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APOSTILADOS ESCOLARES DE LÍNGUA PORTUGUESA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: BAIXA QUALIDADE DAS ATIVIDADES DE LEITURA E DE PRODUÇÃO DE TEXTOS NOS MATERIAIS DO SISTEMA DE ENSINO APRENDE BRASIL Cristina Maria Gomes Artur Gomes de Morais RESUMO Avaliamos oito Apostilados Escolares (AEs) para a Educação Infantil (crianças de 4 e 5 anos) do Sistema de Ensino Aprende Brasil, adotado nas escolas da rede pública de ensino de Recife, no ano de 2014. Analisamos as atividades de Língua Portuguesa relativas a dois eixos de ensino: leitura e produção textual. Constatamos baixa variedade dos gêneros textuais e das habilidades de compreensão leitora promovidas bem como nas artificiais e pouco cuidadas propostas de produção textual. PALAVRAS-CHAVE: Educação Infantil, compreensão de leitura, produção textual. ABSTRACT We evaluated eight “Apostilados Escolares” produced by Sistema de Ensino Aprende Brasil which were used in early childhood classrooms of 4 and 5 year-old students in Recife-Brazil, in 2014. Analysis concerning teaching of Portuguese Language showed little variety of textual genres and of activities developing reading comprehension skills as well as artificial and careless teaching situations of written text production KEYWORDS: Early Childhood Education, reading comprehension, text production.

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APOSTILADOS ESCOLARES DE LÍNGUA PORTUGUESA NA EDUCAÇÃO

INFANTIL: BAIXA QUALIDADE DAS ATIVIDADES DE LEITURA E DE

PRODUÇÃO DE TEXTOS NOS MATERIAIS DO SISTEMA DE ENSINO APRENDE

BRASIL

Cristina Maria Gomes

Artur Gomes de Morais

RESUMO

Avaliamos oito Apostilados Escolares (AEs) para a Educação Infantil (crianças de 4 e 5 anos)

do Sistema de Ensino Aprende Brasil, adotado nas escolas da rede pública de ensino de

Recife, no ano de 2014. Analisamos as atividades de Língua Portuguesa relativas a dois eixos

de ensino: leitura e produção textual. Constatamos baixa variedade dos gêneros textuais e das

habilidades de compreensão leitora promovidas bem como nas artificiais e pouco cuidadas

propostas de produção textual.

PALAVRAS-CHAVE: Educação Infantil, compreensão de leitura, produção textual.

ABSTRACT

We evaluated eight “Apostilados Escolares” produced by Sistema de Ensino Aprende Brasil

which were used in early childhood classrooms of 4 and 5 year-old students in Recife-Brazil,

in 2014. Analysis concerning teaching of Portuguese Language showed little variety of

textual genres and of activities developing reading comprehension skills as well as artificial

and careless teaching situations of written text production

KEYWORDS: Early Childhood Education, reading comprehension, text production.

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APOSTILADOS ESCOLARES DE LÍNGUA PORTUGUESA NA EDUCAÇÃO

INFANTIL: SISTEMA DE ENSINO APRENDE BRASIL E A CONSTRUÇÃO DAS

COMPETÊNCIAS LEITORAS E DE PRODUÇÃO TEXTUAL

Cristina Maria Gomes- Pedagogia, UFPE (PE) Brasil, [email protected] Alfabetização e políticas públicas

Artur Gomes de Morais- Professor da UFPE (PE) Brasil,

Cento de Educação, Departamento de Psicologia e Orientação Educacionais

[email protected] Alfabetização e políticas públicas

1. INTRODUÇÃO:

Há pelo menos trinta anos, percebe-se, através de estudos, a relação entre o precoce

contato da criança com o mundo da leitura e da escrita e seu futuro desempenho escolar. Mas,

quando o assunto diz respeito à Educação Infantil (EI), há controvérsias entre o brincar e o

estudar nessa etapa de escolaridade. Ainda em relação à EI no Brasil, parece haver uma

carência de estudos que analisem a qualidade dos livros e outros materiais didáticos

destinados a esse público.

Geralmente, os LDs são distribuídos nas redes públicas para os ensinos Fundamental e

Médio, contemplados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que não abrange

livros destinados à Educação Infantil. Porém, uma novidade inédita no ano de 2014 despertou

nosso interesse: a aquisição e distribuição nas escolas da rede pública do Recife, de

Apostilados Escolares (doravante, AEs) para a Educação Infantil, apostilas de uma coleção do

Sistema de Ensino Positivo, denominada Sistema de Ensino Aprende Brasil.

A partir desse dado de realidade, tivemos como objetivo geral avaliar aquela coleção de

apostilados escolares para a Educação Infantil, no que se refere aos conhecimentos da língua

escrita veiculados, a fim de verificar as concepções e procedimentos metodológicos que

adotam. Sabemos que, a depender da qualidade dos recursos didáticos, eles podem contribuir

ou não com a diminuição das desigualdades sociais das crianças das camadas populares,

viabilizando, ou não, suas chances de mais sucesso na apropriação do objeto de conhecimento

que enfocaremos: a leitura e a escrita no que diz respeito à compreensão e à produção

textuais.

