APREENSÃO E PROPRIEDADE · 2006-10-16 · procedimentos quanto à guarda dos objectos apreendidos...

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compilações doutrinais VERBOJURIDICO APREENSÃO E PROPRIEDADE CONSIDERAÇÕES SOBRE AS MEDIDAS DE APREENSÃO EM PROCESSO PENAL ___________ DR. CARLOS DA SILVA CAMPOS ADVOGADO verbojuridico ® ______________ OUTUBRO 2006

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compilações doutrinais

VERBOJURIDICO

APREENSÃO E PROPRIEDADE

CONSIDERAÇÕES SOBRE AS MEDIDAS DE APREENSÃO EM PROCESSO PENAL

___________

DR. CARLOS DA SILVA CAMPOS ADVOGADO

verbojuridico ®

______________

OUTUBRO 2006

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2 : APREENSÃO E PROPRIEDADE VERBOJURIDICO

Título: APREENSÃO E PROPRIEDADE

Autor: DR. Carlos da Silva Campos Advogado

Data de Publicação:

Outubro de 2006

Classificação

Direito Processual Penal

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Nota Legal:

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CARLOS DA SILVA CAMPOS APREENSÃO E PROPRIEDADE : 3

APREENSÃO E PROPRIEDADE

Considerações sobre as Medidas de Apreensão em Processo Penal

————

Dr. Carlos da Silva Campos (*) ADVOGADO

1. Introdução

O propósito deste artigo é confrontar a teoria e prática das medidas de apreensão

em processo penal com o direito de propriedade. O Código de processo Penal (doravante

CPP) estabelece um regime de regras e procedimentos específicos que, esquematizando e

simplificando, se podem classificar em três grupos ou etapas:

a) Condições e pressupostos para se efectuar a apreensão, designadamente quem

pode efectuar a apreensão, a apreensão cautelar, o mandado de apreensão, a

validação por autoridade judiciária, etc.;

b) Vicissitudes processuais dos objectos apreendidos, designadamente os

procedimentos quanto à guarda dos objectos apreendidos e os actos ou incidentes

de modificação ou revogação da medida de apreensão;

c) O destino dos objectos apreendidos, designadamente a restituição, a perda a favor

do Estado ou o arresto preventivo.

As regras aplicáveis a cada uma desta etapa encontram-se não só no CPP, mas

também numa multiplicidade de diplomas especiais, em função da natureza dos crimes ou

(*) Carlos da Silva Camos é Advogado com escritório na Rua Entrecampos, 48 R/C Esq. 1700-159 LISBOA. Tel. 217 921 112, Fax 217 921 115. E-mail: [email protected]

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contraordenações, em função da natureza ou espécie dos objectos apreendidos, ou em

função dos locais onde são apreendidos. A primeira constatação a efectuar é o elevado

número de diplomas extravagantes com normas sobre apreensões 1, situação que cria

dificuldades a todos quantos lidam com o problema, seja por razões de ofício, seja por

envolvimento em casos de apreensão. À prolixidade adiciona-se a instabilidade das

normas. Estas duas características afectam negativamente a eficácia da investigação e a

defesa do direito de propriedade.

O âmbito deste artigo circunscreve-se ao “regime geral” do processo penal,

deixando para melhor oportunidade os regimes ou casos especiais, tais como a

correspondência, as apreensões em locais abrangidos por regras de sigilo, os objectos

perecíveis, etc...

2. Só a finalidade probatória justifica a apreensão

A apreensão de objectos é um dos meios legais de obtenção de prova (artigo 178º,

nº 1 do CPP). A susceptibilidade de “servir a prova” é condição essencial da apreensão,

quer no que diz respeito aos pressupostos para a sua efectuação, quer no que respeita à sua

manutenção. A finalidade probatória não se confunde com outras finalidades do processo

penal, designadamente a garantia patrimonial (exequibilidade de penas, custas, dívidas

para com o Estado, indemnizações ou outras obrigações civis). Também não se confunde

com a finalidade preventiva (evitar a prática de actos ilícitos). O tema da justificação das

medidas de apreensão raramente é aprofundado nos manuais de processo penal, mas a

justificação da apreensão é essencial para a validação da mesma por autoridade judiciária:

uma apreensão que não sirva as finalidades legais não deve ser validada, nem deve manter-

se.

A este propósito, escreveu o Germano Marques da Silva: “tenha-se em atenção que

a apreensão não é apenas um meio de obtenção e conservação de provas, mas também de

segurança de bens para garantir a execução, embora na grande maioria dos casos esses

1 Para uma visão panorâmica da multiplicidade de diplomas sobre esta matéria, podem consultar-se dois “guias práticos” disponibilizados na internet, com a natural reserva de alguns dos diplomas neses referidos terem, entretanto, sido alterados:

Sérgio Aureliano G. Cunha e Manuel António H. Maria (2004), Objectos Apreendidos – Apreensão, Guarda, Destino – Guia Prático, Verbo Jurídico, disponível em: http://www.verbojuridico.net/download/objectos_apreendidos.zip; Alexandre Silva e Vítor Mendes (2004), Objectos Apreendidos – Direito e Processo Penal, Ministério da Justiça – Centro de Informação de Oficiais de Justiça, disponível em http://www.mj.gov.pt/sections/o-ministerio/direccao-geral-da/ficheiros/cfoj/manual-de-objectos/downloadFile/file/manual_de_objectos.pdf.

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objectos sirvam também como meios de prova” 2. Em seguida, o Professor alerta para a

distinção entre apreensão e outras medidas, como o arresto preventivo e a caução

económica, acabando por mencionar que “a apreensão destina-se essencialmente a

conservar provas reais e bem assim de objectos que em razão do crime com que estão

relacionados podem ser declarados perdidos a favor do Estado” 3. Não acolhemos esta

tese na parte que se refere à justificação da apreensão com base na mera susceptibilidade

de perda a favor do Estado, quer ela prossiga uma finalidade preventiva, quer se trate de

providenciar uma garantia patrimonial.

A finalidade preventiva, por si só, e independente de qualquer finalidade

probatória, não é justificação bastante para a apreensão. É evidente que quando uma

autoridade policial apreende uma substância ou arma proibida e/ou na posse de pessoa não

habilitada, existe uma finalidade preventiva implícita: evitar a prática de factos ilícitos.

Porém, o que justifica essa apreensão não é a prevenção, mas a prova material do facto

ilícito.

A susceptibilidade de um objecto ser declarado perdido a favor do Estado não

constitui, por si só, fundamento para a apreensão. Nos termos do artigo 109º, nº 1, do

Código Penal (doravante CP), são declarados perdidos para o Estado os objectos que forem

instrumentos ou resultado de um facto ilícito típico, “quando, pela sua natureza ou pelas

circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem

públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos

ilícitos típicos”. A declaração de perda para o Estado é uma decisão final que se refere a

“coisas ou objectos relacionados com o crime” (artigo 374º, nº 3, alínea c) do CPP), isto é,

pode incidir quer sobre objectos apreendidos, quer sobre objectos não apreendidos. A

decisão final de perda a favor do Estado não se confunde com a apreensão que ocorre antes

da sentença ou outra decisão que põe fim ao processo. A apreensão não deve ser uma

antecipação da decisão final, mas apenas um meio de obtenção de prova que permita essa

mesma decisão. Assim, e verificando-se que a apreensão não tem utilidade probatória, ela

não deve ser validada e os objectos devem ser restituídos. Naturalmente que a decisão de

validação ou restituição depende dos objectos. A simples posse ou detenção não autorizada

de alguns objectos pode constituir, por si só, facto ilícito, como sucede com determinadas

armas ou substâncias. Nestes casos, a apreensão justifica-se e deve ser mantida porque

constitui prova material directa do facto ilícito. Qualquer outro objecto que não requeira

2 Germano Marques da Silva (1993), Curso de Processo Penal, II, Verbo, Lisboa, p. 169. 3 Ibidem, p. 170.

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autorização especial, pode ser também instrumento ou resultado de um facto ilícito. Neste

caso, a apreensão só se justifica se servir a prova. Se for possível obter e preservar a prova

sem recurso à apreensão, esta não deve ser mantida. Existem múltiplas situações em que só

é possível conservar a prova mantendo o objecto apreendido. Em muitas outras, porém, a

simples inspecção, identificação e registo do objecto cumpre a finalidade probatória. A

apreensão não cuida de questões de propriedade. O objecto apreendido pode pertencer ao

suspeito ou arguido, a terceiro ou até mesmo à vítima. A apreensão não é uma sanção, mas

apenas um meio de obtenção de provas.

O artigo 178º, nº 7, do CPP tem a seguinte redacção: “Se os objectos apreendidos

forem susceptíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado e não pertencerem ao

arguido, a autoridade judiaria ordena a presença do interessado e ouve-o. A autoridade

judiciária prescinde da presença do interessado quando esta não for possível”.

Aparentemente, esta disposição admite que uma apreensão possa justificar-se e ser

validada independentemente da sua utilidade probatória, desde que os objectos apreendidos

sejam susceptíveis de ser declarados perdidos para o Estado. Não é, porém assim. A nosso

ver, e segundo as boas regras de interpretação, esta disposição não acrescenta qualquer

justificação à apreensão. A susceptibilidade de perda para o Estado é prevista como

pressuposto da audição da pessoa a quem os bens pertencem, e não como fundamento da

apreensão. Sempre que essa pessoa não for o arguido, a sua audição deve ser (pelo menos)

tentada. A finalidade desta audição é verificar se a necessidade de conservar a prova

justifica manter a apreensão ou se é viável outro meio, com menor sacrifício do direito de

propriedade. A contrario, se a pessoa a quem os objectos apreendidos pertencem for o

próprio arguido, ele não tem que ser ouvido. É apenas isto o que estabelece o artigo 178º,

nº 7. Desta norma não se pode inferir que a susceptibilidade de perda para o Estado é, por

si só, justificação suficiente para efectuar, validar e manter a apreensão.

