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1 MAQUIAVEL 2º ano do Ensino Médio Professor: Laerte Moreira dos Santos Área de Sociedade e Cultura (Filosofia, Sociologia, História, Geografia) Site de Filosofia: http://www.cefetsp.br/edu/eso/filosofia Apostila com textos de Maquiavel e de outros autores inclusive do Prof. Laerte 2009

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TPICOS DO PENSAMENTO DE MAQUIAVEL (I)

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I - PENSAMENTO DE MAQUIAVEL EM TPICOS

1. Maquiavel escreve sobre o campo poltico - relao entre governo e governados - e portanto a aplicao do que escreveu ao campo privado indevida. Separa a moral da vida privada, tica ou moral de princpios, da moral da poltica. Esta tem outra moral: a Moral ou tica da Responsabilidade.

a) tica de Princpios e ou de valores: Nela seguimos valores ou princpios quase absolutos ou absolutos (absolutos no caso da moral de princpios de Kant). A inteno conta muitas vezes mais do que o resultado da ao. Esse trao varia na razo direta da intimidade que tenho com as pessoas com quem lido. Na tica de princpios o fracasso no fracasso. (Provrbio francs: Quem perde, ganha). A inteno desculpa o ato.

b) tica da Responsabilidade: Diferentemente de Kant e outros filsofos que elaboraram uma tica das intenes o filsofo Maquiavel, o socilogo Max Weber (influenciado por Maquiavel) e outros pensadores propem para a poltica uma outra moral, uma outra tica, a chamada tica da Responsabilidade. Uma tica que leva em conta as conseqncias e efeitos colaterais dos atos dos sujeitos agentes. claro que Kant, ao destacar que o valor moral de uma ao est na inteno ou no respeito lei (imperativos categricos), no est afirmando que os sujeitos devem ignorar os resultados e as conseqncias. Est dizendo que elas no podem ser o fundamento determinante de uma ao que pretende ter valor moral. O homem moralmente bom para ele o que obedece a lei pela lei e no por causa das conseqncias.

Mas na poltica no se pode perdoar o fracasso alegando a inteno. A intimidade no levada em conta mas sim a aparncia externa dos atos. No h desculpa para o fracasso. Por isso podemos dizer que a vida de quem age na poltica mais difcil. O que age na poltica o que formula as leis ou regras, do que elabora o quadro institucional. No o caso do cidado comum que nele est enquadrado. O poltico diferentemente do homem comum no sabe em que dar sua escolha. O desastre e a catstrofe rondam-no porque no tem quadro institucional a garanti-lo. O homem comum sem responsabilidade de poder est numa situao melhor que a do poltico. Tem maiores condies de antever os resultados de seus atos. J o homem poltico, o prncipe, justamente por ter poder menos poderoso sobre o futuro. (o seu futuro o da criao de novas ordens, no o da mera repetio do que existe, que o caso do homem comum). Por isso a pessoa que no entende a tica da responsabilidade no entende o que a ao poltica. A oposio e a esquerda tem criticado a tica da ao poltica tomando o ponto de vista de quem est fora do poder fazendo suas avaliaes a partir de uma tica de princpios ou valores. Se na vida privada os juzos morais devem ser universais na poltica no tem validade universal.

Para a tica da Responsabilidade sero morais as aes teis comunidade, e imorais aquelas que a prejudicam, e visam os interesses particulares.

2. Maquiavel e a questo dos fins que justificam os meios: Maquiavel nunca falou ou escreveu que os fins justificam os meios. Atribui-se a ele esta afirmao no captulo XVIII do O prncipe. Mas isto uma questo de traduo. H autores que traduziram desta forma a expresso italiana si guarda al fine mas tal traduo questionvel. Lembra o que os italianos dizem: Tradutore traditore (O tradutor traidor).

Leia a traduo desta frase na traduo de Maria Jlia Goldwasser de O prncipe, Ed. Martins Fontes, So Paulo, ano 2001, pg. 85:

Todos vem aquilo que pareces, mas poucos sentem o que s; e estes poucos no ousam opor-se opinio da maioria, que tem, para defend-la, a majestade do estado. Como no h tribunal onde reclamar das aes de todos os homens, e principalmente dos prncipes, o que conta por fim so os resultados.

Agora leia esta traduo (questionvel) de Srgio Bath na edio do livro O prncipe pela Universidade de Braslia:

Todos vem nossa aparncia, poucos sentem o que realmente somos, e esses poucos no ousaro opor-se maioria que tenha a majestade do estado a defend-la na conduta dos homens, especialmente dos prncipes, da qual no h recurso, os fins justificam os meios.

3. Virt: tem virt o governo que tem a capacidade de agir de acordo com as circunstncias sem se deixar perturbar pela diferena entre virtude e vcio. Com a virt diminui-se o impacto da fortuna. No tem a ver a virtude crist. Por isso a VIRT sempre oscilante, flexvel e s com ela pode ser enfrentada a FORTUNA. Para isso o prncipe tem que ser prudente, autoconfiante, firme, decidido, no ser odiado, tomar partido e no se manter neutro, ser sbio.

4. Exemplos de adotar valores de acordo com as circunstncias:

a) avareza ou liberalidade? melhor ser avaro vcio capital condenado pela tradio crist - ou ter liberalidade virtude aceita pela tradio filosfica e crist? No se pode absolutizar nenhuma nem outra. Depende da circunstncia. Mas geralmente melhor ser avaro na poltica. A atitude por exemplo de liberar dinheiro facilmente pode prejudicar o governante.

b) O prncipe deve ser amado ou deve ser temido? Nas nossas relaes familiares o amor um valor considerado bom. Mas na vida poltica o amor no um valor universal. Por que? Para adot-lo sempre na vida poltica implicaria que os homens o vivenciassem sempre. Isto no acontece. Os homens tendem mais para o mal do que para o bem: mentem, dissimulam. O melhor seria o governante ser amado e ser temido mas se no puder ser amado que seja temido para impedir a violncia na poltica. O ser amado no pode ser essencial na poltica pois se perderia uma das dimenses da poltica que a FORA.

c) Quando ser mal ou ser bom? Depende das circunstncias. O fim sempre o de preservar o poder, a ordem, a segurana, evitar a violncia civil, desejo de servir no os seus interesses pessoais, mas os do pblico, de trabalhar no em favor dos prprios herdeiros, mas para a ptria comum (Comentrios primeira dcada de Tito Lvio, I, 9). E Maquiavel diz que se o governante tiver que fazer o mal deve fazer logo porque o povo esquece com o tempo e isto facilitado se mais adiante ele v o bem ser feito. Mas este mal s pode ser feito em vista do coletivo e no do interesse pessoal.

Algum pode ser acusado pelas aes que cometeu, e justificado pelos resultados destas. E quando o resultado for bom.... a justificao no faltar. S devem ser reprovadas as aes cuja violncia tem por objetivo destruir, em vez de reparar. (Comentrios primeira dcada de Tito Lvio, I, 9)

5. Fortuna: a imprevisibilidade. No final do livro O prncipe, Maquiavel nos diz que a fortuna rbitro de metade nossas aes, a outra metade originada por nosso livre arbtrio. Ele quer dizer com isto que o campo da poltica tem uma indeterminao, est sujeito ao campo do imprevisto. A poltica no pode ser exercida com total saber. O campo da histria o campo da imprevisibilidade. Mas com a virt podemos diminuir o seu impacto.

6. Circunstncias: tornam possvel o aparecimento do homem de virt: Foi necessrio que o povo de Israel estivesse escravizado no Egito para reconhecer a virtude de Moiss; que os persas estivessem oprimidos pelos medas para saber a grandeza de nimo de Ciro... (O prncipe, Captulo XXVI, pg. 123 , Ed. Martins Fontes, ano 2001)

7. No existe comunidade poltica: A sociedade dividida entre os GRANDES, que querem oprimir, e os PEQUENOS, o POVO, que no quer ser oprimido. Ou seja, apesar de Maquiavel no usar o termo classe podemos afirmar que bem antes de Marx percebeu que a sociedade dividida em classes sociais

8. O governo tem que ter apoio do povo para se manter no poder porque so em maior nmero. O povo consente em obedecer para se livrar da opresso dos grandes e se for tratado bem pelo governo. A fortaleza do prncipe (governo) est no povo. POVO para Maquiavel era a pequena e mdia burguesia ligada s corporaes de ofcio. Esta participava politicamente nas cidades-estado republicanas. O mesmo no se pode dizer em relao ao popolo magro (desvinculado de qualquer corporao, sem especializao, miserveis).

9. Principais fundamentos do Estado: boas leis e boas armas.

10. Poltica: tem a ver com a verdade efetiva das coisas e no com a imaginao sobre elas. Antes de Maquiavel havia o ideal da Sociedade ideal pela qual se pudesse regular as aes humanas. Maquiavel rompe com esta viso. No deve se trocar o que se faz pelo que se deveria fazer. A poltica exige EFICINCIA, RESULTADOS.

11. Governante: misto de homem (leis) e animal (fora). Animal: LEO (amedronta os lobos mas cai nos laos) e RAPOSA (escapa dos laos mas no dos lobos)

12. Ser e aparncia: Maquiavel foi o primeiro a mostrar a importncia da imagem na poltica. Quando diz que no basta ser mas precisa parecer no prope que os homens sejam fingidores. Quer dizer que os homens nunca conseguiro distinguir totalmente entre fingir e viver. No existe o puro ser que se mostraria na poltica como tambm no h o puro aparecer. Quando um governante diz que vai fazer uma coisa vende uma imagem, vende um aparecer. Mas ser cobrado pela imagem de si que apresentou.

13. Parlamento: importante para controlar os grandes e favorecer os pequenos evitando exposio inconveniente do prncipe (ou governo). Para Florena Maquiavel prope um governo misto: um governo vitalcio de 65 cidados, ente os quais escolhido o gonfaloneiro (espcie de magistrado supremo) b) um senado composto de duzentos membros, o Conselho dos Escolhidos c) um Conselho Popular constitudo de seiscentos e mil cidados.

14. O conflito Maquiavel rompe com a tradio crist, filosfica e poltica que se fundamentava na idia de paz. Ele diz: os homens desejam o conflito. Mas ele no em si negativo, pode levar a melhores leis, a maior justia e fortalecer as instituies. A questo evitar que ele se transforme em anarquia e destrua as instituies. Por isso a melhor forma de regime poltico que permite os conflitos se extravasarem no campo institucional a REPBLICA. A Repblica acolhe o conflito institucionalmente. Ao invs de os homens se caluniarem, se acusem, se processem nos tribunais que so instituies polticas e republicanas.

15. Repblica: O projeto poltico de Maquiavel a construo de um Estado forte, unificado e voltado para o bem comum, ou seja, propunha a instituio da REPBLICA (res: coisa + pblica) caracterizada pela liberdade e participao popular. Se o BEM COMUM que engrandece as cidades este observado somente nas Repblicas (= participao popular e liberdade).