2. MARCO TEÓRICO

2.1 Concepções de Ensino de Língua na Educação Infantil

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No Brasil, até a década de 1960, acreditava-se, no campo educacional, que para a

criança aprender a ler e escrever deveria, necessariamente, atingir uma “maturidade”; ou seja,

ter desenvolvido algumas habilidades perceptivo-motoras. A maneira de inserir a criança no

mundo da leitura e da escrita, por esse tempo, ocorria através de exercícios mecânicos,

conforme apontaram Brandão e Leal:

O trabalho na Educação Infantil deveria evitar qualquer contato direto com a

leitura e a escrita e se concentrava no estímulo aos chamados “pré-

requisitos” para aprender a ler e escrever, tais como o desenvolvimento de

habilidades de coordenação viso-motora, memória visual e auditiva,

orientação espacial, articulação adequada de palavras, certo grau de atenção

e concentração, boa alimentação, entre outros (2010, p. 15).

Surgiram várias críticas quanto a essa perspectiva didática. A concepção de

“maturidade” propagada e pretendida, para só depois iniciar as crianças na leitura e na escrita,

fez de muitas salas de Educação Infantil, um lugar proibido para o contato direto com o ler e o

escrever. Diante das várias críticas e da constatação do fracasso do ensino de alfabetização,

apesar dos altos investimentos públicos para garantir a “maturidade”, houve a abertura de pelo

menos três novos caminhos ou propostas de ensino de língua para a Educação Infantil,

descritos por Brandão e Leal (2010, p. 16-21), que abaixo resumiremos:

Caminho 1: “A obrigação da alfabetização”- os exercícios preparatórios foram substituídos

pelo ensino de letras (vogais e consoantes) e por fim, das famílias silábicas. Espera-se que a

criança saia da Educação Infantil dominando o sistema alfabético.

Caminho 2: “O letramento sem letras!”- ao contrário da primeira proposta, aqui a ênfase

recaiu nos outros tipos de linguagem: corporal, musical, gráfica, banindo a linguagem escrita

do trabalho realizado com as crianças pequenas.

Caminho 3: “Ler e escrever com significado na Educação Infantil”- não se pretende, nesse

caminho, que as crianças saiam alfabetizadas dessa etapa de escolarização, mas se pretende

que elas sejam familiarizadas com a leitura, com as letras, as palavras e os textos, porque é

isso que existe no contexto social mais amplo. Esse terceiro novo caminho foi inspirado em

Ferreiro e na teoria da Psicogênese da Escrita, que pôs em evidência que as crianças

formulam hipóteses sobre a escrita antes mesmo de serem alfabetizadas. Também

influenciaram as pesquisas demonstrando que as crianças aprendem sobre os usos e

características dos gêneros textuais infantis, mesmo sem estarem já alfabetizadas (cf. por

exemplo, MOREIRA, 1988; REGO, 1988).

Diante disso, acreditamos que não se trata de antecipação precoce de determinada

etapa do desenvolvimento infantil, e que também não é possível mais ignorar que a escrita e a

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leitura fazem parte do dia a dia das crianças pequenas, nos ambientes em que vivem. É

possível ajudá-las a imergir ainda mais na cultura escrita, através de brincadeiras. Para isso, é

preciso evitar os extremos: a concepção de escola associada à rigidez de ensino de famílias

silábicas sem sentido e a de pré-escola associada única e exclusivamente ao brincar,

descartando o ensino.

Uma das formas de contato com a leitura e a escrita de maneira prazerosa, por

exemplo, é à roda de histórias. Brandão e Rosa (2010, p. 33-34) justificam a importância

desse momento e observam que no documento do Ministério da Educação (MEC, 2009) para

avaliar a qualidade da Educação Infantil, são postos alguns indicadores como: leitura diária de

histórias realizadas pelas professoras, incentivo às crianças para manusear livros e o incentivo

às crianças para que recontem as histórias lidas ou ouvidas.

Estudos também revelaram, que crianças participantes com regularidade de rodas de

leitura, desenvolvem competências de compreensão leitora e de produção textual (REGO,

1998). Portanto, a roda de leitura é um importante momento para experienciar a leitura e a

escrita de textos, devendo a mesma ser uma ação planejada e intencional (RITER; 2009,

BRANDÃO; ROSA, 2010). De acordo com Solé (1998), as estratégias de compreensão são

ferramentas importantes para a formação de leitores autônomos.