A finalidade de garantir a execução patrimonial – seja a favor do Estado, seja a

favor de partes civis – não é justificação legal para a apreensão, nem fundamento para a

sua validação ou manutenção. A apreensão -ou a validação da mesma -que tenha sido

efectuada exclusivamente para garantir o execução de pena patrimonial (pena pecuniária

ou perda de objectos) ou para garantir o ressarcimento de lesados é ilegal e passível de

impugnação, devendo ser revogada, oficiosamente ou a requerimento. Com efeito, a

finalidade de garantia patrimonial não é servida pelas medidas de apreensão, mas por

outras medidas especialmente previstas para o efeito pelo CPP, designadamente a caução

económica (227º) e o arresto preventivo (228º). A caução económica é independente e

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acumulável com a medida de apreensão, porque as suas finalidades não se confundem. Se

necessário, a apreensão pode ser convertida em arresto preventivo (286º, nº 3). Se a

apreensão pudesse ser mantida apenas com a finalidade de garantia patrimonial, sem se

proceder ao arresto preventivo, então este último seria uma figura supérflua no CPP, o que

não se pode admitir. De resto, a manutenção de uma apreensão sem finalidade probatória

contraria directamente o disposto no artigo 186º, nº 1, do CPP: “logo que se tornar

desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os objectos apreendidos são

restituídos a quem de direito”. A manutenção da apreensão para qualquer outro efeito é,

por conseguinte ilegal.

Este mesmo regime já resultava do CPP de 1929, cujo artigo 208º estabelecia: “Os

papéis e objectos que não forem necessários à instrução da causa não poderão ser

apreendidos, e, se posteriormente se reconhecer que o não deviam ter sido, serão

imediatamente restituídos a quem de direito” 4. Ou seja, a finalidade probatória é essencial

quer para a justificação prévia do acto de apreensão, quer para a sua validação e

manutenção. Os códigos novo e velho coincidem em dois aspectos essenciais:

(i) a apreensão tem que ser necessária, e não apenas útil ou conveniente, o que

significa, sendo possível obter ou conservar a prova por outro meio, a apreensão deve ser

evitada ou revogada;

(ii) verificando-se a “desnecessidade” para a prova, a apreensão deve ser revogada

(“imediatamente”, dizia o CPP de 1929, e “logo”, diz o CPP em vigor) 5.

Esgotada a finalidade probatória, a privação de propriedade só pode manter-se por

arresto preventivo ou por declaração de perda a favor do Estado, nos termos legais. Para

além da finalidade, existem outra diferença essencial entre a apreensão e o arresto. A

apreensão pode ser ordenada por autoridade judiciária (designação que abrange o juiz, o

juiz de instrução e o Ministério Público -artigo 1º, nº 1, alínea b)) 6. Pode, em caso de

urgência, ser efectuada por órgão de polícia criminal (178º, nº 4, e 249º, nº 2, alínea c)) 7.

Quando efectuada por órgão de polícia criminal (com ou sem mandado prévio), tem que

4 No mesmo sentido, já o artigo 905º da antecedente “Novíssima Reforma Judiciária” relacionando a medida de apreensão com o “descobrimento da verdade”. 5 Sobre o regime do CPP de 1929, V., Manuel Cavaleiro de Ferreira (1956), Curso de Processo Penal, II; reimpressão da Univ. Católica, 1981, p. 377: “o fim que legitima a apreensão é a necessidade dos objectos apreendidos para a instrução”. 6 Relativamente a alguns objectos específicos, como a correspondência, o CPP reserva a competência para autorizar a apreensão ao juíza de instrução (269º, nº 1, alínea a)). 7 Quando a apreensão é efectuada durante busca domiciliária, é necessária autorização prévia para a busca, autorização esta que é da competência exclusiva do juiz de instrução (269º, nº 1, alínea a)). Porém, em caso de urgência, os órgãos de polícia criminal que efectuam a busca podem proceder a apreensões mesmo que o mandado as não preveja. A competência para ordenar busca não domiciliária é, salvo casos especiais, do Ministério Público e pode ser delegada nos órgãos de polícia criminal (270º, nº 2, alínea c))

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ser validada por autoridade judiciária judiciária no prazo de setenta e duas horas (178º, nº

5). Na falta de disposição expressa que reserve a competência para ordenar, autorizar ou

validar a apreensão ao juiz de instrução (como sucede, por exemplo, com as apreensões de

correspondência), essa competência pode ser exercida pelo Ministério Público (267º). Para

o arresto, o regime é diferente: embora a iniciativa tenha que partir do Ministério Público

ou do lesado, o arresto só pode ser decretado pelo juiz e “nos termos da lei civil” (228º, nº

1).

A prática judiciária nem sempre segue esta doutrina. Embora sem suporte

estatístico, é possível afirmar que se efectuam, validam e mantêm apreensões mesmo

quando a finalidade probatória já não existe ou quando pode ser substituída por meios não

privativos de propriedade (exame, identificação, registo, fotografia, obrigação de

apresentação, etc.). Ainda existe a ideia de que a apreensão se justifica só pela prevenção,

mesmo quando a finalidade probatória já está assegurada ou pode sê-lo por outros meios.

A apreensão serve frequentemente finalidades de garantia patrimonial, o que constitui uma

prática manifestamente contra legem. O uso excessivo da apreensão prejudica

desnecessariamente o direito de propriedade, é susceptível de fazer incorrer o Estado em

responsabilidade civil e gera prejuízos para o Estado, inerentes à guarda dos objectos

apreendidos.

3. Não se prova para apreender, apreende-se para provar.

Eficácia da investigação e proporcionalidade da apreensão.

No que toca aos objectos que podem ser apreendidos, o artigo 178º, nº 1, confere às

autoridades uma grande latitude: podem ser apreendidos não só todos os objectos que

foram instrumento ou resultado de um crime, mas também quaisquer outros “susceptíveis

de servir a prova”. A “escolha” dos objectos, a sua determinação ou identificação, não tem

que ser feita no despacho que ordena a apreensão. A “escolha” pode ser uma decisão dos

agentes de polícia que efectuam a apreensão, determinada pela situação que encontram no

local. Mesmo que o mandado de apreensão especifique objectos determinados, os agentes

policiais não estão limitados por essa especificação. Podem apreender quaisquer outros

objectos sempre que se lhes afigure que foram ou estão para ser instrumentos de prática de

um crime, resultado de um crime. No limite, a apreensão pode mesmo ser feita sem

mandado, “quando haja urgência ou perigo na demora” (179º, nº 4, e 248º, nº 2, alínea

c)). A escolha dos objectos a apreender também não está limitada aos que se encontram

referenciados em qualquer notícia de crime ou auto de inquérito. A apreensão é um “acto

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policial” justificado pela necessidade de obter provas e conservá-las, finalidade que se

sobrepõe a questões de propriedade. Em síntese, podemos dizer que a apreensão precede a

prova. Não se prova para apreender – apreende-se para provar.

A razão desta grande latitude na “escolha” dos objectos é a eficácia da investigação.

O mandado de apreensão pode designar e especificar objectos concretos, mas também

pode incluir expressões genéricas como “apreender todos os objectos que possam ser úteis

para a investigação”. A necessidade de garantir a eficácia da investigação não pode

prejudicar a legalidade formal dos actos (mandado, execução, validação). Mas as regras

formais não são a única limitação. Do ponto de vista da legalidade material, a apreensão

tem que ter fundamento legal e deve obedecer aos princípios de adequação e

proporcionalidade. O facto de ser ordenada busca e apreensão na casa de um cidadão

(arguido ou não), com mandado genérico, não justifica, por si só, que se apreendam todos

os objectos encontrados na posse ou detenção do visado. Nesta primeira etapa da

apreensão, não basta a mera legalidade formal dos actos de autoridade judiciária (mandado,

validação) ou do órgão de polícia (no caso da apreensão cautelar prevista nos artigos 178º,

nº 4 e 249, nº 2, alínea c)). A apreensão não é o único meio de obtenção e conservação de

provas, pelo que deve também ser ordenada e efectuada com adequação e

proporcionalidade. Não basta uma suspeita ténue, vaga e abstracta de que os objectos

encontrados podem vir a ter alguma relação com um crime.

Na nossa prática policial e judiciária ainda se abusa da apreensão. Como dissemos,

a finalidade probatória e a eficácia da investigação não estão limitadas a uma “pesca à

linha”, mas também não se justifica uma “pesca de arrasto” com malha curta, em que se

apreende tudo quanto se encontra… O juízo de adequação e proporcionalidade deve estar

presente quer em “actos de polícia”, quer em actos processuais (mandado, validação,

modificação). As apreensões desproporcionadas geram frequentemente situações em que a

privação de propriedade excede largamente o necessário. Apesar de só se aproveitarem

alguns objectos como prova para a acusação, muitos outros permanecem apreendidos até à

sentença final e mesmo para além dela. A investigação criminal deixa frequentemente um

“lastro” de objectos inúteis para o processo que se acumulam e deterioram para prejuízo de

todos, agravando o problema a que alguns já chamaram “a sucata da justiça” 8.

8 V. as referências em http://rprecision.blogspot.com/2005/03/sucata-da-justia.html e http://incursoes.blogspot.com/2005/03/sucata-da-justia.html.

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4. A apreensão não tem que durar até à sentença

A apreensão de um objecto é uma medida privativa do direito de propriedade,

encarando este numa acepção genérica. O acto de apreensão priva o proprietário, possuidor

ou detentor dos direitos inerentes, designadamente uso, fruição, disposição, exercício do

comércio, etc.. Sendo o direito de propriedade um direito fundamental reconhecido pela

Constituição (artigo 62º), a sua limitação tem que se confinar às condições previstas na lei.

Mais do que a mera interpretação e aplicação de meras regras específicas do processo

penal, estamos perante situações em que os procedimentos processuais têm que ser

conformes com o direito substantivo, designadamente o direito fundamental da

propriedade. A limitação do direito de propriedade deve circunscrever-se ao necessário

para assegurar as finalidades previstas na lei. Esta limitação está longe de ter definição

fácil.

O artigo 178º nº 6 do CPP confere aos titulares de bens ou direitos objecto de

apreensão o direito de requerer a modificação ou revogação da medida. Esta disposição

prevê um incidente específico. Se o requerimento ocorrer durante a fase do inquérito, o

incidente correrá em separado (178º, nº 6, parte final, e 68º, nº 5). O requerente poderá ser

o próprio arguido ou terceiro. O requerimento pode ser apresentado antes ou depois da

validação da apreensão pela autoridade judiciária. Tanto se pode tratar de uma reacção

contra uma apreensão ilegal (por falta de validação no prazo de setenta e duas horas), como

de uma reacção contra uma apreensão que já foi validada. Cabe ao requerente expor e

provar os motivos pelos quais entende que a medida deverá ser modificada ou revogada. O

artigo 178º, nº 6, indica que o requerimento deve ser dirigido ao juiz de instrução. Porém,

não existe qualquer razão para que o requerimento não possa ser apresentado após o

encerramento da instrução, e nesse caso deve ser dirigido ao juiz da causa.

