Araldi, Claudemir_“Das Três Transmutações”- Indicações Para Uma Nova Arte de Viver

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DAS TRÊS TRANSMUTAÇÕES”: INDICAÇÕES PARA UMA NOVA ARTE DE VIVER 1 Clademir Araldi 2 Resumo: A partir da apresentação e da interpretação da seção “Das três transmutações”, proposta por K. Löwith, procuramos mostrar a importância das imagens, símbolos e pensamentos do primeiro discurso, da primeira parte de Assim falou Zaratustra para a obra mais afirmativa de Nietzsche. Tendo como fio condutor esse discurso, pretendemos analisar as tensões na tarefa do filósofo solitário, a saber, de construir uma nova ‘arte de viver’. Palavras-chave: Transmutações; Arte; Camelo; Leão; Criança; Ascetismo. Abstract: This study provides a discussion about the importance of images, symbols, and thoughts of the first discourse in the first part of Thus Spoke Zarathustra for Nietzsche’s most affirmative work, taking the presentation and interpretation of the section “The Three Metamorphoses” proposed by K. Löwith as a starting point. With this discourse as a guideline, the tensions in the task of the lonely philosopher, namely that of building a new ‘art of living', are analyzed. Keywords: Metamorphoses; Art; Camel; Lion; Child; Asceticism. O discurso “Das três transmutações” (Von den drei Verwandlungen) é, sem dúvida, um dos escritos mais instigantes e profundos em significação da obra Assim falou Zaratustra e de todo o pensamento nietzschiano. Sua importância transparece no próprio lugar que ocupa no Zaratustra (ZA) 3 : é o primeiro discurso da primeira parte, em que predomina o teor ‘analítico’, sucedendo o prólogo, no qual o acento dramático é predominante 4 . 1 O presente artigo é uma versão modificada do texto apresentado para a disciplina: “Ni etzsche, uma leitura crítica de Assim falava Zaratustra”, ministrada pela profa. Dra. Scarlett Marton, em 1999, na USP. Sou grato pelas sugestões, comentários e críticas de Scarlett, assim como pelas considerações dos colegas nos seminários e nas discussões desse curso tão valioso. 2 Professor associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas. 3 Utilizaremos as seguintes abreviaturas para as obras de Nietzsche: NT para O nascimennto da tragédia; FT para A filosofia na época trágica dos gregos; OS para O andarilho e sua sombra (HH II); A para Aurora; ZA para Assim falou Zaratustra e GM para Genealogia da moral. Os Fragmentos Póstumos (FP) serão citados conforme a convenção proposta pela edição crítica G. Colli e M. Montinari: NIETZSCHE, F. W. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe. Berlim: de Gruyter, 1988, 15 volumes. 4 Acerca da estrutura e composição do Zaratustra, confira MARTON, “A obra feita e a obra por fazer”, pp. 115-129.

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Transcript of Araldi, Claudemir_“Das Três Transmutações”- Indicações Para Uma Nova Arte de Viver

  • DAS TRS TRANSMUTAES: INDICAES PARA UMA NOVA ARTE DE VIVER1

    Clademir Araldi2

    Resumo: A partir da apresentao e da interpretao da seo Das trs transmutaes, proposta por K. Lwith, procuramos mostrar a importncia das imagens, smbolos e pensamentos do primeiro discurso, da primeira parte de Assim falou Zaratustra para a obra mais afirmativa de Nietzsche. Tendo como fio condutor esse discurso, pretendemos analisar as tenses na tarefa do filsofo solitrio, a saber, de construir uma nova arte de viver.

    Palavras-chave: Transmutaes; Arte; Camelo; Leo; Criana; Ascetismo.

    Abstract: This study provides a discussion about the importance of images, symbols, and thoughts of the first discourse in the first part of Thus Spoke Zarathustra for Nietzsches most affirmative work, taking the presentation and interpretation of the section The Three Metamorphoses proposed by K. Lwith as a starting point. With this discourse as a guideline, the tensions in the task of the lonely philosopher, namely that of building a new art of living', are analyzed.

    Keywords: Metamorphoses; Art; Camel; Lion; Child; Asceticism.

    O discurso Das trs transmutaes (Von den drei Verwandlungen) , sem

    dvida, um dos escritos mais instigantes e profundos em significao da obra

    Assim falou Zaratustra e de todo o pensamento nietzschiano. Sua importncia

    transparece no prprio lugar que ocupa no Zaratustra (ZA)3: o primeiro discurso

    da primeira parte, em que predomina o teor analtico, sucedendo o prlogo, no

    qual o acento dramtico predominante4.

