Aquiles e a tartaruga infantil

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José Carlos S. de Almeida, Aquiles e a Tartaruga AQUILES E A TARTARUGA, MAS NÃO NECESSARIAMENTE POR ESTA ORDEM Aquiles, o de pés velozes, olhou para a tartaruga e só a muito custo conseguiu suster o riso. Já o mesmo não fizeram os amigos de Aquiles que rodeavam os dois, Aquiles e a pequena e atrevida tartaruga, e que soltaram sonoras gargalhadas. Todos eles tinham acabado de escutar da boca da pequena e atrevida tartaruga, o seu retumbante desafio: − Aposto contigo, Aquiles o de pés velozes, vinte moedas de ouro em como conseguirei ganhar-te a correr, ultrapassando antes de ti aquela meta, numa corrida que queremos memorável. − E apontou um enorme pinheiro, situado mais adiante. Talvez não tivessem ouvido bem ou talvez a pequena e atrevida tartaruga estivesse a gozar com Aquiles e com os seus amigos, a quem acabou por estender a aposta, se eles estivessem também na disposição de apostar. Em Aquiles, claro. Poderia tudo aquilo não passar de uma pequena e divertida confusão, só que a tartaruga repetiu os termos da aposta. Não havia quaisquer dúvidas: a tartaruga queria mesmo competir com Aquiles. Perante a insistência do pequeno animal, Aquiles, que conhecia muito bem o percurso por já nele ter feito inúmeras corridas de extensão variável, pareceu ofendido. − Acaso sabes quem sou eu? − E ouviram-se mais gargalhadas vindas do séquito de amigos que, porque era um verdadeiro séquito, seguiam-no para todo o lado. Porém, também havia neles alguma curiosidade em ouvir a resposta da tartaruga. Esta parecia estar preparada para estas questões preliminares. − Claro que sei! És Aquiles, o de pés velozes. Um quase eterno campeão da corrida, que deixou todos para trás, alguns a perder de vista. Um verdadeiro corredor, como nunca ninguém viu. Até hoje. Não te escolhi por acaso. 1

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Uma história infantil dirigida aos mais graúdos

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José Carlos S. de Almeida, Aquiles e a Tartaruga

AQUILES E A TARTARUGA,MAS NÃO NECESSARIAMENTE POR ESTA ORDEM

Aquiles, o de pés velozes, olhou para a tartaruga e só a muito custo

conseguiu suster o riso. Já o mesmo não fizeram os amigos de Aquiles que

rodeavam os dois, Aquiles e a pequena e atrevida tartaruga, e que soltaram

sonoras gargalhadas. Todos eles tinham acabado de escutar da boca da pequena e

atrevida tartaruga, o seu retumbante desafio:

− Aposto contigo, Aquiles o de pés velozes, vinte moedas de ouro em como

conseguirei ganhar-te a correr, ultrapassando antes de ti aquela meta, numa

corrida que queremos memorável. − E apontou um enorme pinheiro, situado mais

adiante.

Talvez não tivessem ouvido bem ou talvez a pequena e atrevida tartaruga

estivesse a gozar com Aquiles e com os seus amigos, a quem acabou por estender

a aposta, se eles estivessem também na disposição de apostar. Em Aquiles, claro.

Poderia tudo aquilo não passar de uma pequena e divertida confusão, só que a

tartaruga repetiu os termos da aposta. Não havia quaisquer dúvidas: a tartaruga

queria mesmo competir com Aquiles. Perante a insistência do pequeno animal,

Aquiles, que conhecia muito bem o percurso por já nele ter feito inúmeras corridas

de extensão variável, pareceu ofendido.

− Acaso sabes quem sou eu? − E ouviram-se mais gargalhadas vindas do

séquito de amigos que, porque era um verdadeiro séquito, seguiam-no para todo o

lado. Porém, também havia neles alguma curiosidade em ouvir a resposta da

tartaruga. Esta parecia estar preparada para estas questões preliminares.

− Claro que sei! És Aquiles, o de pés velozes. Um quase eterno campeão da

corrida, que deixou todos para trás, alguns a perder de vista. Um verdadeiro

corredor, como nunca ninguém viu. Até hoje. Não te escolhi por acaso.

Os amigos de Aquiles estavam estupefactos. Um deles decidiu intervir.

− Então, se conheces Aquiles, é muita insolência da tua parte vir desafiar o

campeão de todas as corridas! E a insolência, tartaruga, deve ser punida! − Houve

manifestações de concordância por parte de alguns amigos de Aquiles. Mas este

interveio imediatamente.

