Aquilino Ribeiro - O MALHADINHA

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*Danado aquele Malhadinhas de Barrelas, homem sobre o meanho, reles de figura, voz täo untuosa e tal ar de sisu- dez que nem o próprio Demo o julgaria capaz de, por um no- nada, crivar à naifa o abdó- men dum cristäo. Desciam-lhe umas farripas ralas, em guisa de suíças à borda das orelhas pequeninas e carnudas como cascas de noz; trajava jaleca curta de montanhaque; sapato de tromba erguida; faixa pre- ta de seis voltas a aparar as volutas dobradas da corrente de muita prata -- e, Aveiro vai, Aveiro vem, no ofício de almocreve, os olhos sempre frios mas sem malícia apenas as mandíbulas de dogue a atraiçoar o bom-serás) as suas façanhas deixaram eco por toda aquela corda de po- vos que anos e anos recorreu. Na velhice, o negócio tilin- tado através de geraçöes, as andanças de recoveiro, o ver e aturar mundo, tinham-no provido de lábia muito pito- resca, levemente impregnada dum egoísmo pândego e glorio- so. Nas tardes de feira, sentado da banda de fora do Guilhermino, ou num dos poiais de pedra, donde já ti- vessem erguido as belfurihas, alegre do verdeal, desboca- va-se a desfiar a sua crónica perante escriväes da vila e manatas, e eu tinha a impres- säo de ouvir a gesta bárbara e forte dum Portugal que morreu.*

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*Danado aquele Malhadinhasde Barrelas, homem sobre omeanho, reles de figura, voztäo untuosa e tal ar de sisu-dez que nem o próprio Demo ojulgaria capaz de, por um no-nada, crivar à naifa o abdó-men dum cristäo. Desciam-lheumas farripas ralas, em guisade suíças à borda das orelhaspequeninas e carnudas comocascas de noz; trajava jalecacurta de montanhaque; sapatode tromba erguida; faixa pre-ta de seis voltas a aparar asvolutas dobradas da correntede muita prata -- e, Aveirovai, Aveiro vem, no ofíciode almocreve, os olhos semprefrios mas sem malícia apenasas mandíbulas de dogue aatraiçoar o bom-serás) assuas façanhas deixaram ecopor toda aquela corda de po-vos que anos e anos recorreu.Na velhice, o negócio tilin-tado através de geraçöes, asandanças de recoveiro, o vere aturar mundo, tinham-noprovido de lábia muito pito-resca, levemente impregnadadum egoísmo pândego e glorio-so. Nas tardes de feira,sentado da banda de fora doGuilhermino, ou num dospoiais de pedra, donde já ti-vessem erguido as belfurihas,alegre do verdeal, desboca-va-se a desfiar a sua crónicaperante escriväes da vila emanatas, e eu tinha a impres-säo de ouvir a gesta bárbarae forte dum Portugal quemorreu.*

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.he 13IQuando comecei a pôr vultono mundo, meus fidalgos, eraa porca da vida outra droga.Todas as semanas contavamdias de guarda e, por cadadia de guarda, armava-se osaricoté nos terreiros. Näoandaria Nosso Senhor deterra em terra -- eu cá nuncame avistei com ele -- mas averdade é que a neve vinhacom os Santos e as cerejasquando largam do ovo os per-digotos. Bebia-se o briolpor canadöes de pau até quebonda. Um homem mesmo com osdias cheios tinha pena demorrer.Näo tenho cataratas nosolhos, ainda que me hajam ro-dado sobre o cadáver quasedois carros de anos, mas osdias de hoje näo os conheço..he 13-14Ponho-me a cismar e näo osconheço. E, quanto mais cis-mo, mais dou razäo ao Migue-läo da Cabeça da Ponte, quefalava como livro aberto, ogrande bruxo. Muitas vezeslhe ouvi dizer quando estavade boa lua, o que nem sempreassucedia:

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-- Tempos viräo em que ogovernaräo as terras väs e osfilhos das barregäs.:,.he 14Agora deitem Vossoriasconsultas e digam-me: quemtudo lo manda no concelho?Quem? O doutor Alípio, ofilho da Ruça da Folgosela,com porta aberta aos mar-chantes na feira de S.Mateus. Quem recolhe boasnovidades? O pele-de-asno doBisagra com umas barreirasrabosanas, donde näo valia apena enxotar a milheira,quando ainda o mundo andavatorto. E, vejam, o meu ricolinhar do Paul -- água quan-ta quer, estrume do cortelho,sacho e mais sacho -- näopaga a mantença do cultiva-dor!Voltou-se tudo; de meutempo, também, homem de pala-vra era como se trouxessesempre consigo um alforge delibras. Ajustava o que que-ria e levantava o que queriade proprietários e de tendei-ros. Palavra era palavra,mais ouro de lei que uma peçade D. Joäo. Assinava-se decruz e muito judeu seriaaquele que negasse os doisrabiscos lavrados de seu pu-nho, por que näo era só negardois rabiscos, mas o grandesinal de lisura e de verdadeque Jesus Cristo deixou aoshomens ao morrer num madeiropara nos remir e salvar!Väo lá agora com essas!...

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.he 14-15Barrelas vestia-se com aestopa e o linho dos seuslinhares e o burel apisoadodas próprias ovelhas. Umacapucha da marca durava duasvidas.No Outono, assim que assombrias começavam a cair nasesparrelas, um cristäo reco-lhia-se à toca. Lar bem sor-tido de lenha, porco na sal-gadeira, pipinha:,.he 15com o espicho a compasso, oboizana do temporal podia bu-far. Seroava-se nas lojasdas vacas e aos sábados ba-tia-se a ribaldeira até asTrês Marias empalideceremno céu. Invernos inteiriçoscomo os dos lagartos. Mas,ah, logo que se ouvia a cor-colher: *tem-te lá, tem-telá*, Barrelas vazava-se poresses caminhos de Cristo emvotos e romarias. Ia-se àSenhora da Lapa, à Senho-ra da Penha do Vouga, decruz, estandarte e borracha atiracolo, no bornal o päoamarelo de azeite e ovos, nomerendeiro as trutas do Pai-va. Em toda a parte punharamo a nossa mocidade -- ra-pazes capazes de arremetercontra uma baioneta, moças apuxar para loirinhas, que poraqui näo correu sangue afri-cante. A gente näo era falsaa bródios e funçöes, näo sópelo preito que nos mereciamos santos como porque ninguém

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seria mais amigo de espaire-cer e folgar.Ah, velha Barrelas dumsino! Tomara-me eu outra vezcom vinte anos e saber o quehoje sei! Diabos me levem senäo fosse rei. Mas rei a va-ler, e nenhum rei de copas,ali... de ceptro em punho,todos ajoelhados diante de.he 15-16mim a lamber-me os butes, sa-bendo que o era, pois rei eraeu sem o saber. Que menos,com o rapariguedo à volta:*Antoninho, cravo roxo!*saúde de cavalo, açafate oque se chama farto, caminhosdesimpedidos?!Que o mundo é outro --apregoa para aí o mestre-:,.he 16-régio. -- Virou para me-lhor... Há menos atropelos,maior igualdade, menos a patado rico sobre o cachaço dopobre... A prova näo é boade tirar. Lá que há maisinstruçäo, isso há. No meutempo sabia ler o ManuelAbade, e ganhou esta alcunhaa ler nos seröes o *Mestreda Vida* e a *História deCarlos Magno e dos DozePares de França*. Mas sa-ber ler näo basta para serfino, ser cavalheiro, e muitomenos ser feliz. Eu só tar-de, moço do senhor vigário,estudei letra redonda. Sala-manca a uns sara, a outrosmanca, olhem, meus senhores,ainda me näo apontava o buço

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e já por minhas próprias eboas artes era dono dum ma-chito, täo bom para estardio-ta como para carga, de jarre-tes rijos como aço, só umpouco rifador o dianho: ofrade missionário que mo ven-deu tinha três dentes estoi-rados dum senhor coice quelhe pregou. Deu-me na fanta-sia para pôr-lhe campainhascastelhanas na barbela, cor-nachas de cores acima dasorelhas, franjas na retranca,eh! parecia mesmo a cavalga-dura dum bispo! Eu de ribadele e, tepe, tepe, por aque-les povos de Cristo, maisveloz que o raio, ouvia vo-zear das portas: "Lá vai o.he 16-17Diabo para fora da terra!"Adiante, antes chalaças quechumbada!...Pois é verdade, ainda näome picava a barba e já eu,desta Barrelas de ara direi-ta, perdida no calcanhar domundo atrás de caminhos exco-mungados, batia até a CostaNova, à cata de sal, de sar-dinha e:,.he 17doutros géneros daquelas pa-ragens, que ao tempo se ven-diam mais caro que os poses",da botica.E ia trocá-los pelo azei-te, a azeitona, o linho emadeitos, a termos de Pene-dono, e destas recovagensumas por outras, quatro li-bras, andavam em voga as de

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cavalinho, dançavam no saco.Nada se me punha pela fren-te, nem a noite, nem as in-vernias, nem os ladröes dasestradas, qual o quê! Comlatim, rocim e florim andarásmandarim.-- És um cäo a marchantear!-- dizia-me meu tio Agos-tinho, que antes de ser meusogro foi meu mestre, e donegócio ainda deixou cabondepara se lhe rezar o responso.Näo haja dúvidas, eu eraum adregas, hoje aqui, amanhälá nos quintos, sabe Deus.Virava-me em cima duma moedade dez réis. À dita confita,achei-me com dois pintos nobolso e, eles a chocalharem,a chocalharem-me também nosouvidos as gargalhadas deBrízida, minha prima direi-ta, raparigaça, como poucas,apetecedora de legítima e depresença, trunfa preta sobreo rosto benza-te Deus, gran-de cantarina de seröes e deromarias, e täo guapa em seuamanho como videira no gover-.he 17-18ninho da casa.-- Tate -- dizia-me o co-raçäo -- ali arde Tróia.Rampanei, mas já lhe ren-tavam, sem contar vizinhos, oTenente da Cruz, que corriaas feiras montado num garranorinchäo, o lódäo entalado naperna, todo:,.he 18frança, e arrotava o morga-dio, e o abade de Britiande,

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que a vira na festa do Már-tir e ficara a morrer porela. Dois macanjos de altolá com eles.-- Ó primo, pois tu duvi-darás do meu bem-querer? --dizia-me ela, com um jeitinhona boca, que parecia mesmoabrir a porta do peito, salvoseja, para eu entrar. -- Outua ou de mais ninguém.Pois sim, mas eu via-lhevoadeiras de frangainha real,e o palonço do meu tio, vaisenäo quando, começou a mos-trar-se muito ancho com a re-questa do abade que, além deser homem novo, muito bemafigurado, pregador de fama egrande batedor de montes, es-tava provido numa das fregue-sias mais rendosas da dioce-se. Dei tento nisso, umanoite que íamos de jornadavale do Vouga arriba, tocaque toca, ao ouvir-lhe elogiaro padre, mais do que mandaa cartilha a um confessado, edeitar contas, que nem mordo-mo, à côngrua, pé-de-altar ealcavalas da igreja de Bri-tiande. O marau do padre deutambém em vir fazer montariaspara os coutos de Barrelas,hospedando-se em casa do tioAgostinho com muito alarde efolgança.-- António -- pus-me a ma-lucar para comigo e para comDeus -- os lobos pilham-te a.he 18-19borrega quando menos te pre-catas. Que se há-de fazer?!Se a pedes ao pai, diz-te

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que näo. Duvidas? Oh, apa-nhas com o näo mais redondoque um coice do macho se ocoçares:,.he 19abaixo da rabadilha. Apa-nhas; näo andasse ele tontode todo a sonhar a filha aba-dessa! Ela... ela jurou-teamor verdadeiro, é certo, masisto de moça louçä, cabeçavä! Que se há-de fazer?...Um dia fui-lhe com asqueixas assolapadas. Ela re-cebeu-me com uns risinhos täosem propósito, que mais mecapacitei que a moça, ensan-decida com as finezas dos ga-lantes, andava vaidosa de si,esgarrada, na tal maré docarvoeiro, em que as mulheresse deixam pegar como bogascom trovisco.-- Olha, Brízida -- disseeu -- albardado seja quem seilude. Até há pouco o paiera por feiras e adjuntos tucá tu lá com o Tenente daCruz. Já lhes chamavam osdois da vigairada. Agora écom o abade de Britiande.Mas deixa, eu dê ainda hojeum estoiro no inferno se opadreca näo for corrido daquia toque de caixa...-- Que mal te fez o senhorabade, primo? Entäo já näo ésenhor de estar onde lhe ape-teça?-- É; mas eu também sousenhor de lhe fazer a barba àcoroa, cá a meu modo, paralhe lembrar que é casado com

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a Igreja.-- Credo!-- Credo, digo eu. O pa-dre é o vosso santantoninhopor quem sois. Cuidas quesou cego? Mais de uma vez te.he 19-20apanhei a espenujares-te dian-te dele, que nem pareciasdonzela de assento.:,.he 20-- Anjo custódio! Outravenha que rabo tenha... Rio--me para ele; que mal tem?-- Tem muito. Alguémacredita que o coroado vempara aqui caçar por caçar?Lebres e perdizes tem-nas adois passos, a dar com umpau, na serra de Tarouca.Ela fitou-me muito sériano fundo das meninas a escru-tinar, e tornou:-- Vem entäo pelos meusbonitos olhos?Raio de cachopa, encareitambém muito nela, e de saltome acudiu que mente Martacomo sobrescrito de carta,isto é, que muito na mulher énegaça. Estive vai näo vaipara torcer-lhe as voltas,mas ná, para trás anda o ca-.he 20-21ranguejo, e respondi-lheafoito:-- Vem, vem pelos teus bo-nitos olhos! Mas também juroà fé de quem sou: näo seráele que se goze de ti.-- Näo fales à rebentina,primo, que me derrancas aalma. O dito, dito.

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-- E que vale? Teu painäo consente...-- Que lhe hei-de fa-zer!?...-- Há um remédio: foge.Abalamos daqui uma noite evamos direitinhos ao abade daPenajóia, que nos deite abênçäo. Ele ainda se há-delembrar que lhe salvei avida...-- Fugir?! Jesus, que näodiriam de mim!:,.he 21-- Que haviam de dizer?Se honrada vais, mais honra-da vens.-- Näo; é muito feio.-- Pois, se é feio fica-tecom a tua, que eu vou-me coma minha. Com penas de iracabar nas cadeias celulares,sem ver sol nem lua, näo seráele que se goze de ti.Adeus!...E rodei, tonto de todo,täo tonto que se pudesse ar-rancar o coraçäo e atirá-lopara cima dum telhado, comominha mäe me fez ao isqueiro,da primeira vez que me apa-nhou a acender o paivante,fazia-o, ah, isso lhes juroeu que fazia!

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.he 22IiIsto de a gente tratar àsescuras, procurar entendi-mentos com coisa que se näovê -- como sucede em amor,que à alma näo se lhe levantaa tampa que a cobre -- nunca,pensando bem, o poderá levarà paciência homem leal de pa-lavras e säo de juízo. Deusfez-nos assim -- quem sabelá? -- talvez para se diver-tir com as trapaças e as es-parrelas que armamos uns aosoutros. Mas já que assim nosfez e para mim näo era novi-dade, um pensamento se gerouno meu seio, onde, embora euseja cristäo e confessado,nunca mais deixou de ser la-crau a ferrar: e é que o ho-mem é um bichinho para temer!Bichinho para temer comoinimigo, muito mais se, em.he 22-23vez de calças, o que Deuslhe talhou foram saias.A Brízida jurara-me amorverdadeiro, e eu bem lhe ou-via as vozes täo afoitas comosingelas; ria-se para mim, enos seus olhos encontravam osmeus ternura e claridade.Mas a alma que estava a es-preitar à janela por trás dasreixas, que me davam essaideia aquelas palavras demel, aquelas olhadas de pom-ba, aquela testa que, nem fa-lando nem ouvindo, consentia:,

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.he 23ruga, doido de mim, dariaeste mundo e o outro para aver. Nunca adiantei o pé emcasa alheia, sem tocar a al-draba; mas pudesse eu intro-duzir-me no peito de Brízidaà falsa fé, embora depois meapupassem de ladräo e houves-sem de me lançar na cadeia,que näo me benzia para o fa-zer.Depois do encontro quetive com ela, estäo os meusfidalgos a imaginar como fi-quei varado, em brasas, asbrasas que Deus e o Diaboacendem no peito dum cristäo,talvez ao desfastio, para oexperimentar. O pior é quecada um assopra da sua bandae temos o lume esparralhado.Amor por uma fêmea, isso queouvi a um senhor padre compa-rar a uma febre palustre, e amim me parece caldeiräo deágua a ferver sem se queimarchamiço, dança das libelinhaspor cima dum rio, ou entäo,noite negra na terra, coalha-da de estrelas no céu, pegouno meu peito uma só vez e deestaca. Sim, uma só vez eviva o velho!Um lindo palminho de rostosempre gostei de ver e admi-rar. Para que fez o Criador.he 23-24as bonitas senäo para jardim,ao menos, dos olhos de quemnäo é o jardineiro? Uma bo-quinha bem feita, dessas quesäo vermelhas, carnudas e ar-redondadas como as cerejas, e

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quando as puxam ao devaneioarranjam um jeito de vergonhae de fugir com que redobram acobiça da gente, ah, tais bo-cas sempre senti ganas debeijar e, cedendo à tentaçäo,aqui lhes confesso, algumas:,.he 24vezes beijei. Beijei e go-zei, que a carne é pecadora eninguém, a näo ser santinhocarunchoso, que näo de paucarunchoso, sabe resistir aoslambiscos do pecado.Brízida trazia-me doido,mas desta doidice, Deus nosacuda, que näo tem paragemnem vê mais nada. Nunca foitäo acertado dizer: com elame deito, com ela me levanto.Realmente näo se me varriamdos olhos as suas lindezas.Pudera, clamavam-nas o sol,a lua, os homens que a viam eficavam a rinchar, as mulhe-res que se mordiam de inveja,a pobre da Preciosa, que fa-zia belfurinha do corpo a pa-taco: a minha Brízida erabranquinha de neve e perfeitade feiçöes; alegre e airosano trajar; dona de casa deprimeira ordem; os seusseios, levantados como ospäes das boas fornadas, erama melhor fronha para um homemencostar a cabeça; que orgu-lho ir com ela às romariasquando toda a gente se punhaa admirá-la! Os seus olhosbastaria olharem a direitopara um cego ir dar com eles.Era uma flor, lá isso era, e

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assentava-lhe bem tudo o queagrada na Primavera e fazlamber os beiços no vinho.he 24-25mosto e nos rebuçados.Mas eu sempre fui um tantocismático e o Demónio ou osseus espíritos-santos de ore-lha levantavam a outra pontada manta: fia-te na cachopa,nas suas sete falinhas docese, quando mal te precatas, a:,.he 25pombinha bateu as asas. Poistu näo a sentes desarvorada?Vê se lhe espreitas para aalma, a arca cispada que tefaz dar o cavaco, e hás-deacabar por encontrá-la chei-inha com o padre. Que asno!Para ti tem ela os modos,mas para ele guarda os pensa-mentos, que säo sempre o me-lhor da festa. A ti faz-tepromessas; a ele iräo as ter-nuras. Que esperas?! Näovês que o padre é um figuräo,que lhe promete vilas e cas-telos, e tu um labrego, dá-mopobre, dar-to-ei aborrecido?!Näo lhe enxergas as mäos mi-mosas e fidalgas de todo emcomparaçäo com as tuas, co-bertas de surro? Entre um eoutro, bem tola seria Brízi-da se hesitasse. O párocoganha-o a cantar; é um moce-täo; faz dela um brinquinho;näo lhe häo-de faltar criadaspara a servir. E tu quem és?Tu näo passas do AntónioMalhadinhas, um pobre deCristo, um zé-ninguém, um

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côdeas que puxa uma besta decarga pelo rabeiro.Assim mesmo me falava aoentendimento o Diabo de rabopelado, com licença dos maca-cos. E isto me leva a suporque, se em verdade a alma étreva e o Diabo é o rei dastrevas, rei das almas se lhepode chamar -- salvo seja aheresia, que tudo serei menosjudeu.Pois da conversa com Brí-.he 25-26zida fiquei täo fora dos meuscinco sentidos que, pondo-meem casa a consertar os ata-fais da besta, näo atineiponto com jeito.:,.he 26Mais puxa moça que corda.E, vai, atirei o albardäopara o inferno, e fui-me atéa venda.Estavam os amigos pegadosao chincalhäo de seis, numbabaréu dos demónios -- por-que torna, porque deixa, nun-ca tu devias queimar a sotacontra um reles terno depaus; és um pexote; näo pas-sas dum troixa; prego-te como baralho no focinho estanha-do e comigo näo jogas tu mais-- ao tempo que o Albino ba-tia a dama de oiros na mesa,saltava-lhe em riba o Alonsocom o valete, e ele berravapara o Bisagra, que era par-ceiro: *ó alma de cântaro, vêlá se te deixas cornudar comodaquela que nós sabemos!*Aquela que nós sabemos era a

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mulher. Mas ele, coitadinhodos coitadinhos, no meio daassuada näo percebeu ou fez--se desentendido. Näo me de-morei ali grandes horas. Ha-via lance no jogo, ou dichotedaquelas bocas depravadas ca-pazes de varrer as mágoas quetinha no peito a morder?!Voltei a casa, pus o apare-lho no cavalinho e ala! Sólá fora, depois que passei aponte é que perguntei paramim e para com Deus:-- Onde vais, cabo dostrabalhos?Onde ia, onde havia eu deir? Nunca o sentido me puxa-ra fora de mäo; para aquelasbandas ficava o vale deArouca, onde há muito traziao intento de carregar azeite.Näo levava uma de cruzes,.he 26-27nem odres, nem outro viáticoalém do lódäo, mas embora, noCastro me abonariam o preci-so.:,.he 27Era pelo mês de Abril, nasemana da Pascoela, quandose vêem pelos caminhos, asso-mando nos altos, desaparecen-do nas baixas, as garnachasnegras dos padres. Lá väo,às vezes dois até três, ousozinhos com o arrieiro àfrente, a cavalo de suas hor-sas rabonas, de igreja paraigreja a confessar. Já flo-ria o alecrim e a alfazema, eao passar na cabeceira dosquintais o seu rescendor ala-

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gava os ares muito lavadosdas chuvas e escaioladinhosde sol. Tupa, tupa no cava-licoque, olhos aqui no cerealtodo verde, além no monte avestir pelagem nova, ou naságuas, que nunca como nestaaltura do ano säo folgazonas,desgarradas pelos caminhos, alançarem-se às cegas dos cô-moros, sôfregas nos próprioscorgos, e täo alegres queconvidam à alegria, tupa, tu-pa, a minha maluqueira foiamainando. Aboletei-me essanoite no Castro, em casa dumamigo que me forneceu o ne-cessário para o negócio, emal os galos cantaram a pri-meira vez pus-me a pé. Daliaté Arouca säo sete léguasdas velhas, por barrancos,onde nem reis nem ministros,que eu saiba, romperam os sa-patos, e tratei de picar.Ainda restava orvalho da ma-nhä à beira das paredes, e jáeu atravessava as serras mal-ditas que parecem estar alide propósito a esconder deolhos maus aquela abendiçoadabacia do Arda. À vista doconvento, meti à desbanda,.he 27-28por um atalho, aconselhadopelo rifäo: guar-te de homemde vila como de cäo de fila,direito:,.he 28ao povo de Santa Eulália,onde nunca me haviam arrefe-cido os pés. E andava eucorrendo os cambais à cata de

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fazenda, acertei passar porum pátio onde ia grande sa-rambeque. Rapazes e rapari-gas -- em tal número que de-via ter-se vazado para ali amocidade de muitos lugares --batiam a ribaldeira entre ar-cos de loureiro e buxo, comoesses que se armam nos adrosem festa de orago. Um homemde barbas ruças tocava rabecae, *vira-vira-vi*, até pareceque falava o demónio do ins-trumento. Bem repenicavam oda viola e o dos ferrinhos,era como se estivessem mudos.Pois ali me pranto eu à bo-queira do eido a admirar afunçanata e a considerar acasaria que, pelo ar, era degente abastada, quando um ho-mem se aparta do rancho, mefita muito, e vem de rópiapara mim. Estou a vê-lo naandaina de saragoça preta,chapéu terçado para a orelha,corrente de ouro ao peito,escanhoado como um padre, ho-mem dos seus cinquenta, ferose escorreitos.-- Ande cá, seu moço --disse-me ele. -- Ande cá,ande, que me há-de pagar hojeuma pedrada que me deu.-- O senhor vem errado --tornei-lhe com toda a pausa:a apressada pergunta, vagaro-sa resposta, calculando já avereda por onde seria possí-vel safar-me do percalço queme surgia pela frente. --Näo o conheço... nunca o vimais gordo... :,.he 29

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-- Pois eu conheço-o. Vo-cê näo é de Barrelas...? --Lá isso sou, que nunca mecoube no ânimo negar a terraem que fui nado. Mas pedradanäo me lembra dar-lhe...-- Deu, e saiba que a deuao Faustino de SantaEulália, que näo é homempara esquecer uma desfeita.Venha -- e, proferindo estaspalavras, o tipo respondia aomeu ar desconfiado com ar detroça.Fui-me atrás dele, que re-médio, se já lá ia com o meucavalo pela arreata! No ad-junto, pediu a caneca e me-teu-ma na mäo:-- Beba e beba-lhe bem,que é dado de vontade!-- Homessa! Acaba de di-zer que lhe dei uma pedra-da...-- Deu, torno-lho a repe-tir. O amigo näo estará lem-.he 29-30brado dum sujeito que passouno seu povo, vai fazer doisanos para Agosto, de rotapara a festa da Senhora daLapa? Vocês andavam a ma-lhar numa eira que fica à en-trada da povoaçäo, mesmo àilharga das casas... Parei aperguntar o caminho para aLapa, e você, seu moço, veiode lá com uma botelha cheiade vinho, e obrigou-me a be-ber. Aí está a pedrada quehoje aqui me há-de pagar!-- Näo digo que assim näofosse -- respondi eu já asorrir -- mas, se deslembrado

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estava, deslembrado fico. Debeber, pelo tempo das malhas,damos nós:,.he 30sempre a quem passa. É comocá os senhores, com as uvas,quando andam a vindimar.-- Dê-lhe as voltas quequiser, matou-me a sede quetrazia, e era grande. Nuncamais me hei-de esquecer quefazia naquela hora um sol decanícula que até rechinava aspedras. E, no íntimo, fizjura de lhe pagar a acçäo sealgum dia o caçasse a jeito.Mas ande, beba-lhe... Es-tará você mal comido, seumoço?Respondi-lhe que trincaraum pedaço de broa com queijoe que me sobrara merenda nosalforges, ainda que a verdadeverdadeira era trazer eu ape-tite de lobo, para esfandegarum cabrito, se o apanhasseassadinho no espeto. Mas elenäo deu crédito às minhas pa-lavras e, guiando-me atécasa, mandou pôr a mesa.-- O amigo a que anda, senäo queda mal o perguntar? --tornou-me ele.-- Ao azeite. Ouvi falar,se näo sonhei, que para estes.he 30-31lados houve grande farturaeste ano. Pois se há, dissecomigo, talvez tope com queencher os odres do fino e emboa conta. E, vai, tirei-medos cuidados e meti-me à jor-nada...

