cumprimento do seu

dever, vem perante vossa senhoria denunciar Virgilio João de Oliveira brasileiro, natural deste estado, pescador, morador na freguesia do Rio Vermelho, pelo crime que passa expor:

Há quatro para cinco anos, Virgilio João de Oliveira casou-se com Maria Alexandrina tendo logo em seguida abandonado sua infeliz mulher, retirou-se para Santos onde permaneceu até a bem pouco tempo, vindo sua infeliz mulher a viver em companhia de uma sua irmã, onde vivia honestamente como é público e notório.

Inesperadamente há cerca de uns 10 meses mais ou menos apareceu Virgilio João de Oliveira de novo no Rio Vermelho, e quando todos supunham que ele viesse arrependido, procurar viver em harmonia com sua infeliz esposa eis que trazia em sua mente planos sinistros e perversos é assim que ele mesmo confessa que na noite de 13 para 14 do corrente dirigiu-se a casa de sua mulher a praia dos ingleses, da um tiro de pistola e

35 SIQUEIRA, G. apud CAULFIELD, Sueann. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro dos Santos, 1924.36 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2000. p.63.37 Ibidem.

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derrubando a porta de entrada da casa, entrou e cravou em sua infeliz esposa cinco punhaladas das quais veio ela a falecer momentos depois com tal procedimento tornou-se Virgilio João de Oliveira criminoso e como tal incurso nas penas do art 294 parágrafo 1 e para que assim se julgue oferece o Promotor interino a presente denuncia e requer a formação da culpa inquirindo-se as testemunhas abaixo arroladas no dia e horas resignadas. E assim pede que distribuídas as <...> se proceda na forma da lei. Fpolis, 23 de julho de 1900.

Rol de Testemunhas:Manoel Eggidio da SilveiraJosé Pacifico de FreitasJosé Sabino do RegoManoel Silveira ConstanteCapitão João loboSargento Francisco Alves CabreiraDario Agostinho Gouveia”

As relações de poder construídas pelo discurso do promotor público, em que

a honestidade feminina ganha ênfase, como é mostrado no segundo parágrafo:

“depois de abandonada, Alexandrina foi viver com uma irmã onde vivia

honestamente, como é público e notório”. Não bastava relatar, era necessário que o

argumento em relação a honestidade da vítima fosse legítimo. Este afirmou que era

público e notório a forma em que Alexandrina viveu.

Ainda que a “honestidade feminina” - no sentido da mulher agir conforme o

exigido pela sociedade em que está inserida e, principalmente, fosse “virtuosa”

enquanto solteira e fiel ao seu esposo, quando casada, fosse uma constante em

diversos períodos históricos, não se pode esquecer que este caso ocorreu no início

da República, momento em que houve disputas entre a elite antes estabelecida e a

nova elite que surgia. Joana Maria Pedro explica que o comportamento feminino,

neste momento, era uma “arma” nas disputas pelo poder (...) a honra da família era

um elemento frágil, que podia desqualificar os grupos em disputa.38 Ou seja, a

instalação da República em Santa Catarina (...) deflagrou uma ferrenha disputa na

elite local, nessa disputa, as mulheres e seu comportamento participaram do jogo

político.39

Em contrapartida, em momento algum, a condição ou o que Virgílio fez em

Santos foi citado pelo promotor público ou questionado por qualquer outro

personagem do processo. O que Virgílio realizava em relação ao trabalho não

38 PEDRO, Joana Maria. Op cit., p.6139 PEDRO, Joana Maria. Op cit., p.57.

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importava. Importava se Alexandrina era uma mulher honesta, para que Virgílio

pudesse ser condenado pelo crime que cometera.

O discurso relativo ao do casamento aparece inserido neste discurso jurídico.

Em outro momento da denúncia, quando o promotor público cita que todos

supunham que ele viesse arrependido, procurar viver em harmonia com sua infeliz

esposa.40. Isso demonstra o que era esperado de um casal, ainda que tivessem

enfrentado dificuldades. Ora, nem as “dificuldades” foram citadas pelo promotor

público na denúncia; o casal nunca havia vivido junto. Possivelmente porque a

autoridade almejava construir a idéia de que ambos viviam em uma família

harmoniosa e por isso, tal crime seria inaceitável.

O promotor público pediu a condenação do réu Virgílio João de Oliveira no grão

máximo do art. 294, § 1º, por se darem as circunstâncias agravantes do art. 39, § 4,5

e 7 (informação esta constante em outro documento do processo criminal). De

acordo com o Código Penal de 1890, isso significa: artigo 294: matar alguém. § 1º

Se o crime for perpetrado com qualquer das circunstâncias agravantes mencionadas

nos §§ 2º, 3º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 16º, 17º, 18º e 19º do art. 39 e § 2º do

art. 4141. Os agravantes citados, pelo promotor público eram os seguintes: Ter o

delinquente sido impelido por motivo reprovado ou frívolo; Ter o delinquente

superioridade em sexo, força ou armas de modo que o ofendido não pudesse

defender-se com probabilidade de repelir a ofensa; e Ter o delinquente procedido

com traição, surpresa ou disfarce.42 Pela descrição do crime, feito pelo próprio réu,

este estaria enquadrado em outros agravantes, como ter premeditado o crime,

arrombado a casa e buscado a noite para se ocultar.

Em todos os casos, o que chama a atenção no parágrafo 1º do artigo 294 foi

constar como atenuante “Ter o delinquente cometido o crime para desafrontar-se de

grave injuria, o seu cônjuge, ascendente, descendente, irmão ou cunhado” ainda

que não existia qualquer norteamento jurídico de impunidade em caso de injúria, se

houvesse este atenuante, o réu poderia ser inocentado do crime. Este argumento foi

apresentado, posteriormente, no decorrer dos autos, pelo advogado de Virgílio.

O forte apelo à honra presente já nesta primeira página demonstra alguns dos

valores da cidade, no início do século XX. Mas, acima de tudo, a honra feminina que

40 Processo Criminal de Virgilio João de Oliveira41 Brasil, Decreto nº. 847 de 11 de outubro de 1890.42 Transcrito do Código Penal de 1890, para a linguagem culta da atualidade.

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era exigida, em função da sociedade brasileira pautar-se por valores patriarcais, tal

como outros estudos já explicitaram43. Da mulher era exigida “honestidade” -

fidelidade, caso contrário, a paternidade dos filhos poderia ser questionada,

colocando em risco a “linhagem” daquela família, em que o homem era referência.

Um paradoxo: ao mesmo tempo em que se preocupam com a linhagem dos filhos de

um homem com sua mulher, ao “permitir” a “desonestidade masculina”, não se

preocupam com a linhagem dos filhos da mulher, amante, já que esta não mereceria

ser protegida pela sociedade, por não ser “honesta”. A responsabilidade recaia

sobre a mulher.

Segundo este discurso, a mulher que precisava ser honesta. Isso justifica que

recaia sobre a mulher a responsabilidade do bem estar do lar. Neste sentido Virgílio

cometeu um crime “bárbaro”, de acordo com o promotor, ao matar Alexandrina, pois

esta que vivia honestamente, como era público e notório.

Portanto, o discurso da honra feminina estava presente no código penal, à

partir de seus atenuantes e agravantes. Esta era uma das formas, citadas por

Foucault, do processo de aburguesamento da sociedade.

A ausência de testemunhas mulheres, como indicado no rol de testemunhas da

denúncia do promotor público era indício de que a voz masculina tinha legitimidade.

Temos testemunhas mulheres, somente no inquérito policial. A ausência destas

como testemunhas no decorrer do processo judicial deixa claro que a Justiça, que

mesmo em teoria, era aplicada à homens ou mulheres, era construída à partir do

discurso masculino. Eram estes que julgavam os argumentos apresentados no

Tribunal de Júri, eram estes também que testemunhavam à favor ou contra o réu. A

“palavra da mulher” não tinha o mesmo valor. Estas haviam sido ensinadas a

permanecer em silêncio na presença dos homens e suas conversas eram

consideradas, por estes, como tagarelices.44 E neste processo judicial relativo a um

homicídio feminino, a ausência da fala feminina reafirma este discurso.

A lógica do trabalho também se fez presente através da “voz” do promotor

público, quando este identifica a profissão do condenado, e não o faz ao descrever

Alexandrina. Este reafirma o discurso de que o homem deve trabalhar, e a mulher

permanecer na esfera do privado, por conseqüência, ao destacar tanto a profissão

43 CAULFIELD, Sueann. Op. cit.,44 PERROT, Michelle. A mulher popular rebelde in (org) Os Excluídos da História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.206.

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do acusado, quando a honestidade da vítima. Discurso este que coloca em cena o

papel social do homem e da mulher.45

A denúncia apresentada pelo promotor público no caso do crime cometido por

Célia apresenta outra conotação, possivelmente por ser filha de Hercílio Luz e

esposa de um comerciante. Ainda que o promotor público tente denunciá-la por

tentativa de homicídio, em seu próprio discurso ele atenua a acusação.

Exmo. Sr. Juiz de Direito da Segunda Vara:

O Promotor Público da Comarca, usando de suas atribuições, denuncia perante V. Excia, D. Célia da Luz Simões, brasileira, casada, de profissão doméstica, residente nesta Capital, pelo seguinte fato criminoso:

Na noite de 17 do mês de dezembro, próximo findo, as 19 e 30 horas, a Indiciada penetrou no Quartel do 14º Batalhão de Caçadores, para falar com o tenente comissionado Almerindo Fernandes Cardoso. Entrando na barbearia dos oficiais, que dá acesso ao Estado maior, a Indicada, que ali fora, por questões de sua honra, sacando de um revolver, tentou alvejar o referido Tenente que, procurando se defender da Indiciada, com a mão esquerda agarrou o cano do citado revolver, enquanto, com a direita, segurava o seu pulso. Houve, então, um disparo que produziu na vítima o ferimento de natureza leve, constante do auto de exame de corpo e delito.

E como assim procedendo, cometeu a Indiciada o crime previsto no art. 294, parágrafo 2º, combinado com o art. 63, tudo do Código penal, oferece esta Promotoria a presente denuncia que, recebida e, afinal, julgada provada, seja a Indiciada punida no grão mínimo da pena referida, em virtude de militar a circunstância atenuante do art. 42, parágrafo 3 do Código Penal.

Florianópolis, 3 de janeiro de 1928.Francisco de Oliveira e Silva

Testemunhas:Tenente João Benicio Cabral, rua Bocayuva, 76Sargento Herminio V. ramos, rua Esteves Junior, 50Sargento Marcolino J. dos Santos,rua Curytibanos, s/nCabo João E. Whendausen, rua José Veiga, 4Tenente Galdino Gluck Junior, 14 B. de Caçadores.

Enquanto na denúncia de Virgílio, este foi caracterizado primeiramente por ser

pescador, na denúncia de Célia o papel de esposa foi o primeiro a ser ressaltado.

Sua profissão, dona de casa, mostra que esta se mantinha – ou ao menos deveria

manter-se no âmbito privado, do lar.

O crime cometido por Célia, como denunciado pelo promotor público, foi o da

tentativa de assassinato sem agravantes e com o atenuante de ter cometido o crime

em defesa da própria pessoa ou de seus direitos, ou em defesa das pessoas e

45 PEDRO, Joana Maria. Op cit.

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42

direitos de sua família ou de terceiro46. O próprio código penal reafirma a importância

da honra familiar, ao apresentar esta como atenuante. O grande problema era a

interpretação dos juízes em relação a noção de família. E ainda, o crime foi

minimizado, quando este afirmou que o ferimento foi leve. Este discurso de defesa

da honra, já tão estudado por diversos autores, costumava apresentar o homem

nesta posição. Todavia neste caso a acusada era uma mulher. O próprio promotor

público, após a denúncia, afirmou que não podia continuar no processo, pois ele era

“amigo da família do ofendido”.