Mas a constituio da Repblica defronta-se com a NATUREZA MALIGNA dos homens. Os homens so mais propensos ao mal do que ao bem (Comentrios primeira dcada de Tito Lvio). Por isso contra Aristteles: no h sociabilidade inata no homem. Tal natureza aliada diviso na sociedade entre os grandes e o povo pode levar corrupo e guerra civil. Ento desafio do governante: considerando a realidade social natureza humana e diviso de classes levar a sociedade para a vivncia republicana (vivere civile). A repblica o regime mais estvel mas devido dinmica da realidade poltica em constante movimento, tanto por conta da natureza humana como pelos caprichos da FORTUNA que interfere nos rumos da sociedade, no tem garantias da perpetuidade. Nenhuma soluo poltica tem garantia absoluta para perpetuar-se.

16. A cidadania e a educao na Repblica: possui essencialmente duas linhas: constrangimento ou coao (Lei e fora das armas) e persuaso (se respalda na imitao dos bons exemplos, no estudo da Histria e no amor Glria). As leis e a fora das armas so o freio corrupo e violncia. A desobedincia lei implica o castigo. Se os homens sempre agissem bem, no haveria necessidade de coao.

Quando alguma coisa por si mesma e sem a interveno da lei funciona bem, a lei no necessria; mas quando falta esse bom costume, a lei imediatamente necessria (Comentrios primeira dcada de Tito Lvio, I, 3:82).

O cidado aquele que tem afeio no pessoa do governante mas s leis e instituies. A criao de laos pessoais promove a particularizao do que pblico. a poltica (arte poltica) que pode EDUCAR os homens para um comportamento direcionado para o BEM COMUM (Repblica). Povo virtuoso, que tem VIRT: respeitador das leis, consciente da coisa pblica.

17. Equilbrio de foras: A repblica perfeita caracteriza-se pelo EQUILBRIO DE FORAS que se torna real quando os diferentes grupos sociais detm uma parcela de poder, de modo que possam controlar-se mutuamente (Discorsi I, 2:81). O poder dos tribunos da plebe foi grande em Roma e, como dissemos mais de uma vez, necessrio, pois de outro modo no teria sido possvel frear a ambio da nobreza... (Discorsi, III, 11:216). A sobrevivncia do regime republicano depende da capacidade do governante em estabelecer medidas que garantam a LIBERDADE. Esta tarefa deve ser confiada maioria, isto , ao POVO: nunca se deve permitir, numa cidade, que a minoria (i pochi) possa tomar alguma deliberao entre aquelas que ordinariamente so necessrias manuteno da repblica (Discorsi, I, 50:132)Depende tambm da capacidade daqueles indivduos que tm VIRT, porque estes so capazes de agir visando o BEM COMUM. Por isso a Repblica leva vantagem em relao ao principado (monarquia) pois este ltimo depende da virt de um homem s, quer dizer, da capacidade do prncipe de agir conforme as circunstncias.Quando um nmero grande indivduos partilham o poder h maior possibilidade de adaptao variao do tempo, h maior possibilidade de se adaptar s circunstncias justamente por conta da diversidade dos cidados (Comentrios..., III, 9: 213). Mudando os tempos mesmo que os homens no alterem o modo de agir para o qual sua natureza os inclina pode-se mudar os homens, requisitando aquele cujo modo de proceder seja mais adequado conjuntura presente. (Ldia Maria Rodrigo, Maquiavel Educao e Cidadania, Ed. Vozes, 2002, pg. 54)

18. Ideal Republicano: harmonizar o benefcio privado e o bem de todos. Satisfazer apetites individuais ou de grupos (natureza maligna do homem) sem torn-los incompatveis com o bem comum. Visa o equilbrio de foras entre os grandes e o povo, nela os diferentes grupos sociais se equilibram mutuamente. Deve ter mecanismos de participao popular como a possibilidade de acusao pblica mas as calnias no devem ser toleradas pois so perniciosas para a Repblica.

19. Reputao: Na Repblica a manuteno da liberdade deve ser confiada coletividade dos cidados e aos excelentes, que tem boa reputao. A reputao legtima. O perigo est em estar acima do bem coletivo. Por isso boa a reputao adquirida quando se age pelo bem comum. A reputao originada por via privada, atravs do "favor popular", perigosa e nociva Repblica pois pode introduzir o poder tirnico. Quanto a isto Maquiavel aprova o procedimento que os romanos adotaram com relao a Sprio Mlio, um rico cidado. Numa ocasio em que houve fome em Roma e as provises pblicas eram insuficientes para sanar o problema, Sprio Mlio resolveu distribuir ao povo suas reservas privadas de cereais. Com esse ato de liberalidade conquistou de tal modo o favor popular que o Senado, pensando nos inconvenientes que poderiam nascer disso, nomeou contra Sprio um ditador, que o fez executar (Comentrios... , III, 28:234) A respeito desse episdio Maquiavel comenta: deve-se notar como muitas vezes as obras que parecem boas e que no se podem sensatamente condenar, tornam-se cruis e perigosssimas para uma repblica quando no so corrigidas a tempo. A distino maquiaveliana entre virtude moral e virt republicana fica evidente nessa passagem do texto: um ato moralmente bom em si mesmo pode no ser compatvel com o bem comum.

20. Monarquia: Mas quando o governante se depara com um Estado corrompido a soluo a MONARQUIA. S a monarquia, com um poder forte, pode conter os grandes e acabar com a corrupo. ESTE O CONTEXTO DE O PRNCIPE. Mas mesmo assim Maquiavel prefere o PRNCIPE (monarca) NOVO ao PRNCIPE HEREDITRIO. O prncipe novo para se manter precisa do apoio do povo: aquele que, contra o povo e pelo favor dos grandes, se torna prncipe, deve, antes de qualquer coisa procurar conquistar o povo (O Prncipe, 9:272). Isto expressa a sua ruptura com a estrutura poltica feudal. A Monarquia aceita em perodos onde domina a corrupo e a desigualdade (= domnio dos grandes). Mas aps o saneamento deve vir a Repblica.

21. Tirania: Maquiavel se coloca contra a TIRANIA que visa interesses particulares e egostas.

22. As leis e instituies = o que honra o governante. So os principais fundamentos do Estado.

23. Vida ativa x Vida contemplativa: Como outros renascentistas Maquiavel valoriza a vida ativa em detrimento da contemplativa. O homem podem intervir no mundo. Por isso o cio negativo podendo produzir corrupo poltica, a runa poltica.

24. Imitao: Maquiavel prope a imitao dos homens de virt principalmente dos homens do passado, povos antigos como os romanos. Mas apenas daqueles que pela sua grandeza merecem ser imitados. um homem prudente deve trilhar sempre os caminhos j percorridos pelos grandes homens e imitar os que se mostraram excelentssimos... (O prncipe, 6:264) Isto possvel porque h algo invarivel na natureza humana (paixes, desejos humanos). Isto no quer dizer que permaneam sempre idnticos, no se manifestam sempre do mesmo modo. Ento no se trata de reproduzir fiel e mecanicamente sua conduta, mas procurar assemelhar-se a eles na medida permitida e conveniente aos tempos modernos (Ldia Maria Rodrigo, op. Cit., pg. 67)21.

25. Estudo da Histria: s tem sentido se for til para o presente. Procura-se extrair lies do passado para aplic-las no presente e ao futuro. A histria se converte em instrumento da educao.

26. Religio: Maquiavel viu na religio um dos principais agentes educativos para a vivncia republicana. Interessa na medida em que colabora para a ordem e paz na cidade. O mau uso da religio produz a descrena nas divindades e consequentemente aumenta a tentao de os homens subverterem as instituies. No pode haver maior indcio da runa de uma provncia do que o desprezo pelo culto divino (Discorsi, I, 12: 95). Ou seja: a religio tem um carter instrumental. Esta viso inspirada na religio romana. A religio pode operar tanto de forma coercitiva como persuasiva. Por isso Maquiavel critica a religio que ao invs de favorecer a cidadania forte leva ao enfraquecimento dos homens. Era o caso do cristianismo, do catolicismo de seu tempo. Ao pegar o desprezo pelas coisas mundanas, exaltando a humildade e o apego aos valores da outra vida no colaborava para a participao republicana. Parece que este modo de viver tornou o mundo fraco, deixando-o entregue aos celerados, que se sentem vontade para manipul-lo, vendo que os homens para alcanarem o paraso esto mais dispostos a suportar os seus golpes do que a vingarem-se deles (1992 Comentrios..., II, 2: 149-150)

II - TEXTOS DE OUTROS AUTORES SOBRE MAQUIAVEL

2.1 Captulos 16, 17, 18 e 37 da obra de Maquiavel Comentrios primeira dcada de Tito Lvio (Discorsi)

Laerte Moreira dos Santos,

Lucas Moo L. di Giacomo Oliveira

Captulo 16

Este captulo muito esclarecedor em relao viso geral de Maquiavel sobre a poltica. O ttulo traz a afirmao: O povo acostumado a viver sob a autoridade de um prncipe, se por algum acontecimento se torna livre, dificilmente mantm a liberdade.

Compara este povo com um animal feroz preso em uma jaula que recupera sua liberdade por acidente.

Citando Maquiavel (p. 64, pargrafo 1):

E tal dificuldade tem razo de ser; porque esse povo no diferente de um animal bruto que, embora de natureza feroz e silvestre, tenha sido criado no cativeiro e na servido, e que depois, ao ser solto em campo aberto, por no estar acostumado a alimentar-se e por no conhecer os lugares onde possa refugiar-se, torna-se presa do primeiro que queira aprision-lo de novo.

Qual o perigo para uma nao que recobra a liberdade em virtude de um acontecimento? O seu povo, desacostumado a ter suas prprias leis e garantias de sua defesa e a da coisa pblica, pode decair numa tirania maior do que a que perdeu.

Esse um perigo que s correm as naes no totalmente corrompidas (entenda-se: onde o povo no est totalmente corrompido) pois, as totalmente corrompidas, sequer por acidente conseguem manter a liberdade. Maquiavel afirma que depois demonstrar porque isso acontece.

Mas no quer neste captulo falar dos povos onde a corrupo inveterada e sim daqueles entre os quais a corrupo no seja muito propagada, sendo ainda maior a parte boa que a podre. (fim do 1 pargrafo da p. 65)

Para o filsofo florentino, o Estado que recobra a liberdade casualmente tem inimigos engajados, coisa que os amigos no so.

Os amigos da liberdade casual, sero poucos pois, na repblica as recompensas e honrarias so apenas devido ao mrito, e ningum sente gratido por quem lhe deu um prmio devido a uma vantagem que acredita ter merecido.

As vantagens do governo livre, que, segundo Maquiavel, o de poder gozar a vida livremente e sem medo, sem temer por si e pela honra da esposa ou dos filhos, no so facilmente percebidas quando se as possui. Por fim uma frase forte que ningum se acha devedor de quem no o agride. Conseqentemente, em um regime republicano h muitas dificuldades para se conseguir adeptos fervorosos. Da talvez a necessidade do prncipe que, obrigado a escolher, preferir ser temido a ser amado.

Mas se difcil ter adeptos fervorosos o mesmo no se pode dizer quanto aos inimigos. Todo governo livre tem inimigos mais engajados, aqueles que no governo do prncipe tinham poder e vantagens. Retirados seus benefcios buscam retom-los pela tirania, para reconquistar a autoridade perdida.