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-- Pois coma primeiro, queeu vendo-lhe uma carga. Selhe servir. Mas vou jurar àfé de quem sou que melhor fa-zenda näo topa por todo ovale de Arouca. O meu azei-te é dos que ardem sem pavio.E quanto a preço, descanse,que näo há-de ir roubado.:,.he 31-- Pois muito bem haja. Ejá que a uma fineza querajuntar outra, oxalá que no-vamente Deus lhe guie ospassos pela minha terra, paralhe dar segunda e melhor pe-drada.Sentei-me à mesa e veioservir-me uma rapariga tri-gueira, mediana de estatura,fartinha de seios, o rostosobre o redondo, com olhoscastanhos, täo ternos, queapetecia ser fidalgo para semvergonha lhos namorar. Tinhaas sobrancelhas muito carre-gadas e o nariz pequeno, umnariz que näo era como o dasmais mulheres, só dela e demais ninguém, mas cheio degraça, de que apenas sei darrelaçäo que as asas buliamcomo o das coelhinhas quandocomem. Andava muito bem ves-tida, chambre de veludilhorente ao corpo, lenço de lädescaído para as costas, boasaia, boa tamanquinha de ver-niz e, pelo meneio e pelorasgo, vi logo que era filhada casa. Näo se admirem que,a tantos anos de vista, melembre dela. Olhem: ficou-me

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na memória, assim inteira,assim estampada, como dentro.he 31-32duma medalha!O Faustino, depois que meviu a contas com a perna decarneiro que enchia a espade-la, voltou ao adjunto. E eufiquei só com a mocinha e dasua boca -- tinha belos den-tes e abria-se num sorrisoque alumiava mais que a graçade Deus, que nunca nos aban-dona mas näo se vê -- da suaboca ouvi a explicaçäo daque-la festa: as bodas do irmäocom uma:,.he 32rapariga de boa família emuitos teres, festa täo gran-de que nela, se se dessem aprocurar, encontrariam a natade Santa Eulália e dos po-vos vizinhos, na classe delavradores. Contou-me aindaquem era o pai e a mäe, coi-sas e loisas, e de tudo vimao apreço que estava debaixode telha farta e honrada.Comi-lhe bem, bebi-lhe me-lhor -- que a mocinha näo meconsentia o copo doutra ma-neira que atestado -- e comlhe pedir perdäo de a terdesviado do baile, perdäo aque ela atalhou dizendo quetinha muito tempo de dançar,me fui dali.No terreiro, o Faustinoveio ter comigo:-- Ficaria mal obsequiado,haja de desculpar.-- Desculpa peço eu de näo

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saber como lhe agradecer.Quanto a obséquio nunca re-cebi igual na minha vida.-- Entäo, se me quer agra-decer, tome parte na nossafesta. Um rapaz novo balhana ponta dum espeto! ÓRita!... Ó Rita, olha-mepara este moço... Parado as-sim, faz-me febre!A rapariga -- era a tri-gueirinha que me matara a.he 32-33fome -- chegou-se a mim todafagueira e, vai, arrumei olódäo a um canto, apertei afaixa na cinta, e rompemos abailar. Dianho de pequena,era leve como uma andorinha!Por leve nunca julguei quealguém me rendesse, mas aque-la levava-me as lampas. Levee entäo com uma ária, umagraça, pai do:,.he 33céu, que nem fidalga escondi-da nos trajos de camponesa!Por ali acima, nos volteiose repeniques da chula, breveéramos o alvo de todos os re-paros. E já os olhos casta-nhos sorriam para os meus,confiados; e já eu, peitocontra peito, lhe dizia queviera àquela terra por meumal.Numa das pausas da chula,o noivo veio-me saudar, maisa noiva, que era donzela jei-tozinha e de agradável pare-cer. E beba, e dance, e vi-va, todos me festejavam.Rita näo se apartava do pé

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de mim, e de ver-lhe os olhosmais doces, e ouvir-lhe a vozmais meiga, vinho ou quer queera começou a trepar-me aoscascos.A meio do pagode, por des-fastio, alguns rapazolas dolugar desataram em lutas defortaleza. Eu pus-me de par-te, que a tais provas näo meera dado dizer: "presente!",no íntimo admirando uns,chasqueando de outros. E,estavam eles a jogar a barra,apareceu ali o arganaz dumhomem -- peito em aduela, ca-chaceira de boi, cara de pou-cos amigos -- a ensarilhar aracha com tanta gana e fanta-sia que nem doido varrido aperseguir mosquitos à paula-da. E, com grande alarde,.he 33-34desafiava o mais pintado parao jogo do pau, a perder ouganhar uma moeda.À minha banda, o Faustinocelebrava as artes do melian-te::,.he 34-- Isto é um varredor defeiras temível. Está paranascer o primeiro que lhefaça sombra.De facto, pelo corpanzil,pela bazófia, parecia faia derespeito. Era também um dosdançarinos e, logo de princí-pio, lhe tomei azar porque,quando nos rodopios da chulaà Rita calhou a dar a voltacom ele, usou dum espalhafa-to, mostrou täo bacoramente a

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dor de cotovelo de a ver bai-lar comigo, que até a moça seescandalizou, quanto mais eu.Se fosse na minha terra eulhe ensinaria a ser mais com-posto e bem-educado com quemlhe näo procurava detrimento!Mas ali acalmei-me e deixeicorrer.-- Entäo ninguém se sentecom alma de ganhar uma moeda?Olhem bem: é ouro de lei! --e no cimo do pau passeava, aoque era de plano e bem apara-do, debaixo dos olhos dosparceiros, uma peça de D.Joäo V, dessas que já eramralas ao tempo, e hoje só seusam ao dependuräo das cor-rentes, por galhardia.Todos, homens e rapazes,chalaceavam com ele, louvan-do-o, näo pondo acanhamentoem se declararem seus subal-ternos na destreza e no po-der.-- Já que ninguém se ten-ta, torna para o saco! -- e,puxando a moeda, fingiu quedava com os olhos em mim: --Com você, seu homem, näo sefala em tal negócio....he 34-35Bailäo, maricäo!Estive um momento sem lhepoder tornar:,.he 35resposta, sufocado de raiva,até que lá atinei com estasrazöes:-- Se näo fosse nesta ter-ra e na sociedade onde me en-contro, ah, você havia de en-

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golir a bosteira! Aqui sólhe posso dizer que estoupronto a medir o pau consigo.Aposta uma moeda; eu, se ga-nhar, näo lha quero; manda-meproceder assim o respeito quedevo a este amigo. Mas seperder, perdida tenho a moe-da, que é dinheiro -- juro-opela salvaçäo da minha alma-- que nunca mais nos meushaveres conta.-- Pois seja lá como qui-ser. Tem um pau?-- Tenho pau.Fui buscar o lódäo e pude.he 35-36dizer à Rita, que me seguirae estava branca como a cera:-- Ó menina, empresta-meuma faca? Uma navalhinha queseja...? O principal é quecorte um pouco mais que quei-jo fresco e sombra das pare-des.Fitou-me ela muito nosolhos, mas eu sosseguei-a re-batendo-lhe com firmeza devoz o pensamento errado:-- Esteja descansada, quenäo é para mal. Eu näo souhomem de barulhos. Vai ver!Deu-me um canivete, meti-ono canhäo da véstia, e fuipara o homem:-- Cá estamos!O pau dele era um nadinhamais alto que o meu, o meu umpouco mais grosso que o dele,segunda:,.he 36desvantagem nisto de floreargentilezas. Mas täo-pouco

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aceitei que se tirassem àsorte os paus ou se igualas-sem, arranjando outros oucortando no maior. Riscoucampo o valentäo, por prosá-pia, que tal näo é de moda, elogo se plantou em posiçäo deparar, pau a escorregar paraa perna esquerda, mäos à de-vida altura. No terreiro,havendo estacado as danças ea zanguizarra, formaram todosem redondo.À minha mäo direita estavaRita, mais trémula e inquie-ta que o vero Anjo daGuarda quando o Diabo noschuça. Relanceei uma últimavista ao bazófio -- pulsosmais grossos que os meus, es-tatura que se avantajava àminha uma boa mäo travessa, osorriso, Deus louvado, fin-gido, sobre o amarelo -- e àvoz: *é uma! é duas! é três!*só armei para receber o pim-.he 36-37päo que caía sobre mim depancada alta. Varri o golpee, a tentear-lhe o manejo,comecei a parar com brandura,como a medo. Mesmo assim, domeu lugar näo arredava tantocomo a grossura dum vintém.Ele näo, ladeava, curvetea-va, dava tais saltos e pirue-tas que as pernas lhe pare-ciam um compasso endiabrado.Certifiquei-me do seu jogo,que era impetuoso, mas depouca ou nenhuma astúcia. E,sempre em posiçäo de defesa,deixei-lhe quebrar o arrega-nho, embora me custasse uma

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pancada de esfarrapäo no om-bro direito e um lanho nopulso, em que ninguém fez re-paro. Para os que estavam,sem dúvida que a:,.he 37superioridade era dele, poisme vinha inquietar no meucampo, e ali me mantinha en-curralado como a gato, nopoial, a dentuça dum sabujo.E até os olhos de Rita seme afiguraram desenganados.Gastámos uns minutos na-quela léria, tau-tau, tau--tau, até que lhe vi o fôlegoazougar na garganta. E entäocoube-me a vez de atacar. Aojogo dele, sempre tonto ealto, todo de rópia, opus omeu, baixo, curto e todo derapidez. E, notei, täo im-previsto lhe era que, se qui-sesse aos primeiros passesdespachá-lo com uma pontoada,fazia-o täo certo como tersido meu mestre nesta arte omaior jogador do Minho. Jáos olhos de Rita se alegra-vam e me pareciam estorninhosa saltaricar num jardim.Sim, senhores, näo façamtroça que, tê-la ali a ver-mecomo me via, se me näo trouxeânimo -- que tinha para dar e.he 37-38vender -- trouxe-me sangue--frio e vontade para levar abom termo a desafronta queestivera magicando.Tau-tau, a defender-seduma pancada ao ombro, faci-litou-se-me pular-lhe ao pei-

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to, e limpei-lhe o primeirobotäo, *o rei*. Foi täo rá-pido que ninguém reparou emal me deu tempo para varrera resposta que me mandava àcabeça. Todos podiam notar,ainda que ignorantes do jogo,que os contra-ataques do ho-mem, muito abertos e largos,me deixavam campo cabondepara lhe assentar, se me ape-tecesse,:,.he 38um golpe de escacha-pesse-gueiro. E, estranhos à minhatraça, tinham por bizarria oque näo era mais que uma re-falsada manha. Dois botöes,*capitäo e soldado*, foram àviola, um a seguir ao outro,täo calados e cerces como oprimeiro. E, racha contraracha, continuámos estreloi-çando. Parecia-me ver-lheagora, ainda que emproado, jáque näo recebera até ali gol-pe que se assinalasse, umcerto ar, meio de comprometi-do, meio de desespero. Essear, junto ao roxo das veiasdas fontes, que pareciam san-guessugas ao que estavam deinchadas, e à cor dos beiços,mais roxos ainda, lembrou-me,sabem o quê? o luaceiro depiedade que espelha de suabenta charola o Senhor daCana Verde. Coitado, sefosse noutro sítio e me ati-çasse o Diabo ao mau génio,estava há muito a fazer tor-resmos no inferno.Mas, bem, o homem soprava

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como um toiro. Obrigado ater firmeza nos pulsos, pois.he 38-39o alarve o que se propunhaera acabar e atirava à valen-tona, comecei a soprar tam-bém. Foi numa dessas arreme-tidas, quando o pau dele,vergastado pelo meu, rodoupor largo e desceu adormeci-do, que degolei o meu quartobotäo, *o ladräo*. E obracom asseio; ninguém viu, comoaliás sucedera das outras ve-zes. O colete tinha cincobotöes, faltava-me o último,*o segundo rei*. Já me näohavia de ser impossível ri-par-lho, fulo e cego como es-tava, a baba a:,.he 39referver-lhe nos cantos daboca. Eu näo me via ao espe-lho, mas parece-me que guar-dava o mesmo ar descansadocom que vim ao mundo, guardeina paz e na guerra, e com queconto apresentar-me um dia notribunal de Deus. Mas, den-tro de mim, sentia os espíri-tos mais inflamáveis que pól-vora.Como o machacaz continuas-se a despedir-me pauladas àmäo-tente, mandei-lhe tambémuma, pela sonsa, destas quenäo fazem rumor e só dá contadelas quem as rilha. Foi àilharga, e logo ele percebeuque se näo virasse de folhatinha mais pano da amostra.E, de facto, dali em diantefoi mais ordeiro. Já näo

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dava a escaqueirar-me a tola,mas como quem com o cacetequer partir um ovo, sem operder para a gemada. E eupude rematar a partida, ri-pando-lhe o último botäo, commais mandinga e disfarce queno jogo da vermelhinha.-- Bastará? -- pronuncieieu, plantando-me em meia de-fesa.O homem aprumou o pau e,.he 39-40encostando-se a ele, pôs-se alimpar o suor da testa.-- Vivam os valentes! Vi-vam! -- exclamavam em tornode nós. -- Näo há vencedornem vencido!-- Alto lá! -- bradei. --Há vencedor e vencido, se éque ainda há direito em Por-tugal. Olhem bem!Afirmavam-se todos paramim, afirmavam-se depois paraele e näo percebiam.:,.he 40-- Abotoe lá o colete, ca-marada! -- tornei eu para omata-sete. -- Abotoe-o quese lhe desabotoou. Está sua-do e pode apanhar uma pneumo-nia...O fanfarräo ia a fazer oque eu lhe indicara e, comopelo tacto näo encontrasse osbotöes, tratou de certificar--se. Vi-o primeiro quedarde boca aberta, depois fa-zer-se verde como as azeito-nas antes de começarem a pin-tar.-- Näo se aflija, homenzi-

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nho de Deus. Eles häo-deaparecer e pregam-se. À fal-ta de tesoura, faca tenho eupara tirar as linhas. Mandevir uma agulha -- e, ao tempoque isto dizia, deitado entreo pulso e o canhäo da véstia,mostrei o canivete que segaraos botöes.Ficaram todos suspensosquando vieram ao entendimentocompleto da façanha. Uns ga-rotos meteram-se de burrinhasà procura dos botöes, algunsacharam, e mostravam-nos demäo erguida, em grande alga-zarra. Näo sabia o homemonde esconder a vergonha, eeu, mais por vénia àquelagente que por brandura deânimo, desatei a rir e dis-se-lhe em bons modos:.he 40-41-- Vê o camarada que näosou apenas bailäo!O matula, que estivera umbocado sem saber o que maislhe convinha: se fugir, seatirar-se-me ao gasnete, sedeixar correr o marfim,saiu-se pela porta mais natu-ral e decerto a melhor, dandoo braço a torcer::,.he 41-- É a primeira que tal meacontece! Caramba, você eracapaz de levar à parede opróprio Mafarrico!Dava-me a moeda, rejei-tei-a sem palavras de agravo.E como eu lhes parecessecordo do génio a bem, e leva-do da breca se me puxassem a

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terreiro, como a proeza näoera päo nosso de cada dia,dali por diante fui mais fes-tejado que o próprio rabe-quista. Quando tornei a na-valha à pequena, vi-lhe osolhos täo lânguidos e täo hú-midos, que me veio a suspeitade que tivesse chorado pormim, chorado para dentro,quem sabe lá, se de consola-çäo, se de quê. Mas eu sólhe soube apertar as mäos quetremiam.Ricos tempos em que eracapaz de tais áfricas, ricostempos! E Deus fale na almado Chico Pedreiro, de Er-mesinde, que veio da sua ter-ra para a nossa erguer pare-des e, começava eu a espigar,ia para trás do cemitério en-sinar-me a jogar o pau! Apa-nhei muita negra nas mäos enos braços, mas, honra lheseja, aprendi o manejo todo.Graças a ele e à presença deRita, que me incutia vontadede ser homem, pude varreraquela desfeita com brio! OChico Pedreiro era a almadum jogador! Dois homens a.he 41-42atirar-lhe pedras, as pedrasa choverem umas atrás das ou-tras por cima dele, e ele pa-rava-as só com o pau. Parecebalela e deixem-me confessar--lhes,:,.he 42eu nunca vi, mas tenho-o comoverdadeiro. A tanto näo che-guei eu, mas o mestre näo

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perdeu comigo o tempo todo,haja em vista o colete dobrutamontes de Santa Eulá-lia que ficou varridinho comoeira ao fim das debulhas.Quanto ao alarve, quasetive pena dele, ao vê-lo lan-çado ao desprezo e eu maisapajeado que um herói quevoltou da África de bater ospretos. O que é certo é quedepois daquela minha avaria odanço näo pegou mais. Bemsarrafulhava o arco da rabe-ca; bem tiniam os ferrinhos;todos me queriam à sua bandaa sociar do mesmo copo. OFaustino, esse, pegou em mimao colo e, meio pingueiro,gritava:-- Um homem que trata as-sim bem outro, sem nunca comele ter tido negócio, se näofosse valente ficava-o a de-ver. Nunca eu me enganei como camarada! A minha casa édele. Tudo o que tenha édele. Se gostar da minhaRita, dou-lha; näo haja dú-vidas, dou-lha.Soltavam todos grandessurriadas e também eu, ma-neira de quebrar o estranhodaqueles ditos, proferidos,era notório, de gräo na asa;mas eu bem via a mocinha quenäo mostrava cara de zangadae reconhecia na fala deFaustino o tom que tem asinceridade e näo o gracejoou o fingimento. E tanto as-sim que, vindo outra vez.he 42-43dar-me de beber, em voz alta

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repetiu::,.he 43-- Há-de me agora aqui di-zer: gosta da minha filha?-- Gostará ela de mim? --retorqui eu rindo muito.-- Há-de gostar. Olhe queanda a rapaziada de três al-deias, doida lamechas, acheirar-lhe às fraldas. Alionde a vê, toda risota, näo émenina para dar trela a geri-faltes.Rita escondia o rosto como lenço, a sorrir muito; e, asorrir por debaixo do lenço,me deitava um travesso e fa-gueiro olhar.Desfez-se a festa, os noi-vos giraram à sua segada, ogrande peso de gente deban-dou, cada um para seu canto.E, quando eu esperava que oFaustino me fosse medir oazeite, ouvi-lhe dizer:.he 43-44-- O amigo hoje näo se vaiembora. Amanhä é domingo,näo se trabalha. Dorme cá,pois quero mostrar-lhe as mi-nhas fazendas...Esquivei-me com os negó-cios e näo sei com que maisrazöes, fracas razöes, da mi-nha cabeça transtornada.-- Nem fum, nem fum emeio. É uma desfeita, seporfia...-- Já aqui näo está quemfalou -- tornei eu, deixando--me convencer sem outros ra-lhos.-- Vamos até à quinta --

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e, pela casa fora, de súciacom o compadre e Rita, melevou à propriedade:,.he 44que entestava na moradia eera um pomar de formosura.Näo me cansei de admiraras parreiras, muito bem tra-tadas, já com pâmpanos depalmo, o olival que traziaboa promessa, a água que eraum Douro, e as colmeias quecomeçavam a sair ao sol daPrimavera. E, contente, quenäo há como um lavrador me-diano para ter o orgulho dosseus alqueives, dos garfosdos seus bacelos, das maçäsreinetas de sua enxertia, di-zia-me:-- O ano passado tive aquiquinze pipas de vinho. A no-vidade foi escassa... haviacepas para mais... Botou acinco cântaros o mel... e adois lagares o azeite.-- Näo há segunda lavoiraem Santa Eulália -- acres-centou o homem que vinha ànossa banda.-- Este ano será o queDeus quiser. Vai-me fazerfalta o rapaz que se casouhoje...Havia já estrelas, disse.he 44-45para o Faustino:-- Amigo, grande amigo,meça-me o azeite, que desejopartir cedo...-- O azeite näo lho meçohoje. Tem de passar o dia deamanhä connosco; já agora

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há-de ver outra fazenda.Ceámos à lareira, que anoite estava fria, em voltado lume, os pés de Rita täoperto dos meus que às vezesse esqueciam e me tocavam.Ouvi a história:,.he 45do Faustino, com seus teres,sortes e azares, desde avós anetos, e de tudo me capaciteique eram lavradores fartos ebenquistos; puxado a terrei-ro, por tabela, contei a mi-nha história e a de meuspais, a minha vida de negócioe alguns dos percalços nasjornadas, e em tudo me pare-ceu que näo ficaram desagra-dados. Já o lume se apagara,demos graças e fomo-nos dei-tar. Rita, de candeia namäo, levou-me a um quarto queficava logo à entrada da por-ta e, desejando-me as boas--noites, disse sorrindo:-- Durma bem e sonhe comos santinhos...-- Vou sonhar com a Ritaque também é santinha...-- Ui! sou uma peste; láque sonhe comigo, näo acredi-to.-- Acredite que hei-deadormecer -- se puder adorme-cer! -- a pensar em si...-- Jure lá...-- Pela luz dos meusolhos!-- Entäo também hei-deadormecer consigo no pensa-mento -- e, ditas estas pala-vras com a sua risadinha, vol-

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tou a cara e fugiu.Por muito tempo, cantaram.he 45-46e recantaram os galos, o meujuízo tresvairou, divagandoacerca de tudo o que se pas-sara, daquele agasalho täopaternal, de Rita, täo boa etäo linda, de que via os bra-ços a prender-me e eu comgana de nunca mais os desa-pertar:,.he 46de mim. E, só tarde, embala-do na grande, grandíssima ma-luqueira, é que adormeci.Altas horas acordei a pen-sar noutra que näo em Rita.A pensar em Brízida, a mi-nha Brízida cruel, olhostravessos como bogas no rio,cabelos a puxar para crioili-nha, mas tez branca de neve,a rir e a saracotear-se todadiante do abade de Britian-de. E senti nas fontes osangue a zoar mais do que seme tivesse mordido uma víbo-ra. Chamei a campo a doce, aterna Rita. Veio, mas brevese foi, como por bruxedo. Nofundo do meu peito quem agoravia, quem lá estava era Brí-zida, a Brízida estouvada, aBrízida incerta, a Brízidaque gostava de acender o ódiode homem para homem, levadana tirania de agradar. Bem aamaldiçoei e me chamei maldi-to; bem me disse que a me-lhor vingança era lançá-la aodesprezo e firmar pé naquelaterra, onde havia quem me

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quisesse bem. Näo houvemodo.Levantei-me de mansinho, emais manso que um ladräo mevesti. Abri a porta da rua,e com cautela a fechei. Numrufo corri ao macho que esta-va, à mäo de largar, no gran-de alpendre e deitei-lhe oaparelho. E, sem ruído, semvoltar a cabeça, vergonhosode mim, saí daquela terra..he 46-47Já distanciado, piquei, pi-quei, doido de todo... a pedirao macho que me atirasse paraum barranco. Ao passar osmontes, como se ali se estre-masse para mim o mundo, parei,:,.he 47e, olhando atrás onde à luzroxa da alba a neblina erguiapalácios, torres, jardins comonos contos de fadas, verti lá-grimas de sangue. Näo coro deo dizer. Chorei por ela, ameiga Rita, pela felicidade,sabe Deus a quanta voltavacostas para nunca mais! Masao dar de rédea ao cavalo paraseguir jornada, se Brízidavisse o meu braço estendidopara os longes do céu que acobriam, se me visse o rosto,eu lhes juro que deitaria afugir, a fugir, de tal sorteque ninguém seria capaz de aapanhar!.. fim cap. ii - pag 47 - (apanhar! -- linha 25).he 48III

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Aquela noite, tinha-seacabado de cear, botei o apa-relho ao macho com cilha do-brada para maior segurança.E, depois de meter o baca-marte e a merenda nos alfor-ges, fui prendê-lo com nósingelo, bom de desatar, àboqueira da quintä de meu tioAgostinho como viageiro pa-cato que deixa ali a besta evai dar o seu recado, se éque näo entrou na taverna abeber meio. O muro era baixoe quedei-me, cotovelos porcima da albarda, a espiar acasa e a vizinhança, à esperada paz morta de Barrelas,quando as ruas ficam apenaspara os gatos e as almas dooutro mundo. Estava o arfresco e, na hora pasmada quecomeçara a correr, uns taman-.he 48-49cos ao largo a descer o patimpara os cortelhos, o vagidodum menino de mama, prato atinir contra prato, eram comopedras que caíam num poço eficavam afundidas. Aqui ealém, na oficina do Bártolosapateiro, no sótäo do Albi-no alfaiate, a luz da candeiariscava as portas gretadas ecosia com seu fio amarelo osrombos das almofadas carcomi-das. Entretanto que serena-va, tanto ia olhando umascoisas e outras,:,.he 49como me entretinha a deitarpalpites sobre o êxito da em-