Por sua vez, sendo a escrita considerada como um ato interlocutivo, a produção de textos

enquanto objeto de ensino, deve superar a visão reducionista de escrever sem finalidade,

descontextualizando o texto de seus usos sociais. Para isso, faz-se necessário atentar ao menos

para as condições básicas de produção que dizem respeito à definição do gênero textual: o

tema (o quê?), o leitor (para quem?), o ambiente (onde vai circular?) e o suporte textual

(GERALDI, 1997; MARCUSHI; LEAL, 2007).

Recente documento do MEC (BRASIL-MEC, 2009), também em seus Indicadores de

Qualidade para a Educação Infantil, preocupou-se com a produção textual. Um dos critérios

de avaliação dessa etapa de ensino é o incentivo à produção de textos antes mesmo que as

crianças leiam e escrevam convencionalmente. De acordo com estudos (ALBUQUERQUE;

1997, SOUZA, 2003), as crianças são capazes de ditar textos antes mesmo de saber ler e

escrever de maneira convencional. Concordando com isso, Girão e Brandão (2010),

defenderam a produção de textos coletivos, contemplando a diversidade de gêneros textuais.

Interpretamos que a busca do equilíbrio entre leitura, produção coletiva dos textos,

apropriação da linguagem escrita e atividades lúdicas, dentro de uma perspectiva de

letramento é fundamental.

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Concluímos, com isso, que não há motivos para protelar o desenvolvimento de um leitor

autônomo em nome de um longo processo de preparação, para, só então, inserir a criança no

mundo da leitura e da escrita, já que estudos comprovam que o trabalho pedagógico, através

dessas atividades acima citadas, afeta positivamente as aprendizagens.

2.2 Dispositivos Legais para o Ensino de Língua na Educação Infantil

Nos RCNEI-Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL-

MEC, 2006), a linguagem é descrita de forma superficial e genérica, afirmando-se apenas que

“ao mesmo tempo que enriquece as possibilidades de comunicação e expressão, a linguagem

representa um potente veículo de socialização” (BRASIL-MEC, 1998, p. 24). Porém, o

documento parece deixar explícita a ênfase sobre a linguagem oral, sem ênfase a um ensino

sistemático e explícito que envolva a linguagem escrita de palavras e textos.

De uma forma mais precisa, a seção sobre Práticas Pedagógicas da Educação Infantil

dos Referenciais Nacionais para a Educação Infantil - RCNEI’s, apresenta os dois eixos

norteadores do currículo: as interações e as brincadeiras. Propõe para efetivação do que se

pretende, a garantia de situações que: “Possibilitem às crianças experiências de narrativas, de

apreciação e de interação com a linguagem oral e escrita, e convívio com diferentes suportes e

gêneros textuais orais e escritos” (BRASIL-MEC, 1998, p. 25). Mais uma vez, a linguagem

escrita está posta lado a lado com a linguagem oral e não são aprofundadas as singularidades

de cada uma.

Já a Proposta Curricular de Recife (PCR, 2006), não possui qualquer especificidade

para a Educação Infantil, o que ali está posto diz respeito à mesma forma de organização das

Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (BRASIL, 2001), em relação ao Ensino

Médio, que a rede municipal do Recife ampliou para a Educação Infantil e o Ensino

Fundamental.

Constatamos, então, que, no que concerne à Educação Infantil, os três documentos

deixaram o ensino da linguagem escrita em plano secundário e à ênfase recaiu muito mais na

linguagem oral, acompanhada dos demais tipos de linguagens.

2.3 Livros Didáticos e Apostilados Escolares: como se apresentam estes recursos para o

ensino de língua?

Até pouco tempo, o livro didático (LD) era um dos poucos impressos a que a

população brasileira tinha acesso (BATISTA, 2005). Hoje, com novos programas do

Ministério da Educação (MEC), como o PNBE (Plano Nacional Biblioteca da Escola) e

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PNLD-Obras complementares, este quadro vem se modificando. E, segundo Cassiano (2012),

o segmento dos didáticos é o mais rentável no setor, embora seja de pouco prestígio, por seu

curto tempo de vida útil e por não possuir status de literatura.

Por reconhecer que muitos LDs se distanciavam das propostas curriculares e dos

projetos elaborados pelas Secretarias de Educação, e que vários continham erros conceituais

ou veiculavam preconceitos, o MEC decidiu instituir o Programa Nacional do Livro Didático

(PNLD), que, desde 1996, tem por função avaliar quais são os livros didáticos que podem ser

distribuídos em sala de aula, gratuitamente para o ensino fundamental (e, há pouco, também

para o ensino médio) das redes públicas. Desde então, o Brasil é um dos maiores compradores

de LDs, uma vez que os alunos dos dois níveis de ensino correspondem a 90% de toda a

educação básica do país. Em 2014, o governo comprou cerca de 103, 2 milhões de LDs, que

custaram 1 bilhão de reais aos cofres públicos, segundo dados do próprio FNDE- Fundo

Nacional de Desenvolvimento da Educação.

