Apostila de Literatura - Colégios Nobel de... · Essa coisa é que é linda. Por isso escrevo em...

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Apostila de Literatura Material complementar

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Apostila de Literatura Material complementar

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Literatura – Prof. Fabrício César

Análise de textos do Gênero Lírico Autopsicografia O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração.

Fernando Pessoa Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação. Não uso o coração. Tudo o que sonho ou passo, O que me falha ou finda, É como que um terraço Sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda. Por isso escrevo em meio Do que não está ao pé, Livre do meu enleio, Sério do que não é, Sentir, sinta quem lê!

Fernando Pessoa O cravo brigou com a rosa O cravo brigou co’a rosa, Debaixo de uma sacada, O cravo saiu ferido, E a rosa despedaçada. O cravo ficou doente, A rosa foi visitar, O cravo teve um desmaio, E a rosa pôs-se a chorar.

A rosa fez serenata O cravo foi espiar E as flores fizeram festa Porque eles vão se casar.

Cantiga popular

A Árvore da Serra - As árvores, meu filho, não têm alma! E esta árvore me serve de empecilho... É preciso cortá-la, pois, meu filho, Para que eu tenha uma velhice calma! - Meu pai, por que sua ira não se acalma?! Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?! Deus pôs almas nos cedros... no junquilho... Esta árvore, meu pai, possui minh'alma! ... - Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa: "Não mate a árvore, pai, para que eu viva!" E quando a árvore, olhando a pátria serra, Caiu aos golpes do machado bronco, O moço triste se abraçou com o tronco E nunca mais se levantou da terra!

Augusto dos Anjos Contrabando Os alfandegueiros de Santos Examinaram minhas malas Minhas roupas Mas se esqueceram de ver Que eu trazia no coração Uma saudade feliz De Paris.

Oswald de Andrade

Na poça da rua O vira-lata Lambe a Lua.

Millôr Fernandes Amar é um elo Entre o azul E o amarelo

Paulo Leminski Os grilos cantam apenas do meu lado esquerdo estou ficando velho.

Paulo Franchetti

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Literatura – Prof. Fabrício César

Cantigas trovadorescas Cantigas de Amor Cantiga da Ribeirinha No mundo non me sei parelha, mentre me for como me vai, ca ja moiro por vós e ai! mia senhor branca e vermelha, queredes que vós retraia quando vos eu vi en saia. Mao día me levantei, que vos entón non vi fea! E, mia senhor, des aquelha me foi a mí mui mal di'ai!, E vós, filha de don Paai Moniz, e ben vos semelha d'haver eu por vós guarvaia, pois eu, mia senhor, d'alfaia nunca de vós houve nen hei valía d’ua correa.

Paio Soares de Taveirós Tradução da Cantiga da Ribeirinha No mundo ninguém se assemelha a mim enquanto a minha continuar como vai, porque morro por vós, e ai! minha senhora, de pele branca e faces rosadas, quereis que vos retrate quando vos vi sem manto. Maldito dia que me levantei que não vos vi feia! E, minha senhora, desde aquele dia, ai! Tudo me foi muito mal, e vós, filha de bom Pai Moniz, e bem vos parece de ter eu por vós guarvaia, pois eu, minha senhora, como mimo de vós nunca recebi algo, mesmo sem valor. Senhora minha, desde que vos vi, lutei para ocultar esta paixão que me tomou inteiro o coração; mas não o posso mais e decidi que saibam todos o meu grande amor, a tristeza que tenho, a imensa dor que sofro desde o dia em que vos vi.

Afonso Fernandes

Ai Deus, que grave coita de sofrer! Desejar mort'e haver a viver com'hoj'eu viv', e mui sen meu prazer. Con esta coita que me ven tanta, desejo mort'e quería morrer, porque se foi a Raínha franca!

[...]

Ai coitado, con quanto mal me ven, porque desejo mia morte, por én perdí o dormir e perdí o sén, e choro sempre quand'outren canta, e máis desejo morte doutra ren, porque se foi a Raínha franca!

Pero Garcia Burgalês Cantigas de Amigo - Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado! Ai Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amigo, aquel que mentiu do que pos comigo! Ai Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amado aquel que mentiu do que mi há jurado! Ai Deus, e u é? -Vós me preguntades polo voss'amigo, e eu ben vos digo que é san'e vivo. Ai Deus, e u é? Vós me preguntades polo voss'amado, e eu ben vos digo que é viv'e sano. Ai Deus, e u é? E eu ben vos digo que é san'e vivo e seerá vosc'ant'o prazo saído. Ai Deus, e u é? E eu ben vos digo que é viv'e sano e seerá vosc'ant'o prazo passado. Ai Deus, e u é?

Dom Dinis

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Literatura – Prof. Fabrício César

Cantigas de escárnio Ai, dona fea, fostes-vos queixar que vos nunca louv’en meu trobar mais ora quero fazer un cantar em que vos loarei toda via e vedes como vos quero loar dona fea, velha e sandia! Dona fea! se Deus me perdon! e pois havedes tan gran coraçon que vos eu loe, en esta razon, vos quero já loar toda via; e vedes qual será a loaçan: dona fea, velha e sandia! Dona fea, nunca vos eu loei em meu trobar, pero muito trobei; mais ora ja un bon cantar farei en que vos loarei toda via; e direi-vos como vos loarei: dona fea, velha e sandia!

Juan Garcia de Guilhade Roi Queimado morreu con amor en seus cantares, par Sancta Maria, por ũa dona que gran ben queria: e, por se meter por mais trobador, porque lhe ela non quis ben fazer, feze-s'el en seus cantares morrer, mais resurgiu depois ao tercer dia! Esto fez el por ũa senhor que quer gran ben, e mais vos en diria: por que cuida que faz i maestria, e nos cantares que faz, a sabor de morrer i e des i d'ar viver; esto faz el que x'o pode fazer, mais outr'omem per ren' nono faria. E non á já de sa morte pavor, senon sa morte mais la temeria, mais sabe ben, per sa sabedoria, que viverá, des quando morto for, e faz-[s'] en seu cantar morte prender, des i ar vive: vedes que poder que lhi Deus deu, mais que non cuidaria. E, se mi Deus a mim desse poder qual oj'el á, pois morrer, de viver, já mais morte nunca temeria.

Pero Garcia

Cantigas de maldizer Martim jogral, que defeita, sempre convosco se deita vossa mulher! Vedes-me andar suspirando; e vós deitado, gozando vossa mulher! Do meu mal não vos doeis; morro eu e vós fodeis vossa mulher!

Juan Garcia de Guilhade Ben me cuidei eu, María García, en outro dia, quando vos fodi, que me non partiss'eu de vós assi como me parti já, mão vazia, vel por serviço muito que vos fiz; que me non deste, como x'omen diz, sequer un soldo que ceass' un dia. Mais desta seerei eu escarmentado de nunca foder ja outra tal molher, se m'ant'algo na mão non poser, ca non hei por que foda endoado; e vós, se assí queredes foder, sabedes como: ide-o fazer con quen teverdes vistid'e calçado. Ca me non vistides nen me calçades nen ar sej'eu eno vosso casal, nen havedes sobre min poder tal por que vos foda, se me non pagades; ante mui ben e mais vos en direi: nulho medo, grad’a Deus e a el-Rei, non hei de força que me vós façades. E, mia dona, quen pregunta non erra; e vós, por Deus, mandade preguntar polos naturaes deste logar se foderan nunca en paz nen en guerra, ergo se foi por alg'ou por amor. Id'adubar vossa prol, ai, senhor, c'havedes, grad'a Deus, renda na terra.

Afonso Eanes do Coton

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Literatura – Prof. Fabrício César

Classicismo Português - Camões

Camões épico Segue abaixo um trecho do Canto II, da obra “Os Lusíadas”, no qual a deusa Vênus implora à Júpiter que ajude os Portugueses, visando protegê-los: “Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso Que, pera as cousas que eu do peito amasse, Te achasse brando, afabil e amoroso, Posto que a algum contrairo lhe pesasse; Mas, pois que contra mi te vejo iroso, Sem que to merecesse nem te errasse, Faça-se como Baco determina; Assentarei, enfim, que fui mofina. Este povo, que é meu, por quem derramo As lágrimas que em vão caídas vejo, Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo, Sendo tu tanto contar meu desejo, Por ele a ti rogando, choro e bramo, E contra minha dita, enfim, pelejo, Ora pois, porque o amo, é mal tratado, Quero-lhe querer mal: será guardado.”

(Os Lusíadas. Canto II - Estrofes 39 e 40)

Camões lírico Medida nova Soneto Busque Amor novas artes, novo engenho Para matar-me, e novas esquivanças, Que não pode tirar-me as esperanças, Que mal me tirará o que eu não tenho. Olhai de que esperanças me mantenho! Vede que perigosas seguranças! Que não temo contrastes nem mudanças, Andando em bravo mar, perdido o lenho. Mas, enquanto não pode haver desgosto Onde esperança falta, lá me esconde Amor um mal, que mata e não se vê, Que dias há que na alma me tem posto Um não sei quê, que nasce não sei onde, Vem não sei como, e dói não sei por quê.

Soneto Amor é fogo que arde sem se ver; é ferida que dói e não se sente; é um contentamento descontente; é dor que desatina sem doer; É um não querer mais que bem querer; é um andar solitário entre a gente; é nunca contentar-se de contente; é um cuidar que ganha em se perder. É querer estar preso por vontade; é servir a quem vence, o vencedor; é ter com quem nos mata, lealdade. Mas como causar pode seu favor nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e dos anjos, se eu não tivesse o amor, seria como sino ruidoso ou como címbalo estridente. [...] se eu não tivesse o amor, eu não seria nada.

Apóstolo Paulo (I Coríntios 13: 01-02) Medida velha Ao desconcerto do mundo Os bons vi sempre passar No mundo graves tormentos; E pera mais me espantar, Os maus vi sempre nadar Em mar de contentamentos. Cuidando alcançar assim O bem tão mal ordenado, Fui mau, mas fui castigado. Assim que só para mim Anda o Mundo concertado.

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Literatura – Prof. Fabrício César

Quinhentismo Trechos selecionados da Carta de Pero Vaz de Caminha:

Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma

que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.

[...] A feição deles é serem pardos, maneira de

avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto.

[...] O Capitão, quando eles vieram, estava

sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. [...] Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata.

[...] Ali andavam entre eles três ou quatro

moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.

[...] E uma daquelas moças era toda tingida, de

baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela.

[...] Eu creio, Senhor, que ainda não dei conta

aqui a Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que – eu creio -- o Capitão a Ela há de enviar.

[...]

Andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles.

[...] Parece-me gente de tal inocência que, se

homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.

[...] Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja

acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim.

[...] Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou

oitenta; e, quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo dela, para nos ajudar.

[...] E quando veio ao Evangelho, que nos

erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção.

[...] Porém a terra em si é de muito bons ares,

assim frios e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.

Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.

[...] Porém o melhor fruto, que nela se pode

fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.

E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa

Alteza do que nesta vossa terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha, de Vos tudo dizer, mo fez assim pôr pelo miúdo.

Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera

Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.

Pero Vaz de Caminha

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Literatura – Prof. Fabrício César

Barroco Gregório de Matos Poesia Satírica: A uma que lhe chamou pica-flor Se Pica-Flor me chamais, Pica-Flor aceito ser, Mas resta agora saber, Se no nome que me dais, Metei a flor que guardais No passarinho melhor! Se me dais este favor, Sendo só de mim o Pica, E o mais vosso, claro fica, Que fico então Pica-Flor Soneto A um nobre que insistentes vezes lhe pedia um soneto e de quem o poeta nada tinha a dizer. Um soneto começo em vosso gabo; Contemos esta regra por primeira, Já lá vão duas, e esta é a terceira, Já este quartetinho está no cabo. Na quinta torce agora a porca o rabo: A sexta vá também desta maneira, na sétima entro já com grã canseira, E saio dos quartetos muito brabo. Agora nos tercetos que direi? Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais, Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei. Nesta vida um soneto já ditei, Se desta agora escapo, nunca mais; Louvado seja Deus, que o acabei. Aos vícios (fragmentos) Eu sou aquele que os passados anos Cantei na minha lira maldizente Torpezas do Brasil, vícios e enganos. E bem que os descantei bastantemente, Canto segunda vez na mesma lira O mesmo assunto em pletro diferente.

[...] De que pode servir calar quem cala? Nunca se há de falar o que se sente?! Sempre se há de sentir o que se fala.

[...] Se souberas falar, também falaras,

Também satirizaras, se souberas, E se foras poeta, poetizaras. Quantos há que os telhados têm vidrosos, E deixam de atirar sua pedrada, De sua mesma telha receosos?

[...] Todos somos ruins, todos perversos, Só os distingue o vício e a virtude, De que uns são comensais, outros adversos. Quem maior a tiver, do que eu ter pude, Esse só me censure, esse me note, Calem-se os mais, chiton, e haja saúde. Soneto Descreve o que era realmente naquele tempo a cidade da Bahia A cada canto um grande conselheiro, Que nos quer governar a cabana, e vinha; Não sabem governar sua cozinha, E podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um freqüentado olheiro, Que a vida do vizinho, e da vizinha Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha, Para o levar à praça, e ao terreiro. Muitos mulatos desavergonhados, Trazidos pelos pés os homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia. Estupendas usuras nos mercados, Todos os que não furtam, muito pobres, E eis aqui a cidade da Bahia. Soneto Neste mundo é mais rico, o que mais rapa: Quem mais limpo se faz, tem mais carepa: Com sua língua ao nobre o vil decepa: O Velhaco maior sempre tem capa. Mostra o patife da nobreza o mapa: Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa; Quem menos falar pode, mais increpa: Quem dinheiro tiver, pode ser Papa. A flor baixa se inculca por Tulipa; Bengala hoje na mão, ontem garlopa: Mais isento se mostra, o que mais chupa. Para a tropa do trapo vazio a tripa, E mais não digo, porque a Musa topa Em apa, epa, ipa, opa, upa.

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Literatura – Prof. Fabrício César

Poesia Lírica-Religiosa: Soneto A Cristo S. N. crucificado estando o poeta na última hora de sua vida Meu Deus, que estais pendente em um madeiro, Em cuja lei protesto de viver, Em cuja santa lei hei de morrer Animoso, constante, firme e inteiro: Neste lance, por ser o derradeiro, Pois vejo a minha vida anoitecer, É meu Jesus, a hora de se ver A brandura de um Pai, manso Cordeiro. Mui grande é vosso amor e meu delito: Porém, pode ter fim todo o pecar, E não o vosso amor, que é infinito. Esta razão me obriga a confiar, Que, por mais que pequei, neste conflito Espero em vosso amor de me salvar. Soneto A Jesus Cristo Nosso Senhor Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado, Da vossa piedade me despido, Porque quanto mais tenho delinqüido, Vos tenho a perdoar mais empenhado. Se basta a vos irar tanto um pecado, A abrandar-vos sobeja um só gemido, Que a mesma culpa, que vos há ofendido, Vos tem para o perdão lisonjeado. Se uma ovelha perdida, e já cobrada Glória tal, e prazer tão repentino vos deu, como afirmais na Sacra História: Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino, Perder na vossa ovelha a vossa glória.

