Aprendendo com imagens

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APRENDENDO COM IMAGENS

Isabel Martins, Guaracira Gouvêa e Cláudia Piccinini

Imagens são importantes recursos para a comunicação deidéias científicas. No entanto, além da indiscutível impor-tância como recursos para a visualização, contribuindopara a inteligibilidade de diversos textos científicos, as ima-gens também desempenham um papel fundamental na

constituição das idéias científicas e na sua conceitualização. Essasquestões têm sido objeto de um crescente conjunto de inve s t i g a-ções no campo da educação em ciências que, mesmo organizado ap a rtir de quadros teórico-metodológicos tão distintos quanto asemiótica social, a psicologia cognitiva e os estudos culturais entreo u t ros, compartilha o interesse de melhor compreender as re l a ç õ e se n t re imagens, conhecimento científico e ensino de ciências (1).Exemplos de resultados desses estudos incluem a idéia de que ima-gens são mais facilmente lembradas do que suas corre s p o n d e n t e sre p resentações verbais (2-5) e o efeito positivo de ilustrações naa p rendizagem dos alunos (2, 3, 6, 7). Ainda, extensas revisões daliteratura educacional documentaram investigações acerca dopapel da imagem na aprendizagem (8-10), entre eles, modelos queanalisam texto, imagem e suas inter-relações (11); análises dase x p e c t a t i vas de autores e leitores acerca da imagem (12). Im a g e n stambém foram analisadas no contexto da legibilidade de livro sdidáticos (13) e de uma comparação entre apresentações em papele tela de computador (14). Análises de imagens em livros didáti-cos, de leituras de imagens por estudantes e de usos em sala de aulatambém foram investigadas, a partir de um quadro teórico dasemiótica social (15), re velando engajamentos culturais, afetivos eestéticos (16, 17). Ou t ros estudos incluem dados sobre a va l o r i z a-ção pelos pro f e s s o res sobre as imagens no livro como critério paraescolha dos mesmos (18) e análises do potencial didático e doslimites da imagem como facilitadoras da aprendizagem do pontode vista cognitivo (19).Neste trabalho, realizado ao longo de dois anos por uma equipe deprofessores e pesquisadores em educação em ciências, foram explo-radas questões relativas à natureza híbrida, do ponto de vista semió-tico, dos textos científicos (20), visando a uma melhor compreensãoe avaliação da natureza das demandas desses textos, das suas possibi-lidades de leitura, crítica e utilização por professores e alunos em salade aula e do seu papel em contextos de divulgação científica.

LINGUAGEM VISUAL Em nossos estudos questionamos a “transparên-cia” da imagem, isto é, desafiamos a idéia de que as imagens comu-nicam de forma mais direta e objetiva do que as palavras. Ao consi-derarmos, junto com Kress e van Leeuwen (15), que a linguagemvisual se constitui em um sistema de representação simbólica, pro-fundamente influenciado por princípios que organizam possibilida-des de representação e de significação em uma dada cultura, abrimosespaço para problematizar não só a própria linguagem visual, mas

também o que está envolvido em sua leitura. Esta é considerada ump rocesso de construção de sentidos, no qual jogam a intencionali-dade do autor, a materialidade do texto e as possibilidades de ressig-nificação do leitor (21).Com vistas a explorar as questões propostas para investigação foramrealizados três estudos de caso em escolas do nível fundamental,envolvendo levantamentos, entrevistas e observação de sala de aula,objetivando: 1. documentar a freqüência de ocorrência das imagense analisar os diferentes papéis por elas desempenhados em livro sdidáticos de ciências; 2. analisar a leitura das imagens em livros didá-ticos de ciências feitas por estudantes do ensino fundamental – 3º e4º ciclos; e 3. analisar as formas de utilização das imagens em situa-ções de ensino em sala de aula. A seguir descrevemos os principaisresultados obtidos nos diferentes estudos.