O PNLD trouxe mudanças significativas nos livros didáticos, pois sua avaliação se

tornou a principal via de acesso entre o setor editorial e as compras públicas de LDs. Em

contrapartida, as editoras encontraram um meio de driblar essa barreira através dos

apostilados escolares (AEs) que não passam por avaliação do PNLD.

O grupo empresarial Positivo, responsável pelo material didático objeto de nossa

pesquisa, é de origem nacional e despontou no mercado dos didáticos, participando do PNLD

no início do século XXI. Além de comercializar AEs, comercializa também computadores e

“sistemas de ensino” (material sem autoria) com propostas de metodologia e treinamento para

professores.

É importante, então, distinguir um e outro recurso didático: LDs e AEs. O que são os

LDs? Geraldi (1997:5) diz que “é todo livro que presta-se a ser utilizado para fins didáticos

(...)”, mas ressaltou que nem todo livro com fins didáticos seria um LD.

E o que são AEs? Essa palavra vem do latim postilla que significa “após aquelas

coisas”. Nesse caso, os AEs, como o próprio nome propõe, deveriam ser uma adição de algo

anterior, usado como material complementar, mas acabam sendo tomados como única fonte

de conhecimento e como objeto essencial, quase exclusivo à aula (BUNZEN, 2001).

O que cria grande polêmica é o fato de a compra de sistemas de ensino apostilados

implicar em gastos públicos adicionais, em detrimento do LD enviado pelo governo federal

sem custos para as prefeituras e governos estaduais. Isso se tornou preocupação de técnicos

governamentais, que gerou debate nacional promovido pelo MEC, em 2007, através da então

Diretoria do Departamento de Políticas de Educação Infantil e do Ensino Fundamental, na

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Secretaria de Educação Básica/MEC, sob a gestão de Janete Beuachamp. Ela enumerou as

ações voltadas para assegurar a qualidade do LD adquirido por meio do PNLD (CASSIANO,

2012), em seguida apresentou as desvantagens da aquisição das apostilas pela rede pública

como: a) fere a autonomia do professor, b) não garante a qualidade dos materiais, c)

representa imposição de um modelo único para todos os municípios, d) além da possibilidade

de duplicidade de recursos para um mesmo objetivo.

Porém, a autonomia na gestão de recursos e nos métodos de ensino torna legal a ação

dos prefeitos e governadores, provocando resultados que têm se revelado desastrosos: vários

AEs apresentam problemas de ordem pedagógica e comprometimentos metodológicos. Os

apostilados são adquiridos com verba própria das prefeituras que lançam mão do FUNDEB

(Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica). Reportagem sobre essa temática,

trouxe dados a esse respeito, fornecidos pelo próprio FNDE, que mostraram que, nos últimos

dois anos, cerca de 2. 045 escolas do país deixaram de participar do PNLD 2014, por não

mostrarem interesse em receber os livros fornecidos pelo governo federal, o que corresponde

a aproximadamente 4,6 milhões de alunos (GAZETA DO POVO, 01/09/2014).

Em entrevista concedida nessa mesma reportagem, representante do grupo Positivo,

Elen Goulart, disse que a editora fornecia AE’s para 17 mil alunos em 2005; e em 2014 esse

número subiu para meio milhão de alunos, espalhados em 286 municípios, entre os quais,

Recife e Aracaju e toda a rede estadual do Amazonas.

Como se vê, apesar de todas as críticas já postas sobre os AE’s, sua compra nas

prefeituras do Brasil vem ganhando cada vez mais força. Também nisso concordamos com

Bunzen (2001), quando diz que por trás de tudo isso há um grande “mistério”.

Uma pesquisa de caráter longitudinal de Nascimento (2012), fez um mapeamento das

cidades em que os Sistemas Particulares de Ensino (SPE), AE’s, foram adotados no estado de

São Paulo, buscando entender o porquê e como é utilizado esse tipo de material pedagógico,

além de compreender se há reconhecimento por parte dos responsáveis técnicos sobre a

adequação dele para a Educação Infantil e como o justificam. Os resultados mostraram que

existe uma forte cultura escolar no trabalho com Educação Infantil, inclusive com

preocupações numéricas diante do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica).

Ficou evidente uma descaracterização das especificidades dessa etapa de escolarização.

Um dos principais motivos para a aquisição dos AE’s, revelado nessa pesquisa

(NASCIMENTO, 2012), seria o despreparo dos professores, desresponsabilizando os

municípios de garantir formação a esses profissionais e transferindo a competência da

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formação para o material e os “sistemas” de ensino que proveem certo tipo de treinamento em

seu pacote.

O segundo motivo dado pelos sujeitos da pesquisa seria a segurança das redes públicas de

ensino que precisam dar efetividade aos RECNEI’s. Esse segundo motivo cai por terra

quando se analisam os conteúdos dos apostilados, que se dividiam em linguagem oral e

escrita, com atividades que mais lembravam os modelos preparatórios das décadas de 70 e 80.