Poesia Lírica-Amorosa: Soneto Rompe o poeta com a Primeira Impaciência querendo declarar-se e temendo perder por ousado. Anjo no nome, Angélica na cara, Isso é ser flor, e Anjo juntamente, Ser Angélica flor, e Anjo florente, Em quem, senão em vós se uniformara? Quem veria uma flor, que não a cortara De verde pé, de rama florescente? E quem um Anjo vira tão luzente, Que por seu Deus, o não idolatra? Se como Anjo sois dos meus altares, Fôreis o meu custódio, e minha guarda, Livrara eu de diabólicos azares. Mas vejo, que tão bela, e tão galharda, Posto que os Anjos nunca dão pesares, Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda. Soneto Retrata o poeta as perfeições de sua senhora a imitação de outro soneto que fez Felipe IV a uma dama traduzindo-o na língua portuguesa. Se há ver-vos, quem há de retratar-vos, E é forçoso cegar, quem chega a ver-vos, Sem agravar meus olhos, e ofender-vos, Não há de ser possível copiar-vos. Com neve, e rosas quis assemelhar-vos Mas fora honrar as flores, e abater-vos: Dois zéfiros por olhos quis fazer-vos, Mas quando sonham eles de imitar-vos? Vendo, que a impossíveis me aparelho, Desconfiei da minha tinta imprópria, E a obra encomendei a vosso espelho. Porque nele com Luz, e cor mais própria Sereis (se não me engana o meu conselho) Pintor, Pintura, Original, e Cópia

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Literatura – Prof. Fabrício César

Arcadismo Cláudio Manuel da Costa Soneto Quem deixa o trato pastoril amado Pela ingrata, civil correspondência, Ou desconhece o rosto da violência, Ou do retiro a paz não tem provado. Que bem é ver nos campos transladado No gênio do pastor, o da inocência! E que mal é no trato, e na aparência Ver sempre o cortesão dissimulado! Ali respira amor sinceridade; Aqui sempre a traição seu rosto encobre; Um só trata a mentira, outro a verdade. Ali não há fortuna, que soçobre; Aqui quanto se observa, é variedade: Oh ventura do rico! Oh bem do pobre! Soneto

Torno a ver-nos, ó montes; o destino

Aqui me torna a pôr nestes oiteiros; Onde um tempo os gabões deixei grosseiros Pelo traje da Corte rico e fino. Aqui estou entre Almendro, entre Corino, Os meus fiéis, meus doces companheiros, Vendo correr os míseros vaqueiros Atrás de seu cansado desatino. Se o bem desta choupana pode tanto, Que chega a ter mais preço, e mais valia, Que da cidade o lisonjeiro encanto; Aqui descanse a louca fantasia; E o que té agora se tornava em pranto, Se converta em afetos de alegria Soneto Leia a posteridade, ó pátrio Rio, Em meus versos teu nome celebrado; Por que vejas uma hora despertado O sono vil do esquecimento frio:

Não vês nas tuas margens o sombrio, Fresco assento de um álamo copado; Não vês ninfa cantar, pastar o gado Na tarde clara do calmoso estio. Turvo banhando as pálidas areias Nas porções do riquíssimo tesouro O vasto campo da ambição recreias. Que de seus raios o planeta louro Enriquecendo o influxo em tuas veias, Quanto em chamas fecunda, brota em ouro. Vila Rica

Canto X [...]

Vê-se o outro mineiro, que se ocupa Em penetrar por mina o duro monte Ao rumo oblíquo, ou reto; tem defronte Da gruta, que abre, a terra que extraíra; Os lagrimais das águas que retira Ao tanque artificioso logo solta; Trazida a terra entre a corrente envolta, Baixa as grades de ferro; ali parados, Os grossos esmeris são depurados, Deixando ao dono em prêmio da fadiga Os bons tesouros da fortuna amiga. Por entre a pedra est’outro vai buscando As betas de ouro; aquele vai trepando Pelo escabroso monte, e as águas guia Pelos canais, que lhe abre a pedra fria. Não menos mostra o gênio a agricultura Tão rara do país, aonde a dura Força dos bois não geme ao grave arado; Só do bom lavrador o braço armado Derriba os matos, e se ateia logo Sobre a seca matéria o ardente fogo.

[...] Soneto Estes os olhos são da minha amada: Que belos, que gentis, e que formosos! Não são para os mortais tão preciosos Os doces frutos da estação dourada. Por eles a alegria derramada, Tornam-se os campos de prazer gostosos; Em zéfiros suaves, e mimosos Toda esta região se vê banhada;

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Literatura – Prof. Fabrício César

Vinde, olhos belos, vinde; e enfim trazendo Do rosto de meu bem as prendas belas, Dai alívios ao mal, que estou gemendo: Mas ah delírio meu, que me atropelas! Os olhos, que eu cuidei, que estava vendo, Eram (quem crera tal!) duas estrelas. Soneto Não vês, Nise, brincar esse menino Com aquela avezinha? Estende o braço; Deixa-a fugir; mas apertando o laço, A condena outra vez ao seu destino? Nessa mesma figura, eu imagino, Tens minha liberdade; pois ao passo, Que cuido, que estou livre do embaraço, Então me prende mais meu desatino. Em um contínuo giro o pensamento Tanto a precipitar-me se encaminha, Que não vejo onde pare o meu tormento. Mas fora menos mal esta ânsia minha, Se me faltasse a mim o entendimento, Como falta a razão a esta avezinha. Soneto Não vês, Nise, este vento desabrido, Que arranca os duros troncos? Não vês esta, Que vem cobrindo o céu, sombra funesta, Entre o horror de um relâmpago incendido? Não vês a cada instante o ar partido Dessas linhas de fogo? Tudo cresta, Tudo consome, tudo arrasa, e infesta, O raio a cada instante despedido. Ah! não temas o estrago, que ameaça A tormenta fatal; que o Céu destina Vejas mais feia, mais cruel desgraça: Rasga o meu peito, já que és tão ferina; Verás a tempestade, que em mim passa; Conhecerás então, o que é ruína.

Tomás Antônio Gonzaga

Marília de Dirceu – (parte I)

Lira I Eu, Marília, não sou algum vaqueiro, Que viva de guardar alheio gado; De tosco trato, d’ expressões grosseiro, Dos frios gelos, e dos sóis queimado. Tenho próprio casal, e nele assisto; Dá-me vinho, legume, fruta, azeite; Das brancas ovelhinhas tiro o leite, E mais as finas lãs, de que me visto. Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela! Eu vi o meu semblante numa fonte, Dos anos inda não está cortado: Os pastores, que habitam este monte, Respeitam o poder do meu cajado. Com tal destreza toco a sanfoninha, Que inveja até me tem o próprio Alceste: Ao som dela concerto a voz celeste; Nem canto letra, que não seja minha, Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela! Mas tendo tantos dotes da ventura, Só apreço lhes dou, gentil Pastora, Depois que teu afeto me segura, Que queres do que tenho ser senhora. É bom, minha Marília, é bom ser dono De um rebanho, que cubra monte, e prado; Porém, gentil Pastora, o teu agrado Vale mais q’um rebanho, e mais q’um trono. Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela! Os teus olhos espalham luz divina, A quem a luz do Sol em vão se atreve: Papoula, ou rosa delicada, e fina, Te cobre as faces, que são cor de neve. Os teus cabelos são uns fios d’ouro; Teu lindo corpo bálsamos vapora. Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora, Para glória de Amor igual tesouro. Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

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Literatura – Prof. Fabrício César

Leve-me a sementeira muito embora O rio sobre os campos levantado: Acabe, acabe a peste matadora, Sem deixar uma rês, o nédio gado. Já destes bens, Marília, não preciso: Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta; Para viver feliz, Marília, basta Que os olhos movas, e me dês um riso. Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela! Irás a divertir-te na floresta, Sustentada, Marília, no meu braço; Ali descansarei a quente sesta, Dormindo um leve sono em teu regaço: Enquanto a luta jogam os Pastores, E emparelhados correm nas campinas, Toucarei teus cabelos de boninas, Nos troncos gravarei os teus louvores. Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela! Depois de nos ferir a mão da morte, Ou seja neste monte, ou noutra serra, Nossos corpos terão, terão a sorte De consumir os dois a mesma terra. Na campa, rodeada de ciprestes, Lerão estas palavras os Pastores: “Quem quiser ser feliz nos seus amores, Siga os exemplos, que nos deram estes.” Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Lira II Pintam, Marília, os poetas A um menino vendado, Com uma aljava de setas, Arco empunhado na mão; Ligeiras asas nos ombros, O tenro corpo despido, E de Amor ou de Cupido São os nomes que lhe dão. Porém eu, Marília, nego, Que assim seja Amor, pois ele Nem é moço nem é cego, Nem setas nem asas tem.

Ora pois, eu vou formar-lhe Um retrato mais perfeito, Que ele já feriu meu peito: Por isso o conheço bem. Os seus compridos cabelos, Que sobre as costas ondeiam, São que os de Apolo mais belos, Mas de loura cor não são. Têm a cor da negra noite; E com o branco do rosto Fazem, Marília, um composto Da mais formosa união. Tem redonda e lisa testa, Arqueadas sobrancelhas, A voz meiga, a vista honesta, E seus olhos são uns sóis. Aqui vence Amor ao céu: Que no dia luminoso O céu tem um sol formoso, E o travesso Amor tem dois.

[...] Tu, Marília, agora vendo De Amor o lindo retrato, Contigo estarás dizendo Que é este o retrato teu. Sim, Marília, a cópia é tua, Que Cupido é deus suposto: Se há Cupido, é só teu rosto, Que ele foi quem me venceu.

Lira XXX Junto a uma clara fonte A mãe de Amor se sentou; Encostou na mão o rosto, No leve sono pegou. Cupido, que a viu de longe, Contente ao lugar correu; Cuidando que era Marília, Na face um beijo lhe deu. Acorda Vênus irada: Amor a conhece; e então, Da ousadia que teve Assim lhe pede o perdão: “Foi fácil, ó mãe formosa, Foi fácil o engano meu; Que o semblante de Marília É todo o semblante teu.”

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Literatura – Prof. Fabrício César

Lira XIV Minha bela Marília, tudo passa; A sorte deste mundo é mal segura; Se vem depois dos males a ventura, Vem depois dos prazeres a desgraça.

Estão os mesmos deuses Sujeitos ao poder do ímpio Fado: Apolo já fugiu do céu brilhante,

Já foi pastor de gado. [...]

Ornemos nossas testas com as flores, E façamos de feno um brando leito; Prendamo-nos, Marília, em laço estreito, Gozemos do prazer de sãos Amores.

Sobre as nossas cabeças, Sem que o possam deter, o tempo corre; E para nós o tempo que se passa

Também, Marília, morre. Com os anos, Marília, o gosto falta, E se entorpece o corpo já cansado: Triste o velho cordeiro está deitado, E o leve filho, sempre alegre, salta.

A mesma formosura É dote que só goza a mocidade: Rugam-se as faces, o cabelo alveja,

Mal chega a longa idade. Que havemos de esperar, Marília bela? Que vão passando os florescentes dias? As glórias que vêm tarde, já vêm frias, E pode, enfim, mudar-se a nossa estrela.

Ah! Não, minha Marília, Aproveite-se o tempo, antes que faça O estrago de roubar ao corpo as forças

E ao semblante a graça!

Marília de Dirceu – (parte II)

Lira XV Eu, Marília, não fui nenhum Vaqueiro, fui honrado Pastor da tua Aldeia; vestia finas lãs e tinha sempre a minha choça do preciso cheia. Tiraram-me o casal e o manso gado, nem tenho, a que me encoste, um só cajado. Para ter que te dar, é que eu queria de mor rebanho ainda ser o dono; prezava o teu semblante, os teus cabelos

ainda muito mais que um grande Trono. Agora que te oferte já não vejo, além de um puro amor, de um são desejo. Se o rio levantado me causava, Levando a sementeira, prejuízo, Eu alegre ficava apenas via Na tua breve boca um ar de riso. Tudo agora perdi; nem tenho o gosto De ver-te ao menos compassivo rosto. Propunha-me dormir no teu regaço as quentes horas da comprida sesta, escrever teus louvores nos olmeiros, toucar-te de papoilas na floresta. Julgou o justo Céu que não convinha que a tanto grau subisse a glória minha. Ah! minha bela, se a fortuna volta, se o bem, que já perdi, alcanço e provo, por essas brancas mãos, por essas faces te juro renascer um homem novo, romper a nuvem que os meus olhos cerra, amar no céu a Jove e a ti na terra! Fiadas comprarei as ovelhinhas, que pagarei dos poucos do meu ganho; e dentro em pouco tempo nos veremos senhores outra vez de um bom rebanho. Para o contágio lhe não dar, sobeja que as afague Marília, ou só que as veja. Se não tivermos lãs e peles finas, podem mui bem cobrir as carnes nossas as peles dos cordeiros mal curtidas, e os panos feitos com as lãs mais grossas. Mas ao menos será o teu vestido por mãos de amor, por minhas mãos cosido. Nós iremos pescar na quente sesta com canas e com cestos os peixinhos; nós iremos caçar nas manhãs frias com a vara enviscada os passarinhos. Para nos divertir faremos quanto reputa o varão sábio, honesto e santo. Nas noites de serão nos sentaremos c'os filhos, se os tivermos, à fogueira: entre as falsas histórias, que contares, lhes contarás a minha, verdadeira: Pasmados te ouvirão; eu, entretanto, ainda o rosto banharei de pranto.

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Literatura – Prof. Fabrício César

Quando passarmos juntos pela rua, nos mostrarão c'o dedo os mais Pastores, dizendo uns para os outros: — Olha os nossos exemplos da desgraça e sãos amores. Contentes viveremos desta sorte, até que chegue a um dos dois a morte.

Marília de Dirceu – (parte III)

Soneto III Enganei-me, enganei-me – paciência! Acreditei às vezes, cri, Ormia, Que a tua singeleza igualaria A tua mais que angélica aparência. Enganei-me, enganei-me – paciência! Ao menos conheci que não devia Pôr nas mãos de uma externa galhardia O prazer, o sossego e a inocência. Enganei-me, cruel, com teu semblante, E nada me admiro de faltares, Que esse teu sexo nunca foi constante. Mas tu perdeste mais em me enganares: Que tu não acharás um firme amante, E eu posso de traidoras ter milhares.

