Apostila de Sociologia e Educacao I

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Antônio Marcelo Jackson Ferreira da Silva Sociologia e Educação I Ouro Preto/MG, 2010 Sociologia e Educação I..indd 1 4/1/2011 11:10:07

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Antônio Marcelo JacksonFerreira da Silva

Sociologia e Educação I

Ouro Preto/MG, 2010

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DIAGRAMAÇÃOAlexandre Pereira de Vasconcellos

Copyright © 2010. Todos os direitos desta edição pertencem ao Centro de Educação Aberta e a Distância da Universidade Federal de Ouro Preto (CEAD/UFOP). Reprodução permitida desde que citada a fonte.

Catalogação: Sisbin/UFOP

S586s Silva, Antonio Marcelo Jackson Ferreira da. Sociologia e educação / Antonio Marcelo Jackson Ferreira da Silva. - Ouro Preto : UFOP, 2010. 102 p.; il.

ISBN: 1. Sociologia educacional I. Universidade Federal de Ouro Preto. II. Título. CDU: 316:37

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SUMÁRIO

APRESENTAçãO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .05

CAPíTULO I - AUGUSTO COMTE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .07

CAPíTULO II - KARL MARx. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21

CAPíTULO III - ÉMILE DURKHEIM. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .41

CAPíTULO IV - MAx WEBER. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .57

CAPíTULO V - OS PAPÉIS SOCIAIS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .69

CAPíTULO VI - A NOçãO DE TEMPO E O SENTIDO DA ESCOLA. . . . . . . . . . . . . . .75

CAPíTULO VII - ESCOLA E CULTURA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21

SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21

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INTRODUÇÃO

Se nos é possível identificar que desde os primórdios da filosofia existiram estudos sobre o comportamento humano - visto que, a própria idéia de filosofia possuía como um de seus principais fundamentos esse estudo -, por outro lado é no século xVIII com o advento do Iluminismo que a condição do indivíduo em sociedade passa a ter relevo entre as preocupações de diversos pensadores. Primeiro, porque, como desdobramento do pensamento renascentista, o Século das Luzes tinha como centro de suas atenções o Homem e suas criações e, em segundo lugar, porque o próprio fundamento da razão - o racionalismo buscado pelos autores setecentistas - indicava que um dos principais caminhos a seguir nas reflexões era justamente entender a condição social humana.

Nesse sentido, ainda que o primeiro conjunto de idéias tenha construído como objeto central o universo das relações políticas em autores como Maquiavel (já no século XVI) com O Príncipe, seguido de Thomas Hobbes e John Locke (respectivamente, com o Leviatã e Segundo Tratado sobre o Governo) no século xVII, em todos esses casos os seres humanos e a sociedade apareciam como parte fundamental da análise: em Nicolau Maquiavel, instruía-se o governante na “arte da política” em função da forma de comportamento social dos governados, cotidianamente voltados para seus afazeres diários e limitados em sua visão de mundo; em Hobbes, o contrato social se firmava pela definição apresentada quanto a assim chamada “natureza humana”, condição que neste autor era determinada pelo apego a valores mesquinhos, egoístas e vingativos, fazendo do Homem um ser propenso a viver em um “triste estado de guerra”. Frente a isso, a única solução possível para uma coexistência minimamente civilizada no meio social seria a existência de um poder superior a todos e que controlasse essa “natureza”; em Locke, novamente um contrato social se fundava em virtude dos resultados e aplicações do fruto do trabalho dos homens, originalmente voltado de forma exclusiva a seu sustento e que, posteriormente, entra em decadência inviabilizando alguns valores fundamentais como, por exemplo, a liberdade. Nesse sentido, o ingresso no século xVIII e a ascensão do Iluminismo intensificaram o que já se apresentara nos dois séculos anteriores.

Assim, há de se perceber que as propostas Iluministas não se produziam do nada. Muitas das vezes, somadas às idéias produzidas anteriormente, resultavam também de novas condições sociais que o estranho século XVIII confrontava seus autores. Um bom exemplo diz respeito à interpretação sobre a pobreza das pessoas: primeiro, considerava-se que a miserabilidade era fruto dos desígnios de Deus (forma, talvez, de castigo pelo “Pecado Original”); depois, surgiu o pressuposto de que a pobreza era gerada pela incompetência dos miseráveis, ou seja, se o sujeito vivia em estado de constante penúria isso se dava em função de sua preguiça ou incapacidade para administrar sua própria vida; por fim, às vésperas do século XIX, Robert Malthus inseriu no

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debate a irresistível condição das sociedades humanas: segundo ele, existiu e existiria sempre uma relação desigual entre a reprodução da espécie e a produção material das condições de subsistência. Em outras palavras, para utilizarmos aqui a expressão clássica, enquanto os homens se reproduzem de maneira geométrica, as condições materiais se multiplicam de forma aritmética. Assim, a fome seria uma constante na existência humana na Terra, cabendo aos governos tomar providências para esclarecer a todos sobre esse insolúvel problema.1

Um segundo exemplo quanto a essas novas condições sociais vincula-se ao surgimento paulatino nos setecentos da importância política dos indivíduos e da participação desses mesmos sujeitos no cotidiano dos governos. Dito de forma distinta, em uma espécie de curva crescente, discutia-se a necessidade inequívoca - segundo alguns - de eleições regulares, de representação dos governados nas ações dos governantes, de direitos e obrigações dos cidadãos. Nesses termos, a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa trouxeram à baila novos temas para o debate e modificaram tremendamente o cenário político e social. Para que possamos entender o grau de impacto vejamos inicialmente o caso da Revolução Norte-Americana.

Influenciados pelas idéias de Montesquieu, onde a melhor organização do governo seria aquela que evitasse qualquer ação tirânica por parte do governante (daí a divisão dos Poderes de Estado em três, autônomos e equilibrados), os teóricos da Independência dos Estados Unidos elaboraram uma Constituição onde, para além do controle sobre uma possível ação imperativa de qualquer um que estivesse no poder, também seria uma obrigação desse mesmo Estado a produção ou criação de condições para que qualquer indivíduo encontrasse a sua felicidade. Aparentemente ingênua em sua afirmação, essa tese transforma as pessoas – ou antes, suas vidas – em protagonistas da vida política de um país, em detrimento das razões de Estado defendidas até aquele momento. Sem dúvida, uma gigantesca alteração.

Concomitantemente a isso, a Revolução Francesa - notadamente inspirada em Rousseau - inseria definitivamente a ideia de uma igualdade jurídica entre os membros de uma mesma sociedade (“todos nascem livres e iguais perante a Lei”), o que mais uma vez transformava os seres em protagonistas no cenário das instituições do país.

Um terceiro exemplo diz respeito às concepções produzidas nos setecentos em relação às ciências e a invenção de idéia de progresso. Vejamos parte a parte.

Inegavelmente que os séculos de Galileu, Copérnico, Bruno, entre tantos outros, produziram nas mentes o entendimento de que a ciência e a tecnologia eram os frutos mais � - Na teoria de Malthus o problema se resolveria pela educação, ou seja, os governos deveriam criar escolas para que por meio do ensino os pobres não mais se revoltassem pela sua condição miserável. Para maiores detalhes, ver Reinhard Bendix. Construção Nacional e Cidadania. São Paulo: EdUSP, 1996 p. e ss.

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bem acabados de um processo que valorizava o uso da razão em detrimento das superstições e explicações religiosas para os acontecimentos do mundo. Ainda na primeira metade do século xVIII, o napolitano Giambattista Vico publicava Princípios de uma Ciência Nova onde dá relevo ao conjunto de fatos nas sociedades humanas, buscando demonstrar que muitas das vezes a inventividade e o próprio mito eram elementos criativos e que poderiam ser bem aproveitados se bem estudados - ao contrário do que preconização o pensar lógico defendido por muitos, à época.

Se a valorização dos mitos não foi necessariamente bem recebida por parte dos pensadores, a possibilidade de que a análise histórica fornecia bons argumentos prevaleceu. Em outras palavras, apresentava-se pela primeira vez a idéia de que existia uma História (com “H” maiúsculo), distante das concepções literárias que esta possuía até então2, e que oferecia ao estudioso um grupo de elementos para a melhor compreensão do mundo em que vivia. Alguns anos depois da publicação de Vico, o filósofo francês Condorcet apresentava seu livro Esboço de um Quadro Histórico dos Progressos do Espírito Humano onde, lançando mão da “nova fórmula” da História, indica que o desenvolvimento da humanidade ao longo do tempo deu-se notadamente a partir das descobertas e invenções da ciência e da tecnologia, tornando factível acreditar que o Homem caminhava para uma era onde a organização social e política dar-se-ia pelo uso exclusivo da razão. Essa obra de Condorcet reunia num só corpo a idéia de que a História era um bom instrumento de análise, a idéia de que a ciência e a tecnologia eram preponderantes, a idéia de que a ordem social e política podiam e deviam ter fundamentos lógico-científicos. Em outras palavras, atingia-se o apogeu dos princípios Iluministas e, concomitantemente, criava-se um novo cenário para os saberes humanos. De um lado, a sociedade e seus indivíduos tornaram-se protagonistas nas relações políticas e sociais; de outro, a organização dessas relações e o entendimento sobre as mesmas somente poderia funcionar com o uso da razão (leia-se ciência e tecnologia).

A este cenário recém criado em fins do século XVIII, o alvorecer dos oitocentos somou, por desdobramento, novos ingredientes. O debate, para o bem da verdade, surgira num relato político produzido pelo inglês Edmund Burke quando presenciou, literalmente da janela da casa em que vivia em Paris, toda a crise gerada pela Revolução Francesa. Nas observações de Burke, transformadas no livro Reflexões sobre a Revolução em França, era espantoso que uma sociedade abandonasse valores que funcionavam há séculos em troca de outros cuja eficácia em nada fora comprovada. Segundo ele, a História humana demonstra que o funcionamento sistemático das instituições ao longo do tempo comprova ou não sua capacidade e operacionalidade, ou seja, na medida em que uma instituição social ou política foi bem estruturada, organizada e tem � - É interessante anotarmos que a idéia de História até o século XVIII vinculava-se exclusivamente a uma narrativa literária, ou seja, a História nada mais seria do que uma espécie de ficção, romance, onde feitos heróicos eram narrados para valorizar reis e príncipes.

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seu funcionamento cotidiano apresentado de forma previsível, então esta instituição sobrevive aos séculos. Ao contrário, quando há falhas na sua elaboração, a mesma definha, entra em decadência, e desaparece com o tempo. Nesse sentido, as criações sociais humanas possuíam ou não valores que as faziam existir perenemente ou desaparecerem após certo período.

Inspirado nessas concepções, o naturalista (também inglês) Charles Darwin elaborou a conhecida “teoria da evolução das espécies”, onde a sobrevivência de uma espécie na face da Terra dava-se exclusivamente por sua capacidade de adaptação às novas condições naturais - o que Burke já dissera quanto às instituições políticas e sociais. Esses conceitos darwinianos ficaram conhecidos como “evolucionismo”, provocando gigantesco impacto nas assim chamadas ciências naturais, como da mesma maneira, produziram também influência nos pensares sobre a sociedade: afinal, se o corpo humano (como dos demais animais) era um organismo que se adaptava (evoluía) com as novas condições de sobrevivência, por que não pressupor que as sociedades também funcionavam da mesma forma? Por que não pensar que, não somente as instituições, mas todo o corpo social passava por uma evolução contínua? Se o pressuposto fosse aceitável, cabia, então, descobrir as “leis gerais” que regiam essa evolução das sociedades.

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CAPíTULO I

Augusto Comte

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Nascido em Montpellier, França, em 1798, Augusto Comte estudou na Escola Politécnica de Paris e em 1817 tornou-se secretário de Saint-Simon e manteve amizade com ele até 1824 quando da publicação do Plano de Trabalhos Científicos Necessários à Reorganização da Sociedade, que Saint-Simon discordou por completo. Sem o sustento principal, passou a dar aulas particulares de matemática e, mais a frente, ingressou na Escola Politécnica no posto de examinador de admissão. Entre idas e vindas na vida pessoal e profissional, terminou seus dias de forma melancólica e faleceu em setembro de 1857.

Das obras redigidas por ele, sem dúvida foi o Curso de Filosofia Positiva a de maior impacto e, independentemente das críticas que possamos fazer ao livro (originalmente publicado em seis volumes), pode-se creditar a esse escrito como sendo um dos mais influentes na história da humanidade. Segundo o autor, toda a sociedade humana somente pode se reorganizar na medida em que se produza uma completa reforma intelectual do homem. Não há, conforme afirmava, possibilidades de reformas institucionais sem que antes se processe uma reforma no próprio homem, fazendo com que adquira novos hábitos no pensar e no entendimento sobre as coisas. Para tanto, Comte estruturou suas teses em três fundamentos básicos: primeiro, uma “filosofia da história”1; segundo, uma classificação das ciências; terceiro, uma sociologia que identificasse a estrutura e os processos de modificação da sociedade para que, com mais eficácia, as instituições também se alterassem2.

a) A Filosofia da História

A “filosofia da história” de Augusto Comte sintetiza-se na conhecida lei dos três estados: todo o espírito humano e o conhecimento produzido por ele passam, necessariamente conforme o autor, por três fases distintas, a saber, a teológica, a metafísica e a positiva. No primeiro caso, a observação dos fenômenos é reduzida e a imaginação desempenha papel preponderante nas sociedades humanas, ou seja, perante uma natureza diversa, o Homem apenas encontra suas explicações em seres sobrenaturais (os deuses) que lhe dão a sensação de ter o controle absoluto sobre o conhecimento. Em termos distintos, significa dizer que tudo aquilo que precisa ou merece ser explicado � - A expressão “filosofia da história” significa um entendimento sobre o processo histórico como algo que cumpre etapas e possui determinado sentido. Não confundir, portanto, com a expressão “teoria da história”, que trata de modelos explicados para determinado acontecimentos ou conjunturas sociais.

2 - Cf. José Arthur Giannotti. “Comte: vida e obra”. In: Comte - Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978

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encontra sua lógica nas divindades e na superstição. Concomitantemente a isso, os valores produzidos no estado teológico conseguem introduzir no seio das sociedades uma agenda moral que norteia o comportamento dos Homens na medida em que oferecem a todos regras de certo e errado referendadas pelas divindades, cujos poderes são imutáveis e tidos como absolutos. Na esfera política, o estado teológico equivaleria às monarquias clássicas.

Por outro lado, o estado metafísico caracteriza-se também pela busca de explicações absolutas, porém, subordinadas a valores abstratos. Superado o estado teológico, os Homens substituem a fonte divina de suas explicações pelas idéias, desvinculando-se do sobrenatural e aproximando-se de elementos produzidos na própria sociedade. Assim, itens como democracia, equilíbrio, justiça, passam a fazer parte da agenda humana às condições basais da coesão social na medida em que são atingidas ou estão próximas da concretização. Nesse sentido, é interessante observarmos que palavras como democracia, justiça, equidade, são, por excelência, abstrações, ou seja, não possuem uma fonte real, empírica, para que possam ser inseridas no rol das verdades absolutas - se é que estas existem; porém, enquanto valores socialmente aceitos por todos, são buscadas como alvo possível. É no estado metafísico, segundo Comte, que as relações políticas e sociais se vêem como que em um contrato e a soberania sob a guarda do povo que tem no Estado Político o ente que deve o representar.

Por fim, o estado positivo, quando a imaginação e o argumento retórico subordinam-se à observação cientifica, ou seja, a aceitação de uma afirmação somente ocorre quando há um fato inquestionável que a comprove. Contudo, esse aparente “empirismo absoluto” reserva-se ao entendimento de que “fato”, no modelo comtiano, é descobrir as leis universais e, portanto, imutáveis, que tornam possível um determinado acontecimento. Para Augusto Comte, tudo aquilo que pode ser observado possui regras internas que tornam possível o processo que o criou, e assim, a verdadeira ciência será aquela que tiver como mote principal a revelação da “lógica estrutural” de todas as coisas. Feito isso, será possível prever o desenrolar de todo e qualquer processo; frente a isso, com essa previsibilidade, o Homem controla totalmente a técnica e promove o progresso.

Torna-se importante destacar que o autor não afirmou que essas leis presentes em todas as coisas são, rigorosamente, iguais e se processam de forma idêntica em todos os momentos. Ao contrário, cada item da agenda humana, seja social ou natural, possui regras próprias. O que todas têm em

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comum é que possuem uma lógica interna e que deve ser o principal objeto da ciência.

b) a Classificação das Ciências e o Papel da Sociologia

Se a lei dos três estados se processa em toda a sociedade humana, inquestionavelmente o mesmo ocorre com as ciências, de acordo com o autor. Para Comte, a classificação das ciências se dá na mesma periodização, porém, sem que ocorra da mesma maneira em todas as áreas e sem que cada uma delas atinja plenamente o seu objetivo, a saber, a compreensão absoluta de seu objeto de estudo. Frente a isso, ciências como a matemática, por exemplo, não estaria num mesmo patamar da biologia e o mesmo acontecendo com as demais. Assim, seguindo uma ordem da menor para a maior complexidade, teríamos a matemática, a astronomia, a física, a química, a biologia e a sociologia (originalmente denominada por Comte de “física social”). A sociologia, conforme afirmava, era o “fim essencial de toda a filosofia positiva”, visto que, ainda que as demais ciências atingissem o estado positivo antes do pensar sobre a sociedade, estas ficariam restritas a parcelas da realidade. A sociologia, por sua vez, conseguiria abarcar todo o conhecimento sobre o Homem enquanto ser social, englobando assim a psicologia, a ética, a economia política e a filosofia da história: a História faria a “revelação” dos fenômenos que seriam estudados pelas ciências sociais de forma plena.

Ainda conforme Augusto Comte, tornava-se importante distinguir a “estática” da “dinâmica” social:

a primeira estudaria as condições constantes da sociedade; a segunda investigaria as leis de seu progressivo desenvolvimento. A idéia fundamental da estática é a ordem; a da dinâmica, o progresso. Para Comte, a dinâmica social subordina-se a estática, pois o progresso provém da ordem e aperfeiçoa os elementos permanentes de qualquer sociedade: religião, família, propriedade, linguagem, acordo entre poder espiritual e temporal etc.3

c) o Impacto das Propostas de Augusto Comte

A influência que a teoria comtiana exerceu e exerce em todas as áreas do conhecimento humano foi e é gigantesca. Para o bem e para o mal, é possível identificar as teses desse autor nas obras de contemporâneos seus, como John Stuart Mill, e nem mesmo Karl Marx se vê isento: todo o

3 - José Arthur Giannotti. Op. Cit. p. xIII

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processo evolutivo da luta de classes e que deságua no capitalismo nada mais é do que a inversão valorativa do modelo comtiano.4

Da mesma forma o pensar de Comte serviu de base para as teses de Hans Kelsen (pensador jurídico do século XX), criador do “positivismo jurídico”, onde, na impossibilidade de se chegar ao ideal de justiça (visto que a palavra seria uma abstração), optava-se pela pura e simples aplicação da Lei sem interpretações; num outro exemplo, foi determinante para o entendimento de que a História serviria apenas para revelar os acontecimentos e, portanto, seria tão somente uma narração de fatos e datas - a tão conhecida “história positivista”.

Mas, a influência de Augusto Comte não se restringiu ao campo das idéias. Somada ao evolucionismo, serviu também de base ideológica para o Imperialismo do Século xIx, quando a Europa expandiu-se para a África e Ásia. Nesse caso, o argumento referendou-se no princípio que o mundo europeu estaria num estágio superior ao universo africano ou asiático, e assim, a conquista desses territórios seria antes de tudo uma espécie de “processo civilizador”, na medida em que auxiliaria os demais a atingirem em velocidade maior o “estado positivo”.5

Enfim, um autor relevante.

TExTO PARA ANÁLISE

Curso de Filosofia Positiva: Primeira LiçãoExposição da Finalidade deste Curso, ou Considerações Gerais

sobre a Natureza e a Importância da Filosofia Positiva

(extraído de Augusto Comte. Curso de Filosofia Positiva. São Paulo: Abril, Cultural, 1978, p. 3 e 4)

II - Para explicar convenientemente a verdadeira natureza e o caráter próprio da filosofia positiva, é indispensável ter, de início, uma visão geral sobre a marcha progressiva do espírito humano, considerado em seu

� - Veremos os argumentos de Karl Marx no próximo capítulo

� - Parte da historiografia defendeu durante largo tempo a idéia de que o Imperialismo do Século xIx fundamentou-se na busca de matéria-prima e novos mercados consumidores. Contudo, uma leitura mais atenta de todo o processo revela que não possuíam fontes interessantes à economia européia e nem mesmo seriam consumidores atraentes. Para maiores esclarecimentos, ver Eric Hobsbawm. A Era dos Impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997

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conjunto, pois uma concepção qualquer só pode ser bem conhecida por sua história.

Estudando, assim, o desenvolvimento total da inteligência humana em suas diversas esferas de atividade, desde seu primeiro voo mais simples até nossos dias, creio ter descoberto uma grande lei fundamental, a que se sujeita por uma necessidade invariável, e que me parece poder ser solidamente estabelecida, quer na base de provas racionais fornecidas pelo conhecimento de nossa organização, quer na base de verificações históricas resultantes dum exame atento do passado. Essa lei consiste em que cada uma de nossas concepções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três estados históricos diferentes: estado teológico ou fictício, estado metafísico ou abstrato, estado científico ou positivo. Em outros termos, o espírito humano, por sua natureza, emprega sucessivamente, em cada uma de suas investigações, três métodos de filosofar, cujo caráter é essencialmente diferente e mesmo radicalmente oposto: primeiro, o método teológico, em seguida, o método metafísico, finalmente, o método positivo. Daí três sortes de filosofia, ou de sistemas gerais de concepções sobre o conjunto de fenômenos, que se excluem mutuamente: a primeira é o ponto de partida necessário da inteligência humana; a terceira, seu estado fixo e definitivo; a segunda, unicamente destinada a servir de transição.