O terceiro motivo para a aquisição dos AEs, segundo Nascimento (2012), é a

padronização do ensino para controle do trabalho do professor. E o quarto e último motivo

encontrado para o uso dos AEs seria a suposta qualidade para a educação pública, por

oferecer ‘ensino de grife’, pelo fato de inserir, nas escolas, material didático que está presente

nas escolas da rede privada. Mas a pesquisa refuta essa “qualidade”, por acreditar que talvez o

que é oferecido na rede privada em termos de conteúdos não seja o mesmo que é oferecido

nas redes públicas.

Nesse contexto, nossa pesquisa analisou as propostas trazidas nos AEs para o ensino de

leitura, compreensão leitora e de produção de textos.

3. METODOLOGIA:

Examinamos as coleções de AE’s do Sistema de Ensino Aprende Brasil, adotadas pela

rede pública de ensino de Recife, em 2014, para os alunos com 4 e 5 anos de idade. Cada

coleção era composta por quatro AE’s ou volumes, e cada um deles continha quatro ou cinco

unidades temáticas.

Ambas as coleções estavam divididas por seções em cada um de seus volumes. Para cada

ano letivo havia material de apoio (MA), tanto no AE do aluno, quanto no Manual do

Professor (MP). Quanto ao MP, nas primeiras páginas havia orientações didáticas, seguidas

de uma versão reduzida do AE do aluno. Os volumes I, do G IV e G V traziam diversas

páginas explicando a organização curricular da coleção, de acordo com os RECNEI’s, a

organização didática das unidades de trabalho, até a estrutura didático-editorial.

Analisamos os conteúdos presentes nos AEs sob dois aspectos: levantamento da

diversidade dos gêneros textuais e de atividades relacionadas a dois eixos do ensino da Língua

Portuguesa (leitura e produção textual), verificando o peso e a distribuição de atividades com

esses eixos de ensino. Os dados obtidos foram tratados quantitativa e qualitativamente, sob a

perspectiva de análise temática de conteúdo (BARDIN, 1977).

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4. RESULTADOS E DISCUSSÕES

A análise do AE foi feita de forma separada, de acordo com os eixos de ensino da

Língua Portuguesa, portanto, a análise foi dividida por seções.

4.1 Gêneros Textuais:

Para os gêneros textuais, analisamos a diversidade e a frequência com que apareciam,

detectando, em cada volume, a presença de gêneros textuais de domínio público (DP), a

presença ou não de autoria, a integralidade e o título, quando necessários.

Com o levantamento dos gêneros textuais presentes nas duas coleções (G IV e G V),

verificamos uma quantidade e variedade maior em relação ao G IV: 26 textos a mais que o G

V. Porém, em ambas as coleções, chamou-nos a atenção, a quantidade considerável de textos

informativos e sem autoria (G IV- 24 e G V- 17), assim como a quantidade de textos “outros”

(G IV- 12 e G V- 5), que não se enquadravam em nenhuma categorização dos demais gêneros

textuais. Tratava-se de falas de personagens, em balões, que não chegavam a ser nem Tirinha,

nem Quadrinhos.

Ainda quanto à variedade, a coleção do G IV, pareceu ter uma preocupação maior em

oferecer contato com um repertório um pouco mais amplo de gêneros textuais, entre os quais:

adivinhas, canções folclóricas e parlendas, que são muito apropriadas ao trabalho com a

Educação Infantil e fazem parte da tradição oral. Também nos chamou a atenção a quantidade

total de textos de cada volume do G IV, que sofreu mudanças decrescentes do volume I para o

volume IV (27, 25, 14 e 18 textos, respectivamente). No G V, houve um aumento do volume I

(12) para o volume II (18), que se manteve no volume III (18) e estranhamente no volume IV

decresceu de forma considerável (10).

Os dados referentes à quantidade de textos de domínio púbico (DP) que faziam parte

da tradição oral, a presença de textos com e sem autoria, com e sem título e a verificação de se

eram ou não apresentados de forma integral, quando necessário, são ilustrados pelo Quadro 1.

Quadro 1. Distribuição comparativa de gêneros textuais nos volumes de G IV e G V

dos AE’s

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Legenda:

DP- Domínio Público (textos da tradição popular)

S- sim N- não NC- não cabe

O quadro nos mostrou uma quantidade considerável de textos sem autoria, que são

textos de tipo didático ou informativo, que não cabia à classificação de textos como integrais

ou não, e foram então categorizados como NC (não cabe). Isso significa que as crianças

perdiam a oportunidade de ter contato com textos de autores profissionais. Esses mesmos

textos sem autoria, em sua maioria, eram desprovidos de título. Pareceu-nos estranho um

texto que está carregado de informações para ampliar o conhecimento do leitor, não possuir

nenhum título que resuma sua ideia principal.

