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    "A POLTICA "

    IntroduoConsiderado por alguns como o maior pensador de todos os tempos,Aristteles nasceu no ano de 385 a.C., em Estagiros, pequena cidade daTrcia, fundada por colonos gregos. Nicmaco, seu pai, era mdicopessoal do rei Amintas II e consideravam-no como um dos homens maissbios e cultos na profisso. natural que Aristteles dele tenhaherdado no apenas alguns conhecimentos de medicina mas tambm ogosto pela observao direta das coisas que evidencia nas suas obras.Seguiu em Atenas as lies de Plato na Academia. Afastou-se noentanto do mestre para seguir o seu prprio caminho. Ficou clebre a

    frase que se lhe atribui a justificar a ruptura: "Sou amigo de Plato, masainda mais da verdade". Alis, quando, mais tarde, j preceptor deAlexandre, foi por este interrogado sobre quem tinham sido os seusmestres, pde responder com certo orgulho: "Foram as prprias coisasque me instruram e nunca me ensinaram a mentir". enorme a obraque nos legou e em que se condensa praticamente todo o saber humanodo seu tempo. Ao analis-la, no se pode deixar de ficar impressionadocom a vastido enciclopdica dos seus conhecimentos, com o seu rigorlgico e a sua profundidade metafsica, que fizeram que os historiadoresda cultura pudessem falar de um "milagre grego". Tratado da Poltica uma das obras que nos do bem a medida do gnio de Aristteles, quenela no s esboa uma filosofia sistemtica do Estado, mas lanatambm as bases daquilo a que hoje chamamos o Direito Constitucional,encarado j nos seus vrios aspectos: histrico, nacional, geral ecomparado.

    1. A obra

    A Poltica de Aristteles, embora talvez surpreendentemente, um dosgrandes clssicos da filosofia poltica, e em que pulsa o gnio aristotlicoda apreenso global de uma realidade. Adquiriu esse estatuto apesar deser um texto incompleto e provisrio, com imperfeies, repeties eremisses obscuras, e redigido a partir de uma primeira versodestinada ao ensino oral. Mas foi nesta sua obra genuna que o filsofoverteu o essencial de mais de quarenta anos de investigaes querepercutem a sua concepo ampla de cincia poltica como filosofia dascoisas humanas.

    O estatuto da Poltica surpreende menos se pensarmos que as propostas

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    que nela emergem so a culminncia de investigaes presentes emobras, entretanto perdidas e noutras que permaneceram. Entre as obrasperdidas relevantes contam-se os quatro livros Da Justia e os doissobre o Poltico, sugeridos pelos dilogos de Plato; os tratadosAlexandre ou a colonizao e o Da Monarquia, preciosos para avaliar

    melhor a relao do autor com Alexandre Magno, e a desconfianaperante a criao de uma monarquia mundial, das 158 constituies domundo helnicas, recolhidas pelos discpulos do Liceu, perderam-setodas exceto a Constituio de Atenas, escrita pelo punho de Aristteles,possivelmente como modelo de redao do corpus. Por outro lado, aPoltica pode, e deve ser comparada, com obras que permaneceram eque expem o papel arquitetnico da cincia poltica no conjunto dosaber, tais como a Metafsica e o conjunto das ticas (a Nicmaco, aEudemo e Magna Moralia), remanescentes de tratados (como oProtrptico) e correspondncia vria.

    Tal como chegou at ns pela tradio manuscrita, a Poltica, mais queum tratado, uma coleo de formulaes, destinadas a servir de base exposio oral. A crtica minuciosa - e em curso - estabeleceuindubitavelmente que os oito livros da Poltica no resultaram de umimpulso criativo nico. Aristteles foi membro da Academia Platnicadesde 367 a. C., quando com dezessete anos chegou a Atenas vindo dalongnqua cidade natal de Estagira, at morte de Plato em 348 a.C.Aps ensinar trs anos em Assos e dois em Mitilene, foi tutor do prncipeAlexandre. Regressado a Atenas em 335 a.C. a criou, e ensinou, noLiceu. Abandonou a cidade em 323.C. "para evitar um segundo crime

    contra a filosofia", e morreu o ano seguinte em Calcis, na ilha de Eubeia.Nos trinta anos que decorrem entre os primeiros e os ltimos livros, odiscurso reflete a tenso entre duas orientaes, a um tempodivergentes e conciliantes, das investigaes de Aristteles: asexperincias da vida criativa racional, inculcadas pela Academiaplatnica, e o estudo da multiplicidade das manifestaes do ser. Empoltica, tratava-se de confrontar o bem supremo com os regimes dacidade-estado que estava a ser ultrapassada pela monarquia mundial.

    Tratando-se de obra no sistemtica, e sem o fulgor imaginativo dasconstrues platnicas que tanto impressionaram autores como Ccero e

    Agostinho, apagou-se a repercusso imediata da Poltica no mundoantigo - uma vez extinta a palavra que a animava - at a tradiohermenutica a reavivar. A partir do comentrio de Andrnico de Rodes,undcimo escolarca do Liceu, no sc. I a.C., e em particular docomentrio de Alexandre de Afrodsias no final do sc. II d.C.,Aristteles tornou-se a base de todas as escolas de filosofia poltica nomundo inter cultural da Idade Mdia - rabe, judaica e crist; a polis odomnio de atualizao da natureza humana; para a compreender temos

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    que compreender a natureza do homem que a forma. Os grandesmedievais como Avicena, Averres, Maimnides, Joo de Salisbria,Marslio de Pdua e, sobretudo, Toms de Aquino, iniciaram aquiperspectivas inovadoras.

    A recepo escolstica criou a impresso de um pensador sistemtico,impresso reforada pelos humanistas do sc. XVI que exageraram adissociao entre Aristteles e Plato. Aps o eclipse iluminista doaristotelismo, esse preconceito assumiu a forma de crena num autorque se libertara das dependncias idealistas platonizantes. A situaoagravou-se com tradues infiis da Poltica que visaria estudar o"estado ideal", dois anacronismos que, juntos, so muito perigosos. Oshistoriadores da filosofia especularam sobre a eventual evoluo dojovem Aristteles, para o realismo da maturidade que ultrapassaria oidealismo platnico inicial; quando idealismo e realismo comoconcepes sistemticas da filosofia fizeram o seu caminho at edio,

    a tradio romntica oitocentista chegou a reordenar a Poltica, numapretensa seqncia prstina dos tratados. Entretanto, a confusoideolgica persistente do sc. XX apresentou leituras diversas econtraditrias da obra: Aristteles foi apodado de liberal, conservador,fascista, monrquico, republicano, defensor da classe mdia, defensorda aristocracia, xenfobo, e democrtico. No ser difcil ao sc. XXIfazer melhor.