A decisão pode, em qualquer dos casos, ser uma de três: (i) manter a medida, (ii)

revogar a medida e ordenar a restituição, ou ainda (iii) modificar a medida (reduzindo-a ou

convertendo-a em medida de garantia patrimonial). Isto significa que o requerimento não

tem que necessariamente pôr em causa a legalidade formal da medida de apreensão. Para

que os objectos – ou alguns deles – possam ser restituídos, basta que o juiz reconheça que

relativamente a esses objectos já não se verificam condições que justifiquem a apreensão,

nem se verificam os pressupostos legais de medida de garantia patrimonial.

Tomando como premissa que as limitações ao direito de propriedade são sempre

medidas de excepção (princípio constitucional), a decisão de restituição dos objectos

apreendidos não deve esperar pela sentença. A decisão é passível de ser tomada a todo o

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tempo, a requerimento do interessado ou oficiosamente. É o que determina o artigo 186º,

nº 1: “logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os

objectos apreendidos são restituídos a quem de direito”.

Ao contrário do que sucede com as medidas privativas de liberdade mais gravosas,

que têm que ser oficiosamente revistas de três em três meses (213º), o CPP não estabelece

a revisão periódica das medidas de privação da propriedade. Porém, oficiosamente ou a

requerimento, e a todo o momento, deve o juiz modificar ou revogar as medidas de

apreensão ou convertê-las em arresto preventivo.

5. A necessidade de rever ou reexaminar as medidas privativas de propriedade

Numa apreensão, o arguido-proprietário pode ser privado de múltiplos objectos. A

investigação culmina com uma decisão instrutória que imputa crimes ao arguido, de forma

determinada. Regra geral, sempre que um despacho de acusação procede ao arquivamento

parcial de um inquérito, determina expressamente o procedimento de restituição dos

objectos cuja apreensão deixou de se justificar. Por exemplo, quando o arguido é suspeito

de posse de substância ou arma proibida e a autoridade judiciária verifica que a substância

ou arma apreendida não é proibida (ou que existe habilitação pessoal para a deter). Porém,

e tanto quanto a experiência nos permite afirmar, as decisões instrutórias não são, em

regra, precedidas de um reexame completo das medidas de apreensão, confrontando o que

vai ser carreado para a acusação/pronúncia com a lista de todos objectos apreendidos.

Apenas se revê a apreensão de objectos determinados, sem mencionar outros objectos

apreendidos. A lei estabelece os conteúdos obrigatórios da acusação (283º, nº 3) e do

despacho de pronúncia (308º, nº 2) e entre eles a indicação das provas. Porém, esse elenco

de conteúdos obrigatórios não inclui a revisão das medidas de apreensão na parte que diz

respeito aos objectos que não servem de prova. A decisão quanto aos objectos apreendidos

– designadamente aqueles que não têm qualquer relação com os crimes imputados na

acusação/pronúncia -“sobra” para a fase subsequente do processo. A acusação e a

pronúncia formulam quase sempre o entendimento da autoridade judiciária quanto a

medidas de coacção, mas não é hábito procederem de igual modo quanto às medidas de

apreensão. Na prática, e a menos que o interessado suscite a questão requerendo nos

termos do artigo 178º, nº 6, o destino final dos objectos aguardará pela sentença ou mesmo

para depois da mesma! Este resultado pode ser considerado excessivo, na medida em que é

susceptível de envolver a permanência da apreensão por tempos injustificados, sem

qualquer utilidade para a prova, prevenção e sanção penal, com prejuízo desnecessário para

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o proprietário e até com prejuízo para o Estado, que guarda objectos para além do

necessário.

De jure condito, não pode deixar de se entender que o acto de validação da medida

de apreensão por autoridade judiciária previsto no artigo 178º, nº 5 do CPP envolve uma

avaliação de legalidade, adequação e proporcionalidade, da qual resulte uma relação

mínima entre os objectos apreendidos e a matéria em investigação. A validação não pode

ser um mero acto pro forma, como frequentemente sucede. Por outro lado, a competência

para ordenar e validar apreensões inclui também o poder-dever de reexaminar os

pressupostos da medida de apreensão. O CPP não estabelece um reexame periódico, mas

dá urgência à restituição “logo que” já não há utilidade probatória.

De jure condendo, será de ponderar, em futura revisão das disposições legais, um

mecanismo ou procedimento de revisão ou reexame das medidas de apreensão relativas a

todos os objectos apreendidos, antes da decisão instrutória, independentemente de

requerimento dos interessados. Mas mesmo sem esse comando legal expresso, nada

impede, e seria mesmo recomendável, que as autoridades judiciárias adoptassem tal

procedimento.

6. Quando uma apreensão que sobra para vários processos

A articulação das regras relativas a prazos processuais com as regras relativas à

conexão de processos gera situações complexas em matéria de medidas de apreensão.

Havendo pluralidade de crimes, e verificando-se a ocorrência de uma das causas de

conexão previstas no artigo 24º, nº 1, do CPP, bem como a simultaneidade das respectivas

fases processuais (artigo 24º, nº2), a conexão é possível e pode mesmo ser a forma mais

adequada de “aproveitar” a prova que, de outro modo, teria que ser repetida em vários

processos. A conexão pode, no entanto, ter como efeito sujeitar alguns arguidos a um

processo mais longo do que ocorreria em processos separados. Por exemplo, um mesmo

processo pode envolver vários arguidos acusados de múltiplos crimes de furto e roubo,

juntamente com um arguido acusado de receptação de alguns objectos. Nestes casos, é

evidente a “economia processual”, mas também é evidente que o arguido acusado de

receptação não beneficia dessa “economia”, antes pelo contrário: aguardará por um

julgamento mais longo e complexo, e a apreensão dos objectos que supostamente adquiriu

manter-se-á por muito mais tempo. O arguido em questão poderá requerer a “separação de

processos” nos termos do artigo 30º do CPP. Porém, a separação de processos não resolve

necessariamente o problema da apreensão. Imaginemos que o crime de recepção é julgado

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em processo separado, que conclui pela absolvição do arguido (adquirente de boa fé e não

receptador). A consequência normal desta sentença é a restituição dos objectos apreendidos

ao arguido. No entanto, se esses objectos continuarem a servir de prova para o processo

inicial (furto e/ou roubo), o seu legítimo proprietário poderá continuar privado da sua

propriedade.

Situações similares ocorrem quando a separação de processos resulta de decisão

oficiosa. Os prazos de prisão preventiva sobrepõem-se às circunstâncias da investigação.

Havendo arguidos presos e aproximando-se o fim do prazo de prisão preventiva, a

autoridade judiciária opta pela separação: a matéria investigada que considera suficiente dá

origem a uma acusação; a matéria investigada que é considerada insuficiente para

acusação, mas suficiente para mão encerrar o inquérito, continua em processo autónomo.

Por exemplo: um arguido é suspeito de roubo, sendo-lhe aplicada medida de apreensão de

vários objectos e medida de coacção de prisão preventiva (ou permanência na habitação

com vigilância electrónica); o inquérito é encerrado com a acusação relativa a apenas

alguns dos objectos apreendidos; porém, prosseguem outro(s) inquérito(s) em separado, no

mesmo ou noutro tribunal. Em casos como este, a autoridade judiciária manda extrair

certidão do que for relevante para outro(s) inquérito(s).”Sobra” a questão dos objectos

apreendidos que não têm qualquer relação (prova, instrumento, resultado) com os crimes

especificados na acusação. Se a autoridade judiciária nada determinar quanto a esses

objectos, eles permanecerão apreendidos,

o que gera problemas vários. Desde logo, prolonga-se a privação de propriedade sem

“culpa formada”, o que suscita a questão de saber quais são os limites temporais da medida

de apreensão. Por outro lado, coloca-se a questão da competência para modificar ou

revogar a medida de apreensão. Pode o juiz da causa no processo cujo inquérito/instrução

foi encerrado/a, decidir sobre os objectos apreendidos que não são referenciados na

acusação/pronúncia? Pode a autoridade judiciária no(s) processo(s) separado(s) rever ou

modificar a apreensão dos objectos que permanecem apreendidos? A quem deve o

interessado requerer a modificação ou revogação da medida, nos termos do artigo 178º, nº

6)?

Estes problemas podem ser evitados se a autoridade judiciária ou o juiz da causa,

proceder oficiosamente à revisão da medida de apreensão relativamente a todos os

objectos. Porém, tal não sucede na prática processual. Nos casos em que os inquéritos se

separam, a autoridade judiciária que encerra um inquérito não revê as medidas de

apreensão. Nada diz quanto aos objectos não relacionados na acusação, porque a

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investigação sobre eles prossegue noutro(s) inquéritos. O juiz da causa, por seu turno,

sabendo que há outros inquéritos a decorrer, não procede oficiosamente à revisão da

medida de apreensão. Nenhuma das autoridades exerce a sua competência e nenhuma delas

se declara incompetente. Os objectos continuam “esquecidos”. A menos que o interessado

tome a iniciativa – e por vezes mesmo quando a toma -, o destino desses objectos

continuará a aguardar pela conclusão de todos os processos. Infelizmente, são frequentes

os casos em que os danos causados pela manutenção indevida da apreensão superam

largamente os danos causados pelo crime! O objecto furtado e apreendido, perfeitamente

identificado pela polícia, pelo tribunal e até pelo seu legítimo proprietário, fica mais tempo

na posse do Estado do que na posse do Arguido…

Este efeito pode ser evitado se a separação de processos envolver a revisão das

medidas de apreensão. A autoridade judiciária que acusa (inquérito A) deve manter (ou

não) a apreensão dos objectos relacionados na acusação e remeter a decisão sobre os

demais objectos apreendidos para a autoridade judiciária que tiver a seu cargo qualquer

outro inquérito (inquérito B). Deste modo, a competência para rever a medida de apreensão

dos demais objectos não “sobra” para o juiz da causa do inquérito A. Por seu turno, a

autoridade judiciária que tiver a seu cargo o inquérito B deve igualmente rever a medida de

apreensão. Por outras palavras: (a) os objectos apreendidos devem estar sempre

relacionados com um processo; (b) a relação entre um objecto apreendido e o processo

respectivo dever ser clara a todo o qualquer momento; (c) as situações de relação do

mesmo objecto com dois ou mais processos devem reduzir-se ao mínimo inevitável, de

forma a evitar conflitos de competência, positivos ou negativos; e (d), se necessário, uma

autoridade judiciária pode revogar uma medida mas condicionar a restituição à decisão da

autoridade judiciária que tiver a seu cargo outro processo.