No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suas investigações para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o tocam, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, apresenta os fenômenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo.

No estado metafísico, que no fundo nada mais é do quês simples modificação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidas como capazes de engendrar por elas próprias todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste, então, em determinar para cada um uma entidade correspondente.

Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações

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invariáveis de sucessão e similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, se resume agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir.

O sistema teológico chegou à mais alta perfeição de que é suscetível quando substituiu, pela ação providencial de um ser único, o jogo variado de numerosas divindades independentes, que primitivamente tinham sido imaginadas. Do mesmo modo, o último termo do sistema metafísico consiste em conceber, em lugar de diferentes entidades particulares, uma única grande entidade geral, a natureza, considerada como fonte exclusiva de todos os fenômenos. Paralelamente, a perfeição do sistema positivo à qual este tende sem cessar, apesar de ser muito provável que nunca deva atingi-la, seria poder representar todos os diversos fenômenos observáveis como casos particulares dum único fato geral, como a gravitação o exemplifica.

Sugestão para Exercícios

1) Seria possível analisar questões como o Imperialismo do Século xIx ou o entendimento sobre a “submissão da mulher” frente ao homem a partir dos argumentos comtianos?

�) É possível identificarmos alguns comportamentos ou opiniões de pessoas que, se jamais terem lido Augusto Comte, acreditam em suas teses evolucionistas? Dê exemplos e explique o porquê.

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CAPíTULO II

Karl Marx

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Nascido em Trier (ou Tréveris), na Renânia, Karl Heinrich Marx é considerado um dos maiores pensadores de todos os tempos. Inciou sua vida aacadêmica no curso de Direito, na Unversidade de Bonn, transferindo-se depois para o curso de Filosofia na Universidade de Berlin, onde doutorou-se coma tese Diferenças da filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro. Nesta última foi aluno de Georg Hegel que o influenciou tremendamente em sua juventude - Marx fez parte do grupo denominado “Jovens Hegelianos”. Na dando prosseguimento à vida acadêmica, tornou-se redator de jornal, função que exerceu até o fimde sua vida em diversos periódicos europeus e nos Estados Unidos. Somando-se a isso, foi militante e líder políticoe é considerado fundador do movimento e do pensamento comunista.

Indiscutivelmente, para entendermos o pensamento de Karl Marx torna-se necessário desvincula-lo de sua atividade política. Muitas vezes observa-se que as análises produzidas sobre os escritos do autor têm como referência a ação política do mesmo e perdem-se num emaranhado de situações completamente dissonantes da obra. Assim, busquemos seperar o joio do trigo.

O primeiro passo é lembrarmos da influência exercida por Hegel no pensar de Marx. Para Georg Hegel, ainda que tenha como princípio de suaainda que tenha como princípio de sua teoria a tese de que os indivíduos sejam portadores da liberdade, a ponto de não ser ela exterior ao homem, mas sim, interior, possuindo um caráter de sentido de liberdade, o mesmo reconhecia que estes indivíduos padeciam de problemas a priori insolúveis quando observados de forma isolada. O primeiro aspecto residiria na finitude humana que embarga toda e qualquer possibilidade de se visualizar aquilo que se produz em sua totalidade, ou seja, jamais homem algum poderá vivenciar os frutos de seu trabalho; estes serão sempre recolhidos por outras gerações. Frente a tal circunstância, o autor identifica um segundo aspecto: os indivíduos apenas conseguem observar a história a partir de seus ideais particulares, transformando-a em um amontoado de fatos contingentes ou, quando muito, uma sucessão de normas estatais.

Partindo deste princípio, de que apenas as futuras gerações podem recolher o que o presente pode construir, Hegel identifica um primeiro item a ser observado para o entendimento da história humana: as tradições.

Ressalte-se, porém, estas tradições apenas são válidas em virtude do conteúdo que possuem, ou seja, o que se deve levar em consideração não é o conjunto de instituições criadas pelo homem e que se perpetuaram de uma

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forma ou de outra ao longo do tempo, detectando-se ou não modificações; porém, o que mais importa, é identificarmos os princípios que propiciaram o seu surgimento e sua alteração, sua origem e seu progresso.

Assim, Hegel as concebia muito mais como produto final de algo do que, propriamente, objeto privilegiado na análise. É na procura dos princípios que as geraram que ele apresenta o conceito de espírito e sua ação no tempo ou, dito de outro modo, nas idéias produzidas pela espécie humana habita o verdadeiro objeto que se deve pesquisar; a história, como autobiografia do espírito.1

Essa autobiografia do espírito funcionava a partir de uma lógica dialética2 que, nas palavras de Hegel, possuía como tese esse espírito ou idéia, que enfrentava como limite a ser suplantado uma antítese (que, nesse caso, seriam as condições materiais para a sobrevivência), gerando ao final um novo espírito ou uma nova idéia (uma síntese).

Utilizando essa referência em sua juventude, Karl Marx desenvolve uma nova proposta. Para este, da mesma maneira que o antigo mestre, havia indubitavelmente um processo histórico que acabava por costurar uma série de outras articulações. Contudo, esse processo ocorria a partir das condições materiais encontradas pelas sociedades humanas, ou seja, pelas condições de sobrevivência enfrentadas por todos os homens em seu cotidiano. Nesse sentido, invertia o sentido da dialética e seu resultado: em Marx, a tese seriam as condições de sobrevivência, a antítese, as idéias, a síntese as novas condições materiais produzidas. O primeiro resultado desse processo é o entendimento de que a sociedade nada mais consegue do que um equilíbrio instável em suas instituições e seu modo de ser.

Para além disso, conforme o autor, na medida em que tudo se articula com esse processo histórico, as transformações singelas ou bruscas de uma sociedade, aliadas as diversas maneiras de organização social, exigiam que qualquer conhecimento sobre o universo humano apenas seria possível a totalidade engendrada por esse processo:1 - Para maiores esclarecimentos, ver Antonio Marcelo Jackson F. da Silva. “Os Dois Corpos da História”. In: Cantareira vol. 1 nº1. Niterói-RJ: Universidade Federal Fluminense, �00� p. 9 e ss.

� - A palavra “dialética” origina-se do grego e significa, de forma simples, uma relação entre pergunta e resposta, ou seja, toda pergunta pressupõe a existência de uma resposta (caso contrário não seria uma “verdadeira pergunta”). A revolução promovida por Hegel ao transformar a “dialética” em tese/antítese/síntese vincula-se ao entendimento de que a resposta/resultado não ocorria de maneira direta, mas sim, a partir de um confronto entre o mundo idealizado e as condições “reais” encontradas.

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o ponto focal do conhecimento, aquele que permite a explicação histórica, é a forma da articulação social: trata-se de uma reflexão totalizada, objetivando integrar diversas dimensões constituintes da sociedade e explicar as conexões internas que as regem. As modificações ocorridas numa esfera (econômica, política, jurídica, ideológica etc.) implicam gradações diversas de transformações nas demais. Como toda totalidade articulada, alguns de seus elementos devem determinar outros, isto é, transformações em determinado nível geram alterações em outros, não sendo meramente uma relação circular, em que todos os níveis se movimentam harmonicamente.3

Em outras palavras, qualquer pesquisa sobre a sociedade exigirá do pesquisador essa visão em que diversos níveis se articulam e são resultados de um processo maior. Nesse sentido, Marx aproxima-se de Comte, visto que, ambos entenderam a sociedade a partir de um processo histórico (uma “filosofia da história”, portanto), cujas condições sociais são sempre relativas em virtude das constantes mudanças e, por fim, a compreensão de que o papel principal em toda a análise é perceber a lógica dessas transformações.

Entretanto, essas semelhanças param nesse ponto. Mais sofisticada do que a argumentações comtiana, a lógica marxista vê nas relações sociais um sistema interligado e interdependente, ou seja, na medida em que aja alteração em uma das partes, essa alteração afetará inequivocadamente as demais. Nesse sentido, como as condições materiais são as que iniciam o processo dialético, então serão elas os termos determinantes no processo histórico e social.

Vale ressaltar que esse entendimento foi compreendido por muitos como vinculado à economia: se é a sobrevivência que rege as ações humanas, então essa mesma sobrevivência é determinada por relações econômicas. Todavia, esse erro de interpretação fez com que o próprio Marx criticasse os assim denominados marxistas já em sua época. Ainda algum tempo após sua morte, as leituras da obra repetiam insistentemente a dissonância:

segundo a concepção materialista da história, o fator que, em última instância, determina a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu afirmamos, uma vez se quer, algo mais do que isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fator econômico é o único fato determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se

� - Virgínia Fontes. “História e Modelo”. In: Domínios da História. Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas (org.). Rio de Janeiro: Campus, 1997 p. 359 e 360

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levanta sobre ela - as formas políticas da luta de classes e seus resultados, as constituições que, uma vez vencida uma batalha, a classe triunfante redige, etc, as formas jurídicas, e inclusive os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos que nelas participam, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as idéias religiosas e o desenvolvimento ulterior que as leva a converter-se num sistema de dogmas - também exercem sua influência sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma, como fator predominante.4

Superada esta dúvida, um outro elemento de fundamental importância na análise marxista é a percepção de que se todas as ações humanas estão articuladas em um gigantesco sistema, então não há em momento histórico algum a precedência do particular sobre o geral; ao contrário, é o “geral” que sempre prevalecerá. No entendimento do autor, qualquer item que se apresente como particular estará sobrecarregado de sentidos diversos que eclipsarão o real entendimento sobre o processo, isto porque, o movimento dialético se dá em todas as esferas da sociedade e de forma não necessariamente idêntica. Assim, o homem em sociedade se vê privado de seu ser, ou seja, para o caso do capitalismo, por exemplo, tanto o proletário quanto o burguês são personificações de categorias muito maiores que suas ações podem pressupor.

O Impacto das Propostas de Marx

Em virtude da proximidade anteriormente identificada, uma das grandes influências do pensamento marxista se deu na esfera da economia. Para muitos, mesmo porque o próprio autor dedicou-se em inúmeros textos à problemática econômica, é nessa área que Marx contribuiu decisivamente para o entendimento de nossa sociedade - particularmente, da sociedade contemporânea.

Por outro lado, inegável também é a proposição de uma filosofia da história, onde os processos historicamente identificados ganham sentido e escapam à pura e simples obra do acaso, ou mesmo da ação heróica de alguns. Nele, os homens se vêem reféns das marés onde os “verdadeiros” embates ocorrem em níveis superiores aos da vida singular das pessoas. Frente a isso, cabe ao estudioso verificar como tais processos são operacionalizados.

4 - Friedrich Engels. “Carta a Bloch; Londres, 21/22 de setembro de 1890”. In: MARx, Karl e Obras escolhidas, vol. 3. São Paulo : Alfa-ômega. 1985 p. 259

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Há também a contribuição à sociologia, sem dúvida, visto que, todas as esferas de organização social seriam regidas, portanto, por uma mesma “lógica”, cabendo, mais uma vez, ao pesquisador identificar o funcionamento de todo o sistema.

Por fim, ficam as palavras de R. Boudon e F. Bourricaud extraídas do Dicionário Crítico de Sociologia:

(...) O apego declarado de Marx à ética científica e suas paixões políticas explica por que a obra marxiana é tão diversa e contraditória. O militante nunca chegou a perverte o sábio, ainda que lhe tenha sugerido teorias contestáveis, nem o sábio chegou a fornecer ao militante dados suficientes para que este fundamentasse sua ação na ciência. Talvez por essa razão Marx tenha declarado a Lafarge, a crer no relato de Engels, que não era marxista (...): jamais ele acreditou que a pureza do engajamento bastasse para garantir o acesso à verdade.�

TExTO PARA ANÁLISE

O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Parte I

(extraído de Karl Marx. O 18 Brumário de Luís Bonaparte e Cartas a Kugelmann.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 21-23)

Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Caussidière por Danton, Luís Blanc por Robespierre, a Montanha de 1845-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio. E a mesma caricatura ocorre nas circunstâncias que acompanham a segunda edição do Dezoito Brumário! Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de se apresentarem nessa linguagem 5 - Raymond Boudon e François Bourricaud. Dicionário Crítico de Sociologia. São Paulo: Ática, 2001 p. 329.

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emprestada. Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789-1814 vestiu-se alternadamente como a república romana e como o império romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793-1795. De maneira idêntica, o principiante que aprende outro idioma, traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder maneja-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela.

O exame dessas conjurações de mortos da história do mundo revela de pronto uma diferença marcante: Camile Desmoulins, Danton, Robespierre, Saint-Just, Napoleão, os heróis, os partidos e as massas da velha Revolução Francesa, desempenharam a tarefa de sua época, a tarefa de libertar e instaurar a moderna sociedade burguesa, em trajes romanos e com frases romanas. Os primeiros reduziram a pedaços a base feudal e deceparam as cabeças feudais que sobre ela haviam crescido. Napoleão, por seu lado, criou na França as condições sem as quais não seria possível desenvolver a livre concorrência, explorar a propriedade territorial dividida e utilizar as forças produtivas industriais da nação que tinham sido libertadas; além das fronteiras da França ele varreu por toda a parte as instituições feudais, na meida que isto era necessário para dar à sociedade burguesa da França um ambiente adequado e atual no continente europeu. Uma vez estabelecida uma nova formação social, os colossos antediluvianos desapareceram, e com eles a Roma ressurrecta - os Brutus, os Gracos, os Publícolas, os tribunos, os senadores e o próprio César. A sociedade burguesa, com seu sóbrio realismo, havia gerado seus verdadeiros intérpretes e porta-vozes nos Says, Cousins, Royer-Collards, Benjamin Constants e Guizots; seus verdadeiros chefes militares sentavam-se atrás das mesas de trabalho e o cérebro de toucinho de Luís XVIII era sua cabeça política. Inteiramente absorta na produção de riqueza e na concorrência pacífica, a sociedade burguesa não mais se apercebia de que fantasmas dos tempos de Roma haviam velado seu berço. Mas, por menos heróica que se mostre hoje esta sociedade, foi não obstante necessário heroísmo, sacrifício, terror, guerra civil e batalhas de povos para torná-la uma realidade. E nas tradições classicamente austeras da república romana, seus gladiadores encontraram os ideais e as formas de arte, as ilusões de que necessitavam para esconderem de si próprios as limitações burguesas do conteúdo de suas lutas e manterem seu entusiasmo no alto nível da tragédia histórica. Do mesmo modo, em outro estágio de desenvolvimento, um século antes, Cromwell e o povo inglês haviam tomado emprestado a linguagem, as paixões e as ilusões do Velho Testamento para sua revolução burguesa. Uma vez alcançado o objetivo real, uma vez

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realizada a transformação burguesa da sociedade inglesa, Locke suplantou Habacuc. A ressurreição dos mortos nessas revoluções tinha, portanto, a finalidade de glorificar as novas lutas e não a de parodiar as passadas; de engrandecer na imaginação a tarefa a cumprir, e não de fugir de sua solução na realidade; de encontrar novamente o espírito da revolução e não de fazer o seu espectro caminhar outra vez.

Sugestão para Exercícios

1) A crítica de Marx no “18 Brumário de Luís Bonaparte” pode servir também para os sistemas educacionais? Por que?

2) Se a sociedade é um grande sistema, conforme o pensamento de Karl Marx, em qual parte podemos localizar a educação?

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CAPíTULO III

Émile Durkheim

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Nascido na região da Alsácia (atual fronteira da França com a Alemanha), Émile Durkheim formou-se na Escola de Normal Superior, em Paris, e lecionou filosofia em diversos liceus. Tempos depois, na Alemanha, travou contato com Wihelm Wundt, quando estudou antropologia e psicologia dos povos, optando pela pesquisa nas ciências sociais e, em particular, na transformação da sociologia em saber autônomo.1

Nesse sentido, o primeiro passo foi abdicar das idéias que pensavam a organização social a partir da dedução de fatos particulares tendo como referência as assim denominadas “leis universais”. Uma “verdadeira sociologia”, defendia, deve vincular-se a uma metodologia científica que desvele padrões de comportamento dos homens em sociedade - examinado fórmulas que se apresentem perenemente no meio social, tais como, a arte, o Direito, a educação, o suicídio etc.

Um dos primeiros e mais significativos trabalhos de Durkheim foi o livro Da Divisão do trabalho Social. Nele, defende que a partir do crescimento quantitativo das sociedades, o conjunto de papéis sociais torna-se igualmente prolixo, ou seja, quanto maior for o número de componentes de um determinado grupo, maior será também o número de atividades a ser desempenhado por cada indivíduo (particularmente). Tal divisão promove uma “solidariedade” (por interdependência) de todos em relação a todos, que passa daquilo que o autor denominou de “solidariedade mecânica” - presente nas sociedades tradicionais e que ocorre por semelhança e complementaridade (de cada pessoa em relação às demais e de todas as outras em relação a ela) - para a “solidariedade orgânica” - característica das sociedades complexas, onde um novo conjunto de valores que se opera nas instituições exerce a função de complemento a cada um de nós. Contudo, ao atingirem o grau das sociedades complexas, os indivíduos tornam-se mais e mais individualistas e egoístas, visto que, somente conseguem “enxergar” suas próprias atividades e excluem os demais - o que acarreta sazonalmente crises sociais e econômicas.

Um outro trabalho significativo foi O Suicídio. Neste livro, o autor defende a tese de que nas sociedades onde a solidariedade é orgânica o equilíbrio de felicidade de cada individuo vincula-se diretamente nos laços entre ele e a sociedade. A partir de análises estatísticas, Durkheim demonstra que as taxas de suicídio são maiores em cenários onde a coerção social é muito forte ou muito fraca.

1 - Cf. José Arthur Giannotti. Durkheim: vida e obra. São Paulo: Abril, 1978, p. VI e VII

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Concomitantemente a isso, deve-se destacar alguns conceitos do autor. O primeiro deles responde pela expressão “fato social”. Conforme afirma, cada indivíduo sofre uma espécie de coerção que o impele a comportar-se de acordo com as regras da sociedade em que vive, pouco importando sua vontade ou possibilidade de escolha. Tanto isto é verdade que em qualquer grupo existem conjuntos de sanções legais (as leis produzidas e devidamente regulamentadas) ou espontâneas (reprovação a um comportamento considerado inadequado). É nesse âmbito que a educação, segundo Durkheim, possui papel fundamental. Formal (na escolas) ou informal (nas famílias e amigos), as fórmulas educacionais têm inequívoca tarefa na conformação dos indivíduos em relação ao meio social, pela adoção de uma língua comum, hábitos, crenças, entre outros, que paulatinamente são internalizadas e naturalizadas. Tudo isso faz com que o “fato social” seja exterior ao indivíduo, pois cada um de nós já encontra esse cenário social ao nascer, e também possua generalidade, ou seja, ele se repete para qualquer pessoa que compõe a mesma sociedade.

Por outro lado, a existência do “fato social” e, particularmente, sua generalidade, não significa que o mesmo deva ser compreendido como natural ou “normal”:

Durkheim considera um fato social como “normal” quando se encontra generalizado pela sociedade ou quando desempenha alguma função importante para sua adaptação ou sua evolução. Assim, por exemplo, afirma que o crime é normal não apenas por ser encontrado em toda e qualquer sociedade e em todos os tempos, mas também por representar um fato social que integra as pessoas em torno de determinados valores. Punindo o criminoso, os membros de uma coletividade reforçam seus princípios, renovando-os. O crime tem, portanto, uma importante função social.A “generalidade” de um fato social, isto é, sua unanimidade, é garantia de normalidade na medida em que representa o consenso social, a vontade coletiva, ou o acordo de um grupo a respeito de determinada questão.2

Um segundo conceito importante na obra de Émile Durkheim é o de “consciência coletiva”. Independentemente da consciência individual que cada ser possui (sua forma de ver a vida, valores etc.), o entendimento e aceitação do conceito de “fato social” promove o igual entendimento de que em qualquer sociedade também nos é possível identificar um sistema de valores comuns à média do grupo social. Em outras palavras, trata-se do “tipo

2 - Cristina Costa. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Moderna, 2007 p. 85.

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psíquico da sociedade” e que se impõe a todos os seus componentes. Não é, portanto, uma soma das consciências individuais, mas sim, algo superior e permanente, que pode ser traduzido pela moral vigente.3

Frente a todo o exposto, cabe, sem dúvida, a Émile Durkheim um dos mais importantes papéis na consolidação da sociologia como saber autônomo e contribuinte para o melhor entendimento das sociedades.

TExTO PARA ANÁLISE

Da Divisão do Trabalho Social

(extraído de Emile Durkheim. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 30 e 31)

Em todos esses exemplos, o mais notável efeito da divisão do trabalho não é que aumenta o rendimento das funções divididas, mas que as torna solidárias. Seu papel em todos estes casos não é simplesmente embelezar ou melhorar as sociedades existentes, mas tornar possíveis sociedades que, sem ela, não existiriam. Fazei regredir além de um certo ponto a divisão do trabalho sexual, e a sociedade conjugal esvanece-se para deixar subsistir apenas relações sexuais eminentemente efêmeras; se mesmo os sexos não tivessem se separado completamente, toda uma forma da vida social não teria nascido. É possível que utilidade econômica da divisão do trabalho valha para alguma coisa neste resultado, mas, em todo caso, ele ultrapassa infinitamente a esfera dos interesses puramente econômicos; pois ele consiste no estabelecimento de uma ordem social e moral sui generis. Indivíduos que sem isso seriam independentes estão ligados uns aos outros; ao invés de se desenvolverem separadamente, eles conjugam seus esforços; são solidários e de uma solidariedade que não age apenas nos curtos instantes em que os serviços se trocam, mas que se estende bem além. A solidariedade conjugal, por exemplo, tal como existe hoje nos povos mais cultivados, não faz sentir sua ação em cada momento e em todos os detalhes da vida? Por outro lado, estas sociedades que a divisão do trabalho cria não podem deixar

3 - É inegável a semelhança desse conceito durkheiniano ao conceito de “vontade geral” do filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau. Para o último, a “vontade geral” traduz-se naquilo que é aceito por todos os indivíduos que fazem parte de um mesmo grupo social e que, nos termos políticos, deve servir como referência na produção das leis. Ocorrendo isso, eliminam-se as divergências e conquista-se paulatinamente uma condição mais equilibrada. Em Durkheim, a “consciência coletiva” auxilia na coesão do grupo na medida em que se impõe e iguala todos os membros a partir de uma única regra moral geral. Para melhores esclarecimentos sobre o conceito de “vontade geral”, ver Jean-Jacques Rousseau Do Contrato Social, São Paulo: Abril, 1978 (col. Os Pnesadores).