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preitada, nanja a perguntaraos meus botöes se fazia bem,se fazia mal. Estava decidi-do e mais que decidido, e na-da deste mundo me desviariado propósito, nem o anjo Ga-briel de espada em riste ouum santo com as melhores ra-zöes do céu. Pudera, eu achegar do vale de Arouca, noestado de espírito que osamigos calculam, e a MariaMulata a dizer-me: -- Antó-nio, se näo andas a horas, apássara bate as asas, sem di-zer por qui me vou!Tudo se sabe neste mundo,e eu soube por ela o que näogostava, mas bem preciso meera näo ignorar. Soube que aBrízida, naquela tarde emque a ameacei, correu a dei-tar tudo no regaço da Clau-dina Bisagra, que trazia ar-rendada ao Ramos a loja tér-rea ali ao pé, onde tinhadois cabos de cetolas e omonte das batatas e, mais quetudo, utilizava para fazer osfavores a quem ela queria. Esoube que a zarga, longe depô-la da minha banda -- aqui-lo o padre tinha-a convidado-- matou-lhe mas foi o bicho.he 49-50do ouvido com histórias domeu mau génio, que algum diachacinava um homem e me man-davam para o degredo, e o meuofício näo era de molde a er-quer casa com soalho. Aomesmo tempo, ia-a adoçando àideia, que sempre lhe causaraengulhos, de ser ama de pa-

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dre.E, rebatendo-a assim porum lado, enfatuava-a:,.he 50por outro com celebrar-lhe asvirtudes do masmarro, homemde chaço que seria capaz defazer dela fidalga, com boaschinelinhas nos pés, papobranco, e filhos no tarde or-denados ou doutores.-- Olha-me para o Dr.Laurindo, que até vai à caçacom el-rei! Näo é filho dopadre Bezerra e duma criadaque levou das Arnas?! Há-beis e danados para a vidanäo há como filhos de pa-dre...-- Meu primo era capaz deme esfolar -- dissera ainda aBrízida.-- Esfolar, esfola ele ascabras para lhes safar osodres. O abade de Britiandetambém tem unhas.-- Qual o quê, o Antónioé uma fera...-- Apanhes-te tu em Bri-tiande e que vá lá arrancar--te com quanta bófia tem...Assim mesmo a grandessís-sima madragoa. A Maria Mu-lata, que tinha casa costascom costas e nunca mais per-doou à Claudina ter-lhe re-laxado o marido, contara-meisto e forçoso me era acredi-tar, que nunca foi mulher dedespiques nem de falsos tes-temunhos. Por isso, toca,António, a tomar as tuasdisposiçöes. Quais elas fos-

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.he 50-51sem, depois de muito malucar,väo Vossorias saber...Por cima da albarda do ma-chinho observei, tornei a ob-servar, passou-se um bom mi-galho, e, quando me pareceutudo sossegado, entrei naquintä do meu tio, o matoabafava-me os passos, e cha-mei Brízida.:,.he 51A moça, ainda que há um cer-to tempo se mostrasse esqui-vadota, veio logo ter comigoe sem dar o menor sinal dedesconfiança. Estou a vê-la,rosto branco que alumiava noescuro, lenço à volta do pes-coço caído para as costas so-bre o xaile, roca espetada nacinta -- como se erguera deseroar, sentada no banquinho,pés virados para a fogueira.-- Que há, primo?-- Chega aqui -- segredei,passando-lhe a manápula. --Anda comigo...-- Aonde?-- Aonde, eu to direi.Pöe a roca!-- Quero saber primeiro...-- Mau!-- Quero saber...Senti-a estrebuchar, comganas de semear alarme, e ra-pei da faca:-- Vês esta folha? Tem-sefarto de matar cabras. Näoqueiras tu espetar-te nela,depois espetar-me eu!Acomodou-se, que ela sabiaa rês que eu era, e sem tugir

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nem mugir, com pequena resis-tência, se foi deixando ar-rastar rente ao muro. Lá narua, sentindo que passavamuns homens com tabuleirospara o forno, ainda gemeu amanhosa:-- Ó primo, para onde mequeres levar?-- Chiu! Näo dês um pio..he 51-52Se acordas as pedras, temoso caldo entornado.:,.he 52À ilharga, mais mansa emais humilde, nem a minhasombra. Chegámos junto domacho, travei dela, enrodi-lhei-a sobre o albardäo, e deum salto pus-me à garupa.Tudo isto fi-lo em menostempo do que se gasta a di-zer. Ia jurar que minha pri-ma só deu bem acordo do meuintento quando a tracei pelacinta e o animal picado ar-rancou. Entäo, sim, pôs-se aesbravejar e a ganir. Vieramcabeças aos janelos, mas jánem Deus nem Demo lhe acu-diam. Barrelas fora, trupe,trupe, podiam largar-me àperna a cavalaria de Chaves,que näo me pilhava.Fora do povo pareceu-me anoite ainda mais negra, o céumal esclarecido pelos foga-chos da Estrada de Santiagoe por um minguante estreito emais vermelho que foice en-ferrujada. Poucos metros seviam adiante do nariz, mas omulinho era forçudo, valente

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dos cascos, e conhecia o tri-lho melhor que eu às minhasmäos. Os rumores que se ti-nham alevantado pela vila es-moreceram à distancia, cala-ram de todo, e eu ia na boapaz do Senhor, com lume sim,mas mais pimpäo do que se näohouvesse gente, lobos e medospor esse mundo além, e umarapariga na turquês dos meusbraços. O escuro, que era oprincipal, lá o ia cortando opeito do macho, ora ladeando,ora direito, sem tropeçar.Além de teso, por mais deoito dias lhe dei raçäo decevada e a folga toda. Amoça, ao cabo dum certo tem-po, convencida :,.he 53de que nada ganhava em zare-lhar, deixava-se conduzir semresistência, o tronco caídopara a frente sobre a argolados meus pulsos, assim como ogirassol à noitinha. Às ve-zes lá lhe trepava um soluçodo fundo da arca e, por issosó, eu jurava que vivia.Eu, boca calada.Falar-lhe, para quê? O ga-viäo näo diz à perdigota:"Deixa-te ir que vais bem".Leva-a tolhida, céus fora,até o recato dos montes. Arédea arrepanhada para a pal-ma da mäo, a alma a cantaruma aleluia mais alta que ados padres no sábado daRessurreiçäo com o folar àentrada da barra, lá íamos.Piavam para os outeiros ascorujas excomungadas: deixa

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piar! As ferraduras do ma-chinho feriam lume nas fragasescorregadias: tem-te nas.he 53-54gâmbias, que mais melindrosasó uma carga de ovos!Dobra que dobra, depoistrota que trota, breve passá-mos a aldeia do Touro, en-tanguida de sono, com a igre-ja branca do caio a fralde-jar, e o rio por ali abaixo,roçando as pedras, abocanhan-do as rincolheiras que säo amadre das trutas, chocalhandoumas águas mais tagarelas quemulheres à boca do forno.Saltaram-me os cäes ao ca-minho, béu, béu, só me lar-gando para lá das hortas.Depois, a subir a serra, sóouvia o choutar da besta;atrás, em volta, a todo o re-dondo da boca de cuba, que éo que me lembrava:,.he 54a terra, parece que o ermo ea noite se fechavam sobre nóspara nos engolir. Lá no al-to, figurou-se-me que estavaa cair orvalhada; eram as lá-grimas de Brízida a esba-goar-se-me para as mäos.-- Ora adeus! -- trauteeicom os meus botöes. -- Cho-ras, deixa-te chorar! Antestu chores ao toledo do que euficasse a tocar berimbau, lo-grado na minha boa fé.No topo dos montes queolham Touro e Carvalhas --Adomingueiros lhe chamam --e onde há cortes de gado para

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os pastos de veräo, pus pé emterra.-- Segura a rédea -- ro-guei para minha prima.Charriscando palitos sobrepalitos, às apalpadelas, látopei o cardenho onde eracostume acoitar-me quando ostemporais me colhiam à voltade Lamego.-- Abaixo, Brízida -- vima dizer-lhe. -- Vamos aquipernoitar. A noite está es-.he 54-55cura como breu e caminhosmais estuporados näo os tri-lhou Cristo quando veio aeste mundo para salvar os pe-cadores. Amanhä, com a alba,rompemos.Entrámos para a cortinhabem lastrada de mato, com umalpendre de giestas a agasa-lhá-la do cieiro. Entrámos éum modo de dizer, que foi-mepreciso dar-lhe um bom empur-räo. Acomodei o machito aofundo; com a roupa do apare-lho armei a cama. E ali, semmais testemunhas que Deus docéu, depois de breve briga --tinha de ser -- da coitanaxafiz dona.:,.he 55Mal luziu a telha, nós,que näo tínhamos pregadoolho, largámos das mantas."Porque eu era um malvado!Porque a bem nunca o seucorpo havia de ser meu, quan-to mais minha muller! Antesmoça de porta aberta!" -- e,porque torna, porque deixa,

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ali me atirou com quantosdiabos e maldades lhe vieramà cabeça. Näo chorava. Aspalavras que proferia pareceque feriam lume. Só depois,quando a baldeei de novo paracima do albardäo e que, dei-tando olhos, só viu ermo, gi-estal e mato a boiar no ne-grume, desatou -- vejam odisparate -- a carpir-se e arogar-me que a matasse.-- Prima -- disse-lhe euem boas maneiras, que meiapartida estava ganha -- àface do Senhor que nos vê,amanhecemos casados; uma cruzsobre nós e duas lengalengasde latim é quanto falta; va-mos por elas à Penajóia quenäo é lá para que se diga nocabo do mundo. Está lá ocara-unhaca dum padre que.he 55-56prefere ir de catrâmbias parao inferno a deixar de fa-zer-me a vontade.Cavalgámos novamente. Jácantava a cotovia, embora senäo visse a torre que vai er-guendo quando sobe ao céu.Às duas bandas a serra come-çava a dilatar-se e a bran-quear, com o negro todo a es-correr para os corgos e a su-mir-se pelos matagais. E,com o clarear, o mato tin-gia-se, vermelho, amarelo,roxo, consoante, que chegaraa Primavera. O caminho näo:,.he 56tinha que o estudar, assina-lado pelas rodeiras, sempre

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deserto, sempre adiante denós direito à casa de Deus eà Penajóia. E eu täo ufanoia da sorte que até aos pene-dos redondos, que nos iam fi-cando à desbanda e me pareci-am às vezes ladröes acocora-dos, depois de os reconhecer,eu sentia ganas de salvar.Ela, näo, mantinha-se namuda languidez, mal gemendo,mal chorincando, olhos fecha-dos ao abril, ouvidos surdosaos pássaros que, de púlpitonos ramos das urgueiras, er-quiam suas ladainhas. Eh,cantavam pelas pássaras, comono meu peito se cantava pelaminha, feliz felizardo que apilhara no laço.-- Porque fungas, menina?-- perguntei ao cabo de muitapaciência.-- Choro o meu tristefado.-- Que fado?! Näo estavaescrito e com a tua letra?-- Nunca te julguei täodesumano...-- Outros o säo mais doque eu.-- Quem? Nem os matadoresdos caminhos... Porque me.he 56-57näo arrancas a vida?...Arranca-ma, que te perdoo!Olha, atira-me do aparelhoabaixo para cima duma rocha eacabou-se. Näo te gozaste jáde mim? Atira-me, e per-doo-te a morte e o mal que mefizeste! Atira!E, agora dizes tu, logodigo eu, a rapariguinha

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foi-se adiantando no palavre-ado, até que tive de lhe:,.he 57mandar calar a sanfona commau modo. Ao descer paraMondim, encontrámo-nos com aAna Malaia oveira, que vi-nha da cidade.-- És tu? -- exclamou ela.-- Volta para trás,António, que caminhas à per-diçäo. Teu tio Agostinho jálá vai estrada fora mais oscapangas dos Maçäzeiros, ar-mados até os dentes. Väo-teno encalço...-- Essa é boa! Quem diriaa meu tio que cortámos destabanda?-- Deram conta e meterampara aqui ao palpite. Sabemque é teu amigalhaço o padreda Penajóia e fazem-te nesserumo.-- E näo se enganam.-- Já vês que aventaram aariosca.-- Mas meu tio andava lápara a Bezelga...-- Tu a saíres e ele a en-trar. Escapaste por um cabe-lo. Agora, se te pilha, es-fola-te vivo. Pois roubas--lhe a moça, a ele, teu se-gundo pai? Bem diz o outro:cria o corvo, tirar-te-á oolho. Carrasco, näo podesser ajudado de Deus!-- Onde se cruzou comeles, santinha?-- No Castanheiro doOiro. Olha, sabes que mais,.he 57-58

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a Brízida que torne comigo etudo pode ficar em águas debacalhau.-- Qual, para a frente éque é Almeida... Saudinha!:,.he 58-- O anjo da guarda teacompanhe... Eu cá näo adi-antava mais um passo!Estas palavras näo eramditas, cheguei espora ao ma-chinho: quem tem medo compraum cäo. Lá adiante, voltei acabeça para trás. A Malaiaoveira lá estava, estática nomeio do caminho, de bochechasaparvoadas, a ver-me tropi-car. Era uma pobre de Cris-to, em nada e por nada má mu-lher, que, segundo depoisconstou, morreu santa.Morreria. Do que morreu àcerta foi de fome, quando jánäo podia trabalhar. Pelorepouso da sua alma: padrenosso que estais no céu...À ponte de Dalvares haviadois caminhos: um directo,estrada fora, pelo Casta-nheiro do Oiro; outro pelaUcanha e Gouviäes, amboscom passagem por Lamego.Este oferecia a vantagem dedesviar-se de Britiande,onde o tio Agostinho, näo meencontrando rasto, poderiater feito alta e reunir a sio abade maila tropa fandanga.Mas perdia umas boas horase, com a moça que era gordu-cha e eu que näo era estopa,talvez o machito näo aguen-tasse o estiräo até a Pena-

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jóia. Boa rota deixara aosair de Barrelas -- Pendi-lhe, Meijinhos, Penude,serra, sempre serra -- masquê, näo tocava em nenhumAdomingueiros!Obra de cem passos da pon-te de Dalvares levei:,.he 59na incerteza: rompo à frente,tomo à mäo esquerda? Chegadoà primeira guarda, ora, ani-mei-me e meti afoito pela es-trada, como se comigo näocarregasse contrabando de talvulto. O que fosse soaria, acachopa já era mais minha doque doutrem e, quanto a mor-rer, a gente só morre quandochega a data assente no livrode Deus.Pela estrada fora, tocaque toca, alcançámos e deixá-mos à retaguarda mulheres quecarregavam à cabeça a canas-trinha do negócio; burrostropiqueiros, ajoujados decarqueja para a cidade; vian-dantes, de saquitel ao ombro,passo largo, na sua rotinacom Deus ou o Diabo; resespara o talho, arrebanhadas agranel de aldeia em aldeia,com as cabras a barregar pelopegulhal, um moço à frente a.he 59-60chamar, atrás o marchante, depau e manta, a tanger, e täoembrulhados na nuvem de poei-ra que mal se viam. Cava-leiros todos farófias, quenäo davam a salvaçäo, rompiampor nós e desapareciam num

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rufo. Eu, ainda que martela-do de cismares, a todos tira-va o chapéu, e também a cape-linhas, nichos de almas ecruzes de homem morto, quesarapintam o caminho, comopassageiro que vai em paz edia bom. O Sol subiu nocéu, doirou a natureza, mor-deu-nos a pele, e com a alga-zarra da Primavera e o banzédo mundo näo puderam ir mo-lhados por mais tempo osolhos da lagoia. Embezerradasim, pouco caso fazendo à:,.he 60promessa de lhe comprar nacidade um bom xaile de lämais um par de ciganas deoiro.Obra de meia manhä apeámosnuma tasca e puxámos do far-nel para almoçar. A estala-jadeira pôs-se a olhar muitofita para nós a pontos que eulhe disse:-- Parece que nunca viugente!Ela, sorrindo, replicou:-- Passaram aí uns homensa cavalo e estiveram a tirarinformaçöes dum sujeito eduma rapariga que pelos si-nais säo vossemecês.-- Já lá väo há muito?-- Estaria a nascer oSol. Já botaram a Lamegose era esse o destino...Contou como eram e näoeram: um meio velhote, alto egrosso, olhos azuis, guedelhaespessa que nem a murça dumcónego, e dois moços, duas

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vergastas tesas, com ares depoucos amigos. Estava tirado.he 60-61o retrato de meu tio Agos-tinho e dos dois mequetrefesdos Maçäzeiros.-- Pois se eles iam embusca de nós, estäo com sorteque nos encontram.-- Lá se avenham...Dali a Britiande era umsalto; cavalo bem disparadocobria a distância num quartode hora. Fui-me afrouxando opasso para que o animal pu-desse deitar o fôlego todo selho pedisse, e desta feitaconfesso -- que o receio näoé cobardia -- confesso que me:,.he 61encomendei a todos os santose santas da minha devoçäo, emespecial ao milagroso PadreSanto António, que tem omesmo nome que eu, é padroei-ro de namorados, e quandoquer fazer um milagre näopergunta quem tem razäo. Näome esqueci de me encomendartambém aos Santos Mártiresde Marrocos que lhe levam aperna numa dificuldade.Muitas vezes ouvi dizer aminha mäe: roga ao santo atépassar o barranco. E medopara trás das costas. Toque,toque, Britiande lá avulta-va, apertada às bandas da es-trada, com casas caladas, ca-sas antigas de pedra bruta,mulheres a catar-se às por-tas, e meninos nus pelos pa-tins a esganiçar-se pelas

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mäes. Estava tudo em sosse-go; pelos vistos näo era alique eu quebrava osso. Jádava graças a Deus quando,ao desandar da última esqui-na, uma porta se abriu e meutio Agostinho, os Maçäzei-ros, o padre e uma choldrasem conta me saltaram à fren-te. Deitei a mäo ao baca-marte, de cara para a patu-leia que estarreceu com o meu.he 61-62rompante:-- Olá, amigos, que éisso?Aquilo lá se lhes afigurouque eu ou havia de segurar amoça ou combater, ou que re-cobrassem ânimo, facto é quecresceram para mim depois deterem hesitado. Entestei obacamarte ao peito do maisadiantado, que por sinal erao meu tio:-- Tenha-se, senäo morre!:,.he 62-- Hás-de pagá-las, cäo!-- Tenha-se, tenha-se, se-näo morre!Já eu tinha o dedo no ga-tilho quando o homem estacou.Estacou, e acobardado com oineu rasgo, vendo os púrriosmais irresolutos que ele,pôs-se a gaguejar a distan-cia:-- Pula abaixo, Brízida!Pula abaixo!...A maluquinha ia a mexer--se... Näo custou muito tê--la queda, pouco menos quedado que se jazesse entre as

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mäos da Ana Malaia que eraquem amortalhava os defuntos:-- Ó Brízida, tu pulasabaixo, mas és a primeira acair. Se näo tens amor àvida, faz lá! Agora vosse-mecês deixem seguir quem vaiseu caminho... que eu morrermorrerei, mas a trouxa näo alargo...-- Isso é que larga! --rosnou o abade.-- Assim eu largue a luzdos olhos! Para mais, o se-nhor chega ao destempo. Quersaber?... Quer saber? Ove-lha que tinha de ser do lobofoi do lobo. Quem aqui vainäo é nenhuma donzela... näosenhor, que eu näo sou parvo.Quem aqui vai é a mulher queDeus escriturou no seu livro.he 62-63para ser minha e que já o é.Se Vossa Reverendíssimanos quisesse abençoar...?Quando estas falas ouviu,o padre rompeu para mim, maisbranco que a neve antes dederreter. Meti a arma àcara.:,.he 63-- Mata, ladräo! -- gri-tou-me.-- Näo mato, mas ponha-sede largo!... De largo!!O abade näo se intimidou ese näo é o macho, chuçado noilhal por um dos Maçäzeiros,curvetear à altura precisa emque eu ia disparar, matava-o.Desencostámo-nos deste jeitoum do outro, mas a grande

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sorte foi ele näo vir armado,porque lá lhe pareceu mal,quando näo havia chacina. Emmenos dum amém ateou-se aligrande alvoroço. Acudia gen-te de todas as casas.Brízida carpia-se como umamadalena; meu tio Agostinho,depois que lhe dei a cheirara realidade, abraçou-se aoposte dos fios a chorar; emroda o povoléu botava alari-do.-- Eh lá, gentes! -- gri-tei, meio matreiro, meio de-satinado, para a quadrilhaque me tolhia o passo, apon-tando-me paus e espingardas.-- Se alguém se atravessa,está aqui está no inferno!...Cravei a espora... ORoque Maçäzeiro ergueu mäopara as rédeas... Fiz fogo,e o machinho pinchou. Láadiante torci a cabeça: le-vantavam o homem do chäo...corriam atrás de mim e manda-vam-me salvas de tiros. Porentre matas e granjearias, ehmacho! eh macho! ao galopefulo que levava, mal me roça-vam pela vista silvedos, pa-.he 63-64redais e cabeças de olhos as-sarapantados. E escapei.O abade da Penajóia des-pachou-nos para um:,.he 64casalório que tinha no Dou-ro, onde ficámos a resguardo.Quando o Maçäzeiro enri-jou da zagalotada e meu tioAgostinho reconheceu que näo

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havia outro remédio, casámos.O homem de Deus, à volta daigreja, prantou-me uma bolsade libras nos joelhos, dizen-do:-- Aqui tens, rapaz. Eagora, juizinho!Paz à sua alma. Näo eramá pessoa, nem pasmado ne-nhum. Se näo é a amiga quearranjou já com os dias quasecheios, teria deixado os seusdois vinténs.