Citando Maquiavel (2 pargrafo da p. 65):

A essa dificuldade se soma outra, qual seja, o estado que se torna livre angaria partidrios inimigos, e no partidrios amigos. Tornam-se partidrios inimigos todos os que se prevalecem do estado tirnico, cevando-se das riquezas do prncipe; esses, desaparecendo a possibilidade do tirarem proveito, no podem viver contentes e so forados a tentar resgatar a tirania, para recuperarem a autoridade.

Os grandi tm sempre o desejo de dominar e o povo de no ser dominado e escravizado. Os desejos do povo parecem no ter um objeto fixo. O objeto parece ser indeterminado e talvez seja esta a razo do fato de que seja mais difcil perceber que se est na posse deles.

Para remediar o fato de que o governo livre, por conta de um acontecimento, tem inimigos engajados que provocam desordens, nada melhor do que matar e exterminar todos aqueles que desejam o poder tirnico de volta, pois para estes a liberdade do povo uma servido.

Logo aps essa afirmao Maquiavel parece mudar de assunto, principalmente em relao ao ttulo do captulo, pois comea a falar de prncipes que conquistaram o poder em sua ptria.

Citando Maquiavel (pargrafo 2 da p. 66) lemos:

E ainda que as coisas sobre as quais discorro agora no estejam em conformidade com o que se encontra acima, visto que falo aqui de um principado e ali de uma repblica, para no precisar retornar a este assunto quero dizer algumas palavras.

Para estes mais conveniente que a multido tenha afeio por eles do que precisar tomar medidas extraordinrias que s trazem maior dio por parte do povo.

Tanto a nova repblica, como o novo principado devem observar quem so os inimigos da nova ordem e atac-los.

Um prncipe novo que queira conquistar um povo deve ver o que o povo deseja, Maquiavel diz que ele deseja duas coisas: a primeira vingar-se dos que o escravizavam e a segunda recobrar a liberdade. Maquiavel diz que o primeiro desejo possvel de ser satisfeito, e para isso cita Clearco, tirano de Heraclia, que foi chamado pelos nobres numa contenda contra o povo, mas acabou matando os nobres ganhando assim a simpatia do povo.

Maquiavel recupera aqui uma idia de O Prncipe, a saber, a de que o prncipe novo deve antes procurar se aliar ao povo do que aos nobres que sempre desejam tomar o poder. H uma outra vantagem em se aliar ao povo: sendo o povo a maioria, melhor ser odiado por poucos do que pela multido.

No caso do desejo de liberdade que no pode ser satisfeito totalmente, Maquiavel escreve que uma minoria a quer para poder comandar, dado que a repblica tem mais magistraturas e outra grande parte a quer apenas para manter a segurana.

Aos primeiros o prncipe deve dar honrarias ou elimin-los e aos segundos basta criar leis e instituies que conciliem o poder do prncipe com garantias de segurana, nesse campo Maquiavel cita como modelo a Frana onde o prncipe s governava livre de coero nas questes do exrcito e da fazenda, mas que no resto tinham tambm que seguir as leis para garantir a segurana geral.

O prncipe e a repblica novos devem afirmar seu poder desde o incio. difcil manter a liberdade que advm acidentalmente, mas o povo romano a conseguiu, quando da expulso dos Tarqunios, por meio de instituies. Porm nada disso seria possvel se o povo romano estivesse totalmente corrompido.

Este captulo embora o ttulo fale apenas de repblica, fala da liberdade de uma maneira geral e de como as diferentes formas de governo, podem lidar com isso. H como pano de fundo a questo dos dois humores presentes nas cidades: a dos que desejam oprimir e os que no querem ser oprimidos. difcil manter a liberdade advinda por acidente, pois o povo no sabe o que preciso para mant-la e no percebe suas vantagens de forma concreta. Mas, acima de tudo, porque os grandi desejam recobrar o poder de qualquer maneira. Da mesma maneira o prncipe para no ter inimigos deve se aliar aos que no querem ser oprimidos dando-lhes certas garantias de segurana e liberdade e exterminando ou enfraquecendo os nobres.

interessante notar que quando Maquiavel escreve que alguns desejam a liberdade para poder comandar, bvio que est se referindo aos grandi. Mas esse tipo de afirmao no se coaduna com o que se chama contemporaneamente de liberdade. Talvez porque aqui liberdade parece estar profundamente vinculada com uma forma constitucional, a repblica, ou pelo menos com algumas instituies que garantam maior participao nas decises ou na repblica (res publica = coisa pblica)Captulo 17

Um povo corrompido que recobra a liberdade s com grande dificuldade a mantm.

Exemplificando com dois contextos de Roma, Maquiavel afirma que em um este Estado s manteve a liberdade porque no estava totalmente corrompido. E tal aconteceu porque colocou um termo final continuidade da corrupo dos monarcas expulsando-os. Se no tivesse tomado esta atitude a corrupo contaminaria toda a sociedade atingindo tambm o povo e tornaria impossvel a manuteno da liberdade. Em outro contexto, com a corrupo total do povo, no conseguiu conservar a liberdade. Citando Maquiavel (fim do 1 pargrafo da p. 69):

Mas no se v exemplo mais forte que o de Roma, onde, expulsos os Tarqunios, logo foi possvel ganhar e manter a liberdade; mas, morto Csar, morto Caio Calgula, morto Nero, extintos todos os csares, nunca mais se pde no s manter como tambm dar princpio liberdade. E tanta diversidade de acontecimentos numa mesma cidade ocorreu apenas porque, nos tempos dos Tarqunios, o povo romano ainda no estava corrompido, e nos ltimos tempos estava extremamente corrompido.

Mas o mesmo no acontece com uma cidade corrompida que vive sob o jugo de um prncipe. Mesmo com a morte deste e de todos seus herdeiros no consegue recobrar a liberdade; apenas se um prncipe prudente e virtuoso e esclarecido tome o poder e a liberte, embora tal benefcio s dure enquanto tal prncipe viver.

Depois dos Tarqunios o povo romano no aceitava mais prncipes, mas mesmo depois do exemplo estico de Brutus o povo no mais levantou a voz pela liberdade e no soube conserv-la, dada a sua corrupo.

Maquiavel escreve que cidades como Milo e Npoles so incapazes de viver sem tiranos na poca contempornea, dado o seu nvel de corrupo.

J no contexto romano, a corrupo dos reis aconteceu de forma rpida e no contaminou o povo, o que levou a que as dissenses e desordens fossem vantajosas e no funestas, dado a boa inteno dos cidados. Como escreve Maquiavel (fim do 2 pargrafo da p. 70)

No entanto, foi grande a sorte de, em Roma, tais reis se terem logo corrompido, sendo por isso expulsos, antes que sua corrupo penetrasse nas entranhas da cidade: essa ausncia de corrupo foi a razo de os infinitos tumultos ocorridos em Roma no terem prejudicado, mas, ao contrrio, favorecido a repblica, visto que a finalidade dos homens era boa.

Onde a massa do povo sadia, ou seja, no est corrompida, as desordens e tumultos so positivos, mas quando est corrompida, mesmo as leis melhor ordenadas so inteis, a menos que algum usando de extrema fora as faa cumprir.

A partir de outros escritos de Maquiavel podemos afirmar que para refundar um Estado preciso estar s.

O nosso filsofo diz no se lembrar de um caso onde a cidade corrompida tenha recuperado a liberdade por mrito do povo. Somente um reformador firme e virtuoso pode alcanar tal prodgio e mesmo assim a boa conformao s durar no perodo de sua vida. Como interpreta Aranovich (2007, p. 98 e 99) o tempo dos homens diferente do tempo do Estado:

No caso da corrupo... nem o tempo de vida de um homem suficiente para livrar a repblica da corrupo, nem para corromper a repblica.... O confronto entre estas temporalidades diversas no sem conseqncias, uma vez que a ao humana pode desencadear um movimento que ir alterar a ordenao da repblica, como um processo de corrupo. Mas a pretenso humana de submeter um movimento de longa durao s suas aspiraes imediatas resulta em fracasso exatamente em razo do tempo necessrio para que o movimento cumpra seu curso.

E como escreve Maquiavel (meio do pargrafo da p. 71) morrendo este reformador, a cidade retorna a seu antigo hbito. Novamente citando Aranovich (p. 112):

A corrupo da cidade exige, como no momento da fundao, que a virt de um s homem a reordene. No entanto, Maquiavel se mostra descrente desta opo, pois, como a cidade no est mais em seu momento inicial, a corrupo j um hbito e, deste modo, a virt deste homem no pode criar algo que subsista a ele. Assim, a cidade retoma o estado de corrupo, pois a manuteno do estado republicano depende, a longo prazo, da virt do universal.

A corrupo e a inaptido para a vida em liberdade vem da desigualdade. Supe-se que tal desigualdade qual se refere Maquiavel seja a da maior participao nas decises e a da participao direta nas instituies que so garantias da liberdade. O povo, sem ela e no a desejando, um escravo por que assim quer ou pelo menos se acostumou. Aquele que quiser dar-lhe igualdade ter que fazer uso de meios extraordinrios.

Citando Maquiavel (final do pargrafo da p. 71), lemos:

Porque tal corrupo e pouca aptido vida livre provm de uma desigualdade existente na cidade, e quem quiser dar-lhe igualdade precisar lanar mo de meios extremos [grandissimi straordinari] o que poucos sabem ou querem fazer; acerca disso falaremos com mais particulares em outro lugar.

D-se neste captulo um grande destaque corrupo e consequentemente ao seu oposto: a virt. Onde h virt as desordens so benficas. Por outro lado, se o povo corrupto, praticamente impossvel a liberdade florescer.

CAPTULO 18

Mas no captulo 18 o nosso filsofo analisa a possibilidade de se manter um estado livre nas cidades corrompidas ou orden-lo caso no exista. Reconhece que so duas coisas muito difceis de fazer.

Admite que no se pode dar regras definitivas para estas situaes pois necessrio considerar os diversos graus de corrupo.

Mas parte da hiptese de uma cidade que chegou ao estado mximo de corrupo.

Tem a convico de que neste estado onde o desregramento universal, as leis e instituies no conseguem reprimir a corrupo.

De fato, como ele mesmo escreve porque, assim como os bons costumes precisam de leis para manter-se, tambm as leis, para serem observadas, precisam de bons costumes. (1 pargrafo da p. 72). Alm disso, as leis e instituies estabelecidas na origem de uma repblica quando os cidados so virtuosos so insuficientes quando grassa a corrupo.

Neste mesmo pargrafo explicita a relao necessria entre lei e instituio. As leis podem at mudar mas se no houver mudanas institucionais (a traduo da Martins Fontes usa o termo ordenaes), as instituies originais cedo as corrompem. (Maquiavel novamente se vale do exemplo romano para melhor demonstrar sua tese. Escreve ele (pargrafo 1 da p. 73)

E, para levar a entender melhor essa parte, direi como, em Roma, era ordenado o governo, ou seja, o estado, e como o eram as leis, que com os magistrados refreavam os cidados.