    1 O presente artigo uma verso modificada do texto apresentado para a disciplina: Nietzsche, uma leitura crtica de Assim falava Zaratustra, ministrada pela profa. Dra. Scarlett Marton, em 1999, na USP. Sou grato pelas sugestes, comentrios e crticas de Scarlett, assim como pelas

    consideraes dos colegas nos seminrios e nas discusses desse curso to valioso. 2 Professor associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas. 3 Utilizaremos as seguintes abreviaturas para as obras de Nietzsche: NT para O nascimennto da

    tragdia; FT para A filosofia na poca trgica dos gregos; OS para O andarilho e sua sombra

    (HH II); A para Aurora; ZA para Assim falou Zaratustra e GM para Genealogia da moral. Os

    Fragmentos Pstumos (FP) sero citados conforme a conveno proposta pela edio crtica G.

    Colli e M. Montinari: NIETZSCHE, F. W. Smtliche Werke. Kritische Studienausgabe. Berlim: de

    Gruyter, 1988, 15 volumes. 4 Acerca da estrutura e composio do Zaratustra, confira MARTON, A obra feita e a obra por fazer, pp. 115-129.

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    No primeiro discurso de Zaratustra, de apenas 27 breves pargrafos, h uma

    pretenso grandiosa de abarcar o movimento do esprito (Geist), como j

    transparece no primeiro pargrafo: Trs transmutaes vos nomeio do esprito:

    como o esprito se torna em camelo, o camelo em leo, e o leo, por fim, em

    criana (ZA I, Das trs transmutaes). Atravs do mtodo estrutural,

    apresentamos5 seis momentos lgicos desse discurso:

    1) A nomeao, por parte de Zaratustra, das trs transmutaes do esprito

    ( 1)

    2) A primeira transmutao do esprito ( 2 11)

    3) A segunda transmutao do esprito ( 12 22)

    4) A terceira transmutao do esprito ( 23 25)

    5) Rememorao ( 26)

    6) Momento narrativo (27). Na poca do anncio das Trs Transmutaes

    Zaratustra encontrava-se na cidade A Vaca Pintalgada, que no a mesma

    cidade, do Prlogo.

    Interessa-me investigar a pretenso filosfica desse discurso metafrico, com

    o questionamento: em que medida ele aponta para uma nova arte de viver?

    Podemos perceber a intensidade do pathos aniquilador e afirmativo de Nietzsche

    no seu esforo de compreender a histria da humanidade, a histria da filosofia e

    sua vida em relao intrnseca com sua obra a partir de trs figuras: o camelo, o

    leo e a criana, que configuram, respectivamente, trs momentos: a obedincia, a

    libertao e a inocncia. o mesmo esprito que, ao passar por trs transmutaes,

    atinge a inocncia, o sagrado dizer-sim ao mundo, ao sofrimento, vida. Como o

    filsofo do devi e da multiplicidade compreende o esprito, visto tratar-se de

    transmutaes do mesmo esprito?

    Com esse esprito, passamos discusso com os comentadores. Esse

    discurso recebeu ateno especial de importantes comentadores, como E. Fink, R.

    Hollinrake e K. Lwith. Eugen Fink enfatizou que esse discurso expressa as

    5 Emprego a primeira pessoa do plural para indicar posies comuns entre o autor do texto de

    1998 e o autor que o repensa em julho de 2014. Quando escrevo em primeira pessoa do singular, assumo minhas posies atuais.

  • SEARA FILOSFICA, N. 9, VERO, 2014, P. 7-26. ISSN 2177-8698

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    mudanas no homem ocasionadas pela morte de Deus. Libertando-se do peso dos

    valores transcendentes, o homem busca ultrapassar a si mesmo, para afirmar o

    mundo e criar novos valores. Essa transformao radical por que passa o homem

    estaria na base de todos os outros discursos, e tambm corresponderia

    compreenso que o filsofo tinha de si mesmo, de modo que o gnio corresponde

    ao camelo; o esprito livre ao leo e Zaratustra criana. Entretanto, segundo Fink,

    na imagem da criana o jogo no teria ainda a plenitude dionisaca, mas estaria

    restrito criao ldica de novos mundos de valores6.

    R. Hollinrake preocupou-se em provar que h em Nietzsche a busca por um

    ser (o alm-do-homem) dotado de liberdade criativa, o qual transcende a

    humanidade e, por sua prpria fora, atinge a afirmao incondicional e mxima

    da vida. Para corroborar sua tese, ele compreende o discurso Das trs

    transmutaes como sendo equivalente proposta de Lessing de uma educao

    progressiva da humanidade, no sentido da transcendncia, atravs de trs fases: o

    obedecer, o querer e o ser, as quais seriam ilustradas por imagens sugestivas

    (camelo, leo e criana). A parbola, entretanto, seria uma adaptao da Novelle de

    Goethe7.

