Apontamentos Para Uma Revisão Do Ensino a Partir Do Presente e Do Cotidiano
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Apontamentos para uma revisão do ensino a partir do presente e do cotidiano
Glauber Fonseca Silveira
Imagine-se o quanto o mundo mudou nas últimas décadas. E o quanto continua,
intensamente, em transformação. O crescimento vertiginoso e desigual das cidades, por
exemplo, que no Brasil a partir de 1980 ultrapassou pela primeira vez na história o
número de habitantes do campo será seguido pelo crescimento ainda mais veloz das
áreas de favelas. A abrangência com que as novas tecnologias permeiam o mundo da
vida tornando-a mais dispersa e acelerada tem também impactado diretamente a
percepção e a sensibilidade humana. Estas são apenas algumas das características da
sociedade brasileira atual. Se por um lado tratam-se de transformações que advém de
mudanças ocorridas nos homens do passado, elas são, por sua vez, pontos de partida
para novas transformações.
Em algum canto escondido desse novo mundo está a escola, buscando encontrar-se
e reinventar seu papel. Há que se considerar que a escola é por si só um grande universo
e sua função está além de apenas nivelar o conhecimento da população. A educação
mobiliza distintas estruturas existenciais do ser humano, como são, por exemplo, a
relação com a autoridade ou a convivência com diferenças sociais, raciais e sexuais. Por
isso a pedagogia precisa politizar-se, aliando-se contra a opressão e o autoritarismo,
reconhecendo a amplitude do papel que desempenha não apenas frente ao aluno, mas
também frente a coletividade em que se insere e os conflitos éticos e políticos por que
passam nosso mundo. Quanto ao trabalho mais propriamente didático, ao que vamos nos
ater no texto que se segue, um dos apontamentos que se costuma fazer para o difícil
trabalho de ensino e aprendizagem está a necessidade de dialogar com a realidade
concreta dos alunos. Esse será de fato nosso ponto de partida.
Porém, exatamente por causa da intensidade das transformações dos recursos
materiais e a inovação dos meios de produção, o cotidiano aparece cada vez mais imerso
numa sensação de complexidade insondável, de uma multiplicidade consternadora, de
sufocamento entre os signos mais diversos. Para além da crescente multiplicação dos
objetos ao redor acrescente-se que se multiplicam também as diferentes perspectivas por
que podem ser interpretados. O modelo de crescimento desequilibrado e exploratório de
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pessoas e de mercadorias no mundo atual tem resultado em alienação. Alienação do
trabalho, alienação do consumo, alienação do pensamento. Eis aí um fenômeno bastante
generalizado da nossa sociedade, inserida no sistema capitalista internacional como
economia periférica e dependente. Este fenômeno, como fato social que é, pode ser
encontrado tanto na relação professor-aluno com na relação patrão-empregado. Mas há
uma diferença. A aula é o momento reservado para se aprender exatamente sobre as
relações que constituem a natureza e o mundo, e isso tem impacto exponencial sobre
seus horizontes de vida, escapando inclusive ao que dele pretende o educador. De modo
que entre pesquisa e avaliação a escola pode, como poucas outras instituições, formar
cidadãos mais conscientes das necessidades e alternativas de nossas coletividades
humanas.
Frente a esses desmedidos desafios da atualidade consterna a magnificência do
trabalho da docência. Assombra tanto mais quando verificamos que apesar da sua
grandiosidade, o quanto é oprimida. A instituição escolar carece não apenas de um
constante arejamento de ideias, mas de sistematizar métodos para uma efetiva superação
dos arcaísmos das estruturas resistentemente sedimentadas na burocracia escolar.
É nesse sentido que nosso texto pretende contribuir, partindo de alguns relatos de
experiências de aulas, apresentar alguns tópicos que parecem ter dado boa orientação ao
planejamento. Não se trata aqui de oferecer um modelo de aulas para ser imitado, mas
apresentar nestas experiências, que de resto permaneceram fragmentárias, uma reflexão
sobre alguns princípios que poderiam informar nossa didática para que se possa ensinar
de maneira mais significativa e eficiente. O caráter incompleto do nosso relato está de
acordo com esse objetivo, já que o que mais nos interessa é avaliar alguns indicativos
que podem contribuir com a reorientação dos nossos trabalhos como professores. Parece
estar de acordo também com o estado do desenvolvimento didático, ainda tateando na
busca por atividades que concretamente renovem a educação.