A ordenao do estado era a autoridade do povo, do senado, dos tribunos, dos cnsules, o modo de candidatar-se e de eleger magistrados e o modo de fazer leis. Essas ordenaes pouco ou nada variaram nos acontecimentos.

Porm, observa que as instituies pouco mudaram em Roma ao contrrio das leis que se adaptaram s mudanas nos costumes.

Essas ordenaes pouco ou nada variaram nos acontecimentos. Variaram as leis que refreavam os cidados - tal como a lei dos adlteros, a lei sunturia, a lei da ambio e muitas outras, medida que os cidados se iam corrompendo. (1 pargrafo da p. 73)

No entanto, estas novas leis, em meio corrupo geral, foram insuficientes para que os homens se conservassem com a virt. Era necessrio juntamente com a mudana das leis, a mudana das antigas instituies.

E demonstra neste captulo, ainda com o exemplo romano, a necessidade desta mudana.

Em um contexto em que os cidados eram virtuosos (ou seja, no corrompidos) o consulado e outros cargos superiores da repblica eram oferecidos queles que as solicitavam. Se um cidado tivesse seu pedido rejeitado ficaria extremamente envergonhado. Por isso, todos se esforavam para serem dignos praticando o bem. Nesta situao todos os cidados podiam apresentar projetos de lei benficas ao coletivo e tinham liberdade de, aps os debates em torno dos vrios projetos, optarem pelo que julgassem melhor. Tudo isto era muito positivo para o regime republicano e para a liberdade.

Em outro contexto, eivado de corrupo, tais cargos passaram a ser solicitados pelos mais poderosos que passaram a propor leis no no interesse da liberdade mas no interesse prprio.

Mas observa que o declnio da virt no aconteceu de repente mas paulatinamente. Uma das causas foi a expanso do imprio Romano com o domnio da frica, da sia e parte da Grcia. No temendo nenhum inimigo externo e estando seguros de sua liberdade, os romanos decaram nos seus costumes.

No que se refere instituio do Consulado, a virt j no era mais considerada para a escolha dos cnsules mas a popularidade. Como escreve Maquiavel (p. 74):

Ao conceder o consulado, j no mais tivesse considerao pela virt, mas sim pela popularidade, guindando a tal cargo aqueles que mais soubessem lidar com os homens, e no os que mais soubessem vencer os inimigos.

Esta ilustrao com acontecimentos da Roma antiga confirma que, quando a corrupo se generaliza, se torna universal (com a corrupo tambm do povo), a simples mudana de leis insuficiente. Urge a mudana das instituies. Como reform-las?

H duas formas. Pode-se reform-las de forma gradual ou de uma s vez. Maquiavel reconhece que a realizao de ambas quase impossvel.

Segundo nosso filsofo, a reforma gradual deve ser feita por homem esclarecido.

Porque, para que elas sejam renovadas aos poucos, preciso que isso seja promovido por um homem prudente, que perceba o inconveniente de antemo, quando ele nasce. (p. 75)

Porm, no fcil encontr-lo. E Maquiavel reconhece que mesmo se surgisse este homem no seria fcil colocar os cidados no bom caminho pois esto habituados a uma certa maneira de viver.

Para se fazer a reforma de forma imediata, somente com o recurso s armas e a violncia.

De acordo com Maquiavel (final da p. 75):

Quanto a inovar tais ordenaes de uma s vez, quando todos reconhecem que no so boas, digo que essa inutilidade, quando facilmente reconhecvel, difcil de corrigir; porque, para tanto, no basta usar medidas ordinrias, visto que os modos ordinrios so maus; ruas necessrio recorrer ao extraordinrio, como a violncia e as armas, tornando-se, antes ele mais nada, prncipe em tal cidade, para poder disp-la a seu modo.

Mas o uso da violncia pressupe um homem mau. No h garantia de que este tipo de homem queira fazer o bem alcanado o poder. Por outro lado, se necessrio, como afirma o filsofo florentino, um homem bom para acabar com a corrupo, a necessidade de se fazer uso de meios ilegtimos como a violncia para reformar de uma s vez as instituies, afastar os cidados virtuosos.

E, como a reordenao de uma cidade para a vida poltica pressupe um homem bom, e tornar-se prncipe de uma repblica pela violncia pressupe um homem mau, ver-se- que rarssimas vezes um homem bom queira tornar-se prncipe por vias ms, ainda que o fim seja bom; e tambm raro que um malvado, tornando-se prncipe, deseje bem obrar e que se lhe incuta no nimo o bom uso da autoridade que conquistou por meios maus.

Maquiavel destilando pessimismo conclui que as dificuldades para salvaguardar o governo republicano em uma cidade corrompida (deve-se destacar: onde o povo tambm se corrompeu) so to grandes, que praticamente impossvel a manuteno deste regime.

A Monarquia (estado rgio na traduo da Martins Fontes) seria mais eficiente para este caso. Somente com a instaurao de um poder pessoal poder-sei-ia manter a ordem. Mas tal alternativa s possvel se a corrupo no estiver generalizada, com o povo tambm corrompido. Nesta situao nem a monarquia resolve.

CAPTULO 37

Constatamos pela leitura dos captulos anteriores do primeiro livro dos Discorsi, que, de acordo com a filosofia poltica maquiaveliana, a liberdade tem a sua origem nos conflitos. Porm, no captulo 37, lemos que os mesmos conflitos que tornaram Roma uma cidade livre a fizeram perder a liberdade. Por que? No h a uma contradio? O prprio Maquiavel prev esta perplexidade por parte de seus possveis leitores e reafirma sua posio quando escreve (p. 116):

Tais foram, portanto, o incio e o fim da lei agrria. E embora tivssemos mostrado alhures como as inimizades, em Roma, entre o senado e a plebe mantiveram a cidade livre, visto que delas nasciam leis favorveis liberdade, parecendo, pois, desconforme com tal concluso o resultado dessa lei agrria, digo que nem por isso renuncio a tal opinio: porque to grande a ambio dos grandes que, se no sofrer oposio por vrias vias e de vrios modos numa cidade, logo a levar runa.

Mas, ao longo deste captulo, vai demonstrar que estes conflitos foram perniciosos para a Repblica em decorrncia do fato de a Lei Agrria ser defeituosa.

Porm, lendo o que escreve nos primeiros pargrafos deste captulo poderia parecer que o motivo para os conflitos serem causa de corrupo e runa da repblica seria a natureza humana degenerada que caracteriza tanto o povo quanto os nobres.

Segundo o filsofo florentino (p. 113):

A razo disso que a natureza criou os homens de tal modo que eles podem desejar tudo, mas no podem obter tudo, e, assim, sendo o desejo sempre maior que o poder de adquirir, surgem o tdio e a pouca satisfao com o que se possui. Da nasce a variao da fortuna deles: porque, visto que os homens so desejosos, em parte porque querem ter mais, em parte porque temem perder o que conquistaram, chegam a inimizade e guerra, da qual decorre a runa de uma provncia e a exaltao de outra.

As paixes, originadas desta natureza humana degenerada, j se expressariam desde a criao da instituio dos tribunos. Maquiavel escreve (p. 113):

Tudo isso eu disse porque a plebe romana no se contentou em obter garantias contra os nobres com a instituio dos tribunos, desejo ao qual foi forada por necessidade; pois ela, to logo obteve isso, comeou a lutar por ambio e a querer dividir cargos e patrimnio com a nobreza, como coisa mais valiosa para os homens. Da surgiu a doena que gerou o conflito da lei agrria, que acabou por ser a causa da destruio da repblica.

Lembramos que est idia de uma natureza humana degenerada destacada por Maquiavel em vrias passagens do Prncipe, dos Discorsi e de outras obras.

Lemos, por exemplo, no captulo 3 do Livro 1 dos Discorsi (final da p. 19 e incio da p. 20):

Como demonstram todos aqueles que discorrem sobre a vida civil e todos os exemplos de que esto cheias todas as histrias, quem estabelece uma repblica e ordena suas leis precisa pressupor que todos os homens so maus [rei] e que usaro a malignidade de seu nimo sempre que para tanto tiverem ocasio....

Poderamos supor, ento, uma relao entre corrupo e a natureza humana de tal forma que poderamos afirmar que a origem da corrupo est na natureza m do homem.

Bignotto descarta esta interpretao. Segundo ele (1991, p. 210):

Maquiavel atrai nossa ateno para o desejo que a constitui e no para sua maldade .... No vemos surgir, ao longo da obra maquiaveliana, qualquer relao entre a corrupo e a natureza humana. Os homens so levados a elaborar uma representao deformada do presente por sua prpria insaciabilidade. Desejamos sempre a ao, mas no podemos conhecer a priori seus resultados.

Ainda de acordo com Bignotto (1991, p. 173):

Maquiavel recusa a idia de que a maldade seja a mola principal de nossas aes, preferindo enfatizar o papel de nossa natural instabilidade, manifesta em nosso desejo de mudana, em nossa sede de novidades.

Aceitando esta tese de Newton Bignotto podemos afirmar que para Maquiavel so estes desejos insaciveis, oriundos da natureza humana, que levam o povo a no conhecer os limites da prudncia e se tornar tambm um agente de corrupo e da runa da Repblica.

Evidentemente no podemos esquecer que o filsofo florentino tem a convico de que o povo o melhor guardio da liberdade.

Como ele mesmo escreve nos Discorsi, Livro 1, captulo 5 (1 pargrafo da p. 24):

E, indo s razes, direi, vendo primeiro o lado dos romanos, que se deve dar a guarda de uma coisa queles que tm menos desejo de usurp-la. E sem dvida, se considerarmos o objetivo dos nobres e o dos plebeus [ignobili], veremos naqueles grande desejo de dominar e nestes somente o desejo de no ser dominados e, por conseguinte, maior vontade de viver livres, visto que podem ter menos esperana de usurpar a liberdade do que os grandes; de tal modo que, sendo os populares encarregados da guarda de uma liberdade, razovel que tenham mais zelo e que, no podendo eles mesmos apoderar-se dela, no permitiro que outros se apoderem.

Porm, o fato de o povo almejar a liberdade e de ser o guardio natural da liberdade, no por si mesmo uma garantia contra a corrupo e a decadncia do Estado. Sob a perspectiva da filosofia maquiaveliana, no se pode falar em bondade natural de uma classe. (Bignotto, op. Cit., p. 105)

Na construo do vivere civile no se pode descartar de forma nenhuma o reconhecimento da presena destes desejos provenientes da natureza humana. um grande obstculo para a manuteno da liberdade. Mas deve-se reconhecer que o fato de serem desejos e portanto tendncias, disposies, possuem uma certa flexibilidade que possibilita o seu controle.

Rodrigo (2007, p. 35) escreve:

Apesar de a maldade e a ambio serem constitutivas da natureza humana, isso no as converte automaticamente em determinaes absolutas e imutveis. Ao se referir a elas com os termos propenso, disposio, impulsos, apetites, tendncias, Maquiavel atribui-lhes certa flexibilidade, deixando aberta a possibilidade de que sejam modificadas e controladas.