Nesta matéria, a nossa legislação processual encontra-se naquela situação peculiar

em que nem impede que se adoptem os procedimentos acima descritos, nem os estabelece

de forma normativamente expressa e clara. Existe apenas a obrigação legal de rever a

apreensão logo que deixar de se justificar (artigo 186º, nº 1). Em nossa opinião, estando em

causa o direito fundamental da propriedade, a revisão de medidas privativas não deveria

estar dependente da iniciativa oficiosa (sem prazo expresso) da autoridade judiciária/juiz

da causa ou da iniciativa do interessado. Porém, a nossa lei continua ténue e frágil no que

toca à garantia do direito fundamental de propriedade. Os termos expressos na lei

permitem um desequilíbrio desnecessário entre o direito fundamental da propriedade e as

finalidades e eficácia do processo penal. O equilíbrio não resulta automaticamente da lei,

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exigindo o critério das autoridades judiciárias. O CPP não estabelece “rituais” de reexame

das medidas de privação de propriedade (periódicos ou em determinadas circunstâncias,

designadamente a separação de processos). Resta verificar se o regime dos prazos

processuais ajuda a resolver o problema.

7. Os prazos processuais não ajudam

O direito fundamental da propriedade impõe que as medidas privativas estejam

sujeitas à lei e não possam perdurar indefinidamente sem decisão definitiva. No capítulo

relativo às apreensões (artigos 178º a 186º) não são estabelecidos prazos máximos para a

duração da apreensão. Nos termos do artigo 186º, nº 2, os objectos apreendidos que não

tenham sido declarados pedidos a favor do Estado, são restituídos logo que a sentença

transitar em julgado. A restituição ocorrerá depois do depósito da sentença na secretaria, da

conclusão do prazo para o trânsito em julgado e, finalmente, do tempo que durar o

procedimento de restituição. Na prática, não há limite temporal máximo para a apreensão!

A duração do inquérito está sujeita a um prazo, conforme o artigo 276º, que decorre

entre a constituição de arguido e a decisão de encerramento (acusação ou arquivamento).

Porém, o prazo que resultar do artigo 276º não é peremptório 9. O esgotamento do prazo

não determina o arquivamento, podendo apenas dar lugar ao incidente de aceleração

processual (artigos 108º a 110º e 276º, nº 4). Isto significa que a condição de arguido, sem

acesso ao processo, se pode prolongar indefinidamente, até ao limite da prescrição do

procedimento penal (118º a 121º do Código Penal). O mesmo se aplica, mutatis mutandis,

ao prazo da duração da instrução (306º). Logo, os prazos do inquérito e da instrução não

têm consequências práticas e directas na duração das medidas de apreensão.

Faz sentido aludir aos prazos das medidas de coacção, dado o paralelismo entre

medidas privativas de liberdade e medidas privativas de propriedade. O CPP estabelece

prazos máximos para as medidas privativas de liberdade (artigos 215º a 218º). São

estabelecidos dois grupos de prazos:

(a) prazos mais curtos para a prisão preventiva (215º), para a obrigação de

permanência na habitação (218º,nº 2) e para a proibição de permanência, ausência ou

contactos (218º, nº 3);

(b) o dobro desses prazos para as medidas de obrigação de apresentação periódica e

suspensão do exercício de funções (218º, nº1).

9 Neste sentido, Germano Marques da Silva (1994), Curso de Processo Penal, III, Verbo, Lisboa, p. 86.

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As medidas de termo de identidade e residência e de caução não têm prazo de

duração específico, valendo apenas as regras gerais de legalidade (191º e 192º), adequação

e proporcionalidade (193º), as regras processuais de reexame, revogação ou substituição

(211º) ou extinção (214º), bem como, no limite, o prazo de prescrição do procedimento

criminal. O artigo 213º estabelece o reexame dos pressupostos da prisão preventiva de três

em três meses. Faz sentido que tal reexame periódico ocorra também para as medidas

privativas da liberdade que têm prazos idênticos. Assim, por exemplo, a medida de

permanência na habitação com vigilância electrónica está também sujeita a reexame de três

em três meses (artigo 7º do Decreto-Lei nº 122/99, de 20 de Agosto). Quanto à medida de

proibição de permanência, ausência ou contactos, que está sujeita aos mesmos prazos, não

se encontra na lei disposição expressa que determine o reexame periódico. As decisões que

aplicarem medidas de coacção são susceptíveis de recurso (219º), necessariamente

motivado, o qual sobe imediatamente e em separado. A prisão preventiva pode ainda ser

impugnada por petição de habeas corpus (devendo entender-se que a possibilidade de

recurso não invalida a providência de habeas corpus).

Apesar do paralelismo entre privação da liberdade e privação da propriedade, não

existe base sólida para estabelecer uma analogia entre os regimes de prazos e reexame de

ambas. Isto significa que as medidas privativas de propriedade (apreensão) não têm prazos

de duração, nem de reexame. A privação de propriedade pode perdurar ao longo de todo o

processo, sem haver lugar a qualquer reexame dos seus pressupostos da medida. Assim,

podem gerar-se múltiplas situações de lesão do direito de propriedade, de agravamento da

despesa pública e de eventual responsabilidade civil do Estado.

8. Perda para o Estado sem crime nem condenação

Em regra a declaração de perda dos objectos apreendidos para o Estado só pode

constar de decisão final, isto é, de sentença. Porém, o CPP admite uma excepção. O artigo

268º, nº 1, alínea e), confere ao juiz de instrução competência exclusiva para emitir essa

declaração “quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos

termos dos artigos 277º, 280º e 282º”. Esta possibilidade ajusta-se, aliás, ao regime do

artigo 109º, nº 2, do CP, que expressamente prevê a perda a favor do Estado “ainda que

nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto”. Todavia, e porque se trata de

uma medida privativa de propriedade com carácter definitivo (se bem que recorrível),

importa analisar os casos em que pode ocorrer.

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CARLOS DA SILVA CAMPOS APREENSÃO E PROPRIEDADE : 17

O artigo 277º prevê o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público nos casos

em que se obteve prova bastante da não ocorrência de crime ou em que não se recolheram

indícios suficientes para o prosseguimento do processo. a decisão de arquivamento põe fim

ao processo (sem prejuízo da reabertura nos termos dos artigos 278º e 279º).

O artigo 280º prevê o arquivamento do processo no caso de se verificarem os

pressupostos da dispensa da pena. A decisão de arquivamento pode ocorrer quer na fase do

inquérito – e neste caso a decisão do Ministério Público carece da concordância do juiz de

instrução – quer na fase de instrução – e neste caso a decisão pertence ao juiz de instrução

mas requer a concordância do Ministério Público e do arguido 10. Em qualquer dos casos, a

decisão de arquivamento não é impugnável.

O artigo 282º refere-se ao arquivamento do processo na sequência da suspensão

provisória do processo e da constatação do cumprimento pelo arguido das injunções e

regras de conduta estabelecidas ao abrigo do artigo 281º. A suspensão, bem como a

decisão de arquivamento, tanto podem ocorrer no inquérito como na instrução. A

suspensão é da iniciativa do Ministério Público e requer a concordância do juiz de

instrução. Para o encerramento basta a decisão do Ministério Público. A suspensão

provisória não é impugnável e o encerramento é definitivo.

Constata-se, por conseguinte, que a declaração de perda de objectos a favor do

Estado pode constar de decisão que não é sentença, mas pressupõe sempre uma decisão

que, tendencialmente, põe fim ao processo. Todavia, o teor literal do artigo 268º, nº 1,

alínea e) suscita dúvidas várias, que importa esclarecer.

Primeira questão: a decisão que declara a perda é uma decisão autónoma ou é parte

integrante da decisão que põe fim ao processo? A nosso ver, trata-se de decisões

totalmente autónomas, tanto mais que a decisão de arquivamento cabe em regra ao

Ministério Público, como vimos. Tendo em conta o nº 2 do artigo 268º, a declaração de

perda não pode ser proferida oficiosamente pelo juiz de instrução. Mesmo que a decisão

que declara a perda conste do mesmo acto ou documento em que o juiz de instrução

formaliza a sua concordância com o encerramento, as duas decisões não se confundem.

Consequentemente, ainda que a decisão de arquivamento seja definitiva e inimpugnável, a

decisão que declara a perda é impugnável.

Segunda questão: a declaração de perda para o Estado pode ser proferida apenas na

fase do inquérito ou também na fase de instrução? Tendo em conta a letra do artigo 268, nº

10 Neste último caso, a decisão de arquivamento do processo é irrecorrível. A irrecorribilidade só afecta os assistentes e partes civis.

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1, alínea e), apenas é admissível a declaração de perda na fase do inquérito.

Terceira questão: qual a justificação exigida para a declaração de perda de objectos

a favor do Estado? Aparentemente, basta uma justificação sumária, já que a decisão é

tomada no prazo de vinte e quatro horas (na letra da lei), podendo mesmo ser dispensada a

apresentação dos autos (268º, nº 4). Todavia, tratando-se inequivocamente de um acto

decisório, terá sempre que ser fundamentado “devendo ser especificados os motivos de

facto e de direito” (97º, nº 4). Não havendo lugar a acusação, a fundamentação da medida

terá que se ajustar ao disposto no artigo 109º do CP: não basta que o objecto tenha sido

instrumento ou resultado de um crime; é também necessário que a perda seja, pela natureza

dos objectos ou pelas circunstâncias do caso, necessária para garantir a segurança das

pessoas, a ordem ou a moral públicas perda ou para evitar o cometimento de novos factos

ilícitos típicos. Como é evidente, não há fundamento para declarar a perda a favor do

Estado de objectos apreendidos ao arguido se o arquivamento do inquérito é determinado

pela existência de “prova bastante de se não ter verificado crime” ou “de o arguido não o

ter praticado a qualquer título” (277º, nº 1).

Em rigor, a perda antes de qualquer acusação só é admitida em condições muito

limitadas. Tratando-se de medida privativa de propriedade, tendencialmente definitiva

(embora impugnável), não pode deixar de ser assim.