Soneto X Adeus, cabana, adeus; adeus, ó gado; Albina ingrata, adeus, em paz te deixo; Adeus, doce rabil; neste alto freixo Te fica, ao meu destino consagrado. Se te for meu sucesso perguntado, não declares, rabil, de quem me queixo; não quero que se saiba vive Aleixo por causa de uma infame desterrado. Se vires a pastor desconhecido, lhe dize então piedoso: "Ah! vai-te embora, atalha os danos que outros têm sentido. Habita nesta aldeia uma pastora, de rosto belo, coração fingido, umas vezes cruel, e as mais traidora."

Romantismo

Gonçalves Dias Canção do exílio Minha terra tem palmeiras, Onde canta o sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas tem mais flores, Nossos bosques tem mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar - sozinho, à noite - Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu'inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá.

Coimbra - 1843. Se se morre de amor Se se morre de amor! — Não, não se morre, Quando é fascinação que nos surpreende De ruidoso sarau entre os festejos; Quando luzes, calor, orquestra e flores Assomos de prazer nos raiam n'alma, Que embelezada e solta em tal ambiente No que ouve, e no que vê prazer alcança! Simpáticas feições, cintura breve, Graciosa postura, porte airoso, Uma fita, uma flor entre os cabelos, Um quê mal definido, acaso podem Num engano d'amor arrebatar-nos. Mas isso amor não é; isso é delírio,

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Literatura – Prof. Fabrício César

Devaneio, ilusão, que se esvaece Ao som final da orquestra, ao derradeiro Clarão, que as luzes no morrer despedem: Se outro nome lhe dão, se amor o chamam, D'amor igual ninguém sucumbe à perda. Amor é vida; é ter constantemente Alma, sentidos, coração — abertos Ao grande, ao belo; é ser capaz d'extremos, D'altas virtudes, té capaz de crimes!

[...] É ter o coração em riso e festa; E à branda festa, ao riso da nossa alma Fontes de pranto intercalar sem custo; Conhecer o prazer e a desventura No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto O ditoso, o misérrimo dos entes; Isso é amor, e desse amor se morre! Amar, e não saber, não ter coragem Para dizer que amor que em nós sentimos;

[...] Sentir, sem que se veja, a quem se adora, Compreender, sem lhe ouvir, seus pensamentos, Segui-la, sem poder fitar seus olhos, Amá-la, sem ousar dizer que amamos, E, temendo roçar os seus vestidos, Arder por afogá-la em mil abraços: Isso é amor, e desse amor se morre! Se tal paixão porém enfim transborda, Se tem na terra o galardão devido Em recíproco afeto; e unidas, uma, Dois seres, duas vidas se procuram, Entendem-se, confundem-se e penetram Juntas — em puro céu d'êxtases puros: Se logo a mão do fado as torna estranhas, Se os duplica e separa, quando unidos A mesma vida circulava em ambos; Que será do que fica, e do que longe Serve às borrascas de ludíbrio e escárnio? Pode o raio num píncaro caindo, Torná-lo dois, e o mar correr entre ambos; Pode rachar o tronco levantado E dois cimos depois verem-se erguidos, Sinais mostrando da aliança antiga; Dois corações porém, que juntos batem, Que juntos vivem, — se os separam, morrem; Ou se entre o próprio estrago inda vegetam, Se aparência de vida, em mal, conservam, Ânsias cruas resumem do proscrito, Que busca achar no berço a sepultura!

Esse, que sobrevive à própria ruína, Ao seu viver do coração, — às gratas Ilusões, quando em leito solitário, Entre as sombras da noite, em larga insônia, Devaneando, a futurar venturas, Mostra-se e brinca a apetecida imagem; Esse, que à dor tamanha não sucumbe, Inveja a quem na sepultura encontra Dos males seus o desejado termo! I-Juca Pirama

I No meio das tabas de amenos verdores, Cercadas de troncos - cobertos de flores, Alteiam-se os tetos d'altiva nação; São muitos seus filhos, nos ânimos fortes, Temíveis na guerra, que em densas coortes Assombram das matas a imensa extensão. São rudos, severos, sedentos de glória, Já prélios incitam, já cantam vitória, Já meigos atendem à voz do cantor: São todos Timbiras, guerreiros valentes! Seu nome lá voa na boca das gentes, Condão de prodígios, de glória e terror! As tribos vizinhas, sem forças, sem brio, As armas quebrando, lançando-as ao rio, O incenso aspiraram dos seus maracás: Medrosos das guerras que os fortes acendem, Custosos tributos ignavos lá rendem, Aos duros guerreiros sujeitos na paz. No centro da taba se estende um terreiro, Onde ora se aduna o concílio guerreiro Da tribo senhora, das tribos servis: Os velhos sentados praticam d'outrora, E os moços inquietos, que a festa enamora, Derramam-se em torno dum índio infeliz. [...] Entanto as mulheres com leda trigança, Afeitas ao rito da bárbara usança, O índio já querem cativo acabar: A coma lhe cortam, os membros lhe tingem, Brilhante enduape no corpo lhe cingem, Sombreia-lhe a fronte gentil canitar.

II Em fundos vasos d'alvacenta argila

Ferve o cauim; Enchem-se as copas, o prazer começa,

Reina o festim.

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Literatura – Prof. Fabrício César

O prisioneiro, cuja morte anseiam, Sentado está,

O prisioneiro, que outro sol no ocaso Jamais verá!

A dura corda, que lhe enlaça o colo,

Mostra-lhe o fim Da vida escura, que será mais breve

Do que o festim! [...]

III

"Dize-nos quem és, teus feitos canta, "Ou se mais te apraz, defende-te." Começa O índio, que ao redor derrama os olhos, Com triste voz que os ânimos comove.

IV Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi: Sou filho das selvas, Nas selvas cresci; Guerreiros, descendo Da tribo Tupi. Da tribo pujante, Que agora anda errante Por fado inconstante, Guerreiros, nasci; Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi. [...] Andei longes terras, Lidei cruas guerras, Vaguei pelas serras Dos vis Aimorés; Vi lutas de bravos, Vi fortes - escravos! De estranhos ignavos Calcados aos pés. E os campos talados, E os arcos quebrados, E os piagas coitados Já sem maracás; E os meigos cantores, Servindo a senhores, Que vinham traidores, Com mostras de paz. Aos golpes do imigo

Meu último amigo, Sem lar, sem abrigo Caiu junto a mi! Com plácido rosto, Sereno e composto, O acerbo desgosto Comigo sofri. Meu pai a meu lado Já cego e quebrado, De penas ralado, Firmava-se em mi: Nós ambos, mesquinhos, Por ínvios caminhos, Cobertos d'espinhos Chegamos aqui! [...] Então, forasteiro, Caí prisioneiro De um troço guerreiro Com que me encontrei: O cru dessossego Do pai fraco e cego, Enquanto não chego, Qual seja - dizei! Eu era o seu guia Na noite sombria, A só alegria Que Deus lhe deixou: Em mim se apoiava, Em mim se firmava, Em mim descansava, Que filho lhe sou. Ao velho coitado De penas ralado, Já cego e quebrado, Que resta? - Morrer. Enquanto descreve O giro tão breve Da vida que teve, Deixa-me viver! Não vil, não ignavo, Mas forte, mas bravo, Serei vosso escravo: Aqui virei ter. Guerreiros, não coro Do pranto que choro; Se a vida deploro, Também sei morrer.

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Literatura – Prof. Fabrício César

V Soltai-o! - diz o chefe. Pasma a turba; Os guerreiros murmuram: mal ouviram, Nem pode nunca um chefe dar tal ordem! Brada segunda vez com voz mais alta, Afrouxam-se as prisões, a embira cede, A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo. [...] __ És livre; parte.

__ E voltarei. __ Debalde.

__ Sim, voltarei, morto meu pai.

__ Não voltes! [...] __ Mentiste, que um Tupi não chora nunca, E tu choraste!... parte; não queremos Com carne vil enfraquecer os fortes. [...] Curvado o colo, taciturno e frio, Espectro d'homem, penetrou no bosque!

VIII "Tu choraste em presença da morte? Na presença de estranhos choraste? Não descende o cobarde do forte; Pois choraste, meu filho não és! Possas tu, descendente maldito De uma tribo de nobres guerreiros, Implorando cruéis forasteiros, Seres presa de vis Aimorés. "Possas tu, isolado na terra, Sem arrimo e sem pátria vagando, Rejeitado da morte na guerra, Rejeitado dos homens na paz, Ser das gentes o espectro execrado; Não encontres amor nas mulheres, Teus amigos, se amigos tiveres, Tenham alma inconstante e falaz! "Não encontres doçura no dia, Nem as cores da aurora te ameiguem, E entre as larvas da noite sombria Nunca possas descanso gozar: Não encontres um tronco, uma pedra, Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos, Padecendo os maiores tormentos, Onde possas a fronte pousar. [...] "Um amigo não tenhas piedoso Que o teu corpo na terra embalsame, Pondo em vaso d'argila cuidoso

Arco e frecha e tacape a teus pés! Sê maldito, e sozinho na terra; Pois que a tanta vileza chegaste, Que em presença da morte choraste, Tu, cobarde, meu filho não és."

IX

[...] Era ele, o Tupi; nem fora justo Que a fama dos Tupis __ o nome, a glória, Aturado labor de tantos anos, Derradeiro brasão da raça extinta, De um jacto e por um só se aniquilasse. __ Basta! clama o chefe dos Timbiras, __ Basta, guerreiro ilustre! assaz lutaste, E para o sacrifício é mister forças. __ O guerreiro parou, caiu nos braços Do velho pai, que o cinge contra o peito, Com lágrimas de júbilo bradando: "Este, sim, que é meu filho muito amado! "E pois que o acho enfim, qual sempre o tive, "Corram livres as lágrimas que choro, "Estas lágrimas, sim, que não desonram."

X Um velho Timbira, coberto de glória,

Guardou a memória Do moço guerreiro, do velho Tupi!

E à noite, nas tabas, se alguém duvidava Do que ele contava,

Dizia prudente: __ "Meninos, eu vi!

"Eu vi o brioso no largo terreiro Cantar prisioneiro

Seu canto de morte, que nunca esqueci: Valente, como era, chorou sem ter pejo;

Parece que o vejo, Que o tenho nest'hora diante de mim.

"Eu disse comigo: Que infâmia d'escravo! Pois não, era um bravo;

Valente e brioso, como ele, não vi! [...]

Assim o Timbira, coberto de glória, Guardava a memória

Do moço guerreiro, do velho Tupi. E à noite nas tabas, se alguém duvidava

Do que ele contava, Tomava prudente: "Meninos, eu vi!"

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Literatura – Prof. Fabrício César

Álvares de Azevedo Lembrança de morrer

No more! O never more! SHELLEY

Quando em meu peito rebentar-se a fibra Que o espírito enlaça à dor vivente, Não derramem por mim nem uma lágrima Em pálpebra demente. E nem desfolhem na matéria impura A flor do vale que adormece ao vento: Não quero que uma nota de alegria Se cale por meu triste passamento. Eu deixo a vida como deixa o tédio Do deserto, o poento caminheiro — Como as horas de um longo pesadelo Que se desfaz ao dobre de um sineiro; Como o desterro de minh'alma errante, Onde fogo insensato a consumia: Só levo uma saudade — é desses tempos Que amorosa ilusão embelecia. [...] Se uma lágrima as pálpebras me inunda, Se um suspiro nos seios treme ainda, É pela virgem que sonhei!... que nunca Aos lábios me encostou a face linda! Ó tu, que à mocidade sonhadora Do pálido poeta deste flores... Se vivi... foi por ti! e de esperança De na vida gozar de teus amores. [...] Descansem o meu leito solitário Na floresta dos homens esquecida À sombra de uma cruz, escrevam nela: – Foi poeta – sonhou – e amou na vida. Sombras do vale, noites da montanha, Que minh’alma cantou e amava tanto, Protejei o meu corpo abandonado, E no silêncio derramai-lhe um canto! Mas quando preludia ave d’aurora E quando à meia noite o céu repousa, Arvoredo dos bosques, abri os ramos... Deixai a lua pratear-me a lousa.

Meu Sonho EU

Cavaleiro das armas escuras, Onde vais pelas trevas impuras Com a espada sangüenta na mão? Por que brilham teus olhos ardentes E gemidos nos lábios frementes Vertem fogo do teu coração? Cavaleiro, quem és? o remorso? Do corcel te debruças no dorso... E galopas do vale através... Oh! da estrada acordando as poeiras Não escutas gritar as caveiras E morder-te o fantasma nos pés? Onde vais pelas trevas impuras, Cavaleiro das armas escuras, Macilento qual morto na tumba?... Tu escutas... Na longa montanha Um tropel teu galope acompanha? E um clamor de vingança retumba? Cavaleiro, quem és? – que mistério, Quem te força da morte no império Pela noite assombrada a vagar?

O FANTASMA Sou o sonho de tua esperança, Tua febre que nunca descansa, O delírio que te há de matar!... Soneto Os quinze anos de uma alma transparente O cabelo castanho, a face pura, Uns olhos onde pinta-se a candura De um coração que dorme, inda inocente. Um seio que estremece de repente Do mimoso vestido na brancura, A linda mão na mágica cintura, E uma voz que inebria docemente. Um sorrir tão angélico! Tão santo E nos olhos azuis cheios de vida Lânguido véu de involuntário pranto! É esse o talismã, é essa a Armida, O condão de meus últimos encantos A visão de minh’alma distraída!

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Literatura – Prof. Fabrício César

Namoro a cavalo Eu moro em Catumbi: mas a desgraça, Que rege minha vida malfadada, Pôs lá no fim da rua do Catete A minha Dulcinéia namorada. Alugo (três mil réis) por uma tarde Um cavalo de trote (que esparrela!) Só para erguer meus olhos suspirando A minha namorada na janela... Todo o meu ordenado vai-se em flores E em lindas folhas de papel bordado... Onde eu escrevo trêmulo, amoroso, Algum verso bonito... mas furtado. Morro pela menina, junto dela Nem ouso suspirar de acanhamento... Se ela quisesse eu acabava a história Como toda a Comédia — em casamento... Ontem tinha chovido... Que desgraça! Eu ia a trote inglês ardendo em chama, Mas lá vai senão quando... uma carroça Minhas roupas tafues encheu de lama... Eu não desanimei. Se Dom Quixote No Rocinante erguendo a larga espada Nunca voltou de medo, eu, mais valente, Fui mesmo sujo ver a namorada... Mas eis que no passar pelo sobrado, Onde habita nas lojas minha bela, Por ver-me tão lodoso ela irritada Bateu-me sobre as ventas a janela... O cavalo ignorante de namoro, Entre dentes tomou a bofetada, Arrepia-se, pula e dá-me um tombo Com pernas para o ar, sobre a calçada... Dei ao diabo os namoros. Escovado Meu chapéu que sofrera no pagode... Dei de pernas corrido e cabisbaixo E berrando de raiva como um bode. Circunstância agravante. A calça inglesa Rasgou-se no cair de meio a meio, O sangue pelas ventas me corria Em paga do amoroso devaneio!...