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de carregar sua marca. Visto terem elas esta origem especial, não podem assemelhar-se àquelas que a atração do semelhante determina; devem ser constituídas de uma outra maneira, repousar sobre as bases, apelar para outros sentimentos.

Se frequentemente se fez consistir apenas na troca as relações sociais oriundas da divisão do trabalho, foi por se ter desconhecido o que a troca implica e o que dela resulta. A troca supõe que dois seres dependam mutuamente um do outro, pois ambos são incompletos, e não faz senão traduzir exteriormente esta mútua dependência. Portanto, ela é a expressão superficial de um estado interno e mais profundo. Precisamente porque este estado é constante, suscita todo um mecanismo de imagens que funciona com uma continuidade que a troca não tem. A imagem daquele que nos completa torna-se em nós mesmos inseparável da nossa, não apenas porque aí está frequentemente associada, mas sobretudo porque ela é seu complemento natural: torna-se, portanto, parte integrante e permanente de nossa consciência, a tal ponto que não podemos mais passar sem ela e procuramos tudo o que pode aumentar-lhe a energia. Por este motivo amamos a sociedade daquele que ela representa, porque a presença do objeto que ela exprime, fazendo-o passar para o estado de percepção atual, lhe dá mais realce. Ao contrário, sofremos por causa de todas as circunstâncias que, como o distanciamento ou a morte, podem ter por efeito impedir o retorno ou diminuir sua vivacidade.

Por mais breve que seja esta análise, é suficiente para mostrar que este mecanismo não é idêntico àquele que serve de base aos sentimentos de simpatia dos quais a semelhança é a fonte. Sem dúvida, aqui não pode jamais haver solidariedade entre o outro e nós a não ser que a imagem do outro se uma à nossa. Mas, quando a união resulta da semelhança de duas imagens, consiste em uma aglutinação. As duas representações tornam-se solidárias porque, sendo indistintas, totalmente ou em parte, confundem-se e não fazem mais senão uma, e são solidárias na medida em que se confundem. Ao contrário, no caso da divisão do trabalho, estão fora uma da outra e estão ligadas apenas porque são indistintas. Portanto, os sentimentos não poderiam ser os mesmos nos dois casos, nem as relações sociais que derivam.

Assim, somos conduzidos a perguntar-nos se a divisão do trabalho não desempenha o mesmo papel nos grupos mais extensos, se, nas sociedades contemporâneas onde ela tomou o desenvolvimento que sabemos, não teria por função integrar o corpo social, assegurar sua unidade. É legítimo supor

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que os fatos que acabamos de observar se reproduzam aqui, mas com mais amplidão; que também estas grandes sociedades políticas podem manter-se em equilíbrio só graças à especialização das tarefas; que a divisão do trabalho é a fonte, senão única, pelo menos principal da solidariedade social.

(...) Se esta hipótese fosse demonstrada, a divisão do trabalho desempenharia um papel muito mais importante do que aquele que se lhe atribuí ordinariamente. Ela não serviria apenas para dotar nossas sociedades de um luxo, invejável talvez, mas supérfluo; ela seria uma condição de sua existência. É por ela, ou pelo menos é sobretudo por ela, que estaria assegurada sua coesão; é ela que determinaria os traços essenciais de sua constituição.

Sugestão para Exercícios

1) Analise a educação enquanto “fato social”, conforme os argumentos de Durkheim.

2) Considerando-se os argumentos de Durkheim, a escola brasileira é um item que auxilia na “felicidade” do aluno? Por que?

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CAPíTULO IV

Max Weber

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Último dos pilares da formação da Sociologia enquanto ciência, Max Weber nasceu em Erfurt (atual Alemanha) em 1864. Formou-se em Direito, Economia, História e Filosofia, lecionando Economia Política até �898 quando problemas de saúde o afastaram da universidade.

O autor entende a sociologia como uma atividade interpretativa, isto é, uma disciplina que não deve se limitar a descrever a posição dos atores na sociedade, mas também, a levar em consideração o sentido atribuído por esses mesmos atores às ações que promovem. Frente a isso, esses agentes sociais detêm capacidades que, combinadas, os transformam em seres racionais - capazes de produzirem avaliações perante as contingências que se apresentam. Dito de maneira distinta, o que Weber propõe é supor que todas as ações humanas são determinadas em relação às intenções e expectativas de cada indivíduo, sempre comparadas às intenções e expectativas dos demais. Como conseqüência desse raciocínio, sua sociologia distanciou-se do modelo até à época “vigente” que considerava o meio social como algo que transcendia os seres humanos; ao contrário, entendia a sociedade como o resultado das ações dos diversos indivíduos sem, entretanto, confundir-se com os agentes, ou seja, as ações coletivamente produzidas pelos atores - com suas intenções e expectativas - produziam como que “resultados inesperados” - a cultura e o meio social -, num constante movimento historicamente identificado. Por outro lado, essas normas e regras sociais apenas se tornam “reais” na medida em que se transformam em motivação para cada indivíduo, ou seja, tornam-se “concretas” no seio social.

Vale, contudo, ressaltar que todo esse processo somente ganha relevo quando a ação é compartilhada pelas pessoas que compõem a sociedade: enquanto for um ato sem conseqüências, deve ser entendida pura e simplesmente como “ação”; se, ao contrário, gerar interações, deve ser visto como uma “relação social”, e aí, sim, transforma-se em objeto do pesquisador. Um dos melhores exemplos dessas fórmulas de análise weberiana pode ser encontrado na obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Nesse livro o autor descreve que:

os puritanos,ajustando sua conduta às palavras dos mandamentos divinos, acreditam exprimir sua obediência ao Deus terrível que os julgará ou os condenará por um ato de sua insondável justiça. Entretanto, aos olhos do historiador e do sociólogo, eles contribuem para legitimar virtudes seculares como a parcimônia, a abstinência, a diligência, que constituem ingredientes indispensáveis à disciplina das sociedades industriais.1

1 - Raymond Boudon e François Bourricaud. - Raymond Boudon e François Bourricaud. op. cit. p. 616.

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Com isso, Weber consegue reunir num só escopo as particularidades de cada formação histórica e social com elementos nitidamente gerais e sociológicos.

Conjuntamente a isso, as contribuições conceituais de Weber também ganham destaque. Um dos conceitos mais debatidos do autor é aquele que se denomina “tipo ideal”. Para ele, o “tipo ideal” é:

uma construção teórica abstrata a partir dos casos particulares analisados. O cientista, pelo estudo sistemático das diversas manifestações particulares, constrói um modelo acentuando aquilo que lhe pareça característico ou fundante. Nenhum dos exemplos representará de forma perfeita e acabada o tipo ideal, mas manterá com ele uma grande semelhança e afinidade, permitindo comparações e a percepção de semelhanças e diferenças. Constituí-se um trabalho teórico indutivo que tem por objetivo sintetizar aquilo que é essencial na diversidade das manifestações da vida social, permitindo a identificação de exemplares em diferentes tempos e lugares.O “tipo ideal” não é um modelo perfeito a ser buscado pelas formações sociais históricas nem mesmo em qualquer realidade observável. É um instrumento de análise científica, numa construção do pensamento que permite conceituar fenômenos e formações sociais e identificar na realidade observada suas manifestações. Permite ainda comparar tais manifestações.2

Utilizando como referência esse conceito, percebemos que Max Weber busca produzir uma espécie de “fotografia” da sociedade, ou seja, uma imagem que nos permite identificar nuances e analisar o comportamento dos indivíduos a partir dessa construção teórica.

Uma outra conceituação fundamental na obra do pensador alemão foi o conjunto de caracterizações que produziu a respeito da sociedade com as relações econômicas. Weber demonstra a partir de seus estudos que a existência de moeda, transações comerciais e mercado não indicam, necessariamente, a existência concomitante do sistema capitalista, isto porque, o elemento determinante nesse aspecto será sempre dado pela forma como se define status social em um determinado grupo. Exemplificando, podemos dizer que se uma sociedade define seu status pela “honra”, os ganhos econômicos gerados estarão inquestionavelmente subordinados a ela; ao contrário, se é o “ganho material” que se tem como principal elemento de status, aí sim teremos condições de observar uma sociedade tipicamente

2 - Cristina Costa. op. cit. p. 100.

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capitalista.

Por fim, sem esgotarmos as categorias weberianas, temos os conceitos de liderança (ou dominação legítima) definidos pelo autor: a carismática, a tradicional e a burocrática. A primeira é entendida como a aceitação incondicional de um líder pelos subordinados a partir de um conjunto de qualidades compreendidas como excepcionais por todos. Assim, a “liderança” ou “dominação carismática” é aquela em que os seguidores não vêem defeitos no líder: seguem-no, simplesmente.

A segunda, a “liderança” ou “dominação tradicional” aparece nos grupos sociais onde os costumes e as crenças é que determinam quem será o líder. De uma forma geral, são aquelas onde o mais velho, o chefe religioso, entre tantos, é que exercem o comando do grupo.

Por fim, a terceira (a “liderança” ou “dominação racional-legal” ou “dominação burocrática”) é a que se vincula a partir da meritocracia ou da normatização das Leis. Esta última refere-se aos gerentes de uma empresa, chefe de uma seção, diretor etc.

Na vida política cabe ressaltar que cada um dos “tipos idéias” de “liderança” pode aparecer isoladamente ou conjuntamente conforme o caso. Para Weber, não existe impedimento algum que um ator político possa ter em si todas essas características.

Frente a todo o exposto, as idéias de Max Weber não apenas corroboraram para a consolidação da sociologia enquanto saber sobre a Sociedade, como também, contribuíram para o desenvolvimento da Ciência Política e da História.

TExTO PARA ANÁLISE

(extraído de Max Weber. “Classe, Estamento e Partido”. In: Ensaios de Sociologia, 2ª Edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 211 a 228)

1. O Poder Determinado Economicamente e a Ordem Social

(...) O poder “condicionado economicamente” não é, decerto, idêntico ao “poder” como tal. Pelo contrário, o aparecimento do poder econômico pode ser a conseqüência do poder existente por outros motivos. O homem não luta pelo poder apenas para enriquecer economicamente. O poder,

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inclusive o poder eonômico, pode ser desejado “por si mesmo”. Muito frequentemente, a luta pelo poder também é condicionada pelas “honras” sócias que ele acarreta. Nem todo poder, porém, traz honras sociais: o chefe político americano típico, bem como o grande especulador típico, abrem mão deliberadamente dessa honraria. Geralmente, o poder “meramente econômico”, em especial o poder financeiro puro e simples, não é de forma alguma reconhecido como base de honras sociais. Nem é o poder a única base de tal honra.

(...) A forma pela qual as honras sociais são distribuídas numa comunidade, entre grupos típicos que participam nessa distribuição, pode ser chamada de “ordem social”. Ela e a ordem econômica estão, decerto, relacionadas da mesma forma com a “ordem jurídica”. Não são, porém, idênticas. A ordem social é, para nós, simplesmente a forma pela qual os bens e serviços econômicos são distribuídos e usados. A ordem social é, decerto, condicionada em alto grau pela ordem econômica, e por sua vez influi nela.

Dessa forma, “classes”, “estamentos” e “partidos” são fenômenos da distribuição do poder dentro de uma comunidade.

2. Determinação da Situação de Classe pela Situação de Mercado

Em nossa terminologia, “classes” não são comunidades: representam simplesmente bases possíveis, e freqüentes, de ação comunal. Podemos falar de uma “classe” quando: 1) certo número de pessoas tem em comum um componente causal específico em suas oportunidades de vida, e na medida em que 2) este componente é representado exclusivamente pelos interesses econômicos da posse de bens e oportunidade de renda, e 3) é representado sob as condições de mercado de produtos ou mercado de trabalho.

(...) A forma pela qual a propriedade material é distribuída entre várias pessoas, que competem no mercado com a finalidade de troca, cria, em si, oportunidades específicas de vida, o que constitui um fato econômico bastante elementar. Segundo a lei da utilidade marginal, esse modo de distribuição exclui os não proprietários da competição pelos bens muito desejados; favorece os proprietários e, na verdade, lhes dá o monopólio para a aquisição desses bens. (...) “Propriedade” e “falta de propriedade” são, portanto, as categorias básicas de todas as situações de classe. Não importa se essas duas categorias se tornam efetivas em guerras de preço ou em lutas competitivas.

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(...) 5. A Honra Estamental

Em contraste com as classes, os grupos de “status” são normalmente comunidades. Com freqüência, porém, são do tipo amorfo. Em contraste com a “situação de classe” determinada apenas por motivos econômicos, desejamos designar como “situação de status” todo componente típico do destino dos homens, determinado por uma estimativa específica, positiva ou negativa, da honraria. Essa honraria pode estar relacionada com qualquer qualidade partilhada por uma pluralidade de indivíduos e, decerto, pode estar relacionada com uma situação de classe.

(...) 6. Garantias da Organização Estamental

No conteúdo, a honra estamental é expressa normalmente pelo fato de que acima de tudo um estilo de vida específico pode ser esperado de todos os que desejam pertencer ao círculo. Ligadas a essa expectativa existem restrições ao relacionamento “social” (...). Essas restrições podem limitar os casamentos normais ao círculo de status e podem levar a um completo fechamento endogâmico.

(...) Por exemplo, somente um morador de uma determinada rua (...) é considerado como pertencente à sociedade, está qualificado para o relacionamento social e é visitado e convidado. Acima de tudo, essa diferenciação se desenvolve de tal forma que produz estrita submissão à moda dominante em determinado momento na sociedade. (...) E esse reconhecimento torna-se tão importante para suas oportunidades de emprego em estabelecimentos “finos”, e, acima de tudo, para o relacionamento social e casamento com famílias “bem consideradas”.

(...) 8. Privilégios Estamentais

Para todas as finalidades práticas, a estratificação estamental vai de mãos dadas com uma monopolização de bens e oportunidades ideais e materiais, de um modo que chegamos a considerar como típico. (...) É claro que os monopólios materiais proporcionam os motivos mais eficientes para a exclusividade de um estamento.

(...) 9. Condições e Efeitos Econômicos da Organização estamental

(...) A ordem estamental significa precisamente (...) a estratificação em termos de “honra” e estilos de vida peculiares aos grupos estamentais como

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tais. Se a simples aquisição econômica e o poder econômico puro, ainda trazendo o estigma de sua origem extra-estamental, pudessem conceder a quem os tivesse conseguido as mesmas honras que os interessados em estamento em virtude de um estilo de vida que pretendem para si, a ordem estamental estaria ameaçada em suas bases mesmas, principalmente tendo em vista que, em condições de igualdade de hornas estamentais, a posso per se representa um acréscimo, mesmo não sendo abertamente reconhecida como tal.

(...) quanto ao efeito geral da ordem estamental, somente uma conseqüência pode ser apresentada, mas sua importância é grande: o impedimento do livre desenvolvimento do mercado ocorre primeiro para os bens que os estamentos subtraem diretamente da livre troca da monopolização. (...) O mercado élimitado, e o poder puro e simples da propriedade per se, que dá sua marca à “formação de classe”, éposto em segundo plano.

(...) Simplificando, poderíamos dizer, assim, que as “classes” se estratificam de acordo com suas relações com a produção e aquisição de bens; ao passo que os “estamentos” se estratificam de acordo com os princípios de seu consumo de bens, representado por “estilos de vida” especiais.

(...) 10. Partidos

O lugar autêntico das classes” é no contexto da ordem econômica, ao passo que os “estamentos” se colocam na ordem social, isto é, dentro da esfera da distribuição de “honras”. Dessas esferas, as classes e os estamentos influenciam-se mutuamente e à ordem jurídica, e são por sua vez influenciados por ela. Mas os “partidos” vivem sob o signo do “poder”.

Sua reação é orientada para a aquisição do “poder” social, ou seja, para a influência sobre a ação comunitária, sem levar em conta qual possa ser o conteúdo. (...) A metapode ser uma “causa” (o partido pode visar a realização de um programa de propósitos ideais ou materiais), ou a meta pode ser “pessoal” (sinecuras,poder e, daí, honras para o líder e os seguidores do partido). Habitualmente, a ação partidária visa tudo isso, simultaneamente. Portanto, os partidos são possíveis apenas dentro de comunidades de algum modo socializadas, ou seja, que têm alguma ordem racional e um “quadro” de pessoas prontas a assegura-la, pois os partidos visam precisamente influenciar esse quadro e, se possível, recruta-lo entre os seus seguidores.

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Sugestão para Exercícios

�) Em que nível uma sociedade estamental pode prejudicar o interesse pela escola? Explique.

2) A partir dos argumentos de Weber, explique em qual categoria um professor, perante seus alunos, poderia ser classificado: um líder carismático, um líder tradicional ou um líder burocrático?

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CAPíTULO V

Os Papéis Sociais

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Ao longo da Introdução dos Capítulos anteriores vimos sucintamente os pilares que forjaram a Sociologia. A contar de agora, veremos alguns conceitos sociológicos que de certa forma fornecem argumentos para entendermos melhor a educação e as condições escolares.

O primeiro deles aparece na expressão “representações sociais”. Mas, o que vem a ser “representação social”? Todas as pessoas que vivem no mundo moderno recebem um cotidianamente um grande número de informações. Modismos, o que é “certo” e o que é “errado”, novas condições morais, hábitos, enfim, inúmeras situações inéditas que nos obrigam a encontrar definições sobre o que estamos vendo e vivendo. Entretanto, ao definirmos certas práticas para nós inéditas, acabamos por também “previamente definir” uma série de comportamentos a partir de nossas experiências pessoais. Generalizada, tal situação transforma-se pouco a pouco em consenso e, daí, cristalizam-se não mais como simples opinião, mas sim, como senso comum.

Quando isso acontece, as interferências sobre o comportamento das pessoas são inúmeras - e, nem sempre, positivas. Pensemos, pro exemplo, em frases como “para que uma pessoa pobre deve estudar?”,ou então, “se a injustiça social é tão grande e foi produzida ao longo dos séculos, qual o sentido de nos esforçarmos para combate-la?”. Nos dois casos, se materializados no meio social, contribui-se para a constituição de papéis e representações sociais que em maior ou menor grau determinam ou exercem inegável influência no comportamento das pessoas - o nosso comportamento e o comportamento dos demais.

Assim, entender e analisar as “representações socais” significa também verificar o grau de influência dessas imagens no dia-a-dia da educação.

TExTO PARA ANÁLISE

(extraído de Alda Judith Alves-Mazzotti. “Representações Sociais: aspectos teóricos e aplicações à educação”. In: Em Aberto, ano 14, nº61. Brasília:

INEP, jan/mar, �99� p. 60 a 78)

Introdução

Entre os desafios com que os professores são confrontados em sua prática docente, destacam-se a educação das classes desfavorecidas e o

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papel da escola na ruptura do ciclo da pobreza. O chamado fracasso escolar das crianças pobres é hoje a preocupação dominante no campo da educação. Estudos sobre percepções, atribuições e atitudes de professores e alunos, bem como de comportamentos diferenciados do professor em função de expectativas, relacionando-os ou não a efeitos no aluno, têm procurado uma melhor compreensão do problema.

Embora a análise desses estudos não seja o nosso objetivo aqui, podemos dizer que, de um modo geral, eles têm indicado que: a) os professores tendem a atribuir o fracasso escolar a condições sociopsicológicas do aluno e de sua família, eximindo-se de responsabilidade sobre esse fracasso; b) baixo nível socioeconômico do aluno tende a fazer com que o professor desenvolva baixas expectativas sobre ele; c) professores tendem a interagir diferentemente com alunos sobre os quais formaram altas e baixas expectativas; d) esse comportamento diferenciado freqüentemente resulta em menores oportunidades para aprender e diminuição da auto-estima dos alunos sobre os quais se formaram baixas expectativas; e) os alunos de baixo rendimento tendem a atribuir o fracasso a causas internas (relacionadas à falta de aptidão ou de esforço), assumindo a responsabilidade pelo “fracasso”; f) fracasso escolar continuado pode resultar em desamparo adquirido.

Tais resultados ajudam a visualizar o “beco sem saída” em que se encontra hoje a educação das chamadas “classes desfavorecidas”. Mas, sobretudo, apontam a necessidade de se ultrapassar o nível da constatação sobre o que se passa “na cabeça” dos indivíduos, para procurar compreender como e por que essas percepções, atribuições, atitudes e expectativas são construídas e mantidas, recorrendo aos sistemas de significação socialmente enraizados e partilhados que as orientam e justificam. A intenção propalada de propiciar mudanças através da educação exige que se compreenda os processos simbólicos que ocorrem na interação educativa, e esta não ocorre num vazio social. Em outras palavras, para que a pesquisa educacional possa ter maior impacto sobre a prática educativa ela precisa adotar “um olhar psicossocial”, de um lado, preenchendo o sujeito social com um mundo interior e, de outro, restituindo o sujeito individual ao mundo social).

O estudo das representações sociais parece ser um caminho promissor para atingir esses propósitos, na medida em que investiga justamente como se formam e como funcionam os sistemas de referência que utilizamos para classificar pessoas e grupos e para interpretar os acontecimentos da realidade cotidiana. Por suas relações com a linguagem, a ideologia e o imaginário social e, principalmente, por seu papel na orientação de condutas

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e das práticas sociais, as representações sociais constituem elementos essenciais à análise dos mecanismos que interferem na eficácia do processo educativo.