As leis so a alternativa de interveno sobre a natureza do homem. Citando Aranovich (2007, p. 79):

Os efeitos de instabilidade que provocam a ambio humana no podem, portanto, ser concebidos como inevitveis, pois alm da prudncia e da virt, que podem cont-los de algum modo, na medida em que a ambio age dentro do Estado, ela ou pode ser submetida ao controle das leis.

Como afirma Maquiavel no captulo 42 do livro 1 dos Discorsi (p.131) o reconhecimento das paixes humanas far que os legisladores das repblicas ou dos reinos se disponham mais a refrear os apetites humanos, destruindo nos homens qualquer esperana de errar impunemente.

Mas como entender que a Lei Agrria instituda em Roma no conseguiu evitar a erupo destas paixes to perniciosas para o regime republicano?

Segundo tese de Bignotto (1991, p.88) o que Maquiavel insiste em dizer que no basta criar leis, preciso que elas sejam capazes de esconjurar os dios que se formam em toda disputa poltica.... Uma sociedade que no mais capaz de canalizar seus conflitos por seus mecanismo legais, no mais uma sociedade livre.

Ainda na interpretao de Bignotto: Maquiavel no abandona a associao entre liberdade e lei; introduz, no entanto, novos elementos que, fortalecem nossa hiptese de que todo estudo da questo da liberdade deve ser, ao mesmo tempo, um estudo da questo da ao. (p. 106) Toda poltica o resultado de uma ao humana localizada no tempo, e no o desenvolvimento da essncia eterna de um povo. da mistura entre a ao criativa e a constituio que nascem os poderes de resistncia corrupo (p. 101)

Ou de acordo com Aranovich (2007, p. 185):

O conflito no ser destrutivo se tiver a capacidade de assumir uma forma institucional, transfigurando-se em leis e ordenaes que contemplem a acomodao de suas causas. Embora esta acomodao no seja definitiva, uma vez que o conflito entre os humores no poder nunca ser eliminado, estas camadas de instituies resultantes das acomodaes sucessivas permitem a estabilidade da repblica.

E realmente isto que podemos afirmar sobre a lei agrria: no foi capaz de esconjurar os dios, de evitar que o conflito fosse destrutivo, de evitar a diviso, no foi expresso de uma ao criativa dentro de uma conjuntura especfica. Esta no atendeu um dos objetivos do regime republicano que o de manter o Estado rico e os cidados pobres:

Nas palavras de Maquiavel (final da pgina 113)

E, como as repblicas bem-ordenadas devem manter rico o pblico e pobres os seus cidados, foroso que na cidade de Roma houvesse algum defeito nessa lei: ou ela no foi bem-feita desde o princpio, de modo que no precisasse ser revista todos os dias, ou demorou tanto a ser feita que j causasse tumulto tentar sanar males passados ou, se foi bem-feita de incio, o uso depois a corrompeu; seja como for, nunca se falou de tal lei em Roma sem que houvesse confuso na cidade.

Estas hipteses vo ser confirmadas neste captulo quando afirma que a lei agrria realmente demorou para ser implementada e quando o foi teve carter retroativo que chocou os costumes tradicionais. Tal fato gerou a diviso, criou faces que arruinaram definitivamente a Repblica Romana.

Ou seja, a lei agrria se externou de forma extremamente frgil. Tinha, segundo Maquiavel, dois pontos principais: determinava que cada cidado podia possuir um tamanho mximo de terra e que as terras conquistadas aos inimigos deveriam ser divididas por todo o povo romano.

Esta lei atentava contra os interesses dos nobres pois alm de limitar o tamanho de suas propriedades impedia, com a diviso entre o povo das terras conquistadas pelo exrcito romano, o seu aumento. As crticas s autoridades e a ao destas na defesa da lei s reforavam os distrbios e o prejuzo para o Estado.

Neste contexto, os nobres, representados pelo senado, procuravam encontrar uma sada para salvaguardar os seus interesses atravs de aes privadas: usando de pacincia e habilidade, pegando em armas, atravs da cooptao de algum tribuno, cedendo em parte aos desejos do povo, fundando uma colnia no territrio que se pretendia repartir. (pargrafo 2)

Em relao esta ltima ao, Maquiavel, citando Tito Lvio, escreve que uma das colnias criadas foi em Anzio. Porm, o povo no aceitou ir para as colnias pois preferia as terras de Roma.

importante destacar que Maquiavel, apesar de todos os elogios ao povo ao longo de suas obras, no teme afirmar que foi o povo que deu incio s desordens. Nas suas palavras (p. 115):

Quem primeiro incidiu nesse escndalo e nessa desordem foi a plebe, que depositou tanta confiana em Mrio que o fez cnsul quatro vezes e, assim, ele continuou com poucos intervalos o seu consulado, de tal modo que pde fazer-se cnsul por si mesmo mais trs vezes.

Os distrbios se reduziram por um certo perodo quando os romanos conquistaram regies mais distantes da Itlia. Alm de serem distantes no eram favorveis ao cultivo. Esta realidade amortecia o desejo de possu-las.

Mas o fato desta lei ter demorado a entrar em vigor e ter carter retroativo colaborou para a agudizao dos conflitos. No momento em que, por intermdio dos irmos Graco, passou a vigorar, defrontou-se com o poder dos seus adversrios mais forte do que nunca. (observao: os adversrios eram os nobres e seus representantes no senado). Os dios se acirraram. Cada segmento social pensou apenas em defender seus interesses, em ter um poder exclusivo, em discordncia profunda com o ideal republicano. O humor do povo se igualou ao humor dos grandes. A identificao do desejo do povo com o dos grandes causou a runa da Repblica.

Citando Adverse (em site da Internet) :

Se o povo passa a desejar como os grandes, isto , quando se torna ambicioso, preocupado apenas em satisfazer seu prprio interesse, em detrimento do bem comum, ento a repblica est com os dias contados. Desfecho catastrfico da oposio fundamental: o humor do povo se igualou ao dos grandes.

Neste contexto no era mais possvel o controle e estourou a guerra civil com a vitria da nobreza. Estas comoes criaram novos distrbios nos tempos de Csar e Pompeu e foram responsveis pelo governo tirnico de Csar. Maquiavel observa que, a partir desta tirania, Roma nunca mais voltou a ser livre.

bem verdade que no final deste captulo, Maquiavel chega a elogiar a Lei Agrria, pois como ele mesmo escreve (p. 116)

De modo que, embora o conflito da lei agrria tenha demorado trezentos anos para acarretar a servido de Roma, isso teria ocorrido muito mais cedo caso a plebe, seja com essa lei, seja com outros desejos seus, no tivesse refreado a ambio dos nobres.

Ou seja, em decorrncia desta afirmao de Maquiavel, entendemos que, para ele, a Lei Agrria tinha aspectos positivos. Mas este reconhecimento no dispensa as crticas feitas. Repetindo o que j afirmamos, era necessria uma ao criativa para implement-la. Em um regime republicano no basta criar leis e instituies como bem observa Bignotto. Urge a criatividade, a virt necessria para preservar o equilbrio de poder entre os segmentos sociais, para esconjurar os dios.

A relutncia dos grandes em ceder a riqueza to grande que se no se traar uma estratgia adequada, de acordo com uma conjuntura especfica, toda ao est fadada ao fracasso. Um dos erros na aplicao da Lei Agrria foi o de no ser implementada desde o incio. Ficou hibernando, e quando entrou em vigor, encontrou os grandes mais fortalecidos no seu poder. Maquiavel, a nosso ver, deixa subtendido que, se realmente assim fosse feito, esta lei poderia ter colaborado para o fortalecimento da Repblica e para uma maior liberdade..

REFERNCIAS

1. MAQUIAVEL Comentrios sobre a primeira dcada de Tito Lvio. UnB: 1979

2. BIGNOTTO, Newton. Maquiavel Republicano.Edies Loyola: 19913. RODRIGO, Ldia Maria. Maquiavel, Educao e Cidadania. Editora Vozes: 2002

4. ARANOVICH, Patrcia Fontoura. Histria e Poltica em Maquiavel. Discurso Editorial: 2007

5. ADVERSE, Helton. Maquiavel, a Repblica e o desejo de liberdade.

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732007000200004&lng=enpt&nrm=iso&tlng=enpt

2.2 LIBERDADE LIBERAL E REPUBLICANA EM MAQUIAVEL

Prof. Laerte Moreira dos Santos1. A liberdade na tradio liberal

H o reconhecimento por parte dos estudiosos de que o texto fundante do liberalismo o texto de Benjamin Constant que traz o ttulo de Da Liberdade dos Antigos comparada dos Modernos. O que Benjamin chama de concepo de liberdade para os modernos justamente a do liberalismo.

Constant visa com este texto criticar principalmente Rousseau. Este, no seu entendimento, pelo fato de coibir a liberdade individual, estaria prximo dos ideais dos antigos e distante do exigido pela modernidade.

Benjamin Constant vincula a liberdade aos direitos individuais. Se para os antigos a liberdade significava participao no poder, para os modernos a segurana dos privilgios privados. Recortando trecho deste texto citado acima, lemos:

Concluiu-se do que acabo de expor que no podemos mais desfrutar da liberdade dos antigos, a qual se compunha da participao ativa e constante do poder coletivo. Nossa liberdade deve compor-se do exerccio pacfico da independncia privada. A participao que, na antiguidade, cada um tinha na soberania nacional no era, como em nossos dias, uma suposio abstrata. A vontade de cada um tinha uma influncia real; o exerccio dessa vontade era um prazer forte e repetido. Em conseqncia, os antigos estavam dispostos a fazer muitos sacrifcios pela conservao de seus direitos polticos e de sua parte na administrao do Estado. ...

Essa compensao j no existe para ns. O exerccio dos direitos polticos somente nos proporciona pequena parte das satisfaes que os antigos neles encontravam e, ao mesmo tempo, os progressos da civilizao, a tendncia comercial da poca, a comunicao entre os povos multiplicaram e variaram ao infinito as formas de felicidade particular.

Concluiu-se que devemos ser bem mais apegados que os antigos nossa independncia individual. ...

O objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos os cidados de uma mesma ptria. Era isso o que eles denominavam de liberdade.O objetivo dos modernos a segurana dos privilgios privados; e eles chamam liberdade as garantias conseguidas pelas instituies a esses privilgios.

A liberdade individual para Benjamin Constant a verdadeira liberdade. A poltica um instrumento externo sociedade controlado pela representao poltica. O sistema representativo uma organizao pela qual a sociedade confia a alguns indivduos o que ela no pode ou no quer fazer. O sistema representativo a soluo para no a interferncia do Estado na esfera privada. Porm a garantia do gozo dos direitos individuais exige uma vigilncia constante sobre os representantes.

Constant j preanuncia com os seus escritos o conceito que vai caracterizar a concepo liberal da liberdade: a liberdade negativa.

Mas h o reconhecimento por parte de autores de vrias tendncias de que o grande inspirador para a criao deste conceito Thomas Hobbes. Ele visto como o primeiro e mais importante defensor do individualismo moderno.

No captulo 21 do Leviat (2008) este filsofo afirma:

Liberdade significa, em sentido prprio, a ausncia de oposio entendendo por oposio os impedimentos externos do movimento.