É ela! É ela! É ela! É ela! É ela! é ela! — murmurei tremendo, E o eco ao longe murmurou — é ela! Eu a vi... minha fada aérea e pura – A minha lavadeira na janela!

Dessas águas-furtadas onde eu moro Eu a vejo estendendo no telhado Os vestidos de chita, as saias brancas; Eu a vejo e suspiro enamorado!

Esta noite eu ousei mais atrevido Nas telhas que estalavam nos meus passos Ir espiar seu venturoso sono, Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!

Como dormia! que profundo sono!... Tinha na mão o ferro do engomado... Como roncava maviosa e pura! Quase caí na rua desmaiado!

Afastei a janela, entrei medroso... Palpitava-lhe o seio adormecido... Fui beijá-la... roubei do seio dela Um bilhete que estava ali metido...

Oh! De certo ... (pensei) é doce página Onde a alma derramou gentis amores; São versos dela... que amanhã de certo Ela me enviará cheios de flores...

Tremi de febre! Venturosa folha! Quem pousasse contigo neste seio! Como Otelo beijando a sua esposa, Eu beijei-a a tremer de devaneio...

É ela! é ela! — repeti tremendo; Mas cantou nesse instante uma coruja... Abri cioso a página secreta... Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!

Mas se Werther morreu por ver Carlota Dando pão com manteiga às criancinhas, Se achou-a assim mais bela, - eu mais te adoro Sonhando-te a lavar as camisinhas!

É ela! é ela! meu amor, minh’alma, A Laura, a Beatriz que o céu revela... É ela! é ela! — murmurei tremendo, E o eco ao longe suspirou — é ela!

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Castro Alves O Navio Negreiro (Tragédia no mar) I 'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço Brinca o luar — dourada borboleta; E as vagas após ele correm... cansam Como turba de infantes inquieta. [...] Donde vem? onde vai? Das naus errantes Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço? Neste saara os corcéis o pó levantam, Galopam, voam, mas não deixam traço. Bem feliz quem ali pode nest'hora Sentir deste painel a majestade! Embaixo — o mar em cima — o firmamento... E no mar e no céu — a imensidade! [...] Esperai! esperai! deixai que eu beba Esta selvagem, livre poesia, Orquestra — é o mar, que ruge pela proa, E o vento, que nas cordas assobia... [...] Albatroz! Albatroz! águia do oceano, Tu que dormes das nuvens entre as gazas, Sacode as penas, Leviathan do espaço, Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas. III Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano Como o teu mergulhar no brigue voador! Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras! É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ... Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror! IV Era um sonho dantesco... o tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho. Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas Rega o sangue das mães: Outras moças, mas nuas e espantadas, No turbilhão de espectros arrastadas, Em ânsia e mágoa vãs! [...] E ri-se a orquestra irônica, estridente. . . E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais... Qual um sonho dantesco as sombras voam!... Gritos, ais, maldições, preces ressoam! E ri-se Satanás!... V Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura... se é verdade Tanto horror perante os céus?! Ó mar, por que não apagas Co'a esponja de tuas vagas De teu manto este borrão?... Astros! noites! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! [...] Ontem a Serra Leoa, A guerra, a caça ao leão, O sono dormido à toa Sob as tendas d'amplidão! Hoje... o porão negro, fundo, Infecto, apertado, imundo, Tendo a peste por jaguar... E o sono sempre cortado Pelo arranco de um finado, E o baque de um corpo ao mar... VI [...] Fatalidade atroz que a mente esmaga! Extingue nesta hora o brigue imundo O trilho que Colombo abriu nas vagas, Como um íris no pélago profundo! Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga Levantai-vos, heróis do Novo Mundo! Andrada! arranca esse pendão dos ares! Colombo! fecha a porta dos teus mares!

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Literatura – Prof. Fabrício César

A Canção do Africano Lá na úmida senzala, Sentado na estreita sala, Junto ao braseiro, no chão, Entoa o escravo o seu canto, E ao cantar correm-lhe em pranto Saudades do seu torrão... De um lado, uma negra escrava Os olhos no filho crava, Que tem no colo a embalar... E à meia voz lá responde Ao canto, e o filhinho esconde, Talvez pra não o escutar! "Minha terra é lá bem longe, Das bandas de onde o sol vem; Esta terra é mais bonita, Mas à outra eu quero bem! [...] "Aquelas terras tão grandes, Tão compridas como o mar, Com suas poucas palmeiras Dão vontade de pensar ... "Lá todos vivem felizes, Todos dançam no terreiro; A gente lá não se vende Como aqui, só por dinheiro". O escravo calou a fala, Porque na úmida sala O fogo estava a apagar; E a escrava acabou seu canto, Pra não acordar com o pranto O seu filhinho a sonhar! O escravo então foi deitar-se, Pois tinha de levantar-se Bem antes do sol nascer, E se tardasse, coitado, Teria de ser surrado, Pois bastava escravo ser. E a cativa desgraçada Deita seu filho, calada, E põe-se triste a beijá-lo, Talvez temendo que o dono Não viesse, em meio do sono, De seus braços arrancá-lo!

Boa noite Boa-noite, Maria! Eu vou-me embora. A lua nas janelas bate em cheio. Boa-noite, Maria! É tarde... é tarde... Não me apertes assim contra teu seio. Boa-noite!... E tu dizes — Boa-noite. Mas não digas assim por entre beijos... Mas não mo digas descobrindo o peito — Mar de amor onde vagam meus desejos. Julieta do céu! Ouve... a calhandra Já rumoreja o canto da matina. Tu dizes que eu menti?... pois foi mentira... ... Quem cantou foi teu hálito, divina! Se à estrela-d'alva os derradeiros raios Derrama nos jardins do Capuleto, Eu direi, me esquecendo d'alvorada: "É noite ainda em teu cabelo preto..." E noite ainda! Brilha na cambraia — Desmanchado o roupão, a espádua nua — O globo de teu peito entre os arminhos Como entre as névoas se balouça a lua... É noite, pois! Durmamos, Julieta! Recende a alcova ao trescalar das flores, Fechemos sobre nós estas cortinas... — São as asas do arcanjo dos amores. A frouxa luz da alabastrina lâmpada Lambe voluptuosa os teus contornos... Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos Ao doudo afago de meus lábios mornos. Mulher do meu amor! Quando aos meus beijos Treme tua alma, como a lira ao vento, Das teclas de teu seio que harmonias, Que escalas de suspiros, bebo atento! Ai! Canta a cavatina do delírio, Ri, suspira, soluça, anseia e chora... Marion! Marion!... É noite ainda. Que importa os raios de uma nova aurora?!... Como um negro e sombrio firmamento, Sobre mim desenrola teu cabelo... E deixa-me dormir balbuciando: — Boa-noite!, formosa Consuelo!...

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Literatura – Prof. Fabrício César

Parnasianismo Olavo Bilac Fragmento de “Profissão de fé” Não quero o Zeus Capitolino Hercúleo e belo, Talhar no mármore divino Com o camartelo. Que outro - não eu! - a pedra corte Para, brutal, Erguer de Atene o altivo porte Descomunal. Mais que esse vulto extraordinário, Que assombra a vista, Seduz-me um leve relicário De fino artista. Invejo o ourives quando escrevo: Imito o amor Com que ele, em ouro, o alto relevo, Faz de uma flor. Imito-o. E, pois, nem de Carrara A pedra firo: O alvo cristal, a pedra rara, O ônix prefiro. Por isso, corre, por servir-me; Sobre o papel A pena, como em prata firme Corre o cinzel. [...] Torce, aprimora, alteia, lima A frase; e, enfim, No verso de ouro engasta a rima, Como um rubim. Quero que a estrofe cristalina, Dobrada ao jeito Do ourives, saia da oficina Sem um defeito. [...] Assim procedo. Minha pena Segue esta norma, Por te servir; Deusa serena, Serena Forma! [...]

A um poeta Longe do estéril turbilhão da rua, Beneditino, escreve! No aconchego Do claustro, na paciência e no sossego, Trabalha, e teima, e lima, e sofre e sua! Mas que na forma se disfarce o emprego Do esforço; e a trama viva se construa De tal modo , Que a imagem fique nua, Rica mas sóbria, como um templo grego. Não se mostre na fábrica o suplício Do mestre. E, natural, o efeito agrade, Sem lembrar os andaimes do edifício. Porque a beleza, gêmea da Verdade, Arte pura, inimiga do artifício, É a força e a Graça na simplicidade A Cigarra da Chácara Volta a cantar no tronco da mangueira, Mais corpulenta agora e mais sombria, Esta mesma cigarra cantadeira, Que o ano passado em tanta vez ouvia. Ébria dos quentes raios da soalheira, A pompa sideral do meio dia Celebra, e enquanto a luz abrasa, e cheira O mato verde, chia! chia! chia! Canta, alma de ouro! Teu verão radiante Tornou, tornou teu sol glorioso e lindo; O meu declina, não quer mais que eu cante. Oh! Como invejo este hino alto e canoro Que, reiterado, entoa ali, zinindo, A cigarra da chácara onde moro. Língua Portuguesa Última flor do Lácio, inculta e bela, És, a um tempo, esplendor e sepultura: Ouro nativo, que na ganga impura A bruta mina entre os cascalhos vela... Amo-te assim, desconhecida e obscura. Tuba de alto clangor, lira singela, Que tens o tom e o silvo da procela E o arrolo da saudade e da ternura!

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Literatura – Prof. Fabrício César

Amo o teu viço agreste e o teu aroma De virgens selvas e de oceano largo! Amo-te, ó rude e doloroso idioma, em que da voz materna ouvi: “meu filho!” E em que Camões chorou, no exílio amargo, O gênio sem ventura e o amor sem brilho! Nel Mezzo del Camin... Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada E triste, e triste e fatigado eu vinha. Tinhas a alma de sonhos povoada, E alma de sonhos povoada eu tinha... E paramos de súbito na estrada Da vida: longos anos, presa à minha A tua mão, a vista deslumbrada Tive da luz que teu olhar continha. Hoje segues de novo... Na partida Nem o pranto os teus olhos umedece, Nem te comove a dor da despedida. E eu, solitário, volto a face, e tremo, Vendo o teu vulto que desaparece Na extrema curva do caminho extremo.

Alberto de Oliveira Vaso Chinês

Estranho mimo aquele vaso! Vi-o, Casualmente, uma vez, de um perfumado Contador sobre o mármor luzidio, Entre um leque e o começo de um bordado.

Fino artista chinês, enamorado, Nele pusera o coração doentio Em rubras flores de um sutil lavrado, Na tinta ardente, de um calor sombrio.

Mas, talvez por contraste à desventura, Quem o sabe?... de um velho mandarim Também lá estava a singular figura.

Que arte em pintá-la! A gente acaso vendo-a, Sentia um não sei quê com aquele chim De olhos cortados à feição de amêndoa.

Simbolismo

Cruz e Sousa Antífona Ó Formas alvas, brancas, Formas claras De luares, de neves, de neblinas! Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas... Incensos dos turíbulos das aras Formas do Amor, constelarmante puras, De Virgens e de Santas vaporosas... Brilhos errantes, mádidas frescuras E dolências de lírios e de rosas ... Indefiníveis músicas supremas, Harmonias da Cor e do Perfume... Horas do Ocaso, trêmulas, extremas, Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume... [...] Cárcere das almas Ah! Toda a alma num cárcere anda presa, Soluçando nas trevas, entre as grades Do calabouço olhando imensidades, Mares, estrelas, tardes, natureza. Tudo se veste de uma igual grandeza Quando a alma entre grilhões as liberdades Sonha e, sonhando, as imortalidades Rasga no etéreo o Espaço da Pureza. Ó almas presas, mudas e fechadas Nas prisões colossais e abandonadas, Da Dor no calabouço, atroz, funéreo! Nesses silêncios solitários, graves, que chaveiro do Céu possui as chaves para abrir-vos as portas do Mistério?! Violões que choram Ah! plangentes violões dormentes, mornos, Soluços ao luar, choros ao vento... Tristes perfis, os mais vagos contornos, Bocas murmurejantes de lamento.

[...] Sutis palpitações a luz da lua, Anseio dos momentos mais saudosos,

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Quando lá choram na deserta rua As cordas vivas dos violões chorosos.

[...] Harmonias que pungem, que laceram, Dedos Nervosos e ágeis que percorrem Cordas e um mundo de dolências geram, Gemidos, prantos, que no espaço morrem...

[...] Vozes veladas, veludosas vozes, Volúpias dos violões, vozes veladas, Vagam nos velhos vórtices velozes Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas. Tudo nas cordas dos violões ecoa E vibra e se contorce no ar, convulso... Tudo na noite, tudo clama e voa Sob a febril agitação de um pulso. Que esses violões nevoentos e tristonhos São ilhas de degredo atroz, funéreo, Para onde vão, fatigadas do sonho Almas que se abismaram no mistério.

[...] Tudo isso, num grotesco desconforme, Em ais de dor, em contorções de açoites, Revive nos violões, acorda e dorme Através do luar das meias noites! Plangente: que chora, triste, lastimoso. Sutil: delicado, hábil. Dilacerar: rasgar em pedaços.

Caveira I

Olhos que foram olhos, dois buracos Agora, fundos, no ondular da poeira... Nem negros, nem azuis e nem opacos.

Caveira!

II Nariz de linhas, correções audazes, De expressão aquilina e feiticeira, Onde os olfatos virginais, falazes?!

Caveira! Caveira!!

III Boca de dentes límpidos e finos, De curva leve, original, ligeira,

Que é feito dos teus risos cristalinos?! Caveira! Caveira!! Caveira!!!