No Manual do Professor (MP), também havia gêneros textuais variados, obviamente

acessíveis apenas para o professor, mas que poderiam perfeitamente estar inseridos também

no AE do aluno. Ambas as coleções, possuíam a mesma quantidade de textos no MP, eram

cerca de 60 textos no total geral, divididos em partes iguais entre elas, ou seja, 30 textos para

cada grupo. Textos para serem vistos pelos alunos no G IV, correspondiam à fração (19/30) e

no G V (20/30). Utilizamos os mesmos critérios de análise dos gêneros textuais dos AEs para

os gêneros textuais presentes apenas no MP (presença ou não de autoria, de título e

integralidade, quando necessários), acrescentando a categoria TV (textos para serem vistos

pelos alunos) e a categoria (CD), que trazia o texto em áudio, quando se tratava de lendas, ou

em forma de canção, quando se tratava de música. Quando o texto do MP estava também

presente em CD, apenas para alguns deles se pedia a transcrição, geralmente, para algumas

letras de músicas. Em outros casos, tratando-se de música ou lenda, era “só para ouvir”. Vide

quadro 2.

Quadro 2. Distribuição comparativa de gêneros Textuais dos MPs

Coleção Quantidade Autoria Título Integral

G IV Com- 24 Com- 51 S - 27

84 Sem- 49 Sem- 33 N - 9

DP- 11 NC- 48

Subtotal 84 84 84

GV 58 Com- 20 Com- 44 S - 18

Sem- 34 Sem- 14 N - 3

DP- 4 NC- 37

Subtotal 58 58 58

Total 142 142 142 142

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Coleção Quantidade Autoria Título Integra

l

TV CD

G IV Com- 16 Com –24 S - 24 S- 19

30 Sem- 6 Sem - 6 N - 0 N- 11

DP- 8 NC- 6

Subtotal 30 30

30

30 9

GV 30 Com- 16 Com- 24 S - 29 S - 20

Sem- 4 Sem- 6 N - 0 N - 10

DP- 10 NC- 1

Subtotal 30 30

30

30

14

Total 60 60 60 60 60 23

Legenda:

DP- Domínio Público (textos da tradição popular)

S- sim N- não NC- não cabe TV- textos para o aluno ver

CD- textos inseridos no CD para as crianças ouvirem

Em suma, de acordo com o quadro 2, os textos que supostamente eram para as

crianças verem e para acompanharem a leitura, chegavam a um pouco mais que a metade para

o G IV (19/30) e para o G V (20/30), totalizando 39 textos para as duas coleções. Já os textos

indicados no MP, que também estavam no CD (apenas para se ouvir) somaram 21, cujo

intuito era o trabalho com a linguagem corporal apenas.

Como se pode verificar, o acesso dos alunos a esses textos, dependia de que o

professor os transcrevesse para cartazes, o que era sugerido várias vezes ao longo das

instruções didáticas, a exemplo da página 12 do volume IV do G V, que trazia o poema O rio

de Alexandre Azevedo (in Poeminhas fenomenais, 2000). Ali se lia: “Transcrever esse texto

em papel pardo, de modo que as crianças acompanhem a leitura.” Considerando o

reconhecimento da carga excessiva de atribuições hoje dadas aos professores, parece-nos

questionável o pedido de transcrição dos textos para cartazes, como sugerido no MP, o que se

agrava, se levarmos em conta a pobreza material de muitas escolas públicas em nosso país.

Interpretamos, com isso, que os textos nele presentes, tenderiam a ficar em desuso ou

poderiam ser apenas registrados no quadro branco, sem que os alunos pudessem relê-los.

4.2. Leitura: indicação de quem lê e das modalidades de leitura

Nossa pergunta inicial foi: Quem lê os textos? O quadro 3, abaixo, resume as

informações obtidas.

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Quadro 3- Distribuição das formas de indicação de leitor

Legenda:

PPA- Professor para o aluno PCA- Professor com o aluno A – Aluno lê sozinho

SCL- Sem comando de quem lê CDV- Comandos com divergências

Nessa seção, consideramos quem lia os textos, comparando o enunciado dos AEs e o

comando do MP para as mesmas páginas, a fim de verificar semelhanças e divergências de

comando. O quadro 3 ilustra as diferentes indicações dadas ao professor sobre quem deveria

ler os textos.

Textos para o aluno (A) ler sozinho, ainda que não o fizesse da maneira convencional,

resumiam-se a capas de gibis da Turma da Mônica, de Maurício de Souza.

Textos com indicação de serem lidos pelo professor para o aluno (PPA) também eram

poucos. O MP do GV (Vol. I), defendeu na p. 24 o trabalho com o uso de diferentes gêneros

textuais, também defendeu o conceito de “sala textualizada”, endossado por Josette Jolibert

(2006, p. 28), o que exige que no ambiente da sala de aula, as crianças tenham textos diversos

à vista e à mão. Contudo, como já vimos, a diversidade textual do AE era limitada e também

havia textos que só estavam acessíveis para os professores, os alunos apenas escutavam.