− Calma, meu amigo Glauco − e estendeu o baço, na direção do amigo,

como que para o travar de, ali mesmo, cometer alguma imprudência. Afinal, do

outro lado, tínhamos apenas uma tartaruga. − Eu próprio tratarei desta tartaruga

atrevida…

− Mas o seu desafio desconsidera-te e ofende-nos a nós igualmente, que

somos os teus melhores amigos. − Glauco estava de facto melindrado com tudo

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aquilo. Parecia mais atingido que o próprio Aquiles, que mantinha uma segurança e

uma calma verdadeiramente olímpicas. A tartaruga decidiu responder-lhe.

− O que seria verdadeiramente ofensivo, senhor Glauco − e a tartaruga

vincou a palavra senhor − era se o meu desafio se dirigisse a si, por exemplo, pois

estaria a ignorar o verdadeiramente veloz Aquiles.

Glauco riu-se − Oh! Serias esmagada!...

− Esmagada, senhor Glauco? Foi esmagada que disse? − Era visível que a

tartaruga começava a divertir-se com Glauco. − Mas não estamos a falar duma

corrida?

Alguns dos que não gostavam de Glauco aproveitaram para esboçar um

sorriso ante o descaramento da tartaruga. Glauco deitou-lhes um olhar furioso. E

tratou de esclarecer a tartaruga.

− Era uma maneira de falar, tartaruguinha!

A tartaruga ignorou o diminutivo. O seu objetivo era outro e não se podia

afastar dele. Nem ela, nem nós. A tartaruga optou por despachá-lo.

− De qualquer modo, senhor Glauco, terá sempre a oportunidade soberana

de apostar contra mim. E pode mesmo dobrar o valor da aposta, à medida do seu

melindre. Que não seja um melindrezinho. − Ouviu-se uma exclamação de surpresa

perante a provocação.

Aquiles começava a ficar irritado com este diálogo entre a tartaruga e

Glauco. Ainda para mais estava a ser uma oportunidade para o pequeno animal

brilhar. Decidiu intervir e pôr fim a tudo aquilo.

− Bem, vamos lá acabar com isto! − Aquiles não disfarçava a sua irritação.

− O que é que pretendes afinal, criatura?

Apesar de tudo e duma certa hostilidade no tom das palavras de Aquiles, a

tartaruga permanecia imperturbável, mesmo sozinha e rodeada de tantos homens.

Estes já não pareciam tão bem-dispostos. Havia alguma animosidade no ar. Ela

compreendia que os amigos de Aquiles, os mais fiéis do séquito, também se

sentissem atingidos e postos em causa. Mas ela não podia recuar.

Não estava nem nunca esteve no seu feitio desistir. A sua vida era, por mais incrível

que parecesse, um constante corrupio de desafios e contrariedades, num mundo

ainda dominado pelos homens. Algumas vitórias e também oportunidades perdidas.

A sua resposta à pergunta de Aquiles iria refletir isso. Precisamente.

− Penso que fui clara, Aquiles. À frente dos teus amigos − e apontou à sua

volta − lancei-te um simples desafio que gostava que aceitasses. Uma corrida, na

tua especialidade, uma corrida que deverá ser memorável. A meta: aquele pinheiro,

num circuito que, informei-me, bem conheces. E o prémio de vinte moedas de ouro,

a serem pagas ao vencedor pelo derrotado ou derrotados.

Era um repto público, feito à frente de testemunhas. Para Aquiles, o de pés

velozes, seria impensável quanto ultrajante não aceitar. Ao mesmo tempo, talvez

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não fosse muito coreto correr contra uma tartaruga. Tratava-se de animais que não

eram conhecidos por serem grandes corredores, antes pelo contrário. As tartarugas,

com a sua carapaça enorme, moviam-se muito vagarosamente. Correr contra uma

tartaruga não era propriamente muito dignificante; mas não aceitar o desafio era

bem pior para o seu prestígio. Imaginou as conversas por todo o lado: que o

campeão Aquiles tinha tremido face à provocação duma tartaruga, que já não era o

que era, que tinha arrumado as botas, que estava velho. Aquiles compreendeu que

estava entalado. Maldita tartaruga! Os seus amigos aperceberam-se da sua súbita

fúria e Aquiles percebeu que eles tinham percebido. Forçou um sorriso. Os seus

amigos fizeram o mesmo, embaraçados. Alguns deles também já tinham feito os

cálculos de Aquiles. Não lhes agradava que se comentasse no futuro que tinham

tremido diante duma reles tartaruga. Viveu-se um momento constrangedor, que a

tartaruga aproveitou, examinando os seus pés, como quem aquece os motores. Da

próxima vez arranjo as unhas, pensou. Era o pensamento de quem estava

perfeitamente à vontade. Ainda bem que Aquiles não conseguia adivinhar o que ía

na cabeça da tartaruga, da tartaruguinha como ele tinha dito, pois estes

pensamentos seriam mortais para o corredor.