    Como regra geral, a simples leitura dos textos originais desfaz a maiorparte dos equvocos hermenuticas. A Poltica uma obra unitria naqual convergem oito tratados relativamente independentes cuja dataoaproximada e concatenao ficaram estabelecidas na interpretaoclssica de Werner Jaeger, de 1928. No essencial, a seqncia dos oitolivros foi determinada pelo prprio Aristteles no pargrafo final da ticaa Nicmaco: "Primeiro, procuraremos rever o que foi dito pelos nossospredecessores que investigaram este assunto. Depois, com base nanossa recolha de constituies, consideraremos o que preserva e o quedestri as cidades bem como as respectivas constituies e quais so ascausas de que umas sejam bem governadas e outras no. Estudadasestas questes, podemos compreender melhor qual a melhorconstituio, como cada uma deve ser ordenada e de que leis e

    costumes carece".Se respeitarmos esta inteno, tornam-se mais claros os arranjossucessivos introduzidos na Poltica. Na forma atual, resulta de doisestratos cronologicamente distintos. No mais antigo, formado pelosLivros II, III, VII e VIII, transparece a preocupao de descrever omelhor regime de acordo com critrios derivados de consideraes sobreo bem. A melhor cidade ser aquela em que for possvel a felicidade

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    obtida pela vida criativa da razo. felicidade individual devecorresponder a cidade feliz. Nesta problemtica platnica, Aristtelesintroduz a nova metodologia: em vez da construo discursiva de umacidade paradigmtica que no existe na histria, surge a tenso entre oscritrios da cidade melhor e os regimes polticos atualmente existentes;

    a forma da cidade melhor tem que ser procurada na experincia polticaimanente.

    Esta linha de investigao, que ocupou longamente Aristteles e osdiscpulos do Liceu est na base do segundo estrato de livros: oinventrio dos regimes permite apurar as condies limitadoras da aopoltica e as possibilidades de aperfeioar a legislao. Os livros IV, V eVI descrevem os regimes constitucionais do mundo helnico, com baseno imenso material recolhido. De forma por vezes prolixa, acumulam-sedetalhes sobre os regimes de cidades e colnias da pennsula Grega,sia Menor, Magna Grcia, e bacia do Mediterrneo. Pormenores como a

    referncia ao assassinato de Filipe da Macednia em 336 a.C., emAtenas, ajuda a datar este segundo conjunto de livros. possvel que olivro V - sobre as revolues - seja uma interposio posterior entre o IVe o VI. Com a redao do livro I como introduo geral, ficou completo otratado da Poltica, designado por acromtico, ou esotrico, por ser paraensino oral e que comporta os oito livros seguintes: I - A natureza dacidade e os seus elementos; II - A crtica das constituies; III - A teoriada cidadania e tipos de regime; IV - A pluralidade de regimesconstitucionais; V - A teoria das revolues; VI - Democracias eoligarquias; VII - A felicidade e o regime melhor; VIII - A educao dos

    jovens.

    2. A natureza da cidade

    A finalidade da obra introduzida pela considerao de que cada cidade uma comunidade poltica estabelecida em ordem a um bem. A cidadevisa o bem maior porque abrange outras comunidades menores eporque possui uma auto-suficincia que as comunidades maiores noalcanam. A metodologia utilizada a de anlises e snteses sucessivasque, tomadas isoladamente, aparecem como outras tantas

    simplificaes e complicaes mas que, vistas em conjunto, compemum puzzle intelectual cujo desenho sugerido pela finalidade presenteem cada pea.

    A primeira anlise aborda as partes estticas da comunidade poltica. Acomponente inicial a famlia ou casa com as relaes entre marido eesposa, pais e filhos, senhores e servos. A sua finalidade satisfazer ascarncias elementares quotidianas. A aldeia resulta da reunio de vrias

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    famlias ou casas; regida por modelos derivados do poder paterno esatisfaz carncias mais complexas. A cidade, enfim, resulta daassociao de vrias freguesias, e uma comunidade superior queconstitui o fim por natureza para o qual tendem as anterioresassociaes; caracteriza-se pela auto-suficincia e por promover uma

    vida boa; possui um poder poltico, (e j no paternal), cuja naturezavisa libertar o indivduo dos modos deficientes e incompletos deassociao, abaixo ou acima do nvel de plena realizao da polis. Apoltica libertadora, contexto que surge a mais clebre das frmulas daobra: "o homem , por natureza, um ser vivo poltico.

    As categorias deste prtico da obra - natureza, finalidade, felicidade,bem, homem, cidade, ser vivo - tocam o centro da filosofia deAristteles. Uma das maneiras de aceder ao centro, seguir odesenrolar da teorizao do processo de busca do fundamento nas obrasde Aristteles. Se considerarmos o termo para expressar o fundamento

    procurado, necessitamos de categorias causais, ou etiolgicas paraabordar a vida poltica. Se privilegiarmos a finalidade, carecemos decategorias teleolgicas; se for arch, de categorias arqueolgicas doprincpio. Mas quer abordemos a existncia do homem polticoprocurando causas, princpios, ou finalidades, deparamo-nos semprecom o fundamento de que participa a razo humana.

    necessrio ter presente esta perspectiva global de Aristteles; anatureza de qualquer realidade seja criatura viva, instrumento oucomunidade, deve ser procurada num fundamento, apresentado comocausa, princpio ou finalidade. A natureza do indivduo humano s realizvel atravs da comunidade social e poltica. O indivduo isoladotorna-se insocivel e apoltico, comportando-se "como um deus ou umabesta". A polis , em parte, um processo biolgico, em parte umprocesso da liberdade humana. O homem no um animal gregrio,mas um animal poltico porque a comunidade assenta no discernimentodo bem e do mal. E ao afirmar que "quem primeiro a estabeleceu foicausa de grandes benefcios", Aristteles situa a evoluo da cidade noquadro da histria. O impulso inicial do fundador e o processo poltico dolegislador so to decisivos quanto o processo orgnico de crescimentoda cidade. A metafsica das causas, dos princpios e das finalidades no

    impede a livre interveno do sujeito humano.Na anlise inicial da seqncia casa-aldeia-cidade, Aristteles anuncia ainteno de analisar as componentes da cidade segundo as relaesentre marido e esposa, pais e filhos, senhores e servos, mas restringe-se a estas ltimas. Aristteles aceita a escravatura e considera-a mesmodesejvel para os que so escravos por natureza. Desde o nascimento,uns esto destinados por natureza a serem regidos, outros a reger; uns

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    nascem livres, outros so escravos por natureza. Condena, porm, aexistncia de escravos por conveno, resultantes de contrato ouconquista. Justifica a escravatura natural pela suposta incapacidade decertos homens se governarem a si mesmos; os escravos por naturezadevem submeter-se ao governo do senhor no interesse deste e de si

    prprios. Contudo, o poder conferido pela fora no confere o direito deescravizar prisioneiros de guerra, e menos ainda lcito escravizarGregos; o povo helnico , por natureza, livre. Em paralelo comafirmaes anteriores da tica a Nicmaco (EN,1161b3) alega ainda anecessidade econmica: o escravo um "instrumento animado" quemaneja instrumentos inanimados.