Mas o que entendemos por “representações sociais”?

Nas sociedades modernas, somos diariamente confrontados com uma grande massa de informações. As novas questões e eventos que surgem no horizonte social freqüentemente exigem, por nos afetarem de alguma maneira, que busquemos compreendê-los, aproximando-os daquilo que já conhecemos, usando palavras que fazem parte de nosso repertório. Nas conversações diárias, em casa, no trabalho, com os amigos, somos instados a nos manifestar sobre eles procurando explicações, fazendo julgamentos e tomando posições. Estas interações sociais vão criando “universos consensuais” no âmbito dos quais as novas representações vão sendo produzidas e comunicadas, passando a fazer parte desse universo não mais como simples opiniões, mas como verdadeiras “teoria” do senso comum, construções esquemáticas que visam dar conta da complexidade do objeto, facilitar a comunicação e orientar condutas.

Essas “teorias” ajudam a forjar a identidade grupai e o sentimento de pertencimento do indivíduo ao grupo. Há muitas formas de conceber e de abordar as representações sociais, relacionando-as ou não ao imaginário social. Elas são associadas ao imaginário quando a ênfase recai sobre o caráter simbólico da atividade representativa de sujeitos que partilham uma mesma condição ou experiência social: eles exprimem em suas representações o sentido que dão a sua experiência no mundo social, servindo-se dos sistemas de códigos e interpretações fornecidos pela sociedade e projetando valores e aspirações sociais (Jodelet, 1990). Esta é a perspectiva que adotamos, buscando seus fundamentos na Psicologia Social, os quais serão examinados a seguir.

Matriz Conceitual

A noção de representação social, tal como é aqui entendida, foi introduzida por Moscovici em 1961, em um estudo sobre a representação social da psicanálise. Em 1976, referindo-se a esse trabalho, Moscovici revelava que sua intenção era redefinir o campo da Psicologia Social a partir daquele fenômeno, enfatizando sua função simbólica e seu poder de construção do real. Afirmava, então, que “a tradição behaviorista, o fato de a Psicologia Social ter-se limitado a estudar o indivíduo, o pequeno grupo,

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as relações não formais, constituíam e continuam constituindo um obstáculo a esse respeito”. A tradição positivista constituiria um obstáculo adicional à expansão dos limites da Psicologia Social.

O prestígio alcançado pelas teorias construtivistas e pelas abordagens qualitativas e, mais recentemente, o crescente interesse pelo papel do simbólico na orientação das condutas humanas parecem ter contribuído para abrir espaço ao estudo das representações sociais. De fato, verifica-se que, em anos recentes, um grande número de trabalhos de pesquisa e debates teóricos têm surgido nessa área, podendo-se afirmar que o estudo pioneiro realizado por Moscovici realmente se constituiu em um novo paradigma na Psicologia Social, na medida em que lançou as bases conceituais e metodológicas sobre as quais se desenvolveram as discussões e aprofundamentos posteriores. Moscovici inicia esse processo de elaboração teórica retomando o conceito de representação coletiva, proposto por Durkheim. Mostra que este se referia a uma classe muito genérica de fenômenos psíquicos e sociais, englobando entre eles os referentes à ciência, aos mitos e à ideologia, sem a preocupação de explicar os processos que dariam origem a essa pluralidade de modos de organização do pensamento. Além disso, a concepção de representação coletiva era bastante estática - o que correspondia à permanência dos fenômenos em cujo estudo se baseou, portanto, não adequada ao estudo das sociedades contemporâneas, que se caracterizam pela multiplicidade de sistemas políticos, religiosos, filosóficos e artísticos e pela rapidez na circulação das representações. A noção de representação social proposta por Moscovici corresponde à busca desta especificidade, através da elaboração de um conceito verdadeiramente psicossocial, na medida em que procura dialetizar as relações entre indivíduo e sociedade, afastando-se igualmente da visão sociologizante de Durkheim e da perspectiva psicologizante da Psicologia Social da época.

Coerente com essa preocupação, distingue inicialmente o conceito de representação social dos mitos, da ciência e da ideologia. Em seguida, o coteja com conceitos de natureza psicológica que lhe são freqüentemente associados, como os de opinião, atitude e imagem. Basicamente, afirma que estes conceitos (tal como eram tipicamente tratados à época) pressupunham a existência de um estímulo externo, dado, ao qual o indivíduo responde. Já no caso das representações sociais, parte-se da premissa de que não existe separação entre o universo externo e o universo interno do sujeito: em sua atividade representativa, ele não reproduz passivamente um objeto dado, mas, de certa forma, o reconstrói e, ao fazê-lo, se constitui como sujeito, pois, ao apreendê-lo de uma dada maneira, ele próprio se situa no universo social

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e material. Além disso, afirma que as representações sociais, tal como as opiniões e as atitudes, são “uma preparação para a ação”, mas, ao contrário destas, não o são apenas porque orientam o comportamento do sujeito, mas principalmente porque reconstituem os elementos do ambiente no qual o comportamento terá lugar, integrando-o a uma rede de relações às quais está vinculado o seu objeto.

Finalmente, observa que os conceitos de opinião, atitude e imagem não levam em conta o papel das relações e interações entre as pessoas: os grupos são considerados a posteriori e de maneira estática, apenas enquanto selecionam e utilizam as informações que circulam na sociedade e não como as instâncias que as criam e as comunicam. Os contextos, bem como os critérios, intenções e propensões dos atores sociais não são considerados. Em resumo, o que Moscovici procura enfatizar é que as representações sociais não são apenas “opiniões sobre” ou “imagens de”, mas teorias coletivas sobre o real, sistemas que têm uma lógica e uma linguagem particulares, uma estrutura de implicações baseada em valores e conceitos, e que “determinam o campo das comunicações possíveis, dos valores ou das idéias compartilhadas pelos grupos e regem, subseqüentemente, as condutas desejáveis ou admitidas”.

Quanto à relação entre representação social, percepção e formação de conceitos, Moscovici lembra que a “Psicologia clássica” concebia a representação como uma mediação, de propriedades mistas, entre a percepção, predominantemente sensorial, e o conceito, predominantemente intelectual. Em sua opinião, a representação não é uma instância intermediária, mas sim um processo que torna a percepção e o conceito de certa forma intercambiáveis, na medida em que se engendram mutuamente. Considerando-se que a ausência do objeto concreto é condição de seu aparecimento, ela segue a linha do pensamento conceituai; mas, por outro lado, tal como na atividade perceptiva, ela deve recuperá-lo, tornando-o “tangível”. Nesse processo, a percepção engendrada pelo conceito é necessariamente distinta daquela que inicialmente o suscitou. Para Moscovici, a representação tem, em sua estrutura, duas faces tão pouco dissociáveis como as de uma folha de papel: a face figurativa e a face simbólica. Isto significa que, a cada figura corresponde um sentido e a cada sentido uma figura. Os processos envolvidos na atividade representativa têm por função destacar uma figura e, ao mesmo tempo, atribuir-lhe um sentido, integrando-o ao nosso universo. Mas tem sobretudo a função de duplicar um sentido por uma figura, e portanto, objetivar, e uma figura por um sentido, logo, consolidar os materiais que entram na composição de determinada

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representação. Moscovici introduz aí, de passagem, os dois processos que dão origem às representações: a objetivação e a ancoragem. Só bem mais adiante irá definir esses processos: a objetivação como a passagem de conceitos ou idéias para esquemas ou imagens concretas, os quais, pela generalidade de seu emprego, se transformam em “supostos reflexos do real”; e a ancoragem, como a constituição de uma rede de significações em torno do objeto, relacionando-o a valores e práticas sociais. A análise destes processos constitui a contribuição mais significativa e original do trabalho de Moscovici, uma vez que permite compreender como o funcionamento do sistema cognitivo interfere no social e como o social interfere na elaboração cognitiva.

Dada sua importância teórica e metodológica no estudo das representações, a eles voltaremos mais adiante, pois não queremos interromper o caminho percorrido pelo autor. A atividade representativa constitui, portanto, um processo psíquico que nos permite tornar familiar e presente em nosso universo interior um objeto que está distante e, de certo modo, ausente. Nesse processo, o objeto entra em uma série de relacionamentos e de articulações com outros objetos que já se encontram nesse universo dos quais toma propriedades, ao mesmo tempo em que lhes acrescenta as suas. Por exemplo, ao aproximar a psicanálise da confissão, deforma-se aquela idéia, mas também se transforma a idéia de confissão. Pode-se dizer que o objeto deixa de existir como tal para se converter num equivalente dos objetos aos quais foi vinculado. Os vínculos que se estabelecem em torno do objeto traduzem necessariamente uma escolha, escolha esta que é orientada por experiências e valores do sujeito.

Uma vez esclarecida a natureza psicológica das representações, Moscovici passa a analisar, mais especificamente, sua natureza social. Observa inicialmente que as proposições, reações e avaliações que fazem parte da representação se organizam de forma diversa em diferentes classes sociais, culturas e grupos, constituindo diferentes universos de opinião. Cada universo apresenta três dimensões: a atitude, a informação e o campo de representação ou imagem. A atitude corresponde à orientação global, favorável ou desfavorável, ao objeto da representação. A informação se refere à organização dos conhecimentos que o grupo possui a respeito do objeto. Finalmente, o campo de representação remete à idéia de imagem, ao conteúdo concreto e limitado de proposições referentes a um aspecto preciso do objeto e pressupõe uma unidade hierarquizada de elementos. Essas três dimensões da representação social fornecem a visão global de seu conteúdo e sentido.

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Nesta análise dimensional, o estudo comparativo das representações depende da possibilidade de destacar conteúdos suscetíveis de um relacionamento sistemático entre os grupos. Tal tipo de comparação pode ser retomada para cada dimensão e para o conjunto dos grupos estudados. Admitindo-se que uma representação social possui as três dimensões citadas, pode-se determinar seu grau de estruturação em cada grupo. Com base nesse procedimento, Moscovici observou que a psicanálise suscita atitudes em todos os grupos, mas nem todos apresentam, sobre ela, representações sociais coerentes. Estes resultados demonstram que a atitude é a mais freqüente das três dimensões e, talvez, geneticamente primordial, sendo “razoável concluir que uma pessoa se informa e se representa alguma coisa unicamente depois de ter adotado uma posição, e em função da posição tomada”.

A análise das dimensões permite, ainda, abordar um outro ponto: a caracterização dos grupos em função de sua representação social. Isto quer dizer que é possível definir os contornos de um grupo, ou ainda, distinguir um grupo de outro pelo estudo das representações partilhadas por seus membros sobre um dado objeto social. Graças a essa reciprocidade entre uma coletividade e sua “teoria”, esta é um atributo fundamental na definição de um grupo. Segundo Moscovici, a análise dimensional indica um dos aspectos que justificam a utilização do qualificativo “social” com referência à representação - um ponto que seria posteriormente alvo de intenso debate teórico. Mas, para ele, este é apenas um aspecto superficial.

Um outro, mais significativo, se refere ao processo de produção da representação, ao fato de que ela é engendrada coletivamente. Mas isto também não bastaria, porque a ciência e a ideologia também o são. Para apreender o sentido do qualificativo social no que se refere às representações, distinguindo-as daqueles outros produtos sociais, é necessário indagar por que as produzimos, isto é, enfatizar sua função, a saber: elas contribuem “exclusivamente para os processos de formação de condutas e de orientação das comunicações sociais”.

Finalmente, com base em observações feitas durante as entrevistas, Moscovici analisa o “pensamento natura” onde se inscrevem as representações, buscando explicitar a correspondência entre a situação social e o funcionamento do sistema cognitivo. Mostra que a situação social em que são elaboradas as representações apresenta três características básicas: a) dispersão das informações, o que faz com que os dados de que o sujeito dispõe sobre um novo objeto social sejam, ao mesmo tempo,

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excessivos e insuficientes, contribuindo para a incerteza quanto ao âmbito das questões envolvidas; b) pressão para a inferência, gerando desvios nas operações intelectuais, na medida em que o sujeito precisa, a qualquer momento, no curso das conversações cotidianas, estar pronto para dar sua opinião, tornando estáveis impressões com alto grau de incerteza e c) focalização sobre um determinado aspecto ou ponto de vista, o que influencia o estilo de reflexão do sujeito. Tais condições se refletem no funcionamento cognitivo, levando o sujeito, independentemente de seu nível cultural, a se utilizar de lugares comuns e de fórmulas consagradas na avaliação de objetos e eventos sociais, sem a preocupação de integrá-los em um todo coerente; a fazer inferências de causalidade com base em contigüidades espaciais ou temporais, valores, intenções, etc.; a estabelecer o “primado da conclusão”, uma vez que esta, de certa forma, antecede o raciocínio, a seqüência do pensamento servindo apenas para demonstrar o que já estava previamente estabelecido. Mas, para Moscovici, a principal característica do pensamento natural é o que ele chama de “polifasia cognitiva”: a coexistência, no mesmo indivíduo, de modos de pensamento diversos, correspondentes a estágios de desenvolvimento cognitivo diversos, cada um deles, porém, respondendo a uma necessidade específica condicionada pelo tipo de situação e de interação social. Tal fato refletiria a atuação de dois sistemas cognitivos: o sistema operatório - responsável pelas associações, inclusões, discriminações, deduções - e um metassistema normativo - que controla, seleciona e reelabora o material produzido pelo primeiro, com base nas normas e valores do grupo.

Em resumo, a elaboração teórica apresentada por Moscovici focaliza os dois aspectos essenciais das representações sociais na perspectiva da Psicologia Social: os processos responsáveis por sua formação e o sistema cognitivo que lhe é próprio. Procura estabelecer um modelo capaz de dar conta dos mecanismos psicológicos e sociais de sua produção, suas operações e suas funções, permitindo relacionar interações sociais, processos simbólicos e condutas. A construção do conceito vai se fazendo por aproximações sucessivas, o que, ainda que possa constituir uma estratégia, é em parte determinada por sua complexidade. O próprio Moscovici admite que, embora as representações sociais sejam entidades “quase tangíveis” - na medida em que povoam nosso cotidiano -, a essência desse conceito não é fácil de apreender. Dentre as razões dessa dificuldade, destaca sua interdisciplinaridade, isto é, o fato de se encontrar numa “encruzilhada” formada por conceitos de natureza psicológica e sociológica. Mas é justamente aí que reside toda a sua riqueza e originalidade, o que justifica o esforço que vem sendo feito para transpor essa dificuldade.

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Sugestão para Exercícios

1) Em que nível a escola incorpora as “representações sociais”? Explique.

�) Quais os impactos possíveis de serem identificados quando determinadas representações sociais são incorporadas na sala de aula? Dê ao menos um exemplo e o analise.

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CAPíTULO VI

A Noção de Tempo e o Sentido da Escola

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Todos os estudos históricos, antropológicos e sociológicos apontam para um aspecto fundamental das sociedades humanas, a saber, a concepção de tempo é pedra inequívoca para a forma de organização do grupo e dos objetivos que tentam atingir. Nesse sentido, podemos dividir em duas grandes maneiras de se perceber o tempo: a primeira, que o entende de forma cíclica e, a segunda, quando a percepção do tempo é contínua.

Na primeira forma encontramos diversas sociedades antigas onde a idéia de que o tempo é cíclico indicava o entendimento de que todas as coisas na história humana se repetiam, e assim, como reflexo nos modelos de aprendizado, o estudo era compreendido como uma maneira se aprender com os bons exemplos e evitar os erros. É nesse sentido que temos uma das concepções clássicas e que foi elaborada pelo pensador romano Marco Túlio Cícero, a saber, a “história como mestra da vida”: o estudo era tributário de como se devia agir no cotidiano.

A segunda concepção de tempo (um tempo contínuo) surge com a ascensão do cristianismo. Nesse outro modelo, o tempo é percebido como algo que não se interrompe e que segue um curso infinito1, ainda que mantenha relações de possíveis causalidades entre o passado que se viveu, o presente que se vive e o futuro que virá. Nesse sentido, há indiretamente um vínculo entre o passado que se foi, e o presente que se enfrenta, com o futuro desconhecido, ou seja, o futuro é o resultado das ações passadas e contemporâneas.

Mas, como a educação se vincula a isso? A resposta reside no fato de que o ato de estudar tem em seu espírito o entendimento de que há um futuro que pode ser previsível ou, em outros termos, estudar é uma espécie de investimento que se faz no desconhecido que se deseja controlar.

Entretanto, e se a concepção de tempo for mais uma vez alterada? E se o futuro transformar-se cada vez mais num universo “sem controle” e o presente “se estender”? Como fica a educação nesse quadro? Qual o sentido da escola frente a isso?

Vejamos o texto a seguir.

1 - Não há como negar a concepção pré-socrática de Heráclito com o entendimento que o tempo é algo contínuo como a correnteza de um rio (“nenhum homem poderá banhar-se duas vezes no mesmo rio, visto que, na segunda vez, nem o homem e nem o rio serão os mesmos”). Contudo, a diferença entre esse entendimento do pensador grego o modelo cristão reside no fato de que o segundo há uma relação entre passado/presente/futuro, enquanto que, no primeiro, há um “presente” constante.

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TExTO PARA ANÁLISE

(extraído de Carmen Leccardi. “Por um novo significado do futuro: mudança social, jovens e tempo”. In: Tempo Social: revista de sociologia da USP, v.

17, n. 2. São Paulo: USP, Nov/2005 p. 35 a 57)

Introdução

Tradicionalmente, o mecanismo denominado “diferimento das recompensas” - a repressão dos impulsos hedonísticos, a determinação de adiar para um tempo vindouro a satisfação possível que o tempo presente pode garantir, em vista dos benefícios que esse adiamento torna possíveis - estava na base dos processos modernos de socialização. Se considerarmos a fase juvenil como uma fase biográfica de “preparação” para a vida adulta, o diferimento das recompensas aparece como a chave mestra para garantir o sucesso dessa última. Nessa perspectiva, com efeito, é em virtude da capacidade de viver o presente em função do futuro - e, portanto, sacrificar os aspectos “expressivos” das ações em favor daqueles instrumentais - que o processo de transição pode alcançar um resultado positivo. Aqui, o presente não é apenas uma ponte entre o passado e o futuro, mas a dimensão que “prepara” o futuro. Da mesma maneira, o tempo de vida juvenil, graças à relação positiva com o presente, construída em torno do devir que ela prefigura, pode ser representado como um tempo de espera ativa, uma fase que deve consentir uma transição por sua vez positiva para a idade adulta. Como escreveu Alessandro Cavalli com relação à estreita conexão entre diferimento das recompensas e disciplina temporal: “Se o objetivo é determinado e desejável, também a necessidade de suportar ou de impor-se uma [...] disciplina torna-se, subjetivamente, uma estratégia adequada”. A identidade pessoal, conseqüentemente, constrói-se em relação a uma projeção de si no tempo vindouro (o que quero ser?), graças à qual não apenas o passado adquire sentido, mas também é tolerada uma eventual frustração que pode acompanhar as experiências do presente. Portanto, se o futuro é considerado a dimensão depositária do sentido do agir; se é representado como o tempo estratégico na definição de si, o veículo pelo qual, em direta ligação com o passado, a narração biográfica toma forma, o diferimento da recompensa pode, então, ser aceito. Nessa perspectiva, o futuro é o espaço para a construção de um projeto de vida e, ao mesmo tempo, para a definição de si: projetando que coisa se fará no futuro, projeta-se também, paralelamente, quem se será. Em suma, a perspectiva biográfica à qual remete o diferimento das recompensas implica a presença de um horizonte temporal estendido, uma grande capacidade de autocontrole, uma

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conduta de vida para a qual a programação do tempo se torna crucial. O tempo cotidiano é cuidadosamente investido e desfrutado de modo análogo ao dinheiro; é programado, e seu uso, racionalizado.

Max Weber escreveu páginas memoráveis sobre essa orientação específica da ação em A ética protestante e o espírito do capitalismo. Esse mecanismo é ainda considerado evidente, e as novas condições temporais do agir, mesmo que freqüentemente evocadas pelo discurso comum e também pela comunicação da mídia, muitas vezes não são adequadamente discutidas na reflexão sobre as construções biográficas juvenis. É necessário interrogar, por exemplo, se e em que medida a relação entre projeto, tempo biográfico e identidade, que o diferimento das recompensas pressupõe, pode ainda ser considerada válida em um clima social como o contemporâneo, no qual o componente de incerteza tende a dominar e onde fermentam as vivências contingentes. Com efeito, quando a incerteza aumenta para além de certo limiar e se associa não apenas com a idéia de futuro, mas com a própria realidade cotidiana, pondo em causa a dimensão do que é considerado óbvio, então o “projeto de vida” tem seu próprio fundamento subtraído. Além disso, quando a mudança, como ocorre em nossos dias, é extraordinariamente acelerada, e o dinamismo e a capacidade de performance são imperativos, quando o imediatismo é um parâmetro para avaliar a qualidade de uma ação, investir num futuro a longo prazo acaba parecendo tão pouco sensato quanto adiar a satisfação. Mais do que renunciar às recompensas que o presente pode oferecer, convém então estar treinado para “aproveitar o instante”, para não fechar a porta ao imprevisto, dispor-se mentalmente em termos positivos com relação a uma indeterminação carregada de potencialidade.

Nesse horizonte temporal comprimido, o próprio significado da idade juvenil se transforma. Quem a vivencia tende a apreciá-la mais por aquilo que pode oferecer no presente do que pelo tempo futuro que ela virtualmente descortina. Conseqüentemente, os desejos e as exigências estruturam-se em relação ao presente: a “boa vida” não se baseia mais em um compromisso de longa duração, a idéia de estabilidade perde valor.