Mas Aquiles acompanhava toda aquela descontração da tartaruga. Por isso,

começou a sentir-se mal. Era um aperto no estômago, que rapidamente alastrou ao

intestino. E depois à bexiga. Concentrou-se na expressão facial: ninguém podia

adivinhar o mal-estar que o corroía. Todos sabiam que ele era um grande campeão

da corrida em todas a suas modalidades; era aclamado por todo o lado,

reconhecido em todos os locais; os jovens invejavam-no e tentavam imitá-lo, sem

sucesso; homens e mulheres desejavam-no; os seus adversários temiam-no. Acaso

aquela tartaruga estaria a par desse currículo? Talvez isso a fizesse desistir…

Tossicou para chamá-la à atenção.

− Escuta lá, tartaruguinha! Sabes que a fama me persegue?

A tartaruga ergueu os seus olhinhos tímidos na direção de Aquiles.

− Sei. E lamento-o. Mas não te posso ajudar, Aquiles!

− Ajudar? Aquiles pediu-te ajuda? − Era novamente o intrépido Glauco,

agora de braços cruzados, como um vulgar arruaceiro. Era ele quem forjava a ira

própria dos companheiros de estrada. No entanto, a tartaruga permanecia

indiferente ao estilo ameaçador de Glauco. Enfastiada, aproveitou para explicar a

todos.

− Aquiles confessou que a fama o perseguia. Podemos, portanto, concluir

que por mais que queira não consegue ultrapassar a fama, mesmo sendo o corredor

que afirma que é. A fama, como sabem, não me persegue. Há muito tempo que a

deixei para trás!

Houve um burburinho de espanto. Quase todos estavam admirados com a

dialética do pequeno animal. Aquela carapaça escondia verdadeiros dotes retóricos.

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Será que podia também esconder algum mecanismo especial que lhe permitisse

atingir velocidades sobre-humanas?

Aquiles procurava algo que lhe permitisse não correr. Não podia recusar o

desafio da tartaruga, pois isso seria uma autêntica calamidade; não haveria bicho

careta que não se aproveitasse disso para o ridicularizar. Olhou para os seus

amigos. Percebeu até que alguns deles estariam entre os primeiros a divulgar esse

fracasso. Alguns deles estavam com ele por acompanharem um campeão. Mas

agora começavam a desviar o olhar e não o encarar de frente como sempre tinham

feito. Se ele não aceitasse correr contra a tartaruga haveriam de virar-lhe as costas

definitivamente. E passariam a segredar primeiro, e a pregoar, depois, que Aquiles

era um fraco, que fora derrotado por uma vulgar tartaruga. Sim, porque não aceitar

correr contra a tartaruga era o mesmo que ser derrotado pela tartaruga. Aquiles

sentia que estes pensamentos o estavam a atormentar demais. Lançou uma

derradeira questão que poderia evitar a corrida.

− Disseste que apostavas vinte moedas de ouro, mas não vejo onde guardas

as moedas com que pagarias a tua derrota. Não me parece que possas pagar.

Acaso transportas contigo algum saco de moedas ou mesmo um cofre escondido? −

e soltou uma gargalhada. Olhou para os seus amigos e estes também sorriram

concordantes. Depois olhou para a tartaruga, esperando que esta não tivesse

resposta para o seu repto. Porém, a tartaruga limitava-se a abanar a cabeça.

− Não esperava isto de ti, Aquiles. Essa desconfiança não te fica bem. −

Subitamente Aquiles deu conta de que ter levantado a questão da existência ou não

das moedas não tinha sido muito bem jogado. Alguns dos seus companheiros

esboçaram sinais de concordância com as palavras da tartaruga. Esta retomou a

sua argumentação. − Além disso, só no fim da corrida é que as moedas têm que

aparecer: as minhas ou as tuas. E, entre nós, a honra vem primeiro e só depois o

ouro.