Em Do Cidado (2008), lemos:

A liberdade, podemos assim definir, nada mais que a ausncia dos impedimentos e obstculos ao movimento; portanto, a gua represada num vaso no est em liberdade, porque o vaso a impede de escoar; quebrado o vaso ela libertada. (...) So livres todos os servos e sditos que no se encontram agrilhoados ou aprisionados.

Mas, segundo Pettit (2003, p.56),

O debate contemporneo sobre a liberdade , em grande parte, definido pela distino que Isaiah Berlin estabeleceu entre liberdade negativa e liberdade positiva, distino que aprofunda e generaliza aquela que Benjamin Constant props entre a liberdade dos modernos e a liberdade dos antigos.

Recorrendo a texto de Isaiah Berlin (1997) para se entender melhor este conceito lemos:

Uma pessoa livre na medida em que ningum ou nenhum grupo de indivduos interfere nas suas atividades.

Segundo Berlin, a liberdade negativa ( concepo liberal de liberdade), a rea em que algum pode agir sem sofrer limitaes de terceiros. Tendo como ponto de referncia o indivduo, a idia dessa concepo impor limites esfera pblica, pois na esfera privada que o indivduo tem todas as possibilidades para exercitar sua liberdade.

Afirma Bobbio (1996, p. 48) sobre o conceito de liberdade negativa:

Dado que os limites s nossas aes em sociedade so geralmente postos por normas (sejam consuetudinrias ou legislativas, sejam sociais, jurdicas ou morais), pode-se tambm dizer, como foi dito por uma longa e autorizada tradio, que a liberdade nesse sentido ou seja, a liberdade que um uso cada vez mais difundido e freqente chama de liberdade negativa consiste em fazer (ou no fazer) tudo o que as leis, entendidas em sentido lato e no s em sentido tcnico-jurdico, permitem ou no probem (e, enquanto tal permitem no fazer).

Ou seja, para o liberalismo que assume este conceito, a lei assume tambm um carter negativo, pois sempre se constituir em um impedimento liberdade. necessria para a convivncia humana evitando os excessos, mas sempre ser um obstculo liberdade individual. No a expresso da liberdade como querem os republicanos. Ela delimita o campo onde se probe e no se probe. Impe limites. O agir livre, como quer tambm Hobbes, est, ento, no que a lei no abrange, no silncio da lei.

E necessrio encontrar meios constitucionais para que as restries impostas pela lei no sejam maiores.

Em sntese, a partir do conceito de liberdade negativa, a lei tem um papel meramente utilitrio e instrumental na concepo liberal. Tem o objetivo de atravs do sistema representativo, garantir os meus direitos individuais. O status de cidado, para o Liberalismo, fundamentalmente determinado por direitos negativos perante o Estado e em face dos outros cidados. Os indivduos gozam da proteo estatal na medida em que se propem realizar seus interesses privados dentro das limitaes impostas pela lei, incluindo a proteo contra intervenes estatais.

No se pode esquecer que dentro da tradio liberal John Locke tem um papel fundamental. Atravs principalmente de sua obra Segundo Tratado sobre o Governo Civil estabeleceu e consolidou os princpios da doutrina liberal: a sociedade civil fundada no direito natural, na propriedade privada e no individualismo.

Locke, considerado por muitos como o pai do liberalismo moderno, tambm prioriza na sua filosofia os direitos individuais. O contrato social o modo de a sociedade assegurar a liberdade de cada um perante o Estado garantindo a vida e a propriedade dos indivduos.

2. A liberdade na tradio republicana

Contrapondo-se tradio liberal h a republicana. De forma geral e, diferentemente do liberalismo, para o republicanismo a lei expresso da liberdade, produz a liberdade. Tem um carter positivo. So extremamente importantes para a vida na sociedade pois garantem a regularidade e a manuteno das liberdades conquistadas. A mera representao insuficiente sem a participao no poder, sem a participao na vida institucional. Os direitos polticos so liberdades positivas pois possibilitam a participao poltica. Se o liberalismo tem uma concepo negativa e mais limitada dos direitos do cidado, o republicanismo tem deles uma concepo mais vasta.

Reconhece-se que Ccero foi o grande inspirador dos princpios republicanos e da concepo de liberdade republicana atravs do seus escritos, principalmente do Da Republica.

Mesmo considerando que esta obra tenha chegado a ns de forma fragmentada, a partir de sua descoberta em 1819 e sua publicao em 1822, ela traz os princpios fundamentais do republicanismo que servir de inspirao para a posteridade incluindo os humanistas do Renascimento.

Para Ccero o bem supremo a participao pblica. Repblica vem do latim res publica. Etimologicamente quer significar a coisa pblica, a coisa comum. Significa tambm coisa do povo.

importante entender o que esta coisa do povo. No significa aquilo que pertence a todos de modo divisvel como em um sistema de cotas, mas o que pertence sempre e ao mesmo tempo a todos e que s pode ser usufrudo em comum, por todos, de modo indiviso. E o que o povo?

Segundo Ccero (1979, p. 34) povo:

No qualquer congregado de homens reunidos de qualquer modo, mas o conjunto de uma multido organizada em sociedade pelo reconhecimento mtuo do Direito (iuris consensus) e pela comunidade de interesses (communio utilitatis).

Entende-se, ento, por povo, os homens associados pelo direito a partir de interesses que lhes so comuns. Para haver a associao pelo direito necessria a existncia de leis e estas devem ser a expresso da vontade popular. Somente assim se pode evitar a tirania, que Ccero veementemente condena.

Afirma ele na sua obra Da Republica (1979)

Quando, numa cidade, dizem alguns filsofos, um ou muitos ambiciosos podem elevar-se, mediante a riqueza ou o poderio, nascem os privilgios de seu orgulho desptico, e seu jugo arrogante se impe multido covarde e dbil. Mas quando o povo sabe, ao contrrio, manter as suas prerrogativas, no possvel a esses encontrar mais glria, prosperidade e liberdade, porque ento o povo permanece rbitro das leis, dos juzes, da paz, da guerra, dos tratados, da vida e da fortuna de todos e de cada um; ento, e s ento, a coisa pblica coisa do povo

Somente atravs da lei se garante a liberdade em uma Repblica. Uma afirmao de Ccero, muito conhecida, evidencia a vinculao da lei com a liberdade: "Ns, romanos, somos livres porque escravos da lei". (Ccero, De legibus, II, 13).

3. Liberdade liberal e republicana em Maquiavel

H o reconhecimento por parte dos estudiosos de que o pensamento de Maquiavel se insere na tradio republicana, de modo particular no humanismo cvico.

Mas antes de verificar quais os elementos republicanos que caracterizam e diferenciam o pensamento maquiaveliano, mister verificar tambm se h algum componente liberal na filosofia de Maquiavel, mesmo considerando que o incio da tradio liberal se deu posteriormente.

Se a liberdade na perspectiva do liberalismo a liberdade negativa podemos encontrar ressonncias desta concepo no pensamento de Maquiavel?

Um trecho dos Discorsi que poderia fundamentar uma resposta afirmativa encontra-se no captulo 2 do Livro 2 (2008):

Porque so grandes os proveitos colhidos pelas cidades e provncias que vivem livres em todos os lugares, como acima dissemos, por serem mais numerosos os povos, j que so mais livres e mais desejveis os matrimnios, visto que cada um, de bom grado, tem a prole que acredita poder sustentar, sem temer ser despojado de seu patrimnio...

Skinner (1998) cita este trecho como comprovao da sua tese de que o tema da liberdade negativa se encontra tambm em Maquiavel. De acordo com esta concepo o benefcio principal o de se fazer o que se quiser fazer sem interferncias externas.

Em decorrncia dos limites deste trabalho no temos condies de fazer um estudo aprofundado sobre esta tese. Sabemos sim que Lefort e Pettit vem a concepo da liberdade em Maquiavel sob outra perspectiva. Segundo eles o significado que Maquiavel d ao termo liberdade o da convico republicana da no-dominao e no o sentido liberal da no interferncia que se aproxima da liberdade negativa. Seja como for, Skinner afirma que o conceito de liberdade negativa, presente na filosofia de Maquiavel, s pode ser garantida em um regime republicano a partir de um comprometimento com o bem comum. Entende que Maquiavel refletiu sobre as condies objetivas que tornavam a liberdade individual possvel e que tinha a convico de que esta s se realizava plenamente na Repblica. Para Maquiavel, o cidado no deve apenas no sofrer interferncia em sua independncia (liberdade negativa), ele deve ter a garantia institucional de que tal no ocorrer (Bignotto, 2002, p. 56). Ou seja, no pensamento maquiaveliano h um vnculo necessrio entre o tipo de regime e a liberdade. Se a liberdade negativa, conceito presente segundo Skinner na filosofia maquiaveliana, aproxima o filsofo florentino do liberalismo, a necessidade deste vnculo o distancia desta ideologia e o aproxima do republicanismo quando se sabe que na tradio liberal este vnculo se perdeu.

Mas se dermos continuidade leitura do trecho citado lemos: ... ademais, todos sabem muito bem que no s nasceram livres, e no escravos, como tambm que, se tiverem virt para tanto, podero tornar-se prncipes.

Encontramos a ressonncias claras da liberdade republicana. Ela significa tambm e principalmente a possibilidade de participao na vida pblica, nas instituies polticas.

Esta constatao confirma que o pensamento de Maquiavel se insere na tradio republicana e de forma particular na tradio do humanismo cvico. Para este a dedicao vida pblica a maior virtude do cidado. Como afirma Carvalho (2002, p. 105) a liberdade para o humanismo cvico tem conotao positiva, no se refere reao ao poder do Estado, mas disponibilidade do cidado para se envolver diretamente na tarefa do governo da coletividade.

Ou seja, a vida ativa valorizada em contraposio vida contemplativa que criticada. A vida ativa se traduz em uma concepo ativa da liberdade que alm da participao nas instituies polticas, implica tambm a liberdade de se manifestar na esfera pblica. A liberdade republicana ao, potncia.

E se lembrarmos que a valorizao da vida contemplativa, ainda comum nesta poca de Maquiavel, era devido principalmente influncia da religio catlica, podemos entender o porque das crticas veementes do filsofo florentino ao catolicismo. Mas que fique bem claro, critica o catolicismo e no a religio. Para ele, a religio catlica no favorecia a virt cvica, pois enaltecia a vida contemplativa, propunha a humildade e outras virtudes no condizentes com o esprito republicano. Como ele mesmo afirma ilustrando com o exemplo da religio romana (Discursos, II,2) (2007):

A religio antiga, alm disso, s beatificava os homens repletos de mundana glria, como os capites de exrcitos ou chefes de Estado. Nossa religio glorificou mais os homens humildes e contemplativos do que os ativos.

Deve-se observar que, para o humanismo cvico e para Maquiavel, as leis so fundamentais na garantia desta participao. Elas se constituem na sua garantia.

Porm, a admisso de que Maquiavel prope esta participao, no revela ainda toda a originalidade da sua filosofia. Ele inova ao destacar o elemento conflitivo na poltica. Este permanente e inerente toda sociedade. Se a poltica no pode prescindir da participao democrtica dos cidados, os conflitos se tornam inevitveis.