    H, sem dvida, em Fink e em Hollinrake consideraes relevantes sobre a

    importncia desse discurso do Zaratustra. Entretanto, Karl Lwith, a nosso ver,

    que constri uma anlise mais aprofundada e abrangente dele.

    Transcendendo a preocupao de dar conta de problemas pontuais e

    especficos, Lwith insere a sua interpretao do primeiro discurso do Zaratustra

    no esforo de fornecer uma compreenso abarcadora da obra nietzschiana. Para

    tanto, esse comentador perseguir a questo fundamental do filsofo alemo que,

    segundo ele, teria nascido j na juventude, permeando todos os seus escritos

    posteriores. Eis a questo: Qual o sentido da existncia humana no todo do

    mundo?8

    6 Cf. FINK, 1988, p. 75-78. 7 Cf. HOLLINRAKE, 1986, p. 24. 8 LWITH, 1991, p. 10.

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    aos 19 anos, no esboo autobiogrfico Minha vida (de setembro de

    1863) que o jovem filsofo coloca a si mesmo essa questo. Aps ressaltar sua dupla

    ascendncia como planta, nasceu prximo do cemitrio; como homem, vive num

    presbitrio ele se pergunta:

    E assim o homem se desprende de tudo o que outrora o enlaava: ele no tem necessidade de romper os elos: mas, insensivelmente, sob a ordem de um deus, esses elos se desfazem. E ento, qual o anel que ainda o engloba? o mundo? Deus?9

    O jovem estudante de filologia faz a opo pelo mundo: seus escritos, suas

    experimentaes e toda a sua vida posterior so tentativas de concluir uma nova

    aliana com o mundo, desde a qual a existncia humana encontraria um sentido.

    Mesmo verificando que na situao atual10 da Nietzsche-Forschung dada

    pouca ateno a compreenses globalizantes, julgamos que as anlises de Lwith,

    desenvolvidas principalmente na obra Nietzsche. Filosofia do eterno retorno do

    mesmo (Nietzsches Philosophie der ewigen Wiederkehr des Gleichen, 1934), no

    so interpretaes datadas ou ultrapassadas. Ao investigar como a questo

    fundamental nasce e como se desdobra na filosofia nietzschiana, Lwith no

    negligencia, a nosso ver, a mudana de perspectivas e a insero de novos

    experimentos: atravs das mltiplas perspectivas e experimentos, o filsofo tenta

    dar conta de um s problema. Nesse sentido, Das trs transmutaes forneceria o

    fio condutor para compreender o movimento do pensamento nietzschiano e o

    desenlace da questo fundamental.

    Retornemos questo: como Nietzsche compreende o esprito, em suas

    trs transmutaes? Lwith defende que se trata, no fundo, de duas transmutaes,

    pois a primeira: Como o esprito se torna em camelo seria o ponto de partida. O

    homem s se torna esprito ao carregar (como o camelo) um peso muito pesado,

    venerando o que lhe estranho11. Lembremos que na alquimia, transmutao

    (Verwandlung) a transformao do metal em ouro. O segredo da transmutao

    9 NIETZSCHE, F. W. Frhe Schriften 1854-1869 (FS). 5 vols. Organizada por Hans Joachim

    Mette, Carl Koch e Karl Schlechta, segundo a edio Historisch-kritische Gesamtausgabe (BAW).

    C. H. Becksche Verlagsbuchhandlung. Mnchen, 1933-1940. Munique: DTV, 1994. 10 Hoje (15 anos depois) diria: dada menos ateno ainda!. 11 Cf. LWITH, 1991, p. 35.

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    em Nietzsche est inscrustado no Esprito. Ouso a seguinte interpretao:

    Semelhante ao Ovo Filosfico da alquimia, o Esprito no Zaratustra a

    matriz, a matria fundamental do homem, que contm, em estado catico, as

    potencialidades de suas transmutaes. O Ovo Filosfico da alquimia torna-se

    Pedra da Sabedoria (o prprio Zaratustra denominado pedra de sabedoria); o

    Esprito do Camelo transmuta-se em Esprito do Leo.