Aquiles pareceu envergonhado. Não podia imaginar que num animal tão

pequeno pudessem caber princípios e regras morais. E lições de moral! Estava

arrependido de ter tocado no assunto. Os seus amigos começavam a simpatizar

com a tartaruga. Temia que também essa corrida não pudesse ser ganha, ficando

reduzido ao apoio incondicional, mas pouco esclarecido de Glauco.

A tartaruga, a pequena e atrevida tartaruga, tornara-se num poço de

surpresas. Será que poderiam existir habilidades e truques que a tartaruguinha não

quisesse revelar antes da corrida para que Aquiles não desistisse antecipadamente?

Estas perguntas começaram a surgir no espírito já perturbado de Aquiles. Ao

mesmo tempo sentiu que as suas pernas começavam a fraquejar. Teria a

tartaruguinha lançado algum mau-olhado, algum feitiço que lhe embaraçasse as

pernas? Aquiles sentiu que algumas gotículas de suor lhe assomaram à testa…

Estaria demasiado aflito? Olhou à volta para os seus amigos. Estaria visivelmente

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aflito? O que os seus amigos já tinham percebido era que Aquiles estava a demorar

tempo demais para responder ao desfio da tartaruga e isso não era próprio de um

campeão. Não, Aquiles tinha que despachar rapidamente o assunto e resolver

aquele sufoco. Dirigiu-se, novamente, à tartaruga.

− Bem, então… pequena tartaruguinha… − fez-se um silêncio à volta, para

escutar da boca de Aquiles a sua derradeira resposta − não te importas de repetir

os termos exatos do teu desafio?

Todos os amigos de Aquiles respiraram fundo, depois de terem sustido a

respiração, presos às palavras de Aquiles. Tinham esperado a derradeira resposta

de Aquiles, mais ainda não acontecera. Alguns não esconderam, a deceção e o

enfado face àquele comportamento invulgar do amigo e todos aqueles atrasos.

Talvez tudo aquilo não passasse dum inédito truque por parte de Aquiles, mas

também não percebiam porque é que Aquiles, o de pés velozes, tinha que recorrer

a truques, para derrotar uma insignificante tartaruga. Ela podia ser engraçada,

habilidosa na argumentação, de resposta pronta, mas as tartarugas não eram

conhecidas pela sua velocidade. As tartarugas, de perna curtíssima e carregando

uma enorme e pesada carapaça, eram lentas, com movimentos quase

impercetíveis. Não era possível que Aquiles temesse correr contra semelhante

animal, mesmo tratando-se daquela tartaruga.

E a tartaruga repetiu o que já dissera: uma memorável corrida, tendo o

pinheiro como meta, correndo-se num circuito que Aquiles bem conhecia. E onde

sempre obtivera vitórias retumbantes. A última tinha sido sobre um estrangeiro que

aparecera vindo, dizia ele, de terras onde o sol nascia e nunca se punha. Ninguém

se lembrou de perguntar-lhe co0mo é que isso era possível. O entusiasmo à volta

da corrida tinha sido enorme, mas a vitória de Aquiles, ao fim de cinco voltas,

enlouquecera a multidão que assistia ruidosa. O estrangeiro, envergonhado e

cabisbaixo com o peso da derrota, afastou-se imediatamente sem cumprimentar o

vencedor. Partiu e nunca mais ninguém o viu, deixando uma grande dívida na

estalagem onde se hospedara.

Neste caso tudo era diferente. Era verdade que ninguém conhecia aquela

tartaruga, mas parecia igual a todas as tartarugas que tinham sido vistas por ali.

Não se sabia donde era oriunda, talvez da terra do outro estrangeiro. Aquiles

percebeu que não devia pensar mais nisso, que as dúvidas só lhe perturbavam a

sua condição física. Tinha que tomar uma decisão.

− Está bem, tartaruguinha. Aceito o teu desafio. − Ouviram-se suspiros de

alívio e exclamações de satisfação. − Mas com uma condição: que me digas o teu

nome. Gostava de conhecer melhor o meu adversário.

Todos os sues companheiros aproximaram-se da pequena tartaruga.

Também eles estavam curiosos. O círculo à volta dos dois corredores apertou-se.

Alguns inclinaram-se ligeiramente sobre o pequeno animal.