.he 65IVTrastejámos aquela casa darua Feia, Vossorias sabem,aquela casa onde hoje a Ca-xarreta vende cigarros e pa-litos. Era acanhada, era,mas tinha bons cómodos para omacho, e uma varanda a sul,que a Brízida, cuidadosa noamanho e fidalguinha no vi-ver, trazia enfeitada comcravos e manjericäo como nun-ca se pilhou o altar do Már-tir, nosso bento padroeiro.Mal nos podíamos virar ládentro, mas para nós dois eraquanto bondava. Já dizia meupai, que näo foi patola ne-nhum: casa em que caibas, vi-nha quanto bebas, terra quan-ta vejas. E eu atirei-me àtrabuzana com toda a alma,näo só pela obrigaçäo de tra-zer Brízidá farta e limpa,.he 65-66

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como pelo capricho de dar umabofetada em meu tio Agos-tinho, que nas horas de turraresmungava:-- Homem, nunca hás-de er-guer cabeça. Quanto ganhas,comei-lo e, se o näo comeis,leva-vo-lo a Justiça. Sehouvesse forca, acabavas aespernear.-- Näo roubo nada a nin-guém...:,.he 66-- Mas esfaqueias por dácá aquela palha.-- Maiores calúnias arre-cebeu Nosso Senhor dos fa-riseus.Eu conto aos amigos aondemeu sogro queria chegar.Quando tratámos de estabele-cer casa, logo a minha Brí-zida malucou em engordar umbacorinho com que se pudessena roda do ano temperar o pa-nelo. Houve tempos que medeu que cismar o rifäo danossa terra: Dia de SantoAndré, quem näo tem porcomata a mulher. Entäo eu, láporque a Brízida näo meapresentasse ceva, havia delhe tirar o chiadouro? Näoera isso, cabeça rude, foiela própria que me explicou.Quem näo mata porco, mataporca, que é a mulher. Ah!ah! Alguém nos veio dizerque a vendeira de Segöes, aIngelca, criara uma ninhadade sete, filhos duma porcaleitoa que era por pinta equalidade o pasmo de quem a

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via.Uma boa manhä, estavam osSantos à porta, dou um saltoa Segöes para comprar o ber-relho. Entro para a venda e,como a mulher era perra novender e estava um taró dosdemónios, pedi, um a seguirao outro, dois patacos de.he 66-67aguardente.-- Tem aqui vinho -- diz àminha banda um homem, que näose fartava de me fitar, olhosbrancos, esses tais que, emcara portuguesa, de filho daputa ou erro da natureza,alto, magro, ruivana, umacara que näo me era de todoestranha, mas que, por mais:,.he 67voltas que desse ao pensamen-to, näo descortinava onde ti-nha visto.-- Bem haja -- respondi.-- Tomei aguardente, agoravinho näo vai.-- Qual näo vai! Vinho eaguardente é tudo a mesma fa-mília.-- Bem haja, pode dar-mevolta ao estômago.-- Dá lá nada, homem!Beba...E tanto teima o filho dumagrandessíssima reca, que eu,na minha boa sinceridade, es-tendo a mäo para o copo. Eque me havia de acontecer? Oalma do diabo furtar-me o vi-nho e virá-lo dum trago. Éverdade! Quedei-me a olharpara ele, sem saber bem ao

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certo o que concluir daquelepasso, que nos adjuntos é demoda negacearem-se assim osamigos para maneira de fol-gar. Mas o machacaz pôs-se aabanar a cornadura e foi-medizendo muito sério:-- Seu Malhadas, seu Ma-lhadas, fosse você cavalhei-ro, näo aceitava o meu copo!Colhido na santa boa fé,até a fala se me entaramelou.Ele estava diante de mim adar ao capitel, as mäos --como quem näo quer a coisa --a desenroscar a choupa ao va-rapau, emboscado atrás dascostas. Precatei-me e lá fuirespondendo:.he 67-68-- Raios o partam para ex-comungado que vem alterar ho-mem quieto! Quem é você?-- Já näo se lembra da pi-cardia que me fez?:,.he 68Meio recobrado dos espíri-tos, pude-lhe contestar:-- Lembro-me muito bem meupai me dizer: a judeu nem aporco näo metas no horto.Mas é-me bem feita. Quem memandou a mim dar-lhe corda?!-- Assim é esquecido...?!Palavra, näo tinha lem-brança, nem pouca nem muita,de dares e tomares com aqueleruço de má pêlo. Mas espe-ra...-- Você näo é oCapa-Cavalos de Sendim, ohomem da vermelhinha?-- Eu mesmo... aqui e no

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meio do inferno!-- Pois viva lá que encon-tra homem..he 68-69-- Ninguém o havia de di-zer! -- tornou ele, medindo--me de alto a fundo e arrega-nhando a tacha. -- Assim éque eu queria vê-lo na roma-ria da Lapa... Quantés comsoldados a guardar-lhe ascostas quem quer é prosa.-- Os soldados näo os cha-mei eu. Fiz uma jura quevocê havia de escarrar o di-nheiro zarpado ao homenzinhoda Granja por manhas da ver-melhinha, e escarrou.-- E para que te metes,Joäo Topete, com a carapuçado grumete?-- E, digo-lhe mais, as-sente lá que para mais tesosque você näo chama o filho demeu pai a tropa. Se o pren-deram, daí lavo as mäos.:,.he 69-- Pois assente também láque ninguém mas faz que masnäo pague.-- Ora, ora, ronca o mar emijo nele -- e eu a proferirestas palavras e o grande cäoa mandar-me a choupa ao pei-to.Pulei à banda, depois per-di de todo o acordo do queassucedeu. Que lhe pregueicinco punhaladas? Nunca abênçäo de Deus me cubra, sedei tento de rapar da nava-lhinha.À-d'el-rei, mais à-d'el-

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-rei! pariu ali a galega. Eupodia ter largado, mas, comoquem näo deve näo teme, espe-quei a pé firme. Bem malfiz, porque além de näo haveruma só criatura -- nem a In-gelca, a grande coira -- queme desse razäo, as mulheres,principalmente, vendo o ala-goeiro de sangue, assanha-ram-se de tal feitio, quecuidei näo sossegarem antesde me cortarem aos cibinhos e.he 69-70salgarem o picado para chou-riços. Täo desesperado me vique estive para agarrar numestadulho e, perdido por cin-co perdido por dez, esparra-lhar aquela gente à paulada.Afinal maluquei para comigo:"António, o teu pior inimigoé a fama que em má hora gran-jeaste de bulhäo e de mata-dor. É em nome dessa famaque o ladräo que derrubaste ateus pés em boa e legítimadefesa se tornou em pobre deCristo, destes viandantesdos caminhos que väo de terraem terra sem fazer sombra, etu näo passas dum facínoraque anda às soltas. Quem:,.he 70näo quer ser lobo näo lheveste a pele, e tu vestiste apele do lobo! Näo te queixesda injustiça dos homens,queixa-te do génio, que é as-somadiço e falho de humani-dade." Assim considerandovieram-me duas lágrimas aosolhos, e deixei-me conduzir

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como um cordeiro entre quatrocabos patudos para a cadeiade Moimenta.Näo foi difícil ao Sr.Abade Sá, que era amigo,provar a minha pouca ou ne-nhuma culpa no brequefesta deSegöes. Mas foi uma dosdiabos, porque o Capa-Ca-valos esteve com os pés paraa cova e a avaria custou umbom par de vinténs que docorpo me saíram. E näo ficouaqui. Volto para casa: Brí-zida, qu'é dela!? De inculcaem inculca, vou dar com a po-bre, mais mirradinha que aspalhas, em casa da Vicênciada Cerdeira, que era tia porbanda da mäe. Tirá-la dalipara fora, näo havia trame-nhos. Que a deixasse, näoqueria mais viver com um mal-.he 70-71vado que, se Deus existisse,tinha de ir acabar nas Pe-dras Negras! Afinal, depoisde muito malhar e de vir empessoa o Sr. Padre Joäoconvencê-la do destempero, láanuiu em tornar para casa sepelo descanso eterno de minhamäe lhe jurasse... Eu lhesdigo o que me fez jurar, paraque Vossorias saibam que,embora mulher, näo era parvade todo, nem mal pensada.-- Juras, António, nuncamais entrares em adjuntos,que é lá que o dianho asarma?:,.he 71-- Juro.

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-- Juras nunca mais pousarem feira ou romaria senäo otempo cabonde para atar negó-cio?-- Juro.-- Juras nunca mais te to-mares do vinho, nem jogares,nem ter pacta com outra mu-lher, quer casada, quer don-zela?-- Juro.-- Juras nunca mais traze-res contigo arma, faca, oupau que seja?-- Näo, mulher, isso näojuro eu. Tenho muitos inimi-gos e, morrer por morrer,primeiro rebentem eles.-- Entäo nada feito.-- Pois fica-te com oDiabo que te leve. O que tume pedes é a perdiçäo. Masdeixa, assim o queres, assimo tenhas. Hoje mesmo abalopara o Senhor dos Caminhose ou o Tenente da Cruz memata ou eu o mato.-- És o cabo dos trabalhos-- tornou ela abrandando. --Estou a ver chegar o dia emque seja preciso ir buscar-tenum lençol. António, homemdo meu coraçäo, porque näo me.he 71-72hás-de fazer a vontade?Porque teimas em correr paraa tua desgraça e a minha?!-- Tenho o génio esquenta-do, tenho, minha Brízidaadorada -- respondi eu a cho-rar, que os olhas dum hamemnäo foram só feitos para ver.-- Negá-lo:,

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.he 72seria negar a Deus NossoSenhor, mas que queres, agente nasce feita, näo sefaz. Ora ouve, mulher! Dehoje em diante eu te prometotrazê-lo amordaçado, maisamordaçado que um cäo vezeirono morder.-- Só quero que me prome-tas nunca mais andar defaca...-- Isso näo te prometo.Nem tanto nem täo pouco.-- Homem, que tragas opau, vá, mas deixa a faca noaçafate...-- Näo, näo, para onde eufor vai ela. É como a espadadum capitäo-mor. O que juroé nunca mais tirá-la da faixasenäo em riscos de me manda-rem para os anjinhos.-- Näo basta, António,näo basta. Näo te metas tucom os outros, que contigoninguém se mete. Têm-te res-peito.-- Qual! Têm mas é medode duas polegadas de aço pelofole dentro.-- Que homem este! ...Oradize, alma do Senhor, näoserá mais bonito passar porhomem de assento, homem depaz, topares os caminhos de-simpedidos como um inocenti-nho que vai ao seu recado, doque andares assim receado ereceoso, à mercê duma balaque te vire numa encruzilha-da? Responde lá...?Se lhe vissem os olhos,.he 72-73

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que já enxutos eram bonitos,debulhados em lágrimas, sem-pre queria ver se os fidal-gos, no meu lugar, lhe diriamque näo senhora.:,.he 73Ora, prometi tudo, mais quefosse, até lhe abrir o peitopara ver como por ela palpi-tava o coraçäo. Prometi, ju-rei as juras que me pediu efiz tudo quanto pode homem defé para honrar a palavradada.Dali em diante quem me co-nheceu e me via achava-me täooutro como se o génio se metivesse virado do avesso.Fugia que me pelava das ho-ras do Porco-Sujo, e osbenditos nomes de S. Ga-briel e S. Rafael andavammais vezes na minha boca doque nos meus tempos de sol-teiro as chalaças às moçasque mostrassem boa perna.Quando, Aveiro vai, Aveirovem, ao atravessar das aldei-as, um campanário botava oseu dobre a chamar para amissa, prendia o macho a umaparede e ia ouvir o santo sa-crifício.Foi por essa época que as-sucedeu ao Bisagra a mala--ventura de que Barrelasainda hoje ri ao desfastio eque a mim me deu que cismar.Sim, senhores. Näo basta umhomem bater no peito e per-tencer à irmandade do San-tíssimo para o anjo da guardalhe guardar as costas. Fia

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mais fino. Se a troco de du-as cruzes na testa, duas re-zas, um cristäo estivesse acoberto de percalços, escor-regar e näo partir uma perna,meterem-lhe as mäos nos bol-sos e näo lhe palmarem a car-teira, ter uma mulher de es-talo e näo lha abarbatar o.he 73-74amigo, quem quer era cristäo.Väo ver! Imaginem os senho-res que estava à porta a fei-ra grande de Mangualde e oBisagra veio ter comigo::,.he 74-- Vais à feira, António?-- Hei-de ir, hei-de ir,se até lá ajuntar os pre-suntos que me faltam para fa-zer carga.Eu a essa altura negociavatambém em presuntos; presun-tos de Lamego, azeite doTedo, vinho da Meda, eratudo do termo, e näo iam rou-bados.-- Pois eu também lá que-ria dar um salto -- tornaele. -- Tive este ano muitoalho e näo os hei-de deixarapodrecer. Colhi também mui-ta semente de nabo, e aindanäo vendi o meu cornelho...-- Cornelho deves ter umacheia...?-- Algum, algum -- respon-deu-me ele sem perceber. --Com o produto e duas librasque ando há dois anos a amea-lhar queria comprar umas con-tas para a Claudina. Dianhode mulher, mata-me o bicho do

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ouvido que é uma triste, to-das andam carregadas de oiro,bons cordöes, boas arrecadas,bons merinos, só ela näo pas-sa do chambre de chita e dunsbrincos, täo amolgados e ve-lhos que nem que os herdasseda Maria Castanha.-- Näo é o que dizem asbocas do mundo...-- Que dizem as bocas domundo, António?-- Que a tua mulher temoiro como terra, mas que oesconde bem escondido...-- Tem uma nisga... Temuma nisga...!-- É lá contigo e com ela.Pois arranje eu a presuntada.he 74-75e aviso.:,.he 75Arranjei carga. Vieram-metrês presuntos de Ariz, doisdo Granjal e outros dois dePenso. Com os que eu tinha,estava na conta. No dia dafeira, saímos com as estrelase tupa que tupa, os caminhosestavam enxutos, foi-nos nas-cer o Sol para lá de Rio deMoinhos. Quando chegumos àvila, estava o largo a en-cher.-- António -- disse-me oBisagra -- temos muito tempodiante de nós. Enquanto ar-mam e näo armam as chafaricase tendas, se nos fôssemos ou-vir a santa missinha, queestá a torre a chamar...Realmente ouvia-se o tläo,tläo, täo vagaroso como mor-

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fanho duma sineta rachada.-- Olha, Bisagra, vai tu.Näo venho com a devoçäo re-.he 75-76querida. Trago a veniaga nojuízo e era uma vergonha queo nome de Deus passasse nomeu espírito como gato porbrasas.-- A devoçäo é como o co-çar, alma de cântaro! Atrásduma ave-maria vêm as mais.Olha que a missa näo quebraosso...-- Pois näo quebra, näo.Mas hoje para mim näo é dia.Vai tu e encomenda-me nastuas oraçöes.Lá foi. Eu tratei de daras minhas voltas -- um bomdia a este amigo, uma pala-vrinha àquele, viva lá, pa-träo, a como está o centeio?além ao correeiro: quantopede pelos loros? -- fui apa-nhar o Baratinha a tirar ostaipais da loja::,.he 76-- Aqui lhe trago, rei dosmerceeiros para estas bandasda Serra da Estrela, do me-lhor presunto que se cria emLamego, mesmo rente, renti-nho à igreja de Almacave.Ora, com boa treta tínha-mos o negócio fechado, quandoo Bisagra rompeu. Dava sal-to de corça e gania.-- Que foi, homem, quefoi?-- Raios partam tanto la-dräo que há em Portugal eaté na casa de Deus! Raios

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partam!-- Mas que foi, homem?-- Que foi? Roubaram-meas duas libras na missa. Le-vava-as atadas na ponta dolenço para as näo perder.Chego cá fora, lenço que édele?! Corro à sacristia,estava o padre a desparamen-tar-se: *Senhor, estou rou-bado. Roubaram-me duas li-bras na sua igreja... -- Seestá roubado, queixe-se à po-.he 76-77lícia. Eu näo o ronbei.* Jáviste um pastor de almas as-sim? Raios o partam mais àminha cabeça! Raios partam omundo todo!-- Roubaram-te na casa deDeus...? Ah, cäo, algumafizeste taluda! Näo andas debem com o anjo da guarda paraassim te desamparar...-- Näo ando de bem com oanjo da guarda...?! Dize láse é alguém a quem possa un-tar a pata, meu safado?E ali se pöe a vamitar im-propérios sobre impropérios:,.he 77a ponto que parou a ouvir umsujeito de cara rapada, todode preto, com ares de migue-lista ou monitor de seminá-rio. Ouviu, ouviu, e virou acara à banda antes de despe-dir, cuspindo:-- O que lhe vale, seu ho-mem, é estarem os pe-dreiros-livres em cima. Sefosse uns anos antes e esti-vesse no poder quem devia,

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arriscava-se a fazer torres-mos na fogueira!Pega!Pois eu, mais de dois anosa bem com Cristo e menos malcom os homens, meti cara àporca da vida e, poupandomuito e gananciando onde ca-lhava, envidei, lá isso envi-dei que era pobre como Job.É de resto a nossa condiçäo.Anda o homem a trote paraganhar o capote.Entrementes, a mulherdava-me uma menina, muito me-dradinha e perfeita, e eupude comprar a casa térrea dafalecida Doroteia, com arru-maçäo para palhal e manjedoi-ra para as bestas. Meu tioAgostinho começou mesmo aencarar-me com melhoresolhos, mormente depois que o.he 77-78Sr. Abade Sá me estendiaem público o seu cigarro, enas eleiçöes fazia de mimbraço direito.Ao despautério, o Bisagradizia:-- Deixa, quem nasceu lobohá-de morrer lobo. Pouco vi-verá quem näo ouvir falardele.:,.he 78Bem lhe tornava meu tioAgostinho, na sua boa fé:-- Enganas-te, Bisagra.O Tónio amansou... Poreste passo é menino para, seo esbofetearem na face direi-ta, se dar por quite com es-murrar ao atrevido a face es-

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querda.O Bisagra ria de consola-do, o grande bilontra, e erapor estas e outras que eu onäo podia ver nem tragado.Nanja que fosse ruim porcondiçäo. Como irmäo doSantíssimo, näo era pior queos demais. Lá vaidoso, dis-se. Para que näo lhe faltas-sem na procissäo dos domingosterceiros com a vara do pálioera capaz de chegar a mulherao abade. O ofício de ga-lhudo, por fora de conta erisco, o maior galhudo que arosa do sol cobria, é que otornava azedo e maldizente.Falava mal dos outros porquefalavam mal dele. Pois por-que havia de ser? Eu nuncalhe tinha feito dano e, emboa verdade, se a faca se näoenferrujava em casa a partiro pespé e o unto, como queriaa Brízida e eu lhe promete-ra, há muito que dormia quie-ta na bainha, e o meu marme-leiro se näo erguia a casti-gar um tratante... fim pag 78 - cap iv - tratante - linha 23

.he 79VSombra negra na minha vi-da era ora e sempre o Tenen-te da Cruz, que havia juradotirar-me o chiadouro depoisque empalmei Brízida ao pai,pela qual se chorava ainda de

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morte. Mais de ano que osmeus caminhos andavam desen-contrados de semelhante pi-ranga. Por mor duma briga emque se envolvera e de que re-sultara homem morto, tiverade largar à revelia, e por láandou muito tempo a pontos deninguém mais falar nele. Vaisenäo quando apareceu um sá-bado na feira de Barrelas,mais farsola que nunca, mon-tado numa égua pimpona. Tevebons padrinhos o safado, comonäo podia deixar de ser, por-que, além de rico e poderabafar a Justiça com gordas.he 79-80peitas, nunca perderam a sim-patia dos fidalgos, ia dizerde nós todos, estes corredo-res de valentia e arruaça.Matam e perdoa-se-lhes seforam destemidos a matar.Enfim, fosse como fosse, oladräo voltou à praça e eu,muito às escondidas da Brí-zida, pus-me a afiar a faqui-nha.:,.he 80Fiquei com pulga na ore-lha e bem haja eu. Mais deum que me dizia, se acertavaconfessar meus receios:-- O Tenente da Cruzassentou; está homem cordo.Tem o casamento tratado coma morgada da Silvä.-- A ver vamos. Näo metoque ele, que eu näo lhetoco.Ora?! Vai-se para o mer-cado de S. Francisco, que

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se faz no tempo do mosto àsombra do convento da OrdemTerceira, de que há vinteanos sou irmäo pagante, semgrande esperança de os meuspecados pesarem menos na ba-lança do Paraíso -- queaquilo näo é confraria, masfalperra de cordäo -- vai-se,ia dizendo, para o mercado deS. Francisco, e com quemdou eu de cara ao pisar nafeira das bestas? Com o bir-bantäo do Tenente.O homem deita-me o rabode olho e muito na sua com-postura -- estou a vê-lo debotas altas à Frederica, ja-leca curta de alamares, umchapéu branco de muita aba,com um vergalho na cova dobraço, alto, garboso, que eramoço alentado e bem-parecido,lá isso era, meter pelo meioda ciganada e sumir-se-me davista. -- "Hum! -- fungueieu -- o Diabo feito ermitäo!.he 80-81Estás a pregá-la". Desçopara a feira do linho, e po-nho-me a amarrar o machito aotoro dum castanheiro. E es-tava eu a dar a laçada, deolhos nos senhores padres quelá iam levados em suas garna-chas pretas a:,.he 81esfolar o geral, pumba! desceum açoite sobre as ancas doanimal, como se fosse a tor-nar-lhe o troco de tropelia,e oiço:-- Estupor, ensinou-te o

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amo a coicinhar!?Boi mau em corno cresce.Era o Tenente, pois quemhavia de ser. Sem me bulir,contestei-lhe:-- Que febre lle faz omachinho?... Olhe que tambémlhe dói como a nós.-- Apanhou ele e apanhavocê...-- E porquê, se näo ficamal o perguntar?-- Porque sim! Você é opedaço dum velhaco...Dei-lhe salto à gargantamais ligeiro que uma onçacontava depois o Afrânio --e, em menos dum amém, estavatombado por terra e eu de jo-elhos em cima, na arca dopeito... Varreu-se-me a luzdos olhos e já a faca vinhalargada quando atalharam ogolpe. Foi o miraculoso Pa-dre Santo António, pelobraço, já näo sei de que bomburgesso, que se meteu depermeio.Apartaram-nos... e antesassim. Dorido, envergonhado,mais amarelo que a cera, asacudir os argalhos da roupa,bem embora foi-me jogando:-- Se és homem, ó Malha-das, vem à feira de Lamas,na quinzena...-- Pois näo faltes, que.he 81-82eu näo falto! Nem que o dia-bo dê estoiro...E assim foi. Tratei depôr a vidinha em ordem, e:,.he 82

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na véspera de Lamas pedi aoSr. Abade para me ouvir deconfissäo. Ajoelhei-me aseus pés antes de se paramen-tar para a missa e varri daalma a ciscalhada e dois ti-çöes que a encardiam. O dia-bo é que o negócio foi soadopor novo e nunca visto, tra-tando-se dum bonifrate comoeu. Brízida, já porque ti-vesse rumores do desafio, jáporque me visse mais salamur-do do que é meu natural, con-cluiu que de alguma empresagrave se tratava e à noitinhaesperluxou-me:-- Para onde é a jornada?-- Para Aveiro, menina!Näo reparaste há migalho nocéu? Já sabes, vermelho parao mar, aparelha o burro e vaiao sal. De resto, estäo àporta as matanças e näo hápitadinha pelos povos.-- Homem, näo sejas tra-paceiro. Tu vais mas é àfeira de Lamas encontrar oTenente da Cruz, com quemandas despicado...-- Eu?!... Eu?!... Que-ro lá nada com semelhante pi-rata?! Nem a bem nem a mal.-- Lembra-te que tens mu-lher e filhos...-- Pois é por essas e ou-tras que näo quero meças comele. Terçä o parta lá longe,que há-de morrer a dar coice!Na alva, lavei-me, apron-tei-me e fui à cama dizeradeus à mulher, só adeus, queum cavalo que há-de ir àguerra nem corra lobo, nem o

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abane égua, e dar um beijinhona menina. Assim que vi ainocente a :,.he 83dormir mais quietinha que umanjo, veio-me um soluço aosgorgomilos e, sem querer, de-sabafei:-- Deus sabe se a torna-rei a ver!Que tal disseste?! Brí-zida agarrou-se a mim a cho-rar:-- Homem da minha alma,que me enganas! Tu näo vaispara Aveiro?!-- Vou, minha santa, vou.-- Näo vais... Vais paraLamas e diz-me o coraçäo quenäo voltas...-- Vou para Aveiro... oscaminhos säo compridos... háassassinos pelas encruzilha-das.-- Para que dizes: Deussabe se a tornarei a ver?-- Por isso mesmo... ma-neira de falar, que a morte écerta e a hora incerta. Láreza o prudente: aos olhos.he 83-84tem a morte quem no corcelpassa a ponte.-- Jura lá!E jurei, pois antes que-brar a palavra por bem-quererque quebrá-la por cobardia.A cavalinho no macho,trupe, trupe, foi-me alvore-cer para lá do Vouga, à vis-ta dos carvalhais de Lamas.Estava uma manhä muito cla-ra, destas manhäs de Outonoem que o sol é como boi tou-

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ro, mal castigado da aguilha-da. Às duas por três, marra.E, palavra, com o céu aber-to, a terra toda a revessaralegria, é preciso força deânimo para caminhar para umprecipício. Mas é o queDeus quer e avante!:,.he 84Quando cheguei à feira,já andava tudo numa dobadoi-ra: os cortadores a esquarte-jar as reses, os ferradores aferrar, os burros a zurrar,as fidalgas a apreçar com arde näo presta, no meio dumaalgazarra de vozes, um açudede sons, quanto bonda para seavaliar que o negócio bate oauge. Deito os olhos porlargo e quem avisto eu? OTenente da Cruz. Estava emgrande relambório com umatropa fandanga de caras tor-tas e maltrapilhos, que nin-guém gostaria de ver de noiteà volta de sua casa. Se eunäo soubesse quem ele era,filho de boa família e com osseus teres, homem alto, de-sempenado, bem vestido, iadizer que estava ali o capi-täo duma quadrilha do olhovivo, destes que guardam deassaltos e roubalheira a par-te de leäo e däo aos sócios orebotalho. Diante de talcholdra é que me deu logo ocoraçäo baque que estavam ali.he 84-85para me chacinar.-- Boa vai ela -- penseieu. -- Säo mais que as mäes.