O inquérito possui, no total, seis observações de magistrados, além desta do

promotor público, alegando que não poderiam atuar no caso por serem amigos da

família. Em quatro casos, da família da acusada e, em dois casos, da família do

ofendido. Isso demonstra qual era a camada social que pertenciam os envolvidos na

questão. É mais um indício dessa elite política ser também, parte da elite jurídica,

característica da elite catarinense.

A materialidade do crime se faz presente em ambos os processos, à partir do

exame de corpo e delito que comprova o estado das vítimas e da apreensão das

armas utilizadas para perpetrar os crimes. No caso de Virgilio, um revolver e uma

faca e, no caso de Célia, um revolver. Isto é outro indício que, pelo menos na

execução das investigações, a cientificidade oriunda do “positivismo jurídico”, fazia

parte da construção do culpado, com foco no crime, não no criminoso.47

O processo de aburguesamento aparece novamente nos interrogatórios feitos

às testemunhas dos crimes: o homem foi identificado pelo seu trabalho e a mulher,

identificada pelas atribuições de esposa, filha ou mãe. Assistimos a todo o esforço

de juízes, promotores e advogados no sentido de disciplinar e reprimir os padrões de

comportamento das classes populares,48 e encaixá-los nos padrões estabelecidos

para a elite. Quando observado as primeiras linhas dos interrogatórios feitos pelo

delegado nos inquéritos policiais, os homens foram caracterizados sempre

primeiramente pelo nome, profissão, estado civil e naturalidade. Às duas mulheres, a

identificação bastava ao nome, profissão, estado civil e naturalidade.

No processo criminal de Virgílio, a “voz” do advogado pode ser ouvida mais

claramente após o primeiro julgamento, em que este foi condenado por seu crime. 46 Brasil, Decreto nº. 847 de 11 de outubro de 1890. Art. 42 § 2.47 OLIVEIRA, Gilberto Callado. Op. cit.48 ESTEVES, Martha Abreu. Meninas Perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Bella Epoque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 198, p.16

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43

Solicitado o recurso para um novo julgamento com outro júri, o advogado profere um

novo discurso. Inicialmente Virgílio confessou ter assassinado Alexandrina por este

ter sido obrigado a casar com ela, cinco anos antes do crime. No outro julgamento,

este afirma que estava fora de suas faculdades mentais por ter descoberto que sua

esposa havia se envolvido com outro homem. É possível observar a orientação do

advogado contratado pelo acusado em função da mudança de orientação no

discurso do réu. O advogado instruiu seu cliente para este utilizar um argumento

socialmente aceito naquele momento histórico: a defesa da sua honra. Ou seja, para

tornar menor a reprovação social do ato49 e o réu ser absolvido.

A justificativa de “perder a cabeça” e defender sua honra matando a infiel

esposa é o foco deste trabalho: a fidelidade feminina era um valor cobrado pela

sociedade. A discussão girou em torno da honestidade de Alexandrina, que teria tido

um caso “extraconjugal”. Enquanto o promotor público tentava construir a imagem

de que Virgílio e Alexandrina jamais viveram em matrimônio, então era permitido à

Alexandrina envolver-se com outro homem, o advogado tentava destruir sua

reputação utilizando-se o mesmo discurso do matrimônio, uma vez que estes “laços”

a impediam de ser “infiel”. Em ambos os casos, o “discurso matriz” é exatamente o

mesmo, indicando que essa sociedade prezava que a mulher permanecesse no

âmbito do privado, sendo uma boa esposa e uma boa mãe. O discurso do

matrimônio “sagrado” e da loucura transitória em função da suposta traição

apresentado pelo advogado, de resultados, pois em seu novo julgamento, Virgílio foi

absolvido.

O promotor público, após o segundo julgamento, apontou as possíveis

irregularidades na resposta do júri e solicita um novo julgamento. Em resposta, o

advogado do réu rebate tais afirmações que serão mostradas no terceiro capítulo

deste trabalho. O que convém chamar a atenção neste momento é a discussão

entre o advogado e o promotor público. Este último, por ser adjunto – e de profissão

não identificada no processo, foi atacado pelo advogado, acusado de não ter

conhecimento suficiente para fazer uma apelação, não ter conhecimento jurídico e

também de não ter interesse no social, apenas sendo uma ferramenta do Poder

Executivo. Ou seja, tenta desacreditar o discurso do promotor público, um indício da

relação delicada e contrastante em que vivia o Tribunal de Justiça e o Ministério

49 FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 107.

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Público, quando este último era representado por um adjunto, como é possível ver

em um trecho da declaração do advogado:

Se o Tribunal Popular não fosse de fato, o legitimo representante da vontade do povo, menos poderia se-lo o adjunto do Promotor, agente da administração, que, as mais vezes, é suspeita dos próprios administrados!

Um novo julgamento foi solicitado que trouxe outro problema: os integrantes

do Tribunal do Júri. Para participar do júri, era necessário ser cidadão do sexo

masculino, letrado. Florianópolis, no ano em questão, contava com

aproximadamente 30.000 habitantes50, sendo cerca de 22% alfabetizados.51 Em

uma divisão aproximada de 52% de mulheres e 48% de homens, temos um total

aproximado de 3 mil pessoas aptas a exercer o Tribunal do júri. O problema era que

muitas pessoas poderiam estar interditadas a trabalhar como jurado, seja por ser

familiares do acusado, da vitima, do advogado, do Juiz ou do promotor público em

qualquer grau de parentesco, ou ainda já terem sido jurados no caso ou parentes de

jurados no caso. Alguns poderiam ainda estar em viagem, o que diminuía ainda mais

o número de possíveis jurados.

Este problema pode ser percebido devido as atas anexas no processo, em

que eram sorteados os nomes dos jurados. O julgamento foi adiado diversas vezes

por não atingir o número mínimo de jurados, tornando o processo moroso para

aqueles que tinham que comparecer no Tribunal de Justiça. Ainda havia aqueles

que, sorteados, não iam da mesma forma. Estes eram multados e o julgamento,

mais uma vez, adiado. A constante crítica ao tribunal do júri e os diversos

adiamentos deram a impressão que os próprios jurados estavam cansados dessa

repetição. E talvez isto tenha influenciado no resultado surpreendente do processo,

no quarto julgamento.

Voltando ao terceiro julgamento, o argumento do promotor para que este

ocorresse foi que se o réu cometeu o crime com torpeza, impelido por motivo frívolo

e sem o concurso de atenuantes, como poderia ter em seu favor o art. 27, § 4?52

Portanto, a crítica foi sobre as escolhas do júri aos quesitos propostos. Aliás, este

sempre foi o argumento que permeou as apelações neste processo: falta de lógica

do júri. É possível que o caso tenha repercutido nos jornais. Os crimes contra a vida 50 Jornal República, nº 20, 24/01/1899.51 ARAUJO, Hermetes Reis. A Invenção do litoral: reformas urbanas e reajustamento social em Florianópolis na Primeira República. São Paulo: PUC, 1989.52 Não são criminosos: Os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime;

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não eram comuns na capital catarinense, no momento em questão.53 A justificativa

do juiz para um novo julgamento, porém, não foi baseada nestas afirmações.

Basearam-se nas falhas burocráticas do processo, como a inexistência de

intimações solicitadas e falta de testemunhas, argumentos estes apresentados em

segunda instância, atrás da acusação da “incompetência ou inocência” dos

jurados.54 No terceiro julgamento, Virgílio foi considerado culpado.

Se anteriormente, no segundo julgamento, o advogado defendeu o júri das

proposições do promotor público, neste julgamento isto se inverteu. Foi o advogado

que atacou o júri e o promotor público que o defendeu. O resultado final do

julgamento permitia que o advogado ou promotor se manifestassem, localizando

erros que justificavam seus discursos. A novidade estava na acusação do advogado

contra um único jurado, que teria “convencido” os outros jurados a votar pela prisão

do réu

Thomas Cardoso da Costa Junior, para fugir do comprimento do seu dever cívico, lembrou-se de alegar perante o Dr. Presidente do Tribunal, uma escapatória a título de impedimento que, no seu entender, deveria isentá-lo do serviço do júri: o de achar-se ele no exercício do cargo de juiz de paz! Não tendo sido atendido em sua desarrazoada pretensão, esperou-se aquele jurado, com o presidente do tribunal e passou a fazer a todos com quem se encontrasse, a consulta sobre o caso: se o exercício do cargo de juiz de paz, isentava-o ou não do serviço do júri. Desenganado, em sua pretensão, variou aquele jurado, de plano e tratou então de conseguir que uma das partes o recusasse peremptoriamente, para deste modo garantir a sua ociosidade, de que tanto necessita para ocupar-se exclusivamente com casamentos pobres!55

A ociosidade, comparada ao casamento de “pobres”, como explicitado pelo

advogado em carta oficial demonstra um preconceito social que permeou sua fala.

Para o advogado, o direito cívico de estar no tribunal do júri era superior e o

argumento de que o juiz de paz trabalhava em prol dos populares, foi utilizado como

forma de desmerecer este jurado. A resposta do promotor público foi simples: se o

advogado tinha algo contra o jurado, porque este não o recusou quando foi-lhe

perguntado? E, mais uma vez o tribunal de júri foi “responsável”, pela voz do

advogado e/ou do promotor público, de ter julgado mal. Estes se isentavam de suas

próprias apresentações para este mesmo tribunal, que fez as escolhas baseados no

que lhes foi apresentado. Por fim, o que fez o julgamento ser anulado foram mais 53 De acordo com os processos arquivados da época, disponíveis no Museu do Tribunal de Justiça, ainda que sejam pouco, sem muita credibilidade enquanto parâmetro empírico.54 Processo Criminal de Virgilio João de Oliveira, 1900. 55 Pedro José Leite Junior, advogado do réu no Processo Criminal de Virgílio João de Oliveira, 1900.

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erros burocráticos – no caso, as testemunhas de acusação não foram intimadas, que

levou ao quarto julgamento.

Após ser surpreendentemente julgado inocente, por não ter cometido o crime

de que era acusado, mais uma vez o promotor público entrou com recurso. E em

seu discurso, pela primeira vez há indícios da classe social dos jurados:

Como já há muito o qualificou o público desta capital, tem, não se sabe porque, pessoas da nossa elite social que nenhum esforço poupam pela sua absolvição, no julgamento, com ofensa da lei e afronta à sociedade.56

Tendo como parâmetro de comparação o sobrenome dos jurados que

aparecem nas atas de sessão e os nomes que circulavam na elite política e jurídica,

a afirmação do promotor público de uma “elite” é verdadeira. Elite esta que,

possivelmente cansada das reviravoltas do processo, optaram por inocentar o réu,

uma pessoa pobre, da acusação de assassinato. Era essa mesma elite que através

dos jornais e de outras ações, tentavam introduzir outros valores de “Virgílios e

Alexandrinas” e os julgavam de acordo com tais normas. Valores estes, que

poderiam ser simplesmente “esquecidos”, quando lhes convinha.

Outra acusação do promotor público foi devido a um erro na ata, em que o

nome de um jurado aparece invertido. Na defesa do novo advogado de Virgílio (não

á explicações do porque da desistência do outro), fica comprovado o erro do

promotor público. Os jurados, surpreendentemente, uniram-se e enviaram sua

defesa ao juiz. Isto mostra o letramento dos jurados e a capacidade de julgamento,

tão posta em dúvida no decorrer do processo. É verdade que em cada julgamento,

houve falhas no plano jurídico e da burocracia.