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− Ora, nobre Aquiles, o que é um nome? Acaso o invólucro conta mais que o

conteúdo que o envolve? − A tartaruga dirigia-se a todos, geria as suas expetativas,

sabia alimentar o interesse de todos. − Porém, compreendo o teu interesse. O

vosso interesse. No fim da corrida dir-te-ei, dir-vos-ei, o meu nome.

Houve alguma desilusão estampada no rosto de alguns. Aquiles não se

manifestou. Sabia já que não valia a pena insistir, que era praticamente impossível

que a tartaruga mudasse de opinião. Optou por recuperar a iniciativa do processo.

− Bem, então, vamos lá despachar isto, que ainda quero ir jantar a horas! −

E começou a executar alguns exercícios físicos de aquecimento.

Até que os dois se colocaram lado a lado, prontos para começar a correr. Ao

contrário das outras vezes, os companheiros de Aquiles não lançaram gritos e

exclamações de incitamento. No entanto, muitas pessoas se tinham vindo a juntar,

movidos pela curiosidade e pela presença do próprio Aquiles, o de pés velozes.

Além disso, correra rapidamente a notícia que Aquiles se preparava para correr,

para defrontar uma tartaruga.

Era a Glauco que cabia a tarefa de dar o tiro de partida, que não era um tiro,

mas apenas um sinal com o braço. Quando Glauco erguesse o braço, os corredores

deveriam preparar-se e aguardar; só quando o braço baixasse é que começaria a

corrida.

Os dois alinharam, um ao lado do outro. Aquiles lançou derradeiros olhares à

tartaruga, tentando adivinhar os seus propósitos. Haveria algum truque? Como é

que a tartaruga julgava que poderia vencer a corrida, derrotar Aquiles e ganhar as

moedas de ouro? Aquiles não queria deixar-se impressionar por estas dúvidas, mas

assomavam à sua cabeça sem ele querer. A tartaruga, por sua vez, limitava-se a

olhar em frente. Parecia ausente, completamente indiferente à excitação que

crescia à sua volta.

A partir do momento que Glauco ergueu o braço para dar início à corrida fez-

se um silêncio sepulcral. Geral e sepulcral. Todas as conversas se suspenderam e

todos os olhares se dirigiram para os intervenientes diretos. Enquanto Aquiles

saudava os seus admiradores e cumprimentava os seus amigos, piscando-lhes o

olho, como se tudo já estivesse resolvido, a tartaruga continuava com o olhar fixo

em frente. Quando Aquiles voltou a olhar para a tartaruga, perdeu a boa-disposição

e optou por se concentrar, olhando para o pinheiro. Até que Glauco baixou o braço,

dando início à corrida.

É escusado explicar como Aquiles, depois de dar meia dúzia de passadas,

erguendo o joelho e fletindo ligeiramente o tronco para trás, mesmo sem grande

elegância, ganhou imediata distância em relação à tartaruga. Esta deslocava-se

vagarosamente e apenas e afastara um metro da meta, o que se poderia considerar

muito bom para uma tartaruga e a velocidade média que estas atingiam. Todos

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aqueles que assistiam à corrida não esconderam a sua desilusão. Face ao que fora

apregoado, tudo aquilo não passava de um embuste.

A vinte metros da partida, Aquiles parou subitamente e voltou-se para a

tartaruga, gritando:

− Então, tartaruguinha? Ainda pretendes alcançar a meta durante o dia?

Houve uma gargalhada geral. Aqueles que chegaram a pensar que do

pequeno animal poderia surgir alguma inesperada surpresa e que, dessa maneira,

se poderiam vingar dalguma arrogância com que Aquiles os brindava por vezes, já

maldiziam o discreto crédito que tinham dispensado à tartaruga. De certo modo,

estavam satisfeitos com este desfecho. Satisfeitos e, alguns, descansados. Glauco

parecia recompensado. A fidelidade nem sempre era recompensada; em tempos de

crise ou de perturbação social, como os que viviam, os arrivistas eram facilmente

escutados e seguidos. Só que Aquiles ía continuar a ser o campeão que todos

conheciam.

De qualquer modo, era estranho que a tartaruga não respondesse a Aquiles

e continuasse a sua caminhada. A tartaruga continuava na corrida, o que, afinal,

era óbvio: ainda ninguém ultrapassara a meta.

Glauco, ufano, é que não perdeu a oportunidade e aproximou-se da

tartaruga. Para que esta ouvisse melhor o que ele lhe tinha para transmitir, dobrou

um joelho que apoiou no chão. Mesmo ao lado do pequeno animal.