Estes experimentos precisam ser contextualizados. Seu planejamento partiu da
avaliação que fazíamos de 2010 a 2014, em que trabalhando na EMEF Sebastião
Francisco, O Negro, na zona leste de São Paulo, avaliavamos as necessidades de
aprendizagem e estratégias possíveis para suprir com as demandas,tendo em vista que a
dificuldade de aprendizagem é apenas derivado de um sem número de outros problemas
que assolam à nossa comunidade. Nossa conclusão era, naquele momento, de que há
um grande descompasso entre as expectativas do ensino e a dinâmica das estruturas
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psicológicas concretas em que se movem os alunos. Buscamos, portanto, criar uma
organização didática que permitisse o quanto possível superar esta descontinuidade,
partindo de temas que reconectassem o aprendizado escolar com a vida cotidiana.
Demos crédito à hipótese de que todo estudo, toda ciência, no fundo toda palavra,
emerge das contradições vividas no presente. Sendo assim deveríamos fazer nossa
abordagem partir de elementos que no atual momento da história mobilizam as energias
das pessoas em geral, e dos nossos alunos em específico.
Quando perguntados a respeito das características mais marcantes do mundo em
que vivemos os alunos rapidamente apontavam pontos importantes: a presença da
tecnologia, sobretudo as mídias de comunicação, além de violência, drogas e os
modismos. Propusemos uma pergunta acerca da tecnologia presente no cotidiano.
Infinitas seriam as possibilidades de encaminhar tal assunto; partimos de um recorte
simples. Para conduzir um questionamento a bom termo é preciso um método. Montamos
um instrumento simples para que se fixasse e organizasse o pensamento, para gerar
dados que são a base do pensamento analítico e de toda ciência. Apresentamos 4
tabelas de apenas duas colunas em que de um lado se preencheria diversas marcas de
diferentes tipos de produtos – TV’s, computadores, celulares e automóveis – e o
correspondente país de origem da fabricação, como se vê exemplificado abaixo:
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TVs
Marca País de Fabricação
Automóveis
Marca País de Fabricação
O preenchimento das marcas de cada tipo de produto era feito por
indicações espontâneas dos alunos e seguido de um diálogo tanto quanto
livre acerca das possíveis diferenças entre eles, qualidade, estratégias de
comercio, propaganda, inserção no mercado, etc. O caráter prático do
tema se mostrou capaz de aproximar minimamente a instância do
professor e de seus alunos, pelo fato de falar-se de algo que toca a todos
horizontalmente. É preciso que se diga que em mais de um quesito se
pode verificar que o conhecimento dos alunos pode ultrapassar o do
professor, o que corrobora com essa aproximação.
Um experimento é sempre um risco, não se tem nele a acomodação
das formas; pode ser mais frustrante que a incessante repetição mecânica.
Mas, como sucesso ou como fracasso tem, pela sua condição de retomada
dos princípios educativos, a capacidade de sinalizar as deficiências e
potencialidades do grupo, gerando outros experimentos mais consistentes.
A resposta da turma é o indicativo determinante: seu envolvimento,
apreensão e como base de tudo isso, o prazer desperto no entendimento.
Nas sucessivas vezes que aplicamos tal atividade as diferentes turmas
responderam de modo muito positivo. Talvez a simplicidade da proposta
tivesse ido ao encontro de suas possibilidades, tenham encontrado nele
um desafio que dosava equilibradamente suas habilidades prévias e seu
potencial de criação. Posso supor também que o poder de agregação e
fascínio dos objetos propostos: carros, celulares, computadores, etc.
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transferiram parte de seu atrativo para o instrumento didático. O caso é
que foi suficientemente afirmativo o retorno dos alunos em termos de
interesse, concentração, empenho e diálogo, ainda que se tratasse até o
momento, apenas de listar e especular sobre marcas conhecidas de
objetos cotidianos. A montagem da primeira coluna nos permitia preparar
um ganho conceitual, como discutir o caráter empresarial dessas marcas,
seu modo de inserção no tipo de economia em que nossa sociedade se
encontra enredada. Isso se faz com perguntas possíveis ao tema, como
por exemplo: por que existem tão variadas marcas para fornecer um
mesmo produto? Por que razão lançam-se modelos novos, muitas vezes
sem tanta diferença prática, periodicamente? Como mudam a vida das
pessoas tais recursos tecnológicos? Qual o papel das propagandas no
consumo destes produtos? Como são vistos pela sociedade?