Apesar do Procurador-Geral ter feito uma nota contra um novo julgamento, ou

seja, contra a apelação do promotor público, que estava submetido a este

procurador-geral, o juiz solicitou um quinto julgamento em que o tribunal do júri

repete as preposições do quarto, inocentando o réu e, apesar de o promotor público

apresentar novas falhas da execução do julgamento, desta vez a apelação foi

negada e o réu confesso, Virgílio, preso por 3 anos, aguardando o julgamento final,

foi inocentado pela elite jurídica e política catarinense.

No caso de Célia, a lógica se inverteu. O Inquérito policial, que jamais se

tornou um processo judicial, estava repleto de silêncios. A investigação apresentou

56 José Araújo Coutinho, promotor no Processo Criminal de Virgílio João de Oliveira, 1900.

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diversos “vazios”, sendo o principal deles a ausência da inquirição que deveria ser

feita à Célia. Esta, na conclusão “inconclusiva” do delegado, estava fora da cidade

até o fim do inquérito policial. Porém, em função do nível social da acusada, ela foi

“escondida” da cidade até que este problema se resolvesse. Nem seu marido foi

inquirido e dúvidas acerca da origem do automóvel e do chauffer que a esperava do

lado de fora – informação constante em um dos testemunhos, não foram sequer

investigadas. Quais suas motivações reais? Teria sido ela “forçada” por seu marido

a cometer tal crime, para “lavar” a honra familiar, pelos boatos que corriam? Teria

ela planejado sozinha sua vingança contra um amante que agora a ignorava?

Teriam ambos, sido realmente amantes?

Estas são perguntas que, graças ao “silêncio” desta mesma elite catarinense

que no processo de Virgílio se manifestou das mais diversas formas, deixam sem

resposta, pela ausência de investigação do caso. Que consta a denúncia do

promotor, isto é verdade. Mas também é verdade que esta mesma promotoria, em

nota final, informou que o juiz deveria aceitar a acusação, porém não dava mais

tempo, pois o crime prescreveu. E assim, Célia partiu, sem deixar vestígios das

explicações desta ação inesperada.

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2.3 – “A VOZ DA DESRAZÃO”: O DISCURSO MÉDICO E PSIQUIÁTRICO SOBRE

A LOUCURA

Sigmund Freud afirmava que “O estado em que as idéias existiam antes de se

tornarem consciente é chamado por nós de repressão, e asseveramos que a força

que instituiu a repressão e a mantém é percebida como resistência durante o

trabalho de análise.”57 Para o pensador é possível que um indivíduo tenha “idéias”

que não fazem parte de seu consciente, que são reprimidas dentro de si, até que um

acontecimento derrube a barreira dessa repressão No caso de Virgílio, protagonista

do assassinato de Alexandrina, possivelmente a “idéia” de matá-la foi liberada dessa

repressão interna quando este suspeitou que fora traído por sua esposa, fazendo-o

ser tomado por violenta emoção, o que o imputaria da pena. 58

Esse discurso, inserido no processo após a entrada do advogado, demonstra

de que forma se deu a apropriação do discurso da razão e da desrazão pela Justiça.

Nesta perspectiva apenas podem responder por seus atos aqueles providos de

razão. Para os que estão desprovidos de suas “faculdades mentais”, não cabe ao

judiciário condená-los pelos crimes cometidos. Em suma, a razão é o referente do

judiciário e a “desrazão” o referente do universo psiquiátrico.

Nos estudos de Freud temos a noção de consciência e inconsciente. O autor

afirma que

“Formamos a idéia de que em cada individuo existe uma organização coerente de processos mentais e chamamos a isso o seu ego. É a esse ego que a consciência se acha ligada: o ego controla as abordagens à motilidade – Isto é, à descarga de excitações para o mundo externo. Ele é a instancia mental que supervisiona todos os seus próprios processos constituintes e que vai dormir à noite, embora ainda exerça a censura sobre os sonhos.” 59

O ego tem ligado a si, na inconsciência, o id e o superego. O id representa os

processos primitivos do pensamento e constitui o reservatório das pulsões e das

paixões. O superego é o oposto do id, representando os pensamentos morais e

éticos internalizados. Para o autor, são valores sociais e éticos adquiridos pelo

57 FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Volume XIX. 1923 – 1925. O ego, o id e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p.2758 Ainda que tal justificativa não vigorasse enquanto atenuante, no Código Penal de 1890, era freqüente os casos em que, caso os jurados o considerassem que o réu cometeu o crime com violenta emoção ou fora de suas faculdades mentais (a chamada “loucura transitória)”, o réu era inocentado, como estudos de Gunter Axt nos mostram.59 FREUD, Sigmund. Op. Cit., p.29.

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indivíduo que impede que os impulsos primitivos venham à tona. O ego, ratificando,

é o mediador, ficando entre o id e o superego, sendo a instancia ligada à

consciência.

Portanto, a “razão”, enquanto pensamento racional, está no equilíbrio entre

duas instâncias, o id e o superego, no subconsciente. Em contrapartida, a “loucura” -

neurose ou psicose, de acordo com o pensamento Freudiano60) está justamente em

um desequilíbrio em que o id sobrepõe o superego ou vice-versa, não havendo uma

mediação do ego, considerado pelo autor como a consciência.

Michel Foucault possui outro entendimento sobre a loucura. No plano do

discurso há uma separação da razão e loucura; o louco é aquele cujo discurso é

impedido de circular como o dos outros.61

No caso de Virgílio, fica claro que o advogado utilizou-se do discursa da

desrazão. Este tentou convencer os jurados acerca da “neurose” de seu cliente (que

será chamada de loucura transitória de agora em diante), pois se o discurso da

psicose fosse utilizado, certamente Virgílio poderia ser conduzido para um Hospital

Psiquiátrico. Segundo este discurso, Alexandrina feriu a honra de Virgílio e este fora

tomado por uma loucura transitória, cometendo o crime do qual estava sendo

julgado. Portanto, o discurso psiquiátrico foi utilizado para reafirmar a “necessidade”

da honestidade feminina.

Maria Angela D’Incao explana sobre a norma familiar burguesa e justifica sua

introdução devido às mudanças já citadas neste trabalho:

Durante o século XIX, a sociedade brasileira sofreu uma série de transformações: a consolidação do capitalismo; o incremento de uma vida urbana que oferecia novas alternativas de convivência social; a ascensão da burguesia e o surgimento de uma nova mentalidade – burguesa –reorganizadora das vivências familiares e domésticas do tempo e das atividades femininas (e masculinas, acrescento); e, por que não, a sensibilidade e a forma de pensar o amor.62

Norma familiar que “justifica” ações, tais como a de Virgílio ou a de Célia. Célia,

caracterizada no inquérito como dona de casa e esposa de um comerciante, tinha a

seu favor sua “honestidade”, e por terem colocado esta em risco, atirou contra seu

60 A neurose, segundo Sigmund Freud, é o resultado de um conflito entre o ego e o ID, ao passo que a psicose é o desfecho análogo de um distúrbio semelhante nas relações entre o ego e o mundo externo. A neurose é passageira, enquanto a psicose pode, dependendo do caso, não ser tratada.61 FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2010.62 D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, p. 222

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suposto amante. No seu caso, se o inquérito policial tivesse seguido adiante, o

advogado poderia enunciar o discurso de loucura transitória.

Quanto à Virgílio, no segundo e terceiro julgamento, a loucura foi o foco

principal do argumento utilizado pela defesa, como justificativa por seus atos

somados aos “atos desonrosos” de Alexandrina:

“sabendo o réu que a infeliz Maria Alexandrina, com quem era casado, mas com quem nunca viveu maritalmente lhe era infiel (!!) e lhe atribuía vícios e defeitos hediondos, sentiu necessidade imperiosa de defender a sua honra ultrajada (!!) e tão grande perturbação se operou no seu espírito, que de todo a inteligência o abandonou e ele em louco se transformou!”63

Este foi o argumento combatido pela acusação. O promotor público, em

resposta ao segundo julgamento do qual o júri inocentou Virgílio, entrou com

recurso, contra-argumentando que, segundo este mesmo júri, o réu cometeu o crime

com pleno conhecimento do mal e direta intenção de o praticar, o que não se admite

a respeito de um louco, porque louco consciente são palavras que se contrapõem,64

e que por terem concordado que o réu cometeu o crime por motivo frívolo, o que

desqualificava a afirmativa da desinteligência de Virgílio. Porém, ao descrever o

crime de Virgílio o considera louco, mas não no sentido que o advogado tenta inferi-

lo:

no momento em que armado de um revolver ou pistola e de um punhal atirou-se como fera sedenta de sangue contra uma pobre e infeliz mulher, inerme e fraca, era, como ainda é, um louco (!) afirmamos, mas um louco da espécie daqueles para se defender, contra os quais a sociedade tanta atividade desenvolve, tantos esforços emprega, mantendo as penitenciárias para os encarcerar; era um louco, sim, admitindo que o criminoso seja um degenerado, um louco!

Nesta passagem é clara a tentativa do promotor público de transformar a

loucura de Virgílio não em algo temporário. Este precisava ser posto em um cárcere,

pois seus atos estariam associados a loucura psicótica, como explicitou Sigmund

Freud. O cárcere, como forma de livrar-se do “louco”, foi um meio para “resolver” o

problema da circulação destas pessoas.65 E ainda que Virgílio não pudesse ser

considerado louco no sentido de não responder por seus atos, em certa medida

poderia ser percebido como um psicótico.

O advogado interpretou de forma inversa as respostas do júri para justificar a

loucura de Virgílio. Eis o que afirmou

63 José de Araújo Coutinho, Promotor no Processo Criminal de Virgilio João de Oliveira, 1900.64 José de Araújo Coutinho, Promotor no Processo Criminal de Virgilio João de Oliveira, 1900.65 FOULCAULT, Michel. Op. cit.

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Reconheceu a circunstância de motivo frívolo – isto é, que o réu não tivera motivo ponderoso que determinasse a prática do crime. Ora, não há contradição alguma em dizer-se que um louco praticou o crime na ausência de motivo grave, (...) pois intuitivo é o irresponsável pode ser levado a praticar o crime por ter sido provocado, e que no caso ocorrera em favor do criminoso uma circunstância atenuante.66

A justificativa do advogado demonstra que um mesmo argumento pode ser

utilizado de duas maneiras divergentes. A loucura de Virgílio, neste caso, tanto foi

considerada um agravante pelo promotor público, quando um atenuante para o

advogado. Mas o que chama atenção é que se no primeiro júri o réu foi julgado por

ter cometido o crime, no segundo e no terceiro, o que estava em jogo era a

periculosidade de Virgílio. Então, o foco estava na sanidade deste no momento que

cometeu o crime. Parafraseando Michel Foucault, a noção de loucura estava ligada

aos mistérios do próprio homem, suas ilusões, fraquezas e sonhos, que representa

um sutil relacionamento que o homem mantém consigo mesmo. A loucura não diz

respeito à verdade do mundo, mas ao homem e à verdade que ele distingue de si

mesmo. A luta para provar a loucura transitória ou “psicose” de Virgílio mostrou que,

ainda que o código penal tivesse foco no tipo crime, neste julgamento foram ações

do réu que estavam sendo julgadas.

No inquérito policial de Célia, o “estado de nervos” da mesma é relatado.