Audazes: audaciosas Aquilina: recurvada (como bico de águia) Falazes: que enganam, que iludem

A Ironia dos Vermes Eu imagino que és uma princesa Morta na flor da castidade branca... Que teu cortejo sepulcral arranca Por tanta pompa espasmos de surpresa. Que tu vais por um coche conduzida, Por esquadrões flamívomos guardada, Como carnal e virgem madrugada, Bela das belas, sem mais sol, sem vida. Que da Corte os luzidos Dignitários Com seus aspectos marciais, bizarros, Seguem-te após nos fagulhantes, carros E a excelsa cauda dos cortejos vários. [...] Que os potentes canhões roucos atroam O espaço claro de uma tarde suave, E que tu vais, Lírio dos lírios e ave Do Amor, por entre os sons que te coroam. [...] Que o teu corpo de luz, teu corpo amado, Envolto em finas e cheirosas vestes, Sob o carinho das Mansões celestes Ficará pela Morte encarcerado. Que o teu séquito é tal, tal a coorte, Tal o sol dos brasões, por toda a parte, Que em vez da horrenda Morte suplantar-te Crê-se que és tu que suplantaste a Morte. Mas dos faustos mortais a regia trompa, Os grandes ouropéis, a real Quermesse, Ah! tudo, tudo proclamar parece Que hás de afinal apodrecer com pompa. Como que foram feitos de luxúria E gozo ideal teus funerais luxuosos Para que os vermes, pouco escrupulosos, Não te devorem com plebéia fúria. Para que eles ao menos vendo as belas Magnificências do teu corpo exausto Mordam-te com cuidados e cautelas Para o teu corpo apodrecer com fausto. [...] Mas ah! quanta ironia atroz, funérea, Imaginária e cândida Princesa: És igual a uma simples camponesa Nos apodrecimentos da Matéria! Flamívomos: que cospem fogo

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Excelsa: sublime, elevada Atroar: fazer grande estrondo Féretro: caixão Séquito: cortejo Faustos: que têm grande pompa Ouropéis: ligas metálicas que imitam ouro Atroz: desumana, cruel Vida obscura Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro, Ó ser humilde entre os humildes seres. Embriagado, tonto dos prazeres, O mundo para ti foi negro e duro. Atravessaste num silêncio escuro A vida presa a trágicos deveres E chegaste ao saber de altos saberes Tornando-te mais simples e mais puro. Ninguém te viu o sentimento inquieto, Magoado, oculto e aterrador, secreto, Que o coração te apunhalou no mundo. Mas eu que sempre te segui os passos Sei que cruz infernal prendeu-te os braços E o teu suspiro como foi profundo! Sorriso Interior O ser que é ser e que jamais vacila Nas guerras imortais entra sem susto, Leva consigo esse brasão augusto Do grande amor, da nobre fé tranqüila. Os abismos carnais da triste argila Ele os vence sem ânsias e sem custo Fica sereno, num sorriso justo, Enquanto tudo em derredor oscila. Ondas interiores de grandeza Dão-lhe essa glória em frente à Natureza, Esse esplendor, todo esse largo eflúvio. O ser que é ser transforma tudo em flores... E para ironizar as próprias dores Canta por entre as águas do Dilúvio!

Augusto dos Anjos - (inclassificável) Monólogo de uma Sombra “Sou uma Sombra! Venho de outras eras, Do cosmopolitismo das moneras... Pólipo de recônditas reentrâncias, Larva de caos telúrico, procedo Da escuridão do cósmico segredo, Da substância de todas as substâncias!

[...] Com um pouco de saliva quotidiana Mostro meu nojo à Natureza Humana. A podridão me serve de Evangelho... Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques E o animal inferior que urra nos bosques E com certeza meu irmão mais velho!

[...] Aí vem sujo, a coçar chagas plebéias, Trazendo no deserto das idéias O desespero endêmico do inferno, Com a cara hirta, tatuada de fuligens Esse mineiro doido das origens, Que se chama o Filósofo Moderno! Quis compreender, quebrando estéreis normas, A vida fenomênica das Formas, Que, iguais a fogos passageiros, luzem... E apenas encontrou na idéia gasta, O horror dessa mecânica nefasta, A que todas as coisas se reduzem! E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes, Sobre a esteira sarcófaga das pestes A mostrar, já nos últimos momentos, Como quem se submete a uma charqueada, Ao clarão tropical da luz danada, O espólio dos seus dedos peçonhentos.

[...] E o que ele foi: clavículas, abdômen, O coração, a boca, em síntese, o Homem, - Engrenagem de vísceras vulgares - Os dedos carregados de peçonha, Tudo coube na lógica medonha Dos apodrecimentos musculares! A desarrumação dos intestinos Assombra! Vede-a! Os vermes assassinos Dentro daquela massa que o húmus come, Numa glutoneria hedionda, brincam, Como as cadelas que as dentuças trincam No espasmo fisiológico da fome.

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É uma trágica festa emocionante! A bacteriologia inventariante Toma conta do corpo que apodrece... E até os membros da família engulham, Vendo as larvas malignas que se embrulham No cadáver malsão, fazendo um s.

[...] Est’outro agora é o sátiro peralta Que o sensualismo sodomista exalta, Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo... Como que, em suas células vilíssimas, Há estratificações requintadíssimas De uma animalidade sem castigo. Brancas bacantes bêbedas o beijam. Suas artérias hírcicas latejam, Sentindo o odor das carnações abstêmias, E á noite, vai gozar, ébrio de vício, No sombrio bazar do meretrício, O cuspo afrodisíaco das fêmeas.

[...] Míngua-se o combustível da lanterna E a consciência do sátiro se inferna, Reconhecendo, bêbedo de sono, Na própria ânsia dionísica do gozo, Essa necessidade de horroroso, Que é talvez propriedade do carbono!

[...] Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa, Abranda as rochas rígidas, torna água Todo o fogo telúrico profundo E reduz, sem que, entanto, a desintegre, À condição de uma planície alegre, A aspereza orográfica do mundo! Provo desta maneira ao mundo odiento Pelas grandes razões do sentimento, Sem os métodos da abstrusa ciência fria E os trovões gritadores da dialética, Que a mais alta expressão da dor estética Consiste essencialmente na alegria. Continua o martírio das criaturas: - O homicídio nas vielas mais escuras, - O ferido que a hostil gleba atra escarva, - O último solilóquio dos suicidas - E eu sinto a dor de todas essas vidas Em minha vida anônima de larva!”

[...]

Eterna mágoa O homem por sobre quem caiu a praga Da tristeza do Mundo, o homem que é triste Para todos os séculos existe E nunca mais o seu pesar se apaga! Não crê em nada, pois, nada há que traga Consolo à Mágoa, a que só ele assiste. Quer resistir, e quanto mais resiste Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga. Sabe que sofre, mas o que não sabe E que essa mágoa infinda assim não cabe Na sua vida, é que essa mágoa infinda Transpõe a vida do seu corpo inerme; E quando esse homem se transforma em verme É essa mágoa que o acompanha ainda! Versos Íntimos Vês?! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão - esta pantera - Foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O Homem, que, nesta terra miserável, Mora, entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra nessa boca que te beija! Solitário Como um fantasma que se refugia Na solidão da natureza morta, Por trás dos ermos túmulos, um dia, Eu fui refugiar-me à tua porta! Fazia frio e o frio que fazia Não era esse que a carne nos conforta... Cortava assim como em carniçaria O aço das facas incisivas corta!

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Mas tu não vieste ver a minha Desgraça! E eu saí, como quem tudo repele, Velho caixão a carregar destroços. Levando apenas na tumbal carcaça O pergaminho singular da pele E o chocalho fatídico dos ossos! Ermos = vazios. Incisivas = afiadas; pontiagudas. Tumbal = de tumba, de túmulo.

Psicologia de um vencido Eu, filho do carbono e do amoníaco, Monstro de escuridão e rutilância, Sofro, desde a epigênesis da infância, A influência má dos signos do zodíaco. Profundissimamente hipocondríaco, Este ambiente me causa repugnância... Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia Que se escapa da boca de um cardíaco. Já o verme – este operário das ruínas – Que o sangue podre das carnificinas Come, e à vida em geral declara guerra, Anda a espreitar meus olhos para roê-los, E há de deixar-me apenas os cabelos, Na frialdade inorgânica da terra! A Esperança A Esperança não murcha, ela não cansa, Também como ela não sucumbe a Crença. Vão-se sonhos nas asas da Descrença, Voltam sonhos nas asas da Esperança. Muita gente infeliz assim não pensa; No entanto o mundo é uma ilusão completa, E não é a Esperança por sentença Este laço que ao mundo nos manieta? Mocidade, portanto, ergue o teu grito, Sirva-te a Crença de fanal bendito, Salve-te a glória no futuro - avança! E eu, que vivo atrelado ao desalento, Também espero o fim do meu tormento, Na voz da Morte a me bradar; descansa! Manietar = amarrar as mãos

A Árvore da Serra - As árvores, meu filho, não têm alma! E esta árvore me serve de empecilho... É preciso cortá-la, pois, meu filho, Para que eu tenha uma velhice calma! - Meu pai, por que sua ira não se acalma?! Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?! Deus pôs almas nos cedros... no junquilho... Esta árvore, meu pai, possui minh'alma! ... - Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa: "Não mate a árvore, pai, para que eu viva!" E quando a árvore, olhando a pátria serra, Caiu aos golpes do machado bronco, O moço triste se abraçou com o tronco E nunca mais se levantou da terra! O martírio do artista Arte ingrata! E conquanto, em desalento, A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda, Busca exteriorizar o pensamento Que em suas frontais células guarda! Tarda-lhe a idéia! A inspiração lhe tarda! E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento, Como o soldado que rasgou a farda No desespero do último momento! Tenta chorar e os olhos sente enxutos!... E como o paralítico que, à míngua Da própria voz e na que ardente o lavra Febre de em vão falar, com os dedos brutos Para falar, puxa e repuxa a língua, E não lhe vem à boca uma palavra!

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Semana de Arte Moderna Os sapos Enfunando os papos, Saem da penumbra, Aos pulos, os sapos. A luz os deslumbra. Em ronco que aterra, Berra o sapo-boi: — “Meu pai foi à guerra!” — “Não foi!” — “Foi!” — “Não foi!”. O sapo-tanoeiro, Parnasiano aguado, Diz: — “Meu cancioneiro É bem martelado. Vede como primo Em comer os hiatos! Que arte! E nunca rimo Os termos cognatos!

[...] Vai por cinqüenta anos Que lhes dei a norma: Reduzi sem danos A formas a forma. Clame a saparia Em críticas céticas: Não há mais poesia, Mas há artes poéticas...” Urra o sapo-boi: — “Meu pai foi rei” — “Foi!” — “Não foi!” — “Foi!” — “Não foi!” Brada em um assomo O sapo-tanoeiro: — “A grande arte é como Lavor de joalheiro. Ou bem de estatuário. Tudo quanto é belo, Tudo quanto é vário, Canta no martelo.”

[...] Lá, fugindo ao mundo, Sem glória, sem fé, No perau profundo E solitário, é

Que soluças tu, Transido de frio, Sapo-cururu Da beira do rio...

Manuel Bandeira

Manifesto Pau-Brasil A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos. O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança. [...] A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos. Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros. Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação. [...] Oswald de Andrade (Correio da Manhã, 1924)

Manifesto Antropofágico Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question. [...] Oswald de Andrade (Revista de Antropofagia, 1928.)

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Modernismo – I fase Oswald de Andrade Erro de português Quando o português chegou Debaixo de uma bruta chuva Vestiu o índio Que pena! Fosse uma manhã de sol O índio tinha despido O português Senhor feudal Se Pedro Segundo Vier aqui Com história Eu boto ele na cadeia Medo da senhora A escrava pegou a filhinha nascida Nas costas E se atirou no Paraíba Para que a criança não fosse judiada Pronominais Dê-me um cigarro Diz a gramática Do professor e do aluno E do mulato sabido Mas o bom negro e o bom branco Da Nação Brasileira Dizem todos os dias Deixa disso camarada Me dá um cigarro Vício na fala Para dizerem milho dizem mio Para melhor dizem mió Para pior pió Para telha dizem teia Para telhado dizem teiado E vão fazendo telhados

O capoeira — Qué apanhá sordado? — O quê? — Qué apanhá? Pernas e cabeças na calçada O gramático Os negros discutiam Que o cavalo sipantou Mas o que mais sabia Disse que era Sipantarrou Relicário No baile da corte Foi o conde d’Eu quem disse Pra Dona Benvinda Que farinha de Suruí Pinga de Parati Fumo de Baependi É comê bebê pitá e caí Brasil O Zé Pereira chegou de caravela E preguntou pro guarani da mata virgem — Sois cristão — Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte Teterê Tetê Quizá Quizá Quecê! Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu! O negro zonzo saído da fornalha Tomou a palavra e respondeu — Sim pela graça de Deus Canhem Babá Canhem Babá Cum Cum! E fizeram o carnaval Guararapes Japoneses Turcos Miguéis Os hotéis parecem roupas alugadas Negros como num compêndio de história pátria Mas que sujeito loiro

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Canto de regresso à pátria Minha terra tem palmares Onde gorjeia o mar Os passarinhos daqui Não cantam como os de lá Minha terra tem mais rosas E quase que mais amores Minha terra tem mais ouro Minha terra tem mais terra Ouro terra amor e rosas Eu quero tudo de lá Não permita Deus que eu morra Sem que volte para lá Não permita Deus que eu morra Sem que volte pra São Paulo Sem que veja a Rua 15 E o progresso de São Paulo. As meninas da gare Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis Com cabelos mui pretos pelas espáduas E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas Que de nós as muito bem olharmos Não tínhamos nenhuma vergonha. Contrabando Os alfandegueiros de Santos Examinaram minhas malas Minhas roupas Mas se esqueceram de ver Que eu trazia no coração Uma saudade feliz De Paris Verbo crackar Eu empobreço de repente Tu enriqueces por minha causa Ele azula para o sertão Nós entramos em concordata Vós protestais por preferência Eles escafedem a massa Sê pirata Sede trouxas Abrindo a pala Pessoal sarado Oxalá que eu tivesse sabido que esse verbo era [irregular.