Para compreender de maneira adequada a profundidade dessas transformações, concentrarei minha atenção primeiro nas ênfases e nos aspectos semânticos novos que caracterizam a dimensão do futuro, tendo o cuidado de esclarecer preliminarmente as modificações de significado que investiram a concepção do devir na trajetória em direção à modernidade. Em um segundo momento, deter-me-ei nas transformações contemporâneas do modo de conceituar o transcorrer da vida juvenil e o projeto biográfico.

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Utilizando os resultados de uma pesquisa recente realizada na Itália sobre a relação entre jovens e temporalidade, da qual participei pessoalmente, analisarei algumas formas novas de criação de projetos juvenis, fruto da crise da juventude como fase de transição para a idade adulta e do mecanismo de diferimento das recompensas que está em sua base.

Futuro e consciência do tempo

As orientações temporais sociais podem ser consideradas um indicador ]das diferentes “épocas cognitivas” da humanidade, dos diferentes modelos de mundo que se sucederam no curso do processo de civilização. Como Norbert Elias esclareceu, a consciência temporal, o modo de conceber e de vivenciar o tempo, não é nem um dado biológico, nem um dado metafísico. Trata-se, antes, de uma dimensão social que muda com a sucessão das gerações, de acordo com seus diferentes habitus, com as diferentes condições de desenvolvimento das sociedades nas quais elas vivem. De acordo com essa interpretação, a capacidade de temporalização seria o resultado de um longo e difícil processo evolutivo, em escala plurissecular, procedendo do concreto em direção ao abstrato. Em outros termos, quanto mais as sociedades se diferenciam, mais os conceitos temporais tendem à abstração, a um grau mais elevado de síntese conceitual. Nesse processo, o modo de interpretar e de relacionar passado, presente e futuro também aparece como uma variável. Ele se transforma, segundo Elias, por meio de uma tendência análoga, segundo a qual o ponto focal da atenção se desloca da concretude do presente para uma dimensão, como a do futuro, não passível de experiência direta, apenas imaginária.

Assim como nas sociedades pré-estatais as cadeias de interdependência são comparativamente mais curtas, da mesma maneira, entre seus membros, a percepção do passado e do futuro como separados do presente é menos desenvolvida. Na experiência desses homens o presente imediato, o aqui e o agora, tem um peso maior que o passado, por um lado, e que o futuro, por outro. Também o agir humano é dirigido, em seu grau máximo, para necessidades e impulsos presentes. Nas sociedades mais tardias, pelo contrário, o passado, o presente e o futuro são claramente diferenciados. A necessidade e a capacidade de prever e levar em conta um futuro relativamente longínquo exercem uma influência cada vez maior sobre todas as atividades.

Na mudança descrita por Elias sintetiza-se, como teremos ocasião de considerar ao analisar as transformações da idéia de futuro, um percurso que

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resume bem a passagem da “tradição à modernidade”. Na época moderna, o futuro torna-se o novo centro da práxis humana, a aposta, o risco e o desafio com os quais é necessário defrontar-se. Pela primeira vez, com a modernidade, perdem a eficácia instâncias extra-históricas às quais se possa imputar sua criação. O futuro depende inteiramente do agir dos sujeitos; o mesmo acontece com a história. Ambos são construídos e projetados.

A idéia moderna de futuro com a qual nos acostumamos – uma dimensão separada do presente e distinta do passado, controlável e planificável – nasce em uma época relativamente recente, entre os séculos XVII e XVIII, com a afirmação da concepção linear do tempo na razão cultural européia. Gostaria de deter-me brevemente sobre essa concepção e sobre as diferenças entre as imagens de futuro nas duas percepções, cíclica e linear do tempo, antes de considerar a categoria de futuro aberto, ponto cardinal da (primeira) modernidade.

A consciência dos homens primitivos não percebe a mudança como ruptura e descontinuidade. O futuro, por esse ângulo, não se diferencia do passado. No novo, a mentalidade primitiva reencontra o antigo. Uma concepção linear do tempo, com efeito, está totalmente ausente nas sociedades arcaicas. O tempo não escorre do passado ao futuro, mas é interpretado segundo um esquema cíclico: o que já foi será novamente, apenas um intervalo mais ou menos longo separa passado e futuro. São os ritmos da natureza, a sucessão das estações e os ritmos produtivos que aqueles cadenciam que constituem os parâmetros temporais sociais. O tempo, aqui, não é separado da ação ou de seus conteúdos: falta, em outros termos, qualquer conotação do tempo como entidade abstrata e quantificável. Pelo contrário, o pensamento arcaico diferencia, como se sabe, entre um tempo sagrado e um tempo profano. O primeiro permite, por intermédio da festa e do rito, a reprodução do tempo original, do tempo mítico. O segundo é um tempo de preparação para a irrupção do primeiro na vida social, útil para cadenciar os ritmos temporais, para separar claramente as áreas simbólicas do mágico, do extraordinário, daquelas da vida ordinária. Nesse mundo temporal descontínuo, centrado no presente, reversível, medido por eventos concretos, o tempo sagrado permite não apenas a perpetuação do universo, como também o “enganar” a morte. Inexiste, nessa concepção do tempo, a idéia de futuro a longo prazo. Para além do que ocorre no imediatismo do ambiente circunstante, estende-se uma cortina que impede observar o tempo, interrogar-se sobre seu significado. Para lá do presente, abre-se o território misterioso da lenda, do mito, do qual só é possível aproximar-se por intermédio da dimensão do ritual. De fato, todas as três áreas temporais, do

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passado, do presente e do futuro, aparecem indistinguíveis umas das outras – todas as três são igualmente subtraídas do controle humano. O mito do eterno retorno as estrutura.

Uma importância análoga da dimensão mítica da realidade dá forma à consciência temporal helênica. Apesar de no pensamento grego conviverem diferentes dimensões temporais, é sobretudo a concepção cíclica do tempo que de fato prevalece. Também nesse cenário é o passado mítico, e certamente não o futuro, o coração do mundo social. Mais uma vez, o destino governa o tempo: tanto os seres humanos como os deuses estão submetidos a seus desejos. A percepção do tempo resultante é essencialmente estática e externa ao conceito de evolução histórica. Na Antigüidade, como afirma Gourevitch, a história coincide com “o eterno retorno das mesmas formas políticas segundo uma ordem determinada”.

A ruptura dessa imagem temporal relaciona-se com a difusão da concepção cristã do tempo, a partir de uma trajetória longa e complexa. O tempo, segundo essa concepção, não avança mais por um movimento circular, mas linear. O tempo terrestre (tempus) e o tempo da eternidade (aeternitas) são separados conceitualmente: abre-se, assim, o primeiro espaço para a representação do tempo como entidade potencialmente controlável pelos seres humanos.

Diferentemente do helênico, o tempo cristão não olha mais apenas para o passado. Nem, como o tempo hebraico expresso no Antigo Testamento, apenas para o futuro. Passado, presente e futuro inscrevem-se, todos plenamente, no fluir incontido do tempo que se estende entre os dois pólos - da Gênese, por um lado, e do Apocalipse, por outro. No centro desse fluir há o advento de Cristo. É a dimensão vetorial - depois herdada e transformada pela sociedade industrial - que se torna dominante. Parte-se “de” para chegar “ao” último dia do mundo: a fé garante a riqueza do sentido desse percurso.

Contrastando com a visão cíclica do tempo, fortemente presente na cultura helênica, a concepção cristã afirma que o que ocorre no tempo acontece apenas uma vez, é algo único e carregado de significado. O tempo histórico adquire consistência e estrutura-se como uma arena na qual se expressa o livre-arbítrio: mesmo se, em última instância, a participação humana na história é iluminada pelo fato de ser parte de um projeto divino. Os atores desse tempo são, em primeiro lugar, Deus, em cujas mãos passado, presente e futuro são confiados, e, em segundo lugar, o conjunto

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da comunidade cristã; nunca o indivíduo. Em outras palavras, a idéia de futuro, assim como a de história, apenas se torna patrimônio da humanidade em virtude do fato de os seres humanos serem criaturas divinas. O futuro humano conhece, entretanto, um limite supremo: é fechado pelo Apocalipse, o ponto final da história. O tempo cristão parece, assim, essencialmente dramático, não apenas em razão da existência desse limite intransponível, mas também pela conotação da vida terrestre como uma eterna disputa entre bem e mal.

Modernidade e “futuro aberto”

A modernidade laiciza essa concepção do tempo. O tempo permanece vetorial, mas “é expurgado de qualquer idéia de um fim e esvaziado de qualquer outro sentido senão o de ser um processo estruturado por um antes e um depois”. Um esquema desse tipo, como sublinha Agamben, é o mais funcional - com seu tempo homogêneo, sem qualidade, incontido e intercambiável - para a difusão das manufaturas. Aparece como conditio sine qua non para a utilização de máquinas no trabalho humano. A partir da nova organização do trabalho na sociedade industrial, o tempo linear da concepção judaico-cristã é englobado em uma concepção de mundo radicalmente diferente, secularizada. O progresso (mundano) toma o lugar da perfeição (espiritual). Nas palavras de Koselleck, essa passagem substitui “a doutrina do julgamento universal pelo risco de um futuro aberto” (1986, p. 311). Novidade absoluta,o futuro é subtraído da dupla influência divina e natural, e submetido ao domínio humano. Abre-se, assim, tanto ao novo como ao incerto.

Formulado pela filosofia iluminista, o conceito de futuro aberto exercerá, ao menos por dois séculos, uma influência profunda e difusa nos esquemas culturais da modernidade. Evaporada a idéia de um plano divino para o futuro, o devir aparece ligado, por um duplo fio, às escolhas e às decisões do presente. Um universo cada vez mais “futurista” suplanta o universo “passadista” anterior à Revolução Francesa. Nas palavras de Pomian, “desloca-se o centro de gravidade do tempo”, invertendo os fundamentos da tradição. Um mundo no qual se procurava apenas produzir o que já fora, imitar respeitosamente os exemplos transmitidos pela tradição ou tomados daquela que se julgava ser a natureza, conformar-se a um costume imemorial [é substituído por] um mundo no qual a maior estima é atribuída à inovação, à invenção, à descoberta, tanto econômica como científica ou técnica; no qual o primado nas artes, nas letras e mesmo nos costumes é concedido ao que é original, inédito, nunca visto; no qual as antecipações

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prevalecem sobre os hábitos e as expectativas sobre as recordações.

Conseqüentemente, expectativas sobre o futuro e experiências amadurecidas no passado não são mais correspondentes: o progresso as dissocia. O movimento e a transformação contínua e acelerada do ambiente social enfraquecem a experiência, impedindo-a de aparecer no horizonte das expectativas. O futuro, de modo análogo à história, não pode, com efeito, repetir-se: por antonomásia, é o reino do novo, do inédito, é um agente do progresso (o futuro será sempre melhor que o passado). É desse futuro, e não mais do passado, que se origina a nova identidade temporal das sociedades ocidentais.

Em concordância com o profundo otimismo da ideologia do progresso, uma ideologia que permeou de modo maciço a vida do Ocidente de meados do século XVIII a meados, aproximadamente, do século XX, o controle sobre o futuro foi dado como evidente. O tempo aberto e irreversível do futuro avança, sem incertezas, na direção de um indiscutível melhoramento. A perda da instância extra-histórica na relação com o futuro faz convergir a atenção sobre a autonomia do indivíduo: não mais sua posição definida, mas sua capacidade de projetar-se individualmente torna-se a fonte primária de identidade e o princípio organizador da biografia. O futuro aparece, com efeito, como um horizonte temporal subjetivamente influenciável, à disposição dos indivíduos como espaço de experimentação. Como já se sublinhou, a distância entre “o que acontece e o que se pode fazer” e a exigência de superá-la estão na base da própria idéia de indivíduo moderno.

Do ponto de vista funcional, a projeção do tempo torna-se o equivalente moderno das práticas mágicas das sociedades arcaicas: ele aparece como um antídoto racional contra a incerteza gerada pelo futuro. Com a conquista humana sobre o devir, operada pela modernidade, nasce, com efeito, o problema da morte. O mundo moderno postula, como já se escreveu, “uma infinidade de tempo em um universo indiferente à existência humana”. Se a Weltanschauung religiosa trazia a vida humana para o centro do cosmos, o universo da modernidade, guiado por forças não espirituais, a vê como um “mero acidente ou uma excrescência”. Assegurar-se do futuro, projetando-o, é também um modo de controlar a inquietação que essa situação gera. No futuro aberto, liberdade e incerteza aparecem, com efeito, como as duas faces de uma mesma cabeça.

A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, e com uma aceleração progressiva, essa vivência da incerteza transforma-se em um comportamento

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verdadeiramente defensivo. O futuro começa a ser mais temido que almejado; seu pensamento torna-se freqüentemente, sempre que possível, exorcizado. A expressão “crise do futuro” sintetiza bem esse difuso mal-estar.

“Segunda modernidade”, ricos globais e crise do futuro

É conveniente esclarecer, agora, a distinção, implícita nessas reflexões, entre uma “primeira” e uma “segunda” modernidade. Seguindo a proposta analítica de Ulrick Beck, podemos definir como primeira modernidade o período que se estende do início da modernidade industrial, entre os séculos XVII e XVIII, até o início do século XX, período no qual domina a realidade do Estado-nacional e cuja lógica vencedora é a do progresso associada à idéia de controle (em primeiro lugar sobre a natureza). Identidades e papéis sociais aparecem estreitamente interligados em seu interior.

A segunda modernidade, pelo contrário, a modernidade contemporânea, filha do sucesso da modernização, parece cada vez mais governada por processos como a intensificação da globalização e dos mercados globais, o pluralismo dos valores e das autoridades, o individualismo institucionalizado. No plano cultural, parecem favorecidas as formas de identidade compósita, nas quais elementos globais e locais se misturam, impondo a convivência conflituosa entre diferentes imagens de si, as “identidades cosmopolitas”.

Como sabemos por nossa experiência direta, e não apenas por reflexões teóricas, essa modernidade caracteriza-se por uma dimensão de riscos globais: crise ambiental, terrorismo internacional, ameaças econômicas (mas também, por exemplo, sanitárias) de tipo planetário, novas modalidades de desigualdade social, a partir do empobrecimento crescente de áreas cada vez mais vastas do planeta, e, associadas a essa última, novas formas de subocupação com reflexos devastadores no plano existencial. Nesse cenário, há cada vez menos espaço para dimensões como segurança, controle, certeza, todos os aspectos que contribuíram para definir o perfil social da primeira modernidade. Enquanto essa última pode ser, assim, considerada a expressão do projeto iluminista de superação da idéia de limite – de qualquer limite, a partir daqueles ligados ao conhecimento –, a modernidade contemporânea obriga-nos a confrontar a impossibilidade da idéia de controle. Se o futuro que a primeira modernidade observava era o futuro aberto, o futuro da modernidade contemporânea é o futuro indeterminado e indeterminável, governado pelo risco.

Detenhamo-nos brevemente sobre essa dimensão, que se

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revela de uma importância estratégica para compreender o alcance das mudanças ocorridas na interpretação e no estranhamento do futuro. O risco aparece, nesse cenário, mais como resultado da perda de relação entre intenção e resultado, entre racionalidade instrumental e controle, do que, na acepção científica comum, como relação entre um evento e a probabilidade de que este ocorra. Enquanto, na primeira modernidade, o termo risco era substantivamente conceituado como uma modalidade de cálculo de conseqüências não previsíveis - tratava-se, em suma, de “tornar previsível o imprevisível” mediante o cálculo probabilístico - na modernidade contemporânea a reflexão sobre os riscos impõe instrumentos conceituais de outra ordem.

Esses riscos não parecem governáveis pelos métodos da racionalidade instrumental, são riscos de alcance global e sua prevenção torna-se particularmente difícil. Uma espécie de “realidade virtual”, uma realidade in fieri com caráter ameaçador, envolve o futuro em um manto de pesada incerteza. A peculiar incerteza que esses riscos geram está ligada, sobretudo, a seu caráter humanamente produzido, resultado do crescimento do conhecimento que caracteriza nossa época: riscos imponderáveis mas humanamente produzidos são as mudanças climáticas - basta pensar no buraco da camada de ozônio - ou os riscos ligados à energia nuclear; o mesmo é válido para doenças como a BSE (“doença da vaca louca”) ou a SARS (“gripe asiática”).

Em uma época de riscos globais como a nossa, portanto, interrompe-se o imponente processo de “colonização do futuro” posto em marcha pela primeira modernidade. O futuro foge de nosso controle, com repercussões profundas nos planos político e social. A nova realidade produzida pela difusão de riscos globais transforma o futuro da terra prometida num cenário pintado com tintas foscas, se não abertamente ameaçadoras, para a existência coletiva.

É importante ressaltar o vínculo estreito entre essa categoria particular de riscos e o futuro. Por sua própria constituição, com efeito, esses riscos são, por assim dizer, “construídos” e alimentados em sentido próprio pela relação com o futuro - embora nada nos digam sobre o que, de positivo, devamos perseguir no futuro. Não nos falam de um “bem”, mas concentram a atenção exclusivamente sobre os “males” que o futuro pode difundir. A idéia de futuro a que conduzem é, portanto, não determinada e, ao mesmo tempo, marcada por um sentimento difuso de alarme, associado a uma sensação de impotência.

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Novas formas de temporalização

Os cenários de riscos imensos acima mencionados – e capazes, entre outras coisas, de projetar-se sobre arcos temporais também muito estendidos: a distância temporal entre as ações e seus efeitos, na época do risco, pode tornar-se decisivamente consistente – têm influência sobre os modos de temporalização, sobre os quais convém agora que nos detenhamos. Se, com o termo temporalização, entendemos a perspectiva segundo a qual passado e futuro, experiências e expectativas, devem ser continuamente relacionados uns com os outros e sempre coordenados de novo, não é difícil perceber que em uma época de riscos difusos a capacidade de apreender o tempo tende a fragmentar-se. Um horizonte futuro, ocupado pela dimensão do risco, impede, por exemplo, a construção de narrativas biográficas nas quais um evento qualquer apareça relacionado a um outro e seja capaz, de modo inteligível, de condicioná-lo.

Analisando os reflexos temporais das condições de incerteza contemporânea, Zygmunt Bauman, por exemplo, afirma: “o passado, os períodos de tempo recebiam seu próprio significado da antecipação de novos segmentos, ainda por acontecer, do continuum temporal; agora, esperamos que extraiam seu próprio sentido, por assim dizer, de seu interior: que se justifiquem sem nenhuma referência ao futuro, ou referindo-se a ele de maneira apenas superficial. Os intervalos de tempo dispõem-se um ao lado do outro e não em uma progressão lógica; não há uma lógica pré-ordenada em sua sucessão; podem mudar facilmente de posição, sem transgredir nenhuma regra de ferro: os setores do continuum temporal são, em teoria, intercambiáveis. Qualquer momento específico deve autolegitimar-se e oferecer a máxima satisfação pessoal”.

Essa pulverização da experiência do tempo - é quase inevitável - conduz a uma atenção especial em relação ao presente, “a única dimensão do tempo que é freqüentada sem desconforto e sobre a qual a atenção se detém sem dificuldade”.

Também nesse caso os jovens são um termômetro particularmente sensível dessas transformações. Já nos anos de 1980, as pesquisas sobre o tempo dos jovens registravam, por exemplo, a passagem do futuro para o presente, em particular para o “presente estendido”, como área de governo potencial do tempo social e individual.

Com o termo “presente estendido” entende-se o espaço temporal

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que bordeja o presente, adquirindo um valor crescente, paralelamente à aceleração temporal contemporânea, favorecida pela velocidade dos tempos tecnológicos e pela exigência de flexibilidade que é seu corolário. Segundo Helga Nowotny, que aprofundou esse conceito, tendo-se abolido a categoria agora pouco funcional de futuro, torna-se necessário reformular o conceito de presente, constituindo-o como referente central dos horizontes temporais contemporâneos. Nessa perspectiva, não mais o futuro, mas o presente mais próximo - o lapso temporal suficientemente breve para não fugir ao domínio humano e social, mas também suficientemente amplo para consentir alguma forma de projeção para além no tempo - tornar-se-ia o novo tempo da ação. Nos quadros temporais de fins do século XX, em suma, o presente (ora mais, ora menos estendido) aparece como a única dimensão temporal disponível para a definição das escolhas, um verdadeiro horizonte existencial que, em certo sentido, inclui e substitui futuro e passado.

Nesse contexto, parece claro o esgotamento da própria idéia de projeto - que podemos definir aqui como uma forma de seleção, subjetivamente construída, entre múltiplos “futuros virtuais” disponíveis, capaz de destilar, das fantasias e dos desejos que o substantivam, objetivos alcançáveis, dotados de uma clara medida temporal. Mas pode-se ainda falar em biografia, em sentido próprio, na ausência de projeto? A primeira modernidade delineou um cenário no qual não apenas os dois termos se correspondem respectivamente, mas também projeto coletivo e projeto individual representam duas faces da mesma moeda. Os objetivos do projeto coletivo - liberdade, democracia, igualdade, bem-estar econômico - aparecem como as condições básicas para a realização do projeto individual. As biografias, por sua vez, estruturam-se em torno dessa coincidência. A segunda modernidade tende a apagar, com a idéia de continuidade temporal, também a idéia de projeto antes construída pelo ápice da modernidade. Hoje nos confrontamos, portanto, com construções biográficas de um caráter inédito, desvinculadas das formas de projeto tradicionalmente entendidas.

Podemos tomar emprestado de Lévi-Strauss o conceito de bricolage - figura do pensamento mágico e arcaico - para enfocar o estilo cognitivo particular que lhes serve de guia. Para Lévi-Strauss, o bricoleur é aquele que executa um trabalho com as próprias mãos empregando instrumentos distintos daqueles usados por um profissional. Observando-o, o que chama a atenção é sua capacidade de adaptar-se aos materiais disponíveis, de construir passo a passo o equipamento necessário. Na falta de um projeto específico no início, as ferramentas são criadas ao sabor do momento.