    Tais afirmaes sobre a escravatura so chocantes e mesmo indignas,na medida em que pretendem conciliar a existncia da escravatura comuma idia de natureza humana universal; noutros tempos, foramaproveitadas como justificao poltica. E, contudo, no nos podemos

    permitir ser sentimentais neste tema. A categoria social de escravatura recorrente na histria; a ausncia de liberdades (de circulao, deopinio, de reunio, de escolha) nos pases comunistas antes de 1989,convertia a esmagadora maioria dos habitantes em escravos porconveno. Convm, ainda, assinalar que a condenao tica do escravopor conveno e a aceitao do escravo por natureza era um dilemasignificativo para o Aristteles que, por testamento, libertou os seusprprios escravos.

    A problemtica inovadora da economia no Livro I, tem por objeto ariqueza domstica embora os preceitos da "lei ou administrao dacasa", tambm se apliquem cidade, pois se dirigem ao pai de famlia eao poltico. A economia destina-se a produzir bens de consumo prprio;a crematstica, ocupar-se de trocas por dinheiro, proporciona bens comvista ao lucro, exige a criao de dinheiro e funda-se na conveninciaem facilitar as trocas. A forma de aquisio econmica de riquezaconsiste em obter os bens necessrios vida com moderao esobriedade. Mas se a economia tem um limite porque o seu fim no aquisio ilimitada, j a aquisio crematstica de bens especulao.Surpreende esta avaliao moral da economia, decerto no estrecordado dos motivos que levaram Adam Smith a investigar os meios

    de riqueza das naes em ordem a estabelecer os fins da economia,nem do debate, nas religies crist, islmica e judaica, sobre o sentidoda atividade econmica.

    O Livro II da Poltica transita da natureza esttica da cidade para a suaatualizao, apreciando programas visionrios e constituies. Surge agrande crtica a Plato, bem como a Fleas de Calcednia e Hipodamode Mileto; a avaliao dos regimes de Esparta, Creta e Cartago e das

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    legislaes de Slon, Filolau, Carondas e Ptaco. Atravs das liesderivadas de crticas e encmios vrios, Aristteles insiste numproblema muito claro: os habitantes da cidade tm que possuir umacerta unidade. Mas qual? E quanta? E como? O problema terico sabero que deve ser possudo em comum; se todas as coisas, se nenhumas,

    se algumas. O mnimo comum imediatamente aceitvel o territrio. Omximo comum, a ser liminarmente rejeitado, seria a posse comum debens, mulheres e filhos como surge na intrigante proposta da Repblicade Plato.

    A demorada crtica a Plato pode suscitar a impresso de uma oposioao platonismo; no o caso num discpulo da Academia que continua oessencial do platonismo. A primeira crtica contra a comunidadesomtica de mulheres e filhos realizada em nome da liberdade. Oexcesso de unidade liquidaria a cidade, dependente da ao individualdos seus membros. "A igualdade na reciprocidade a salvaguarda das

    cidades, tal como j foi referido na tica, j que isto tem que ocorrerentre indivduos livres e iguais".

    Outra razo para recusar a uniformizao a teoria da amizade, a foraviva de cada sociedade. A amizade, tambm pode ter a conotao deamor e comunicao, a substncia do relacionamento humano e adinmica de todas as relaes sociais durveis, e de onde os governosretiram estabilidade. "Acreditamos que a amizade o maior dos benspara as cidades". Cada indivduo apresenta-se como o centro de umarede de relaes diversificadas. Se nada existe para preencher essasrelaes, a cidade perde capacidades. Ora a comunitarizao dasrelaes sexuais faz desaparecer o relacionamento saudvel de pais efilhos, e as excelncias humanas que eles geram.

    O terceiro argumento em prol do que chamaramos, segundo Bergson,"sociedade aberta" o da propriedade. "Existem duas coisas que fazemcom que os seres humanos sintam solicitude e amizade exclusiva: apropriedade e a afeio". A propriedade comum dos bens contrria aoamor prprio que irradia da individualidade para a propriedade privada.A regulamentao da propriedade deve permitir a cada um dispor deuma esfera de ao individual, sendo a desregulamentao a causa da

    maior parte das revolues. Este ponto tem conseqnciasprogramticas evidentes. As causas das revolues no residem naexistncia de propriedade privada mas no apetite ilimitado de riquezas,que deve ser "domesticado" pela educao.

    O conjunto das crticas comunidade que Scrates descreve naRepblica bem indicativo do realismo de Aristteles. "Cada um podeimaginar hipteses, mas deve evitar o impossvel.". Esta impossibilidade

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    no reside na descrio platnica da natureza do homem nem nosistema educativo proposto, mas precisamente nos meios imaginadospor Plato que indicam falta de confiana no processo educativo e umradicalismo insustentvel nas instituies. O excesso de uniformizaoda sociedade destri a capacidade de atualizar as potencialidades

    humanas atravs da livre realizao do bem.

    3. A forma da cidade

    O Livro III sobre a teoria da cidadania o centro de gravidade daPoltica. Na verso original, corresponderia ao primeiro tratado; naforma definitiva da obra, esta investigao sobre o domnio de ao dolegislador, mediadora entre a introduo natureza da cidade, noslivros I e II, e as aplicaes legislativas nos Livros IV, V e VI.

    Aristteles introduz agora a cidade como um composto, uma multidodiversificada, de que cada cidado uma parte. A cidade por Alm danatureza da cidade, o legislador tem que conhecer a politeia, (regime,constituio, ordem constitucional, forma de governo, regimeconstitucional). Se a unidade poltica fosse apenas o resultado de umprocesso biolgico, o terico apenas teria que relatar o processo decrescimento, saudvel ou doentio, e de corrupo. Mas a cidade-estadotambm resulta dos atos libertadores dos fundadores originais e dosfundadores permanentes que so os legisladores e os governantes, e oscidados que participam na vida poltica.