Temos um indicativo de que este discurso, apropriado pelo judiciário, justificaria os

atos dos criminosos.

Em relação ao discurso médico presente no exame de corpo e delito, é

possível identificar alguns valores na escolha dos quesitos a ser respondidos. No

primeiro exemplo de 1900:

Maria Alexandrina da Conceição, de 24 anos, maior de idade, casada com Virgílio João de Oliveira, filha legítima de João Feliciano da Silva, natural desta Freguesia, e que respondessem aos quesitos seguintes: 1º se há ferimentos ou ofensas físicas; 2º se é mortal. 3º qual o instrumento que ocasionou; 4º se houve ou resultou em mutilação ou destruição de algum membro ou órgão; 5º se pode haver mutilação ou destruição; 6º se pode haver ou resultar inabilitação de membro ou órgão sem que fique ele destruído; 7º se pode resultar alguma deformidade e qual ela seja; 8 se o mal resultante de ferimento ou ofensa física provocar grave estado de saúde; 9º Se inabilita do serviço por mais de trinta dias. Em seqüência, passaram os peritos iniciarem os exames e investigações ordenadas as e que julgarem necessárias: concluídas as quais, declarar o seguinte e portanto respondem ao 1º quesito que sim, houve ferimentos e ofensas físicas; ao 2 foi mortal e com efeito houve a morte. Ao 3º, foi com arma de fogo, empregando 17 bagos de chumbo em diversas partes do corpo, sendo 13 bagos no lado esquerdo e 4 nas costas, assim como 3 furos tem no lado

66 Pedro Leite da Costa, Advogado no Processo Criminal de Virgilio João de Oliveira, 1900.

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esquerdo parecendo ser com ferro cortante e perfurante, além de muitas contusões em todo o corpo e finalmente tendo botado pela vagina um objeto cortante de trinta e um centímetros de extensão que suponham ter sido machucado com (ilegível). Ao 4º, 5º, 6º, 7º, se referem aos 2º e 3º quesitos. Ao 8º, que resultou a morte; ao 9º que deixam de responderem referindo-se ao 2º e 8º quesito. São estas declarações que em suas consciências e debaixo das promessas feitas, tem a fazerem.67

Nesta passagem, está presente o paternalismo e a patrilinearidade, quando é

explicitado que Alexandrina é filha legítima de João Feliciano, pois a informação que

a identifica é ser filha do pai. A ausência do nome materno sustenta isto. A

importância de ser filha legítima demonstra também, em primeiro lugar, o valor

familiar através das ações de seus pais (afinal, é filha legítima) e em segundo,

enaltece um papel familiar sempre em relação ao homem, sendo esta identificada

como filha, assim como esposa. Discurso este presente nos valores de quem redige

o documento, pois sabemos que tais valores eram “cobrados” das mulheres que

“enfeitam”, não daquelas que de alguma forma participavam do cotidiano de trabalho

e de outras classes. Alexandrina, pelo próprio meio que vivia se encaixa em uma

“classe popular”, uma população ribeirinha que retira do mar e de pequenas

agriculturas o seu sustento.68 Porém, ao descrevê-la para o exame de corpo e delito,

as características descritas foram àquelas estabelecidas pela elite. Em suma, o

discurso médico aqui, também foi norteado pelos valores desta elite.

Não cabe a este trabalho analisar cada quesito do exame nem suas

respostas, mas é importante chamar a atenção para um deles, o 9º, que questiona

se inabilita ao trabalho por mais de 30 dias. Este exame provavelmente foi elaborado

para homens, já que eram poucos os trabalhos “dignos” para mulheres honestas.

Pelo quesito existir, já explicita uma lógica de enaltecimento do trabalho. É verdade

que os quesitos eram padronizados. Mas este é o único quesito que “destoa” dos

outros, que se referem aos ferimentos em si e perigos para a vida, possíveis

mutilações, entre outros quesitos. Inabilitar ao trabalho é deixar o indivíduo na

ociosidade e aos cuidados do Estado, já que este não poderia manter sua família,

que poderia desestabilizar a própria lógica do valor familiar Burguês, do homem ser

o mantenedor do lar.

Diferente do exame de corpo e delito de 1900, realizado no Tenente

Almerindo, feito em 1927, presente no Inquérito de Célia, traz outras informações: 67 Trecho do exame de corpo e delito realizado no corpo de Maria Alexandrina da Conceição, relativo ao Processo Criminal de Virgílio João de Oliveira, 1900.68 PEDRO, Joana Maria. Op. cit., p. 68.

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(...) Que examinando um indivíduo de cor branca, com trinta anos de idade, apresentado o exame de corpo e delito pelo boletim nº 148 da delegacia Auxiliar, constataram o seguinte: uma ferida produzida por um projétil de arma de fogo na mão esquerda, apresentando um orifício de entrada do projétil na face palmar da mão esquerda, um orifício de saída na face dorsal da mesma mão no quinto espaço metacarpiano. E são estas as declarações que em suas consciência e debaixo da promessa legal tem a fazer, pelo que passam a responder aos quesitos propostos da forma que segue: ao 1º sim houve ofensa física; ao 2º: um projétil de arma de fogo que ocasionou; (...) ao 4º Não resultou em morte; (...) ao 9º Não impede de trabalhar por mais de 30 dias, salvo complicação posterior. E por nada mais haver deu-se por concluído o presente exame que vai rubricado e assinado pela referida autoridade, assinado também pelos peritos, testemunhas e por mim escrivão que de tudo dou fé.69

O exame não caracteriza a vítima em relação a sua profissão ou pessoas

relacionadas, somente o caracteriza fisicamente, através de informações sobre o

sexo e idade aproximada. Essa impessoalidade pode dizer estar associada ao

crescente número de pessoas na cidade, e possivelmente ao aumento dos exames,

exigindo outra padronização. A cor do indivíduo e sua idade serviram para identificar

o examinado, não importa mais seu trabalho ou estado civil. A objetividade também

foi observada. A única semelhança com o exame realizado anteriormente é o

quesito que identifica a inabilidade para o trabalho, mostrando que este discurso

circulava com grande intensidade.

69 Trecho do exame de corpo e delito realizado em Almerindo Cardoso, relativo ao Inquérito Policial de Célia da Luz Simões, 1927.

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CAPÍTULO TRÊS

A “VOZ DO POVO”: AS TESTEMUNHAS, O RÉU E OS JURADOS

3.1 A CONSTRUÇÃO DO CARÁTER DO ACUSADO E DA VÍTIMA E COMO OCORREU O CRIME ATRAVÉS DOS DEPOIMENTOS

Os depoimentos colhidos para a investigação do inquérito policial, possuem

uma direção praticamente única dos fatos: foi Virgílio que assassinou Alexandrina.

Através dos depoimentos temos conhecimento de um passado próximo e a relação

entre o réu e a vítima. Através da autópsia é possível identificar o crime como sendo

passional, pois foram desferidos 17 tiros e 4 facadas, sendo uma na vagina de

Alexandrina. Nos depoimentos dos moradores da Freguesia onde ocorreu o crime

temos uma descrição da relação entre os personagens.

José Luciano da Silva é primeiro que figura nos depoimentos do inquérito

policial. Casado, com 42 anos, acreditava ser Virgílio o único responsável pela morte

de Alexandrina. Não conseguia pensar em um motivo para tal ato, porém forneceu

uma breve descrição da personalidade da mulher, quando afirmou que esta era

mulher estimada por todos, vivia muito bem sem se ocupar da vida dos outros.70

Para este, a atitude ideal de uma pessoa na vila era ser discreta e bem relacionada,

para fugir do estigma construído que as mulheres eram “por natureza”, faladeiras.

Construção esta, formulada de diversas formas, em face de diferentes formações

históricas.71 Michelle Perrot afirma que a fala das mulheres mantinha toda uma rede

de “comunicações horizontais” que eram diferentes daquela dos homens,

“apanhados pelas redes do texto”. Por isso, escapava ao poder que modelava e

normatizava.72 Assim, pode-se perceber neste depoimento que, ao afirmar que

Alexandrina “vivia muito bem sem se ocupar da vida dos outros” ou seja, ela era

uma mulher “de bem”.

José Luciano também forneceu indícios do passado de Alexandrina e Virgílio:

casados há 5 anos, separaram-se no mesmo dia do casamento. O motivo desta

separação não foi citado pelo depoente. Uma primeira peça do quebra-cabeça

Virgílio e Alexandrina. Casados, mas separados fisicamente como era público na

comunidade em que viviam. É possível que José soubesse do motivo da separação 70 Trecho do depoimento de José Luciano da Silva, no Inquérito Policial do Processo Criminal de Virgílio João de Oliveira, 1900.71 PEDRO, Joana Maria. Op. cit., p. 65.72 Ibidem, p. 66.

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e que o documento, construído pela autoridade policial, tenha julgado tal informação

irrelevante e desconsiderado-a, já que o importante na investigação era chegar ao

culpado, não conhecer a vida daquela população.

O segundo depoente fornece outra informação. Silvestre Ignácio dos Santos,

casado, 33 anos, reafirmou o que José Luciano havia informado: Virgílio e

Alexandrina jamais viveram juntos. A resposta deste depoente também indica a

importância de como as mulheres relacionavam-se com outras pessoas da

comunidade, possivelmente para confirmar, que por ser mulher honesta, o assassino

devia pagar por seus atos.

Perguntado, disse mais que há assassinada vivia bem com os vizinhos, mas que com o marido assim como com a família deste, ela não entrevia relações, ignorando ele respondente qual o motivo desta desavença.73

Mas as ações de Virgílio depois do ocorrido também apareceram neste

depoimento. Ao que tudo indica, era esperado que este estivesse em luto por sua

esposa assassinada, caso não fosse o próprio assassino, como o homem em

principio negava. Isso justifica a estranheza de Silvestre quando este afirma que

Virgílio, no dia seguinte da morte de Alexandrina, estava no bar tocando viola e que

em momento algum conversou sobre a morte da mulher, que já era assunto das

conversas daquele dia. Ainda que tal ação tenha sido tratada com estranheza, nada

comprovava que Virgílio tenha sido autor do crime. Afinal, este apenas era casado

com Alexandrina, sem jamais tido vivido maritalmente com a mesma.

Mas eis que surge um depoimento que o coloca diretamente na cena do

crime. Ao colher o testemunho de Ludorina Rosa, mulher solteira, de 50 anos, esta

afirma que Virgílio foi até sua casa no inicio da noite e que, lhe ofereceu 1,500 réis

para acompanhá-lo até a casa de Alexandrina, pois iria mata-lá aquela noite. A

senhora aceitou a proposta, afirmando que o fez por ser muito pobre. Através deste

depoimento também fica clara a premeditação de Virgilio, para cometer o crime. De

acordo com Ludorina, o homem utilizava barbas postiças, para não ser reconhecido,

tendo este conhecimento da dificuldade de identificá-lo no breu da noite, onde só era

possível avistar as silhuetas dos transeuntes.

O depoimento descreve em linhas gerais o que ocorreu. Ludorina afirma que

a porta da casa de Alexandrina estava trancada, que este atirou contra mesma e

73 Trecho do depoimento de José Silvestre Ignácio dos Santos, no Inquérito Policial do Processo Criminal de Virgílio João de Oliveira, 1900.

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derrubou-a, adentrando o local, enquanto Ludorina permanecia do lado de fora. A

senhora afirma que ouviu 1 ou 2 tiros dentro da casa e que Virgílio saiu logo depois,

afirmando que acabara de matar sua esposa, dizendo que Ludorina deveria guardar

em segredo o ocorrido naquela noite. Ludorina escutou apenas 2 tiros, de

aproximadamente 17 desferidos contra Alexandrina, de acordo com o auto de corpo

e delito. Sua versão pode ser então questionada.