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Deixá-lo, quantos mais me-lhor, menos caem no chäo.Endireitei para a vendada Bicha beber meio quarti-lho, e logo os bargantes mesaíram a caminho, de través,mas arreganhando a tacha. Umbotava uma cantiga, que tra-zia sobrescrito, embora fossede mal notada carta, outrosapateava o fado com grandeesparrame, avançando e vindoàs arrecuas até me tocar, to-dos às upas e urros: Viva oTenente da Cruz! Viva quemé cavalheiro!:,.he 85Näo me dei por achado pormais que o escabeche fossedespropositado, e pude de meupasso meter à taverna, onde,em vez de meio, bebi um quar-tilho com duas dentadas debroa. Quando ia a pagar,disse-me a vendeira:-- O senhor António näosaia lá para fora que o que-rem matar. Entre para aquelequarto, que desta porta paradentro é sagrado.Apontava-me o interior damoradia e eu perante a sualisa franqueza lhe respondi:-- Bem haja, tia Maria,e mais lhe agradeço saber quenäo estou em terra de mouros.Mas aqui näo há medo.Muitas vezes um cristäo, sedefende a vida mais que umasaca de dinheiro, é porque avida naturalmente é um depó-sito. Deus lho confiou, aele, só a ele, tem de o res-

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tituir.-- Isto de vinte contraum näo me cheira bem -- tor-nou ela. -- Mas já que assimé homem desenganado, o PadreSanto António lhe estenda o.he 85-86seu divino capote.Saio para a rua e vejo-melogo cercado pela roda de ca-ceteiros. Alguns conhecia eude ginjeira: o Samarreiro,de Segöes, que evacuava asbalas que lhe metiam no folecomo aos caroços das azeito-nas; o Carlos Negrola, deCota, tantas vezes condena-do, que parecia mesmo um ratodas enxovias; o Ranheta, daPóvoa, com morte de homem àscostas; o Piläo,:,.he 86do Carvalhal, gatuno refina-do e incendiário; o Zé Pi-ranga, de Cinfäes, que viviada vermelhinha e do que zar-pava aos pacóvios, etc. etc.O Negrola apontou-me aobando:-- Temos de matar estecäo para haver paz no mundo!-- Já dizia o meu avô: desangue misturado e de moçorefalsado livre-nos Deus --retorqui. -- Se queres mos-trar que és täo escarumba pordentro como és por fora,avança que eu abro-te ao ver-de...-- Mate-se! -- regougou oTenente.-- Está dito, mate-se! Otestamento do pobre escreve-

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-se na unha do dedo mendinho.Rapo da foice que traziana algibeira da véstia, enca-bo-a no pau e, depois de mebenzer, traço um círculo emterra a todo o largo:-- Ó rapazes, para dentrodeste risco, mando eu; parafora, já que assim o quereis,mandais vós. Se alguém per-deu o amor à vida que seafoite! -- e postei-me em po-siçäo de varrer.-- Mate-se! Mate-se! --gritavam em redor, mas passara linha nem tanto como a.he 86-87grossura dum alfinete. Er-guiam olhos para a foice, vi-am-na afiada e a luzir e ti-nham-lhe respeito. Näo é queera o mesmo que correr à de-gola!?-- Escache-se-lhe a alma!-- Amigos, é uma só.Deu-ma Deus, para ele a:,.he 87guardo. Se entendeis quenäo, botai à frente, e ti-ra-se a prova!-- Mate-se! Mate-se! --e ia crescendo o burburinho eajuntando-se a feira.Eu tinha em ponto de mirao Tenente, como o frade daanedota, contas na mäo, olhono ladräo, que já o toscarapor duas vezes a fazer-me opau: atiro-te, näo te atiro àtola. "O primeiro a cair éstu -- assentei para comigo.-- Sim, quando houver de medecidir, é por cima do teu

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corpo que tenho de passar".Ele parece que compreendeu.Vi-lhe o olhar embaciado enäo sei que tremura na bocacomo cristäo-velho a rezar o*à-porta-infra*.Trazia pau argolado, umrico pau de marmeleiro com achoupa e ponteira a luzir,mas os mais estavam armados atrouxe-mouxe, vara de casta-nho e até a haste do carripo-to, que cortam nas nossasterras para estadulhos. Nadamais que por isso acusavam oar desenvergonhado de roga.A Justiça mo levaria emconta. Eu, entrementes, es-pecara, que o Tenente deraum passo atrás, chamado porum homenzinho que se pôs afalar-lhe à orelha, e os qua-drilheiros moderaram-se nasanha que os movia. Pelafeira é que o alvoroço eracada vez maior e de todos os.he 87-88lados se viam corrimaças.Acudia o povo e bem se mecortava o coraçäo. Como rom-per aquela mó de gente, sehouvesse precisäo de pular?:,.he 88Foram-se arrastando osminutos e eu firme à esperado assalto como um castelo.A minha esperança era que,acutilando dois ou três, amalta dos tesos tresmalhasse.Nas pernas me fiava eu.Assim que me pilhasse nomonte que há entre o Carva-lhal e Queiriga, monte mani-

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nho onde näo medra feto nemcanta pássaro, tudo cascalhoafiado como lanças, onde euqueria ver os ministros es-garrados que de sorte volta-vam a fazer mal, a salvo es-tava eu dos matadores. Aquestäo toda era dar o pulona devida altura e pireza!Mas: mate-se! mate-se!vejo vir uma cabeça à de cimado alevante. Sombreada pelochapéu braguês, só lhe luziamas suíças e à primeira näoconheci quem era. Vinhaapartando o monte à cotovela-da e breve rompia até a filados brejoeiros. E entäodeu-me um berro que soou alicomo o urro dum leäo. Altocomo uma torre, täo forçudoque erguia um carro de tojose pusesse ombros ao chedei-ro, jaquetäo de peles, olhosmansos, mas destes que despe-dem chispas com a fúria, quempodia ser senäo o Bernardodo Paço?!-- Que há? Que há? --bramou por duas vezes com asua voz de troväo.-- Que há-de haver, Ber-nardo?! -- respondi eu. --Um bando de milhafres paraespatifar um pardal.-- E és sozinho contra.he 88-89tanta gente?-- E mais näo tenho medo.:,.he 89Quando isto ouviu, oBernardo que era a modo dumalcaide por todo o Vale de

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Ferreira, täo temido pelopulso como pela consideraçäoque gozava, tratou de se in-teirar com este e aquele doque houvera. E quando seachou esclarecido voltou-separa o Tenente:-- Raios te partam quenäo tens vergonha nenhuma nacara estanhada! Um homem,que se preza, é capaz de talindecência?!O Tenente ouriçava-setodo, sem lhe tornar res-posta.-- Sabes o que te vale?É ter-me já sentado à tuamesa. Se näo fora isso, ha-via de te torcer o pescoçocomo a um frango. Envergo-.he 89-90nha-te, Tenente, envergo-nha-te! Trazeres uma rogadestas para um fraca-chicha!Em resposta o Tenentecontou dos seus agravos, umdos quais -- há que anos issofora! -- era eu ter-lhe enga-zupado Brízida. O Bernardoretorquiu-lhe:-- Homem por homem, aí otens! Lá se avenham. Agorapeitar uma dúzia de bandalhospara dar cabo dum homem, paramais uma vergôntea, é re-les... é borrares a cara bemborrada!Em volta, os marmanjos,ou porque näo soubessem comquem estavam a tratar ou por-que o ajuste fora estrafe-gar-me, conservavam o jeitode arremeter. O Bernardoalçou o braço:

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:,.he 90-- Largueza, corja de bi-gorrilhas!-- Tenha lá mäo, senhor!-- dizia-lhe o Zé Piranga.-- Näo sabe que está aqui ummatador de faca? Há-de amar-gar hoje as safadezas que tempraticado...O Bernardo pôs-lhe a mäono toutiço como se faz a ummenino e, meio a brincar,afocinhou-o para a frente:-- Rapaz, näo me moas apaciência! Desaparece-me,que te näo deixo osso direi-to.A roda, quando os cace-teiros isto ouviram e se com-penetraram de que o negócioestava furado, rompeu-se, ecada um se esgueirou para suabanda. Ficava só o Tenente,muito amarelo, agora todo en-grifado. Um velhote de bar-bas até ao peito agarrou-se aele: *Ó filho, tu és a minhavergonha! Pelos vistos, que-res a minha morte?!* -- e ti-.he 90-91rou-o dali a gaguejar, a cadaenconträo que levava dandodois passos à frente e umatrás para fazer crer, imagi-no eu, que só desviado à for-ça näo jogava as cristas co-migo. E, modo ainda de esca-pulir-se pela porta da fan-farronia, rompeu numa ladra-çäo que näo percebi bem nomeio da balbúrdia e que sepermitia, está-se a ver, sen-tindo as costas no seguro.

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Um tanto à toa, fui-lhe di-zendo:-- Quando quiseres, meubanana, estou às ordens!Manda dizer em que descampa-do nos havemos de encon-trar...:,.he 91-- Deixa lá, Malhadi-nhas, deixa lá! -- arrazoavao Bernardo. -- É um cana-lha. Por fim o povo punha-setodo à minha banda. Viva emais viva, tinham-me armadoum cadafalso, saía o herói dafesta. O Bernardo puxou-mepara a venda da Maria Bi-cha, que ficava mal se näobebêssemos à sossega. De mäona mäo e de olhos nos olhos,disse-lhe:-- Bernardo, tens aqui umirmäo.E ele respondeu-me:-- Tens aqui outro.-- Prà vida e prà morte!-- Prà vida e prà morte!E com amigos e amigos dosamigos passou de almude obriol que ali bebemos.

.he 92VI

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Que a minha língua eraponteira como a faca que tra-zia à cinta -- murmuravam asbocas do mundo mal considera-das. Cantigas, ó Rosa! Afaquinha, assim Deus me sal-ve, tinha uma funçäo e näomais, cortar a côdea, o quei-jo, a febra do presunto,quando andava de jornada.Algumas vezes, também,arremediava-me a consertar osatafais do macho se o Demoqueria que estoirassem.Quando, por grande acaso, seapartava desta pacífica mis-säo, é que a minha vida cor-ria perigo e trazer eu a pei-to defendê-la, pois se Deusma deu -- tantas vezes o te-nho dito -- a Deus tenhoobrigaçäo de a restituir, massó quando ele for servido e.he 92-93mais ninguém.Quanto à língua, corta-ram-me a trave ao nascer; masnunca levantei falsos teste-munhos, nem acoimei de curtamulher honrada, nem de cornelsujeito que näo tivesse testapara marrar. Guar-te de ho-mem que näo fala e de cäo quenäo ladra, por isso eu semprefalei, falo e falarei francoaté morrer, pois se nós o:,.he 93temos no pensamento, acaute-lá-lo da boca só por ronha oucobardia.Mas onde eu punha epitá-fio, caía mais certo que osnabos no advento. Onde cor-

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tava nos "podres" é que ospodres buliam com Deus e comos homens. Às vezes valiamais que lancetar um leicen-ço. Valia! Eu lhes conto umpasso assucedido, pelo qual,se o Pai do céu se näo es-qucceu de o apontar no livroda glória e a remissäo é cer-ta, do pecado mais taludo es-tou quite, ainda que me näomorda nenhum de monta. Poisoiçam, meus fidalgos:Um entrudo, quinta-feiramesmo das comadres, à boca danoite, o Bisagra desafiou-mena venda do Zé Pinto parajogar uma partida de chinca-lhäo. Vossorias sabem: oBisagra era senhor duma des-tas galhaduras, mais formo-sas, compridas e retorcidascomo näo há memória que an-dasse armada a testa dum ser-rano. Mais abundante nem pa-liteiro com os palitos, e as-sim falada nem a porca deMurça. Täo coitadinho, queseria caridade dizer-lhe aopassar um portal: baixa quemarras!A mulher era fêmea dealto lá com ela, sempre mais.he 93-94frescal que alface, requesta-da de fidalgo e de padrecura.Pegámos das cartas e oladräo com a felícia toda, osortalhäo que dizem própriodaqueles a quem sobra o quefalta às cabras mochas! Nacova da mäo, sempre:,

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.he 94o cinco de oiros, a espadi-lha, o cinco de paus, levan-tou-me em catréfia seguidaquatro quartilhos e um bolo.Paguei, mas bufei, que àmandinga da sua condiçäo enäo a jeito nem à sorte ho-nesta atribuí eu, e comigotodos quantos ali estavam,aquele desaforo a ganhar.E, maneira de desforço,fui chasqueando nesta vozpausada que Deus me deu,pela qual alguns mequetrefes,nas minhas costas, me compa-ram à bezerrinha mansa que emtodas as vacas mama:-- Este Manuel é o quese chama um regaläo. Bem co-mido, bem bebido, mais fresconem o nosso abade! Poisolhem, é do mesmo ano que eu,mas ninguém o há-de dizer.Os trabalhinhos estragammais que o tempo! Sempre aarrotar pescada, a este feli-zardo só falta cartola e ben-gala. As fêmeas é que däocabo dele. Raios o partam,com uma mulher daquelas, tudoo que há de mais liró, e näotem nojo de ir à Preciosa!Näo te basta a Claudina,maganäo? Ah Cristo, eu, sepilhasse uma mulher assim,estava-me ninando para asmais! Também estou velho, lána Brízida dou um beijoquando dou...O Bisagra ria, muito an-cho da canada que me bebera edas palavras que eu proferia,.he 94-95

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e lhe sabiam täo bem como ovinho, e a roda estava malucade alegria com o entremez e over-me com cara de asno, queé sempre a cara do pagante.:,.he 95Mas vai senäo quando, oBisagra saiu fora a satis-fazer as necessidades ou arevessar a vinhaça, e eu vi-rei de folha:-- Cem cäes o comam parachavelhudo! Vai à bostiquei-ra da Preciosa porque aClaudina lhe diz tó-ruça;guarda-se para os outros,para os figuros, para quemela quer. Cornambana do in-ferno! Se fosse a mim, ia-mea ela, e, ó menina, ou és mi-nha mulher a valer ou te picoaqui a barriga como à cebolapara o refogado...Acabava eu o responso, enäo há pior zombaria que averdade, o Bisagra que apa-rece no traço da porta. E, aabanar a cabeça, cresceu paramim, mas sem arrogância, queeu ainda tinha a faca na unhapara mostrar como se picava amouçó da mulher.-- Entäo ela diz-me tó--ruça!? Apostamos uma quartade vinho em como te enganas.Queres? Näo queres? Andacomigo e vais ver. Homem, umcântaro de vinho...?Ri eu, riram todos dodesconchavo. Muito aceso, oBisagra continuava a protes-tar e a pedir aposta, e euperdi a paciência:

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-- Sabes que mais... nis-ga! Eu repito o que dizem asbocas do soalheiro. Se éshomem, melhor para ti, masainda o näo disseram trêsdoutores!-- Sou homem... Safadodos safados, vem ver! -- efazia jeito de me levar. :,.he 96Sacudi-o e ele desandouafinal, a mesma toada naboca, pelo largo da feira ar-riba:-- Sou homem, conho!...Sou homem!...Desapareceu e estávamosnós deitando contas pachou-chada, quando se ouviu grandebanzé: o Bisagra fora encon-trar a mulher com o PadreAntunes da Lousadela e zu-pava nos dois como em amassa-doiro de linho. Foi precisoarrancar-lhe das mäos o coro-ado, senäo matava-o. Mesmoassim, ficou com uma sobran-celha deitada abaixo e maispingäo e lastimável que umdos palhaços que, por folgan-ça de carnaval, se tinham es-fandegado no largo naquelaquinta-feira das comadres.Passo foi aquele que muitoaproveitou a toda a gente: aBarrelas porque o castigo.he 96-97público morigera, a Claudinaporque dali em diante foimais cautelosa a admitir ga-lantes em casa, e ao Bisagraporque devia ter, ao menospor algum tempo, entrado emposse do que era seu. E aí

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está porque da minha má--língua veio benefício aomundo e eu me julgo forro, nolivro da glória, do pecadoque mais houver de me carre-gar quando chegar às portasdo Paraíso. É verdade!Que a minha língua eraafiada como a faca que traziaà cinta -- teimam para aí.Bem haja eu, que nunca dei-xei a minha honra por mäosalheias, nem me esqueci depagar agravo ou fineza rece-bida. A panela em soar, ohomem em falar. A línguapara amansar:,.he 97as mulheres e homens mulhe-rengos que faziam pouco demim ou se atravessavam no meucaminho, a faca para rebateros tratantes que me ameaçavamo fagote.Se, devido à minha má--língua, esteve o padre daLousadela com os pés para acova, já contei a Vossoriascomo foi. Se dormiu a mulherdo Duarte em lençóis de vi-nho, eu lhes vou dizer comose deu tal comédia.No dia de Reis, há tan-tos invernos, que só me lem-bra ter vindo, por essa altu-ra, uma trovoada medonha quearrasou os campos e matou asaves, estávamos eu, o Mesesregedor e o Albino alfaiate,sentadinhos ao soalheiro, nocabeçalho dum carro, a gozaro ripanço do dia santo e adizer mal do bispo. Chegou-

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-se a nós o Duarte, e vá decigarro, vá de amenidades,.he 97-98disse-nos:-- Ó rapazes, tenho lá umvinhinho, o pedaço dum palhe-tinho, que até fica a rezarnas goelas uma música celes-tial. Só queria que provás-seis...-- Se ele é isso -- re-darguiu o Albino, que tambémnäo era homem para se fazerrogado -- a operaçäo é boa defazer.-- Entäo vinde, vinde be-ber um pucarinho de Molelos-- tornou todo franco, abrin-do marcha.O Duarte morava para oOiteiro na casa que chamamdo Sargento-Mor, e é pelaobra de silharia e os:,.he 98tectos em masseira uma dassete maravilhas da nossa ter-ra...Sete maravilhas, sim, se-nhores, e eu digo quais elassäo. A primeira é a armadurado Bisagra; mais frondosanem a cabeça do cervo-real.A segunda é o bandulho doAlbino, que à semelhança detodos os odres tem a boca an-cha e, ao contrário dos de-mais odres, näo há vinho queo farte. A terceira säo aschinelas do tio Rela em be-zerra branca, que viramLisboa no Centenário deSanto António, entraram noMinistério do Reino e vol-

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taram a penates para figu-rarem no auto que aqui hajade se representar do SenhorJuiz de Barrelas. A quartaé o pego da Ponte dasTábuas, que näo tem fundo.A quinta säo as trutas dessepego que säo maiores do queas galgas do Padre Farrus-quinho, que até de boca fe-chada mentia. A sexta é anossa igreja com obra de ta-.he 98-99lha como näo há em Portugal,e a cruz de latäo do tempo doRei Vamba. A sétima é acasa de que lhes estou falan-do com esconderijos contraladröes e miguelistas, enxo-via, cisterna empedrada, queainda viram estes olhos que aterra há-de comer e os senho-res já näo veräo. E näo ve-räo, porque veio um selvageme deitou tudo a terra parafazer um chiqueiro.Mas, como ia dizendo, oDuarte, que era um homem li-beral e fala-barato, convi-dou-nos de täo boa gana quelargámos do abrigo do Rama-lhal, onde:,.he 99estávamos a tomar o sol,atrás dele. Na adega, combroa dos tabuleiros, täo res-cendente que consolava, e umalasca de presunto, que baila-va da trave à dependura, cas-cámos-lhe.Estávamos nós na santafunçäo, apareceu a mulher doDuarte. Conhecem-na com os

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dois pêlos virados no queixocomo anzóis e umas canelassempre täo negras e magrasque até parecem flautins paraos cäes!? Arreda! A homemruivo e mulher barbuda delonge os saúda.-- Fogueira parta os bê-bados! -- começou logo a gri-tar. -- Quem quer o folecheio, vá à taverna e puxe.Este homem há-de desgraçar acasinha... Mas deixa, é mäosrotas para os amigos... osamigos häo-de lhe arrancar osolhos e verter água nas po-ças!O Albino, posto que ho-mem correntäo, ficou varado;o Meses, com a vergonha,pôs-se mais vermelho que opalhete. Adiantei-me eu a.he 99-100fazer face à serpente com asmanhas que me ensinou oPadre José Farrusquinho: aquem te der uma pássara,dá-lhe a sua asa:-- Viva lá, tia Joaqui-na, viva lá! Entäo sempre nalidairada?! Duarte, chega-meuma canequinha aqui à tua mu-lher. Vá, que governadeiraassim nem de encomenda. Ca-chorro da sorte, podias pin-tar-te com ela num retábulo!Podias, que to digo eu! Semuma mulheraça destas estavasde pernas ao ar.:,.he 100-- O tio Malhadas sempretem coisas! -- disse ela,quebrando a fúria.

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E eu no meu sério, sempestanejar:-- Vossemecê é mulher dasde bom tempo! Ja näo há des-se barro. Näo há, näo senho-ra! Ah! que se a minha Brí-zida morresse e a tia Joa-quina enviuvasse, bem seionde ia bater!... Deus taguarde por muitos anos ebons, Duarte, que a näo me-reces. Mas, entäo, saboreielá o seu vinhinho... É umapinga de estalo, lá isso é,quem o negue é capaz de negaras Cinco Chagas.-- Está bem, bebo, masprimeiro há-de beber vome-cê...-- Ai näo, primeiro quemestá primeiro: a senhora dacasa. A minha sede tambémnäo é de sete dias. Cäo deDuarte, que näo sabes apre-ciar a prenda que Deus tedeu!-- Näo ateime, bem ha-ja...-- Isso é que ateimo.Há-de beber connosco...Pus-lhe a caneca à bei-ça....he 100-1A mulher bebeu e passou--ma logo, muito pronta:-- Vá, tio Malhadinhas,beba e beba-lhe bem!Beba-lhe e que lhe preste!-- Tivesse eu sede, masnem raça!... Näo ateime...Olhe que lhe fico agradecidona mesma... Valha-meDeus!... Se lhe pego é parafazer a vontade... para näo

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parecer desfeita. Cäo deDuarte, que:,.he 101näo sabes dar o galardäo aquem o merece. À sua saúde,tia Joaquina!-- À sua e por muitosanos e bons!Eu e o Albino emborcámosaquela caneca. Veio outra.-- Näo tenho mais apeti-te, bem haja! -- julguei-meobrigado a dizer para umaterceira, como quem reza umresponso.-- Vá, com uma lasquinhade presunto... -- tornou ela,e foi despendurar do tecto apá do porco.Afinfámos-lhe de grande,e eu sempre na ladainha:-- Esta tia Joaquina pöeo ramo. Olhem-me para ela: éo espelho das donas de casa!Há aí no povo melhor? Issohá ele, nem por todas essasEuropas do mundo! Nem queacendessem um archote a pro-curar.E a burgessa mais e maisenchia os ricos pucarinhos deMolelos e nós pingueiroscomo cachos. Mas baixou anoite e a criatura girou àvida, que já os porcos chama-vam do cortelho pela vianda epunham mais esparrame que umafilarmónica emborrachada. Eentäo chegou a vez de eu mevingar das vozes de bêbado ecaloteiro com que ao intróito.he 101-2nos brindara. O Duarte es-

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tava meio tocado; embora, apalavra, como a lança, longealcança!-- Raios te partam, homem-- disse-lhe eu -- mais:,.he 102à aldrúbia que meteste emcasa. Näo viste o espalhafa-to com que rompeu! Mil dia-bos a levem mais à barca quepara cá a passou! Irra, ir-rório, senhor Gregório! Eucá se fosse a ti, ó Duarte,chapa batida, chapa gasta,dava-lhe todos os dias, aodeitar e levantar da cama,uma sova de criar bicho.Pois ele pode haver maiorcolondrina por esses mundosfora? E andas tu nas mäosdela como um frangalho?!Terçä te coma, Duarte, maisà bochada de carneiro queDeus te deu!...E, porque torna, porquedeixa, ali fiz a cama à mu-lher. E täo bem feita elafoi que Barrelas toda, àhora de ceia, foi alvorotadacom os gritos da Joaquina.Mas dia foi esse que oDuarte passou a ser rei nacasa em que só havia mandona.Que a minha língua eraruim e envenenada? Aí está oseu malfazer, endireitar omundo que andasse torto.Dela näo temo as contas quehei-de dar a Deus porqueainda que a minha voz näoseja como a ronca do abade doTouro quando canta os la-tins, é de falsete só no

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nome. No mais foi, é, e sem-pre será leal-verdadeira.

.he 103VIIQue a minha faca era afia-da e leveira... Se afiada atrazia, muitas vezes tivepena de näo ter à mäo a cata-na de Durandarte. Há encon-tros na vida e pendências queum homem honrado näo provocanem espera, e que só se re-solvem de pulso rijo e botan-do as unhas a uma arma. Afaca, mesmo assim, nunca asaquei para homem cordo degénio e liso nas contas, nempara jagodes pobre do juízoou com água chilra nas velas.Destes tinha dó, se é quenäo era nojo, e arredava-oscom a biqueira do sapato.Também nunca por nunca a sa-quei sem qúe, picado ou atro-pelado, me näo conbesse le-vantar despique ou lavar acara de algum enxovalho..he 103-4Nisso a minha folha deAlbacete era escrupulosacomo a espada do capitäo-morde Pera e Peva, que, diziao Mestrinho da Tabosa, nun-ca saía da bainha sem causanem entrava na bainha semhonra. Às vezes ia embai-

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nhar-se na barriga dum velha-co, sem dar os três estalosda lei nem se lhe ver o açofrio a relampejar, é verdade!Mas é da guerra, meus senho-res, é da guerra dissimular oataque e por nada deste mundodar senha ao:,.he 104inimigo. Gingar, fadistar,deitá-la na mäo aberta, a lâ-mina entre os dedos e o caboa fugir pelo pulso para o ca-nhäo da jaqueta, foram artesque näo me lembro se aprendi,mas, se aprendi, näo se meamoldavam ao génio. Manda-va-a quando podia, muitas ve-zes com o inimigo desatento,mas lá negacear nunca. Àface de Deus, vinguei-mesempre com limpeza.A faca é arma feia e cru-el, está certo; mas se em vezde naifa eu trouxesse um pu-nhal com cabo de prata; se emvez de almocreve fosse umdesses senhores D. Gaifei-ros de que rezam os rimances,eu queria ver se alguém er-guia a voz a acoimar-me dedesalmado e o padre Antunesda Lousadela me mandava em-bora do confessionário, semabsolviçäo, como fez umaQuaresma com a igreja cheiade gente para o confesso. Aotempo, também, ainda näo ha-via essas pistolinhas sábiasque é o pândego tocar no ga-tilho e estäo sete baláziosferrados no canastro dum pu-lha. O pau defendia-me de

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cäo, de malta frente a fren-.he 104-5te, mas para jogos de falsafé e pessoas de mau sentidonäo havia como a faquinha. Omundo já o encontrei assimformado. Näo era o filho demeu pai, com poucas letras enenhumas posses, que era ca-paz de o consertar. Agoratambém lhes digo: se o grandefosse valente, o pequeno pa-ciente, e o ruivo leal, aterra seria um pombal.Acusam-me de muitos desa-foros, mormente dessa:,.he 105rixa de Aveiro em que um ho-mem, o Fontinhas, foi näosei se adubar a terra antesdo tempo, se para a enferma-ria... Näo é essa que maistemo quando me chamar Deus ajuízo. Há que mundos issoaconteceu, pois nunca me pi-cou O remorso, nem mesmo co-mo a paragana que, tantasnoites, às voltas que umcristäo dá no catre com oscuidados ou uma dor, fura daenxerga para os lençóis emorde mais que uma pulga.Imaginem Vossorias que umdia eu e meu sogro botámosaté Aveiro no negócio, osmachinhos à frente, por aíabaixo, täo santamente comonós. Como chegássemos à ci-dade já tarde, toca de acomo-dar os animais na estrebariada estalagem e de puxar damerenda, que a estirada foracomprida e fizera um calor de

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rachar. Estávamos nós trin-cando o nosso migalho de päocom chouriça, chega o Fonti-nhas, almocreve também comonós, com um rompante, San-tíssimo Sacramento, nem quefosse moço de sege do bispo!O homem vai-se direito à es-trebaria e deu de cara com osnossos machos. As argolas,que lá lhe pareciam as melho-.he 105-6res, estavam tomadas poreles, e em vez de se confor-mar, que chegara depois denós, näo senhores, rompeulogo aos roncos. Estou a vê--lo de lampiäo ao alto, afaixa a desbarrigar-se-lhe dacinta, chapéu rodado a penderpara a orelha, jaleca curta,por suíças uns belros de lä,que pareciam manchocas demusgo::,.he 106-- De quem säo estes ma-chos?Foi meu tio Agostinhoque lhe respondeu, porque,além de saber a fraca rês quetinha diante e temer-se dumarixa do homem comigo, porânimo era pronto a dar razöese a aceitá-las:-- Um é meu, o da calçabranca; o outro, de meu gen-ro.-- Pois tirem lá os ma-chos para fora... e já!-- Tirar os machos! Issoé que näo tiramos. A estala-gem é de quem vem. Você éalgum rei?...