Estes acontecem basicamente porque na cidade h dois humores: a dos grandes e a do povo. A vida pblica perpassada por estes dois humores: os grandes que desejam comandar e oprimir o povo e o povo no deseja ser comandado nem oprimido. Com esta constatao Maquiavel mostra toda a originalidade de sua filosofia, pois rompe com a idia de comunidade (= comum unidade). No h comum unidade mas ciso, h desejos opostos na sociedade.

O filsofo florentino, no captulo 4 do livro 1 dos Discorsi (2007), contesta a tese dos que vem os conflitos entre o povo e o senado romano como causa da decadncia de Roma, afirmando:

Os que criticam as contnuas dissenses entre os aristocratas e o povo parecem desaprovar justamente as causas que asseguraram fosse conservada a liberdade de Roma, prestando mais ateno aos gritos e rumores provocados por tais dissenses do que aos seus efeitos salutares. (...) No se pode de forma alguma acusar de desordem uma repblica que deu tantos exemplos de virtude, pois os bons exemplos nascem da boa educao, a boa educao das boas leis, e estas da desordem que quase todos condenam irrefletidamente.

Fica evidenciado por esta citao que, para Maquiavel, o conflito assume uma face positiva protegendo a liberdade, fortalecendo e tornando mais democrtica a sociedade. Esta posio o diferencia claramente da de outros humanistas.

Sabe-se que esta viso foi duramente criticada pelos seus contemporneos. O cientista poltico Quentin Skinner (1993, p. 201) escreve que um destes contemporneos, Guicciardini, na sua crtica aos Discorsi, afirma que elogiar a desunio como louvar a doena de um enfermo pelas virtudes do remdio a ele aplicado

Quanto a esta questo, Aranha (1993, p. 73) traz uma afirmao muito esclarecedora do filsofo Norberto Bobbio:

Maquiavel faz uma afirmativa destinada a ser considerada como uma antecipao da noo moderna de sociedade civil, segundo a qual a condio de sade dos Estados no reside na harmonia forada, mas sim na luta, no conflito, no antagonismo (mais tarde, dir-se-: no processo histrico) - que correspondem primeira proteo da liberdade.

Porm, o desafio de todo governo e de todos os cidados o de evitar que o conflito gere a anarquia, a guerra civil e destrua as instituies.

A admisso dos conflitos implica a criao de mecanismos que os impeam de prejudicar o vivere civile. Estes mecanismos so as leis e instituies republicanas. A partir delas o conflito institucionalizado, canalizado e, portanto, possibilita a liberdade.

Fica evidenciado a partir desta exigncia, que as leis e instituies introduzem a necessidade artificial , pois para Maquiavel os homens no so bons por livre opo.

E por que introduzem a necessidade artificial?

A resposta est na explicitao do conceito necessidade no pensamento poltico de Maquiavel. primeira vista, poder-se-ia afirmar que a liberdade sempre est vinculada escolha, s nossas opes. No se coadunaria de forma nenhuma com a necessidade. Liberdade e necessidade estariam em campos opostos.

No entanto, para o filsofo florentino, a escolha, na maioria das vezes, pode levar ao desaparecimento da virt dada propenso dos homens cometerem o mal. A histria dos homens demonstrou que estes se mantiveram virtuosos em decorrncia de serem obrigados pelas necessidades naturais. Por exemplo, o planejamento de assentamento de uma colnia em solo pobre obrigar os habitantes a um trabalho rduo afastando-os da luxria. Favorecer a virt, portanto.

Mas quando a necessidade natural no mais preponderante, h que se introduzir a necessidade artificial (criada pelos homens) atravs das leis e instituies, obrigando os cidados ao vivere civile.

Pode-se concluir que para Maquiavel a necessidade, incluindo a necessidade artificial pelas leis e instituies, faz a virt e paradoxalmente favorece a manuteno da liberdade. Como a sociedade marcada pelas dissenses, somente a necessidade artificial introduzida pelas leis e instituies pode obrigar os homens convivncia pblica.

Aranovich (2007, p. 185), discorrendo sobre a necessidade de institucionalizao dos conflitos, escreve:

O conflito no ser destrutivo se tiver a capacidade de assumir uma forma institucional, transfigurando-se em leis e ordenaes que contemplem a acomodao de suas causas. Embora esta acomodao no seja definitiva, uma vez que o conflito entre os humores no poder nunca ser eliminado, estas camadas de instituies resultantes das acomodaes sucessivas permitem a estabilidade da repblica.

A necessidade da institucionalizao do conflito fica bem explicitada no captulo 7 e 8 dos Discorsi que tem como ttulo da necessidade das acusaes para conservar a liberdade numa repblica

Maquiavel diferencia claramente calnia da acusao. A calnia permanece no campo privado e extremamente perigosa para o viver civil. J a acusao til para o regime republicano pois institucionalizada.

Como afirma Maquiavel no captulo 8 do primeiro livro dos Discorsi (2007):

As acusaes so feitas a magistrados, a povos, a conselhos; as calnias so feitas nas praas e nos pontos de encontro.... E, onde essa questo no bem-ordenada, sempre ocorrem grandes desordens: porque as calnias irritam, e no castigam os cidados; e os irritados pensam em defender-se, odiando mais que temendo as coisas que deles se dizem.

Ilustrando com o contexto romano, Maquiavel afirma que Roma, ao contrrio de Florena, dispunha de canais institucionais para que as dissenses se expressassem de forma pblica. Estas eram conformadas a certas regras que impediam a animosidade destrutiva do viver civil. Como ele mesmo afirma: Essa questo, como se disse, era bem-ordenada em Roma; e foi sempre mal ordenada na nossa cidade de Florena.

E a liberdade que far a articulao entre os elementos institucional e conflitivo mantendo um equilbrio de foras que se torna possvel quando os diferentes segmentos sociais (o povo e os grandi) possuem uma parcela de poder de tal forma que possam se controlar mutuamente. Rompe-se este equilbrio quando um segmento quer dominar com exclusividade afastando o outro. Quando se chega esta situao no h mais o desejo de participao mas de excluso.

Deve-se observar, contudo, que nas sociedades onde se chegou ao mximo de corrupo (entendida como prevalncia do interesse privado em detrimento do pblico), inclusive com a corrupo do povo, as leis e instituies republicanas so impotentes para garantir a liberdade. Somente a monarquia poderia impor alguma ordem.

Mas h um outro elemento fundamental na filosofia de Maquiavel que tambm o diferencia dos seus contemporneos. a importncia do povo em qualquer regime principalmente no republicano. J no O Prncipe afirma categoricamente que o prncipe para se sustentar politicamente tem que buscar o apoio do povo.

E um dos motivos o fato de ser o melhor guardio da liberdade pois o seu desejo sempre menos lesivo para a liberdade que o dos grandi.

Como ele mesmo afirma nos Discorsi, livro I, captulo 5 (2007):

E, indo s razes, direi, vendo primeiro o lado dos romanos, que se deve dar a guarda de uma coisa queles que tm menos desejo de usurp-la. E sem dvida, se considerarmos o objetivo dos nobres e o dos plebeus [ignobili], veremos naqueles grande desejo de dominar e nestes somente o desejo de no ser dominados e, por conseguinte, maior vontade de viver livres, visto que podem ter menos esperana de usurpar a liberdade do que os grandes; de tal modo que, sendo os populares encarregados da guarda de uma liberdade, razovel que tenham mais zelo e que, no podendo eles mesmos apoderar-se dela, no permitiro que outros se apoderem.

Maquiavel escreve no captulo 16 do segundo livro dos Discorsi que para ter o apoio do povo necessrio satisfazer o seu desejo, mas para tal, necessrio saber o que ele deseja.

Em primeiro lugar o povo deseja vingar-se de quem lhe tirou a liberdade, e, em segundo lugar, recuper-la.

Para Maquiavel o primeiro desejo pode ser satisfeito de forma plena bastando eliminar os inimigos do povo. Quanto ao segundo desejo, pode ser satisfeito somente em parte. Por qu?

Uns poucos querem a liberdade para comandar. Outros, a grande maioria, apenas para viverem em segurana.

Quanto aos que querem comandar fcil control-los bastando ou elimin-los ou conceder-lhes honrarias. Quanto maioria, basta criar leis e instituies que garantam a segurana almejada.

Frente a este dilema, o governante deve convencer o povo de que no violar as novas leis. Para Maquiavel o cumprimento das leis por parte daqueles que as elaboram uma das exigncias para a salvaguarda da liberdade.

Lemos no cap. 45 dos Discorsi, Livro 1(2007):

Com efeito, o exemplo mais funesto que pode haver, a meu juzo, o de criar uma lei e no cumpri-la, sobretudo quando sua no observncia se deve queles que a promulgaram.

No captulo 32 do primeiro livro dos Discorsi, o nosso filsofo escreve que para ganhar a afeio do povo necessrio tambm assisti-lo nas suas necessidades. Condena a efetivao da assistncia somente em momentos que o Estado corre perigo como na situao em que ameaado por inimigo externo. O povo achar que os benefcios concedidos se devem ao inimigo e quando, cessadas as hostilidades, estes sero retirados.

verdade, lembra, que o senado romano tratava o povo com liberalidade nos momentos de perigo, mas como o povo teve vrias leis promulgadas que o beneficiaram, julgava que o senado tinha uma inclinao a seu favor. No havia prejuzo para a Repblica.

Todavia, se esta ao no prejudicou Roma, pelo motivo apresentado, nada garante que se tenha o mesmo resultado em outro Estado. Maquiavel conclui que necessrio agir em relao ao povo como estaramos obrigado a agir em caso de desgraa.

Ou seja, o atendimento das necessidades do povo h de ser constante e no somente em momentos excepcionais.

Deve-se observar, que o reconhecimento do povo como guardio da liberdade, no significa que este sempre vai agir bem. Ele pode se constituir em agente de corrupo e da runa da repblica. E tal acontece, como j se destacou neste texto, quando se torna ambicioso, preocupado apenas em satisfazer seu prprio interesse com excluso dos grandi ou de outros segmentos sociais que participam tambm do poder.

Mas apesar desta ressalva, o povo como guardio da liberdade tem um papel fundamental para a manuteno do regime republicano. Em decorrncia deste apreo participao do povo pode-se afirmar que para Maquiavel o melhor regime no somente a Repblica, mas a Republica com carter popular.

REFERNCIAS

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ARANHA, Maria Lcia Arruda. Maquiavel: a lgica da fora. So Paulo: Editora Moderna, 1993

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BOBBIO, N.; BOVERO, M. Sociedade e Estado na Filosofia Poltica Moderna. Traduo de Carlos N. Coutinho. So Paulo: Brasiliense, 1996.

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______________ Do Cidado. So Paulo: Martins Fontes, 2008

LEFORT, C. Pensando o poltico. Ensaios sobre democracia, revoluo e liberdade. Traduo de Eliana de Melo Souza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

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RODRIGO, Ldia Maria. Maquiavel Educao e cidadania. Petrpolis: Editora Vozes, 2002

SKINNER, Q. Liberdade antes do liberalismo. Traduo de Raul Fiker. So Paulo: UNESP, 1999.