9. A sinistralidade dos automóveis apreendidos

Embora tivéssemos “prometido” não desenvolver considerações sobre regimes

específicos, não pode deixar de se aludir a uma figura específica criada para os veículos

automóveis apreendidos em processo penal e susceptíveis de serem declarados perdidos a

favor do Estado. O artigo 10º da Lei nº 25/81 de 21 de Agosto, inaugurou duas “figuras”:

(i) a “afectação” ao parque automóvel do Estado, por despacho do juiz do processo,

decorridos seis meses desde a apreensão sem ter havido sentença, (ii) a venda pela então

Direcção dos Serviços de Gestão dos Veículos do Estado. O proprietário ou possuidor do

veículo poderia obstar à afectação ou à venda, prestando caução, ficando, todavia como fiel

depositário. Estas normas só não constituíam um confisco grosseiro e cabal porque o artigo

13º da mesma lei previa, caso o veículo não viesse a ser declarado perdido para o Estado 11,

a entrega ao lesado do produto da venda acrescido eventualmente de indemnização.

11 Situação caricata criada pelo legislador, ao admitir que a sentença não declara a perda para o Estado de um veículo de que o Estado já se apossou, e que em caso algum volta a ser entregue ao proprietário e possuidor…

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De constitucionalidade duvidosa, estas normas vigoraram até 1985, ano em que o

legislador constatou o fracasso das normas anteriores (por não terem diminuído o problema

da acumulação e deterioração dos veículos apreendidos). Foi então publicado o Decreto-

Lei no 31/85, de 25 de Janeiro, em cujo preâmbulo se pode ler esta declaração espantosa:

“Esse objectivo não foi alcançado, além do mais em virtude da necessidade de despacho

judicial que se tornava indispensável para se iniciar tal utilização”. A culpa do insucesso

estava – disse o legislador – na intervenção necessária de um juiz. O novo regime passou

então a ser o seguinte: (i) decorridos 90 dias a contar da apreensão, o Ministério Público

deve proceder a exame e avaliação sumária do veículo e comunicar as características e

localização do mesmo à Direcção-Geral do Património do Estado; (ii) a comunicação só

tem que ser precedida de despacho do juiz de instrução se o processo estiver em fase de

instrução (“instrução preparatória”); (ii) feita a comunicação, o veículo fica

automaticamente “à disposição” da DGPE, que decidirá se o vai afectar ao parque

automóvel do Estado, se o vai desmantelar para integração num “banco de componentes”

ou se o vai vender; (iii) o proprietário ou legítimo possuidor do veículo é informado,

podendo requerer ao juiz de instrução (ou à autoridade administrativa em processos de

contra-ordenação) uma decisão – provisória -sobre a susceptibilidade de perda para o

Estado -porém, tal iniciativa do proprietário não suspende a afectação; (iv) caso a decisão

seja no sentido da insusceptibilidade, há lugar à restituição, também provisória e sujeita à

obrigação de apresentação; (v) quando a decisão final (sentença) não declarar a perda para

o Estado, pode ser ordenada a restituição, acrescida da desvalorização causada pela

utilização pelo Estado, deduzida de benfeitorias, carecendo o valor de homologação pelo

Ministro das Finanças e do Plano por proposta do DGPE e podendo o interessado recorrer

da decisão de homologação para os tribunais comuns; (vi) caso o veículo tenha sido

vendido, o interessado receberá o produto da venda, acrescido de indemnização por

responsabilidade do Estado; (vii) “em qualquer caso, os proprietários dos veículos cuja

restituição seja ordenada pagarão as despesas de remoção, taxas de recolha, multas e

demais encargos não relacionados com a utilização da viatura pelo Estado…”.

Dificilmente se poderia ter legislado pior nesta matéria. Uma apreensão baseada em

meros indícios e que deveria servir essencialmente para servir a prova, é convertida numa

antecipação da medida punitiva de perda a favor do Estado, de forma automática e sem

decisão judicial prévia. Nem sequer se prevê, no caso de a sentença não vir a declarar a

perda, que o lesado possa optar entre a restituição e a justa indemnização. As condições

patrimoniais da restituição e da indemnização são burocratizadas, empurrando para o

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lesado o ónus da via judicial, dando início a novo calvário que provavelmente culminará na

inutilidade de uma lide com custos provavelmente superiores aos da causa. Todos os

envolvidos perdem num processo que supera em surrealismo o de Kafka. Mobilizam-se

mais tribunais, mais secretarias, pelo menos uma Direcção-Geral (para além de outras

entidades estatais que estiverem a usar o veículo), e até o Ministro das Finanças, que

passou a ser o “avaliador-mor” de carros usados. Cria-se um incidente autónomo para

decidir (provisoriamente…!) sobre uma susceptibilidade (!!!). Se se fizer uso de todos os

procedimentos previstos neste Decreto-Lei, é provável que a delapidação dos dinheiros

públicos supere os prejuízos que o legislador se propôs evitar.

A ineficiência administrativa é, todavia, o menor dos defeitos deste Decreto-Lei.

No que diz respeito a veículos apreendidos e não declarados perdidos a favor do Estado,

ele configura uma violação grosseira do direito de propriedade, para além dos limites

constitucionais. Os meios de defesa do proprietário são praticamente inexistentes e

ineficazes, e os meios de reparação são complicados ao máximo, inviabilizando a justiça

da reparação. A justa indemnização só o é se for concretizada em tempo útil. Se tivermos

em conta que o arguido a quem o veículo é apreendido pode vir a ser totalmente absolvido,

ou que o proprietário do veículo pode não ser arguido, mas “terceiro” ou mesmo vítima,

então o confisco torna-se ainda mais arrepiante. O confisco pode ser mais grave, quer em

valor patrimonial quer em (des)valor ético-penal, que o próprio crime a que o veículo está

ligado. Por causa de um furto ou roubo que privou o proprietário do seu automóvel durante

alguns meses, a “nossa” lei permite que a privação possa prolongar-se durante anos, por

causa do cumprimento dos procedimentos legais! O pouco respeito da lei pelo direito de

propriedade amplifica os efeitos patrimoniais dos crimes.

Doze anos depois da entrada em vigor, o Decreto-Lei 31/85, foi alterado pelo

Decreto-Lei 26/97, de 23 de Janeiro, sem afectar a substância do regime. Mesmo que não

se discuta a

o mérito das opções políticas adoptadas (pôr o Estado a servir-se de bens apreendidos a

título “provisório”; pôr o Estado a desmantelar veículos e a criar “bancos de componentes”

para “canibalizar” veículos que ainda não são seus; pôr o Ministro das Finanças a

homologar indemnizações e “benfeitorias”, etc.), há que reconhecer a inconstitucionalidade

deste regime.

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10. A sentença não deve esquecer a restituição

A sentença deve obrigatoriamente incluir a “indicação do destino a dar a coisas ou

objectos relacionados com o crime” (374º, nº 3, alínea c). A falta desta indicação não

acarreta a nulidade da sentença (379º, nº 1, a), a contrario), mas é fundamento para a

correcção da sentença (380º). Em sentido estrito, “relacionados com o crime” são apenas

os objectos que tiverem sido resultado ou instrumento do crime provado e julgado. A

sentença pode limitar-se a esse sentido estrito. Por exemplo, a sentença condenatória

determina a perda a favor do Estado dos objectos apreendidos que, conforme a prova

produzida, foram resultado de crime de furto ou receptação. Todavia, pode haver uma

grande diferença entre os “objectos relacionados com o crime” e os “objectos

apreendidos”. A sentença pode ser omissa quando a outros objectos que ainda se

encontram apreendidos mas que não constam da acusação/pronúncia, nem serviram de

prova no processo. O “silêncio” da sentença faz com que o problema de propriedade

gerado pelo processo sobreviva a essa mesma sentença!

Segundo o artigo 186º, nº 2, “logo que transitar em julgado a sentença, os objectos

apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a

favor do Estado” (186º, nº 2). Apesar da sua aparente simplicidade, esta disposição requer

uma leitura mais atenta. Desde logo, a disposição refere-se a “objectos apreendidos”, e não

apenas aos “relacionados o crime”. Em segundo lugar, prevê-se que a restituição só ocorra

depois de a sentença transitar em julgado. Porém, não se prevê uma decisão explícita de

revogação da medida de apreensão, nem se desencadeia o procedimento de restituição.

Neste último aspecto, o legislador não foi claro na formulação. Na ausência de uma ordem

expressa de restituição, terá que ser o interessado a requerê-la (178º, nº 6). Se os objectos

apreendidos estiverem à guarda de autoridade policial, esta só procede à restituição

mediante despacho judicial expresso nesse sentido. Não basta que o interessado compareça

no local onde estão os objectos com cópia da sentença que nada diz quanto aos objectos

reclamados, com uma edição do CPP aberta no artigo 186º, nº 2, e com um calendário para

demonstrar o trânsito em julgado…

As medidas de apreensão não caducam automaticamente. São revogadas por

decisão expressa. Consequentemente, o CPP deveria incluir nos “conteúdos obrigatórios”

da sentença

a indicação expressa do destino de todos os objectos apreendidos. Porém, não é isso que

sucede: a letra do artigo 374º apenas se refere aos “objectos relacionados com o crime”e

apenas à decisão de perda a favor do Estado, e permite a omissão de qualquer ordem de

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restituição, quer de “objectos relacionados como crime” quer de outros objectos

apreendidos. Neste “pormenor”, o CPP ficou aquém do velho CPP de 1929! O artigo 450º,

§ 2º do CPP/29 era bem mais completo: “O juiz ordenará na sentença final que sejam

entregues aos ofendidos os objectos de que o réu pelo seu crime os tiver privado. Se a

restituição não puder ser feita, pagará o réu o seu valor, que será computado na

indemnização de perdas e danos. Será também ordenada a entrega a quem de direito, por

simples termo nos autos, de quaisquer objectos apreendidos e que não devam considerar-

se perdidos a favor do Estado”.

Apesar da omissão da letra da lei, nada impede que o juiz inclua na sentença tudo o

que é necessário e conveniente, com economia processual evidente e também com a

reposição mais expedita do direito de propriedade. Como vimos acima, logo após a

apreensão, e quando os objectos apreendidos não pertencerem ao arguido, a autoridade

judiciária deve, sempre que possível, ouvir o interessado (178º, nº 7). Não existe no CPP

uma norma específica que imponha o mesmo cuidado na fase de julgamento. Porém, é de

considerar para este efeito a norma geral sobre a produção da prova: “o tribunal ordena,

oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo

conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e á boa decisão da

causa” (artigo 340º, nº 1). Ao abrigo desta disposição, podem e devem ser ordenadas as

provas que se revelarem necessárias, incluindo a audição do interessado, a prova de registo

de propriedade, ou quaisquer outras 12 .