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-- Estas argolas, desdeque me conheço, foram sempreas minhas. Percebe? Se per-cebe, homem, desate lá os ma-chos, senäo desato eu, etoco-lhos daqui para fora atoque de caixa!-- Nunca tal ouvi...-- Pois ouve-o agora.Väo machos e vai você. E seme refila, até lhe arrebentoa alma...-- Essa agora!...-- Já disse!... Tira osmachos?... Näo tira?...Pois se näo tira, corto asrédeas e vai tudo raso...Era o momento de me che-gar adiante, visto que obirbantäo se näo rendia àspalavras leais de meu sogro:.he 106-7-- Que febre lhe fazem asbestas, amigo? Deixe-asquietinhas. Tem muito lu-gar...-- Näo quero cá saber.Saem ou corto...?-- Näo corte, paträozinhodo Senhor! As bestas:,.he 107täo bem estäo aqui como aco-lá. Vossemecê e nós somosgente do mundo... näo paga apena apeguilhar.-- Eu já lhe dou o tro-co...E aí rapa ele da navalhae corta a arreata do macho dacalça branca. Ia a cortar ado outro... arrumei um sopapoao lampiäo... e, em menos dumai, estava estatelado na pa-

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lha:-- À-d'el-rei que me ma-taram! À-d'el-rei!Espetou-se na navalha,fiz algum gesto à toa, dei láconta como foi?!... Mas al-voroçou-se a estalagem eprenderam-me. No meio doburburinho, já debaixo degalfarros, pude dizer a meutio:-- Safe-se com os machos,homem! Que está aí a paparmoscas? Espere-me lá para oEixo. Se näo me vir por es-tas duas horas, reze-me poralma.Juntou-se o povo e veio oregedor, que polícias näo ha-via ainda na terra àqueletempo. E, vendo-me no meiodos cabos, atiravam-me à caracom dichotes deste jaez:-- Isto é traste da Ter-ra Quente... Olhem-lhe paraa tromba.-- Ó meus senhores, eu cánäo nego o berço; sou dumaterrinha para riba de Viseu,fria e feia, onde näo vingaoliveira, nem laranjeira, nem.he 107-8uva de lagar. Pior näo have-rá, mas nós todos vivemos nalei e graça de Deus. Näo éa primeira vez que NossaSenhora aparece aos pastori-nhos nos nossos montes...:,.he 108-- Terra de cordeirinhos,está-se a ver pela rês que tués!-- Sabe Deus quantas

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mortes tem às costas!-- Olhem para ele: caramesmo de malvado!E eu, pudera! com lágri-mas na fala:-- Ó, meus ricos senho-res, olhem que se tenho carade malvado näo o herdei deleite! Sou filho de boamäe... e näo me pesa na cons-ciência, até à data, ter fei-to mal a uma mosca...-- Oh que patife! Melú-rias é ele, assim tivesse ocoraçäo! Esfaquear o Fonti-nhas, um homem täo amigo doseu amigo!-- Eu? Eu nem com umdedo molhado lhe toquei.-- Mas tocaste-lhe com anaifa! Ela está ali, de pon-ta e mola, mais afiada queuma navalha de barba, que oconfessa.-- Valha-me Deus, pobrede quem nasceu com má estre-la! Pobre de quem se vê so-zinho no mundo! TambémCristo foi cuspido e vaiadoe entregue a Caifás e pade-ceu morte afrontosa sendojusto! Ih! Ih! Ih!-- Falas de santo, unha-das de gato.-- A morte me coma se to-quei em tal homem.-- E está na agonia...?!-- Näo sei, näo tenhoculpa nenduma. O homenzinhoia por lá a cortar a arreata,apagou-se a candeia :,.he 109näo sei como nem por que jei-to, e aquilo feriu-se no

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gume...Fiquei nas mäos dos cabosde ordens e, uma boa hora an-dada, à força de me veremchorar, confranger e protes-tar inocência, alargaram ocírculo que faziam em voltade mim. Depois de levantaremo Fontinhas, lá porque eulhes parecesse maricas no gé-nio, começaram a fraguar co-migo, perguntando-me pela mu-lher e filhos e donde era edonde näo. E a tudo eu res-pondia no tom mais apiedávelque podia puxar das entranhaspara a garganta.-- Temos de o conduzirpara a cadeia -- proferiu oregedor, olhando-me de face.-- Está bem, meu senhor.Lei é lei. Mas eu só lhequeria pedir um favor... Eraque me deixasse agradecer a.he 109-10caridade desta boa gente, acomeçar pelos senhores cabosde ordens, que säo pessoashonradas e de peso e amanhähäo-de ser pais de filhos, eninguém sabe para que é que agente os cria.-- Diga lá... Se estiverna minha mäo...-- Se está?!... Era dei-xar-me mandar vir uma pingapara beber aqui com a socie-dade.-- Homem, guarde o di-nheiro; pode-lhe ser preciso.Puxei da bolsa e fiz cho-calhar as libras contra apalma da mäo::,

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.he 110-- Louvores ao Senhor,aqui ainda há para obsequiaros amigos!Veio a pinga, um cântarode palhete, deste palhete dasmargens do Däo, que pareceveludo no céu da boca e umhomem sente fugir pela goelaabaixo vivinho e ágil como umlagartixo para a sua lorga.Ele é de tal ordem que atéanda numa loa: päo com olhos,queijo sem olhos, e vinho quesalte aos olhos, e tudo trom-bou, o regedor, os cabos, asmulheres do regedor e dos ca-bos e os meninos dos mesmos.Elas, as mulheres, cele-bravam o meu rasgo liberalcom admitir que o almocrevese pudesse ter cortado invo-luntariamente e que NossaSenhora das Areias havia defazer o milagre de lhe resti-tuir a fala para contar averdade verdadeira. E já nosviam na fresca da ribeira,ele a pintar-se num retábulo,a mim, caminho da terra, comuma cestada de ovos-molespara a mulher e filhos. Eeu, muito contente, estava emnotar a uns chochos de todo,.he 110-11a outros mais pesadöes e lor-pos que patos na engorda.Mais uma saúde, mais umaslérias, um que chama daqui,outro chama dali, a noite es-tendeu-se pela localidade, eos cabos deixaram-me de bandacom o cântaro vazio.Quando de tal me aperce-

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bi, saltei por cima do rege-dor, torto de borracho, rapeido estadulho dum carro queali estava e, depois de var-rer o campo com:,.he 111dois molinetes, pernas paraque vos quero! Em menos tem-po do que se pisca um olho,estava de largo.Foram sobre mim, mas po-diam eles lá pilhar-me, lestocomo era, lesto como ia com ovinho orçado para me acendero ânimo, e na alma um agui-lhäo: avante! avante! se näoqueres ir apodrecer no chi-lindró! No morro, para lá defora de portas, à luz do luarque ainda me deixava distin-guir os tarantas a agatanharatrás de mim, gritei-lhes comtoda a alegria dum pássaronas cerejas, com toda a forçados pulmöes anchos de liber-dade:-- Ó cagaréus de Aveiro,vinde agora para cá!... Vin-de!Ouvi-lhes dizer que eudevia ter pacta com o Diaboe deixaram-me. Deixaram-me,mas uns quatro anos näo as-sentei pé na terra de Avei-ro, onde juntei alguma baga-lhoça, e as espanholas, queentravam pela barra ou vinhampelo ar, näo sei, me levavama quebrar a dieta de Barre-las, a jejuadora.Mesmo às cegas, a Jus-tiça instaurou-me um proces-so, e eu aceito dares e toma-

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.he 111-12res com tudo e com todos,ainda com o Diabo do Infer-no, mas lá com os ladröes daJustiça -- *libera me Do-mine*.Agora respondam: D.Gaifeiros näo teria puxadodo punhal bem cinzelado con-tra o perro que lhe quisessecortar as bridas do garrano?Devido à rixa, os cami-nhos ficaram-me pois:,.he 112bargados da banda do mar, ecom tal o negócio de levar etrazer. Atirei-me à vida dalavoira que, a esse tempo, jápossuía de meu alguns bens aoluar. Mas, amigos, eu lhesconfesso, atrás das vacas pa-chorrentas tinha saudades domachinho, lépido a tropearpelos caminhos de Cristo,das jornadas com a alva, doarrebenta-diabos nas estala-gens, copo de verdasco emfrente no mostrador de zinco,o polegar em cima do condutocontra a broa, a navalha ma-nobrada pela mäo direita.Entrementes, os filhos go-vernavam a casa, dirigidospela mäe que saíra um rei dearmas, e pude largar por fei-ras e mercados em troquilhade cavalos e mais bestas noque, graças às boas manhasque Deus me deu, me houvecom algum proveito e semprecom honra.Foi duma destas desarvo-radas, na feira de ano de

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Vale de la Mula, ao pé daraia, que -- longe do meupensamento -- fui dar com oBernardo do Paço prestes aser esfrangalhado por uma al-cateia de ciganos e de espa-nhóis, de alto lá com ela.Tinham-no num cerco, e ospaus apostados sobre ele eramtantos que o valentäo näo sa-.he 112-13bia a qual havia de acudir.Mas, ah gente! no meio da-queles negros todos, cabeçaalta, bem escorado nas per-nas, o lódäo a ensarilhar täolesto que nem se via, davaganas de lhe gritar:-- Aí, filho de bô'mäe!Aí!Vossorias lembram-se: oBernardo safou-me da:,.he 113roga do Tenente, correr asalvar-lhe a vida em perigoera a minha obrigaçäo. Man-dava-me o ânimo, que nuncafoi peco a agradecer, e quenäo mandasse, isto de ver umbicho esfandegado por umaqueira de sabujos até na caçaao lobo agonia.Foi encomendando a alma aDeus que me atirei para obarulho, depois de gritar aoBernardo:-- Tem-te, amigo, que euaí vou!Em menos dum amém, meussenhores, quatro bordoadas àdireita e três à esquerda,juntava costas ao valente.-- Vamos a eles, Ber-

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nardo! Agora ou nunca mais!-- disse eu, pois naquele mo-mento de surpresa só haviapela frente correr a malta àcastanha ou morrer.Sentindo-se ombreado, oBernardo cobrou alento, e opau dele, por cima das cabe-ças, era como mangual numaeira.Também nunca os meus bra-ços pareceram täo rijos e opeito mais pronto a servir osbraços. Paulada neste, pau-lada naquele, uns em terra,outros pernas para que vosquero, rompemos o cerco.-- Onde tens a besta? --perguntei para o Bernardo.-- Vendi-a -- respondeu-.he 113-14-me todo afogadiço, a deitaros bofes, coberto de suor esangue, que algumas pancadaslhe tinham resvalado à tola.:,.he 114-- Diabo, diabo! Masanda daí, o meu cavalinho noslevará.Corremos ao poldro, sal-támos-lhe em cima e, toca deespora, à rédea solta. Amalta, entretanto, tornara aformar-se e largava atrás denós a rugir e a disparar ospistolecos. O cavalinho eragalgaz e, eh raio! eh raio!só deixou de dobrar em Al-meida. Mas à porta da esta-lagem caiu redondo para ochäo.-- Podem dar-lhe um tirono ouvido -- disse o vendei-

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ro. -- Nunca mais pöe cabe-çada.-- De facto -- proferiu oBernardo -- tem os peitosabertos. Mas descansa, An-tónio, foi por minha causa,eu pago-te o cavalo...-- Näo digas mais, Ber-nardo, näo digas mais, que jánem te vejo todo. O cavali-nho pateou ao meu serviço, aperca é minha. Deixa, se searrastar até casa, bem sei oque lhe hei-de fazer.Descansámos ali a noitee, com sopas de vinho e boapitança, reanimámos o animal,a pontos de se aguentar empé. E, embora moêssemos umdia até Trancoso, o cavali-nho lá foi andando.-- Cäo de mim -- maluquei-- se trago o macho näo so-fria o dano de vinte libras,que era quanto o Orlandodava pela bestinha no mercadodos quinze. O mulo engolia oestiräo sem tocar com um cas-co no outro. Mas adiante,va-mos a ver, talvez o Or-.he 114-15lando lhe pegue...:,.he 115Lá chegámos a Barrelas,mais mortos que vivos, e ocavalinho manquitando que pa-recia a cada passo ia acabarseu tropecer.Prendi-o à argola parapensá-lo como doente que era,sem dizer nada a ninguém.Eu estava certo que oOrlando, mais dia, menos

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dia, voltaria a petar, a que-rer comprar-me o garrano queficara na loja por um empatede borra.Ora, se bem o pensei, me-lhor assucedeu. Ainda näotinham passado duas semanas-- já o animalzinho ia e vi-nha muito direito para ospastos -- senti o troquilhasà porta do Guilhermino ven-deiro, mais o compadre doCarvalhal, que também andavano negócio. Aviso a Brízi-da: Ó Brízida, se vieremperquntar por mim, dize quefui para Trevöes ao azeite eque, mais hora, menos hora,devo estar de volta". E des-ci à loja, atirei com osodres para riba do albardäoe, pela porta travessa, de-pois, pelo caminho dos quin-tais, puxei o cavalinho paralargo. Cheguei atrás daigreja, fui-me aos odres e,sopra que sopra, pu-los maisredondos com vento do que seviessem a estalar com fazen-da. Depois orcei-os no cava-linho, apertei-lhe a cilha, ecompus os atafais. Com jei-to, em seguida, plantei-me nomeio da carga, pés para afrente, e toca de entrar pelopovo abaixo, todo farófia,mais teso que um fidalgo nasua faca. O cavalinho ti-nha-lhe comido bem, foi boni-to; pelo trote que :,.he 116batia, ninguém se lembrava dedizer que estava rebentado doarcaboiço. Ao tropicar à

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porta da venda, saiu fora oOrlando mais o compadre. Egritaram-me:-- Ó seu Malhadinhas!Seu Malhadinhas!Fingi que näo ouvira.-- Ó seu Malhadinhas!-- Olá, amigos!-- Desça cá beber umapinga...-- Agora näo, rapazes.Venho de Trevöes, que é láem casa do catano, e estoucom pressa de descarregar...-- Entäo o bucéfalo näopode?-- Eh! rapazes, com umacapilota destas no pêlo, trêsalmudes de azeite e eu em ri-ba desde a alva até agora!...Mais de sete horas!-- Entäo descarregue lá evenha beber uma pinga. Hoje.he 116-17é que há-de vender a pile-ca...-- Pileca?!... Näo medigas mais dessas que até meofendes! Está aqui uma es-tampa real. Ide por essasfeiras e desencantai-me se-gundo que vo-lo peso a prata.Ele é tanto para carga, comopara carroça, como para cava-laria... Pileca! Haveisainda de comer muita rasa desal para saber o que é um ca-valo!-- Ora adeus, adeus, des-carregue e volte, homem!Lá voltei e lá lhe impin-gi o zangaralhäo que o compa-dre estava ali para rachar adiferença. Näo valia dinhei-

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ro de cruzes!:,.he 117Arrebentadinho, arreben-tadinho, deitou a alma naprimeira ladeira. E assim medesforrei da aventura de Va-le de la Mula por vinte euma amarelinhas, näo contandoo alvaroque com que nos em-borrachámos eu e quantos aliestavam de Barrelas, à custacomo foi da barba longa... fim pag negro 117 - fim cap vii - linha 6

.he 118VIII-- Cachorro de mim, semuito dinheiro granjeei, --muito dinheiro derreti pormal-andanças do génio e tam-bém pelas torpezas da sorte.Um no vazadoiro dos proces-

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sos, outro em peitas e espór-tulas, a encher o papo daJustiça que, à semelhançadas jibóias, só dorme quandofarta. Louvores ao Pai detodos, os meus ossos só co-nheceram uma vez a tábua duradas cadeias. Foi quando oCapa-Cavalos de Sendim seveio despropositadamente es-petar na minha faca, o grandebêbado! Desde essa hora, to-mei-me de tal asco pelas pri-söes que, em despique ou pen-dença, antes queria ficar noterreiro, sob pena de näomais me erguer, que deixar.he 118-19pôr as unhas na lapela davéstia. Aquela mestiçalhacomida de bicharia e varadade fome, com tigelas de lataà dependura duma cana, a pes-car, à força de lamúrias, osdez-reizinhos ao passante;aquelas quatro paredes, es-treitas de mais para a minhaviveza de pássaro, largas demais para se parecerem com atumba, com a qual o melhorremédio é andarmos conforma-dos; aquele ventas-de-cäo docarcereiro, açulado semprepara os desprotegidos, todorapapés para os que lhe unta-vam a pata;:,.he 119isto de ver a gente cá fora,leva que leva, a lidairar empaz e dia bom, deixaram-me aaversäo dos despiques e daszaragatas, por mor das quaisnunca faltou mamadeira aos

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doutores de leis e à Justi-ça. Deus te guarde de *par-rafo* de legista, infra decanonista, etcetera de escri-väo e récipe de mata-säo.Por isso o meu cuchilo que-dou muitas vezes adormecidoquando devia mostrar-se es-perto, e, pelas horas em quenäo havia que fugir, muitoescriväo, muito delegado etôdolos da choldra untaram abarba com as minhas ricastrutas e as pernas de vitelasem conto, que deram alma aliao *Vinte e Um* que as cor-tava. Também os tempos eramoutros. O Paiva näo tinharincolheira que näo desse umprato de pcscado, vivinho dearregalar o olho, trutas fi-nas e taludas como bacalhaus,bogas e bordalos gordos comolontros. Hoje a ribeira pa-rece que levou excomunhäo.Derrotaram tudo com a coca ea cal virgem, a pontos que é.he 119-20uma fortuna colher lá doiscágados com que empulhar oquartilho.Pois é verdade, se ganheirios de dinheiro levou-mos aJustiça, levou-mos a criaçäodos filhos, que o seio da mi-nha Brízida carregou comoestas vides que trepam às ár-vores e botam cachos que é umlouvar. Eu cá näo fui falsoao rei. Näo paguei o tributode sangue com o meu rico lom-bo, mas de dezanove filhosque para aí andam quatro dei-taram correias de soldado

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:,.he 120dado e um até entrou na guer-ra preta do Gungunhana. Ra-pazes feros e escorreitos,capazes de partir uma lajacom os dentes, todos de caradireita, antes de quebrar quede torcer. As moças é quesaíram umas repitoscas, umascabroilas, amigas de luxar egastar sabäo com os asseios.Paciência, näo há grande ge-raçäo sem santo nem ladräo!Dezanove, sim senhores, foiquantos a Brízida botou aeste vale de lágrimas, assimfácil como na fonte sai aágua das torneiras. Destestodos, a raça já vai longa.O outro ano, pela consoada,juntaram-se no pátio, que acasa näo era cabonde para osabrigar a todos. O Sr.Abade viu-me no meio e pôs--se a chalacear:-- Ó Malhadas, pareces osanto padre Abraäo!-- Ná, Senhor Abade --retruquei eu. -- Abraäo, pormodos, foi um grande rascoei-ro, se é certo derramar castapor todos os andanhos da ter-ra. Eu cá nunca saí do pas-sadio a que o sexto mandamen-to obriga o bom e fiel cris-täo. Tenho uma, essa me há-.he 120-21-de enterrar. Depois livre--me Deus de a Brízida secomparar a Sara, que näo eradifícil a fazer o seu favor,e a minha boca à do nossosanto padre Abraäo que che-

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gava a mulher ao Faraó e aquem lha requeria. Arreda!E näo minto, sempre guar-dei respeito à minha Brízi-da, que, meus amigos, tambémnäo era de ânimo a sofrer queerguesse olhos a cobiçar ou-tros. Uma vez até se quis irdeitar a afogar, só porque sebacorejou:,.he 121no povo que eu tinha pactacarnal com a Ludovina daMorte -- conheceram? -- as-sim chamada por ser mais feiaque a morte negra. Foi o pa-tife do Bisagra que alevan-tou o falso testemunho, masia-lhe saindo caro, pois seum dia näo me fura por umassilvas como raposo esparvadi-ço, rachava-lhe um pau, bemembora ele os tivesse maisduros e retorcidos que osbois do Maräo.Sempre guardei vénia à mi-nha Brízida, se näo por todaa parte onde prantava butes,aldemenos no povo, que era,antes de ser vila, o mais me-xeriqueiro, noveleiro, inven-tor de galgas que à luz dosol medrou.Lá pelas minhas rondas dealmocreve, o corpo às vezespedia-me vício, se näo eramos parceiros que me tiravamda devoçäo. Näo raro sucediavirem-me os meliantes comtramóias assim urdidas:-- Ó Malhadinhas, chegouagora a Aveiro uma espanholaque é capaz de dar um coice

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numa estrela. Aquilo é que émulher! Vale um macho com acarga em riba. Anda daí!....he 121-22-- Para que me vindes ten-tar, almas do diabo? -- res-pondia-lhes eu. -- Está lá aBrízida à espera, coitadi-nha, e tenho medo de lhe le-var o mal ruim.-- Qual o quê?! -- torna-vam os grandes mariolas. --Aquilo é mais sä que um pê-ro. Anda daí...-- Deixai-me cá! Se sou-bésseis as saudades que tenhodela!:,.he 122-- Saudades nas securas,meu amor, dá cá a borracha.E, na arca aberta o justopeca, lá me arrastavam os ex-comungados. À volta, ao to-car a testada de nossa casa,bem vontadinha sentia de irbeijar a minha Brízida e tercom ela aquelas práticas deque dizia Frei Joaquim dasSete Dores: "Telhas abai-xo, para homem e mulher, de-pois que o mundo é mundo, me-lhor brincadeira näo se in-ventou." Mas ná, contentava--me em estropecer na rua echamar:-- Ó Brízida, estás lá?Ela respondia-me da cama,mais repenicada que uma fran-ga:-- És tu, António? Sobe,sobe, que estás a meijengrar?-- Näo, menina, cá vou pa-ra Trevöes à vida... Seja

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pelos trabalhos que NossoSenhor padeceu!E ia, abalava dali a ri-lhar os dentes, mais raivosoque o Porco-Sujo quando deutrambolhäo do Paraíso. Masera forçoso deixar tempo aque o mal francês florisse ouos meus receios se dissipas-sem.Sabia depois que a minhaBrízida, pobreta, vinha, mallevantava a manhä, pelo cami-.he 122-23nho fora até junto da igreja,acompanhada do rebanho dosinocentes. E, ao descobrirna areia fofa o rasto do ma-chinho, exclamava:-- Olhem, meus meninos,olhem, aqui passou o:,.he 123triste de vosso pai. Cá väoas pegadas; foi-vos ganhar opäo, aquele negro!Informavam-me os vizinhosdeste enternecido cuidar evinham-me as lágrimas aosolhos. Com remorso, ao mesmotempo, chamava-me perdido milvezes, e a Deus e ao Diaborogava que me sepultassem lo-go no inferno para castigo daminha sem-vergonha. E comonem um nem outro me dessemouvidos -- o que de resto eujá esperava -- entre o cálicee a hóstia prometia näo vol-tar a espanholas ou fran-cesas, fossem elas bem emboramais feras que as cabras donosso monte e mais cobiçadasque a fruta quando se tem se-

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de. Mas os tunantes dos al-mocreves frigiam-me:-- Rai's te pelem, que näoés homem! Um peixäo daque-les, saltarina e cantadei-ra!...E o perro de mim lá desciaoutra vez o alçapäo do infer-no.Ah! mas volvidos uns quin-ze dias de lazareto, ou pas-sante jornada sem fraldas, àminha Brízida, na primeiranoite, näo ferravam as pul-gas. Foi assim que dezanovefilhos se lhe penduraram aocolo, de catréfia seguida, uma mamar, outro no ventre.Embora, geraçäo numerosa éuma fortuna, näo saíssem eleestouvadas duas raparigas,dando origem ao mal falar dasbocas badaleiras. Haviam de.he 123-24casar e atrasaram-se a esco-lher homem. Isto de fêmeassäo todas:,.he 124as mesmas. Mäe, casai-melogo, que se me arruga o ros-to.A Isménia, que era defresca e de tenrinha uma fi-lhó antes de fritar, poraleivosia, creio eu, acoima-ram de se encontrar com o pa-dre Zé Farrusquinho no só-täo da Claudina. Bem certoque a velhaca da Claudina,se veio ao mundo, foi pararegalar com o seu corpo e como corpo das pobres doidas osrabaceiros de fraldas; mas eu

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passei muita noitada, a laza-rina bem munida de zagalotes,por detrás das carvalhas dafeira, à espera do gerifalte.Assim Deus me salve se al-guma hora eu ouvi a tamanqui-nha dela chapejar no escuro,ou o padre saltar os quintaiscomo diziam que vinha toparas amásias. Pois malhava-lhedois tiros, ainda que eu sejacristäo-velho e confessado emais de uma vez ouvir dizerque se näo salva do infernoquem toca em ungido de Deus.Que ma pregassem nas meninasdos olhos!? Näo era fácil,trazendo-os eu täo abertoscomo gato que anda à caça.Se se porquearam juntos, quea terra lhes seja leve, jáambos deram contas ao AltoJuiz dos desgarros da luxú-ria.Lá a avaria do Bentinhofoi certa; negá-lo seria ne-gar a luz do sol, mas ele aíanda tombado sobre a ilharga,como perdigäo que caiu deasa, a atestar que ninguémmas faz que näo entale o ra-bo.Ela era minha neta e a.he 124-25afronta mais com os pais:,.he 125do que comigo, mas já que näovarriam o agravo, tomei eu acargo fazê-lo.Marquei-o, como fazem osnotários, a ferro frio, e pa-ra onde vá, tombado sobre adireita, vinte e nove trinta,