    A comunidade de cidados comparada a uma comunidade demarinheiros numa embarcao. Em ambas ocorre uma diviso defunes, cuja combinao de dinamismo e ordem necessria segurana na viagem. Analogamente, os cidados, embora desiguais,tm como tarefa comum a segurana da comunidade.

    Quanto pergunta sobre o que um cidado, Aristteles procede poreliminao de critrios. A residncia no territrio critrio insuficienteporque estrangeiros e escravos tambm a podem possuir. O direito deprocessar e ser processado judicialmente so insuficientes; pode serassegurado a estrangeiros mediante tratado. A descendncia materna

    ou paterna tambm no basta; coloca um problema de regressus adinfinitum; e os fundadores da cidade acabariam por no se enquadrar nocritrio. Assim, cidado , verdadeiramente, o que participa na vidapoltica, atravs de funes deliberativas ou judiciais; e designa-se porcidade a multido de tais cidados em nmero suficiente para alcanar aautarquia. Seguindo a concepo misgina corrente no mundo helnico,Aristteles exclui da cidadania as mulheres, as crianas, os ancios queultrapassaram um limite de idade, os estrangeiros residentes (metecos)

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    e os escravos. Esta listagem de excluses mostra que Aristteles temdificuldades em criar um critrio de cidadania. Alis, acaba por admitirque a ascendncia por via paterna importante para se ser cidado. Aresposta no teoricamente muito satisfatria, nem talvez fossepretendida como tal. Aristteles descobriu que, em cincia poltica, a

    noo de perfeio singularmente vazia, sendo mais importanteinvestigar de que modo a natureza comum do poltico se atualiza demodo diferente nas inmeras variantes constitucionais.

    Esta nova problemtica da tenso entre natureza da cidade e forma dosregimes polticos a resposta terica aos materiais de 158 constituieshelnicas. Em vez de procurar fazer coincidir natureza e forma paraobter uma "cidade ideal" - desejvel, mas impossvel de estabelecer -Aristteles verifica que as imperfeies dos regimes resultam da falta deprotagonismo dos cidados livres e iguais que deveriam constituir ogrupo predominante na vida poltica.

    Esta preocupao tica e poltica, e mesmo esttica e religiosa,segundo os significados modernos dos termos. Se diferentes tiposhumanos buscam a felicidade de diversos modos, forosamentepossuem diferentes formas de governo. Cada polis uma multido comtipos humanos extremamente diversificados; segundo Aristtelesapenas um pequeno grupo de indivduos responsveis (insistentementedesignados por spoudaoi) atingir uma estatura moral completa ouperfeita; outros sero bons cidados, sem serem forosamente homensde bem: outros nem possuem os requisitos necessrios para acidadania, tal como os metecos. No grau inferior desta escala estaro osescravos por natureza. E a escala ainda mais complicada devido ainterferncias de sexo, idade, profisso, posio econmica e destinopessoal, condies da sociedade e da civilizao e fatores geogrficos etnicos. A variedade de tipos humanos resultante enorme e mostra-nos uma sociedade pluralista. Para efeitos de descrio, podemosconcentrar-nos nos dois plos opostos desta escala social: o indivduoresponsvel e o escravo (spoudaios e doulos).

    Aristteles est consciente de uma aporia. Como pode a diferena detipos humanos reconciliar-se com a idia de unidade da natureza

    humana? Tendo o escravo a capacidade de virtude, como se distinguirdo homem livre? E se humano, como pode deixar de ter razo? A suasoluo reside na descrio de caracteres em termos de predominnciade um dos componentes. A diferena entre seres humanos de espcie,e no de grau nem de gnero. Aristteles sustenta a igualdade danatureza humana, a par de diferenas de personalidade. A desigualdadeevidente entre homem livre e escravo no significa uma diferena denatureza. A natureza idntica para todos devido razo, mas a

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    disposio interna desta extraordinariamente diversa. O escravo pornatureza um caso de mximo afastamento das virtudes dianoticas eticas, e na mente misgina de Aristteles, tambm as mulheres ecrianas se afastam desta culminncia.

    Quanto ao homem bom (spoudaios), Aristteles segue a mesmametodologia de descrio do carter em termos de predominncia deum dos trs componentes da alma: desejo, vontade e razo. Em tica aNicmaco, definira os trs tipos de busca da felicidade que secaracterizam pela predominncia respectiva do desejo, da ao e dacontemplao criadora por parte do intelecto ativo do ser humano. Nascorrentes filosficas da poca e na Academia em particular, existiam aspresses para desvalorizar a vida do desejo e para o filsofo se retirarda vida poltica. Era o que se verificava nas propostas de cnicos,cirenaicos e megricos e no posterior sucesso das correntes estico eepicurista. Mas, sem abdicar do primado da razo - cientfica, artstica e

    mstica - Aristteles resolutamente a favor da vida poltica, ou vidaativa, como meio de alcanar a felicidade.

    A cidade no existe apenas para viver; justifica-se se proporcionar umavida do bem; caso contrrio tambm poderia existir uma cidade deescravos, ou de animais. Quando um grupo realiza a excelnciahumana, deve tornar-se representativo da cidade e criar um regimepoltico em que conflua a natureza e a melhor forma. O melhor regimeser aquele em que o grupo governante exibir a excelncia humana, emparticular as virtudes ticas e dianoticas em vrios graus deatualizao. A eudaimonia ser alcanada mediante a vida ativaproporcionada pelas virtudes dianoticas.

    Uma interpretao moralista diria que o fim do governo tornar oshomens virtuosos, subordinando a poltica tica. Mas pelo contrrio,para Aristteles, a cincia poltica, a cincia da conduta do homem emsociedade que engloba a tica, cincia da conduta individual do homemformado pelo nous. A Poltica de Aristteles resume os preceitosfinalistas e eudemonista da sua tica: "Todos aspiram a viver bem e felicidade. Toda a ao humana est orientada para o bem e para afelicidade que se define como criatividade da alma dirigida pela virtude

    perfeita. A virtude mais humana consiste na busca do bem e dafelicidade".

    O homem atinge a felicidade atravs da virtude. Mas uma vez que asexcelncias ou virtudes humanas apenas so realizveis na esfera dasociedade poltica, a cidade tem que preocupar com a virtude. A cidadeno apenas uma comunidade de lugar, nem um recinto amuralhadocujo fim seja evitar a injustia e facilitar as trocas comerciais. O fim da

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    comunidade poltica assegurar aos cidados a vida boa. A vida boa conforme a virtude, "No s se associam os homens para viver, senopara viver bem caso contrrio haveria cidades de escravos e de animais.E isto impossvel porque estes no participam da felicidade". Por "vidaboa" no se deve entender abundncia de bens materiais que

    caracteriza o que correntemente se chama a sociedade de consumo, oumais vulgarmente, a boa vida. Os elementos apresentados sublinhamque para viver bem "a cidade uma comunidade de homens livres".