Várias circunstâncias podem impedir o destino final imediato dos objectos

apreendidos: a pendência de prazo para recurso (186º, nº 2), o arresto preventivo (186º, nº

3 e 228º) e ainda a relação entre os objectos apreendidos e outro processo em curso.

Porém, a impossibilidade de um destino final imediato em nada prejudica a necessidade e

conveniência de uma ordem expressa de restituição incluída na sentença. Tal como a

sentença, a execução da ordem de restituição aguardará pelo trânsito em julgado. O arresto

preventivo (sucedâneo da caução económica) impede a restituição. Quanto a outros

processos, a questão pode revelar-se bem mais complexa. Não se apreendem objectos

apreendidos, mas, como vimos acima, a medida de apreensão pode servir vários processos.

A decisão de restituição proferida num processo refere-se a esse processo e não anula a

apreensão ordenada noutro. Porém, pode ter ocorrido separação de processos em que o

processo B “aproveita” a apreensão executada e validada no processo A, sem que no

12 Neste sentido, Joel Timóteo Ramos Pereira (2006), Perdidos a Favor do Estado: e se os Bens Forem de Terceiro?, in revista “O Advogado”, IIª Série, Setembro de 2006; texto disponível em www.verbojuridico.net.

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CARLOS DA SILVA CAMPOS APREENSÃO E PROPRIEDADE : 23

processo B tenha sido tomada qualquer decisão de validação da medida de apreensão.

Frequentemente, o juiz do processo A não ordena a restituição para não interferir com o

processo B. Se for o caso de sucessivos inquéritos aos quais possa interessar um dado

conjunto de objectos apreendidos, a medida de privação da propriedade poderá prolongar-

se indefinidamente!

Como facilmente se depreende, este resultado é perfeitamente evitável se forem

adoptados, no CPP ou na prática judicial, os procedimentos que sugerimos mais acima. Se

se proceder ao reexame das medidas privativas de propriedade pelo menos antes de

encerrar, ou ao começar, uma fase processual, então à separação de processos

corresponderá também uma “separação de apreensões”. Para que num processo B se

“aproveite” a apreensão ordenada noutro (A), deverá a apreensão ser validada pelo a juiz

do processo B. Não há, obviamente, novo acto de apreensão; há nova validação, mas não

repetição de validações, porque os fundamentos da medida que serviram para o processo A

não são automática e implicitamente válidos para o processo B.

Havendo “separação de apreensões”, fica clara a relação entre os objectos

apreendidos e os processos. Em cada processo são tomadas as decisões adequadas, e com

efeitos nesse processo, sem a preocupação de beneficiar ou prejudicar outra investigação e

outro processo. A sentença pode determinar a restituição de um objecto sem que o tribunal

tenha que averiguar ou mandar averiguar se a apreensão interessa a outros processos

pendentes. Se a mesma apreensão tiver sido validada em vários processos, a ordem de

restituição que tiver sido emitida num só deles não é suficiente para que a restituição tenha

lugar. O que não se justifica é o “aproveitamento” de apreensões de uns processos para os

outros, sem juízo de validação expresso em cada um dos processos, e sem decisão expressa

de restituição.

11. A difícil restituição

Como se não bastasse a “insuficiência” do CPP em matéria de regras processuais

até se chegar à decisão de restituição, os próprios procedimentos de restituição, tal como se

encontram regulados e são praticados, constituem, a nosso ver um atropelo desnecessário

do direito constitucional de propriedade. Continua a aplicar-se o artigo 14º do Decreto nº

12 487, de 24 de Outubro de 1926: “Todos os objectos e quantias não reclamadas pelas

partes, no prazo de três meses após o trânsito em julgado das decisões finais proferidas

nos respectivos processos, prescreverão a favor da fazenda Pública e o seu produto dará

entrada na CGD”.

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24 : APREENSÃO E PROPRIEDADE VERBOJURIDICO

À luz do direito de propriedade, esta disposição é, no mínimo, sinistra. A manifesta

imperfeição técnica do preceito tem sido corrigida pela jurisprudência em alguns detalhes.

Reconhece-se, por exemplo, que a palavra “partes” deve entender-se em sentido amplo,

para abranger não só sujeitos processuais, mas também “terceiros” que possam reclamar os

objectos. Reconhece-se, também, que a prescrição não ocorre se o interessado não tiver

sido notificado 13

e que o prazo de três meses corre a partir da notificação (e não do trânsito

em julgado) 14 . Porém, este entendimento não dissipou as dúvidas da jurisprudência quanto

à indispensabilidade de notificação expressa. Já se opinou que só é necessária notificação

autónoma quando o reclamante não for sujeito processual. É o que encontramos no

Acórdão da Relação de Évora de 16 de Dezembro de 2003: “os interessados hão-de ser

expressamente notificados de que devem reclamar os seus bens e de que dispõem do prazo

de 3 meses para o efeito (se aqueles forem, simultaneamente, sujeitos processuais a quem

deva ser feita a notificação da decisão final que colocar termo ao processo e se nessa

decisão estiver ordenada a entrega dos bens às pessoas a quem foram apreendidos, se por

elas reclamados nos 3 meses subsequentes ao trânsito em julgado da decisão, não se

mostra necessária, naturalmente, qualquer notificação autónoma, porquanto com a

notificação da decisão final ficarão tais sujeitos processuais suficientemente informados

do direito que lhes assiste e do prazo durante o qual o podem exercitar)”.

Não podemos aceitar este entendimento. É sabido que a sentença apenas se tem que

pronunciar sobre o destino dos objectos relacionados com o crime. Não tem que se

pronunciar sobre outros objectos apreendidos, nem tem que incluir qualquer informação

sobre os direitos que assistem aos sujeitos processuais ou a terceiros para reclamar a

restituição, nem a indicação do prazo, nem a cominação. Por conseguinte, a sentença não

constitui, por si só, notificação para os efeitos de restituição, a menos que inclua – como

sugerimos – a ordem expressa de restituição. A falta de notificação ou a notificação

imperfeita (sem indicação de prazo, com prazo mais curto e/ou sem a indicação da

cominação) impede o início da contagem do prazo. Caso contrário, teríamos no processo

penal uma verdadeira armadilha que configuraria um confisco grosseiramente ilegal.

Assim, a ser aceite que o artigo 14º do Decreto nº 12487 ainda está em vigor, a sua

aplicação não pode deixar de ser corrigida quanto ao início da contagem do prazo: não a 13 Cfr., p. ex., com o Acórdão da Relação de Lisboa, de 13/12/2000 (Processo 73543, Relator: Des. Santos Monteiro), disponível em www.dgsi.pt. 14 Cfr., p. ex., com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15 de Julho de 1998: “O juiz só pode declarar perdidos a favor da Fazenda Nacional os objectos apreendidos no processo-crime, depois de decorridos três meses sobre a notificação dos interessados na sua restituição” (Col. Jur., IV, 226). V. tb. O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de Outubo de 1997: “Não pode declarar-se a perda a favor do Estado de um veículo automóvel apreendido em processo crime ou de contra-ordenação sem prévia notificação do seu proprietário quando identificado nos autos, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 31/85 …” (Col. Jur., IV, 58).

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CARLOS DA SILVA CAMPOS APREENSÃO E PROPRIEDADE : 25

partir do trânsito em julgado, mas a partir da data em que a notificação (completa) se tiver

efectuado.

Regra geral, a jurisprudência tem considerado que o artigo 14º do referido Decreto

de 1926 estabelece uma “presunção de desinteresse” 15

. Não se questiona que a tese

encontra suporte na referida disposição, mas é de questionar a validade dessa mesma

prescrição presuntiva à luz do direito de propriedade constitucionalmente reconhecido. Em

termos simples: o Estado apreende um objecto e, passado algum tempo, informa o

presumível proprietário de que, se não o reclamar no prazo de três meses, perderá todos os

direitos sobre ele. Se este “episódio” for desenquadrado do processo penal, e narrado a um

“cidadão comum”, não haverá grande hesitação em considerar a actuação do Estado como

confisco abusivo, erro grosseiro ou mesmo brincadeira de mau gosto. No processo penal,

não há razão para alterar a qualificação. Não existe razão atendível para um prazo tão

curto, e existem várias para que tal prazo específico e curto não exista. Desde logo, porque

não existe vazio legal: existem prazos de prescrição gerais 16. O crédito de custas, por

exemplo, prescreve no prazo de cinco anos (art. 123º, nº 1 do C.C.J.), e não se vê motivo

sério para uma discrepância tão grande entre a prescrição de créditos de custas e a

prescrição do direito de reclamar objectos cuja restituição foi expressamente autorizada, e

que podem valor muito mais! Um dos motivos invocáveis é a necessidade de evitar que o

Estado tenha que assumir a guarda de objectos por tempo indefinido. Porém, a melhor

resposta para essa preocupação com os encargos do Estado não passa necessariamente por

um prazo curto para a reclamação dos bens, porque o Estado, como qualquer outro sujeito,

tem meios para se ressarcir de tais custos 17. Bastaria prever na lei um prazo a partir do

qual seriam devida uma contrapartida razoável pelo “depósito” (crédito garantido por

direito de retenção). Muitas soluções seriam possíveis e razoáveis, sem esta famigerada

figura de presunção de desinteresse ao fim de três meses. A meu ver, o artigo 14º do

Decreto nº 12 487 de 1926 deveria ser – tão rapidamente quanto possível – expressamente

revogado e substituído por normais mais adequadas e consentâneas com o direito de

propriedade. Até que isso suceda, sempre se poderá arguir a sua inconstitucionalidade, que

também nos parece manifesta 18.