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vinte e nove trinta, vai con-tando o troco da velhacada.Deus me perdoe, mais valiatê-lo despachado para o outromundo, que livraria muitacriatura de ir fazer tijoloantes do tempo, pois já ouviao nosso doutor que só elemata mais povo com as mezi-nhas e xaropadas que todas aspestes juntas. Digam-me de-pois se, às vezes, a faqui-nha, caindo uma polegada maisfundo, ou ladeando um nadinhapara órgäo melindroso näo fa-zia obra de acerto?!Pois como lhes ia contan-do, o Bentinho, barbeironada mal afreguesado, com asbarbas de Barrelas ao domin-go, e as dos Alhais sábadode tarde, nas artes da medi-cina mestre ouvido e chamadopor toda a Serra, pôs-se atraquejar a minha neta Luí-sa, mocinha airosa de corpo,mas cabeça de alvéloa, amigade luxar, folgar e doidejar.Quem me estorvou a mim delhe dar o correctivo? Ou ospais porque lho näo de-ram...?! Näo sabia eu quemenina, vinha, peral e favalsäo maus de guardar? Fecheios olhos, é verdade, julgandoque o rapazola andava para obom fim. Inda que o ofíciode curandeiro, paredes meiascom o de corpo-aberto, medesse volta ao estômago, pen-sei que isto de homens é fa-zenda que anda cara, e o ser:,.he 126

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muito debiqueiro neste negó-cio às vezes desata mal.Vossorias todos conheceramaquele mariola de ginjeira:baixo, redondete, falas do-ces, carinha de pêro camoês,bom cantador de fados, ham?!Com aquela cara e as mogan-guices, era o traste o ai-je-sus das mulheres.Vai senäo quando, chegou--me aos ouvidos que o badame-co se gabava de ter logrado aLuísa e jurar e trejurar queoutros intuitos näo acalenta-ra que palpar-lhe o amojo elevá-la ao calvário. "Tantoladras, rosnei com os botöes,que trincas a língua". Boteiinquiriçöes, era verdade. Omaninelo encontrava-se com amoça no palheiro que o paitinha para a Tomadia; eupróprio a vi sair muito ron-ceira, cautelosa, com a pontado xaile a disfarçar o rosto,.he 126-27que era um espelho de formo-sura.Veio a festa do mártir S.Sebastiäo, ao tempo das maisfaladas pelas redondezas, quedava com a velha Barrelas,durante três dias, nas panta-nas do gozo. A gente confes-sava-se e comungava e, depoiscom a alma limpa como quandose toma uma dessas boticadasque aliviam o corpo dos maushumores e o deixam livre elesto para os grandes apeti-tes, era comer, beber, pande-gar; mediante a quota de deztostöes quem quer podia sen-

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tar-se ao almoço e jantar nodia da festa, e à ceia, comos créscimos, no dia seguin-te. Quando era mocinho, nun-ca cheguei bem a perceber:,.he 127porque havia aquele intervalono regabofe, jantar num dia,ceia noutro; supunha eu quefosse trégua à digestäo, quenaquele dia se tornava tarefade respeito. Näo senhores;era partido deixado à dentuçados mesários que tinham avara em punho. Certo era ha-ver naquela data enchenteforte de vitela, cabritos epeixe, em que o nosso Paivaera abundoso; o vinho corriacomo de fonte farta, e aszanguizarras da terra e defora da terra batiam o ter-reiro, cada qual mais assa-nhada. Ninguém que se pre-zasse faltava com a sua fin-ta, certo que lhe ficariaforra com tirar o ventre demisérias e empaturrar-se parauma semana inteira.Pois, esse ano, sendo decapricho os mordomos, as fun-çöes tomaram vulto como näohavia memória entre os maisentrados na idade. Confes-sou-se o marrano e o cristäo,.he 127-28ouviu-se a palavra de Deusbem trombetada pelo nossoreitor que, era ele querer,fazia chorar as pedras. Foinesse ano, por sinal, quehouve na igreja o brequefestaengraçado de que ainda hoje

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se fala e falará na vida dosnossos netos. O nosso abadeera, como está sabido, umpregador de fama e por alifora, no púlpito, näo se en-ganava na carreira, tratas-se-se das *Lágrimas de S.Pedro* ou do *Arrependimen-to da Madalena*, tanto maisque é só mudar os nomes aosbois, e ele tinha aquilo maisbatido e rebatido do que andao burel no traseiro ali doBisagra,:,.he 128que näo pode estar um momentosem que se acaçape por terra,se näo pilha banco, no chäo eaté na ponta dum chavelho. Osermäozinho na boca dele pa-recia a água na bica da fon-te: *Era sina na sola e nalua e nas telas* e já estavana *ave-maria gracia plena* ebota para cá uma libra quepor aqui me vou. Pois daque-la feita o pregador de famaengasgou-se. Mais tarde ex-plicou ele que tinha bebidoum dedal de aguardente pormor do frio e se lhe toldaramomentaneamente o juízo. Ofacto é que se engasgou e näopassava disto: *Sebastiäo,Sebastiäo, miraculoso Se-bastiäo! Ó Sebastiäo, santoe mártir! Sebastiäo, meu S.Sebastiäo!* E mais Sebas-tiäo para aqui, mais Sebas-tiäo para ali, o ladräo doMeses que era o juiz daigreja e como vocês sabem sechama Sebastiäo -- mal em-

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pregado nome num safardana edesbocado daqueles -- sai de-.he 128-29trás da coluna e exclama:-- Aqui estou, senhor aba-de. Que quer ao Sebastiäo?E vai o nosso abade, nomeio da gargalhada geral, emvez de cair do púlpito abaixoou atirar com um diabo à ca-beça do entremetido, que lheresponde:-- Näo é contigo, minhabesta quadrada, é com o valo-roso legionário que nas hos-tes do cruel Dioclecianoderramou o sangue pela fé deCristo!...Por ali fora lá se meteu acaminho e, dá-lhe que dá-lhe,näo tardou que o templo com oalarido,:,.he 129os choros, a fungadela dasbeatas lembrasse uma caravelaque vai ao fundo. Olá! Aofim da festividade, Barrelasem peso abancou ao ágape, co-mo o Manuel da Costa Pe-reira, boticário e miguelistados quatro costados, lhe cha-mava em língua de padre-mes-tre, para o qual todas as ca-sas emprestavam loiça, gar-fos, e queixais. Durou osdois dias da praxe a grandereinaçäo, e eu com alma maisnegra do que se me tivessemderramado nela pez a ferver.Foi na ceia de segunda queme decidi. Na véspera haviatomado o corpo de Nosso Se-nhor Jesus Cristo, que mor-

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reu para nos remir e salvar,e eu näo queria fugir à devo-çäo e bondade daquela bentahora.A minha vontade seria vin-gar-me do sedutor cristämen-te, santamente, se possívelfosse com a faca benzida peloPadre Santo de Roma. Fizo que pude. E à hora de dargraças, quando todos a arro-tar, de pé, cabeça descoberta.he 129-30e mäos erguidas, responsavamos seus mortos, no rosáriosem fim das rezas, encomendeio sujador das minhas barbas:-- Por alma de algum ir-mäo, agora aqui ao nosso ladoe, quem sabe lá, dentro emponco a dar contas ao Cria-dor, padre-nosso e ave-ma-ria...Rezaram todos, sem passara nenhum tolo pela cabeça querezavam por um condenado.Deixá-lo, o ladräo já levavalastro para S. Pedro. Àporta:,.he 130esperei-o, cosido com a pare-de, a coberto da noite que denegra täo bem escondia o jus-to como o pecador...............................Que lhe saíram do odre,pelos furos, pedaços de vite-la por digerir?! Näo sei.Acolhi-me à minha fazenda doSabugal com a reiuna bem es-corvada. Lá foram os cabosde ordens até a cancela.-- Dê-se à prisäo, tio

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Malhadinhas, que näo há juizque o condene. Vomecê lavoua sua cara honrada...-- Dizeis bem, rapazes,dizeis bem. Lavei a minhacara borrada. Borrou-maaquele cäo. Näo havia de pa-gar a ensaboadela? Pois é,lavei a cara borrada. Agora,vós, se estais fartos de vi-ver, chegai-vos cá!Rodaram para nunca mais.Voltei à minha lida, voltouo Bentinho à sua, matar gen-te, mas só dobados muitos me-ses, descaído sobre o flanco,como quem ladeou da cova.Grande piranga, tinha os de-mónios todos do inferno aresponsar-lhe o coiräo!

.he 131IXNäo há trabalho sem traba-lhos, é täo certo como umaEscritura, mas deixasse-mehoje o Pai do Céu tornar àminha mocidade, que eu pegavalogo no meu ofício e näo dou-tro, inda que fosse o do nos-so abade, que leva a vidinhaa cantar, ou o do Heitor bo-ticário, que com uma pipa deágua fabrica um lagar de di-nheiro. Morte mate, se pega-va doutro!Muitas vezes ouvi dizer aFr. Joaquim das Sete Do-res... Vossorias já näo co-nheceram, era irmäo da Ordemde S. Domingos e andava aopeditório de terra em terra

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para o colégio de fradinhosda Fraga, com um rucilhotropiqueiro. Ia por aqui, iapor ali, e convidava as boasdonas, a troco de chouriço,.he 131-32naco de presunto, cereais oufruta, com ossos dos santosmártires, lascas do SantoLenho, pingos de água doJordäo, ou pó para matar aspulgas, e já me näo lembraque mais destes santos ingre-dientes. Pois a Fr. Joa-quim das Sete Dores, muitasvezes ouvi dizer: Arrieirono tarde chora por arrieiro,nanja por cavaleiro. Só ago-ra, mais dia menos dia com oViático a:,.he 132badalar-me à porta, é que vimao fundamento de tal senten-ça. Choro pela minha vida dealmocreve, e dessem-me hoje omachinho, tornassem-me as mi-nhas pernas e a boa disposi-çäo, com dias grandes ou noi-tes sem fim, näo se furtava ofilho de meu pai a recomeçaro fadário por Franças eAraganças. Mas ao tempo omeu pensar era outro, e tinhaàs vezes batidas com o frademais puxadas que léguas dasvelhas.Uma vez, lembra-me como sefosse ontem, vinha eu dasAntas, aconteceu-me tropeçarcom ele na Serra da Lapa,botados ambos lá de baixo doVale do Távora. Vossoriasconhecem aquelas serranias

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onde Nossa Senhora apareceua uma pastorinha de gado, queera muda...?! Se näo conhe-cem, eu lhes digo: desertosmais danados, fraga sobrefraga, penedos sobre penedos,postos ali para purgatório dopassageiro, näo quero quehaja debaixo da rosa do sol.Caía neve, uma nevasca,Deus nos acuda, täo baça eemaçarocada que o céu eramais tapado que um capuz, eceguinha de gota-serena aterra inteira. Apagara-se de.he 132-33todo o lume do caminho, e eularguei corda bamba ao machoque, embora pouco trilhadodaquela rota, melhor a palpi-taria que eu. Também näo ti-nha outro remédio. Abrir osolhos que valia?! Que vales-se, o cäo do vento, que bufa-va de frente, chapava-me ne-les tais manchocas de neveque näo havia remédio senäofechá-los.:,.he 133Eu praguejava como é pró-prio de gente pouco pacientee nada habituada a rezar:-- Raios partam a vida,näo me fazer minha mäe fidal-go! Se mil diabos me levas-sem maila cadela da sorte!...-- Companheiro dos meuspecados -- disse-me entäoFr. Joaquim das Sete Do-res, de riba da azémola, to-que, toque, atrás de mim, täoenfarinhado que só a coca docapuz guardava um arzinho de

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negro -- näo blasfemes! Olhaque Deus está a ouvir-nos e,se quiser, pode muito bem se-pultar-nos debaixo da nevecomo sepultou os egipcianosno mar das Arábias. Queriasser fidalgo, ham?! Näo que-rias mais nada...? Tu näosabes o que queres nem sabeso que dizes. Pöe lá na tuaque as vidas näo säo pioresnem melhores, elha por elha.Säo vida e basta!-- Em boa hora sai VossaPaternidade com o sermonário-- respondi eu. -- Entäo acondiçäo dos letrados, de ca-deira, a cardar os desavin-dos; a dos padres -- e perdoeVossa Paternidade se lheestou em casa -- a comer osdízimos e, lá de quando emquando, a louvar no Bre-viário ao criador dos melros,podem comparar-se a esta sa-.he 133-34fadeza de ofício, raçoar deseco, dormir quando Deusquer, às vezes torricado dosol, outras molhando pingan-do, como desta feita, que atéjá levo uma lagoa no umbigo?!Outra porta, que aqui moraum surdo!:,.he 134-- António -- tornava ele,tangendo rijo a bestiaga paraaparceirar com o machinho,que era andeiro -- o teu en-tendimento anda mal ensinado.O bicho homem, quem quer queseja e o quer que faça, temsempre consigo a mesma peço-

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nha. E esta peçonha sabes oque é? É o nunca estar con-tente com a sua sorte. Quan-to mais tem mais apetece, de-seja e torna a desejar paralogo ou amanhä aborrecer.Como näo há-de cansar-se davida nesta alcatruzada deaborrecer e desejar?-- Assim será, meu irmäo.Agora cá eu, franqueza,franquezinha, antes queriaser o fidalgo da quinta daUcha, boa brasa aos pés,bons bifes à manja, boas fê-meas para o gozo, que o pi-lorda que aqui vai por baixoduma nevasca, Anjo Bento,que até se me afigura que deufoeira no céu.-- Sim, lá horas por horasaté Cristo as trocaria emais era Deus, a julgar pe-las palavras ditas no Hortodas Oliveiras: *Pai, se épossível, passai de mim estecálice!* Que queres, a frutamais saborosa tem caroço nomeio. Mas, lá vida por vida,näo vale a pena apeguilhar.Se é verdade que aonde oirofala, tudo se cala, o fidal-go, que tu tanto invejas, näoserá uma vez nem duas que, aover-te seguir de rotina, ra-.he 134-35beiro pelos ombros, a assobi-ar descuidado diante do ma-cho, näo sinta ganas de teestar na pele. A neve queagora te aflige é para ele oenfado que o toma,:,.he 135

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quando mal se precata, de suacortesania, säo os cuidadosda fazenda que estäo ferradosnele a comer como vacas notoro dos velhos castanheiros,sabes, aqueles cogumelos gor-dos da grandura dum chapéu.Säo ainda os percalços dahonra que näo é coisa paragraças. Podes crer, caem ne-vadas em todas as vidas e emtodas as condiçöes, tanto nado homem de leis como na dorico ou do frade. Sabes oque é preciso ter? Paciên-cia. Paciência, meu homem!-- Paciência tenho e demais. Ainda ontem um banda-lho me chamou ladräo e näolhe saquei as tripas ao sol.-- Fizeste bem. Dos so-fredores é o reino dos céus.-- Entäo tenho um lugar àmäo direita de Deus Padre.-- Näo digo que näo e, jáque essa virtude te näo fal-ta, vai mais devagar. O teumacho vai täo depressa quenem que levasse fogo ao rabo.Modera, homem, senäo o meuburrinho näo aguenta.Sofreei o macho. Caíaneve, se Deus a dava, emrala, em grandes flocos, àsmancheias, assim à tola, comogräo lançado a um campo porsemeador arrenegado ou poucoexperiente de mäo. Nascera aLua, mas que lua!? Uma carabochechuda de estalajadeira àespreita, lá do fundo da ca-sa, para o estendedoiro dasua roupa branca. O mundomais näo era que bragal pu-

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ríssimo, bragal que, batido.he 135-36às vezes por uma refega:,.he 136de vento, alevantava paradeixar a nu pedaçöes de terrae do mato, sujos e negros co-mo montes de esterco mal co-bertos pela vessada.Näo era desta neve que do-ba mansa do céu e parece,bailando, o esflorar das pe-reiras na Primavera; era aneve *ladroa* -- como para aílhe chamam -- a neve das mos-cas brancas que voltejam, gi-ram, rodopiam, vêm de trás,de diante, de baixo, dos la-dos, metem-se por todas asfisgas e grelhas à busca decoiro vivo em que ferrar.Soprava-lhes o nordeste, ogrande bufador, e era vê-lasde asas ligeiras, enchendo oceu, a voar, a voar umasatrás das outras, ora muitojuntas, ora desenrodilhadas,num vira sem fim..he 136-37-- Homem, näo corras! --rogou-me o frade segunda vez.-- Toque-lhe -- respondi.-- O macho ainda vai maisinsofrido do que eu.Raio dum raio! Os pinhei-ros tinham ar zaranza, malu-co, como se fossem todos elesos pinheiros que se levantamna nossa cabeça quando seestá a delirar, nunca vistosou sonhados. Perdidos peloscerros, lembravam, uns, gran-des rocas barrigudas, carre-

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gadas com um linho mal asse-dado; outros, as forcas, emque ouvi falar, com justiça-dos ao penduräo. Olhava paraeles e pareciam-me uma grandemaltesia que estacasse naque-la mesma hora a espiar-nos aderrota, a firmar-se em nos-sas pcssoas, como se as:,.he 137trouxas brancas que pareciamlevar à cabeça fossem trouxasroubadas e que nós lhes fôs-semos a tirar. Realmentepassávamos, e eles tinham ojeito também de romper mar-cha, já resolutos, mas len-tos, derreados, naquela birraora de seguir à nossa ilhargaora de trepar os montes.Grande bruxa que era a neve!-- Toque-lhe, Sr. FreiJoaquim! -- fartava-me eu degritar. -- Toque-lhe, quemorremos ensocados na neve, enäo há alma penada que nosacuda.De verdade, serra fora,por aqueles altos carrapitos,näo se ouvia rumor de viven-te, pio sequer de mocho oucoruja, corneteiros de mámorte. Fugira tudo, aves eanimais para abrigos e lapas,gente e rebanhos para povos ecorujeiras. Silêncio e neve!Silêncio e neve, de mäos da-das, a fazer do mundo um mau-.he 137-38soléu -- ouvia rosnar a Fr.Joaquim, e sentença foi que,por muito batida, nunca maisse me apagou da memória.

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Andando, andando, escure-ceu-nos, e já ia alta a Lua,uma Lua que o mais do tempose näo via e, quando se via,lembrava uma candeia de azei-te a alumiar um casaräo de-samparado. Eu ia gelado atéa alma e pegara-me a soneira,como se os espíritos me fos-sem de todo a abandonar.Dormia, sonhava, delirava,sei lá! Consoante os vaga-lhöes da neve, diante de mimumas vezes trancava-se ummuro fosco, formidável, e eume dizia: homem, por aqui näohá passo. Outras:,.he 138vezes, os longes recuavam,recuavam através da poalhabranca, täo bem cirandada aoluar, como se um mar se es-tendesse por ali fora, atécascos de rolha, sem ruga,nem onda. Näo era raro aindaque um penedal de mil cris-tas, de mil ravinas, se le-vantasse repentinamente àbeira do caminho; depois,esse penedal avançava, rolavaao meu encontro e derretia--se. Derretia-se, e logo nabrancura rasa se levantavaoutro, mais deslumbrante emedonho. E, formando-se eabatendo-se por milagre, iazombando dos meus olhos.Chocando assim mil pesade-los, mal me sentindo levado,buzinou-me aos ouvidos um vo-zeiräo terrível como dizemque há-de ser a trombeta doVale de Josafat:

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-- António! António!Diante de mim, atravessa-va-se uma alma penada täobrusca e desconforme que, em-bora resoluto como sou, den-.he 138-39tro das entranhas senti ber-rar: ai Jesus! Mas o queera estava escanchado num ju-mento e o jumento sacudia aneve das orelhas e levantavapara o macho olhos muito pa-cíficos e tristes, modo nosbrutos de trocar cumprimentosou pedir consolaçäo. Depois,uma cara nédia e gordalhudamostrou-se e caí em mim. Re-loucara. Era o frade, o bur-ro, a neve, a serra, esperta-dos do torpor que me pegou...Mas Fr. Joaquim estendia obraço e a sua voz tremia:-- Näo vês, António...?Näo vês?!...:,.he 139Sentado sobre os quadris,à beirinha do caminho, estavaum lobo. Tinha o topete co-berto de neve, neve que aca-mava à maneira de solidéu dumbispo, e era sinal de que as-sentara ali o pouso de caçaou de espreita depois de nosfarejar de longe. Luziam-lheas duas lanternas dos olhos,e, desconfiado eu que o bichonäo trouxesse roga, digo parao frade:-- Berre Vossa Paterni-dade comigo à côa!E ambos a um tempo, elecom a ronca habituada aos la-tins, eu com toda a força dos

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pulmöes, que investiam comuma botelha de meia canada elhe arrancavam as tripas dumsorvo, gritámos:-- À côa!... À côa!...Santa Maria, até se mepuseram os cabelos em pé aosom do nosso berro, ali nomeio do ermo! Mas aquilo foitambém um esticäo que demos àfebra, e continuámos maisanimosos a esporteirar. Omariola do bicho nem sequerse mexeu, mas, näo sei por-quê, o escuro, a toda a roda,.he 139-40mais se chegou para nós e, noanel de claridade que iatransportando-se à medida donosso passo, a neve bailavacomo uma bêbada!-- Toque cá para diante,homem! -- instei com o frade.-- Deu-lhe para rezar aí oBreviário...?!Picou o rucilho e, vai se-näo quando, o lobo levanta,tepe-tepe, mete por diantedas cavalgaduras e, chegadoao oiteirinho, desata a ui-var. Uivou, uivou contra ovento, o focinho muito esgal-gado erguido:,.he 140para o céu, aqueles uivos queparecem vagidos de criançadoentinha a quem estäo a bu-lir no axe. Um uivo que nemuma sovela a furar. Os se-nhores riem-se? Também euagora me rio do meu cagaço.Pois creiam que de travéspara nós, especada nas quatro

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patas, a fera punha respeito.-- Companheiro -- proferiuo frade, puxando das contas-- encomendemo-nos a Deus.-- Deixe o rosário em paz-- respondi -- e, se trazfaca ou outra arma, saquedela, que vem sobre nós umaalcateia que nem os pés nospoupa nos sapatos!-- Será o que Deus qui-ser! Cumpra-se a sua divinavontade!Escurentava agora o luar apontos de a neve parecer aolargo cinza e mais cinza quecaía. Mas, diante dos olhos,os flocos faiscavam e bati-am-nos nas ventas rijos comoareia.O lobo, quando chegámos aocabeço distante uma centenade passos do sítio em queaparecera, calou a serenata.E nós rompemos adiante, como.he 140-41se näo déssemos conta de sen-tinela täo mal-intencionada.Ele mudo e quedo como um pe-nedo.-- Hum -- maluquei com osmeus botöes -- estás à esperados colegas...E, se bem o pensei, melhorassucedeu. Obra de cinco mi-nutos adiante, saem-nos qua-tro lobos pelas costas, masque velhacos! Muito mansar-röes, passo:,.he 141descosido, focinho por terra,como pessoas näo-te-rales queväo ao seu destino. Quatro

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feras de vulto para esposte-jar um vitelo meio touro eficar com fome.-- À côa, Sr. Fr.Joaquim, à côa! -- exclameieu, virando-me para o frade.E com toda a alma berrá-mos:-- À côa!... À côa!...Os birbantes, entäo, esta-caram um momento, menos comar de espavoridos pela nossamanha, que admirados com amalcriadez.-- Novamente, Sr. Fr.Joaquim...-- À côa!... À côa!...Caramba, o grito e atrásdo grito o eco lá iam céufora a esparvar aves e ani-maizinhos monteses, com maisafliçäo que sinos a rebate.E a neve mais se encarniçavacontra nós, fustigada pelovento. Nas suas reviravoltase sarabandas era mais endemo-ninhada que os burburinhosque se levantam, quando malse pensa, de uma eira, e pöempalha, gräo, praganal numapolvorosa.Os lobos formaram com todoo descaro à nossa banda. Nemuma patrulha. O luar eramortiço, mas eu bem lhes via.he 141-42o lombo saraivado e pelo jogodas pernas como se iam man-dando connosco a compasso.Quando anoiteceu de todo,os maganos, sempre leva queleva à nossa mäo, chegaram-separa mais:,

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.he 142perto. Eu quase os podiachuçar com o estribo; mas queganhava? Todo o meu zelo eralevar os olhos neles que jáse me afigurava tolherem-senäo sei por que resto de co-bardia de nos saltar. O fra-de vinha atrás de mim a bateros queixais de medo e, acre-ditem Vossorias se quiserem,täo forte batiam que os enge-nhos que se armam nos milhoscontra os gaios näo fariammaior estreloiçada.-- Passe para a minha ban-da -- disse-lhe eu, que já meparecera ver um dos moinan-tes, o mais alentado, esticaros jarretes, com mentes depular à garupa do burrico.O frade lá se ajeitou àesquerda, täo cosido contramim que cheguei a supor queanimal e frade queriam montarno machito. Ouvi-lhe gemer:-- É hoje o nosso últimodia!-- Vossa Paternidade näotraz nada... navalha, ferro,pau que seja?-- Nada.-- Mas que é isso que háum bocado vinha a tilintarnos alforges?-- É um turíbulo; é o tu-ríbulo da igreja das Arnas,que trago para consertar.-- Dê-mo cá...-- Hem?-- Dê-mo cá... Depressa,homem!O frade passou-me o turí-bulo para as mäos,