    Apesar de tudo, estas respostas parecem demasiado tericas pararesolver os problemas da vida poltica. Aristteles tinha outrasconcluses disponveis para os seus silogismos, se escolhesse outrostermos mdios. Poderia, por exemplo, ter concebido um modo deexistncia semelhante ao das comunidades religiosas rficas ou dasescolas filosficas, que estavam a iniciar processos semelhantes ao queo cristianismo designaria por santificao da vida. Mas, alm do

    anacronismo, tais propostas seriam consideradas perigosamenteapolticas por Aristteles.

    Uma segunda possibilidade seria conceber a cidade-estado segundo omodelo da monarquia mundial presente na formao do impriohelnico, sob a hegemonia da Macednia. Que sucederia se aparecesseum indivduo ou um grupo de indivduos superiores pelas virtudes?Aristteles indica que se um homem destacasse acima de todos osoutros, no deveria ser tratados segundo as regras correntes; seria"como um deus entre os homens", passagem que alguns interpretamcomo referida a Alexandre Magno, embora nada no texto o sugira.Sabemos que Aristteles aprovava o plano de guerra defensiva deAlexandre, herdado de Filipe, contra as satrapias persas da sia Menor,a fim de preservar as cidades helnicas da zona. Mas discordou datransformao deste projeto em ofensiva para a conquista e criao deuma monarquia mundial. Tal imprio exigiria uma violncia ou noaprovava. Noutro contexto, referindo explicitamente a identidade dafelicidade com a atividade virtuosa, explora a hiptese de o podersupremo ser o mais excelente dos bens porquanto permite realizaraes nobres mas rejeita a hiptese: a excelncia inicial seria perdidacom a violncia exercida para obter o poder.

    A vida ativa da cidade helnica de homens livres , pois, o modelodefinitivo de existncia humana em sociedade. A antropologia e a ticaclarificaram o significado da felicidade na dimenso pessoal que assentano bem; analogamente, a melhor comunidade a que proporciona amelhor vida para o indivduo. A idia terica convertida em critriopara julgar a cidade e as categorias podem ser transferidas: o homemexcelente tem o seu paralelo na idade excelente; o homem feliz na

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    categorias em tpicos fora do mbito original, que a sua exposio omelhor guia de resoluo das dificuldades. Se as categorias foremaplicadas a uma polis, a politeia ser a forma e os cidados a matria?Todos, ento, devero ser cidados? Ou ss os que participam nogoverno e votao? Numa tirania ou oligarquia seria impossvel, porque

    os homens livres perdem o direito de votar ao contrrio do que sucedeem democracia. Admite que definir o cidado como o participante noprocesso de deciso s vale em democracia, mas no insiste demasiadoneste ponto. Quer reter o regime como a forma da cidade e os cidadoscomo matria. Mas surge, assim, o novo problema de uma cidademudar de identidade cada vez que muda de regime e o caso perturbadorde o homem de bem poder ser mau cidado ou o bom cidadocumpridor das leis, ser um indivduo moralmente detestvel. A tensoentre as exigncias da tica e da poltica tornava-se inconfortvel e aunidade da anlise tico-poltico ficaria destruda. Mas apesar de tudoisto, Aristteles no modificou o paradigma de anlise. Porqu? Quemotivos tinham para assim proceder?

    Aristteles estava consciente que o regime constitucional (politeia) nopode ser construdo como essncia ou forma da sociedade porque nopossui estatuto ontolgico prprio; apenas uma rede de instituiespolticas que existe no tempo histrico. Acresce que Aristteles expsclaramente que a forma poltica da cidade apenas uma fase de umciclo mais amplo constitudo por realeza, aristocracia, oligarquia, tiraniae democracia. A primeira exposio deste ciclo remonta a Herdoto;Plato conferiu-lhe um alcance geral para todas as cidades helnicas

    cujo decurso histrico se tornava assim uma unidade plausvel deinvestigao. Ademais, o mundo helnico como unidade de civilizaoprolongava-se no passado at aos Aqueus, tal como narrado na epopiada conquista de Tria, e at Creta, atravs dos mitos atenienses deTeseu. Finalmente, o futuro imediato do mundo helnico estavamarcado pela expanso Macednia e pela conquista da sia porAlexandre. A independncia das polis helnicas, comprometida pelaslongas guerras civis que se sucederam pica resistncia contra asinvases persas, desaparecera em virtude da unificao Macednia.

    Uma vez que estes dados eram bvios, preciso justificar por que razo

    Aristteles no investigou na Poltica a seqncia que conduzia desde oregime at ao ciclo poltico, nao helnica, histria grega e comparao entre civilizaes. A deciso de eleger a polis como a nicaunidade de inqurito depende do que lhe parecia relevante no seuconceito de cincia poltica e dentro da experincia helnica. Aristteles um filsofo: interessa-se pela estrutura e no pela histria dasociedade. Admite um modelo proveniente das investigaes histricas,mas insiste em articular a essncia da polis. Isso sustentvel, desde

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    que se admitam os pressupostos: a natureza do homem atualiza-seatravs do culto do bios theoretikos; a manifestao da humanidade dos possvel numa cidade-estado. Nenhum destes pressupostosaristotlicos hoje admissvel num quadro de referncias muito maisdiferenciado pelo cristianismo, pela modernidade, e tambm pelo

    anticristianismo e pela ps-modernidade.O erudito poderia ficaria satisfeito com este estado da questo; ofilsofo e o legislador no. Se a constituio perfeita realizvel, entoh todo o interesse em conhecer a estrutura emprica da cidade demodo nela realizar a ordem perfeita. Para reconstruir a sociedadepresente, exige-se o conhecimento da realidade poltica. E, contudo nose trata tanto da famigerada interveno do "realismo" de Aristteles asuprir um pretenso "idealismo"; precisamente a deciso terica deAristteles de cercear a investigao cidade-estado segundo anatureza, que o obriga a efetuar a anlise prtica da forma ou regime

    constitucional.