Que a “honestidade” masculina não era algo cobrado, no mesmo sentido que

a “honestidade” feminina foi explicitado anteriormente. Mas ainda assim é

surpreendente que o envolvimento amoroso de Virgílio com a filha de Ludorina,

Maria, não tenha sido citado por mais ninguém, a não ser a própria Ludorina e sua

filha. Maria era casada e mantinha “relações ilícitas” com Virgílio, como esta mesma

testemunhou. A população ribeirinha pareceu não se importar com o caso de ambos,

pois não apareceu em nenhum dos outros depoimentos. Talvez o termo “relações

ilícitas” tenha sido colocado no texto, não em função das palavras de Maria, mas sim

por quem escreveu o documento. Se esta relação era um segredo, não há como

saber, já que a informação só está contida nos únicos depoimentos feitos por

mulheres em todo o inquérito policial e o processo criminal. E ainda que a gravidade

da revelação (de que Virgilio matou a esposa) esteja mesclada com parte da sua

vida pessoal, Ludorina ou sua filha jamais foi chamada para depor nos julgamentos.

E certamente a “honestidade” de Virgílio não interessava em todo o processo. Afinal,

ele trabalhava, executando o papel social exigido aos homens.

A raiva de Virgílio foi totalmente direcionada a Alexandrina, a contar que na

casa onde ocorreu o crime, também estava uma sobrinha de poucos anos de vida. E

foi o choro desta que Ludorina ouviu de dentro da casa, após o homem já ter saído.

É importante relatar, que todos os depoentes homens assinaram seus depoimentos,

atestando que sabiam escrever, enquanto os depoimentos de Ludorina e sua filha

foram assinados por testemunhas, com a indicação que estas eram analfabetas. É

possível que entre os depoentes homens, também havia algum analfabeto e que tal

ação de assinar pela mulher e afirmar que o fazem por analfabetismo destas, seja

uma forma de dar credibilidade a fala feminina, provando que esta o fez na presença

de homens, testemunhas desta fala.

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A educação escolar da população florianopolitana em 1900, era bastante

precária74, ainda mais para a população ribeirinha. A instrução feminina demorou a

solidificar-se em Florianópolis. Afinal, se ao homem existia algumas opções de

oportunidade de trabalhos, à mulher a carreira de esposa ainda era a profissão

desejada (e exigida) pelas mulheres.

As informações contraditórias e o depoimento revelador de Ludorina fizeram

com que os investigadores fizessem uma careação entre esta e Virgílio, que

continuou negando tudo. João, cunhado de Virgilio, também foi chamado a depor.

Este afirmou em sua fala, que não viu Virgílio na noite do crime por estar doente,

permaneceu no quarto o tempo inteiro, não podendo confirmar o depoimento de

José Luciano. Porém, também afirmou que o acusado e a vitima jamais viveram

maritalmente, desde o dia do casamento.

O depoimento mais importante do inquérito policial presente no processo foi o

do pai de Alexandrina, João Feliciano da Silva, um lavrador de 45 anos, casado.

Este foi o primeiro depoimento que trouxe uma informação que posteriormente seria

usada pelo advogado de Virgílio, para tentar a liberdade do réu: disse que sua filha

há muito tempo estava separada de Virgílio e que durante o tempo que seu genro

estava em Santos, deu à luz a uma criança de cor preta que se supõe ser filho de

Antônio Perespim75. Ainda que este justifique a ação da filha, informando que esta

estava separada, ao citar Virgílio como genro, deixou claro a importância para este,

do casamento enquanto instituição. Mas também foi importante ressaltar que o

depoimento é construído à partir das perguntas do delegado e principalmente, com

as palavras de quem transcreve, sendo passível de palavras chaves que modificam

significados, sejam inseridas à partir dos valores daquele que escreve.

Os quatro depoimentos seguintes contêm praticamente as mesmas

informações, de pessoas que viram dois vultos em direção à casa de Alexandrina,

de rastros na areia, comprovando que duas pessoas estiveram na residência do

crime e que era voz geral na comunidade que fora Virgílio o autor do crime. Após o

testemunho do pai, a informação de que Alexandrina havia tido um filho de “cor

preta”, tornou-se constante em todos os depoimentos subseqüentes. Ainda que

sejam apenas citando, não parecem desqualificar a vítima. Por fim, Virgílio

74 PEDRO, Joana Maria. Op. cit.,75 Trecho do depoimento de João Feliciano da Silva, no inquérito policial do processo criminal de Virgilio João de Oliveira, 1900.

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confessou o crime, tirando de cena Ludorina, afirmando que esta só queria

prejudicá-lo e que ao fazer isso, estava se prejudicando também. Assim, Virgílio

afirmou que Ludorina mentiu (ela não teria lhe acompanhado na noite do crime) e,

apesar dos outros testemunhos que colocaram uma segunda pessoa na cena do

crime, a senhora jamais tornou a ser citada no processo de Virgílio.

Após sua confissão, afirmando que o fez por ter sido obrigado a casar-se com

ela 5 anos atrás por uma injúria de que a teria deflorado, ou seja, a matou por

aparente vingança, novas testemunhas foram inquiridas. O tom dos depoimentos

mudou completamente.

Se no inquérito policial o foco era para descobrir o culpado (que

aparentemente todos já sabiam quem era), agora, nos novos depoimentos, se

constrói o “bom Virgílio” e a “desonesta Alexandrina”. Manoel Regino, empregado

público, casado, de 21 anos, foi o primeiro a depor, após a confissão de Virgílio. Foi-

lhe questionado como era Virgílio na comunidade, antes do crime. Este afirmou que

não sabia como este vivia, para logo em seguida emendar que Alexandrina, ao

contrário, estava amasiada com um preto, mas que nunca moraram na mesma casa

e que desse ajuntamento resultou um filho.76 O depoimento de João Pacífico,

homem casado, com 45 anos, também dá ênfase a esta afirmação e vai além,

afirmando que Virgílio matou Alexandrina por causa disto.

Também recontou a história que estes se casaram por ordem judicial e que o

réu se separou por achar Alexandrina incapaz. O incapaz aparece como se esta não

fosse uma “boa esposa”, mas não especifica o que uma “boa esposa” deva fazer. É

certo que Virgílio se casou para não ser preso, e de acordo com a própria confissão,

matou-a por ter sido obrigado a casar. Agora, na versão dos populares, ele matou

por ela, sendo casada com ele, amasiou-se e teve um filho com outro homem,

considerado um motivo “justo” para o crime. Alguns detalhes do depoimento foram

questionados pelo advogado e deixa nítida a construção da reputação do réu e da

falta de reputação da vítima. Se antes Alexandrina foi considerada mulher de bem,

que não se intrometia na vida dos outros, agora era a esposa infiel e a prova desta

desonestidade estava na criança que nascera. A ênfase da cor “parda” da criança

era a prova da “traição”, como sugere o advogado. No fim, o depoente ainda afirmou

76 Trecho do depoimento de Manoel Regino no inquérito policial do processo criminal de Virgilio João de Oliveira, 1900.

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que Virgílio era um homem pacífico, dando a entender que se cometeu o crime, foi

porque tinha motivos.

O depoimento do pescador José Sabino Rego, 28 anos, só reforçou essa

idéia. Além de recontar a história do passado de ambos e da suposta “traição” de

Alexandrina e do filho bastardo, ele não citou a traição de Virgílio o que ele fez em

Santos ou na comunidade quanto voltou. Este atesta que o réu era um bom homem.

Porém não explicita o porque ele é um bom homem. A linha de defesa fica mais

clara neste depoimento, quando o advogado questiona se é ou não verdade que o

acusado foi coagido pela policia a casar com Alexandrina em virtude da calúnia que

esta levantou contra o mesmo acusado, dizendo ser ele que a deflorou.77 José

Sabino, ao afirmar que sim, se contradiz no próprio depoimento, já que

anteriormente afirmou que não sabia o motivo de ambos terem se separado logo

após o casamento. Fica clara a intenção do advogado de construir uma imagem de

desonestidade de Alexandrina e obtém ajuda dos novos depoentes nessa

empreitada.

Por fim, o depoimento de três carcereiros serviu apenas para confirmar a

culpa de Virgílio: estes afirmaram que o réu conversou com eles que ele tinha sido o

autor do assassinato de sua esposa e que ninguém mais deveria ser acusado de tal

crime.78 Nenhum destes carcereiros procurou saber o motivo do assassinato.

É importante ressaltar aqui que nenhumas das testemunhas da Freguesia do

Rio Vermelho compareceram aos julgamentos, mesmo quando foram intimadas. A

ausência destas foi uma das justificativas para a falha nos julgamentos, mostrando a

dificuldade de locomoção do centro da cidade para estes povoados, já que muitos

não foram intimados em função da distância e dificuldade de localização dos

mesmos.

Se no começo os depoentes afirmam que Alexandrina era uma mulher

honesta, ainda que tenha vivido com outro homem além do seu “marido”, no fim as

novas testemunhas desta mesma comunidade desconstroem essa imagem, ao

“negativar” a relação “extraconjugal” dela. Mais uma vez, a honra masculina não

depende de suas próprias ações, a contar que o próprio Virgilio teve um caso

extraconjugal, chamado de “relações ilícitas”, mas não por ele ter se envolvido com

Maria, mas sim por ela, casada e ter-se envolvido com Virgílio, e a ausência de

77 Pedro José Leite, advogado de defesa no Processo Criminal de Virgílio João de Oliveira.78 Testemunho de João da Silva, Francisco Alves e Dário A. de Gouveia.

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informações do que este fazia em Santos. Com efeito, a honra foi uma justificativa

também nesta sociedade florianopolitana recém-republicana, para justificar (e

“inocentar”) aqueles que cometiam crimes para lavar sua honra. Valores estes

implícitos em todo o processo, seja pelo advogado acusando-a ou pelo promotor

público que tentou “defendê-la”. Mesmo nos depoimentos das testemunhas, foi

possível identificar estes valores de honra, ainda que contrastem com a convivência

diária com valores divergentes daqueles exigidos pelas elites catarinenses. Um

paradoxo. Em momento algum, os depoimentos constroem a imagem de um Virgílio

assassino. Pelo contrário, suas ações foram justificadas em prol da honra masculina.

Quase trinta anos depois, quando do crime cometido por Célia, pouca coisa

parece ter mudado no que tange a honra masculina e honestidade feminina. No

depoimento dado pela vítima do suposto ataque, o tenente Almerindo faz questão de

explicitar, logo no inicio, que são boatos infamatórios que ele e Célia tivessem um

caso. Este, nem ao menos cita o nome desta, identificando-a apenas como esposa

de um comerciante da praça, Manoel Simões. Ele também constrói a honestidade de

Célia ao negar o envolvimento e, principalmente, preocupa-se com a “honra ferida”

de Manoel, temendo uma possível vingança deste, como fica visível no trecho a

seguir:

que sendo infâmia tudo quanto se dizia e sabendo achar-se o marido da referida senhora muito exaltado e querendo vingar-se que, em vista disso, veio para o quartel o depoente afim de fazer ciente ao seu comandante das bravatas falsas que ocorriam e pedir-lhe sim conselho.79

Almerindo também narra sua trajetória em Florianópolis, como se quisesse

que seus passos fossem conhecidos para deixar claro que neste meio termo, jamais

se encontrou com Célia. Aliás, este nega sequer conhecê-la, apenas a reconheceu

como esposa do comerciante, quando esta apareceu no portão do 14ª Batalhão de

Caçadores para conversar com ele. A tentativa de manter-se distante de Célia e as

inúmeras vezes que se diz vítima de calúnia, contrastam com a mentira deste ao

oficial responsável, quando disse que o tiro da arma foi acidental. A intenção dele de

defender Célia se comparado ao depoimento dado ao inquérito policial, tendo em

vista que neste ele narra o ocorrido, como se ela realmente tivesse puxado o

revolver e tentado atirar contra sua pessoa. Se Célia estava tentando “lavar” sua

honra ou a de seu marido ou se agiu por vingança, não há como saber. Pois como já

79 Trecho do depoimento de Almerindo Cardoso, no Inquérito Policial de Célia da Luz Simões.

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explicitamos, sua “voz” foi silenciada do inquérito policial, assim como a de seu

marido.