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Nenhum elemento do conjunto sobre o qual o bricoleur atua está vinculado a um emprego predeterminado; o resultado do trabalho liga-se às condições e aos meios com os quais o sujeito se confronta a cada instante. Os resultados do trabalho empreendido são, portanto, por definição, contingentes. Mas não só. O resultado final pode facilmente ser estranho à intenção inicial. Em certo sentido, o bricoleur - guiado por uma lógica essencialmente “prática” - personifica a separação entre racionalidade e intencionalidade.

Alberto Melucci evocou a figura do “nômade” como metáfora das trajetórias biográficas contemporâneas14. Os “nômades do presente” não perseguem uma meta, mas avançam/exploram envoltos pelo provisório. Não se defrontam com a idéia de uma fronteira, com uma idéia que ligue espaço e tempo a algo que “está à frente” e, como tal, deve ser “enfrentado”. As fronteiras, no universo mediático em que vivemos, estão escancaradas. Os “nômades do presente” rodeiam, sem uma meta precisa, por lugares não conectados, estações singulares de suas biografias, cujas conexões podem ser eventualmente identificadas como resultado de uma reflexão ex-post, e não com base em um projeto. A memória de longo prazo, que atravessa o tempo pessoal de vida, assim como a projeção no futuro não imediato, tende a permanecer, aqui, universo mudo. O tempo fragmenta-se em episódios, cada qual com seu próprio sistema temporal de referência. Adquire força, nesse contexto, a tendência à experimentação – entendida, entretanto, não segundo a costumeira referência a um itinerário marcado por experimentos e erros, com o objetivo de identificar as vias mais idôneas para atingir um dado objetivo. O processo é invertido: experimentam-se “aplicações sempre diferentes das capacidades, dos talentos e dos outros recursos que possuímos, acreditamos possuir ou esperamos possuir” procurando “qual resultado nos dá a maior satisfação”. Daí deriva uma orientação para a ação pela qual “o segredo do sucesso consiste em não ser demasiadamente conservador, evitar acostumar-se com um caso particular, ser móvel e estar sempre ao alcance da mão”.

Uma nova semântica do futuro

Os reflexos desses processos sobre os modelos de ação, sobre os modos de interpretar a realidade, sobre os estilos de vida e os modos de definição da identidade, podem ser facilmente intuídos. Seguindo o tema abordado neste estudo, gostaria, em particular, de chamar a atenção para o papel que essas mudanças exercem sobre o colocar, ou recolocar, em questão a própria fase de vida juvenil. Por definição, com efeito, esta possui

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uma dupla conexão com o tempo: por um lado, é considerada uma condição provisória, destinada a desaparecer com o transcorrer do tempo; por outro, como já ressaltamos amplamente, os jovens são socialmente solicitados a construir formas positivas de relação entre seu próprio tempo de vida e o tempo social. Essa relação substanciava-se, até alguns decênios atrás (para os sujeitos do sexo masculino), em fases biográficas lineares e bem reconhecíveis: primeiramente a preparação para o trabalho, por meio da formação escolar; depois o exercício de um trabalho remunerado, fonte central de identidade e signo indiscutível da idade adulta; por fim, a aposentadoria. Hoje, essa trajetória biográfica, capaz de garantir um percurso previsível para o ingresso na vida adulta, constitui não mais a regra, mas a exceção. Para os jovens, o processo de desinstitucionalização do curso da vida, que arrasta consigo igualmente o conceito de “biografia normal”, comporta o desaparecimento de um aspecto até aqui determinante na reflexão sobre a condição juvenil: a identificação da juventude como um conjunto de etapas, socialmente normativas, que conduzem progressivamente em direção ao mundo adulto. Essas etapas, habitualmente sintetizadas pelo termo “transição”, identificavam a fase de vida juvenil como uma “travessia” guiada por passagens de status. Como nas três fases biográficas indicadas por Kohli, também aqui a relação entre indivíduo e instituições era garantida pela trama entre tempo da vida e tempo social, sobre a base de uma seqüência linear facilmente reconhecível. Tornava-se adulto, em sentido pleno, aquele que tivesse percorrido o trajeto que previa, em uma sucessão rápida, “etapas” como a conclusão dos estudos, a inserção no mundo do trabalho, o abandono da casa dos pais para morar independentemente, a construção de um núcleo familiar autônomo e o nascimento dos filhos. Hoje, embora esses acontecimentos ainda devam, em algum momento, verificar-se, desapareceram tanto sua ordem e irreversibilidade como a moldura social que lhes garantia seu sentido global.

Essa moldura de sentido, mais do que da seqüencialidade, da linearidade e da rápida sucessão de cada etapa particular, era fruto do valor simbólico do qual, no seu conjunto, elas se revestiam na vida do indivíduo jovem. Por seu intermédio, com efeito, ao mesmo tempo que se confirmava o caráter “finito” da fase de vida juvenil, os dois pólos da autonomia (interior) e da independência (social) podiam entrar numa conjunção positiva. A juventude concebida como fase de transição, em uma palavra, permitia pensar a relação entre identidade individual e identidade social como uma relação entre duas dimensões não apenas complementares, mas superpostas de modo praticamente perfeito. A certeza de ter alcançado a autonomia interior era garantida pela progressiva passagem a degraus cada vez mais elevados

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de independência, possibilitados pela relação com instituições sociais com suficiente credibilidade e não fragmentadas.

Hoje o cenário, em termos gerais, alterou-se. As instituições sociais continuam a cadenciar os tempos do cotidiano, mas desapareceu sua capacidade de garantir aos sujeitos uma dimensão fundamental na construção da individualidade: o sentido da continuidade biográfica. Como já foi comentado, na sociedade do “risco mundial”, uma trajetória socialmente normalizada em direção à idade adulta deixou de existir. O ponto de chegada dessa trajetória, por sua vez, é incerto, bem como os itinerários para alcançá-lo. A continuidade biográfica torna-se, assim, fruto da capacidade individual de construir e reconstruir, sempre de novo, molduras de sentido, narrativas sempre novas, a despeito da moldura temporal presentificada.

A obrigação de “individualização” das biografias – em busca das soluções biográficas mais adequadas para resolver as contradições sistêmicas do momento – caracteriza, conseqüentemente, a fase histórica em que vivemos. Isso implica uma nova ênfase na autodeterminação, na autonomia e na escolha (sem apagar, obviamente, os sulcos profundos traçados pelas diferenças de classe, de pertencimento étnico e, num plano talvez menos evidente, mas não menos poderoso, de gênero). Para os jovens, tudo isso se traduz na conquista de novos percursos de liberdade e de espaços de experimentação, mas também na perda do caráter evidente de uma relação positiva com o tempo social.

Se é verdade que o “prolongamento” da fase juvenil da vida constitui, hoje, seu aspecto mais em evidência, a transformação decisiva consiste, entretanto, no desaparecimento da possibilidade de ancorar as experiências que os jovens realizam - nessa fase, como sabemos, as experiências se sucedem com uma intensidade existencial e um ritmo quase único - no mundo das instituições sociais e políticas. A crise do futuro, e do projeto, que analisamos nestas páginas, é uma expressão direta dessa dificuldade.

Munir-se para o confronto com o futuro na “sociedade do risco”:as novas tendências da juventude

Para os jovens, no centro dessa crise está a separação entre trajetórias de vida, papéis sociais e vínculos com o universo das instituições capazes de conferir uma forma estável à identidade. Assim, por exemplo, é possível entrar no mercado de trabalho, sair dele pouco depois e reingressar novamente, sem que se possa identificar nesses ingressos uma progressão

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em direção à incorporação de papéis adultos; ou, no que se refere aos estudos universitários, interrompê-los, retomá-los e depois concluí-los, sem que a aquisição de credenciais educacionais superiores represente uma verdadeira “reviravolta” no plano biográfico, um empowerment capaz de abrir o caminho para situações existenciais com um sentido novo: não apenas sob o ponto de vista da estabilidade do trabalho, mas também, na Europa mediterrânea, por exemplo, no que diz respeito à escolha entre viver só ou com um parceiro, ou mesmo de construir um núcleo familiar próprio. Em suma, a autonomia existencial dissocia-se da aquisição da independência social e econômica. É essencial, entretanto, que não limitemos a reflexão apenas aos aspectos de perda, de redução das possibilidades de ação, associadas aos processos de redefinição temporal da segunda modernidade. Existe, com efeito, uma vertente diferente desses mesmos processos, uma faixa de luz que é preciso analisar com igual atenção. Sobre ela projetam-se as estratégias que os sujeitos constroem para enfrentar essas transformações e, sempre que possível, controlá-las. Como revelou pesquisa recente sobre as alterações nos modos de os jovens viverem sua relação com o tempo - mencionada no início destas reflexões - o resultado desses importantes processos de reestruturação da relação entre jovens, tempo biográfico e tempo social não se reduz à absolutização do presente imediato e à glorificação do aqui e agora.

As identidades não se conjugam apenas no presente. Embora essa opção transpareça em algumas entrevistas, ela não exclui outras respostas. Diversos jovens parecem empenhados, por exemplo, na busca de novas relações entre o processo de produção e criação pessoal, comumente associado ao futuro, e as condições particulares de incerteza nas quais esse processo é vivenciado hoje em dia. O futuro é relacionado, assim, com a abertura potencial - o futuro constitui, hoje mais do que nunca, o espaço do devir possível - mas, ao mesmo tempo, com uma indeterminação expressa, com freqüência cada vez maior, como insegurança. No interior da virtualidade que, por definição, caracteriza o futuro (o que existe em potência, mas não em ato), delineia-se, em outras palavras, um cruzamento peculiar entre a “anarquia do futuro”, para empregar a expressão de Elisabeth Grosz, e a hesitação, a ânsia, o desejo, mais ou menos subterrâneo, de substituir o projeto pelo sonho. Diante do crescimento desses traços ambivalentes do futuro, parece ser fundamental a capacidade de cada um/cada uma elaborar estracognitivas que garantam o controle sobre o tempo da vida, a despeito do aumento da contingência: por exemplo, desenvolvendo a habilidade de manter uma direção ou trajetória a despeito da impossibilidade de prever seu destino final.

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Numa pesquisa recente realizada com jovens franceses e espanhóis, na qual apareceu uma orientação biográfica análoga, isso foi eficazmente definido como “estratégia da indeterminação”. Essa expressão procura ressaltar a crescente capacidade dos jovens com mais recursos reflexivos (por exemplo, os estudantes) de ler a incerteza do futuro como multiplicação das possibilidades virtuais, e a imprevisibilidade associada ao devir como potencialidade agregadora, não como limite à ação. Em outras palavras, diante de um futuro cada vez menos ligado ao presente por uma linha ideal que os una, reforçando reciprocamente seus sentidos, uma parcela dos jovens - talvez não majoritária, mas com certeza culturalmente dominante - elabora respostas capazes de neutralizar o temor paralisante do futuro.

De modo análogo, uma parte dos jovens entrevistados, de ambos os sexos em igual número, exprime de maneira clara a tendência a abrir-se de modo positivo para a imprevisibilidade, levando em conta antecipadamente a possibilidade de mudanças, até mesmo repentinas, de respostas a serem construídas em “tempo real”, à medida que as “oportunidades” se apresentam. O treinamento para a velocidade imposto pelos ritmos sociais é, nesse caso, “desfrutado” da melhor maneira: ser veloz torna-se um atout, permite “agarrar o instante” de modo positivo, conduzir uma experimentação que pode ter influências favoráveis no conjunto do tempo da vida. Para esses jovens, a incerteza do futuro significa, portanto, disponibilidade diante do acidental, do fortuito - o “acaso” que muitos de nossos entrevistados e entrevistadas parecem estimar. Aqui, o controle sobre o tempo biográfico não se identifica com a capacidade de realizar projetos específicos, o que neutraliza os eventuais imprevistos que apareçam no caminho. O controle equivale, antes, à vontade de atingir os objetivos gerais almejados - grande parte dos jovens, mesmo na ausência de verdadeiros projetos existenciais, possui um ou mais objetivos de grande fôlego colocados no futuro: no tocante ao trabalho, à vida privada ou, antes, ao “cuidado de si” à la Foucault. O aspecto inovador dessa nova construção biográfica - em cujo próprio centro está a tensão de um “futuro sem projeto” - é a capacidade de aceitar a fragmentação e a incerteza do ambiente como um dado não eliminável, que deve ser transformado em recurso graças a um exercício constante de consciência e reflexividade.

Deve-se ressaltar, desde logo, que aqueles que exprimem essa estratégia temporal parecem especialmente ricos em recursos - culturais, sociais e econômicos. Se os sujeitos dominantes de nossa época são aqueles que se diferenciam em virtude de sua capacidade de utilizar bem, em termos de poder, a velocidade e a mobilidade, esses jovens parecem trilhar esse caminho. Quem, pelo contrário, possui poucos recursos sociais e culturais

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parece, sobretudo, sofrer com a perda do futuro progressivo e da capacidade de propor projetos da primeira modernidade. Para esses jovens, o futuro, fora de controle, pode ser somente anulado, apagado para dar lugar a um presente sem fascínio. Nesses casos, como bem descreveu Robert Castel, refletindo sobre o individualismo contemporâneo, estamos diante de uma forma de individualismo “por falta”: aqui, o indivíduo não possui os suportes necessários para construir sua própria autonomia e é expulso para uma identidade sem espessura temporal. A aceleração social torna-se, assim, de modo evidente, fonte de exclusão social, traduzindo-se em uma estaticidade passiva.

A maior parte dos jovens, moços e moças, em resposta às condições sociais de grande insegurança e de risco, encontra refúgio sobretudo em projetos de curto ou curtíssimo prazo, que assumem o “presente estendido” como área temporal de referência. Reagem ao “tempo curto” da sociedade da aceleração com projetos sui generis, que se expressam sobre arcos temporais mínimos e que, por isso mesmo, parecem extremamente maleáveis. Em alguns casos, parecem configurar-se essencialmente como uma reação à inquietação que a própria idéia de futuro evoca; em outros, assumem as características de formas projetivas marcadas pela concretude - em geral ligadas à conclusão positiva de atividades já iniciadas - capazes de responder tanto à necessidade de assenhorear-se do tempo biográfico em um ambiente veloz e incerto, como à pressão social por resultados a curto prazo. Nesse último caso, a tipologia dos “projetos curtos” aparece como um tipo de “terceira via” entre a capacidade especial de gestão da complexidade, própria do primeiro tipo de orientação biográfica que analisamos, e a referência exclusiva ao presente daqueles que não conseguem construir reações adequadas mediante o crescimento da indeterminação do futuro. A concentração em uma área temporalmente delimitada permite, com efeito, a construção de uma vivência do tempo como campo unificado e contínuo, subjetivamente controlável; por sua vez, o domínio sobre os tempos da vida é buscado, não por meio da elaboração de metas temporalmente distantes (objetivo irrealista na sociedade da incerteza), mas em seu exercício no aqui e agora. Essa estratégia da “via mediana” parece especialmente atraente porque, enquanto não impede de todo uma projeção no futuro por meio do projeto, está em sintonia com a orientação maleável que se tornou necessária em uma época na qual os processos de mudança são rápidos e freqüentemente imprevisíveis.

Concluindo: em uma época na qual o futuro a médio e longo prazos não pode ser discutido sem suscitar preocupações e, com freqüência, um

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sentimento de verdadeiro temor, um método de ação baseado no “avaliar a cada vez”, no “quando as portas se abrem para mim, devo procurar não fechá-las”, no “aproveitar as oportunidades no momento em que aparecem”, pode representar uma estratégia racional para transformar a imprevisibilidade em uma chance de vida, para transformar a opacidade do futuro em uma oportunidade para o presente, para dispor-se positivamente diante do futuro. Se, nesse cenário, o mecanismo de diferimento das recompensas confirma sua inadequação como padrão de referência para o agir social, um número crescente de jovens parece, todavia, capaz de substituí-lo por modelos de ação construídos a partir de novas formas de disciplina temporal (por exemplo, para períodos breves, mas intensos, “finitos”), de programação e controle atento sobre o tempo cotidiano.

Em um período histórico de crise do futuro (e de crise da concepção da juventude como transição para a vida adulta tout court), delineia-se assim um novo “estado de ânimo” juvenil em relação ao tempo. Em seu centro está a necessidade de não se deixar engolir pela velocidade dos eventos, de controlar a mudança equipando-se para agir prontamente, de não desprezar o tempo deixando que “as coisas aconteçam”, de não se deixar encurralar pela insegurança difusa. Ainda que o tempo vivenciado seja sobremaneira incerto, o que parece importante é, sobretudo, “manter a rota”, não perder a direção interior.

Se essas experimentações biográficas terão resultado positivo, permitindo aos jovens a necessária integração social, dependerá também da capacidade do mundo adulto de reconhecer sua legitimidade como expressão da semântica do futuro no século XXI.

Sugestão para Exercícios

�) É possível identificar em sua cidade qual a concepção de tempo que o meio cultural tem?2) Que sugestões você daria para superar a barreira dessa “nova concepção de tempo” que as sociedades urbanas contemporâneas tem? Explique.

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CAPíTULO VII

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Ensinar e aprender são atos inegavelmente complementares. Contudo, esses atos são produzidos por agentes sociais que não estão imunes ao mundo a sua volta, ou seja, tanto professores quanto alunos são entes sociais que recebem inúmeras influências dos meios em que vivem e, muitas das vezes, transportam esses valores para dentro da escola.

Se isto é verdadeiro, como fica a escola nesse “fogo cruzado”? É possível elaborar e fazer funcionar um sistema educacional distante dos conflitos cotidianos de nossa sociedade?

E se, ao contrário, admitirmos que a escola sofre todo tipo de influência do meio cultural a sua volta, como então, produzir resultados positivos numa sociedade onde a desigualdade econômica e social é latente? Numa sociedade, tantas das vezes, presa a valores estamentais.

Vejamos o texto no intuito de produzirmos algumas reflexões sobre o assunto.

TExTO PARA ANÁLISE

(texto extraído de Juarez Tarcisio Dayrell. “A Escola como Espaço Sócio-Cultural”. In: Múltiplos Olhares sobre a Educação. Dayrell (org.). Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2001 p. 137 a 161)

1- PRIMEIROS OLHARES SOBRE A ESCOLA

Analisar a escola como espaço sócio-cultural significa compreendê-la na ótica da cultura, sob um olhar mais denso, que leva em conta a dimensão do dinamismo, do fazer-se cotidiano, levado a efeito por homens e mulheres, trabalhadores e trabalhadoras, negros e brancos, adultos e adolescentes, enfim, alunos e professores, seres humanos concretos, sujeitos sociais e históricos, presentes na história, atores na história. Falar da escola como espaço sócio-cultural implica, assim, resgatar o papel dos sujeitos na trama social que a constitui, enquanto instituição.

Este ponto de vista expressa um eixo de análise que surge na década de 80. Até então, a instituição escolar era pensada nos marcos das análises macro-estruturais, englobadas, de um lado, nas teorias funcionalistas (Durkheim, Talcott Parsons, Robert Dreeben, entre outros), e de outro, nas “teorias da reprodução” (Bourdieu e Passeron; Baudelot e Establet; Bowles e Gintis; entre outros). Essas abordagens, umas mais deterministas, outras

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evidenciando as necessárias mediações, expõem a força das macro-estruturas na determinação da instituição escolar. Em outras palavras, analisam os efeitos produzidos na escola, pelas principais estruturas de relações sociais, que caracterizam a sociedade capitalista, definindo a estrutura escolar e exercendo influências sobre o comportamento dos sujeitos sociais que ali atuam.

A partir da década de 80, surgiu uma nova vertente de análise da instituição escolar, que buscava superar os determinismos sociais e a dicotomia criada entre homem-circunstância, ação-estrutura, sujeito-objeto. Essa vertente se inspira num movimento existente nas ciências sociais, direcionado por um paradigma emergente que,no dizer de Boaventura, tem como característica a superação do conhecimento dualista, expresso na volta do sujeito às ciências: “o sujeito, que a ciência moderna lançara na diáspora do conhecimento irracional, regressa investido da tarefa de fazer erguer sobre si uma nova ordem científica”. O reflexo desse paradigma emergente é um novo humanismo,que coloca a pessoa, enquanto autor e sujeito do mundo, no centro do conhecimento, mas, tanto a natureza, quanto as estruturas, estão no centro da pessoa, ou seja, a natureza e a sociedade são antes de tudo humanas.

Nessa perspectiva, Szpeleta & Rockwell desenvolvem uma análise em que privilegiam a ação dos sujeitos, na relação com as estruturas sociais. Assim, a instituição escolar seria resultado de um confronto de interesses: de um lado,uma organização oficial do sistema escolar, que “define conteúdos da tarefa central, atribui funções, organiza, separa e hierarquiza o espaço, a fim de diferenciar trabalhos, definindo idealmente, assim, as relações sociais.”; de outro, os sujeitos - alunos, professores, funcionários, que criam uma trama própria de inter-relações, fazendo da escola um processo permanente de construção social. Para as autoras, em “cada escola interagem diversos processos sociais: a reprodução das relações sociais, a criação e a transformação de conhecimentos, a conservação ou destruição da memória coletiva, o controle e a apropriação da instituição, a resistência e a luta contra o poder estabelecido.” Apreender a escola como construção social implica, assim, compreendê-la no seu fazer cotidiano, onde os sujeitos não são apenas agentes passivos diante da estrutura. Ao contrário, trata-se de uma relação em contínua construção,de conflitos e negociações em função de circunstâncias determinadas.