− Escuta lá, reles tartaruga!... Eras tu quem pretendia derrotar o meu

Aquiles?... Consegues vê-lo a afastar-se? Espero que aprender esta lição e

desapareças para sempre da nossa vista. Vinhas pôr em causa a nossa ordem

social… Eu próprio me encarregarei do teu desaparecimento e te lançarei no mar.

Hei-de enviar-te para o outro lado do mundo donde vieste e donde nunca deverias

ter saído! Desprezível criatura!...

A tartaruga olhou para o lado e fixou-o nos olhos. Porém, rapidamente

desviou o olhar, como se tivesse ficado agoniado com a visão obtida.

Entretanto, Aquiles recomeçou a correr, aproximando-se rapidamente do

pinheiro combinado. Não demorou, pois, a chegar à meta. Nesse momento, e

porque apesar da distância estava bem visível para os seus amigos, estes

manifestaram-se ruidosamente, festejando a vitória do campeão Aquiles. Glauco

era o mais exuberante acrescentando aos seus gritinhos de felicidade, repetidos

pulos imitando os macacos. Aquiles respondeu a estas manifestações acenando e

distribuindo sorrisos e beijos através das mãos. Aquiles alcançara a vitória que o

deixava finalmente descansado. Porém, no meio dos festejos, alguém reparou na

tartaruga.

− Olhem! A tartaruga continua a correr!

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Todos se calaram e olharam na direção do pequeno animal: este continuava,

de facto, a sua caminhada, indiferente ao que estava a acontecer. Um dos

companheiros de Aquiles deslocou-se até junto da tartaruga.

− Então pequeníssima tartaruga, não reparaste que Aquiles, o nosso

campeão e amigo, já chegou à meta?

A tartaruga não parou para responder. Parecia nem ter ouvido o que lhe

tinham dito. Mas acabou por responder, continuando a olhar em frente, fixada no

seu objetivo.

− E daí? A corrida já terminou?...

O outro não queria acreditar no que acabara de ouvir. − Não terminou? Foi o

que disseste? Que não terminou?...

A tartaruga, com efeito, continuava a andar, mantendo o passo certo. Não

abrandara, sequer.

− Alguém disse que a corrida, a nossa corrida, uma memorável corrida como

não me cansei de repetir bem alto, seria apenas uma simples volta, como um

mero… promenade de dimanche? Ouviste alguma coisa nesse sentido?

O outro, atónito, sem palavras, regressou até junto dos seus amigos e

relatou o curto diálogo, sem olvidar que a tartaruga se exprimira em francês!

− Em francês???

− Promenade de dimanche!!! − Houve uma exclamação geral. − Repetiu

que uma memorável corrida nunca poderia ser apenas uma volta.

De facto, ninguém tinha ouvido falar de a corrida ser apenas uma volta. E

todos concordaram que uma memorável corrida não poderia terminar tão

rapidamente. Todo, exceto Glauco, que exprimiu, aos tropeções, a sua discordância,

mas rapidamente teve que ceder. A tartaruga, aquela maldita tartaruga, tinha

razão! Só que agora havia um outro problema: quem é que ía contar isto a Aquiles?

Este, ainda junto da meta, começava a ficar intrigado e inquieto com o que

se estava a passar, mas que ainda não percebera ao certo o que era. Apenas podia

concluir que o grupo deixara, inesperadamente, de festejar a sua vitória e mais

pareciam estar num velório; e que tudo isso deveria ter a ver com aquela odiosa

tartaruguinha que continuava a movimentar-se. Em vão tentava compreender as

palavras que os seus amigos trocavam entre si. Mas eles tinham começado a falar

demasiado baixo, como se estivessem de volta dum segredo que não queriam

partilhar. Para Aquiles era evidente que algo de errado se estava a passar. E que

tinha a ver com ele. As dúvidas e a ansiedade começavam a regressar. A alegria da

vitória ía-se diluindo. Com os nervos, as pernas recomeçaram a tremer. Suava,

agora, de forma mais abundante. Os populares que o rodeavam começaram a

afastar-se dele, apercebendo-se do estado de tensão visível no seu rosto. Alargara-

se uma clareira à sua volta. Para Aquiles era como se aqueles indivíduos, pobres e

andrajosos mas que o admiravam, já soubessem o que se passava e fosse

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José Carlos S. de Almeida, Aquiles e a Tartaruga

esmorecendo, por isso, o seu apoio. Porém, Aquiles conhecia muito bem o que era a

ingratidão dos falsos amigos. A populaça também imitava estes piores traços da

maneira de ser da aristocracia.