A diferença entre os depoimentos feitos no inquérito policial de Virgílio e de

Célia são de ordem descritiva. No de Virgílio eles revelavam indícios enquanto nos

depoimentos do inquérito de Célia, eles descrevem o que faziam no momento do

crime e o que viram quando chegaram ao local. O depoimento do oficial João

Benicio Cabral, de 27 anos, responsável pelo batalhão naquela noite, disse que

quando ouviu o disparo, correu para verificar o que havia acontecido. Ao se deparar

com a mão ensangüentada de Almerindo e a “desconhecida senhora” em crises

nervosas, deu voz de prisão, que após o homem afirmar que a arma disparou por

acidente, ambos foram liberados. Ele apenas afirmou que a viu entrar em um veículo

que não reconheceu - assim como o chauffer que o dirigia, e que a viu partir. A

“honestidade” de Célia ou as ações de Almerindo não são informadas no

depoimento. É muito provável que este sabia de que pessoa se tratava e preferiu

calar-se para se proteger. Afinal, colocar em risco a honra da família do ex-

governador de Santa Catarina seria uma “grande dor de cabeça”.

As testemunhas seguintes, todos os soldados do batalhão que estavam

naquela noite, repetiram o mesmo discurso. Disseram não reconhecer a senhora

que procurava o tenente Almerindo e que só ouviram o disparo e após o ocorrido,

sendo que o tenente foi encaminhado para a enfermaria.

Ao contrário do que ocorreu com Alexandrina, a honestidade de Célia foi

preservada, possivelmente em função de sua classe social. Como tentaram os

primeiros depoentes do caso Virgilio, ao afirmarem que Alexandrina era moça “boa e

honesta”. Preservada, no sentido que nenhum dos depoentes no caso de Célia

arriscou dizer que sequer a conheciam ou sobre os boatos que surgiam. Somente

Almerindo a citou, por ser principal envolvido no ocorrido. Ainda assim, os

testemunhos foram inconclusivos e, apesar da vítima ter afirmado que fora ela que

atirou nele no depoimento, a ausência da fala de Célia foi a “justificativa” suficiente

para que o processo fosse arquivado. A “justiça” não é para todos.

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3.2 – A VOZ DE VIRGÍLIO E DO JÚRI: DE MÉDICO, ASSASSINO E LOUCO,

TODO MUNDO TEM UM POUCO

É verdade que ao analisar qualquer documento, mesmo quando se tenta

localizar e compreender os valores através de discursos, esta é norteada pelos

discursos daquele que analisa. O caso de Virgílio e o caso de Célia se encaixam em

diversos discursos que, identificados pelo leitor, são direcionados a uma discussão

sobre a questão da honra, à partir dos mais diversos pontos de vista. Assim como

Pierre Rivière foi analisado em relação a sua loucura ou razão.

Pierre Rivière foi protagonista do assassinato de sua mãe, sua irmã e seu

irmão. O que tornou o processo de Rivière histórico, não foi o fato de ter cometido

um triplo assassinato. Mas o fato de ter produzido um dossiê explicando o porquê de

seus atos. Se nos depoimentos ele apareceu como louco, a própria produção do

dossiê colocava em risco esta loucura. E também colocava em conflito um jogo de

poderes que diz respeito ao saber médico e ao saber jurídico. Rivière precisava ser

tratado ou condenado à forca? Essa discussão permeou um estudo rico apresentado

por Michel Foucault, em um trabalho coletivo de análise dos diversos discursos

existentes no processo.

É possível comparar o processo de Rivière ao processo de Virgílio, aqui

analisado. Não em função do pelo discurso da loucura, nem por qualquer

semelhança, que não há, entre os crimes. Mas pelos discursos que podem ser

identificados nos dois processos. É verdade que quando as “vozes” de um processo

são identificadas a fim de compreender os valores que os norteiam, aquele que

analisa o faz utilizando os próprios discursos, e isto poderia ser uma “voz flutuante”

no processo de construção de conhecimento. Através deste discurso que é possível

tentar dar voz a Virgílio, utilizando as “falas” deste, sempre norteadas pelo discurso

jurídico.

Ao contrário de Rivière, Virgílio não produziu um dossiê que colocaria em

risco toda a discussão criada em seu julgamento. Porém Virgílio também tem voz no

processo e se justifica possivelmente orientado por seu advogado

A primeira vez que Virgilío “fala” foi ao ser interrogado, por ter sido sua

esposa assassinada. A intenção é despistar sua participação no crime. Quando

questionado onde estava, disse que na noite em que foi assassinada sua mulher, ele

esteve em casa de seu cunhado, João Arsênio de Oliveira e depois foi para sua

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casa onde esteve dormindo até pela manhã e que entre estes dois lugares há uma

distância de mais ou menos 1 km.80 Em parte verdade, ao citar que esteve em

companhia, constrói um álibi, e ao citar a distância, tenta mostrar que seria

improvável que este conseguisse sair de um local ao outro, cometer o crime e voltar,

à pé. Este fez questão de informar que estava descalço o tempo todo naquela noite,

provavelmente porque os rastros que deixou tenha sido de botas, e que Ludorina

citou que ele usava tal calçado ao cometer o crime. Mas este depoimento foi anterior

ao de Ludorina. Ao criar uma história a fim de conseguir um álibi, Virgílio mostra

sinal de razão e consciência, ao não querer ser “pego”. Ao contrário da loucura,

mesmo a transitória, como defendeu seu advogado.

Se o cotidiano e o momento histórico de Rivière poderiam ser justificativos

para as ações do mesmo, como apontaram Jeanne Favret e J. P. Peter81 a mesma

lógica poderia explicar a ação de Virgílio. É verdade que não há relatos sobre o

cotidiano de Virgílio ou Alexandrina, mas há indícios do mesmo. Vindos de uma

comunidade pobre, que tinha a pesca como principal fonte de renda, assim como

pequenas lavouras. A locomoção para a cidade reduzia-se a barca ou carroça,

sendo possivelmente poucos que o faziam.

É sabido que a polícia obrigou Virgílio a casar com Alexandrina, após esta ter

denunciado que este a deflorou. Mas também é sabido que ambos nunca viveram

maritalmente. Ao voltar, Virgílio encontra Alexandrina com outro homem. Vive sem

aparentemente se importar com isso por quase um ano, quando executa seu plano

sinistro de tirar-lhe a vida. A vingança teria motivado sua ação?

Ou teria sido ele “vítima” dos valores impostos e reproduzidos, em que, por

ser casada, Alexandrina não poderia “traí-lo” daquela forma. A confusão de

discursos feitos a este respeito nada respondem a esta pergunta, pelo contrário,

deixam mais dúvidas. Teria sido um ato desesperado de lavar sua honra com

sangue? Sabia ele que seu ato era “perdoável”, se com este propósito? Ou tal

afirmação só se tornou real quando seu advogado o instruiu. E se isto ocorreu,

porque matou Alexandrina? Sabemos que sua mulher era a “bruxa” que ele

precisava se livrar. Ela não poderia ser feliz, ou com outra pessoa, ou depois do que

fez com Virgílio. Assim como a mãe e a irmã de Rivière não poderia mais viver,

80 Trecho do depoimento de Virgílio de Oliveira81 PETER, Jean-Pierre; FAVRET, Jeanne. O animal, o louco e a morte. In FOUCAULT, Michel (org) Eu Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Rio de Janeiro: Graal, 1977.

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depois de ter atormentado a vida de seu pai que, Rivière tanto respeitava e

gostava.82 Rivière cometeu a ação sob o argumento de amor e de salvação. E

Virgílio? O contrato social existente na sociedade que viveu permitia tal ação.

Virgílio não era considerado um “monstro”, como tentava construir o promotor

público. Virgílio era considerado como um “errante” de amor. Mas será isso

possível? Se nós ainda somos monstros e doravante seus iguais, quem são

vocês?83 Reconhecer a monstruosidade de Virgílio, talvez fosse reconhecer a

monstruosidade da sociedade. Assim, de certa forma, O acontecimento é liberdade;

ele corta como uma lâmina, agita, frustra ou ataca toda espécie de instituição.

Acontecimento exemplar, o assassinato visa aqui, num mundo estático, ao

intemporal da opressão e à ordem do poder.84 Em outras palavras, o assassinato

pôde ter sido usado como forma de protestar, de contestar as regras do “contrato

social”, e de libertar-se do casamento, que esta mesma justiça o obrigou.

Alexandrina teria sido somente a ferramenta. E de fato não houve “quebra desse

contrato social”. Virgílio, sob orientação do advogado, convenceu que agiu por sua

honra. Honra era imprescindível no contrato social dessa sociedade florianopolitana.

A honra, baseada na honestidade (ou a falta de) das mulheres, símbolos da

“família”. Símbolos estes julgados justamente pela máquina tagarela da justiça e da

medicina mental85, que muito antes de Virgílio já discutiam a razão e a desrazão.

São heranças jurídicas que são mantidas até os dias atuais.

A segunda vez que Virgílio fala no processo, finalmente confessa, mesmo

desconhecendo seu futuro. Confessa, que a matou porque fora obrigado a casar-se.

Sobre sua loucura, sobre sua honra, se comparados ao seu primeiro discurso, estes

não são justificativas suas, mas sim de seu advogado. Mas até que ponto Virgílio

não foi convencido por este discurso, e este passou a fazer parte do seu próprio?