    O esprito do camelo, nessa perspectiva12, no s o ponto de partida, mas

    tambm o que constitui mais remotamente o homem; , alm disso, condio para

    suas transmutaes. Ou seja, o homem s surge e se constitui ao carregar o fardo da

    obedincia, dos valores estranhos. Assim Nietzsche define o esprito de

    suportao:

    Muitos fardos pesados h para o esprito, o esprito forte, o esprito de suportao, ao qual inere o respeito; cargas pesadas, as mais pesadas, pede a sua fora.

    O que h de pesado?, pergunta o esprito de suportao; e ajoelha-se como um camelo e quer ficar bem carregado. [...]

    Todos esses pesadssimos fardos toma sobre si o esprito de suportao; e, tal como o camelo, que marcha carregado para o deserto, marcha ele para o seu prprio deserto (ZA I, 1).

    Num fragmento pstumo de 1883, Nietzsche refere-se a si mesmo, ao tratar

    de carregar pesos: Sim, carregando o que h de mais pesado, corri para meu

    deserto: l encontrei o mais pesado de todos os pesos. [...] Quando era jovem,

    procurei o que h de mais pesado (FP 4[237] inverno de 188313. As vrias

    admoestaes de Zaratustra acerca do que mais pesado: curvar-se, padecer fome da

    alma, amar os que nos desprezam so exerccios ascticos para a Primeira Grande

    Transmutao do Esprito. Em sua primeira forma, o esprito ruma, carregado de

    valores e mandamentos, para o deserto, para o seu deserto.

    Nietzsche compreende o esprito (der Geist) de modo peculiar, como algo

    que se transmuta (verwandelt). O movimento de tal esprito no determinado pela

    Razo ou por qualquer outro princpio transcendente; nem visa a um fim ltimo.

    12 Concordo com Lwith nesse ponto. 13 Cf. tambm FP 4 [242] inverno de 1883.

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    As trs figuras (o camelo, o leo e a criana) esto, no entanto, co-implicadas, de

    modo a constituir etapas necessrias de um movimento unidirecional (no

    dialtico) do esprito. A dificuldade, com que nos deparamos agora, evitar

    implicaes especulativo-dialticas. o esprito de negao que move a primeira

    transmutao do esprito, de camelo em leo? Caso se trate de trs figuras da

    Histria ascensional do Esprito, parece que Nietzsche repetiria, de modo

    metafrico, o discurso do retornar a si mesmo do Esprito, em seu absoluto tornar-

    se outro, tal como Hegel formulou na Fenomenologia do esprito. Existiram boas

    cabeas dialticas entre os alemes. Mas no nisso que est a grandeza de

    Nietzsche e do discurso em questo.

    1. Do tu deves ao eu quero

    No ponto de partida de seu itinerrio, Nietzsche-Zaratustra carregou o peso

    da obedincia a seus mestres Schopenhauer e Wagner. Ele alou sua esperana para

    alm do homem: obra de um deus sofredor e atormentado afigurava-se-me, ento, o

    mundo (ZA I, 3). Ora, Nietzsche buscou atravs da filosofia do esprito livre a

    libertao de seus velhos mestres. O refgio na cincia, no filosofar histrico, no

    positivismo e na psicologia moral evolucionista de Paul Re foram decisivos no

    caminho do filsofo solitrio.

    Para Lwith, os escritos do perodo intermedirio so positivistas se

    compreendermos esse termo no sentido nietzschiano, a saber, como um ceticismo

    indeciso. Esses escritos so romantismo frustrado, tendendo para o niilismo

    determinado. Os prefcios de 1886 s duas partes de Humano, demasiado humano

    mostram bem essa crise ou primeira transmutao, a qual constitui uma liberdade

    negativa, uma libertao de si experimental. No esprito livre (der Freigeist) irrompe

    uma violenta e perigosa curiosidade por um mundo inexplorado, sendo este

    andarilho a figura laica do peregrino cristo14.

    na Filosofia da manh que o esprito livre se liberta de todas as cadeias

    para atingir o niilismo determinado. Como atestado no final da primeira parte de

    14 Cf. LWITH, 1991, p. 43.

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    Humano, o andarilho e esprito livre s encontra satisfao com a mudana e com

    a transitoriedade. H, contudo, um desejo de saber oculto.

    Ao meio-dia, quando o sol brilha em seu zenith, surge no andarilho (der

    Wanderer) o desejo de quietude (cf. OS, 308). Mesmo que no se trate ainda do

    grande meio-dia, h ali j um pressentimento do carter decisivo, ao mesmo

    tempo angustiante e libertador, da hora de P. Para o andarilho e sua sombra (a

    sombra fala como se fosse o prprio viandante), sombra e luz vo juntas como o

    sim e o no; a altitude do ser e o abismo do nada. O dilogo de Pirro com o ancio

    (OS, 213) um exemplo desse duplo carter. No final desse dilogo, o sorriso que

    cala de Pirro prefigura a relao entre o cimo do eterno retorno e o abismo do

    niilismo15.