L I V ROS DO ENSINO FUNDA M E N TA L Vimos que é grande o número deimagens presentes nos livros didáticos de ciências, mas queenquanto nas primeiras séries encontramos tipicamente imagensnaturalistas e realistas, remetendo o leitor a cenários familiares docotidiano, nas séries finais a essas se somam re p resentações abstra-tas e ilustrações esquemáticas de situações microscópicas. Vale des-tacar que, nas últimas séries, passa a ser mais evidente a manipula-ção de elementos composicionais, tais como cor e escala, e aconseqüente necessidade de seu entendimento para a significaçãodas entidades re p resentadas. Os livros destas séries também passama incluir localidades e tempos remotos, alguns sem corre s p o n d ê n-cia no cotidiano do aluno. Essa necessidade de ampliação da noçãode tempo e espaço por parte do estudante é acompanhada por umaampliação do poder explicativo da ciência, do exemplo para a gene-ralização, do local para o global, do particular para o geral, no sen-tido de construir um caráter mais universal para o conhecimentoc i e n t í f i c o. Em outras palavras, diferenciam-se e se complexificamas estratégias de leitura desses textos.No que diz respeito às marcantes diferenças na variedade de tipos deimagens encontradas nos livros de ensino fundamental, podemosquestionar em que medida a opção por apresentar aos estudantesuma maior diversidade de representações pode revelar duas poten-ciais fontes de dificuldade para a aprendizagem científica. Por umlado, essa parcimônia indicaria a expectativa de que os estudantesnão possuem habilidades para a leitura de certos tipos de represen-tação como, por exemplo, esquemas abstratos. Nesse caso, a dificul-dade percebida re f e re-se à conseqüente impossibilidade de que oestudante adquira desde cedo familiaridade com tipos de represen-tação essenciais para a ciência. Por outro lado, a marcada ru p t u r ae n t re as formas de re p resentação, típicas do primeiro e segundociclos e aquelas do terceiro e quarto ciclos, podem reforçar diferen-tes visões no que diz respeito aos objetos de conhecimento e às for-mas de conhecer do empreendimento científico.Assim, enquanto nos livros de primeiro e segundo ciclos destaca-sea construção de habilidades relacionadas à observação de fenôme-nos, é somente nos livros de terc e i ro e quarto ciclos que encontra-mos o embrião de uma discussão mais abrangente acerca de aspec-tos da natureza da ciência e da atividade científica, de forma a

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i n c l u i r, além de questões relacionadas a método e fenomenologia,uma discussão sobre as implicações sociais da ciência e tecnologia.Esses dois tipos de introdução tardia a aspectos fundamentais daciência podem não corresponder nem às expectativas, nem aos inte-resses, nem às necessidades e nem às habilidades que as criançasdemonstram ter. Os meios de comunicação apresentam às criançasnão só diferentes possibilidades re p resentacionais, quanto infor-mações a respeito de descobertas científicas que fornecem elemen-tos para a construção de re p resentações acerca, por exemplo, do queé ciência, de quem é o cientista e qual seu papel social. Uma inicia-ção precoce ao discurso científico, auxiliada por conjuntos de ima-gens mais diversificados, poderia pro p o rcionar maior riqueza nessep rocesso de construção de atitudes e identidades em relação aoconhecimento científico.

L E I T U RA DE IMAG E N S Durante entrevistas, com duplas de estudan-tes do 3º e 4º ciclos do ensino fundamental, tivemos a oport u n i-dade de verificar várias estratégias de leitura das imagens re a l i z a d a spor esses estudantes. A análise destas re velou que, na busca de umasignificação para a imagem, eles se engajam em procedimentos ela-borados que envo l vemanálises de elementos com-posicionais, buscas na memória por experiênciasre l e vantes, estabelecimento de relações com situa-ções do seu cotidiano (incluindo experiências esco-l a res). Ob s e rvamos que os alunos:

f a zem leituras descritivas, especialmente deaspectos comuns e cotidianos das imagens, re ve-lando dificuldades para identificar elementos abs-tratos e que não possuem uma re p re s e n t a t i v i d a d eem seu universo mais próximo;

necessitam de um tempo para a observação e sig-nificação das imagens. Imagens com maior densi-dade de informações remeteram a uma necessi-dade de pausa para pensar e analisar as possibilidades descritiva s ;

estabelecemintertextos com outras imagens. Imagens que remetem aoutras imagens, aoutroscontextos interpre t a t i vosaumentama possibi-lidade de entendimentos. Estas funcionam também como um re c u r s ode memória, onde através de outras imagens podem se re c o rd a r ;

comparam imagens distintas. Foram atribuídos novos significa-dos às imagens a partir de exercícios de comparação;

realizam uma leitura seletiva. Destacaram apenas um aspecto pre-sente na imagem;

utilizam-se de diversos modos semióticos para identificar ouacompanhar a leitura. Apontar e acompanhar com o dedo das mãosajuda na leitura e detalhamento da imagem;

nem sempre fazem uma leitura da imagem no contexto do textoao re d o r. O texto ao redor da imagem é ignorado. Em algunsmomentos os alunos atribuem facilidade à leitura da imagem e acre-ditam que o texto não é necessário para o entendimento da mesma;

lêem o texto ao redor. Atribuem dificuldade de compreensão daimagem, sem a leitura dos textos anexos. Atribuem importância epapel pedagógico à legenda. Realizam uma leitura situada das ima-gens na página, em relação ao texto ao redor;

dão atenção aos aspectos composicionais das imagens. Im a g e n smais nítidas favorecem o entendimento.Nossas análises revelam uma diversidade de formas de engajamentocom a imagem (afetivo, cognitivo, estético) e uma variedade deestratégias de leitura, que destacam o papel do conhecimento pré-vio, de experiências de leitura anteriores realizadas no ambienteescolar e de estratégias de leitura que integram informações verbaise contextualizam as imagens no espaço gráfico da página.