Matou Alexandrina pois enlouquecera. Enlouquecera ao vê-la com outro, quando

este fora obrigado a casar-se com ela. Quem decide a razão e a desrazão? No

curso de uma instrução e de um processo (...) como poderia ter sido recebido por

médicos, magistrados e jurados que deviam encontrar nele razões que decidissem a

82 PETER, Jean-Pierre; FAVRET, Jeanne. Op. cit., 83 Ibidem, p. 193.84 Ibidem, p. 197.85 Ibidem, p. 200.

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loucura ou a morte?86 No caso de Virgílio, não era a morte, mas sim o cárcere. E a

“loucura” tão discutida pelo advogado e o promotor público, a honra e honestidade,

tão debatida por ambos e testemunhada pelos depoimentos não foram capazes de

calar outra “voz” do julgamento: o Tribunal do Júri, que cansado de tantas versões

(interpretações dos fatos), fez o inimaginável: chegaram a conclusão que Virgílio não

fora o autor do crime, criando uma terceira interpretação dos fatos do processo. É

certo que tal ação foi norteada também pelos sucessivos ataques que o júri recebeu

tanto do promotor público, quando do advogado. Mas inocentar um réu confesso,

cria uma narrativa, de uma serie de narrativas, que formam então, uma “memória

popular” dos crimes, como houve com a construção do crime de Rivière, a partir dos

folhetos e testemunhos.87

Mas, sabia Virgílio, que ao adotar o discurso de seu advogado, seria o crime

deste identificado por suas circunstâncias atenuantes e que acarretam o

reconhecimento pelo júri da existência de um crime; mas ao mesmo tempo admitido

que circunstâncias exteriores ao crime limitam a falta do acusado e permitem pois

uma atenuação da pena a ser cumprida? 88 Tal reconhecimento ocorreu, em pelo

menos 3 julgamentos, quando Virgílio foi absolvido do crime cometido. Mas, afinal,

porque deveriam existir os atenuantes? Patricia Moulin afirma:

Num primeiro plano individualizam as penas e, dando a cada um a esperança de ser menos punido, atenuam a revolta contra a lei; mas sobretudo, por uma utilização sistemática, permitem modernizar a lei, adaptá-la. Elas tem portanto por papel principal reduzir as contradições bastante importantes que poderiam nascer entre a opinião popular e o direito, e isto tanto mais por serem elas concedidas pelos júris e não por juízes separados da nação. Elas atenuam pois qualquer tentativa de contestação do próprio poder.89

E com esta afirmação fica claro, que ao mesmo tempo em que a Justiça tenta

ser “justa”, os atenuantes servem para conter a revolta popular. No caso de Virgílio,

o atenuante não serviu para que sua pena fosse menor. Mas sim a decisão de

libertá-lo ou aprisioná-lo.

Réu confesso, conforme documento assinado. Antes do primeiro julgamento,

foi feito o auto de qualificação e o interrogatório, após a confissão. Ainda que as

86 FOUCAULT, Michel. Os assassinatos que se conta in FOUCAULT, Michel. (org) Eu Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha Irmã e meu irmão. Rio de Janeiro: Graal, 1977.87 Ibidem, p. 215.88 MOULIN, Patrícia. As circunstâncias atenuantes in FOUCAULT, Michel (org) Eu Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha Irmã e meu irmão. Rio de Janeiro: Graal, 1977, p. 22389 Ibidem, p.225.

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perguntas sejam feitas por representantes dessa elite jurídica, as respostas

permitem identificar alguns valores do inquirido. É a voz de Virgílio, novamente. Os

questionamentos:

Aos 11 dias do mês de agosto de 1900 nesta cidade de Florianópolis em sala das audiências de juízo, as 11 horas da manhã, ali presentes o Dr. Antonio Wanderley Navarro (e o escrivão) e o preso Virgilio o juiz lhe fez o interrogatório do modo seguinte:Qual seu nome? Virgilio João de OliveiraDe quem é filho? De João Ignário Oliveira.D’onde é natural? Freguesia do Rio vermelhoD’onde reside ou mora? Na mesma freguesia.Há quanto tempo ali reside? Desde que nasceu.Qual sua profissão? Pescador.Onde estava ao tempo em que se diz ter acontecido o crime? Em sua residência. Conhece as pessoas que juraram neste processo? Há quanto tempo? Algumas ha muito tempo outras a pouco tempo. Tem algum motivo particular a que atribua à queixa da denuncia? Não tem.Tem fato a alegar ou provas que justifique ou mostre a sua inocência? Tem e que seguiria o prazo legal para apresentar sua defesa.E nada mais respondeu e nem lhe foi perguntado.

Ao ser questionado de quem é filho, e este ter citado o nome do pai, apenas,

demonstra mais uma vez a patrilinearidade, já que este poderia ter citado o nome do

pai e da mãe. Ele está inserido neste discurso patriarcal. A importância do trabalho e

seu papel na sociedade aparecem quando este foi questionado qual sua profissão.

Isto o localiza socialmente.

Mesmo tendo assinado sua confissão, afirma que no momento do crime

estava em sua casa, não na de Alexandrina. E ao afirmar que tem provas que

justifique (sua ação?) ou mostre sua inocência, deixou a responsabilidade à seu

advogado. Virgílio seria então inserido no conflito de forças, como Pierre Rivière o

foi. Situava-se no centro de um triplo conflito: conflito entre poder e consenso geral,

conflito sobre a detenção do poder repressivo, conflito entre o saber científico e o

poder judiciário.90

O poder repressivo, neste caso, estava nas mãos do Judiciário. O saber

psiquiátrico (científico), inserido com a alegação que este perdera a razão quando

cometeu o crime, não convenceu em um primeiro momento. E o consenso geral,

representado ali pelos jurados, parte de uma elite local. O modelo adotado pelos

republicanos brasileiros é paradoxal, pois ainda que o poder repressivo esteja nas

mãos do Poder Judiciário, é o “consenso geral” (o tribunal de júri) que por fim

90 MOULIN, Patricia. Op. cit., p. 224.

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condena ou absolve os criminosos. O juiz, nestes casos, não julga, apenas organiza

o julgamento.

O segundo interrogatório ocorreu antes do primeiro julgamento. Algumas

perguntas foram inseridas e a primeira mudança de discurso de Virgílio é

identificada. Deixou de ser Virgílio falando sozinho, para ser Virgílio e seu advogado,

conhecedor dos atenuantes. Atenuantes estes que autoriza além da psiquiatria, a

entrada de todas as ciências sociais (psicologia, sociologia, genética...) e humanas

na justiça.91 De certa forma, Virgílio teria consciência disto quando responde às

perguntas do interrogatório. Quando questionado se tem provas que justifique ou

mostre sua inocência, Virgílio afirma que sim, e acrescenta que tem duas

testemunhas que provam que cometeu o crime para defender sua honra. Quando

questionado se foi ele que matou Alexandrina com tiros de pistola e facadas, este

confirma. E acrescenta: praticou o crime em defesa de sua honra. A mudança de

discurso e a nova confissão de ter cometido o crime contrastam com seus

atenuantes. Como é sabido, a honra pode ser defendida a qualquer custo, como o

próprio Código Penal de 1890 defende, dedicando um capítulo sobre estas

questões.

No primeiro julgamento, a vitória foi da acusação. O tribunal do júri, apesar de

reconhecer, os agravantes no cometimento do crime (motivo frívolo, superioridade

em sexo, força e armas, cometeu o fato com surpresa) reconhece, ao mesmo

tempo, que a atenuante “honra”, tendo Virgílio cometido o crime para desafrontar-se

de grave injúria. Mas esta justificativa não se sustenta sozinha. Em resposta ao

último quesito, se o réu achava-se privado de sentidos e inteligência, o júri não foi

convencido. E Virgílio foi condenado a 21 anos de prisão.

O Código Penal de 1890 estabelece a autoridade masculina (o pai) e santifica

a família. Tal afirmação feita por Barret-Kriegel92, diz a respeito do Código Penal

Frances, de 1835. Mas é possível fazer a mesma afirmação para o Código

Brasileiro, se observarmos como se constrói tal Código e principalmente, porque

tomamos de herança, muitas características do código francês. No caso, o código

brasileiro santifica a família através de sua honra e honestidade, e esta é julgada

pelas ações de suas mulheres. De certa forma, é possível afirmar que Virgílio teve

91 Ibidem, p. 226.92 BARRET-KRIEGEL, Blandine. Regicida-Parricida in FOUCAULT, Michel (org). Eu Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha Irmã e meu irmão. Rio de Janeiro: Graal, 1977, p. 230.

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uma vitória, em relação ao quesito que este agiu devido a grave injúria. Foi o

reconhecimento deste júri de que, ainda que Alexandrina e Virgílio jamais tenham

vivido enquanto marido e mulher, como defendeu o promotor, a instituição do

casamento foi considerada sagrada e a traição desta, ao viver com outro homem,

justificou a ação de Virgílio. Justificou, mas não o inocentou. Uma vitória para cada

um dos lados.

O interrogatório do segundo julgamento traz uma novidade: se no primeiro, o

fator inserido foi o crime ter sido cometido (e reconhecido) por ter Virgílio defrontado-

se com grave injúria - no caso, a “traição” de Alexandrina, agora o discurso da

loucura é inserido, por seu advogado. Mas não qualquer loucura. Uma loucura

transitória, pontual, uma neurose, segundo Sigmundo Freud. Hoffbauer (em 1827),

muito antes de Freud, foi um dos pioneiros a trabalhar tal conceito, ao afirmar que

existem estados passageiros “da alma” que podem ser da alçada da medicina

mental: são eles: a embriaguez; o estado intermediário entre o sono e a vigília; o

desvario momentâneo e o impulso insólito a uma ação determinada.93 Este

pensamento tenta complementar afirmações de Pinel (1820), que afirmava que é

possível ter loucura sem delírio, principal sintoma atribuído a esta enfermidade.94 O

protagonista Virgílio, desliza entre os últimos dois estados de Hoffbauer. Assim, é

possível afirmar que, ainda que o réu não tenha sinais clássicos de loucura, possa

se enquadrar neste atenuante, de ter “perdido a razão”, sem ter necessidade de ser

encarcerado em uma instituição, para tratamento.

Mais tarde, elaborou-se por Esquirol uma renovação da concepção de

loucura, ao definir a “monomania”, que é em suma, uma “micromania”, caracterizada

por um delírio limitado,à uma categoria, um objeto específico e recobram a razão

após um acesso de loucura.95 Em todos os casos, tais teorias parecem ter surgido

para que a Psiquiatria ganhasse, sobre o Poder Judiciário, poder de intervenção.

Assim defendeu Elias Regnault, que interpreta a monomania como uma simples

invenção dos médicos para intrometer-se no domínio judiciário.96 Independente de

qual loucura tratamos no caso Virgílio, o advogado tem o cuidado de afirmar que

93 CASTEL, Robert. Os médicos e os juízes in FOUCAULT, Michel (org), Eu Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha Irmã e meu irmão. Rio de Janeiro: Graal, 1977, p. 263.94 Ibidem, p. 268.95 Ibidem, p. 269.96 REUGNAULT, Elias. Apud. CASTEL, Robert, p.270.

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esta foi apenas no momento do cometimento do crime... E o coloca entre os conflitos

de poder, citados anteriormente.

Tal discurso ganha força e convence neste segundo julgamento. Mas o que

causa estranheza é Virgílio tornar a alegar que é inocente do cometimento do crime.

Afirma que nada sabe sobre a morte de sua esposa e só soube de sua morte no dia

seguinte. Certamente foi instruído, novamente, pelo advogado. Pouco importou as

declarações feitas no julgamento anterior. Afirmava uma suposta “amnésia”? Talvez

sua “loucura transitória” o deixou inconsciente dos atos, por isso não recordava o

que fez.

O advogado, não negligenciou nenhum recurso para reduzir o alcance de seu

ato: já que visa à ordem social, a do contrato, seu ato só pode ser feito de um animal

ou de um louco, o avesso de um homem. 97 Ainda que tal afirmação tenha sido feita

no estudo do caso Rivière, o advogado de Virgílio agiu de forma semelhante. Este

justificou a ação de Virgilio, como um momento de desespero, um louco agindo, não

o Virgílio que agora estava sendo julgado por um ato cometido sem “consciência” de

seus atos.

E o discurso convenceu. Apesar do júri reconhecer os agravantes citados

também no julgamento anterior, desta vez não reconhece ter o réu, atenuantes. Mas

respondem, ao ultimo quesito, por 7 votos, que o réu encontrava-se privado de

sentidos e inteligência. Virgílio foi absolvido. Vitória do advogado.