    O andarilho de outrora torna-se a sombra de Zaratustra (cf. ZA IV, 9). Essa

    sombra anuncia a sabedoria niilista, o eterno em vo. Ela coloca tambm a

    inquietante pergunta: Haveria somente a errncia da viagem infinita, a errncia no

    crculo eterno? Segundo Lwith, a filosofia da manh provisria. Se o esprito

    livre no encontra ainda a liberdade para criar, Zaratustra busca, ainda com mais

    nfase, uma sada para alm do homem, uma sada do nada, para algo.

    No minha inteno dar conta de temas to obscuros e misteriosos, como

    o eterno retorno do mesmo em sua vinculao com os abismos do niilismo.

    Interessa-me mais investigar a transio do camelo para o leo, em outras palavras,

    do esprito livre para o tipo do dominador (das Herrschende) como um

    movimento singularmente humano. O leo entendido aqui como o smbolo da

    maturidade, que congrega os elementos necessrios para a criao, mas ele mesmo

    ainda no criador. Temos aqui que fazer um deslocamento: do bestirio mtico

    para o bestirio nietzschiano. Em um fragmento pstumo de 1883, Nietzsche

    menciona os exerccios e estados ascticos necessrios para a configurao do poder

    em um novo ser, numa nova forma de vida: a tirania, a autodisciplina do artista, o

    ceticismo, o desprezo de si, a solido e o sofrimento mais pesado. Trata-se de um

    plano para o Zaratustra III, em que eles so aplicados pelo prprio personagem

    15 Cf. LWITH, 1991, p. 46.

  • DAS TRS MUTAES CLADEMIR ARALDI

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    Zaratustra: Por fim, o leo como o terceiro animal de Zaratustra smbolo de sua

    maturidade e disciplina (FP 16 [51] outono de 1883). Os dois outros animais de

    Zaratustra, a guia e a serpente, no simbolismo de Nietzsche, significam,

    respectivamente, a altivez e a prudncia.

    Apesar da origem persa do Zaratustra histrico, o camelo no um animal

    do Zaratustra nietzschiano (ambguo o asno, que possui tambm as marcas

    dionisaca e bestial). A guia, a serpente, o asno e o camelo tm mltiplas

    significaes simblicas no bestirio mtico, das quais no nos ocuparemos

    aqui...16. O drago (marinho ou alado) e o leo aparecem como elementos de

    animais compostos, em vrios configuraes do mito do Monstro, p. ex., no

    Apocalipse ou em Heliodoro17. Atenhamo-nos ao leo. Por que Nietzsche se atm

    maturidade e disciplina, se a simbologia do leo nos mitos bem mais rica?

    Antes de mais nada, o leo, rei dos animais, um smbolo animal de dominao;

    por seu carter basicamente masculino, torna-o o oposto complementar de grandes

    deusas antigas (Cibele, Artemis)18. No simbolismo cristo, o leo ambguo: pode

    significar tanto as potncias infernais (a linhagem de Judas), ou um poder

    numinoso, em relao ao homem heroico (p. ex., Daniel na cova dos lees). Na

    herldica europeia, principalmente durante a Idade Mdia, o leo significava

    principalmente a bravura guerreira, no modo como aparecia em muitos brases19.

    Smbolo de poder tambm a esfinge egpcia (corpo de leo e cabea humana ou

    de falco); a Esfinge grega (estabelecida em Tebas, mas procedente do estrangeiro)

    condensa seu poder na ameaa: Decifra-me ou devoro-te. Ela uma figura

    ctnica, um leo alado com cabea de mulher, ela mesma ameaada pelo novo

    poder nascente, das divindades olmpicas. De qualquer modo, parece que Nietzsche

    se atm energia enorme (solar e ctnica) ligada simbologia do Leo, como algo

    que deve ser dominado, disciplinado. Retenhamos a imagem do devoramento20.

    16 Cf. SIGANOS, In BRUNEL (org.), 1997, p. 119 134. 17 SIGANOS, In BRUNEL (org.), 1997, p. 130 132. 18 CAZENAVE, 2013, p. 365. 19 CAZENAVE, 2013, p. 366 s. 20 Aps dipo ter decifrado seu enigma, em verses do mito, a Esfinge teria devorado a si mesma.