A escola, como espaço sócio-cultural, é entendida, portanto, como um espaço social próprio, ordenado em dupla dimensão. Institucionalmente,

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por um conjunto de normas e regras, que buscam unificar e delimitar a ação dos seus sujeitos. Cotidianamente, por uma complexa trama de relações sociais entre os sujeitos envolvidos, que incluem alianças e conflitos, imposição de normas e estratégias individuais, ou coletivas, de transgressão e de acordos. Um processo de apropriação constante dos espaços, das normas, das práticas e dos saberes que dão forma à vida escolar. Fruto da ação recíproca entre o sujeito e a instituição, esse processo, como tal, é heterogêneo. Nessa perspectiva, a realidade escolar aparece mediada, no cotidiano, pela apropriação, elaboração, reelaboração ou repulsa expressas pelos sujeitos sociais.

Desta forma, o processo educativo escolar recoloca a cada instante a reprodução do velho e a possibilidade da construção do novo, e nenhum dos lados pode antecipar uma vitória completa e definitiva. Esta abordagem permite ampliar a análise educacional, na medida em que busca apreender os processos reais, cotidianos, que ocorrem no interior da escola, ao mesmo tempo que resgata o papel ativo dos sujeitos, na vida social e escolar.

O texto que se segue expressa esse olhar e reflete questões e angústias de professores de escolas noturnas da rede pública de ensino, com os quais venho trabalhando e aprendendo através de assessorias e cursos de aperfeiçoamento, nos últimos quatro anos. É fruto também de uma pesquisa exploratória, realizada em 1994, em duas escolas públicas noturnas, situadas na periferia da região metropolitana de Belo Horizonte. Esta é a fonte dos exemplos, das cenas e das situações reais aqui apresentadas. Aos alunos, professores e direção destas escolas deixo os meus agradecimentos.

(...) 2.1- A DIVERSIDADE CULTURAL

Quem são estes jovens? O que vão buscar na escola? O que significa para eles a instituição escolar? Qual o significado das experiências vivenciadas neste espaço?

Para grande parte dos professores, perguntas como estas não fazem muito sentido, pois a resposta é óbvia: são alunos. E é essa categoria que vai informar seu olhar e as relações que mantém com os jovens, a compreensão das suas atitudes e expectativas. Assim, independente do sexo, da idade, da origem social, das experiências vivenciadas, todos são considerados igualmente alunos, procuram a escola com as mesmas expectativas e necessidades. Para esses professores, a instituição escolar deveria buscar atender a todos da mesma forma, com a mesma organização do trabalho

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escolar, mesma grade e currículo. À homogeneização dos sujeitos como alunos corresponde à homogeneização da instituição escolar, compreendida como universal.

A escola é vista como uma instituição única, com os mesmos sentidos e objetivos, tendo como função garantir a todos o acesso ao conjunto de conhecimentos socialmente acumulados pela sociedade. Tais conhecimentos, porém, são reduzidos a produtos, resultados e conclusões, sem se levar em conta o valor determinante dos processos. Materializado nos programas e livros didáticos, o conhecimento escolar se torna “objeto”, “coisa” a ser transmitida. Ensinar se torna transmitir esse conhecimento acumulado e aprender se torna assimilá-lo. Como a ênfase é centrada nos resultados da aprendizagem, o que é valorizado são as provas e as notas e a finalidade da escola se reduz ao “passar de ano”. Nessa lógica, não faz sentido estabelecer relações entre o vivenciado pelos alunos e o conhecimento escolar, entre o escolar e o extra-escolar, justificando-se a desarticulação existente entre o conhecimento escolar e a vida dos alunos.

Dessa forma, o processo de ensino/aprendizagem ocorre numa homogeneidade de ritmos, estratégias e propostas educativas para todos, independentemente da origem social, da idade, das experiências vivenciadas. É comum e aparentemente óbvio os professores ministrarem uma aula com os mesmos conteúdos, mesmos recursos e ritmos para turmas de quinta série, por exemplo, de uma escola particular do centro, de uma escola pública diurna, na periferia, ou de uma escola noturna. A diversidade real dos alunos é reduzida a diferenças apreendidas na ótica da cognição (bom ou mau aluno, esforçado ou preguiçoso etc.) ou na do comportamento (bom ou mau aluno, obediente ou rebelde, disciplinado ou indisciplinado, etc.). A prática escolar, nessa lógica, desconsidera a totalidade das dimensões humanas dos sujeitos - alunos, professores e funcionários - que dela participam.

Sob o discurso da democratização da escola, ou mesmo da escola única, essa perspectiva homogeneizante expressa uma determinada forma de conceber a educação, o ser humano e seus processos formativos, ou seja, traduz um projeto político pedagógico que vai informar o conjunto das ações educativas, que ocorrem no interior da escola. Expressa uma lógica instrumental, que reduz a compreensão da educação e de seus processos a uma forma de instrução centrada na transmissão de informações. Reduz os sujeitos a alunos, apreendidos, sobretudo, pela dimensão cognitiva. O conhecimento é visto como produto, sendo enfatizados os resultados da aprendizagem e não o processo. Essa perspectiva implementa a

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homogeneidade de conteúdos, ritmos e estratégias, e não a diversidade. Explica-se assim a forma como a escola organiza seus tempos, espaços e ritmos bem como o seu fracasso. Afinal de contas, não podemos esquecer - o que essa lógica esquece - que os alunos chegam à escola marcados pela diversidade, reflexo dos desenvolvimentos cognitivo, afetivo e social, evidentemente desiguais, em virtude da quantidade e qualidade de suas experiências e relações sociais, prévias e paralelas à escola. O tratamento uniforme dado pela escola só vem consagrar a desigualdade e as injustiças das origens sociais dos alunos.

Uma outra forma de compreender esses jovens que chegam à escola é apreendê-los como sujeitos sócio-culturais. Essa outra perspectiva implica em superar a visão homogeneizante e estereotipada da noção de aluno, dando-lhe um outro significado. Trata-se de compreendê-lo na sua diferença, enquanto indivíduo que possui uma historicidade, com visões de mundo, escalas de valores, sentimentos, emoções, desejos, projetos, com lógicas de comportamentos e hábitos que lhe são próprios.

O que cada um deles é, ao chegar à escola, é fruto de um conjunto de experiências sociais vivenciadas nos mais diferentes espaços sociais. Assim, para compreendê-lo, temos de levar em conta a dimensão da “experiência vivida”. Como lembra Thompson, é a experiência vivida que permite apreender a história como fruto da ação dos sujeitos. Estes experimentam suas situações e relações produtivas como necessidades, interesses e antagonismos e elaboram essa experiência em sua consciência e cultura, agindo conforme a situação determinada. Assim, o cotidiano se torna espaço e tempo significativos.

Nesse sentido, a experiência vivida é matéria prima a partir da qual os jovens articulam sua própria cultura, aqui entendida enquanto conjunto de crenças, valores, visão de mundo, rede de significados: expressões simbólicas da inserção dos indivíduos em determinado nível da totalidade social, que terminam por definir a própria natureza humana. Em outras palavras, os alunos já chegam à escola com um acúmulo de experiências vivenciadas em múltiplos espaços, através das quais podem elaborar uma cultura própria, uns “óculos” pelo qual vêm, sentem e atribuem sentido e significado ao mundo, à realidade onde se inserem. Não há portanto um mundo real, uma realidade única, pré-existente à atividade mental humana. Como afirma Sacristán, “O mundo real não é um contexto fixo, não é só nem principalmente o universo físico. O mundo que rodeia o desenvolvimento do aluno é hoje,mais que nunca,uma clara construção social onde as pessoas,

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objetos, espaços e criações culturais, políticas ou sociais adquirem um sentido peculiar, em virtude das coordenadas sociais e históricas que determinam sua configuração. Há múltiplas realidades como há múltiplas formas de viver e dar sentido à vida.”

Nessa perspectiva, nenhum indivíduo nasce homem, mas constitui-se e se produz como tal, dentro do projeto de humanidade do seu grupo social, num processo contínuo de passagem da natureza para cultura, ou seja, cada indivíduo, ao nascer, vai sendo construído e vai se construindo enquanto ser humano. Mas como se dá esta produção numa sociedade concreta?

Quando qualquer um daqueles jovens nasceu, inseriu-se numa sociedade que já tinha uma existência prévia, histórica, cuja estrutura não dependeu desse sujeito, portanto, não foi produzida por ele. São as macroestruturas que vão apontar, a princípio, um leque mais ou menos definido de opções em relação a um destino social, seus padrões de comportamento, seu nível de acesso aos bens culturais, etc., vai definir as experiências que cada um dos alunos teve e a que têm acesso. Assim, o gênero, a raça, o fato de serem filhos de trabalhadores desqualificados, grande parte deles com pouca escolaridade, entre outros aspectos, são dimensões que vão interferir na produção de cada um deles como sujeito social, independentemente da ação de cada um.

Ao mesmo tempo, porém, existe um outro nível, o das interações dos indivíduos na vida social cotidiana, com suas próprias estruturas, com suas características próprias. É o nível do grupo social, onde os indivíduos se identificam pelas formas próprias de vivenciar e interpretar as relações e contradições, entre si e com a sociedade, o que produz uma cultura própria. É onde os jovens percebem as relações em que estão imersos, se apropriam dos significados que se lhes oferecem e os reelaboram, sob a limitação das condições dadas, formando, assim, sua consciência individual e coletiva. Nesse sentido, os alunos vivenciam experiências de novas relações na família, experimentam morar em diferentes bairros, num constante reiniciar as relações com grupos de amigos e formas de lazer. Passam a trabalhar muito cedo em ocupações as mais variadas. Alguns ficam com o salário; outros, a maioria, já o dividem com a família. Aderem a religiões diferentes, pentecostais, católicos, umbandistas etc. O lazer é bem diferenciado, quase sempre restrito, devido à falta de recursos.

São essas experiências, entre outras que constituem os alunos como indivíduos concretos, expressões de um gênero, raça, lugar e papéis

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sociais, de escalas de valores, de padrões de normalidade. É um processo dinâmico, criativo, ininterrupto, em que os indivíduos vão lançando mão de um conjunto de símbolos, reelaborando-os a partir das suas interações e opções cotidianas. Dessa forma, esses jovens que chegam à escola são o resultado de um processo educativo amplo, que ocorre no cotidiano das relações sociais, quando os sujeitos fazem-se uns aos outros, com os elementos culturais a que têm acesso, num diálogo constante com os elementos e com as estruturas sociais onde se inserem e a suas contradições. Os alunos podem personificar diferentes grupos sociais, ou seja, pertencem a grupos de indivíduos que compartilham de uma mesma definição de realidade, e interpretam de forma peculiar os diferentes equipamentos simbólicos da sociedade. Assim, apesar da aparência de homogeneidade, expressam a diversidade cultural: uma mesma linguagem pode expressar múltiplas falas: “Nessa medida, a educação e seus processos é compreendida para além dos muros escolares e vai se ancorar nas relações sociais: são as relações sociais que verdadeiramente educam, isto é, formam, produzem os individuos em suas realidades singulares e mais profundas. Nenhum individuo nasce homem. Portanto, a educação tem um sentido mais amplo, é o processo de produção de homens num determinado momento histórico.”

A educação, portanto, ocorre nos mais diferentes espaços e situações sociais, num complexo de experiências, relações e atividades, cujos limites estão fixados pela estrutura material e simbólica da sociedade, em determinado momento histórico. Nesse campo educativo amplo, estão incluídas as instituições (familia, escola, igreja, etc.), assim como também o cotidiano difuso do trabalho, do bairro, do lazer etc.

O campo educativo onde os jovens se inserem, como habitantes de uma sociedade complexa, urbana e industrial, apresenta uma ampla diversidade de experiências, marcadas pela própria divisão social do trabalho e das riquezas, o que vai delinear as classes sociais. Constitui, a princípio, dois conjuntos culturais básicos, numa relação de oposição complementar, e expressam uma das dimensões da heterogeneidade cultural na sociedade moderna: a oposição cultura erudita x cultura popular.

A diversidade cultural, no entanto, nem sempre pode ser explicada apenas pela dimensão das classes sociais. É preciso levar em conta uma heterogeneidade mais ampla, “fruto da coexistência, harmoniosa ou não, de uma pluralidade de tradições cujas bases podem ser ocupacionais, étnicas, religiosas, etc.”, que faz com que os indivíduos possam articular suas experiências em tradições e valores, construindo identidades cujas fronteiras

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simbólicas não são demarcadas apenas pela origem de classe.

Porém, nos adverte Eunice Durham, tratar a heterogeneidade cultural no âmbito de uma mesma sociedade é, qualitativamente, diferente de tratá-la entre diversas sociedades. Em outras palavras, quando procuramos compreender a cultura xavante, por exemplo, estamos lidando com diferenças que expressam manifestações de uma mesma capacidade humana criadora, fruto de um processo histórico independente. Outra coisa é lidar com alguma expressão da cultura popular, a linguagem, por exemplo, em que a diversidade não é apenas a expressão de particularidades do modo de vida, mas aparece como “manifestações de oposições ou aceitações que implicam num constante reposicionamento dos grupos sociais na dinâmica das relações de classe”. A diversidade cultural na sociedade brasileira também é fruto do acesso diferenciado às informações, às instituições que asseguram a distribuição dos recursos materiais, culturais e políticos, o que promove a utilização distinta do universo simbólico, na perspectiva tanto de expressar as especificidades das condições de existência, quanto de formular interesses divergentes. Dessa forma a heterogeneidade cultural também tem uma conotação político-ideológica.

Essa mesma diversidade está presente na elaboração e na expressão dos projetos individuais dos alunos, onde a escola se inclui. A noção de projeto é entendida como uma construção, fruto de escolhas racionais, conscientes, ancoradas em avaliações e definições de realidade, representando uma orientação, um rumo de vida. Um projeto é elaborado e construído em função do processo educativo, como evidenciamos acima, sempre no contexto do campo educativo ou de um “campo de possibilidades”, ou seja, no contexto sócio-histórico-cultural concreto, onde se insere o indivíduo, e que circunscreve suas possibilidades de experiências. Com isso, afirmamos que todos os alunos têm, de uma forma ou o de outra, uma razão para estar na escola, e elaboram isto, de uma forma mais ampla ou mais restrita, no contexto de um plano de futuro.

Um outro aspecto do projeto é a sua dinamicidade, podendo ser reelaborado a cada momento. Um fator que interfere nesta dinamicidade é a faixa etária e o que ela possibilita enquanto vivências. Essa variável remete ao amadurecimento psicológico, aos papéis socialmente construídos, ao imaginário sobre as fases da vida. Concretamente, as questões e interrogações postas por um adolescente serão muito diferentes das de um jovem de 18 anos e, mais ainda, de um adulto de 30 anos. Um adolescente, por exemplo, está às voltas com sua identidade sexual, com seu papel no grupo: o que é

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ser homem? o que é ser mulher? Pode estar perplexo diante dos diferentes modelos sociais de homem e mulher que lhe são passados pelos meios de comunicação de massa, pelos colegas no trabalho, pela família. Certamente, seu projeto individual vai espelhar este momento que vive.

Portanto, os alunos que chegam à escola são sujeitos sócio-culturais, com um saber, uma cultura, e também com um projeto, mais amplo ou mais restrito, mais ou menos consciente, mas sempre existente, fruto das experiências vivenciadas dentro do campo de possibilidades de cada um. A escola é parte do projeto dos alunos.

O que implicam estas considerações a respeito da diversidade cultural dos alunos?

Um primeiro aspecto a constatar é que a escola é polissêmica, ou seja, tem uma multiplicidade de sentidos. Sendo assim, não podemos considerá-la como um dado universal, com um sentido único, principalmente quando este é definido previamente pelo sistema ou pelos professores. Dizer que a escola é polissêmica implica levar em conta que seu espaço, seus tempos, suas relações, podem estar sendo significadas de forma diferenciada, tanto pelos alunos, quanto pelos professores, dependendo da cultura e projeto dos diversos grupos sociais nela existentes.

Sobre o significado da escola, as respostas são variadas: o lugar de encontrar e conviver com os amigos; o lugar onde se aprende a ser “educado”; o lugar onde se aumenta os conhecimentos; o lugar onde se tira diploma e que possibilita passar em concursos. Diferentes significados, para um mesmo território, certamente irão influir no comportamento dos alunos, no cotidiano escolar, bem como nas relações que vão privilegiar.

Um segundo aspecto é a articulação entre a experiência que a escola oferece, na forma como estrutura o seu projeto político pedagógico, e os projetos dos alunos. Se partíssemos da idéia de que a experiência escolar é um espaço de formação humana ampla, e não apenas transmissão de conteúdos, não teríamos de fazer da escola um lugar de reflexão (re-fletir, ou seja, voltar sobre si mesmo, sobre sua própria experiência) e ampliação dos projetos dos alunos?

Essa questão se torna mais presente quando levamos em conta as observações de Gilberto Velho: “quanto mais exposto estiver o ator a experiências diversificadas, quanto mais tiver de dar conta de ethos e visões

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de mundo contrastantes, quanto menos fechada for sua rede de relações ao nível do seu cotidiano, mais marcada será a sua auto-percepção de individualidade singular. Por sua vez, a essa consciência da individualidade, fabricada dentro de uma experiência cultural específica, corresponderá uma maior elaboração de um projeto.”

A escola não poderia ser um espaço de ampliação de experiências? Considerando-se principalmente a realidade dos alunos dos cursos noturnos, a escola não poderia estar ampliando o acesso, que lhes é negado, a experiências culturais significativas?

Pensando no exemplo do adolescente em crise, referido anteriormente, podemos nos perguntar também sobre quais lugares ele possui para refletir sobre suas questões e angústias pessoais. Quais espaços e momentos podem contribuir para que ele se situe em relação ao mundo em que vive? A família, nestes tempos pós-modernos, tem dado conta de responder a demandas desse nível? São questões que remetem a uma reflexão sobre a função social da escola e seu papel no processo de formação de cidadãos. Essa discussão se torna cada vez mais urgente, principalmente se levamos em conta, com Vicente Barreto, que o domínio moral situa-se na ordem da razão, da qual a educação é o instrumento, na sociedade democrática. Quando essa ordem de valores éticos é rompida ou não é transmitida às novas gerações, instala-se a violência, tornando inviável a vida social, política e cultural.

Tais implicações desafiam os educadores a desenvolverem posturas e instrumentos metodológicos que possibilitem o aprimoramento do seu olhar sobre o aluno, como “outro”, de tal forma que, conhecendo as dimensões culturais em que ele é diferente, possam resgatar a diferença como tal e não como deficiência. Implica buscar uma compreensão totalizadora desse outro, conhecendo “não apenas o mundo cultural do aluno mas a vida do adolescente e do adulto em seu mundo de cultura, examinando as suas experiências cotidianas de participação na vida, na cultura e no trabalho”. Tal postura nos desafia a deslocar o eixo central da escola para o aluno, como adolescentes e adultos reais. Como nos lembra Malinowski, para compreender o outro, é necessário conhecê-lo.

(...) 4 - A DIMENSÃO DO CONHECIMENTO NA ESCOLA

Num primeiro momento, observar a sala de aula é constatar o óbvio, a “chatice” de uma rotina asfixiante, onde pouca coisa muda. O que é uma

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sala de aula? Uma turma de alunos, uns interessados e bem comportados, outros nem um pouco interessados, em constante bagunça. Os professores, uns mais envolvidos que outros, mais criativos ou tediosos. Os processos terminam sendo muito parecidos: ensinar a matéria. Mas se apurarmos o olhar, por trás desta aparente obviedade, existe uma dinâmica e complexa rede de relações entre os alunos e destes com os professores, num processo contínuo de acordos, conflitos, construção de imagens e estereótipos, num conjunto de negociações, onde os próprios atores, alunos e professores, parecem não ter a consciência da sua dimensão. Essa rede aparece como relações naturalizadas, óbvias, de qualquer sala de aula.

Um aspecto que chama a atenção são os papéis de aluno e de professor. Esses papéis não são dados, mas sim construídos, nas relações no interior da escola, onde a sala de aula aparece como o espaço privilegiado. Na construção do papel de aluno, entra em jogo a identidade que cada um veio construindo, até aquele momento, em diálogo com a tradição familiar, em relação com escola, e com suas experiências pessoais em escolas anteriores. É um diálogo com estereótipos socialmente criados, que terminam por cristalizar modelos de comportamento, com os quais os alunos passam a se identificar, com maior ou menor proximidade: o “bom aluno”; o “mau aluno”, o “doidão”; o “bagunceiro”; o “tímido”, o “esforçado”. Concorre para essa escolha a tradição que a própria escola, e seus professores, mantêm, relacionada com uma concepção de aluno, naquele espaço. Em cada situação, a turma vai lançando mão desses elementos do imaginário escolar e os re-elabora a partir da situação específica de cada um. A construção do papel desses jovens, como alunos, vai se dando, assim, na concretude das relações vivenciadas, com ênfase na relação com os professores. É esse mesmo entrecruzamento de modelos que constrói os diferentes “tipos” de professores e demais sujeitos da escola.

Na relação entre professor e aluno, existe um discurso e um comportamento de cada professor que termina produzindo normas e escalas de valores, a partir das quais classifica os alunos e a própria turma, comparando, hierarquizando, valorizando, desvalorizando. Dessa forma, a turma, como um todo, e os alunos, em particular, podem ter uma reação própria a cada professor, dialogando, negando ou assumindo a sua imagem. Nessa construção de imagens e estereótipos, mesmo sendo fruto das relações entre alunos e professores, o discurso e a postura destes têm uma influência muito grande, interferindo diretamente na produção de “ tipos” de alunos e da própria turma.

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Uma turma pode ser “bagunceira” ou “fraca” para uns professores e não o ser para outros, mas certamente isto interfere na auto-imagem, e ela pode assumir de fato o “tipo”ou abrir o conflito com o professor. Na escola observada, por exemplo, os professores comparavam duas turmas de 8º série, uma delas considerada pior que a outra. Falavam disso constantemente, quando havia algum problema, quase sempre ligado à disciplina. Os alunos, quando se referiam a essa imagem negativa, expressavam um certo ressentimento, quase a dizer que se sentiam rejeitados. Assim, cada turma pode ter uma especificidade em relação às demais. E mais, com cada professor pode ter uma reação diferenciada, dependendo da forma como se constroem as relações.