I M AGENS EM SALA DE AU L A Em uma terceira etapa realizamos obser-vações de situações de aulas de ciências com o objetivo de identificarcomo as imagens são trabalhadas, por pro f e s s o res e alunos,nos dive r-sos aspectos relacionados à sua construção, leitura e interpretação emcontextos de aprendizagem (22). Discutimos, também, difere n t e spossibilidadesde utilizaçãodas imagensnasaladeaulaanalisandosuarelação com os conteúdos curriculares. O re g i s t ro dessas observa ç õ e sfoi realizado pormeiode gravação emáudioe vídeo,que foram trans-critos na íntegra, focando-se aspectos de comunicação verbal e nãoverbal. Documentamos vários momentos em que as explicações doconceito de célula e de conceitos adjacentes foram realizadas pelouso

de diferentesmodos semióticos – ação/gestual, ima-gem e verbal – na orquestração retórica para a cons-t rução de significados. Na análise dos episódios,examinando a articulação e o fluxodosmodos, ve r i-ficamos tanto exemplos das relações de cooperaçãoe n t reeles, quanto momentos nos quais se estabelecea centralidade de um dado modo. Ob s e rva m o s ,ainda, que os modos criaram sentidos de difere n t e smaneiras, configurando de forma particular a expli-cação e a re-significação do conhecimento. Ve r i f i c a-mos também que os modos desempenharam papéisespecíficos na explicação das entidades científicas,ou seja, possuem maior capacidade de re p re s e n t a-

ção em alguns momentos, sendo menos eficientes em outros e, por-tanto, pro p o rcionando distintos sentidos.Em especial, observamos que nas aulas documentadas as imagenspermitiram:

localizar estruturas (e suas possíveis funções) e torná-las dinâmicas(movimentos, mudanças de lugar etc.), possibilitando mostrar rela-ções espaciais entre parte e todo;

fornecer um cenário no qual alunos e professora podiam pensar,localizar e identificar as entidades e suas partes, apresentando e deta-lhando essas entidades;

conduzir os processos de construção de representações, seja atra-vés de descrições ou estabelecendo analogias;

momentos em que as explicações assumiram um caráter menosrígido e possibilitaram uma expressão mais criativa e representativa,inclusive da participação dos alunos na mediação de conceitos e/ouidéias (por exemplo, com o uso de analogias);

influenciar na memorização dos alunos (analogias visuais ajuda-ram a lembrar o nome das organelas) e que os alunos se aproximas-sem de um universo invisível, inacessível, aumentando a possibili-dade de “convencimento” desses alunos.

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O TEXTOAO REDOR

DA IMAGEM ÉIGNORADO.

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CO N S I D E RA Ç Õ ESFINAISEmconclusão,nossosresultadoscontribuempara a consolidação de uma área de investigação no campo da educa-ção em ciências. A importância dessapesquisa se traduz no seupoten-cialpara fornecer subsídiospara umamelhorcompreensão eava l i a ç ã odanaturezadas demandas desses textos edas suas possibilidadesde lei-tura, crítica e utilização por pro f e s s o res e alunos em sala de aula. Osresultados enfatizam, também, a necessidade de problematizar tantoas condições sociais de produção das imagens, quanto às condiçõessociais de produção da leituradas imagens.Aprimeira perspectivanoschama atenção para a necessidade de considerar as tecnologias e suaslinguagens específicas no entendimento de imagens. A segunda dizrespeito às dimensões envolvidas ao considerarmos a leitura na pers-p e c t i va discursiva, isto é, a relação leitor-texto-autor, sentidos de lei-tura, modos de leitura e suas relações com contextos, espaços e finali-dades específicas como, por exemplo, a leitura na escola.

Isabel Martins é professora adjunta do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde daUFRJ.Guaracira Gouvêa é professora adjunta da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro(Unirio).Cláudia Piccinini é professora substituta da Faculdade de Educação da UFRJ,da SME/RJ e doNADC/Projeto Fundão, da Biologia (UFRJ).

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