Leitura de textos do professor com o aluno (PCA) chegaram a números muito

próximos nas duas coleções: 14 no G IV e 13 no G V. Foram considerados, assim, textos

cujos enunciados explicitamente diziam para que o aluno acompanhasse a leitura com auxílio

do professor e no MP a orientação dada ao professor era a de que realizasse a leitura apontada

com os alunos. Porém, havia cerca de 32 textos no total, somando as duas coleções, que não

possuíam comando de quem lia, pois o texto surgia “de supetão” na página, sem qualquer

preanunciação dos mesmos. Uma quantidade considerável de textos com comandos

divergentes (CDV) foi encontrada, sobretudo no G IV. Eram textos, cujos enunciados do AE

sofreram alteração de comando, para a mesma página no MP.

Examinamos em separado quem lia os textos do quadro que vem a seguir, que trata

das modalidades de leitura, justamente porque, nessas coleções, nem sempre quem lia,

correspondia ao modo de leitura; por causa dos comandos divergentes entre AE e MP. A

divergência de quem lia implicava diretamente no modo de leitura. Consideramos, nesse caso,

Quem

1.

PPA

2.

PCA

3.

A

4.

SCL

5.

CDV

Sub. Quem

1.

PPA

2.

PCA

3.

A

4.

SCL

5.

CDV

Sub. Tot.

Subtotal 2 14 2 20 48 86 Subt. 0 13 3 12 34 62 148

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o comando do MP como prevalescente, uma vez que os autores das coleções esperavam que o

professor seguisse as instruções didáticas nelas dadas. O quadro 4, ilustra o tema:

Quadro 4- Distribuição de variadas modalidades de leitura- G IV e G V

Como se pode ver, o modo de leitura que prevaleceu foi a leitura em voz alta pelo

professor, em ambas as coleções. Isso é perfeitamente compreensível quando se trata de

crianças que ainda não conseguem ler convencionalmente, nesse caso, concordamos com

Cosson (2009, p. 104), quando afirma que “ler para o outro nunca é apenas oralizar um texto.”

Mas, se tratando de AE’s, entendemos ser importante a prática da leitura apontada, que auxilia

o aluno no seu processo de descoberta de convenções das práticas de leitura e de princípios do

sistema de escrita.

4.3 Compreensão Leitora:

Nas estratégias de leitura, as categorias por nós utilizadas foram procedentes de outras

análises de livros didáticos de Língua Portuguesa (MARINHO; SILVA; MORAIS, 2011) e

também as indicadas por alguns autores (MARCUSCHI, 2008; SOLÉ, 1998).

As estratégias de levantamento de hipóteses apareceram com a mesma frequência para

os dois grupos e consideramos uma boa quantidade, cerca de 20 perguntas desse tipo para

cada ano escolar. Não houve qualquer questão de interpretação que fizesse referência às

características dos gêneros textuais que estavam sendo abordados para ambos os grupos.

Percebemos a exploração de imagem numa quantidade elevada em relação a outras estratégias

de leitura: 49 e 22 questões, respectivamente para os grupos IV e V, inclusive nas demais

atividades do AE, que não tinham a presença de textos. A leitura de imagem pareceu-nos

substituir a importância da leitura do texto escrito.

Atividades Subtotal Subtotal Total

Modalidades de leitura

1 – Leitura de texto em voz

alta pelo aluno 0

0 0

2 – Leitura de texto em voz

alta pela profª 52

29 81

3 – Leitura de texto coletiva 15 13 28

4 – Leitura silenciosa 0 0 0

5 – Leitura livre 2 3 5

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As perguntas de ativação de conhecimentos prévios relativas aos textos apareceram

um pouco mais na coleção de G V (14) e no G IV (9) apenas, já as perguntas de localização

de informações, que eram geralmente as mais frequentes em LDs (BRANDÃO 2005, 2009)

surgiram em quantidade bem maior no G IV (25) contra 12 do G V. As perguntas de tipo

inferenciais são muito importantes, porém, apareceram de forma muito escassa nas coleções

dos dois grupos (4 perguntas inferenciais para cada grupo).

As perguntas subjetivas, que podem também ser encontradas com a denominação

responder ao texto (Extrapolação) apareceram um pouco mais para o G IV (29) que para o G

V (21), e eram feitas de tal modo que os alunos respondiam, na maioria das vezes, com sim

ou não, sem precisar justificar suas respostas. Isso impossibilitava o confronto de opiniões; o

que estimularia a oralidade de forma inteligente e promoveria a reflexão de temas que

extrapolam aos textos.

Sabemos que na medida em que se avançam nas aprendizagens, os alunos adquirem maior

compreensão leitora, porém nada justifica que as crianças de G IV sejam estimuladas com

mais questões de compreensão leitora (199) do que os alunos de G V (142).