É significativo também que, nesse jogo de papéis, as imagens criadas quase sempre se refiram a um dos aspectos cognitivos (bom e mau aluno, inteligente e preguiçoso, responsável e irresponsável etc.) e aos comportamentos em sala, expressão da lógica instrumental, que, como vimos anteriormente, representa o aluno reduzido a sujeito cognoscente, mas de forma mecânica.

Nessa criação de imagens e papéis, onde geralmente se expressam com mais clareza os preconceitos e racismos existentes nas relações, são comuns imagens ligadas à cor ou à raça, e mesmo a questões sexuais, com ênfase no homossexualismo e na prostituição.

De uma forma ou de outra, a construção dessas auto-imagens interfere, e muito, no desempenho escolar da turma e do aluno, refletindo também no seu desempenho social, em outros espaços além da escola. Existe uma dimensão educativa nas relações sociais vivenciadas no interior da instituição, nesse processo de produção de imagens e estereótipos, que interfere na produção da subjetividade de cada um dos alunos, de forma positiva ou negativa. Um jovem, taxado de “mau aluno”, assumindo ou não o estereótipo, tende a se ver assim e se deixar influenciar por esse rótulo, que se torna um elemento a mais na produção de sua subjetividade. Aliada a outros fatores, como as repetências constantes (numa turma de 26 alunos, 18 já tinham tomado pelo menos uma bomba), ou a desqualificação no trabalho, contribuem, no seu conjunto, para produzir, no caso desses jovens trabalhadores, uma subjetividade inferiorizada.

Um segundo eixo de questões se refere ao cotidiano das aulas e à relação com o conhecimento. No dia a dia das relações entre professor e alunos, parece existir dois mundos distintos: o do professor, com sua matéria,

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seu discurso, sua imagem e o dos alunos, com sua dinâmica própria. Os dois mundos às vezes se tocam, se cruzam, mas na maioria das vezes, permanecem separados.

Para boa parte dos professores, não todos, é verdade, a sala se reduz a uma relação simples e linear entre eles e seus alunos, regida por princípios igualmente simples. Como descrevemos, no inicio deste trabalho, os alunos são vistos de forma homogênea, com os mesmos interesses e necessidades, quais sejam o de aprender conteúdos para fazer provas e passar de ano. Cabe, assim, ao professor ensinar, transmitir esses conteúdos, materializando o seu papel. O professor parece não perceber, ou não levar em conta, a trama de relações e sentidos existentes na sala de aula. O seu olhar percebe os alunos apenas enquanto seres de cognição, e, mesmo assim, de forma equivocada: sua maior ou menor capacidade de aprender conteúdos e comportamentos; sua maior ou menor disciplina.

Imerso nessa visão estreita da educação, dos processos educativos, do seu papel como educador e, sobretudo, do aluno, o professor não percebe a dimensão do conjunto das relações que se estabelecem ali na sua frente, na sala de aula. Deixa, assim, de potencializar a aprendizagem, já em curso, de uma das dimensões humanas, ou seja, do grupo, das relações sociais e seus conflitos.

Diante da aula, a pergunta imediata poderia ser: quais são os objetivos desta unidade? qual a relação que existe com a realidade dos alunos? O que e em que este tema acrescenta algo ou é importante para cada um deles? Em nenhum momento, a professora ou qualquer outra pessoa explicitou os objetivos específicos da matéria que está ensinando. O professor não diz e os alunos também não perguntam. Parece que a resposta está implícita: o conhecimento é aquele consagrado nos programas e materializado nos livros didáticos. O conhecimento escolar se reduz a um conjunto de informações já construídas, cabendo ao professor transmiti-las e, aos alunos, memorizá-las. São descontextualizadas, sem uma intencionalidade explícita e, muito menos, uma articulação com a realidade dos alunos. No caso desses conteúdos, por exemplo, os jovens são “bombardeados” constantemente pela indústria cultural, com elementos da cultura americana: roupas, gírias, atividades de lazer etc. Não seria o caso de estabelecer relações entre as duas realidades? De analisar essas relações, a partir do que os próprios alunos já sabem sobre aquele país? O que se questiona não é tanto o conteúdo escolar em si, apesar das muitas aberrações existentes, mas a forma como é entendido e trabalhado pelo professor. Da forma como está posto, o conhecimento

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escolar deixa de ser um dos meios através dos quais os alunos podem se compreender melhor, compreender o mundo físico e social onde se inserem, contribuindo, assim, na elaboração de seus projetos. Também podemos nos perguntar se a escola, mais do que enfatizar a transmissão de informações, cada vez mais dominadas pelos meios de comunicação de massa, não deveria se orientar para contribuir na organização racional das informações recebidas e na reconstrução das concepções acríticas e modelos sociais recebidas.

Os professores, na sua maioria, presos que estão a esta forma de lidar com os conteúdos, deixam de se colocar como expressão de uma geração adulta, portadora de um mundo de valores, regras, projetos e utopias a ser proposto aos alunos. Deixam de contribuir no processo de formação mais amplo, como interlocutores desses alunos, diante das suas crises, dúvidas, perplexidades geradas pela vida cotidiana.

Cabe perguntar: está havendo, nesse caso, um processo de aprendizagem? Se levarmos em conta a noção de aprendizagem significativa, a resposta é não. Na concepção desenvolvida por César Coll, o aluno aprende quando, de alguma forma, o conhecimento se torna significativo para ele, ou seja, quando estabelece relações substantivas e não arbitrárias entre o que se aprende e o que já conhece. É um processo de construção de significados, mediado por sua percepção sobre a escola, o professor e sua atuação, por suas expectativas, pelos conhecimentos prévios que já possui. A aprendizagem implica, assim, estabelecer um diálogo entre o conhecimento a ser ensinado e a cultura de origem do aluno.

E aqui retomamos a discussão sobre a diversidade cultural. Tanto a Antropologia, quanto a Psicologia e a Linguística, entre outras áreas das Ciências Sociais, já constataram a relação íntima existente entre a cultura de origem, os sentimentos e emoções e as suas expressões ou, em outras palavras, a relação íntima entre a construção de um universo simbólico e a dimensão cognitiva como evidencia Basil Bernstein. Este autor mostra também que a cognição se expressa nos diferentes usos da linguagem, relacionando-a às diferenças de classes sociais:”a receptividade a uma forma particular de estrutura da língua determina a maneira como são construídas as relações com os objetos e a orientação para uma manipulação própria das palavras”. Quando afirmamos a existência de uma diversidade cultural entre os alunos, implica afirmar que, numa mesma sala, podemos ter uma diversidade de formas de articulação cognitiva. Dessa forma, para a aprendizagem se efetivar, é necessário levar em conta o aluno em sua totalidade, retomando

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a questão do aluno como um sujeito sócio-cultural, quando sua cultura, seus sentimentos, seu corpo, são mediadores no processo de ensino e aprendizagem.

Além da postura pedagógica dos professores, cabe também nos perguntarmos pela qualidade dos conhecimentos, dos conteúdos ministrados na escola. O que observamos, em grande parte das aulas assistidas, das mais diferentes matérias, é que o que é oferecido aos alunos é uma versão empobrecida, diluída e degradada do conhecimento. A falta de acesso dos alunos a um corpo de conhecimentos significativos, com coerência interna, que possibilite um diálogo com sua realidade, aliada a uma postura pedagógica estreita, pode ser uma das causas centrais do fracasso da escola, principalmente daquela dirigida às camadas populares.

Vista num outro ângulo, a aula, para os alunos, parece ser uma provação necessária para atingir a meta, que é ter notas para passar de ano. O que dá sentido e motivação são as notas, os possíveis pontos que vão ganhar com cada uma das atividades passadas pelo professor. Nosso período de observação foi o 4º bimestre, e as conversas dominantes entre os alunos eram a respeito dos pontos necessários para passar em cada uma das matérias, aquelas em que precisavam mais ou menos e -felicidade - aquelas nas quais não precisavam de nenhum ponto. Nesses casos, nem era mais necessário frequentar as aulas. O conteúdo é encarado como um meio para o verdadeiro fim: passar de ano. E a escola também tende a se tornar meio para outro fim: o diploma e, com ele, a esperança de um emprego melhor, ou uma certa estabilidade ocupacional.

Se os alunos têm essa percepção das aulas e dos conteúdos é porque ela, assim, veio sendo construída nas experiências escolares. Mais do que “alienação” dos alunos, como muitos professores gostam de afirmar, é fruto da própria cultura escolar. Mas no cotidiano da sala de aula, mesmo tendo estes objetivos, os alunos vão produzindo estratégias próprias, para suportar a “chatice necessária” das aulas. O que parece mesmo ajudar a passar o tempo são as conversas e brincadeiras, o ritmo alternado de concentração e desconcentração. A intensidade e o grau de envolvimento nas aulas vão depender do papel que se assume como aluno. Na sala, tem desde aqueles que não dão uma palavra, ficando quietos praticamente todo o período, até os que não param ou que ficam escutando rádio pelo walkman.

Os estudantes tendem a criar um mundo próprio, mais ou menos permeável, dependendo de cada professor e da relação que ele cria com a

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turma. Poucos conseguem tocar efetivamente a turma. Nesse sentido, ficam reduzidas as possibilidades educativas. O cotidiano evidencia a pouca ênfase na criação de hábitos necessários ao trabalho intelectual. Os professores não conseguem (e muitas vezes não pretendem) disciplinar minimamente os alunos, por exemplo, na atenção, na concentração. Nas aulas, não estimulam o exercício das capacidades de abstração, de questionamento, de articulação entre fatos, etc... Em suma, não há uma intencionalidade naquilo que seria uma das funções centrais da escola, que são as habilidades básicas necessárias ao processo de construção de conhecimentos. Parece que o que é aprendido, neste nível, o é individualmente, sem uma intencionalidade, por parte dos professores ou da escola.

Junto a esta dimensão do conhecimento, um outro elemento fundamental na escola são as atividades extra-classe. O próprio nome já indica que são atividades realizadas fora dos marcos do que são considerados efetivamente pedagógicos. Talvez por isso mesmo, nelas, o prazer e o lúdico são permitidos. Nessas atividades, nem todos os alunos, e muito menos o conjunto dos professores, participam. São momentos quando fica mais explícita a noção de uns e outros a respeito da escola, sua função, suas dimensões educativas. Para muitos alunos, e também professores, as atividades extra-classe são perda de tempo, “penduricalhos” pedagógicos, que pouco acrescentam à dimensão educativa central, que é a transmissão de conteúdos, o “ensino forte”, no dizer de muitos alunos.

Presenciamos um destes eventos, a festa do Halloween, coordenada pelas professoras de Inglês, Português e Educação Artística. Cada turma teve de preparar alguma atividade para apresentar, à noite, além de contribuir na confecção da ornamentação: vampiros, aranhas e morcegos de cartolina. A preparação se deu em uma semana, mudando o clima da escola, de um cotidiano monótono, para uma excitação significativa. Durante a semana, o recreio era o momento em que cada turma ensaiava sua apresentação e, nas aulas, os alunos se organizam. No dia, a comunidade lotou o anfiteatro, evidenciando uma predisposição a participar de atividades culturais. As apresentações, na sua maioria, foram coreografias coletivas de dança. Era visível o envolvimento e interesse de boa parte dos alunos. O fato de uma turma produzir uma coreografia, ensaiar, dividir responsabilidades, brigar com aqueles que não queriam se envolver, produzir as fantasias, ficar tensa na véspera da apresentação, apresentar e ser aplaudida, é uma experiência educativa intensa. Não deixa de significar um resgate da capacidade de criar, expressar, de potencializar as capacidades que quase nunca são estimuladas no cotidiano destes jovens.

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Ao mesmo tempo, chama a atenção o fato da escola não aproveitar desses momentos e situações para ampliar seu trabalho educativo, relacionando tais ações ao cotidiano da sala de aula, aos conteúdos, ampliando o acesso dos alunos aos bens e expressões culturais. O que foi apresentado foi criação apenas dos alunos, sem nenhuma orientação ou acréscimo por parte dos professores. Apesar daqueles professores, que promoveram a festa, trabalharem de alguma forma com o tema em suas aulas, havia uma desconexão entre o conteúdo da sala e o extraclasse. Mas, mesmo com esses limites, uma atividade como esta aponta para a riqueza pedagógica dessas situações, contribuindo, através do prazer, para o reforço da auto-estima, do sentimento de ser criativo, para o fortalecimento do sentimento de grupo entre os alunos e os professores. Aponta também para o potencial da escola como um espaço de cultura e lazer para o próprio bairro.

Um último aspecto a ser analisado diz respeito à estrutura da escola. A forma como a escola se organiza, como divide os tempos e espaços, pouco leva em conta a realidade e os anseios dos alunos. Há ai um deslocamento: a escola parece se organizar para si mesma, como se a instituição em si tivesse algum sentido. Exemplo claro deste deslocamento é o horário de início das aulas. Se grande parte dos alunos dessa escola são trabalhadores, iniciar as aulas às 18:30 irá resultar em não menos de 50% de infrequência diária no primeiro horário.Isso evidencia a falta de sensibilidade de colocar a organização da escola em função daqueles que são sua razão de existir, ou seja, os alunos.

Finalizando, viemos construindo, ao longo deste texto, um determinado olhar sobre a instituição escolar, apreendida enquanto espaço sócio-cultural. Neste sentido, buscamos apreender alunos e professores como sujeitos sócio-culturais, ou seja, sujeitos de experiências sociais que vão reproduzindo e elaborando uma cultura própria. Na escola, desempenham um papel ativo no cotidiano, definindo de fato o que a escola é, enquanto limite e possibilidade, num diálogo ou conflito constante com a sua organização. Portanto, viemos definindo a escola como uma instituição dinâmica, polissêmica, fruto de um processo de construção social.

Nesta ótica, ressaltamos aspectos e dimensões presentes no cotidiano escolar, que muitas vezes nos passam despercebidos, aparecem como “naturalizados” ou óbvios, que nada acrescentam aos “objetivos educacionais”. Buscamos desvelar como os atores lidam na escola com o espaço, o tempo e seus rituais cotidianos. Concluímos que os atores vivenciam o espaço escolar como uma unidade sócio-cultural complexa,

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cuja dimensão educativa encontra-se também nas experiências humanas e sociais ali existentes. Os alunos parecem vivenciar e valorizar uma dimensão educativa importante em espaços e tempos que geralmente a Pedagogia desconsidera: os momentos do encontro, da afetividade, do diálogo. Independente dos objetivos explícitos da escola, vem ocorrendo no seu interior uma multiplicidade de situações e conteúdos educativos, que podem e devem ser potencializadas. É fundamental que os profissionais da escola reflitam mais detidamente a respeito dos conteúdos e significados da forma como a escola se organiza e funciona no cotidiano.

Acreditamos que a escola pode e deve ser um espaço de formação ampla do aluno, que aprofunde o seu processo de humanização, aprimorando as dimensões e habilidades que fazem de cada um de nós seres humanos. O acesso ao conhecimento, às relações sociais, às experiências culturais diversas podem contribuir assim como suporte no desenvolvimento singular do aluno como sujeito sócio-cultural, e no aprimoramento de sua vida social.

Torna-se necessário a ampliação e o aprofundamento das análises que, como essa, buscam apreender a escola na sua dimensão cotidiana, apurando o nosso olhar sobre a instituição, seu fazer e seus sujeitos, contribuindo assim para a problematização da sua função social.

(...) 4.1 - A ARQUITETURA DA ESCOLA

A arquitetura e a ocupação do espaço físico não são neutras. Desde a forma da construção até a localização dos espaços, tudo é delimitado formalmente, segundo princípios racionais, que expressam uma expectativa de comportamento dos seus usuários. Nesse sentido, a arquitetura escolar interfere na forma da circulação das pessoas, na definição das funções para cada local. Salas, corredores, cantina, pátio, sala dos professores, cada um destes locais tem uma função definida “a priori”. O espaço arquitetônico da escola expressa uma determinada concepção educativa.

Um primeiro aspecto, que chama a atenção, é o seu isolamento do exterior. Os muros demarcam claramente a passagem entre duas realidades: o mundo da rua e o mundo da escola, como que a tentar separar algo que insiste em se aproximar. A escola tenta se fechar em seu próprio mundo, com suas regras, ritmos e tempos.

O território é construído de forma a levar as pessoas a um destino:

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através dos corredores, chega-se às salas de aula, o “locus” central do educativo. Assim, boa parte da escola é pensada para uma locomoção rápida, contribuindo para a disciplinação. A biblioteca fica num canto do prédio, espremida num espaço reduzido. Nenhum local, além da sala de aula, é pensado para atividades pedagógicas. Da mesma forma, a pobreza estética, a falta de cor, de vida, de estímulos visuais, deixam entrever a concepção educativa estreita, confinada à sala de aula e à instrução, tal como afirmamos anteriormente.

Os alunos, porém, se apropriam dos espaços, que a rigor não lhes pertencem, recriando neles novos sentidos e suas próprias formas de sociabilidade. Assim, as mesas do pátio se tornam arquibancadas, pontos privilegiados de observação do movimento. O pátio se torna lugar de encontro, de relacionamentos. O corredor, pensado para locomoção, é também utilizado para encontros, onde muitas vezes os alunos colocam cadeiras, em torno da porta. O corredor do fundo se torna o local da transgressão, onde ficam escondidos aqueles que “matam” aulas. O pátio do meio é re-significado como local do namoro. É a própria força transformadora do uso efetivo sobre a imposição restritiva dos regulamentos. Fica evidente que essa re-significação do espaço, levada a efeito pelos alunos, expressa sua compreensão da escola e das relações, com ênfase na valorização da dimensão do encontro.

Dessa forma, para os alunos, a geografia escolar e, com isso, a própria escola, têm um sentido próprio, que pode não coincidir com o dos professores e mesmo com os objetivos expressos pela instituição. Mas, não só os alunos resignificam o espaço, também os professores o fazem. Uma das professoras dessa escola descrita, ocasionalmente, em dias de muito calor, leva seus alunos para as mesas do pátio, fazendo dali uma sala de aula, para o prazer de todos.

Essa questão, no entanto, é pouco discutida entre os educadores. Não se leva em conta que a arquitetura é o cenário onde se desenvolvem o conjunto das relações pedagógicas, ampliando ou limitando suas possibilidades. Mesmo que os alunos, e também professores, o resignifiquem, existe um limite que muitas vezes restringe a dimensão educativa da escola. É muito comum, por exemplo, professores desenvolverem pouco trabalho de grupo com seus alunos, em nome de dificuldades, tais como tamanho da sala, carteiras pesadas, etc. Uma discussão sobre a dimensão arquitetônica é importante em um projeto de escola que se proponha levar em conta as dimensões sócio-culturais do processo educativo. Ao mesmo tempo,

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Sociologia da Educação IEscola e Cultura

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é preciso estarmos atentos à forma como os alunos ocupam o espaço da escola e fazermos desta observação motivo de discussões entre professores e alunos. Atividades, como essas, poderiam contribuir, e muito, para desvelar e aprofundar a polissemia da escola.

Sugestão para Exercícios

1) Utilizando os argumentos apresentados no texto, faça uma análise de caso em uma das turmas de uma escola de sua cidade. Utilize questionário com perguntas objetivas para realizar essa tarefa.

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CONCLUSÕES

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Sociologia da Educação IConclusõesPágina 103

O presente texto procurou apresentar as bases conceituais da sociologia e, concomitantemente, ofereceu para o debate alguns conceitos ou dilemas vividos nas escolas atuais.

Evidentemente o assunto não foi esgotado e cabe a cada um ampliar o conhecimento com novas pesquisas e leituras, percebendo que a própria idéia de educação exige a compreensão de que é algo contínuo e que cobra um esforço constante de todos nós.

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SugestõesBibliográficas

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Somando-se às obras apresentadas ao longo do presente texto, podemos indicar os seguintes livros para consulta:

BERGER, Peter. (2002). Perspectivas Sociológicas: uma visão humanística - Petrópolis: VozesCARVALHO, Wilton Carlos Lima da Silva. (2006). Sociologia e Educação: Leituras e Interpretações. São Paulo: ModernaCASTELLS, Manoel. (1999). A Sociedade em Rede. São Paulo: Editora Paz e TerraCASTELLS, Manoel. (1999). O Poder da Identidade. São Paulo: Editora Paz e TerraDEMO, Pedro. (2004). Sociologia da Educação: Sociedade e suas Oportunidades.1ª ed Brasília: EdUNBFERREIRA, Roberto Martins. (1993). Sociologia da Educação. São Paulo: ModernaFREITAG. Bárbara. (1986). Escola, Estado e Sociedade. São Paulo: MoraesFRIGOTO, Gaudêncio. (2000). Educação e a Crise do Capitalismo. 4. ed. São Paulo: CortezGIDDENS, Anthony. (2000). Mundo em Descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Editora RecordKRUPP, Sonia M. Portella. (2000). Sociologia da Educação. São Paulo: CortezLIMA, Licínio C. (2001). A escola como organização educativa: uma abordagem sociológica. São Paulo: CortezMARTINS, Carlos Benedito. (1991). O que é a Sociologia. São Paulo: Editora BrasilienseOUTHWAITE, William & BOTTOMORE, Tom. (org.). (1996). Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar EditorQUINTANEIRO, Tânia; BARBOSA, Maria Ligia de, e OLIVEIRA, Márcia Gardênia. (2003). Um Toque de Clássicos. Belo Horizonte: UFMG

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Dados do Autor

ANTÔNIO MARCELO JACKSON FERREIRA DA SILVA nasceu no Rio de Janeiro em �96�. É Bacharel em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre e Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Autor de diversos livros e artigos nas áreas das ciências sociais, atualmente é professor do Centro de Educação Aberta e a Distância da Universidade Federal de Ouro Preto (CEAD/UFOP).

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