Mário Andrade Artista O meu desejo é ser pintor — Lionardo, cujo ideal em piedades se acrisola; fazendo abrir-se ao mundo a ampla corola do sonho ilustre que em meu peito guardo... Meu anseio é, trazendo ao fundo pardo da vida, a cor da veneziana escola, dar tons de rosa e de ouro, por esmola, a quanto houver de penedia ou cardo. Quando encontrar o manancial das tintas e os pincéis exaltados com que pintas, Veronese! teus quadros e teus frisos, irei morar onde as Desgraças moram; e viverei de colorir sorrisos nos lábios dos que imprecam ou que choram! Acrisola = purifica Penedia = rocha Cardo = espinho Imprecam = praguejam Moça Linda Bem Tratada Moça linda bem tratada, Três séculos de família, Burra como uma porta: Um amor. Grã-fino do despudor, Esporte, ignorância e sexo, Burro como uma porta: Um coió. Mulher gordaça, filó, De ouro por todos os poros Burra como uma porta: Paciência... Plutocrata sem consciência, Nada porta, terremoto Que a porta do pobre arromba: Uma bomba. Coió = tolo; palerma Plutocrata = rico e poderoso

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Inspiração Onde até na força do verão havia

tempestades de ventos e frios de crudelíssimos invernos

Frei Luís de Souza São Paulo! comoção de minha vida... Os meus amores são flores feitas de original!... Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro... Luz e bruma... Forno e inverno morno... Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes... Perfumes de Paris... Aryz! Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!... São Paulo comoção de minha vida... Galicismo a berrar nos desertos da América. Paisagem n° 1 Minhas Londres das neblinas finas! Plenos verão. Os dez mil milhões de rosas [paulistanas. Há neve de perfume no ar. Faz frio, muito frio... E a ironia das pernas das costureirinhas parecidas com bailarinas... O vento é como uma navalha nas mãos dum espanhol. Arlequinal!... Há duas horas queimou Sol. Daqui a duas horas queima Sol.

[...] Paisagem n° 2 Escuridão dum meio-dia de invernia... Marasmos... Estremeções... Brancos... O céu é toda uma batalha convencional de confetti [brancos; e as onças pardas das montanhas no longe... Oh! para além vivem as primaveras eternas!

[...] Deus recortou a alma de Paulicéia num cor de cinza sem odor...

[...] São Paulo é um palco de bailados russos. Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os [crimes e também as apoteoses de ilusão...

[...] Paisagem n° 3 Chove? Sorri uma garoa de cinza, Muito triste, como um tristemente longo... A Casa Kosmos não tem impermeáveis em [liquidação... [...] As rolas da Normal Esvoaçam entre os dedos da garoa... [...] De repente Um raio de Sol arisco Risca o chuvisco ao meio.

Paisagem n° 4 Os caminhões rodando, as carroças rodando, rápidas as ruas se desenrolando, rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos... E o largo coro de ouro das sacas de café!... Na confluência o grito inglês da São Paulo Railway... Mas as ventaneiras da desilusão! a baixa do café!... As quebras, as ameaças, as audácias superfinas!... Fogem os fazendeiros para o lar!... Cincinato Braga!... Muito ao longe o Brasil com seus braços cruzados... Oh! as indiferenças maternais!...

[...] Oh! Este orgulho máximo de ser paulistamente!!! Cincinato Braga: presidente do Banco do Brasil na década de 1910 Quando eu morrer Quando eu morrer quero ficar, Não contem aos meus inimigos, Sepultado em minha cidade, Saudade. Meus pés enterrem na rua Aurora, No Paissandu deixem meu sexo, Na Lopes Chaves a cabeça Esqueçam. No Pátio do Colégio afundem O meu coração paulistano: Um coração vivo e um defunto Bem juntos. Escondam no Correio o ouvido Direito, o esquerdo nos Telégrafos, Quero saber da vida alheia, Sereia. O nariz guardem nos rosais, A língua no alto do Ipiranga Para cantar a liberdade. Saudade... Os olhos lá no Jaraguá Assistirão ao que há de vir, O joelho na Universidade, Saudade... As mãos atirem por aí, Que desvivam como viveram, As tripas atirem pro Diabo, Que o espírito será de Deus. Adeus.

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Manuel Bandeira Renúncia Chora de manso e no íntimo... Procura Curtir sem queixa o mal que te crucia: O mundo é sem piedade e até riria Da tua inconsolável amargura. Só a dor enobrece e é grande e é pura. Aprende a amá-la que a amarás um dia. Então ela será tua alegria, E será, ela só, tua ventura... A vida é vã como a sombra que passa Sofre sereno e de alma sobranceira Sem um grito sequer, tua desgraça. Encerra em ti tua tristeza inteira. E pede humildemente a Deus que a faça Tua doce e constante companheira... Desencanto Eu faço versos como quem chora De desalento... de desencanto... Fecha o meu livro, se por agora Não tens motivo nenhum de pranto. Meu verso é sangue. Volúpia ardente... Tristeza esparsa... remorso vão... Dói-me nas veias. Amargo e quente, Cai, gota a gota, do coração. E nestes versos de angústia rouca Assim dos lábios a vida corre, Deixando um acre sabor na boca. _ Eu faço versos como quem morre. Consoada Quando a indesejada das gentes chegar (Não sei se dura ou caroável), Talvez eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga:

_ Alô, iniludível! O meu dia foi bom, pode a noite descer. (A noite com os seus sortilégios.) Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, A mesa posta, Com cada coisa em seu lugar.

Poética Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto [expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor. Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no [dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo. Abaixo os puristas Todas as palavras sobretudo os barbarismos [universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de [exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora [de si mesmo. De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de co-senos secretário do [amante exemplar com cem modelos de cartas e as [diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc. Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare — Não quero mais saber do lirismo que não é [libertação. Nova poética Vou lançar a poesia do poeta sórdido. Poeta sórdido: Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida. Vai um sujeito, Sai um sujeito de casa com a roupa de brim [branco muito bem engomada, e na primeira [esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó [de uma nódoa de lama: É a vida. O poema deve ser como a nódoa do brim: Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero. Sei que a poesia é também orvalho. Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, [as virgens cem por cento e as amadas que [envelhecem sem maldade.

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Literatura – Prof. Fabrício César

Tragédia Brasileira Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade. Conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria. Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo o que ela queria. Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado. Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa. Viveram três anos assim. Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa. Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos... Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul. O Bicho Vi ontem um bicho Na imundice do pátio Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa; Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem.

Poema do Beco “Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha [do horizonte? __ O que eu vejo é o beco”. Poema tirado de uma notícia de jornal João Gostoso era carregador de feira-livre e [morava no morro da Babilônia num barracão [sem número Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Dançou Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e [morreu afogado. Pneumotórax Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Tosse, tosse, tosse. Mandou chamar o médico: — Diga trinta e três. — Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . — Respire. ............................................................................... — O senhor tem uma escavação no pulmão [esquerdo e o pulmão direito infiltrado. — Então, doutor, não é possível tentar o [pneumotórax? — Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. Andorinha Andorinha lá fora está dizendo: — "Passei o dia à toa, à toa!" Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais [triste! Passei a vida à toa, à toa . . . Neologismo Beijo pouco, falo menos ainda. Mas invento palavras Que traduzem a ternura mais funda E mais cotidiana. Inventei, por exemplo, o verbo teadorar. Intransitivo: Teadoro, Teodora.

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Arte de Amar Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a [tua alma. A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra alma. Só em Deus – ou fora do mundo. As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não. Debussy Para cá, para lá... Para cá, para lá... Um novelozinho de linha... Para cá, para lá... Para cá, para lá... Oscila no ar pela mão de uma criança... (Vem e vai...) Que delicadamente e quase a adormecer o balança _ Psiu... _ Para cá, para lá... Para cá e... _ O novelozinho caiu. Trem de ferro Café com pão Café com pão Café com pão Virge Maria que foi isso maquinista? Agora sim Café com pão Agora sim Voa, fumaça Corre, cerca Ai seu foguista Bota fogo Na fornalha Que eu preciso Muita força Muita força Muita força Oô... Foge, bicho Foge, povo Passa ponte Passa poste Passa pasto

Passa boi Passa boiada Passa galho Da ingazeira Debruçada No riacho Que vontade De cantar! Oô... Quando me prendero No canaviá Cada pé de cana Era um oficiá Oô... Menina bonita Do vestido verde Me dá tua boca Pra matar minha sede Oô... Vou mimbora vou mimbora Não gosto daqui Nasci no sertão Sou de Ouricuri Oô... Vou depressa Vou correndo Vou na toda Que só levo Pouca gente Pouca gente Pouca gente... Momento num café Quando o enterro passou Os homens que se achavam no café Tiraram o chapéu maquinalmente Saudavam o morto distraídos Estavam todos voltados para a vida Absortos na vida Confiantes na vida. Um, no entanto, se descobriu num gesto largo e demorado Olhando o esquife longamente Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade Que a vida é traição E saudava a matéria que passava Liberta para sempre da alma extinta.

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Modernismo – II fase Carlos Drummond de Andrade No meio do caminho No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra. Cota zero Stop. A vida parou ou foi o automóvel? Consideração do poema Não rimarei a palavra sono com a incorrespondente palavra outono. Rimarei com a palavra carne ou qualquer outra, que todas me convêm. As palavras não nascem amarradas, elas saltam, se beijam, se dissolvem, no céu livre por vezes um desenho, são puras, largas, autênticas, indevassáveis.

[...] Procura da poesia Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais [não contam. Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão [infenso à efusão lírica.

[...] Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consume

com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não colhas no chão o poema que se perdeu. Não adules o poema. Aceita-o como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada [no espaço. Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave? Repara: ermas de melodia e conceito elas se refugiaram na noite, as palavras. Ainda úmidas e impregnadas de sono, rolam num rio difícil e se transformam em desprezo. Memória Amar o perdido deixa confundido este coração. Nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do Não. As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão. Legado Que lembrança darei ao país que me deu tudo que lembro e sei, tudo quanto senti? Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu minha incerta medalha, e a meu nome se ri. E mereço esperar mais do que os outros, eu? Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti. Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu, a vagar, taciturno, entre o talvez e o se. Não deixarei de mim nenhum canto radioso, uma voz matinal palpitando na bruma e que arranque de alguém seu mais secreto espinho. De tudo quanto foi meu passo caprichoso na vida, restará, pois o resto se esfuma, uma pedra que havia em meio do caminho.

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Confidência do Itabirano Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e [comunicação. A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e [sem horizontes. E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana. De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço: esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil; este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; este couro de anta, estendido no sofá da sala de [visitas; este orgulho, esta cabeça baixa… Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói! Infância Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. Minha mãe ficava sentada cosendo. Meu irmão pequeno dormia. Eu sozinho menino entre mangueiras lia a história de Robinson Crusoé, comprida história que não acaba mais. No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu chamava para o café. Café preto que nem a preta velha café gostoso café bom. Minha mãe ficava sentada cosendo olhando para mim: - Psiu... Não acorde o menino. Para o berço onde pousou um mosquito. E dava um suspiro... que fundo! Lá longe meu pai campeava no mato sem fim da fazenda. E eu não sabia que minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

Cidadezinha Qualquer Casas entre bananeiras mulheres entre laranjeiras pomar amor cantar. Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham. Eta vida besta, meu Deus. Quadrilha João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para o Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história. José E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, Você? Você que é sem nome, que zomba dos outros, Você que faz versos, que ama, protesta? e agora, José? [...] Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora? [...] Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja do galope, você marcha, José! José, para onde?

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Poema de sete faces Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu [coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode é serio, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode. Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo. Gauche: adjetivo francês que aqui significa “sem jeito”; “torto”; Morte do Leiteiro

A Cyro Novaes Há pouco leite no país, é preciso entregá-lo cedo. Há muita sede no país, é preciso entregá-lo cedo. Há no país uma legenda, que ladrão se mata com tiro. Então o moço que é leiteiro de madrugada com sua lata sai correndo e distribuindo leite bom para gente ruim. Sua lata, suas garrafas e seus sapatos de borracha

vão dizendo aos homens no sono que alguém acordou cedinho e veio do último subúrbio trazer o leite mais frio e mais alvo da melhor vaca para todos criarem força na luta brava da cidade. Na mão a garrafa branca não tem tempo de dizer as coisas que lhe atribuo nem o moço leiteiro ignaro. morador na Rua Namur, empregado no entreposto, Com 21 anos de idade, sabe lá o que seja impulso de humana compreensão. E já que tem pressa, o corpo vai deixando à beira das casas uma pequena mercadoria. E como a porta dos fundos também escondesse gente que aspira ao pouco de leite disponível em nosso tempo, avancemos por esse beco, peguemos o corredor, depositemos o litro… Sem fazer barulho, é claro, que barulho nada resolve. Meu leiteiro tão sutil de passo maneiro e leve, antes desliza que marcha. É certo que algum rumor sempre se faz: passo errado, vaso de flor no caminho, cão latindo por princípio, ou um gato quizilento. E há sempre um senhor que acorda, resmunga e torna a dormir. Mas este entrou em pânico (ladrões infestam o bairro), não quis saber de mais nada. O revólver da gaveta saltou para sua mão. Ladrão? se pega com tiro. Os tiros na madrugada liquidaram meu leiteiro. Se era noivo, se era virgem, se era alegre, se era bom, não sei, é tarde para saber. Mas o homem perdeu o sono de todo, e foge pra rua. Meu Deus, matei um inocente. Bala que mata gatuno também serve pra furtar a vida de nosso irmão.

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Quem quiser que chame médico, polícia não bota a mão neste filho de meu pai. Está salva a propriedade. A noite geral prossegue, a manhã custa a chegar, mas o leiteiro estatelado, ao relento, perdeu a pressa que tinha. Da garrafa estilhaçada. no ladrilho já sereno escorre uma coisa espessa que é leite, sangue… não sei Por entre objetos confusos, mal redimidos da noite, duas cores se procuram, suavemente se tocam, amorosamente se enlaçam, formando um terceiro tom a que chamamos aurora. A Máquina do Mundo E como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco se misturasse ao som de meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas lentamente se fossem diluindo na escuridão maior, vinda dos montes e de meu próprio ser desenganado, a máquina do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia. Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável pelas pupilas gastas na inspeção contínua e dolorosa do deserto, e pela mente exausta de mentar

[...] Abriu-se em calma pura, e convidando quantos sentidos e intuições restavam a quem de os ter usado os já perdera e nem desejaria recobrá-los, se em vão e para sempre repetimos os mesmos sem roteiro tristes périplos,

[...] assim me disse, embora voz alguma ou sopro ou eco ou simples percussão atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável, em colóquio se estava dirigindo: "O que procuraste em ti ou fora de teu ser restrito e nunca se mostrou, mesmo afetando dar-se ou se rendendo, e a cada instante mais se retraindo, olha, repara, ausculta: essa riqueza sobrante a toda pérola, essa ciência sublime e formidável, mas hermética, essa total explicação da vida, esse nexo primeiro e singular, que nem concebes mais, pois tão esquivo se revelou ante a pesquisa ardente em que te consumiste... vê, contempla, abre teu peito para agasalhá-lo.”