4.4. PRODUÇÃO TEXTUAL

Analisamos, inicialmente, os totais e a variedade de gêneros textuais que os alunos eram

chamados a produzir. Em seguida, vimos se as atividades propostas explicitavam: tema, leitor,

ambiente de circulação social, modelo discursivo, gestão e suporte textual.

O G V teve propostas de produção textual com frequência um pouco mais alta (43) em

relação ao G IV (30). Mas a variedade não foi o forte em nenhum dos dois anos letivos. As

duas coleções chegaram a números muito próximos, ao propor a produção dos seguintes

gêneros textuais: listas (G IV- 11, G V- 12), textos informativos (G IV- 8, G V- 9) e cartazes

(G IV- 5, G V-7). O curioso é que nem mesmo nas produções dos textos mais frequentemente

sugeridos foram dadas instruções básicas, para lhes dar sentido, só possível em contextos

reais de uso; de modo que se superasse a escrita puramente escolar.

Percebemos que apenas o tema, ou seja, saber do que se trata, ficou bem evidente (G

IV- 30, G V- 43). A explicitação da existência de um leitor externo, para quem se escreve,

(colega, funcionário da escola, alguém da comunidade etc), ocorreu muito raramente: apenas

5 (G IV) e 6 (G V), ou seja, a maior parte das produções eram destinadas apenas à professora

ou ao moto-contínuo de atividades da própria turma, no dia-a-dia da sala de aula. Nesse

circuito fechado, na imensa maioria das vezes (G IV- 20, G V- 27), a finalidade era expor o

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texto na parede, confeccionar gráficos a partir deles ou retomar as informações em momentos

posteriores. Nas poucas situações em que isso não ocorria, as produções eram para ser

apresentadas em outras turmas, quando se tratava de cartazes com algum tema da atualidade.

Quanto às características dos textos, não foram quase nada exploradas (G IV- 1, G V-

7), as crianças não eram estimuladas a observar as estruturas dos gêneros textuais para saber

como produzi-los com autonomia em contextos fora da escola. Percebemos poucas exceções,

como num caso do G IV (Vol. III), em que as crianças observavam a produção de um bilhete,

escrito pela professora, ocasião em que foi dito a sua finalidade e o que deveria conter. No G

IV (Vol. IV), foram dadas instruções de como confeccionar um convite, mas nada foi dito a

respeito de seu modelo discursivo. De modo geral, a tendência dos AEs era não explicitar

esses importantes detalhes das condições de produção textual.

As crianças eram pouco desafiadas a fazerem suas próprias produções. Na maioria das

vezes, a sugestão que foi dada ao professor era para que entregasse cópias reduzidas para as

crianças colarem num espaço específico, porém pequeno, em seus AEs.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Numa análise comparativa geral, entre as coleções de G IV e G V, percebemos que os

volumes para crianças de 4 anos tinham mais propostas que os destinados àquelas do G V. A

impressão que tivemos é que os volumes foram produzidos por autores diferentes.

Entre os princípios norteadores que as coleções diziam defender estaria a integração de

diferentes linguagens, de forma contextualizada. As diversas linguagens ficaram evidentes nas

duas coleções, embora a linguagem escrita tenha sido, a nosso ver, pouco explorada. Apesar

de termos encontrado uma quantidade expressiva de textos, vimos que muitos eram

informativos e “outros”, e que as crianças pouco eram estimuladas a ler/reler textos já

conhecidos ou a acompanhar a leitura feita pelo professor, tendo os textos à sua frente. As

perguntas de compreensão leitora eram sobretudo de localização de informação e

“subjetivas”, que favoreciam apenas repostas de tipo sim ou não.

Também a produção de textos deixou a desejar, não só pela baixa variedade de gêneros,

nos dois anos, mas, sobretudo, por se limitar ao ambiente da sala de aula, , descartando-se os

cuidados necessários para o aprendizado que permite a produção de textos reais.

Diante das análises expostas, evidenciou-se a fragilidade do material didático adquirido

para uso das crianças da Educação Infantil. Pensar a qualidade dessa etapa de escolaridade

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está para além de fornecer ‘material de grife’ (NASCIMENTO; 2012), sem que ele passe por

avaliação prévia que garanta sua adequação teórica-metodológica.

Espera-se, com esse trabalho, ter contribuído ao menos para a abertura de discussão e

reflexão tão necessárias sobre a adoção dos AE’s. Concordamos com seus defensores quando

dizem que “a liberdade do professor para ensinar não pode se opor ao direito do aluno de

aprender” (LOUZANO, 2008). Mas entendemos que combinar essas duas coisas presume a

autonomia do professor em reger sua aula e a oportunidade do aluno de vivenciar, cedo,

práticas e recursos didáticos qualificados, de modo a poder vir a ler e escrever com

competência real. O material de ‘grife’ imposto, atualmente, na rede pública de Recife não

parece garantir isto.

8. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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