Até que se apercebeu que Glauco caminhava na sua direção.

Aquiles não era só conhecido por ser um grande campeão das corridas.

Aquiles era o de pés velozes, alguém que, correndo, parecia que voava. Parecia que

voava se é que, por vezes, não voava mesmo. Havia quem dissesse que os seus pés

não tocavam no solo e que, mais que alguém que correndo voava era antes alguém

que voando, também corria. Ora, Aquiles era também conhecido pelas suas fúrias

violentas. E era precisamente quando se enfurecia que os seus pés deixavam de

tocar no solo. Assim, quando Glauco se aproximava de Aquiles era visível que o de

pés velozes estava a atingir o auge da sua mais recente fúria. Aquiles estava a

perceber que os seus amigos tinham interrompido os festejos de vitória e isso só

podia significar que ele não tinha ainda vencido a corrida. Era por isso que a

tartaruga continuava a correr. E ele ía ser o último a saber.

Glauco tinha tentado que coubesse a outro a incómoda tarefa de comunicar

a Aquiles que a corrida não terminara. Mas ele era o amigo mais chegado de

Aquiles. Quem, se não Glauco, estaria em condições de transmitir tão más notícias?

Não era Glauco o único que conseguia apaziguar o espírito de Aquiles quando este

era atingido ou pela mais radical violência ou pela mais profunda melancolia? Não

era, afinal, Glauco um jovem, um jovem belo e harmonioso, capaz de transportar

Aquiles para ambientes de nenhuma disputa, onde Aquiles não se sentia

pressionado pela corrida e pela necessidade de vencer, de obrigação de a todo o

momento ter que afirmar que ele era um campeão, um campeão de pés velozes,

alguém que era invejado pelos humanos e pelos deuses, numa constante corrida?

Quando Glauco chegou junto a Aquiles, pela primeira vez, estava a ser

consumido pela tristeza. Muito a custo, transmitiu-lhe o que já todos sabiam.

Aquiles nem queria creditar no que Glauco lhe estava a dizer. Talvez a tartaruga

não tivesse razão, mas não podia recusar-se a fazer mais umas voltas, umas

simples voltas, que não podiam ser, claro, assim tão elementares. Ganhar só com

uma volta era desprestigiante e podia até ser motivo de risota. Aquiles sabia que

com o nível que alcançara, era forçoso ver-se rodeado de invejosos; alguns deles

foram os que empurraram Glauco para esta desprezível tarefa. E Aquiles sabia isso

muito bem, mesmo que Glauco o escondesse. Não, não podia deixar de continuar a

correr. A tartaruga queria uma corrida memorável, pois iria ter uma corrida

memorável. A uma corrida memorável iria corresponder uma vitória memorável. Só

uma corrida memorável poderia dar origem a uma vitória que ficasse para sempre

ancorada na memória de toda a gente. Foi isto mesmo que Aquiles respondeu e

explicou a Glauco, que lhe pedia para desistir, para não correr contra a tartaruga,

que ela era uma enviada dos deuses mais ciumentos, que ele antevia alguma

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José Carlos S. de Almeida, Aquiles e a Tartaruga

tragédia. Mas Aquiles não se deixou demover. Por isso, Glauco acabou por se

comover com a decisão de Aquiles, uma decisão própria dos grandes heróis. Porém,

ao mesmo tempo, não conseguia deixar de sentir que algo não estava bem.

Continuava com o pressentimento de que uma tragédia, como uma devastadora

tempestade, se aproximava. Aquiles riu-se. Retomou a corrida ao circuito, desta vez

com uma energia nunca vista. Queria atingir e manter uma velocidade esmagadora

que anulasse quaisquer dúvidas. Glauco regressou para junto dos seus amigos, sem

conseguir abandonar esse funesto pressentimento. Quando se cruzou com a

tartaruga, que continuava a sua corrida, esta, contra o que era de esperar, ergueu o

olhar na sua direção. Os seus pequeninos olhos procuraram Glauco. E abrandou o

passo, quase parando. Glauco achou que a tartaruga se despediu dele emitindo

uma pequena risada. Ao mesmo tempo, o fim da tarde aproximava-se velozmente,

com a formação de nuvens negras no horizonte.