15 Para além dos acórdãos da Relação de Lisboa de 13/12/2003 e da Relação de Évora de 16/12/2003 (citado no texto), a tese da “presunção de desinteresse” já vem de longe, encontrando-se designadamente no Parecer da PGR de 3/6/1964 (BMJ 160, 123). 16 Ver a este respeito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Dezembro de 1991 (Processo 42262, Relator: Cons. Pinto Bastos) ), disponível em www.dgsi.pt. 17 Além disso, e como é evidente, a perda para o Estado por omissão de reclamação não anula dos custos com a guarda dos objectos. Apenas dá ao Estado a liberdade para fazer com eles o que entender, incluindo deixá-los onde estão… 18 Exemplar o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20 de Janeiro de 1999 (Processo 9910042, Des. Costa Mortágua): “O Estado não pode, passando por cima de decisão expressa do tribunal -que ordena a entrega do

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26 : APREENSÃO E PROPRIEDADE VERBOJURIDICO

O que escrevemos acima não esgota as consequências negativas dos procedimentos

de restituição. A prática procedimental é um exemplo de burocracia inútil, geradora de

custos desnecessários. Recapitulemos: a sentença indica o destino dos objectos

relacionados com o crime, a secretaria notifica os interessados para virem reclamar os

objectos que não foram declarados perdidos para o Estado, os interessados (sujeitos

processuais ou terceiros) reclamam a restituição, a secretaria volta a notificá-los

informando-os onde podem proceder ao levantamento dos objectos. Por mais possível e

fácil que a simplificação se afigure, esta via sacra procedimental e postal continua a ser

prática corrente, desperdiçando dinheiro dos lesados e dos contribuintes, e sacrificando o

tempo de oficiais de justiça e advogados.

A lesão dos direitos de propriedade é ainda agravada pelo facto de quase sempre ser

o interessado a ter que se deslocar e a suportar os custos de transporte, de si próprio e dos

objectos. É certo que sempre pode agir contra o Estado, com base nas regras de

responsabilidade gerais, mas também esse é o caminho mais longo e menos expedito. Em

muitos casos, os interessados desistem dos seus bens, o que significa que a lei criou sub-

repticiamente uma “expropriação por cansaço”. Muitos dos que não desistem dos seus

bens, acabam por se conformar com mais uma lesão patrimonial causada pelo Estado, ao

aceitarem uma restituição tardia, defeituosa ou incompleta e/ou uma indemnização “por

baixo”. Conformam-se com a apreensão desnecessária, com a manutenção da mesma

durante anos, com a demora da restituição, com a privação de uso dos objectos, com o

custo de transporte e até com os danos entretanto causados aos objectos, com a

desvalorização dos mesmos… Os “remédios” legais ao dispor dos lesados existem, mas

nenhum deles é eficaz em tempo útil. O que nos remete para os dois remédios possíveis: o

legislador e a jurisprudência. Enquanto não se revogar expressamente ou declarar a

inconstitucionalidade do famigerado artigo 14º do Decreto de 1926 e não se reformar o

CPP e a complexa prolixidade de diplomas legais que regulam as apreensões, é dos

Tribunais que se pode esperar uma prática procedimental da restituição mais conforme

com o direito de propriedade.

Uma sentença completa e que não se limite aos “conteúdos obrigatórios”, pode

evitar todo o calvário da restituição. Para além dos conteúdos obrigatórios, nada impede

que a sentença inclua outros. Pode incluir a ordem de restituição aos proprietários ou automóvel apreendido à arguida -fazer seu aquele veículo com base em disposição legal oriunda de 14 de Outubro de 1926, interpretando-a, agora, contrariamente ao princípio constitucional que consagra o direito de propriedade privada. A decisão de mandar entregar o veículo é abrangida pelo trânsito em julgado, nada mais restando à Administração que dar andamento e forma processuaisà restituição.” (disponível em www.dgsi.pt).

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detentores dos objectos apreendidos que não foram declarados perdidos para o Estado,

sempre que não houver impedimento legal à restituição. Cumprindo esta sentença, a

secretaria apenas tem que notificar e enviar aos interessados um documento bastante para

que estes possam proceder ao levantamento dos bens, ou, se tal se justificar, à recepção dos

mesmos no local que indicarem. A notificação pode ser feita com a indicação das entidades

a contactar, podendo ser indicados prazos razoáveis. Complementar ou alternativamente,

devem as entidades que tiverem os objectos à sua guarda ser igualmente notificadas para

procederem à restituição.

A este respeito, são de evitar expressões do género “entregue-se o objecto a quem

provar pertencer-lhe” 19. Na maior parte dos casos, expressões deste tipo não só não

resolvem

o problema como criam novos problemas. Em princípio e salvo regime especial, a pessoa a

quem os bens foram apreendidos não tem que vir provar que é proprietário dos mesmos,

porque goza da presunção de propriedade (artigo 1268º do CC). A inversão do ónus da

prova de propriedade de objectos não relacionados com o crime é totalmente desnecessária

e alheia às finalidades do processo penal. Na prática, e perante uma notificação para provar

a propriedade, o mandatário do interessado apresenta requerimento em que invoca a

presunção de propriedade, com o objectivo de “obter à segunda o que não obteve à

primeira”. Os actos a mais não são inúteis, mas são seguramente desnecessários.

12. O despacho posterior à sentença omissa

Em termos gerais, o que não for declarado perdido para o Estado ou arrestado

preventivamente deve ser restituído. Não tendo sido decretado o arresto preventivo

previsto no artigo 228º e não constando da sentença a decisão de perda para o Estado, os

interessados podem, desde logo (mesmo que para tal não tenham sido notificados)

reclamar a restituição dos objectos apreendidos. A questão que se pode colocar é se o

Tribunal pode, posteriormente à sentença, vir a decretar a perda para o Estado e com isso

obstar à restituição, frustrando a expectativa legítima criada pela sentença.

A falta de indicação do destino dos objectos relacionados com o crime não fere a

sentença de nulidade, já que o artigo 379º, nº 1, alínea a), do CPP apenas comina com

nulidade a omissão de outras menções, que especifica. Poderia ainda considerar-se que,

face aos artigos 109º a 111º do CP (perda de instrumentos, produtos e vantagens do crime),

19 V. a este respeito o Acórdão da Relação de Coimbra de 30 de Junho de 2004 (Processo nº 1730/04, Relator: Des. Fernando Jorge Dias) disponível em www.dgsi.pt.

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a omissão constituiria nulidade ao abrigo do artigo 379º, nº 1, alínea c) do CPP (“quando o

tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”). Não é, porém,

assim. A decisão de perda a favor do Estado faz parte das consequências jurídicas do

crime, pelo que é decretada ou não consoante a apreciação concreta feita pelo tribunal dos

respectivos pressupostos. Tal como a pena principal, as demais consequências do crime

não são “automáticas” – dependem dos juízos de facto e de Direito que relacionam os

objectos em causa com o crime praticado (instrumento, resultado) ou com o risco de

cometimento de novos crimes. Assim, a omissão de decisão de perda a favor do Estado

pode ser objecto de recurso mas nunca com fundamento em nulidade formal.

Assumindo a sentença como válida, regressamos à questão: pode o próprio

Tribunal vir posteriormente (oficiosamente, a requerimento ou na sequência de reclamação

de restituição) vir a “acrescentar” uma decisão de perda para o Estado? Se a resposta for

positiva, isso significa que a reclamação de restituição pode ser indeferida com base em

decisão posterior à sentença. Uma resposta possível seria admitir que a perda para a o

Estado pode ser decretada em correcção de sentença, desde que esta não tenha ainda

transitado em julgado, com base na regra geral do caso julgado e também no artigo 186º, nº

2, do CPP. Não nos parece ser esta a resposta mais consentânea com a lei. Toda e qualquer

decisão com efeito condenatório final deve constar da sentença e só na sentença, de forma

expressa e clara, e acompanhada da devida fundamentação, conforme obriga o artigo 374º,

nº 2, do CPP 20. A sentença tem que ser um só acto. Por conseguinte, qualquer despacho

posterior à sentença que amplie a decisão “condenatória”, ainda que a sentença não tenha

transitado em julgado, é nulo e inadmissível. Logo, e até ao trânsito em julgado, é possível

obstar à restituição de bens apreendidos através de recurso. Antes ou depois do trânsito em

julgado, não se pode obstar à restituição por via de despacho de correcção da sentença.

A solução é diversa se o despacho posterior à sentença, em vez de vir obstar à

restituição (decretando a perda para o Estado), vier suprir a omissão de indicação do

destino de objectos apreendidos, autorizando ou ordenando a sua restituição a quem de

direito. Neste caso, o “suprimento” não implica “modificação essencial” da decisão, pelo

que pode ser concretizado como correcção de sentença (380º, nº 1, alínea b)).

20 Encontramos acolhimento desta tese nos Acórdãos da Relação do Porto de 30 de Junho de 2004 (processo nº 413638, Relator: Des. Fernando Monterroso) e de 17 de Maio de 2006 (processo nº 610514, Relator: Des. Joaquim Gomes) disponíveis em www.dgsi.pt.

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13. Caso julgado contra o proprietário?

Vimos acima que a prescrição do direito de reclamar a restituição não ocorre se o

interessado não tiver sido notificado com indicação expressa do seu direito e do prazo para

reclamar. Por maioria de razão, na falta de notificação, o caso julgado não é oponível ao

proprietário. É certo que as decisões condenatórias transitadas em julgado têm força

executiva (467º, nº 1). Porém, não pode admitir-se que o caso julgado possa impedir a

restituição ao proprietário, quando ele não foi ouvido nem notificado da decisão. O

problema é evidente se esse interessado for terceiro, isto é, alguém que não teve qualquer

intervenção no processo, mas também se pode colocar relativamente a pessoas que tenham

tido conhecimento do processo, como lesados ou testemunhas, por exemplo.

Escreveu a este respeito o juiz Joel Pereira: “Naturalmente que não estando a

omissão da audição de terceiro, prevista no art.º 178.º, n.º 7 do CPP, configurada como

nulidade processual, constituirá uma irregularidade, susceptível de reparação, mas

também de revogação do despacho que tenha incidido sobre tal destino, desde que seja

atempadamente arguida, nos termos do art.º 123.º do Código de Processo Penal, a partir

do momento em que o terceiro directamente atingido tenha conhecimento. Se o não fizer, a

irregularidade ficará sanada e não poderá reaver o seu bem” 21. Esta tese não pode deixar

de ser acolhida. Se o interessado não teve qualquer intervenção processual, a decisão que o

afecta não o vincula nem o caso julgado lhe é oponível 22 .