    Sugestiva tambm a imagem de Ouroboro, que morde sua prpria cauda; e mais ainda o modo como o prprio Nietzsche interpreta a sentena latina: Serpens nisi serpentem comederit, non fit

  • SEARA FILOSFICA, N. 9, VERO, 2014, P. 7-26. ISSN 2177-8698

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    A primeira transmutao ocorre quando o esprito do Leo passa a querer a

    si mesmo, devorando o esprito de suportao. Apesar de sua coragem e herosmo,

    o Leo no possui ainda a liberdade para criar novos valores, para tornar-se a

    criana dos mundos, que joga na inocncia csmica do vir-a-ser21. O Leo, no

    entanto, simboliza o livramento (Loslsung) do fardo dos valores e crenas do

    passado humano, e tambm a disposio para autodeterminar-se, para construir seu

    mundo. Liberdade quer o leo conquistar para si mesmo (ZA I, 1). Para tanto, ele

    luta com o drago descomunal, em cujas escamas resplandecem os valores

    milenares da moralidade. importante notar que o drago s se apresenta como

    inimigo ao leo, quando este, em seu prprio deserto, quer conquistar para si

    mesmo a liberdade para novas criaes. O drago simboliza, assim, os

    mandamentos morais do Deus judaico-cristo, com sua exigncia de obedincia

    irrestrita. Enquanto o camelo diz eu devo... seguir os mandamentos morais, o

    Leo diz: eu quero conquistar para mim meu mundo. Entretanto, a vontade do

    Leo preponderantemente negativa22: eu no quero mais seguir os valores da

    tradio. preciso reconhecer o vazio de sentido que decorre dos esforos de

    negao do Leo, a saber, da negao de todos os valores da tradio. Tanto na

    mitologia quando no pensamento de Nietzsche-Zaratustra, o Leo smbolo de

    poder e de dominao. a vontade de criao que impele o Leo zaratustriano para

    a negao e a destruio. Mas nesse caso, querer no ainda poder.

    2. Do eu quero ao eu sou

    Ao diagnosticar a morte de Deus como um evento que concerne

    modernidade como um todo, Nietzsche parece assumir as suas consequncias: a

    partir de ento o homem se encontra no deserto de sua liberdade ou, segundo as

    palavras de Lwith, o princpio do querer quer agora a si mesmo no homem23.

    Visto que o homem s homem enquanto quer, a morte de Deus lhe permite

    draco (A serpente que no devora a serpente no se faz drago) FP 7[119] final de 1870 abril de 1871. 21 Cf. LWITH, 1991, p.35. 22 Para Annemarie Pieper, haveria tambm um trao construtivo na figura do Leo, medida que

    ele cria um espao livre para si: eu quero determinar a mim mesmo, na medida em que crio meus prprios valores (PIEPER, 1990, p. 121). No concordamos com essa interpretao, pois nas Trs transmutaes, a vontade do Leo restringe-se a abrir um espao de liberdade para novas criaes. 23 Cf. LWITH, 1991, p.50.

  • DAS TRS MUTAES CLADEMIR ARALDI

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    chegar libertao extrema: a liberdade para a morte. Assim sendo, o deus cristo

    morto, o homem face ao nada e a vontade do eterno retorno so marcas do sistema

    nietzschiano24. Esse sistema compreendido como movimento do tu deves ao

    eu quero, para chegar ao eu sou, primeiro movimento de uma existncia que

    retorna eternamente no mundo natural.

    Por um lado, a morte de Deus radicaliza o niilismo; por outro, a libertao

    de Deus permite a superao do homem, em direo ao alm-do-homem (der

    bermensch). A partir dela, dois movimentos so possveis: o que leva ao ltimo

    homem (o que se basta a si) e o que guia ao alm-do-homem (o que vai alm de si).

    Esses dois tipos de homem experimentam o niilismo, mas o niilismo, por sua vez,

    ambguo: pode ser sinal de fraqueza (o pessimismo romntico, p. ex.) ou pode ser

    sinal de fora, como o caso do niilismo radical/completo. Para Lwith, o

    niilismo perfeitamente acabado leva nova posio de valores25. Nisso ficaria

    expressa a inteno de Nietzsche, de passar do sentimento do deserto, do vazio

    atormentador, embriaguez dionisaca, ao sim incondicional ao mundo.

    na segunda e ltima transmutao, portanto, que se d a passagem do

    princpio heroico do eu quero ao princpio divino do eu sou, quando a

    filosofia do eterno retorno poderia ser anunciada. Lwith coloca um peso excessivo,

    a nosso ver, na vinculao da segunda transmutao (como o leo se transforma em

    criana) com o pensamento do eterno retorno do mesmo. Sem dvida, atravs da

    imagem da criana, Nietzsche aluda a aspectos criativos e afirmativos do esprito,

    alguns deles presentes tambm no eterno retorno:

    Inocncia a criana, e esquecimento, um novo comeo, um jogo, uma roda rodando por si mesma, um primeiro movimento, um sagrado dizer-sim.