    5. A pluralidade dos regimes

    A partir do cap.6 do Livro III, introduzido o exame dos tipos de ordemconstitucional mediante uma nova definio de politeia: "Um regimepode ser definido como a organizao da cidade no que se refere adiversas magistraturas e, sobretudo, as magistraturas supremas; emqualquer cidade, o elemento supremo (kyrion) o governo, e o governo o prprio regime". A parte determinante numa democracia ser o

    povo, numa oligarquia o grupo dirigente, e assim sucessivamente. Umsegundo critrio de diferenciao entre regimes o interesse comum(sympheron): "os regimes que se propem atingir o interesse comumso retos, na perspectiva da justia absoluta; os que apenas atendemaos interesses dos governantes so defeituosos e todos eles desviadosdos regimes retos". Ao invs das constituies justas, as injustas apenasolham aos interesses particulares dos governantes.

    Da combinao destes dois princpios resulta a clebre classificao dosseis tipos de politeiai em duas sries de regimes justos e injustos.Aristteles est consciente das limitaes desta classificao jurdico-

    poltica de origem platnica, que no se coaduna realidade poltica ecorrige-o com a preocupao do concreto social e, especificamente,econmico. Em regra os ricos so poucos e os pobres muitos, sendo ademocracia e a oligarquia os dois regimes mais freqentes. Na prtica,existe um terceiro grupo de indivduos que intervm nos conflitospolticos - os virtuosos - sejam eles mais ricos ou mais pobres. Cada umdestes trs grupos funda a sua pretenso de governar a cidade num

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    critrio parcial de justia; os pobres falam em nome da liberdade, osricos devido posio econmica, os virtuosos pelo desempenho daexcelncia: inevitvel o conflito poltico entre estas pretenses.

    Mas perante interpretaes parciais, afinal o que a justia? Segundo

    Aristteles, consiste na igualdade de tratamento para os iguais e notratamento desigual para os que tm mritos desiguais. Quando umdestes princpios parciais de justia aplicado isoladamente, criaconflitos: os possuidores de riquezas tendem a generalizar a suadesigualdade relativa; os que so iguais em liberdade de nascimentogeneralizam esta sua caracterstica. O conflito decorrente entre ricos epobre no pode ser resolvido em favor exclusivo de uma das partes,nem minorado por uma soluo contratual. A viso ambiciosa deAristteles exige que a cidade seja mais do que uma associao fundadapara a segurana e defesa e para a troca de bens. A cidade umacomunidade de aldeias e de famlias, baseada na amizade entre seres

    humanos e a amizade apenas se alcana atravs da realizao dosupremo bem. A realizao de aes dignas na cidade exige aparticipao dos indivduos virtuosos; no um luxo; indispensvelpara contriburem com as excelncias de que a cidade carece. Afidelidade e a consistncia do mtodo de Aristteles pode ser bemapreciada nesta elevao do problema politolgico do conflito de classes- que ele reconhece - ao nvel da considerao ontolgica sobre os finsda existncia humana.

    Uma vez que no existe uma soluo final dos conflitos sociais, assolues possveis assentam no estabelecimento de uma ordem justa. Oque justo beneficia a cidade e cada cidado. "A justia prpria dacidade j que a justia a ordem da comunidade de cidados e consisteno discernimento do que justo". A justia deve presidir e regular asrelaes sociais entre os membros da cidade, de modo a conferirfundamento e coeso e vida social. A justia poltica (politikn dikaion)que prpria do homem articulado em sociedade tem dois aspectos: aobedincia s leis, s quais se deve ajustar a conduta dos cidados: e ocritrio de igualdade (isonomia) no para todos, seno para os iguais, jque a desigualdade parece justa, e , com efeito, no para todos, senopara os desiguais.

    Tal como a natureza impulsiona os seres humanos a agruparem-se emcomunidade, as leis (nmoi) fundamentais tambm possuem umaorigem na natureza. Aristteles distingue entre leis escritas (oi katagramata nomoi) visionadas e promulgadas pelo legislador; e leis noescritas ou consuetudinrias (kata to ethe); pronuncia-se pelasuperioridade das leis no escritas, mais seguras e fortes, porque afora da lei deriva do hbito e do costume e ganha vigor com o decorrer

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    do tempo (diachronon plethos) (II,8, 126920). A supremacia da leiresultante do tempo fonte de fora para a comunidade e deestabilidade da constituio. Por isso mesmo, melhor ser governadopor leis do que por homens, sempre sujeitos s paixes. Em termosatuais, estranhamos a referncia da desigualdade, mas notamos que a

    base de idia de justia a supremacia da lei, fundada na natureza.As dificuldades em encaixar estas novas peas de puzzle resolvidapela apresentao das formas de regime poltico como fases de umprocesso histrico. Surge, assim, a clebre anlise do ciclo das formaspolticas. A realeza surgiu como forma primitiva de governo quando umhomem preeminente em virtude impunha as suas qualidades defundador da cidade com proveito comum. Quando este governo virtuosofez crescer a prosperidade, surgiu um grupo de bares que noaceitavam submeter-se e que criaram uma repblica aristocrtica.Quando esta classe de aristocracia degenerou e enriqueceu a expensas

    da populao, surgiram oligarquias sem o sentido da honra. Aconcentrao da riqueza nas mos de um s indivduo gerou a tirania. Atirania, enfim, cedeu o lugar aos regimes dominados pela plebe urbana,massas de homens livres apenas no nome, mas sem a virtude desaberem governar em democracia. Alis, devido ao crescimentohistrico da massa populacional, a democracia tornou-se a nicaconstituio aceitvel na rea helnica.

    A apresentao dos tipos bsicos de regime, o conflito de classes sociaise o ciclo de evoluo dos regimes constituem trs variantes de anlisepoltica que, por comodidade, podemos designar de constitucional,sociolgica e histrica. Nenhuma delas suficiente. A classificaopoltico-jurdica de boas e ms constituies falha devido ao critrioinsuficiente da observncia das leis j que "as leis devem serestabelecidas de acordo com o regime"; "as leis devem ser feitassegundo a constituio e no a constituio segundo as leis". Uma vezque a constituio depende dos diversos grupos sociais, torna-senecessrio analisar o respectivo equilbrio de foras. Contudo,estabelecida a exigncia de equilbrio entre as pretenses de vriosgrupos para impedir a instabilidade e a revoluo, a anlise inconcludente porque no situa a evoluo da cidade. A classificao

    histrica acrescenta o ciclo poltico da evoluo provvel dos regimespolticos; mas evidente que o processo de deteriorao e corrupo davirtude dos fundadores pode - e deve - ser contrariado pela intervenojusta e oportuna dos legisladores.