A inoponibilidade do caso julgado (e a consequente reversibilidade da declaração

de perda para o Estado) é de também de considerar mesmo que o interessado tenha sido

interveniente processual. O proprietário do objecto em causa pode ter sido envolvido no

processo como lesado e/ou testemunha, circunstância que não o obriga a acompanhar o

processo nem a comparecer à leitura da sentença. Logo, enquanto não for notificado da

decisão que declara a perda para o Estado, essa decisão não é lhe é oponível. A notificação

deve ser efectuada de forma completa, para que o interessado possa aperceber-se do que

está em causa e das consequências da sua omissão. O curtíssimo prazo de três dias previsto

no artigo 123º, nº 1 do CPP suscita problemas vários. Trata-se de um prazo estabelecido

genericamente para arguir irregularidades, considerando-se que se inicia quando o

interessado assistiu ao acto ou logo que intervém ou é notificado para qualquer acto ou

termo. Não é, porém, um prazo para apresentar prova de propriedade. Se a restituição

21 Joel Timóteo Ramos Pereira (2006), Perdidos a Favor do Estado: e se os Bens Forem de Terceiro?, in revista “O Advogado”, IIª Série, Setembro de 2006; texto disponível em www.verbojuridico.net. 22 Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de Maio de 2006 (Processo 0516092, Relator: Des. Joaquim Gomes).

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30 : APREENSÃO E PROPRIEDADE VERBOJURIDICO

exigir prova de propriedade, bastará ao interessado reagir no prazo de três dias, devendo

ser-lhe dado novo prazo para a apresentar (três dias podem não ser suficientes para obter

certidão de registo). E mesmo que todos os prazos sejam excedidos, o tribunal não está

impedido de reverter a decisão de perda para o Estado: “pode ordenar-se oficiosamente a

reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar

conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado” (123º, nº 2). A

sentença tenha transitado em julgado, é passível de revisão, nos termos do artigo 449º do

CPP. Porém, esta figura pode não ser acessível ao terceiro, dada a regra de legitimidade do

artigo 450º.

O artigo 35º-A do Decreto-Lei nº 13/93, de 22 de Janeiro 23, relativo ao tráfico de

estupefacientes, prevê um incidente especial destinado à defesa dos direitos de adquirentes

de boa fé relativos a objectos apreendidos. Valem a este respeito as considerações feitas

acima: o interessado deve ser ouvido e/ou notificado de que os bens podem ser declarados

perdidos para o Estado, sem o que tal declaração não lhe é oponível nem constitui caso

julgado. A prova de titularidade do direito tem que ser apresentada com o requerimento

(artigo 35º-A). Porém, o processo penal não tem que ser perturbado com controvérsias

complexas sobre o direito de propriedade. Na falta de prova bastante e nos casos em que a

presunção de propriedade (artigo 1268º do CC) não funcionar, a questão será remetida para

tribunal cível 24 .

14. A perda a favor do Estado

O artigo 110º, nº 2 do CP tem a seguinte redacção: “Ainda que os objectos

pertençam a terceiro, é decretada a perda quando os seus titulares tiverem concorrido, de

forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou quando do facto tiverem retirado

vantagens; ou ainda quando os objectos forem, por qualquer título, adquiridos após a

prática do facto, conhecendo os adquirentes a sua proveniência”. A redacção é

manifestamente infeliz e tem que ser objecto de interpretação restritiva. Desde logo, a

conjugação das expressões “terceiro” e “tiverem concorrido, de forma censurável” são

contraditórias. Quem concorre para um crime pode ser autor, co-autor ou cúmplice, mas

não “terceiro”. Em segundo lugar, a “censurabilidade” não pode deixar de ser entendida

em sentido penal, isto é, o facto que tem que ser típico (previsto na lei). Em terceiro lugar,

23 Alterado pelas Leis nº 45/96m de 3 de Setembro, nº 20/2000, de 29 de Novembro, nº 104/2001, de 25 de Agosto, e pelo Decreto-Lei nº 323/2001, de 17 de Dezembro. 24 Segundo o artigo 35º-A, nº 5, do DL 15/93, “pode o juiz remeter o terceiro para os meios cíveis”. O mesmo sucede se os bens apreendidos sobre os quais incidir a controvérsia de propriedade tiverem sido arrestados (artigo 228º, nº 4, do CPP).

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nenhuma pena pode ser aplicada sem imputação e culpabilidade. Em quarto lugar, ao

visado têm que ser asseguradas todas as garantias de defesa. Um terceiro possa ser

prejudicado por uma apreensão, mesmo que não seja arguido. Pode até sofrer esse prejuízo

sem ser ouvido, se a audição for impossível (artigo 178º, nº 7, do CPP). Mas não lhe pode

ser aplicada pena de perda de bens a favor do Estado se não tiver sido constituído arguido e

julgado de acordo com todas as regras, e se a medida da pena não for proporcional ao facto

imputado e provado.

A força e prevalência dos princípios fundamentais impõe a interpretação e

aplicação restritiva do artigo 110º, nº 2, do CP. Se a perda a favor do Estado pudesse ser

declarada à margem dos referidos princípios, teríamos não uma genuína pena pecuniária,

mas uma figura de confisco baseada numa “censura” sumária. O cidadão que, inocente e

displicente, deixa o automóvel aberto e com a chave na ignição, estacionado à porta de um

banco, pode ser “censurado”. Mas se esse automóvel lhe for furtado por alguém que o

utiliza para se pôr em fuga depois de ter assaltado o banco, não é por isso que o deve

perder para o Estado. Do mesmo modo, quando alguém adquire um objecto após a prática

do crime (por outrem), a declaração de perda para o Estado não pode basear-se numa

simples e vaga convicção de que o adquirente teve conhecimento da proveniência do

objecto. É necessário que se verifiquem todos os elementos do crime de receptação e que

essa “verificação” tenha sido feita de acordo com as regras processuais: constituição de

arguido, acusação, prova, sentença.

Ao artigo 110º, nº 2, deve aplicar-se sempre com a ressalva “sem prejuízo dos

direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé”, incluída no artigo 111º, nº 2.

15. Conclusão

O artigo 62º, nº 2 da Constituição estabelece que “a requisição e a expropriação

por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de

uma justa indemnização”. O mesmo princípio se encontra, aliás, nos artigos 1307º a 1309º

do Código Civil. O legislador não é livre de estabelecer limites ao direito de propriedade,

já que a lei: (i) só pode restringir direitos liberdades e garantias “nos casos expressamente

previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para

salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (artigo 18º, nº

2 da Constituição); (ii) não pode “diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial

dos preceitos constitucionais” (artigo 18º, nº 3, da Constituição). As exigências de

conformidade com a lei e de justa indemnização são cumulativas: não basta que a restrição

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da propriedade seja prevista na lei – a justa indemnização do lesado é condição de

legalidade da restrição. A dupla exigência (lei e indemnização) não se aplica apenas às

figuras específicas de “requisição” e “expropriação”, mas a todas e quaisquer figuras afins

que se traduzam na privação, ainda que parcial e/ou temporária, do direito de propriedade 25. O regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis

e vinculam directamente as entidades públicas e privadas (artigo 18º, nº 1 da Constituição).

As medidas de apreensão em processo penal são, por natureza, provisórias.

Convertem-se em decisões punitivas (como a perda a favor do Estado), em decisões de

garantia ou reparação pecuniária (arresto, execução de pena pecuniária, indemnizações) ou

em decisões de restituição. Neste último caso, e independentemente de o interessado ser

sujeito processual ou terceiro, as medidas de apreensão implicam privação de propriedade.

A compensação dos lesados não é condição de validade e aplicação das medidas, mas isso

não significa que os lesados não tenham direito a ser ressarcidos, de acordo com os

princípios da justa indemnização e da responsabilidade civil, mesmo que as medidas

tenham sido actos lícitos. Por conseguinte, quanto mais eficiente e proporcional for a

aplicação das medidas de apreensão, menores os danos causados aos proprietários e

menores as responsabilidades do Estado. Infelizmente, a prática que conhecemos não tem

favorecido o tratamento adequado das questões de propriedade em processo penal. As

acções de responsabilidade civil do Estado são esporádicas. Na pendência dos processos, o

número de requerimentos de modificação ou revogação de apreensões também fica muito

aquém do que poderia. A atitude conformada dos lesados tem facilitado a displicência com

que os direitos de propriedade são tratados, sem qualquer benefício para o interesse

público, seja ele a prevenção e sanção penal, a eficiência administrativa ou a contenção

orçamental. Naturalmente que a maior combatividade dos lesados em defesa da sua

propriedade – traduzida na actuação dos seus mandatários – é susceptível de incentivar

uma maior atenção ao problema, mas não é por aí que se encontra a solução completa. O

processo penal nada tem a ganhar com a multiplicação de incidentes, requerimentos e

recursos. A “solução completa”, passa, a nosso ver, por dois eixos principais. Em primeiro

lugar, a Jurisprudência, no seu sentido mais amplo e nobre que permite descobrir a lei para

além da letra e da forma, e proferir despachos e sentenças que não deixam “pontas soltas”.

25 Neste sentido, Jorge Miranda (1998), Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, p. 469; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de Maio de 2006 (Processo 0516092; Des. Joaquim Gomes): “Assim, se a Constituição da República, através do seu art. 62.º confere o direito de aquisição de propriedade, bem como da atribuição de uma justa indemnização em caso de restrição ou ablação desse mesmo direito, não pode deixar de se inferir, desse mesmo normativo, que tais injunções constitucionais concedem igualmente segurança ao cidadão contra qualquer privação arbitrária do seu direito de propriedade. Este é de resto o que resulta do disposto no art. 17.º, n.º 2 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, mediante o qual qualquer pessoa tem o direito de não ser arbitrariamente privada da sua propriedade ou de um direito patrimonial de que seja titular”. (disponível em www.dgsi.pt).

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CARLOS DA SILVA CAMPOS APREENSÃO E PROPRIEDADE : 33

Em segundo lugar, a intervenção do legislador, não de forma avulsa e calendarizada por

bandeiras e programas conjunturais, mas de forma sistemática e consequente com os

subsídios de todos quantos participam na vida judiciária e judicial. Sem prejuízo da

revogação urgente de diplomas que mais gravemente agridem o direito de propriedade,

como o Decreto 12487 de 24 de Outubro de 1926, e de vários artigos do Decreto-Lei 31/85

de 25 de Janeiro, há que inscrever a tutela do direito de propriedade no elenco dos temas da

próxima reforma do processo penal.

Lisboa, 29 de Setembro de 2006.

CARLOS DA SILVA CAMPOS