    Sim, para o jogo do criar, meus irmos, preciso um sagrado dizer-sim: o esprito quer agora a sua vontade; o perdido para o mundo conquista para si o seu mundo (ZA I, 1).

    Os smbolos da roda e do jogo eram bem conhecidos do jovem Nietzsche,

    que os referia a Herclito e mitologia grega, sem valorizar o eterno retorno. Em

    24 Cf. LWITH, 1991, p.50. 25 Cf. LWITH, 1991, p.69.

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    Herclito haveria a tentativa de livrar-se da culpa e do castigo (simbolizados pela

    roda de xion, na interpretao schopenhaueriana). Em A filosofia na poca trgica

    dos gregos, Nietzsche atribui a Herclito a viso do mundo como jogo do artista e

    da criana que, como o fogo, constroem e destroem em inocncia (FT 6). Antes

    disso, no final de O nascimento da tragdia, o smbolo da criana dos mundos26

    ganha grande significao, ao ser vinculado com o fenmeno dionisaco (e no

    com o eterno retorno!), ao

    ldico construir e desconstruir do mundo individual como eflvio de um arquiprazer, de maneira parecida comparao efetuada por Herclito, o obscuro, entre a fora plasmadora do universo e uma criana que, brincando, assenta pedras aqui e ali e constri montes de areia e volta a derrub-los (NT 24).

    Ao propormos a despotenciao do pensamento do eterno retorno face

    Segunda Transmutao do esprito, interpreto o eu sou, num sentido mais

    humano, do homem que busca sentido na criao de um mundo que tenha valor

    para ele. Isso fica claro em um escrito preparatrio ao Zaratustra I: Isso o

    homem: uma nova fora, um primeiro movimento: uma roda rodando por si

    mesma. Seria ele forte o bastante, poderia ele tornar-se a estrela que gira em torno

    de si? (FP 1 [178] novembro de 1882 fevereiro de 1883).

    Concordamos com Lwith no sentido de que somente o ser liberto poder

    tornar-se criana dos mundos, que joga na inocncia csmica do vir-a-ser27, ou

    seja, quando o esprito conquista para si o seu mundo. Discordo, no entanto, de

    que o eterno retorno do mesmo seja a suprema e mais sagrada afirmao do

    mundo. Se Nietzsche pretendeu que esse fosse o seu pensamento supremo, tanto

    pior para ele.

    Apesar disso, relevante a interpretao das trs figuras: do camelo, do leo

    e da criana, como trs momentos do pensamento nietzschiano: tu deves, eu quero,

    26 Na mitologia, Aion um nome prprio, um personagem pardico, filho de Zeus e Filira,

    idntico palavra ain: durao da vida, tempo, eternidade, mas que possui um sentido primeiro

    de: medula espinhal, substncia vital, esperma, lquido dos olhos, suor. No fragmento DB 52 de

    Herclito, Aion uma criana que se faz de criana, que joga um jogo: de uma criana a realeza. 27 LWITH, 1991, p.35.

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    18

    eu sou28. O terceiro momento, assevera Lwith, mesmo que no se encontre

    expressamente em Das trs transmutaes, enunciado num fragmento pstumo:

    mais alto que tu deves est eu quero (os heris); mais alto que eu quero est eu

    sou (os deuses dos gregos) (FP 25 [351] incio de 1884).

    Essa dupla transmutao do tu deves ao eu quero; e do eu quero ao eu sou

    caracteriza o sistema nietzschiano como um todo. A partir dela, Lwith estabelece

    a periodizao dos escritos nietzschianos. O primeiro perodo o do pessimismo

    romntico, estendendo-se do Nascimento da tragdia s Consideraes

    Extemporneas, perodo no qual o jovem professor venerava Wagner e

    Schopenhauer (com uma progressiva distncia crtica!), e acreditava na renovao

    da cultura alem29. O segundo perodo marcado pelo positivismo. Nas obras

    Humano, demasiado humano, Aurora e nos quatro primeiros livros de A gaia

    cincia, Nietzsche pretende que o esprito se liberte para si mesmo no sofrimento.