A segunda parte da aula era buscar apontar os países de origem, o
que demandava uma pesquisa igualmente simples na internet, o que foi
feito dividindo-os em grupos. Nesse processo, além das pequenas
descobertas e curiosidades que aparecem no caminho – e que são,
contudo, fatores determinantes no desenvolvimento das habilidades e no
interesse autônomo pelo estudo e pela pesquisa – temos também, no
preenchimento da segunda coluna, dados suficientes para extrair
conclusões sobre a configuração do mundo atual, no que diz respeito à
divisão internacional do trabalho, aos modos de produção de riquezas na
economia mundial e noções de geopolítica internacional.
Reunido os dados colhidos tratamos de elencar os paises mais
mencionados. Esse simples procedimento fez surgir diante dos olhos quais
são os países desenvolvidos e, por extensão os países periféricos. Situá-
los no globo terrestre nos ajudava a pontuar os blocos econômicos aos
quais os países têm se ligado e os diferentes modos pelos quais os paises
se inserem na economia mundial. Estes conteúdos surgem a partir de
perguntas que buscam nos situar na dinâmica do mundo, tais como: “e os
paises que não produzem tecnologias de ponta, o que produzem?”. “Qual
o lugar ocupado pelo Brasil nesse cenário?”
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A internacionalização da economia torna-se autoevidente nesse
instrumento, sua menção se faz necessária somente para consolidar
alguns conceitos como o da globalização, capitalismo, centro e periferia,
paises desenvolvidos e subdesenvolvidos, desenvolvimento dependente,
blocos econômicos, divisão internacional do trabalho e a nova ordem
mundial. Nesse ponto chegamos a um bom termo e a experiência, por
hora, se extinguiu.
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Replicando em outras turmas este trabalho fomos induzidos a criar
variantes que nos permitissem abordar questões distintas daquelas
apresentadas. Aproveitamos os indicativos que pareciam energizar a
proposta, a saber, tomar elementos do cotidiano para o estudo e tomar
deles questões ao mesmo tempo simples e sérias, vinculando-os tanto
quanto possível aos conteúdos escolares.
Nesse outro momento, razoavelmente distante no tempo, estávamos
incumbidos da tarefa de abordar mais de perto os recursos naturais dos
quais a humanidade se serve para a edificação da sociedade atual. Quem
poderia relatar com clareza quais são os recursos consumidos numa lata
de refrigerante, num móvel da sala ou nos cosméticos do dia-a-dia? A
concretude dos objetos que nos rodeiam estão submetidos a processos de
produção tão artificialmente complexos que podem ter se distanciado da
natureza a tal ponto de tornarem-se aparentemente insondáveis; ao passo
que os modos de produção ultra especializados nos distanciam tanto da
natureza quanto dos diferentes processos de produção existentes. O
resultado de tudo isso é que ficamos entregues às escolhas que norteiam
o processo produtivo, ficando sujeitos a todas as conseqüências inerentes
à maximização do lucro, uma vez que na maioria das vezes se
desconhecesse por completo não só os elementos presentes na produção
como suas conseqüências para o organismo ou a psique humana.