___________ As fundaes do pensamento poltico moderno. So Paulo: Cia de Letras, 1993

2.4 O bom cidado no Regime Republicano - Texto de Ldia Maria Rodrigo (Maquiavel: Educao e Cidadania, Ed. Vozes, 2002, 83-89)

O povo julga pelas aparncias, deixando-se enganar por elas. Enquanto no principado esse fato no produz perturbao, visto que a tomada de decises permanece monoplio do prncipe, na repblica, ao contrrio, representa problema poltico da maior gravidade. Na perspectiva maquiaveliana, a repblica caracteriza-se por ser um regime poltico em que a guarda da liberdade deve ser confiada maioria, isto , ao povo, a quem compete inclusive a distribuio de cargos e dignidades. Na repblica o povo escolhe, tem poder de deciso, mas ele pode ser facilmente enganado e provocar a runa do Estado: "muitas vezes o povo, enganado por uma falsa imagem do bem, deseja sua runa" (Machiavelli, 1992 - Discorsi, I, 53: 134).

... (A) manuteno da liberdade atravs das instituies republicanas deve ser confiada coletividade dos cidados e, de modo muito especial, aos excelentes, aqueles que possuem qualidades e virt para agir visando o bem comum. O cidado que assim se comporta fatalmente torna-se alvo do reconhecimento popular, conquistando fama, reputao e glria. A reputao oriunda do "favor popular", por sua vez, redunda em autoridade e pode conduzir ambio poltica, uma vez que o desejo de poder, natural em todos os homens, faz-se particularmente presente nos indivduos de mrito que, alm de ambicion-lo, tm condies e oportunidade para alcan-lo.

Portanto, justamente pelas mos daqueles com quem a repblica mais precisa contar na salvaguarda da liberdade - os cidados virtuosos que a tirania pode instalar-se. Maquiavel explcita com todas as letras esse dilema: "sem cidados reputados uma repblica no pode existir, nem governar-se bem de algum modo. Por outro lado, a reputao dos cidados causa da tirania nas repblicas" (1992 - Discorsi, III, 28: 235). A boa reputao contm um potencial tirnico, contra o qual necessrio precaver-se.

A ambio pessoal por glrias e riquezas pode entrar em rota de coliso com o bem comum, mesmo num regime politicamente sadio. Das duas finalidades que a ambio humana persegue com maior afinco - riquezas e honrarias - Maquiavel reputa a primeira incompatvel com o governo republicano, uma vez que ela contm a semente da corrupo. Para que a riqueza sem virtudes no possa corromper (cf. 1992 - Discorsi, III, 16: 222), a pobreza se v elevada dignidade de princpio poltico: "a repblica bem organizada deve manter o Estado (i] publico) rico e os cidados pobres" (ibidem, I, 37: 119).

Existe, entretanto, flagrante contradio entre o preceito republicano de manter os cidados na pobreza e a natureza ambiciosa dos homens em geral. Maquiavel sabe que no pode contar com uma atitude altrusta por parte dos cidados, ou supor que abririam mo de interesses particulares em nome do bem coletivo, o que seria, inclusive, contraditrio com sua concepo da natureza humana. Resta uma alternativa: que a ambio por riquezas seja substituda por outro tipo de satisfao ou recompensa pessoal - honra e glria - que tambm fazem parte dos apetites humanos. No plano individual, a glria representava uma das mais altas aspiraes do homem renascentista. Todavia, enquanto os escritores humanistas concebiam a glria e a fama sob um prisma eminentemente individual, ligado preocupao do indivduo em perpetuar seu nome no mundo, Maquiavel apropria-se desses valores humanistas para instrumentaliz-los em vista de um projeto poltico coletivo.

Alm de corresponder realizao de uma aspirao individual, a glria pode, simultaneamente, harmonizar-se com o bem comum, ao contrrio da riqueza.

Maquiavel reconhece como legtima a aspirao reputao pessoal: o perigo est em sobrep-la ao bem coletivo.

Promove-se, por assim dizer, um redirecionamento da ambio humana, canalizada para uma forma de satisfao compatvel com o vivere civile. Alm dos meios coercivos destinados a controlar a natureza maligna do homem - basicamente as armas e a lei - nas repblicas a glria representa uma alternativa positiva sua insatisfao inata. Ainda assim, permanece a necessidade de encontrar formas de harmonizar a aspirao pessoal glria, enquanto exaltao de si mesmo, com a realizao do bem comum.

Para satisfazer a legtima aspirao do cidado reputao pessoal sem danos ao bem comum, torna-se necessrio considerar os meios empregados para conquist-la, que, segundo o autor, so fundamentalmente dois: um pblico, outro privado. "O modo pblico quando algum adquire reputao aconselhando bem e, melhor ainda, agindo em benefcio comum" (1992 - Discorsi, III, 28: 235). Por esta via, o indivduo procura ganhar destaque atravs de aes extraordinrias, gestos e atos inusitados e espetaculares que, simultaneamente, visem o bem comum, a exemplo dos romanos nos tempos ureos da repblica: "Assim agiram muitos romanos, ainda jovens, propondo que se promulgasse uma lei benfica a todos, acusando algum cidado poderoso como transgressor das leis ou fazendo outras coisas semelhantes, novas e notveis, que dessem o que falar." (1bidem, III, 34: 242).

Este caminho para a fama deve estar aberto a todos os cidados, que atravs dele podem satisfazer sua ambio pessoal e, simultaneamente, beneficiar sua ptria; embora a honra e glria que disso resulta selam apropriadas individualmente, quando obtidas por essa via no trazem nenhuma ameaa.

A via privada, ao contrrio, consiste na aquisio da boa reputao atravs de aes individuais, cujos beneficirios so tambm cidados particulares, visando, em ltima instncia, com base no poder de influncia acumulado, alcanar fins privados.

A via privada consiste em fazer benefcios a outros cidados privados, emprestando-lhes dinheiro, apadrinhando-lhes o matrimnio dos filhos, defendendo-os dos magistrados e fazendo-lhes favores particulares semelhantes, os quais transformam os homens em partidrios (partigiani) e do nimo - a quem to estimado - para corromper as instituies pblicas e violar a lei" (1992 - Discorsi, 111, 28: 235).

Sobre a reputao obtida por via privada o julgamento de Maquiavel radical e categrico: ela perigosa e nociva, Um s ato dessa natureza que se deixe impune pode arruinar a repblica; por isso aprova o procedimento que os romanos adotaram com relao a Sprio Mlio, um rico cidado.

Numa ocasio em que houve fome em Roma e as provises pblicas eram insuficientes para sanar o problema, Sprio Mlio resolveu distribuir ao povo suas reservas privadas de cereais. Com esse ato de liberalidade conquistou de tal modo o favor popular que o Senado, pensando nos inconvenientes que poderiam nascer disso, nomeou contra Sprio um ditador, que o fez executar (cf. Machiavelli, 1992 - Discorsi, III, 28: 234).

A respeito desse episdio Maquiavel comenta: "deve-se notar como muitas vezes as obras que parecem boas (pie) e que no se podem sensata mente (ragionevolmente) condenar, tornam-se cruis e perigosssimas para uma repblica quando no so corrigidas a tempo" (Ibidem). A distino maquiaveliana entre virtude moral e virt republicana fica evidente nessa passagem do texto: um ato moralmente bom em si mesmo pode no ser compatvel com o bem comum.

O perigo da via privada para a obteno da boa reputao reside no fato de que ela pode arruinar a liberdade republicana pela instituio de um poder tirnico. Nos Discorsi manifesta-se, ao longo de toda a obra, a preocupao de exorcizar o fantasma da tirania, estabelecendo salvaguardas para a liberdade, fundamento do Estado voltado para o bem comum. Mesmo no melhor regime poltico - a repblica - a malignidade humana jamais erradicada e a ambio privada sempre pode sobrepor-se ao bem pblico. O preo da liberdade a constante vigilncia, particularmente sobre os indivduos que adquirem fama e reputao e por isso podem galgar cargos e magistraturas, para que "no possam fazer o mal sombra do bem, de modo que s tenham a reputao que beneficia a liberdade, no aquela que a prejudica" (1992 - Discorsi, I, 46: 129).

Uma das formas de vigiar a liberdade, para que esta no sucumba tirania, consiste em adotar uma conduta poltica baseada na severidade e no rigor. O dilema crueldade/piedade, j abordado em O Prncipe, reaparece formulado em termos republicanos: "Se a clemncia (l'ossequio) mais necessria do que o rigor (la pena) para governar a multido" (1992 - Discorsi, III, 19: 225).

Depois de tecer longas consideraes baseadas nos exemplos dos capites romanos, Maquiavel conclui que, numa repblica, mais louvvel e menos perigoso adotar uma conduta mais rgida e severa, pois nesse procedimento tudo se d em favor do pblico, em nada favorecendo ambio privada; porque desse modo no se pode conquistar partidrios (partigiani), isto , mostrando-se sempre spero com cada um, e amando s o bem comum; quem assim age no conquista amigos particulares (particolari amici), aos quais, mais acima, chamamos de partidrios (partigiani) (Ibidem, III, 29: 229).

Nos regimes republicanos, o vnculo do cidado com o Estado deve estabelecer-se fundamentalmente pelas vias institucionais; a criao de laos pessoais cria partidrios, ou seja, promove a particularizao do que publico, principio elementar de toda tirania, e, portanto, ameaa liberdade; o cidado ambicioso pode aproveitar-se da reputao adquirida para usurpar o poder e instituir uma tirania.

Como a bondade, humanidade, piedade, clemncia e outras qualidades anlogas se prestam ao estabelecimento de vnculos de afeio pessoal, os comportamentos que se pautam por elas devem ser vigiados e postos sob suspeita, a exemplo do caso de Sprio Mlio. Ao contrrio do que ocorre no principado, a educao para a cidadania no interior do regime republicano implica em levar o indivduo a afeioar-se mais s leis e instituies do que pessoa dos governantes e autoridades.

2.5 O Elogio ao conflito - Texto de Maria Lcia de Arruda Aranha (Do livro: Maquiavel: a lgica da fora, Ed. Moderna, 1993, pg. 72 e 73)

...(H) algo absolutamente novo na interpretao de Maquiavel e que representa uma verdadeira ruptura, j que, para a tradio, a estabilidade e a paz eram consideradas padres para avaliar as boas formas de governo.

Ao considerar as foras opostas da aristocracia e do povo, Maquiavel no espera que os conflitos possam desaparecer, mas sim que a relao entre as foras antagnicas seja sempre de equilbrio tenso.

A posio de Maquiavel foi duramente criticada. Diz o cientista poltico ingls Quentin Skinner: "Esse elogio discrdia horrorizou os contemporneos de Maquiavel. Guicciardini falava por todos eles ao replicar, em suas Consideraes sobre os Comentrios, que 'elogiar a desunio como louvar a doena de um enfermo pelas virtudes do remdio a ele aplicado'.

O argumento de Maquiavel ia contra toda a tradio do pensamento republicano de Florena, uma tradio em que a crena de que toda discrdia deve ser banida como sediciosa, ao lado da crena de que tod