[...] e o absurdo original e seus enigmas, suas verdades altas mais que todos monumentos erguidos à verdade;

[...] tudo se apresentou nesse relance e me chamou para seu reino augusto, afinal submetido à vista humana. Mas, como eu relutasse em responder a tal apelo assim maravilhoso, pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio, a esperança mais mínima — esse anelo de ver desvanecida a treva espessa que entre os raios do sol inda se filtra;

[...] baixei os olhos, incurioso, lasso, desdenhando colher a coisa oferta que se abria gratuita a meu engenho. A treva mais estrita já pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, e a máquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de mãos pensas. As sem-razões do amor Eu te amo porque te amo, Não precisas ser amante, e nem sempre sabes sê-lo. Eu te amo porque te amo. Amor é estado de graça e com amor não se paga. Amor é dado de graça,

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é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários. Eu te amo porque não amo bastante ou demais a mim. Porque amor não se troca, não se conjuga nem se ama. Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo. Amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem (e matam) a cada instante de amor. Os últimos dias Que a terra há de comer, Mas não coma já. Ainda se mova, para o ofício e a posse. E veja alguns sítios antigos, outros inéditos. Sinta frio, calor, cansaço; para um momento; continue. Descubra em seu movimento forças não sabidas, contatos. O prazer de estender-se; o de enrolar-se, ficar inerte. Prazer de balanço, prazer de vôo. Prazer de ouvir música; sobre o papel deixar que a mão deslize. Irredutível prazer dos olhos; certas cores: como se desfazem, como aderem; certos objetos, diferentes a uma luz nova. Que ainda sinta cheiro de fruta, de terra na chuva, que pegue, que imagine e grave, que lembre. [...] E a matéria se veja acabar: adeus composição que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade. Adeus, minha presença, meu olhar e minas veias [grossas, meus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro, sinal meu no rosto, olhos míopes, objetos de uso [pessoal, idéia de justiça, revolta e sono, adeus, vida aos outros legada.

Vinícius de Moraes Soneto de fidelidade De tudo ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. Soneto de separação De repente do riso fez-se o pranto Silencioso e branco como a bruma E das bocas unidas fez-se a espuma E das mãos espalmadas fez-se o espanto. De repente da calma fez-se o vento Que dos olhos desfez a última chama E da paixão fez-se o pressentimento E do momento imóvel fez-se o drama. De repente, não mais que de repente Fez-se de triste o que se fez amante E de sozinho o que se fez contente. Fez-se do amigo próximo o distante Fez-se da vida uma aventura errante De repente, não mais que de repente. A rosa de Hiroxima Pensem nas crianças Mudas telepáticas Pensem nas meninas Cegas inexatas Pensem nas mulheres Rotas alteradas Pensem nas feridas Como rosas cálidas Mas oh não se esqueçam

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Da rosa da rosa Da rosa de Hiroxima A rosa hereditária A rosa radioativa Estúpida e inválida A rosa com cirrose A anti-rosa atômica Sem cor sem perfume Sem rosa sem nada. Poema enjoadinho Filhos... Filhos? Melhor não tê-los! Mas se não os temos Como sabê-lo? Se não os temos Que de consulta Quanto silêncio Como os queremos! Banho de mar Diz que é um porrete... Cônjuge voa Transpõe o espaço Engole água Fica salgada Se iodifica Depois, que boa Que morenaço Que a esposa fica! Resultado: filho. E então começa A aporrinhação: Cocô está branco Cocô está preto Bebe amoníaco Comeu botão. Filhos? Filhos Melhor não tê-los Noites de insônia Cãs prematuras Prantos convulsos Meu Deus, salvai-o! Filhos são o demo Melhor não tê-los... Mas se não os temos Como sabê-los? Como saber Que macieza Nos seus cabelos Que cheiro morno Na sua carne Que gosto doce Na sua boca! Chupam gilete Bebem shampoo Ateiam fogo

No quarteirão Porém, que coisa Que coisa louca Que coisa linda Que os filhos são! A Casa Era uma casa Muito engraçada Não tinha teto, Não tinha nada Ninguém podia Entrar nela, não Porque na casa Não tinha chão Ninguém podia Dormir na rede Porque na casa Não tinha parede Ninguém podia Fazer pipi Porque penico Não tinha ali Mas era feita Com muito esmero Na rua dos bobos Número Zero. Samba da benção É melhor ser alegre que ser triste Alegria é a melhor coisa que existe É assim como a luz no coração Mas pra fazer um samba com beleza É preciso um bocado de tristeza - bis Senão, não se faz um samba não.

[...] Fazer samba não é contar piada E quem faz samba assim não é de nada O bom samba é uma forma de oração Porque o samba é a tristeza que balança E a tristeza tem sempre uma esperança - bis De um dia não ser mais triste não

[...] Ponha um pouco de amor numa cadência E vai ver que ninguém no mundo vence A beleza que tem um samba, não Porque o samba nasceu lá na Bahia E se hoje ele é branco na poesia - bis Ele é negro demais no coração.

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Cecília Meireles Retrato Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: - Em que espelho ficou perdida a minha face? Turismo – Leve o doce de chila! – dizia. E era pálida e suave, sua boca de nata. E seu vestido, de linho alvo. Mirava com olhos de água e opala. E embrulhava os doces com papel branco, lentamente, sem ruído. Nunca vi nada assim: Toda a leiteria era cândida: esmalte, mármore, porcelana. E seus braços formavam rios de leite, e suas unhas, como seixos pequeninos, brincavam com o barbante, viborazinha de [marfim. Levantou seu rosto que nem camélia. E sorriu, com uma tênue espuma nos dentes de crista. Eu pensava-a abstrata, e desmanchava-a em laranjeira florida, sob um luar absoluto. Mas disse-me, entre os queijos tenros: – Faltam cinco centavos. E esperou, com a palma da mão aberta. Assim mesmo, sua mão parecia um narciso [inclinado.

Chila: espécie de abóbora comum em Portugal. Seixos: pedrinhas.

Recordação Agora, o cheiro áspero das flores leva-me os olhos por dentro de suas pétalas. Eram assim teus cabelos; tuas pestanas eram assim, finas e curvas. As pedras limosas, por onde a tarde ia aderindo, tinham a mesma exaltação de água secreta, de talos molhados, de pólen, de sepulcro e de ressurreição. E as borboletas sem voz dançavam assim veludosamente. Restitui-te na minha memória, por dentro das flores! Deixa virem teus olhos, como besouros de ônix, tua boca de malmequer orvalhado, e aquelas tuas mãos dos inconsoláveis mistérios, com suas estrelas e cruzes, e muitas coisas tão estranhamente escritas nas suas nervuras nítidas de folha, - e incompreensíveis, incompreensíveis. Modinha Tuas palavras antigas deixei-as todas, deixei-as, junto com as minhas cantigas, desenhadas nas areias. Tantos sóis e tantas luas brilharam sobre essas linhas, das cantigas — que eram tuas — das palavras — que eram minhas! O mar, de língua sonora, sabe o presente e o passado. Canta o que é meu, vai-se embora: que o resto é pouco e apagado. A chuva chove... A chuva chove mansamente... como um sono Que tranqüilize, pacifique, resserene... A chuva chove mansamente... Que abandono! A chuva é a música de um poema de Verlaine... E vem-me o sonho de uma véspera solene, Em certo paço, já sem data e já sem dono... Véspera triste como a noite, que envenene A alma, evocando coisas líricas de outono... ...Num velho paço, muito longe, em terra estranha, Com muita névoa pelos ombros da montanha... Paço de imensos corredores espectrais, Onde murmurem, velhos órgãos, árias mortas, Enquanto o vento, estrepitando pelas portas, Revira in-fólios, cancioneiros e missais...

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Retrato em Luar Meus olhos ficam neste parque, Minhas mãos no musgo dos muros, Para o que um dia vier buscar-me, Entre pensamentos futuros. Não quero pronunciar teu nome, Que a voz é o apelido do vento, E os graus da esfera me consomem Toda, no mais simples momento. São mais duráveis a hera, as malvas, Que a minha face deste instante. Mas posso deixá-la em palavras, Gravada num tempo constante. Nunca tive os olhos tão claros E o sorriso em tanta loucura. Sinto-me toda igual às arvores: Solitária, perfeita e pura. Aqui estão meus olhos nas flores, Meus braços ao longo dos ramos: E, no vago rumor das fontes, Uma voz de amor que sonhamos. Motivo Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta. Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento. Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, — não sei, não sei. Não sei se fico ou passo. Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: — mais nada.

Pistóia, Cemitério brasileiro Eles vieram felizes, como para grande jogos atléticos: com um largo sorriso no rosto, com forte esperança no peito, - porque eram jovens e eram belos. Marte, porém, soprava fogo por estes campos e estes ares. E agora estão na calma terra, sob estas cruzes e estas flores, cercados por montanhas suaves. São como um grupo de meninos num dormitório sossegado, com lençóis de nuvens imensas, e um longo sono sem suspiros, de profundíssimo cansaço. [...] Este cemitério tão puro é um dormitório de meninos: e as mães de muito longe chamam, entre as mil cortinas do tempo, cheias de lágrimas, seus filhos. [...] E as mães esperam que ainda acordem, como foram, fortes e belos, depois deste rude exercício, desta metralha e deste sangue, destes falsos jogos atléticos. Entretanto, céu, terra, flores, é tudo horizontal silêncio. O que foi chaga, é seiva e aroma, - do que foi sonho, não se sabe - e a dor anda longe, no vento...

Romanceiro da Inconfidência (1953) Romance II ou Do Ouro Incansável Mil bateias vão rodando sobre córregos escuros; a terra vai sendo aberta por intermináveis sulcos; infinitas galerias penetram morros profundos. De seu calmo esconderijo, O ouro vem, dócil e ingênuo; torna-se pó, folha, barra, prestígio, poder, engenho.. É tão claro! - e turva tudo: honra, amor e pensamento.

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Borda flores nos vestidos, sobe a opulentos altares, traça palácios e pontes, eleva os homens audazes, e acende paixões que alastram sinistras rivalidades. [...] Por ódio, cobiça, inveja, vai sendo o inferno traçado. Os reis querem seus tributos, - mas não se encontram vassalos. Mil bateias vão rodando, mil bateias sem cansaço. Mil galerias desabam; mil homens ficam sepultos; mil intrigas, mil enredos prendem culpados e justos; já ninguém dorme tranqüilo, que a noite é um mundo de sustos. Romance V ou Da Destruição de Ouro Podre Toda vez que um justo grita Um carrasco o vem calar Quem não presta fica vivo Quem é bom, mandam matar Quem não presta fica vivo Quem é bom, mandam matar Foi trabalhar para todos E vede o que lhe acontece Daqueles a quem servia Já nenhum mais o conhece Quando a desgraça é profunda Que amigo se compadece? Romance XXI ou Das Idéias A vastidão destes campos. A alta muralha das serras. As lavras inchadas de ouro. Os diamantes entre as pedras. Negros, índios e mulatos. Almocafres e gamelas. Os rios todos virados. Toda revirada, a terra. Capitães, governadores, Padres, intendentes, poetas.

[...] Sinos. Procissões. Promessas. Anjos e santos nascendo Em mãos de gangrena e lepra.

[...] Pátios de seixos. Escadas. Boticas. Pontes. Conversas. Gente que chega e que passa. E as idéias.

Romance XXIV ou Da Bandeira da Inconfidência Atrás de portas fechadas, à luz de velas acesas, uns sugerem, uns recusam, uns ouvem, uns aconselham. Se a derrama for lançada, há levante, com certeza. Corre-se por essas ruas? Corta-se alguma cabeça? [...] Através de grossas portas, sentem-se luzes acesas, - e há indagações minuciosas dentro das casas fronteiras. “Que estão fazendo, tão tarde? Que escrevem, conversam, pensam? Mostram livros proibidos? Lêem notícias nas Gazetas? Terão recebido cartas de potências estrangeiras?” [...] Ó vitórias, festas, flores das lutas da Independência! Liberdade - essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda! Romance LXII ou Do Bêbedo Descrente Vi o penitente de corda ao pescoço. A morte era o menos: mais era o alvoroço. Se morrer é triste, por que tanta gente vinha para a rua com cara contente? (Ai, Deus, homens, reis, rainhas... Eu vi a forca - e voltei. Os paus vermelhos que tinha!) Batiam os sinos, rufavam tambores, havia uniformes, cavalos com flores... - Se era um criminoso, por que tantos brados, veludos e sedas por todos os lados? [...]

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Não era uma festa. Não era um enterro. Não era verdade e não era erro. - Então por que se ouvem salmo e ladainha, se tudo é vontade da nossa Rainha? (Deus, homens, rainhas, reis.. Que grande desgraça a minha! - Nunca vos entenderei!) Romance LXXXI ou Dos Ilustres Assassinos Ó grandes oportunistas Sobre o papel debruçados Que calculais o mundo e vida Em contos, doblas, cruzados, Que traçais vastas rubricas E sinais entrelaçados Com altas penas esguias Embebidas em pecados! Ó personagens solenes Que arrastais os apelidos Como pavões auriverdes Seus rutilantes vestidos - todo este poder que tendes Confunde os vossos sentidos: A glória, que amais, é desses Que por vós são perseguidos. Levantai-vos dessas mesas, Saí das vossas molduras, Vede que masmorras negras, Que fortalezas seguras, Que duro peso de algemas, Que profunda sepulturas Nascidas de vossas penas, De vossas assinaturas! Considerai no mistério, Dos humanos desatinos E no pólo sempre incerto Dos homens e dos destinos! Por sentenças, por decretos Pareceríeis divinos: E hoje sois, no tempo eterno, Como ilustres assassinos. Ó soberbos titulares, Tão desdenhosos e altivos! Por fictícia austeridade, Vãs razões, falsos motivos, Inutilmente matastes: - vossos mortos são mais vivos; E, sobre vós, de longe abrem Grandes olhos pensativos.

Modernismo – III fase

João Cabral de Melo Neto Catar feijão 1. Catar feijão se limita com escrever: jogam-se os grãos na água do alguidar e as palavras na da folha de papel; e depois joga-se fora o que boiar. Certo, toda palavra boiará no papel, água congelada, por chumbo seu verbo: pois para catar feijão, soprar nele, e jogar fora o leve e oco, palha e eco. 2. Ora, nesse catar feijão, entra um risco: o de entre os grãos pesados entre um grão qualquer, pedra ou indigesto, um grão imastigável, de quebrar dente. Certo não, quanto ao catar palavras: a pedra dá à frase seu grão mais vivo: obstrui a leitura fluviante, flutual, açula a atenção, isca-a com o risco. O engenheiro A luz, o sol, o ar livre envolvem o sono do engenheiro. O engenheiro sonha coisas claras: superfícies, tênis, um copo de água. O lápis, o esquadro, o papel; o desenho, o projeto, o número: o engenheiro pensa o mundo justo, mundo que nenhum véu encobre. (Em certas tardes nós subíamos ao edifício. A cidade diária, como um jornal que todos liam, ganhava um pulmão de cimento e vidro). A água, o vento, a claridade, de um lado o rio, no alto as nuvens, situavam na natureza o edifício crescendo de suas forças simples. “ A palo seco” 1.1. Se diz a palo seco o cante sem guitarra; o cante sem; o cante; o cante sem mais nada [...] 1.3. O cante a palo seco é um cante desarmado; só a lâmina da voz sem a arma do braço

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Graciliano Ramos Falo somente com o que falo: com as mesmas vinte palavras girando ao redor do sol que as limpa do que não é faca: de toda uma crosta viscosa, resto de janta abaianada, que fica na lâmina e cega seu gosto da cicatriz clara. * * * [...] Falo somente com o que falo: quem padece sono de morto e precisa um despertador acre, como o sol sobre o olho: que é quando o sol é estridente, e contra-pêlo, imperioso, e bate nas pálpebras como se bate numa porta a socos.