Epílogo

Só valeria a pena contar esta história com uma tão grande desproporção de

forças se o resultado final fosse incerto e viesse contrariar o resultado mais

provável. Assim, em nome duma história mais surpreendente, Aquiles sairia

derrotado. Mas isso seria um final descoberto antecipadamente pelo leitor mais

experimentado. Então, a vitória de Aquiles voltava a ser o resultado mais

inesperado. Mas quem é que acreditaria que a vitória de Aquiles fosse tão

tortuosamente inesperada? Também havia a hipótese de nenhum dos contendores

conseguisse alcançar o resultado que desejava. Um empate! Ora, seria uma fraca

solução, uma solução, digamos, própria de tempos de encolhimento espiritual, uma

história para gente que não arrisca, de acordo com este tempo de lixo, que é o

duma crise económica mas também de crise dos valores da autenticidade. Mas

abandonemos o que são hipóteses e descrevamos o que, afinal, acabou por

acontecer. A realidade é sempre mais surpreendente que a ficção. E é por isso que

o realismo triunfa sobre todas as tentativas literárias mais experimentais.

Aquiles regressou à corrida, com a intenção de realizar a tal memorável

corrida. Mais furioso que nunca, entregou-se à corrida com toda a energia de que

foi capaz. Estava decidido a manter a máxima velocidade, nunca abrandando.

Todos aqueles que tiveram a oportunidade única de assistir a esta corrida puderam

ver o que nunca tinham visto até aí, o exacerbar das qualidades de Aquiles. Por

isso, todos vibraram com a corrida de Aquiles. Quanto mais Aquiles corria, mais os

seus amigos o incitavam; Aquiles respondia a esse entusiasmo aumentando ainda

mais a velocidade e a passada. Tudo isto revelar-se-ia fatal. Não diminuindo o

esforço, não o doseando com prudência, Aquiles acabou por cair para o lado,

inanimado.

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Page 11: Aquiles e a tartaruga   infantil

José Carlos S. de Almeida, Aquiles e a Tartaruga

Subitamente, todo o público ficou imóvel, gerando-se um si8lêncio mortal a

toda a volta. Um vento frio, gelado, percorreu a assistência. Glauco olhou para o

céu. As nuvens negras tinham antecipado a noite, criando uma abóbada de pedra

sobre a Terra. Por momentos, vendo que Aquiles não se movia, todos julgaram que

o seu campeão tinha terminado aí a sua vida. Glauco, quebrando o seu estado

catatónico, correu desalmado na direção de Aquiles, gritando contra a desgraça que

se abatera sobre eles. Quando chegou junto do amigo, ajoelhou-se e agarrou-lhe o

tronco, como uma mãe a um filho naufragado. Até que confirmou que Aquiles

apenas desmaiara e continuava a respirar. Estava vivo, mas não se mexia!... Em

vão tentou Glauco despertar o seu amigo Aquiles. Por fim, depositou-lhe um beijo

na face, mas Aquiles não despertou do seu sono.

Entretanto, a tartaruga continuava a sua corrida, agora solitária, mas o que

era verdade é que sempre fora uma corrida solitária. Mantinha um passo certo e

indiferente a tudo. Continuou nesse passo até ao fim do dia, realizando várias voltas

ao circuito, concretizando aquilo que consideraram ser uma corrida memorável.

Aquiles só acordaria no dia seguinte. Os seus amigos respiraram de alívio,

embora estivessem muito aborrecidos com Aquiles, por tinham perdido algumas

boas moedas de ouro. Ninguém, contudo, protestou de viva voz. Aliás, todos

ficaram em silêncio quando Aquiles, erguendo-se do leito para onde o tinham

transportado, lhes dirigiu a pergunta fatal.

− Afinal, o que é que aconteceu? Quem é que venceu a corrida?

Todos trocaram olhares de embaraço entre si. Glauco, temendo que todo

aquele silêncio fornecesse a resposta que todos evitavam e que acabaria por

transtornar novamente Aquiles, resolveu tomar a iniciativa e apressou-se a

responder ao mesmo tempo que lhe passava a mão pela testa perlada de suor.

− Ora, quem é que haveria de ganhar a corrida, Aquiles? Que pergunta?... −

Aquiles pareceu, por momentos, confundido com a resposta de Glauco e todos

temeram o pior. Até que soltou uma enorme gargalhada, no que foi acompanhado

por Glauco e por todos os que estavam, de pé, à sua volta. Como sempre.

José Carlos S. de Almeida

Lisboa, 16 de Setembro de 2013

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