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:,.he 143atravessei a faca nos dentes,e aí me pus a tocar ferri-nhos, a bimbalhar, a fazeruma matinada que nem camba-lheiras arrastadas por um ca-valo! E, querem Vossoriassaber, os lobos meteram orabo entre as pernas e desar-voraram. Certo, assim Deusme salve!Ouvimo-los ainda uivar pa-ra a cernelha do morro, masnäo lhes tornámos a pôr avista em cima, nem as bestasderam sinal de que nos fossema acompanhar. O frade erguiagraças a Deus e berrava:-- Milagre! Milagre!Aos parvos aparecem ossantos. Milagre foi, nanjapor o turíbulo ser bento eservir nas cerimónias divi-nas, mas trazê-lo ali o fra-de, visto que os lobos se as-sarapantam facilmente com oruído dos metais e se se pe-.he 143-44tisca fogo. Por desgraça, sóem rapaz fui fumador, e nemsequer trazia lumes comigo.Dizia o frade, depois, queisto de afugentar os loboscom o cigarro aceso era cren-ça sem fundamento; sempre as-sim o ouvi dizer, e ele ateimar e eu a petar, fomosandando caminho.Mas a nevada continuava asubir, já as bestas enterra-vam as pernas até a joga enäo se via palmo diante denós. E íamos alagados por

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dentro, vestidos de alva porfora, e o frade com o capuzerguido, os olhos a luzir, asmäos encabadas nos canhöes dacogula e o rosário ao pendu-räo, até me lembrava um fan-tasma, desses que levantamdas campas e, nas:,.he 144horas em que Deus ou Diabolhes däo corda, vêm vagarpelo mundo.As bestas emperravam, mor-mente o jumentinho, que, so-bre andar mal pensado e esta-fado de jornadear, traziaalém dos alforges, cheios como peditório, o pote de enxún-dias do fradalhäo. E näo sevia para que erguer olhos,menos o luaceiro da neve do-bando sempre, fraldejando suaserguilha ruça, como se nosquisesse falsear o passo da-queles montes.-- António -- disse-me ele-- rezemos a Nossa Senhorapara que nos leve a porto desalvamento.Engrolámos padres-nossos eave-marias uns atrás dos ou-tros, pudera! se queresaprender a orar, entra nomar. Ao cabo, tornou-me ofrade:-- Tu conheces bem o cami-nho?.he 144-45-- Conheço, mas é a mesmacoisa que andar por terrasnunca vistas nem pisadas.Com esta nevasca e este es-curo, como quer Vossa Pa-

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ternidade que eu descubra onorte? Näo se vê nada poronde um desgarrado possa ori-entar-se. Vamos à aventurade Nosso Senhor.-- E näo vamos mal, quenäo há segundo guia para oscegos. Mas queres tu saber:o meu asno conhece estes an-durriais melhor que à manje-doira do convento, onde hádez anos é burro. Se nós odeitássemos adiante?-- Toque lá Vossa Pater-nidade.:,.he 145-- Sim, mas tu bem sabesque, só de me sentir sobre oespinhaço, há-de lhe faltar aliberdade de meter por ondelhe pede a cachimónia. Ésendeiro e basta.-- Entäo?-- Olha, além de se sentirdirigido e se näo dirigir,vai estafadinho como vês.Leva-me a mim que pcso seisarrobas, afora os pecados, ecarrega com os alforges ondeas boas almas meteram com queentreter a debilidade de meusirmäos em S. Domingos, ba-tatas, cebolinhas, alhos, umpouco de carne e näo seiquantos salpicöes de lombo.Ora tu precisas do meu burroque te guie nas duas escuri-döes que säo a neve e a noi-te. Queres tu pagar-lhe oserviço que poderá prestar--nos?-- Quer Vossa Paterni-dade que leve o burro ao

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colo?-- Homem, näo.-- Que lhe compre uma vés-tia...?.he 145-46-- Véstias tem para ele epara ti...-- Que lhe mande uma car-rada de feno?-- Näo seria mau, mas tam-bém näo é isso. Ouve: o teumachinho é forte, é pimpäo, evai sem carga. Aceitas le-var-me na garupa, e tocamos osendeiro para a frente, queele guia-nos?...Dito e feito. O frade es-carranchou-se na albardaatrás de mim e rompemos comofoi combinado.:,.he 146O burro lá ia na dianteiratrupe, trupe, de tempos atempos avisado pela ponta daminha arreata que a sua obri-gaçäo era seguir lesto e rotacerta.Foi entäo, investindo con-tra a neve, cada vez mais la-droa, que o frade, amigo defalar e contar anedotas, mepregou um sermäo que nuncamais esqueci.-- Acredita -- dizia ele-- quando fores velho e que osnetos te engatinhem pelaspernas, hás-de ter saudadesdestes tempos, com invernosque arrastam as pontes, nevesque cegam a gente, fome,sede, sono, pelos caminhoscompridos dos viandantes.Oh, se hás-de ter! E se pu-

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desses voltar atrás näo esco-lherias outra vida, que ládiz o provérbio: arrieiro notarde chora por arrieiro,nanja por cavaleiro.E tinha razäo o raio dofrade.Mas, como lhes ia contan-do, deitámos o burro a batercaminho e o finório do animallá acabou por acertar. Che-gámos ao convento mais mortosque vivos, gelados até a almaà força de andar léguas e lé-.he 146-47guas perdidos na neve.Os frades aboletaram-me noconvento e deram-me uma tige-la de mel e leite que me pôsfino para a jornada. Mas sóconsentiram que abalasse aooutro dia quando o sol come-çava a fundir o grande neväo,que tinha derrotado as matase apagado caminhos e atalhosem logradoiros e ermos.Fr. Joaquim das SeteDores veio ter comigo:,.he 147no instante em que estava depé no estribo para desandar edisse-me:-- Pega: isto é um ossinhodo braço de S. Joäo deDeus, que foi o anjo da pa-ciência; este cabelo, um pe-linho da barba de S. Teo-tónio, de muito préstimo nasdores repentinas. Trá-los aopescoço e verás que nuncamais entra contigo o Porco--Sujo, nem nas jornadas tensmaus encontros.

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Pedi-lhe a bênçäo e lar-guei.O monte lembrava um lençolesburacado. Se a neve derre-tera aqui, conservava-se ema-çarocada além, à volta desargaços e tojeiras e ondequer que houvesse farfalha.O sol, às vezes, vinha umanuvem e cobria-se. Mas elevoltava a correr alegre eruivo pelo mundo, mais bonitoque o novilho duma vaca rati-nha, ainda mamäo, a pincharno prado. As águas desciamdos altos tagarelas como nun-ca, e pelas eiras os passari-nhos debicavam, muito gru-lhas, as espigas esbanjadaspelos palheireiros. Havianuvens e mais nuvens no céu,brancas, rebolonas, em ban-dos. Tocava-as um ventinhorepontäo, e davam ideia de.he 147-48belros de ovelha carmeados,antes de enfardar. O mundoera como Lázaro ao atirarcom a mortalha aos quintos.Por toda a parte, caminhos,matos e árvores, a neve der-retia. Pinheiros e carvalhosse do lado do poente continu-avam cabisbaixos e oprimidospelo:,.he 148seu peso, à outra banda er-guiam já ramos desembaraça-dos. A morte branca rodarapor esta vez.Acertando o rumo pelos ca-beços, que viravam ao esca-veirado natural, e pelo can-

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tar dos galos nos poviléus,lá consegui endireitar para aminha terra.As nóminas pô-las Brízidaao peito, presas por um nega-lho, e verdade seja que, senunca tivera ruins partos,täo-pouco os teve a partirdessa data, nem lhe faltouleite para os meninos. Masde tudo, o que me näo esque-ceu foi aquela do *arrieirono tarde chora por arrieiro,nanja por cavaleiro*.Sim, senhores, o frade me-tia num chinelo ao mais es-pertalhäo dos doutores, quede abades näo se fala.

.he 149XAgora, m'amigos, estou ca-duco, nem para calço de pane-la tenho préstimo. À esperaque me atem os pés, vou tra-tando do bem-d'alma, poiscoisa täo melindrosa como é a

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vida eterna vale mais cui-dá-la por nossas mäos queconfiá-la a testamenteiros.Pena é ter eu um rebanho defilhos que me vedem de dis-tribuir por pobres e vagabun-dos os bens granjeados com ohonrado suor do meu rosto;pena é, mas näo é lá em casaque se nega esmola para asfestas e promessas aos san-tos. Metade vai-se no papodos pardalöes, quando näo étodo... Mas quem pede preci-sa, e a fé é que nos salva.Arde uma fornada de päo!Acabou-se, é sabido mordomos.he 149-50e penitentes na quadra dasarcas cheias serem täo bastospelas portas como as moscasna tenda ali do Penetra.Pois ando compondo o bem--d'alma e quem me queira en-contrar vá à igreja, suba atéo altar-mor, e onde vir umhomem dobrado dois degrausabaixo do oficiante a baterno peito e a chorar os seuspecados e os do mundo, soueu. Lá sou certo em ofíciose novenas e, à santa missa sefalho, é quando o sino que:,.he 150está rachado se näo faz ouvirdas minhas orelhas que andamsurdas. Assim conto alcançaro céu, ajudado da graça e coma intercessäo do mártir S.Sebastiäo, nosso bento pa-droeiro, a quem fiz há quatroanos, quando servi de mordo-mo, a festa de arromba que

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Vossorias sabem. Cäes deNisa, vieram duas músicas,dois fogueteiros, e com afartura das comezainas estoi-rou, por mais que me digam, opai Henriques de indigestäo.Também me entrou na algibei-ra, mas embora, morra um ho-mem e fique fama! E fama fi-cou, que nas funçöes que temhavido näo é uma só boca nemduas a dizer:-- Mordomo como o tioMalhadinhas, nem pintado!Pôs o ramo para nunca mais!Bem haja o povo, que é bemlembrado e guarda fidelidadeà velha Barrelas que, porvoz pouco delicada -- aindaque exprima asseio, em nadamalcheirosa como Porcalhotae Lava-Rabos -- crismaramneste frescal e ajudengadonome de Vila Nova do Pai-va. Mas com o nome de Bar-relas nasceu, com o nome deBarrelas há-de morrer, se é.he 150-51certo que as vilas têm depassar, como rezam os livrosdas Babilónias afamadas.Ora em preparar o meu des-canso eterno vou consumindo aúltima cera do pavio. Quearmei em beato? Näo, senho-res, sou cristäo e já vejo asombra negra que a minha covaestá fazendo, de goela aber-ta,:,.he 151ao lume da terra fria. OBisagra, cabeça de palitei-ro, é que näo pode compreen-

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der esta arrumaçäo de casa emvésperas de largar. Uma vez,na venda do Zé Pinto, ouvi--lhe por detrás do taipal di-zer de mim para o Cabeçasdos Alhais:-- O ladräo anda a ver seengana Cristo com as peni-tências cá da terra para láem riba lhe perdoarem as mor-tes que tem às costas. Esteé dos tais que foram para sebenzer e quebraram os olhos.Capaz de embarrilar Cristoé ele, o Diabo näo sei.Vejam o desbocado! E näohá grandes dias, saiu-se-mecom esta:-- Queres saber, ó Antó-nio, o que tu havias de fazerpara entrar direitinho noReino dos Céus? Era ires aSantiago de Compostela depenitente, pés descalços, apäo e água, e com uma pedraàs costas que pesasse umasduas a três arrobas. Dizemque quem lá näo vai em vida,vai lá em morte. Aquilo échegar e fica o pecador com aalma mais branca que uma pom-ba de leque...-- Dos meus pecados näotenho medo de dar contas aDeus -- redargui -- näo tro-que ele lá nos registos o meunome pelo teu. Se trocasse.he 151-52estava mal, lá isso estava.Já ouvi dizer que é mais fá-cil passar um camelo pelo bu-raco duma agulha que entrarde cornos no Paraíso.Safado, que lhe importava

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a minha vida! Eu cá,:,.he 152digo-o alto e em bom som, näose passa mês que me näo con-fesse e näo receba o sagradocorpo de Nosso Senhor täoreal e perfeitamente como es-tá nos céus. À boca da noitenäo me procurem nas vendasnem no forno; procurem-me nopoial de pedra da minha por-ta, onde estou sentado a re-zar o terço.-- Porque reza tanto, tioMalhadas? -- perguntou-me umdia destes, ao sair de casa,o Albino alfaiate, que é vi-zinho. -- Dá com o juízo emdroga...E para judeu... -- Vosso-rias conhecem-lhe o códigocivil? Artigo primeiro: Al-bino, trata de ti; artigo se-gundo: trata de ti, Albino;artigo terceiro: está revoga-da a legislaçäo em contrário.-- Pois para judeu, respostade judeu:-- Rezo pelos teus peca-dos, pelos do próximo...Carrasco, trazes aí tantomenino sem pai!...-- Aí vem o tio Malhadi-nhas! E pelos seus pecadosnäo reza? Dizem que você näofoi boa bisca...-- Os meus de täo poucamonta eles säo que já passa-ram ao rol do esquecimento.Que fiz eu, Albino?Arranhaduras. Mais fez S.Pedro, que cortou a orelhaao capitäo, e é um dos pila-

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res da Igreja e chaveiro docéu.Pois pode-se lá ser herege.he 152-53ou beato falso quando se con-sidera a sagrada paixäo emorte de N. S. JesusCristo, redentor dos homens,e a de tantos santinhos quederramaram o sangue vela luzda verdade?:,.he 153Näo pode. O Zé Balatrocopöe-se às vezes no seräo aler o *Flos Sanctorum* ou o*Mestre da Vida* e as baga-das caem destes olhos quemirraram com o sol, o vento ea poeira dos caminhos. Ah!havia de eu lá estar! Haviade eu lá estar quando os im-peradores -- o nome deles dêcaganeira a quem o proferir-- martirizavam os bons cris-täozinhos teimosos ou as vir-gens que, caramba, parece ti-nham alma de aço! Ah! Cris-tina, havia de eu lá estarcom o meu cuchilo!Choram os padres que a re-ligiäo leva más andanças e euo creio. Os templos por essemundo estäo às moscas. Etambém vos digo, baixinho queninguém nos ouça, eu sou oúltimo cá na terra a ter medodo inferno. Sabem os meusfidalgos, eu só queria um diaser rei. Um dia näo era ca-bonde; mas uma semana. Sefosse rei uma semana, afian-ço-lhes que mondava Portu-gal. Uma fogueira em cada

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oiteiro para os ministros, osjuízes, os escriväes e osdoutores de má morte. Paraestes decretava ainda covabem funda, com obrigaçäo decada homem honrado lhes pôrum matacäo em cima. Umacholdra de ladröes! ImaginemVossorias que um pobre jánem uma bestinha pode ter!Muito tempo conservei aquelecavalito fouveiro -- lembram--se? -- para me ajudar a es-.he 153-54pairecer saudades dos temposem que corria de almocreveCeca e Meca e olivais deSantarém. Vai senäo quando,António Malhadas, salta delá com nove:,.he 154tostöes de sumptuária. Irra,novecentos réis por um ca-valicoque, um chincaravelhoque näo valia, a bem dizer,os guizos dum gato! Raiospartam o Governo mailos go-vernados, raios partam tantotributo com que a gente debem tem de ustir para andaraí meia dúzia de figuröes, decosta direita, mais farófiasque pitos calçudos! Raiospartam! O governo é um corpoda guarda que nos defende oué a quadrilha do olho vivoque näo faz senäo roubar?Quem lhe encomenda o ser-mäo?!Näo foi com o meu rico di-nheirinho que eles engordaramdaquela feita, näo foi! Puso cavalo em praça na feira

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dos quinze e, louvores aoSenhor que tudo manda, oscompradores näo faltaram. Omais chegadiço era o Rama-lhoto de Peva, que é novatoem troquilhas, e eu na minhaboa sinceridade fui-lhe di-zendo:-- Joaquim, isto é bichode cara direita... o que sechama cavalo que escapou àremonta por eu jurar e treju-rar que era o meu ganha-päo.Cem cäes me mordam se deViseu para riba pisam quatroestacas como ele. Tanto valepara cilha, como para tiran-tes, como para botar com umhomem a cascos de rolha.Leva-o que näo vais engana-do...Lá levou o chincaravelho ecom isso quebrou duma vez.he 154-55para sempre a minha lida dealmocreve. Mas tenho sauda-des, tantas, que às vezes pa-rece mexer-me:,.he 155no peito um ninho de lacraus.Quando por aqui me vêemabordoado a este pauzinho demarmeleiro -- já tem um bompar de anos... a certidäo deidade trá-la na cor, estabela cor do vinho palhete queeu tanto apreciava -- quandopor aqui me vêem de tavernaem taverna a matar o bicho oucom ares de andar à sirga, éa safar-me do vespeiro dassaudades, muito mais se meponho a contar o que eram os

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tempos do meu tempo.E a vida lá vai... ligeiracomo uma galga doida, espar-vada. Já noutro diaço jul-guei que era chegada a minhahora. Uma febre que abrasa-va, o fôlego difícil, muitasdores pelos lombos como se oslódäos que defrontei em trin-ta anos de almocreve me caís-sem a uma voz sobre o corpotodo -- meti-me na cama.Mandei chamar o padre, queme ouviu de confissäo e metrouxe o Viático a casa, comtoda a pompa, honra lhe seja.Depois a Brízida enviou umpróprio ao barbeiro do Tou-ro, o Afonso Lajas, queapareceu sem tardança e àvista do meu nariz torceu odele. Em voz muito presa,täo presa que até a mim se meafigurou de moribundo, pedique me desenganasse do meuestado... näo tivesse medo dedizer a verdade, pois queriaajustar de vez todas as con-tas com o mundo.Aquilo, lá que se afoitas-se com o silêncio dos meusherdeiros, que näo podia dei-xar de ser consentidor, :,.he 156rendido também ao entono daminha voz proferida no traçoda vida para a morte, o bar-beiro declarou que eu deviaestar por horas, visto ter jáno peito o roncadoiro da ago-nia.-- Bem haja o amigo Lajas-- disse-lhe eu. -- Bem ha-ja... e Deus lhe pague o bem

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que me fez... descobrindo-mea verdade!Despedi-me duns e doutrose roguei que me deixassem asós com Brízida. Depois demuito lhe apertar as mäos e aconsiderar, reloucado detodo, falei-lhe assim, pormodos, na minha maluqueira:-- Mulher da minha alma,deixa-me ver a espingarda,aquela leal companheira, quetambém lhe quero dizer adeus.Deixa-ma cá ver...A escopeta, lazarina dedois canos, estava a ouvir-.he 156-57-nos pendurada do frontalpela bandoleira, junto à bol-sa do chumbo e o polvorinho.Só faltava o podengo. Sem-pre ali a tive carregada,pronta ao que desse e viesse,um tiro às perdizes ou nummariola. Mas näo me esque-cia, um sarrafo de papel en-tre o cäo e o fulminanteaçaimava-a contra jeito de-sastrado ou hora do Porco--Sujo.Brízida ainda alçou o bra-ço para ma dar, mas ou porquelhe acudisse ao pensamentoque tresloucado como estavaera por lá capaz de atentar,antes da hora cheia, contra aalminha que Deus me deu, ounäo sei porquê disse-me::,.he 157-- Olha que coisas! Vaisà caça? Deixa a arma... En-comenda-te mas é à VirgemSantíssima que te receba em

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seus braços.Bem me carpi, pelo que eladepois me contou:-- Diabos te levem mais aoamor que me tens. Nem da es-pingardinha me deixas despe-dir. Olha que a näo levo pa-ra a tumba, alma de Barbazu!Cá te fica! Podes fazer docano uma roca.Estive dois dias a água docântaro cozido em febre, umacantilena zaranza nos lábios,nos ouvidos os zunzuns dascomadres que se punham decara encapuchada à volta dacama, às vezes tantas que nemgralhas num vidoeiro: *está apassar! está a passar!* Qualo quê, na manhä do terceirodia, quando já ninguém mejulgava, dou um pulo da cama.Ao contrário dos prognósti-cos do barbeiro, preguei umsenhor pontapé na Morte.M'amigos, vi-me entre as.he 157-58quatro tábuas! É verdade!Näo dei fé do Diabo, mas,isso vos juro eu, cheguei aavistar o outro mundo eNosso Senhor, sentado numacadeira de oiro maciço, aacenar-me com a mäo: --Chega-te cá, Malhadinhas,chega-te cá, näo tenhas medo.Olha que tenho cá dentroovelhas mais tinhosas do quetu!Deitei os olhos à roda enäo avistei ninguém de Bar-relas. Mau negócio. Sim,senhores, e näo se admirem.A Ana Malaia, que morreu

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santa como:,.he 158Vossorias sabem, tanto assimque o seu corpo está inteiri-nho na sepultura, teve um diauma visäo. S. Ludovico, osantinho de quem era devota eque desceu ao inferno enquan-to vivo, alcançou-lhe licençado Senhor para ver os trêsreinos do outro mundo. Co-meçou pelo céu. Que beleza!Eram tudo músicas e cânti-cos, pivetes, manjares dofino, passeatas. Nada defome, de frio, de ralhos emaus tratos, e muito menos depontapés na bunda de ricos etiranos. Quem a dera lá!-- E os da minha terra?O santo apontou a criança-da, mais basta que as areiasdo mar, que ocupava uma gran-de parte do reino da glória.-- A gente grada?-- Näo sei. Estaräo porlá no purgatório...-- Coitados, se estäo nopurgatório desde que Barre-las é Barrelas, é uma talchusma de gente! A estas ho-ras häo-de custar a reconhe-cer, estorricadinhos que nemtorresmos!-- A ver vamos, como dizia.he 158-59o cego de Nacomba.Levantaram-se umas telhasda segunda mansäo: o purgató-rio, para a Ana Malaia es-grelhar. Os caldeiröes comas almas a nadar no pez eazeite a ferver e as foguei-

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ras em que eram assados, gre-lhados, fritos, de escabeche,só à vista. Nem as cozinhasde todos os regimentos, detodos os colégios, de todos:,.he 159os asilos, de todas as malte-sias, e todo o farrobodó dasfábricas e forjas de Alema-nha davam ideia do que aquiloera. Ainda lá näo tinha che-gado o carväo nem a electri-cidade, de modo que todo oaquecimento era a lenha e de-mandava muito braço. A AnaMalaia de princípio toda seconfrangeu, mas à vista dasalmas, todas de mäos postas adar graças ao Altíssimo eumas com um olho a rir, outroa chorar, conformou-se com adureza daquela purificaçäonecessária à glória de Deus.-- Estes estäo próximos ater alta! -- segredou-lhe S.Ludovico ante os tais dedois rostos.-- E os da minha terra?-- Apresentem-se as almasde Barrelas! -- bradou oforneiro-mor.Saíram entäo dos caldei-röes e fornalhas uma meia dú-zia de almas macarenas, muitorotinhas, muito acanaveadas,umas tristes da maleita.Quem elas eram? Uma era opai da Ana Malaia, um bom--serás, cosedor de panelas,que levava a sua menina àscostas de terra em terra comos utensílios do ofício. Ou-tra -- ela assim mo jurou --

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era a minha santa mäe. Po-brezinha, fartou-se de carre-.he 159-60tar molhos da lenha, de dar odia, para eu näo ter fome,que meu pai, o malvado, näoquis saber de mim. Outra eraum pobre cego que cantava pe-las portas, de quem os rapa-zes faziam gato-sapato.:,.he 160-- Só estas? -- atalhou aAna Malaia.-- E viva o velho! -- res-pondeu S. Ludovico. -- Va-mos adiante...A Ana Malaia näo quis irmais longe com medo de quelhe caísse a alma aos pés.Mas, como eu ia dizendo,näo me cheguei para junto deDeus daquela vez, e cá andocom a cruz às costas atéquando os seus altos desíg-nios hajam decretado. Mascampa quebrada nunca sara.Estou no fim dos dias.Pouco faltou para dar o tom-bo. Escapei por um cabelo.A que pontos a minha imagi-naçäo andava desgovernada, eulhes conto: Quando pedi alazarina à Brízida, sabemVossorias para que era?Para lhe malhar um tiro eela ir dormir comigo na mesmacova. Tinha o Demónio achocalhar-me nos miolos, maisquentes que as papas quandofervem na caçoila, esta deela quedar para aí toda lépi-da, ainda frescalhota, a go-zar-se com outro do que levei

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a amanhar com tanto trabalhi-nho. A viúva rica com umolho chora, com o outro repi-ca. E sendo certo que à mi-nha Brízida para rica fal-ta-lhe muito, mas também näoprecisa de andar às côdeas,ninguém me garantia que acoisa näo levasse as mesmasvoltas. Mas a criatura ládesconfiou e bem haja ela.Se me passa a canifrecha.he 160-61para as unhas, com o delírioque me tomara e o Diabo àtravesseira, era milagre senäo estivesse hoje viúvo.Seja pelos tormentos queNosso Senhor:,.he 161padeceu! Mas aquele Afonsodo Touro precisava a bochadaarrancada pelas costas e dei-tada aos cäes. Um salafrárioque me dá por morto e eu ain-da para lavar e durar!*Provecto dos anos, umatarde, ergueu-se do borralhoe saiu a porta para fora, am-parado ao porretinho de mar-meleiro. Andava há dias achocar a morte e deixaram-noir, que era relapso a preven-çöes e cuidados. Sentou-seno poial de pedra, que serviade amassadoiro do linho. Commäo incerta aconchegou asabas da capucha contra os jo-elhos regélidos. Nevara, co-dejara, e as árvores, com osincelo, estalavam ao pesodas candeias. António Ma-

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lhadinhas fechou os olhos àsemelhança do romeiro quetorna de Santiago, farto decorrer léguas, ver terras,passar pontes e vaus, enxotarcäes que arremetem ameaçado-res de currais e quintäs, eadormece a sonhar com o céunum recosto do caminho. Ver-gou brandamente a cabeça parao peito, ao tempo que os de-dos lhe pendiam para o chäocomo vagens maduras. E -- oJusto Juiz lhe perdoe asfacadas que as näo deu em ne-nhum santo -- nem se sentiu aatravessar as alpoldras dumamargem para a outra do negrorio.*Lisboa, 1922::::::::::::::::::::::::::::::.. folha braille 272