    A estes trs princpios acrescentam-se outros tais como condiesgeogrficas, acidentes histricos, o carter e o nmero da populao.Atinge-se, assim, uma pluralidade de formas constitucionais que

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    ultrapassa em muito os seis originais, e que faz jus ao gnio aristotlicode inventariaro dos materiais empricos. Seria empobrecedor unificaros diversos tipos de anlise num s, ou eleger um como determinante.Uma vez mais assistimos ao trabalho da entelquia. Aristteles noarticula a finalidade para onde se encaminha a anlise porque isso seria

    antecipar indevidamente a contribuio das particularidadesinvestigadas, mas em por isso esse telos deixa de ficar patente eluminoso atravs dos dados aduzidos; neste caso, o espetculoaparentemente zoolgico da pluralidade de constituies que forma oobjeto da recolha pelo Liceu e de que os Livros IV, V e VI do umaanteviso.

    6. Os vrios regimes ideais

    A coexistncia de princpios gerais e materiais empricos exigem critrios

    de classificao. Como, por seu turno, estes critrios dependem deprincpios de apreciao do que melhor para a cidade, o problema doregime melhor no se pode reduzir a uma frmula poltica definitiva.Desta interao entre elementos paradigmticos e pragmticos quepercorre toda a obra, Aristteles extrai um programa muito claro, noincio do Livro IV. Compete cincia poltica examinar, sucessivamente,"a melhor forma de regime em absoluto"; a "forma melhor tendo emconta as circunstncias"; "a forma de regime que se estabelece segundoum pressuposto"; e "a forma de regime que melhor convm ao conjuntode todas as cidades".

    A fim de cumprir este ambicioso programa nos livros IV, V e VI quecorrespondem elaborao tardia da Poltica e ltima dcada da suavida, Aristteles introduz um novo mtodo analtico para distinguir maisdo que as seis formas de regime. Compara a cidade a um animal comvrios rgos, em nmero definido, mas formatos diversos.Analogamente, cada cidade possui conjuntos variveis de umdeterminado nmero de funes necessrias. As funes necessrias cidade so as de agricultores, trabalhadores manuais, mercadores,artesos, militares, juizes e membros da assemblia, magistrados, ericos proprietrios. Como so possveis diversas combinatrias destas

    funes, os nmeros de regimes a analisar muito extenso. Aps aintroduo do novo esquema abstrato, seguem-se consideraesconcretas. Em primeiro lugar, duas destas funes podem surgir nomesmo indivduo; possvel ser simultaneamente arteso e deliberados,guerreiro e magistrado: rico e pobre ao mesmo tempo que impossvel. Como riqueza e pobreza so as partes eminentes (malista)da cidade em relao a outras menos determinantes, oligarquia edemocracias tornam-se os regimes mais eminentes e em funo dos

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    quais todos os outros devem ser analisados. O debate sobre estes doisregimes ocupa a melhor parte do Livro IV e todo o Livro VI, emboratambm sejam tratadas as realezas, aristocracia, regime constitucional.Todo o Livro V estuda as revoltas e as revolues com o duplo objetivode conhecer o fenmeno revolucionrio e os meios de preservar a

    estabilidade. As revolues resultam do agravamento de incidentesmnimos. Entre as suas causas contam-se ressentimentos, insolncia,medo, desprezo, intriga, ao de demagogos; mas todas estas causas,algo psicolgicas, se deixam reconduzir desigualdade de condiessociais e parcialidade no exerccio da justia por parte dosgovernantes.

    "A melhor forma de regime em absoluto" apresentada atravs de umaredefinio do regime aristocrtico, j debatida no Livro III. O essencialda aristocracia a "identidade absoluta entre homem bom e bomcidado". Todos os regimes polticos se tornam deficientes relativamente

    aristocracia como a melhor constituio (orthotatos). Existe umapseudo-aristocracia em que a escolha segundo a riqueza ou onascimento substitui o critrio da meritocracia. Os regimes aristocrticosou permanecem pouco acessveis ou aproximam-se dos chamadosregimes constitucionais. Uma vez que, de acordo com os princpiosdesenvolvidos na tica, a vida feliz decorre conforme virtude, e avirtude um justo meio (mesotes). Segue-se que a melhor vida umamdia que cada indivduo possa atingir e o melhor regime deve refletiresta mediania.

    Tal regime que "melhor convm ao conjunto de todas as cidades"ajudaria a resolver os conflitos sociais entre ricos e pobres. Em todas ascidades encontramos um estrato social com uma quantidade mdia deposses. Se acrescentarmos que a riqueza excessiva gera a insolncia e apobreza gera a criminalidade e malcia; e que a amizade apenas cresceentre os que so iguais em qualidades; esto reunidos todos oselementos para o legislador confiar na classe mdia como o basto maisseguro da cidade. Mesmo que tenha de atuar num regime que no sejaimediatamente favorvel - oligrquico ou democrtico - o legisladorprocurar favorecer a classe mdia.

    Para Aristteles no se tratava apenas de uma recomendao terica;era um dado comprovado historicamente e com repercusso direta nasua vida. Na dcada iniciada em 350 a.C. Hermias de Atarneus elevara-se da condio humilde at situao de tirano, sob a proteo persa.Entrando em contacto com os platnicos Erasmo e Corisco da vizinhacidade de Scepsis, acabou por seguir-lhes o conselho, transformou oregime tirnico em moderado, concedendo liberdades classe mdia.Quando Aristteles saiu de Atenas em 347 a.C, dirigiu-se para Assos,

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    entretanto concedida aos conselheiros platnicos. A casou com Ptias,sobrinha e filha adotiva de Hermias. O xito deste levou a que vriascidades se submeteram e a esfera de influncia helnica na regioalargou-se, a ponto de os Persas se sentirem ameaados. Hermias foiatrado a uma armadilha em Susa e torturado para confessar os

    segredos de relaes diplomticas com a Macednia. Ddimo deixouregistradas as ltimas palavras do governante antes de ser crucificado."Digam aos meus amigos e companheiros (pros tous philous kaihetairous) que nada fiz que desmerecesse a filosofia", um breve, masgrandioso tributo. A autenticidade do episdio e a sua importnciadecisiva para Aristteles so comprovadas pelo hino Virtude quedepois, corajosamente, escreveu em Atenas, em tempos deimpopularidade da aliana Macednica, e em que revestem de formaspoticas estes fatos histricos bem conhecidos. As condies deAtarneus, contudo, eram excepcionais. Como a classe mdia pequena,impem-se as oligarquias e as democracias. Em parte nenhuma existem"cem homens bons e bem-nascidos" que possam executar a poltica demoderao que convm classe media. E a mais importanterecomendao pragmtica de Aristteles adquire o som mais de umlamento do que um programa.