* * * A educação pela pedra Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, freqüentá-la; captar sua voz inenfática, impessoal (pela dicção ela começa as aulas). A lição de moral, sua resistência fria ao que flui e a fluir, a ser maleada; a de poética, sua carnadura concreta; a de economia, seu adensar-se compacta: lições de pedra (de fora para dentro, cartilha muda), para quem soletrá-la. * Outra educação pela pedra: no Sertão (de dentro para fora, e pré-didática). No Sertão a pedra não sabe lecionar, e se lecionasse, não ensinaria nada; lá não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de nascença, entranha alma Cemitério Pernambucano (Nossa Senhora da Luz) Nesta terra ninguém jaz, pois também não jaz um rio noutro rio, nem o mar é cemitério de rios. Nenhum dos mortos daqui vem vestido de caixão. Portanto, eles não se enterram, são derramados no chão.

Vêm em redes de varandas abertas ao sol e à chuva. Trazem suas próprias moscas. O chão lhes vai como luva. Mortos ao ar-livre que eram, hoje à terra-livre estão. São tão da terra que a terra nem sente sua intrusão. Tecendo a manhã 1. Um galo sozinho não tece uma manhã: Ele precisará sempre de outros galos. De que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe esse grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. 2. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Morte e vida Severina (Auto de Natal Pernambucano) 1954-1955

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI — O meu nome é Severino, Não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mas isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem fala ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino

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da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com nome de Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia. Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida).

[...] Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra.

[...] O RETIRANTE TEM MEDO DE SE EXTRAVIAR PORQUE SEU GUIA, O RIO CAPIBARIBE, CORTOU COM O VERÃO — Antes de sair de casa aprendi a ladainha das vilas que vou passar na minha longa descida. [...] Devo rezar tal rosário até o mar onde termina, saltando de conta em conta, passando de vila em vila.

Vejo agora: não é fácil seguir essa ladainha; entre uma conta e outra conta, entre uma a outra ave-maria, há certas paragens brancas, de planta e bicho vazias, vazias até de donos, e onde o pé se descaminha. DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE DEPOIS DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE SABERÁ — Muito bom dia, senhora, que nessa janela está; sabe dizer se é possível algum trabalho encontrar? — Trabalho aqui nunca falta a quem sabe trabalhar; o que fazia o compadre na sua terra de lá?

[...] — Deseja mesmo saber o que eu fazia por lá? comer quando havia o quê e, havendo ou não, trabalhar.

[...] — Agora se me permite minha vez de perguntar: como senhora, comadre, pode manter o seu lar? — Vou explicar rapidamente, logo compreenderá: como aqui a morte é tanta, vivo de a morte ajudar.

[...] — E se pela última vez me permite perguntar: não existe outro trabalho para mim nesse lugar? — Como aqui a morte é tanta, só é possível trabalhar nessas profissões que fazem da morte ofício ou bazar. Imagine que outra gente de profissão similar, farmacêuticos, coveiros, doutor de anel no anular, remando contra a corrente da gente que baixa ao mar, retirantes às avessas, sobem do mar para cá. Só os roçados da morte compensam aqui cultivar, e cultivá-los é fácil:

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simples questão de plantar; não se precisa de limpa, de adubar nem de regar; as estiagens e as pragas fazem-nos mais prosperar; e dão lucro imediato; nem é preciso esperar pela colheita: recebe-se na hora mesma de semear. APROXIMA-SE DO RETIRANTE O MORADOR DE UM DOS MOCAMBOS QUE EXISTEM ENTRE O CAIS E A ÁGUA DO RIO — Seu José, mestre carpina, que habita este lamaçal, sabes me dizer se o rio a esta altura dá vau? sabe me dizer se é funda esta água grossa e carnal? — Severino, retirante, jamais o cruzei a nado; quando a maré está cheia vejo passar muitos barcos, barcaças, alvarengas, muitas de grande calado. — Seu José, mestre carpina, para cobrir corpo de homem não é preciso muito água: basta que chega ao abdome, basta que tenha fundura igual à de sua fome. — Severino, retirante, pois não sei o que lhe conte; sempre que cruzo este rio costumo tomar a ponte; quanto ao vazio do estômago, se cruza quando se come. — Seu José, mestre carpina, e quando ponte não há? quando os vazios da fome não se tem com que cruzar? quando esses rios sem água são grandes braços de mar? — Severino, retirante, o meu amigo é bem moço; sei que a miséria é mar largo, não é como qualquer poço: mas sei que para cruzá-la vale bem qualquer esforço.

[...]

— Seu José, mestre carpina, que lhe pergunte permita: há muito no lamaçal

apodrece a sua vida? e a vida que tem vivido foi sempre comprada à vista? — Severino, retirante, sou de Nazaré da Mata, mas tanto lá como aqui jamais me fiaram nada: a vida de cada dia cada dia hei de comprá-la.

[...]

— Seu José, mestre carpina, que diferença faria se em vez de continuar tomasse a melhor saída: a de saltar, numa noite, fora da ponte e da vida? O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE EM NADA — Severino retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte e da vida; nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga; é difícil defender, só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, severina; mas se responder não pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a respondeu com sua presença viva. E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida; mesmo quando é uma explosão como a de há pouco, franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida severina.

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Poesia Concreta

Décio Pignatari

Augusto de Campos

Augusto de Campos

Augusto de Campos

Pedro Xisto

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Pedro Xisto

vai e vem

e e

vem e vai José Lino Grünewald

V V V V V V V V V V

V V V V V V V V V E

V V V V V V V V E L

V V V V V V V E L O

V V V V V V E L O C

V V V V V E L O C I

V V V V E L O C I D

V V V E L O C I D A

V V E L O C I D A D

V E L O C I D A D E

Ronaldo Azeredo

José Paulo Paes

Décio Pignatari

Philadelpho Menezes

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Poema/processo

Poema Código FOME

José de Arimatéia

Poesia Social Ferreira Gullar Não há vagas O preço do feijão não cabe no poema. O preço do arroz não cabe no poema. Não cabem no poema o gás a luz o telefone a sonegação do leite da carne do açúcar do pão

O funcionário público não cabe no poema com seu salário de fome sua vida fechada em arquivos. Como não cabe no poema o operário que esmerila seu dia de aço e carvão nas oficinas escuras - porque o poema, senhores, está fechado: "não há vagas" Só cabe no poema o homem sem estômago a mulher de nuvens a fruta sem preço O poema, senhores, não fede nem cheira Poema obsceno Façam a festa cantem e dancem que eu faço o poema duro o poema-murro sujo como a miséria brasileira Não se detenham: façam a festa Bethânia Maninho Clementina Estação Primeira de Mangueira Salgueiro gente de Vila Isabel e Madureira todos façam a nossa festa enquanto eu soco este pilão este surdo poema que não toca no rádio que o povo não cantará (mas que nasce dele) Não se prestará a análises estruturalistas Não entrará nas antologias oficiais Obsceno como o salário de um trabalhador aposentado o poema terá o destino dos que habitam o lado escuro do país - e espreitam.

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O açúcar O branco açúcar que adoçará meu café Nesta manhã de Ipanema Não foi produzido por mim Nem surgiu dentro do açucareiro por milagre. Vejo-o puro E afável ao paladar Como beijo de moça, água Na pele, flor Que se dissolve na boca. Mas este açúcar Não foi feito por mim. Este açúcar veio Da mercearia da esquina e Tampouco o fez o Oliveira, Dono da mercearia. Este açúcar veio De uma usina de açúcar em Pernambuco Ou no Estado do Rio E tampouco o fez o dono da usina. Este açúcar era cana E veio dos canaviais extensos Que não nascem por acaso No regaço do vale. Em lugares distantes, Onde não há hospital, Nem escola, homens que não sabem ler e morrem de fome Aos 27 anos Plantaram e colheram a cana Que viraria açúcar. Em usinas escuras, homens de vida amarga E dura Produziram este açúcar Branco e puro Com que adoço meu café esta manhã Em Ipanema. Traduzir-se Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém: fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão:

outra parte estranheza e solidão. Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira. Uma parte de mim almoça e janta: outra parte se espanta. Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente. Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem. Traduzir uma parte na outra parte — que é uma questão de vida ou morte — será arte? Dois e Dois: Quatro Como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena embora o pão seja caro e a liberdade pequena Como teus olhos são claros e a tua pele, morena como é azul o oceano e a lagoa, serena Como um tempo de alegria por trás do terror me acena e a noite carrega o dia no seu colo de açucena - sei que dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena mesmo que o pão seja caro e a liberdade pequena.

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Poesia Marginal Cacaso Jogos florais Minha terra tem palmeiras onde canta o tico-tico. Enquanto isso o sabiá vive comendo o meu fubá. Ficou moderno o Brasil ficou moderno o milagre: a água já não vira vinho, vira direto vinagre. Minha terra tem Palmares memória cala-te já. Peço licença poética Belém capital Pará. Bem, meus prezados senhores dado o avançado da hora errata e efeitos do vinho o poeta sai de fininho. (será mesmo com dois esses que se escreve paçarinho?) Descartes Não há no mundo nada mais bem distribuído do que a razão: até quem não tem tem um pouquinho Chacal Papo de Índio Veiu uns ômi di saia preta cheiu di caixinha e pó branco qui eles disserum qui chamava açucri aí eles falarum e nós fechamu a cara depois eles arrepitirum e nós fechamu o corpo aí eles insistirum e nós comemu eles. Rápido e Rasteiro Vai ter uma festa que eu vou dançar até o sapato pedir pra parar.

aí eu paro tiro o sapato e danço o resto da vida.

Paulo Leminski cansei da frase polida por anjos da cara pálida palmeiras batendo palmas ao passarem paradas agora eu quero a pedrada chuva de pedras palavras distribuindo pauladas -- -- -- o pauloleminski é um cachorro louco que deve ser morto a pau a pedra a fogo a pique senão é bem capaz o filhodaputa de fazer chover em nosso piquenique -- -- -- minha mãe dizia - ferve, água! - frita, ovo! - pinga, pia! e tudo obedecia -- -- -- saber é pouco como é que a água do mar entra dentro do coco? -- -- -- quem é vivo aparece sempre no momento errado para dizer presente onde não foi chamado -- -- -- ameixas ame-as ou deixe-as -- -- -- verde a árvore caída vira amarelo a última vez na vida. -- -- --

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esta vida é uma viagem pena eu estar só de passagem -- -- -- Lápide 1 - Epitáfio para o corpo aqui jaz um grande poeta. nada deixou escrito. esse silêncio, acredito, são suas obras completas. -- -- -- Amor, então, também acaba? Não, que eu saiba. O que eu sei é que se transforma numa matéria-prima que a vida se encarrega de transformar em raiva. Ou em rima. -- -- -- nascemos em poemas diversos destino quis que a gente se achasse na mesma estrofe e na mesma classe no mesmo verso e na mesma frase rima à primeira vista nos vimos trocamos nossos sinônimos olhares não mais anônimos nesta altura da leitura nas mesmas pistas mistas a minha a tua a nossa linha -- -- -- amar é um elo entre o azul e o amarelo -- -- -- domingo canto dos passarinhos doce que dá para por no café -- -- -- só mesmo um velho para descobrir, detrás de uma pedra, toda primavera. -- -- --

Hesitei horas antes de matar o bicho Afinal, era um bicho como eu, com direitos, com deveres. E, sobretudo, incapaz de matar um bicho, como eu. -- -- -- Meu avô-macaco Aquele que Darwin buscou Me olha do galho: Busca a força dos caninos O vigor dos pulsos O arfar do peito O menear da cabeça O trabalho Tudo se foi Nada mais resta Do fulgor primata Da força de boi Saber Saber mata -- -- -- ler pelo não

Ler pelo não, quem dera! Em cada ausência, sentir o cheiro forte

do corpo que se foi, a coisa que se espera.

Ler pelo não, além da letra, ver, em cada rima vera, a prima pedra,

onde a forma perdida procura seus etcéteras.

Desler, tresler, contraler, enlear-se nos ritmos da matéria,

no fora, ver o dentro e, no dentro, o fora, navegar em direção às Índias

e descobrir a América. -- -- --

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aves de ramo em ramo meu pensamento de rima em rima erra até uma que diz te amo -- -- -- queima me um beijo fogueira de restos do amor queima se pode queima a suspeita que em meu peito teima quebra meu dia que em tanta pedra explode queima meu nome que em fogo teu transforme essa tempestade a vida em tempo de poesia queima me tanto que me lembre sempre o vento que me leva para a frente ventania -- -- -- ali só ali se se Alice ali se visse quanto Alice viu e não disse se ali ali se dissesse quanta palavra veio e não desce ali bem ali dentro da Alice só Alice com Alice ali se parece -- -- --

Razão de ser Escrevo. E pronto. Escrevo porque preciso, preciso porque estou tonto. Ninguém tem nada com isso. Escrevo porque amanhece, e as estrelas lá no céu lembram letras no papel, quando o poema me anoitece. A aranha tece teias. O peixe beija e morde o que vê. Eu escrevo apenas. Tem que ter por quê? -- -- -- moinho de versos movido a vento em noites de boemia vai vir o dia quando tudo que eu diga seja poesia -- -- -- O assassino era o escriba Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente. Um pleonasmo, o principal predicado de sua vida, regular como um paradigma da 1ª conjunção. Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial, ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito assindético de nos torturar com um aposto. Casou com uma regência. Foi infeliz. Era possessivo como um pronome. E ela era bitransitiva. Tentou ir para os EUA. Não deu. Acharam um artigo indefinido na sua bagagem. A interjeição do bigode declinava partículas expletivas, conectivos e agentes da passiva o tempo todo. Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça. -- -- --