O terceiro interrogatório pré-julgamento mantém fórmula semelhante da

anterior. Porém outra novidade: se no segundo interrogatório Virgílio afirma

conhecer as testemunhas e nada ter contra elas, no terceiro, apesar de serem

exatamente as mesmas testemunhas, este afirma não conhecê-las. Quando

questionado se tem algum fato que prove sua inocência, desta vez este não

responde, dizendo que isto está a cargo de seu advogado. Virgílio se mantém

cauteloso, talvez para que suas palavras não influenciem nos argumentos

escolhidos por seu defensor.

Quanto à resposta dada à pergunta se ele sabia como se dera o assassinato

de Alexandrina, mais uma vez mudou de fórmula. Antes colocava-se longe da cena

do crime, desta vez confessava o assassinato:

Perguntado se sabe como se deu o assassinato da infeliz Maria Alexandrina mulher que foi ele interrogado? E por quem este fato foi praticado?

97 PETER, Jean-Pierre; FAVRET, Jeanne. Op. cit., p. 204.

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Respondeu que o assassinato da infeliz Maria Alexandrina de quem estava o réu separado a casa de 5 anos, alias nunca com ela tendo vivido maritalmente deu-se no dia 13 de julho de 1900, horas da noite, em casa da própria infeliz, sendo o réu levado a praticar deste ato ao saber que a mesma Maria Alexandrina traia ele e a sua família e toda via está certo de que o mesmo ato praticou tendo falta e entendimento da precisa inteligência para bem discernir.

Virgílio permanece na mesma linha de defesa que o absolvera no julgamento

anterior, e mantinha a mesma teoria de loucura transitória. Só que desta vez

reconhecia lembrar-se dos fatos ocorridos. Loucura e consciência de seus atos

foram conceitos contraditórios, que comprometeu o julgamento dos jurados.

Mesmo não constando no exame de corpo e delito ou nos depoimentos, foi

levantada a hipótese de que a morte de Alexandrina resultou de uma lesão corporal

feita em pessoa cuja constituição ou estado mórbido anterior concorreram para

tornar a mesma lesão irremediavelmente mortal.98 Ao afirmarem isto, por

unanimidade de votos, o júri afirmou que Virgílio não matou Alexandrina, apenas a

feriu e que esta morreu por já estar com constituição fragilizada. Um atenuante para

a acusação de homicídio. Porém, foi solicitado que o júri colocasse o número de

votos para cada quesito. E quando o leram novamente, houve a negativa, por

unanimidade, do 3º quesito. Perceberam a contradição que causaria, pois no 4º

quesito (A morte resultou de condições personalíssimas da paciente?) a resposta foi

negativa, contrariando a votação do terceiro quesito.

Ainda que possa ser somente um erro, desta vez os jurados reconhecem

alguns agravantes, exceto o motivo frívolo. Então de certa forma, concordaram com

a justificativa que Alexandrina fez por merecer, já que Virgílio tinha motivos para

matá-la. Ao mesmo tempo, afirmaram que não existem atenuantes. Se a linha de

defesa propôs que um atenuante seria justamente o réu ter agido por sua honra, o

não reconhecimento disto contradiz a falta de motivo frívolo. Não cabe aqui analisar

os quesitos como o promotor público ou o advogado faria. O processo está repleto

de deslizamentos de sentidos e contradições, como afirma Philippe Riot.99

As contradições gritantes presentes estão principalmente no tribunal do júri e

nas suas respostas. É verdade que a culpa poderia ser atribuída somente ao

desempenho do promotor público ou do advogado, que induziu o júri ao erro. Mas

98 Terceiro Quesito questionado ao tribunal de júri do terceiro julgamento de Virgílio.99 RIOT, Philippe. As vidas paralelas de Pierre Rivière in FOUCAULT, Michel (org). Eu Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha Irmã e meu irmão. Rio de Janeiro: Graal, 1977, p.239.

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isto seria diminuir a capacidade de análise dos jurados, provenientes da classe

média e elite da cidade.

O que convém perceber no terceiro julgamento é que, por 8 votos, o réu não

estava privado de sentidos e inteligência ao cometer o crime. Virgílio foi

responsabilizado por seus atos. Para os jurados, o réu não conseguiu combater sua

natureza perversa. Vitória da promotoria, que obtém 30 anos de reclusão.

O quarto interrogatório pré-julgamento traz outro conflito de Virgílio e outra

“carta na manga” do advogado: o constrangimento deste por ter sido obrigado a

casar com Alexandrina. Até que ponto Virgílio respondia as perguntas somente com

a orientação do advogado? Esta era a primeira vez que a “versão” do réu apareceu

nas respostas do interrogatório. Que fora obrigado a casar-se, era informação

conhecida. Mas que se sentia constrangido, era novidade. Ao afirmar que fora

obrigado a se casar e que vivia envergonhado com o caso de sua mulher que tivera

um filho de cor preá e fora encontrada numa noite com um homem da mesma cor,100

isto colocava Alexandrina em outro patamar, a de “vilã” da história. Além de ter

“obrigado” Virgílio a casar-se com ela, esta tinha um caso (e um filho) com outro

homem. Isto seria a justificativa do ato do réu, porém este não reconheceu ter

cometido o assassinato.

Independente disto, o júri demonstrou seu poder (e sua contradição) de

inocentar Virgílio neste julgamento, em 1902. As respostas aos quesitos divergiam

totalmente de todos os julgamentos, ainda que a promotoria manteve a mesma linha

de defesa e argumentação. Concordaram que a vítima fora assassinada com

facadas e tiros, que, porém afirmaram que esta morreu por conseqüência de estado

moribundo anterior, desqualificando o crime como assassinato e enquadrando-o em

lesão corporal. Todos os agravantes foram negados, assim como os atenuantes. O

quesito que questionava se estava desprovido de sentidos e inteligência fora

respondido que sim, porém a surpresa está logo no começo desta lista: por 9 votos,

Virgílio não cometeu o crime. Todos os outros quesitos não precisariam ser

respondidos.

Isso demonstra que, cansados dos jogos políticos e das intermináveis

acusações de incompetência dos jurados, estes, contrariando toda a materialidade

do crime, os depoimentos, até a carta de confissão de Virgílio, inocentaram-no, em

100 Trecho do interrogatório do quarto julgamento de Virgílio.

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clara mostra de poder que o tribunal do júri tem, independente de qual seja o saber

médico ou jurídico. Vitória para Virgílio, absolvido, derrota para a justiça e, quiçá

sociedade.

Por fim, o quinto e ultimo julgamento, em junho de 1903, foi pautado pelo

resultado do quarto: e Virgílio afirmou que nunca esteve no local do crime, não sabe

como Alexandrina morreu e que não se recorda de ter confessado crime algum. A

carta confissão perde o valor. Não era mais questão de julgar razão ou loucura, não

era mais uma questão de conflito de poderes (ou era, se o tribunal do júri for inserido

como poder dentro do sistema de julgamento). Virgílio foi inocentado e esta foi a

resolução final. Vitória de Virgílio, derrota para a sociedade, através de seus próprios

representantes neste teatro de interesses, do poder judiciário do início do século XX.

Quanto à Célia, mesmo 30 anos depois, nem ao menos houve possibilidade

de julgamentos, já que seu inquérito jamais virou processo. Estando em saber se é

como a razão pode ser criminosa, e como tudo isto, crime e saber, pode ser

“suportado” pelo que se chama a ordem social. 101 Ordem social esta, em que a elite

comanda e se insere ou retira de suas próprias regras de controle. Regras estas que

não eram para si mesmos, mas para nortear os valores sociais da cidade, como

demonstrou Joana Maria Pedro e tantos outros autores.

Assim como Rivière foi inserido em um conflito de poderes, Virgilio e Célia

também o estavam, cada um à seu tempo. Os diversos discursos construíram

inocentes e culpados, e para esse “jogo de interesses” não importava a justiça.

Ainda que os discursos se completem, por exemplo, o discurso jurídico (tanto do

advogado quando do promotor público no caso de Virgílio) foi permeado à partir dos

depoimentos. Convém ressaltar que apenas alguns testemunhos foram escolhidos

para justificar a defesa ou à acusação, aqueles que justificavam e construíam (ou

destruíam) reputações, dependendo do papel exercido dentro do tribunal. Mas ao

fim, o que prevaleceu foi o julgamento dos jurados, convencidos (ou cansados) das

reviravoltas de um único processo, que criou transtornos para diversas pessoas,

optaram por libertar o réu confesso, para manter uma “ordem social”, em que o norte

está na escolha de poucos.

101 FONTANA, Alexandre. As intermitências da razão in FOUCAULT, Michel (org). Eu Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha Irmã e meu irmão. Rio de Janeiro: Graal, 1977, p.280.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de Virgílio e o inquérito policial de Célia, são testemunhos

que os valores exigidos e difundidos pelas elites em Florianópolis. Os discursos

sobre a razão e sobre a loucura puderam ser identificados no processo e

concomitantes ao código penal aplicado, tornaram-se motivos atenuantes para o

crime. Ao mesmo tempo, que haja uma luta entre o promotor público e o advogado,

fica claro, no processo estudado, que um mesmo argumento pode ser utilizado por

ambas as partes, para a construção de uma verdade. O Código Penal deixava

margem para as mais diversas interpretações, e estas, associadas à burocracia e

troca de acusações e a revolta aparente de um tribunal de júri, foram decisivas no

veredito de inocência de um réu confesso. Quanto ao inquérito de Célia, não é

possível afirmar, mas teorizar, que este não se tornou processo por ser ela da elite

catarinense, já que o inquérito ficou inconclusivo. Através de tais documentos

jurídicos, foi possível ter uma noção dos discursos produzidos por esta sociedade

nos mais diversos âmbitos.

O Processo de Virgílio também tem silêncios. O crime contra Alexandrina

começou muito antes de seu assassinato. Começou cinco anos, antes deste ato

final, quando esta foi deflorada e abandonada por Virgílio. Esta violência não pôde

ser trabalhada com detalhes neste trabalho por faltar o processo referente ao

defloramento. No fim, ficou pareceu que Virgílio adquiriu o direito de matá-la, para

lavar sua honra. A honra dele foi “lavada”, mas e a dela? E a violência e o abandono

sofrido? Parece que esta sociedade não se importava – e ainda não se importa, se

analisarmos o presente sob a ótica da honra masculina. Exemplos não faltam, como

o caso do jogador de futebol acusado de matar sua amante. A “honestidade” dela foi

posta em jogo, por ter trabalhado como atriz de filmes pornográficos. A “honra” dele,

as ações dele, não é colocada em jogo.

Foi possível identificar neste estudo de caso, a noção de honra sexual na

Florianópolis entre 1900 e 1927. Leis estas, interpretadas diferentemente pelos

envolvidos nos julgamentos e nas investigações. Os autos, através de suas

sentenças ajudaram a responder, também, a outras perguntas. Foi possível

compreender, no estudo presente, através dos discursos, a aplicabilidade dos

valores referentes à honra e relações de gênero no quesito dos crimes passionais,.

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FONTES DOCUMENTAIS

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identificação.

Inquérito Policial nº 17 de 1927. Museu do Judiciário Catarinense, caixa sem

identificação.

JORNAIS

Jornal República, nº 20, 24/01/1899.

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ANEXOS

Anexo 1 – Fotografia do 14º Batalhão de Caçadores, local em que ocorreu o

crime cometido por Célia.

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Anexo 2 – Capa do Processo Criminal de Virgílio João de Oliveira

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Anexo 3 – Capa do Inquérito Policial de Célia da Luz Simões

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Anexo 4 – Denúncia do Promotor Público no Processo de Virgílio

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Anexo 5 – Denúncia do promotor público no Inquérito de Célia