Partindo dessa preocupação e armados da estratégia relatada, nossa
aventura foi propor à turma, que diga-se de passagem não havia
conhecido a primeira proposta, a montagem de outra tabela. Dessa vez
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iniciamos pontuando sobre alguns produtos de uso doméstico e suas
marcas de comercialização. O objetivo era estimular uma reflexão acerca
da diferença substancial, mas entulhada na alienação, entre o que são os
produtos que consumimos e as empresas que a fabricam, rotulam com
suas marcas e põem em circulação. Sabemos que certos produtos foram
de tal modo absorvidos por suas marcas que não se lhes identifica em
primeiro lugar a substância, mas o fabricante. É o caso de dentro outros, a
coca-cola, o miojo, o bom-bril. O que são estes itens em si mesmos? Quais
são os diferentes fabricantes que o comercializam? De que , e como, são
fabricados? O diálogo inicial, um tanto livre sobre tais questões, nos
conduziu a uma adaptação do instrumento relatado na primeira parte,
demonstrando também que nem tão criativo se precisa ser. Neste caso
apresentávamos uma tabela que oscilou entre duas e três colunas. A
versão mais consistente tinha 3 níveis de informação, em que propusemos
à turma preencher a tabela abaixo sobre o produto, as diferentes marcas
de comercialização e sua composição:
Produtos Marcas fabricantes De que é feito
Qualy manteiga
Na tabela acima há uma das respostas que encontramos na folha de
exercício de um aluno. Há ali duas correções necessárias. A inversão da
marca com o produto e um erro de precisão quanto ao produto fabricado,
que trata-se de margarina e não de manteiga. Quando questionado a
respeito desse segundo ponto a resposta do aluno foi: “isso pra mim é a
mesma coisa”. Para demonstrar a diferença felizmente não precisei
responder diretamente. Pude contar com o mercadinho da professora
Elenice, montado para atender seus trabalhos de professora polivalente na
formação inicial. Esse mercadinho estava instalado num dos corredores da 7
escola e já havia chamado bastante a atenção dos alunos mais velhos,
pois via-se sempre eles por ali, organizando e desorganizando as
prateleiras. Para instigar a curiosidade deste aluno quanto a diferença em
questão pedi que trouxesse do mercadinho uma embalagem de margarina
e outra de manteiga para que se pudesse ler nos rótulos sobre seus
ingredientes. Se o pedido despertou o interesse de toda a turma, muito
mais provocou a chegada destes itens à sala. Esse curioso fator nos fez
perceber que estávamos diante de um poderoso instrumento didático:
potes vazios de itens alimentícios. A partir daí toda a pesquisa do “como é
feito”, da terceira coluna da tabela, foi conduzida retirando informações dos
variados itens do mercadinho. Enquanto a investigação se processava
ambos se ressignificavam: a aula deslocava os complexos objetos da zona
obscura para o âmbito do decifrável e compreensível ao mesmo tempo em
que a escola era também ressignificada, ao criar oportunidade de elucidar
o cotidiano em sua ignorância corriqueira.
A análise dos muitos rótulos que vieram ao nosso encontro traziam
sempre consigo outras questões que ajudavam a elucidar minimamente
falsas evidencias do cotidiano. Ao que parece o entulhamento de
informações em que vivemos faz-nos crer que sabemos demais, quando
na verdade desconhecemos até o que comemos. Poderá parecer simplório
abordar o que aqui expomos, mas ao nosso ver a problematização de
objetos evidentes do cotidiano se impunha como estratégia de ensino para
que se superasse o desligamento do intelecto com a realidade imediata do
mundo, permitindo que se criasse as bases de um pensamento coerente e
crítico que nos ponha a caminho da superação da alienação social tão
comum na dinâmica da nossa sociedade.
As comunidades escolares devem cuidar-se do vício de falar das
coisas como se não tivessem existência concreta, tratando-as com uma
neutralidade indiferente, como se não tivessem impactos na vida humana,
como se não moldassem nosso modo de ser, esvaziados de contradições
que são aquilo que alimentam nossa lida diária. Encarar os entes do
cotidiano em sua complexidade exige do educador uma reforma da
postura, devido exatamente ao vício da neutralização e esvaziamento do
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saber. É preciso para encará-lo em boa medida aventurar-se no
desconhecido e tornar a aula um momento de reflexão honesta, de
assumi-la como uma pesquisa pessoal pelo que é relevante e em que se
descobre junto aos alunos.
Para encerrar gostaríamos de dizer ainda que a simples definição que
foi lida nos rótulos sobre margarinas e manteigas não respondeu de todo a
questão. “Creme de leite e cloreto de sódio” por um lado, e “gordura
vegetal hidrogenada” por outro não se fizeram por si só evidentes. Foi
preciso explorar um pouco mais a imaginação para se desvendar as
origens das substâncias envolvidas, uma de origem animal a outra por
uma modificação na cadeia molecular de óleos vegetais, feito para
assemelhar-se à manteiga. Até aqui avançamos, mas embora divertido foi
pouco perto da clareira que se abriu. Não seria a escola um bom lugar
para se levar a sério o debate quanto à essas diferenças e tudo o mais que
está por trás das margarinas e manteigas que nas prateleiras dos
supermercados embotam nossos sentidos?
BIBLIOGRAFIA
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BAUDRILLARD, Jean. A Transparência do Mal: Ensaio sobre os
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2004
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença - o que o sentido não
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HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Ser e Tempo vol. I. Petrópolis: Editora
Vozes, 1993.
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