    Os livros VII e VIII reafirmam que o melhor regime o que permite amais plena atualizao da natureza humana com estabilidade poltica.Aps breve exposio da teoria dos bens, da felicidade, das partes daalma, da auto-suficincia e de outros pontos de filosofia j referidos,Aristteles introduz o estudo inovador das choregiai, os condicionalismos

    materiais dentro dos quais o legislador deve agir. Se as condies depopulao, territrio, localizao e carter natural forem insatisfatrias partida - territrio e populao excessivas ou escassas, economiadesregulada, carter servil do povo - nem o melhor legislador pode agirbem. Deve procurar, pois, a quantidade de populao necessria auto-suficincia; territrio com autarquia agrcola e facilmente defensvel;localizao com proximidade ao mar mas no tanto que o influxo deestrangeiros atravs de porto descaracterize a cidade; quanto aocarter, o dos helenos parece ser o mais adequado.

    Para voltar a propor o melhor regime poltico, a polis redefinida como

    um conjunto (systasis) do qual nem todos os componentes soconsiderados partes, e embora todos sejam indispensveis suaexistncia. A cidade carece de quem a alimente, defenda, administre,governe, negocie. Mas como a cidade uma associao de indivduossemelhantes em busca da vida melhor, e como a atualizao danatureza humana no possvel para todos, nem todos podem partilharna associao de iguais. Na cidade melhor, os cidados membros daassociao governante devem ter o lazer necessrio para desempenhar

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    e o ponto de chegada: a poltica a atualizao da natureza humana.Pelo caminho, fica o campo extensssimo da ao humana, delimitadopela teoria antropolgica no incio da tica (Livro I) e pela descrio domelhor regime no final de Poltica. e cujo tratamento exige uma filosofiadas coisas humanas. O procedimento desta philosophia peri ta

    anthropina, descritivo e valorativo: para compreender a unidadepoltica da cidade-estado, preciso compreender o homem que dela fazparte; e se tivermos noo de atualizao da natureza humana podemoster critrios para julgar o valor da cidade-estado.

    Assim se compreende que o texto da Poltica que chegou posteridadeconstitua a segunda parte de uma cincia poltica (episteme politike)cuja primeira parte a tica. A tica estuda o que o bem supremo, apartir do conhecimento da natureza humana e procurando saber em queconsiste a felicidade (eudaimonia). A finalidade da cincia poltica estudar o bem humano na vida poltica a eudaimonia da polis mais

    completa que a do indivduo. Em paralelo com as finalidades ltimas davida humana - prazer, poder e razo - Aristteles distingue entrecincias tericas, ou sobre a razo; cincias produtivas que visam stcnicas de bem-estar; e cincias prticas entre as quais se contam aPoltica cujo objeto o interesse comum e governo da cidade; aEconomia, que cincia da administrao da casa e da famlia; e atica, que a cincia da conduta do indivduo formado. A cinciaprticas analisa desde a ao dos fundadores de cidade at anarquia demultido; desde a excelncia da razo at psicologia de massas,geridas atravs de desejo, temor e cupidez. E s hoje, numa poca de

    plena constituio das cincias humanas, podemos recuperar a evidenteuniversalidade do empreendimento aristotlico que lanou as bases doque chamamos Direito Constitucional, Economia, Teoria da Histria,Antropologia, Psicologia Social, Sociologia, Relaes Internacionais,Cincias Militares. Neste momento fundaste da filosofia prtica - acincia do agir pblico do homem ser racional (zoon noun echon) que serealiza na vida da cidade - a filosofia poltica ocupa o topo da hierarquiadas cincias prtica porque o seu objeto engloba todas as ordens sociaise atividades humanas e seus critrios servem para ler, avaliar einfluenciar a vida poltica.

    8. A presente edio

    A edio bilnge da Poltica era indispensvel para restituir Aristtelesao pensamento poltico portugus e lusfono, a fim de saber o que oEstagiarista efetivamente diz e no apenas do que fala.

    A traduo deve-se a Antnio Amaral, Universidade Catlica Portuguesa,

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    e Carlos Gomes, Universidade de Oxford, trabalho abnegado iniciado em1994, no mbito do GEPOLIS, da Universidade Catlica Portuguesa.

    O texto grego est conforme edio da Academia Borussica, de Berlim,realizada por I. Bekker, cujos volumes I e II apresentam o texto

    paginado em duas colunas, a e b. O volume V o Index Aristotelicus deH. Bonitz, Berlim, 1870. A sequncia dos livros foi respeitada, apesardas dificuldades debatidas em obras como a grande edio comentadade W. L Newman, The Politics of Aristotle, 4 vols, Oxford, 1887. Osttulos dos captulos seguem de perto as lies de Susemihl, 1 ed.,Leipzig, Teubner, 1872 e de O. Immisch, 1 ed., Leipzig, 1909. Foramainda consultadas edies bilingues mais modernas da Poltica: ainglesa, de W.D. Ross, Politica, Oxford, O.U.P., 1957; a francesa, de J.Aubonnet, Paris, Belles-Lettres, 1968 et sq.,; e a castelhana, de J.Maras e M. Araujo, Madrid, 1951. Na literatura copiosa e centenriasobre a Poltica de Aristteles, e que todos os anos se enriquece, de

    salientar um par de obras que realam a continuidade entre Plato eAristteles: E. Barker, The political thought of Plato and Aristotle, 1906;W. Ross, Aristotle, 1923; E. Voegelin, Plato and Aristotle, 1957; WernerJaeger, Aristotle: Fundamentals of the history of his development,Oxford, O.U.P., 2 ed, 1967.

    Enfim, a R.M. Rosado Fernandes, da Universidade Clssica, helenistadistinto, expressamos o nosso agrado pela reviso cientfica do textogrego e o prefcio oportunssimo que dignifica esta edio. A ManuelSilvestre agradecemos os ndices de conceitos e de nomes, e outrasdiligncias editoriais. A Joo Constncio, da Universidade Nova,agradecemos as facilidades concedidas para a obteno do texto grego.Enfim, uma palavra especial para o discernimento do editor, AssrioBacelar, e do diretor da coleo em que a presente obra editada, JooBettencourt da Cmara; em boa hora proporcionaram a restituio, aopatrimnio cultural portugus de uma obra que, de direito, j ointegrava.Bibliografia

    Leitura, resumo e retirada de tpicos:

    INTRODUO Poltica de Aristteles Edio Bilnge, Lisboa, VEGA,

    1998 pp.17-38 Mendo Castro Henriques.

    A Poltica de Aristteles, Texto integral, MARTIN CLARET, 2002 , TorrieriGuimares.