    Por no crer mais em nada, ele busca seu prprio caminho30. Por fim, no terceiro

    perodo, o filsofo se tornaria o mestre do eterno retorno, encontrando seu prprio

    caminho, que o de querer e, mais do que isso, amar o fatum. Segundo Lwith,

    esse perodo encerra o que verdadeiramente a filosofia de Nietzsche: ele inicia

    com o pensamento do eterno retorno no Zaratustra e termina no Ecce homo31.

    Lwith recorre a um fragmento pstumo da poca do Zaratustra, para

    defender essa diviso em trs perodos. No escrito intitulado O caminho da

    sabedoria, esto caracterizados os trs momentos do Esprito. Mas, aqui so trs

    passos, que no culminam no eterno retorno, mas que tm em vista a superao da

    moral, subttulo desse projeto: 1) O primeiro passo consiste em venerar, em

    carregar tudo o que pesado. Isso constituiria o ascetismo do esprito, no tempo

    da comunidade. 2) O segundo passo se caracteriza por romper a venerao no

    momento em que os laos so mais fortes (a saber, com Wagner). o tempo do

    deserto, da crtica, do esprito livre, da busca por independncia. 3) no terceiro

    passo que ocorre a grande deciso, a posio afirmativa, o dizer-sim a tudo,

    28 LWITH, 1991, p.35. 29 Cf. LWITH, 1991, p.32. 30 LWITH, 1991, p.32. 31 LWITH, 1991, p.32.

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    expresso do instinto criador. o tempo da grande responsabilidade e inocncia:

    (FP 26[47] vero outono de 1884).

    A dupla transmutao, na viso de Lwith, corresponde a duas crises na

    vida e na obra do filsofo alemo, as quais guiariam a duas decises determinantes.

    A primeira crise a ruptura com Wagner. Esse foi o evento decisivo, nunca

    suplantado por Nietzsche. A partir da, ele busca progredir na decadncia at a

    fronteira crtica do niilismo extremo. A primeira deciso, portanto, conduz ao

    niilismo, entendido este como a perda dos valores e o desvanecimento dos

    horizontes de sentido. A segunda crise ocorre no Zaratustra, entre as sees A hora

    mais silenciosa e O convalescente, na passagem da segunda terceira parte. No

    Zaratustra, a filosofia do eterno retorno significaria o autoultrapassamento do

    niilismo extremo. A segunda deciso, portanto, guia ao amor fati, vontade do

    eterno retorno do mesmo.

    3. Sobre o valor do eterno retorno do mesmo

    Assim Lwith interpreta e valoriza o pensamento do eterno retorno:

    Nietzsche-Zaratustra se torna o mestre do Eterno Retorno. Essa doutrina seu

    destino. Para tanto, Zaratustra precisa ir alm dos valores e estimativas dos homens,

    marcados pela decadncia, visto que somente o homem que ultrapassa a si mesmo

    pode querer o Eterno Retorno do Mesmo. Desse modo, o anncio do alm-do-

    homem anterior doutrina do Eterno Retorno. O Pensamento Fundamental deve

    ser visto, segundo Lwith, em sua relao essencial com o niilismo, como uma

    resposta questo do niilismo. Ou seja, Nietzsche tenta inverter a vontade de nada

    em querer do eterno retorno. Se admitirmos que a concluso conceitual dessa obra

    ocorre quando Zaratustra torna-se o mestre do eterno retorno32, haveria,

    32 Na poca de elaborao do Zaratustra II, em que Nietzsche atribui valor supremo ao pensamento do eterno retorno, ele afirma que a crena no eterno retorno era uma crena prpria da doutrina dos mistrios (cf. FP 8[15] vero de 1883). Essa declarao, mesmo que se encontre num fragmento pstumo, significativa para meu questionamento acerca do valor e do sentido do eterno retorno.

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    certamente, a superao do niilismo atravs da afirmao irrestrita do mundo, da

    vida e do sofrimento33.

    O eterno retorno tanto o novo centro de gravidade (novo peso tico),

    como algo absurdo (recordemos a verso niilista do eterno retorno, do Fragmento

    de Lenzer-Heide...34), o sem-sentido eternamente. Para chegar ao sim

    incondicional, Zaratustra tem de atravessar o no extremo, deve vencer Deus e o

    nada. Lwith procurou esclarecer esse transcurso, bem como apontar as suas

    dificuldades. Assim sendo, a parbola metafsica do eterno retorno implicaria

    numa dupla equivalncia: enquanto peso tico e enquanto constatao do mundo

    fsico. O problema de Nietzsche o de unificar o conflito entre a vontade humana

    de finalidade e o curso circular do mundo. Nessa perspectiva de anlise, o eterno

    retorno no visto como um pensamento no sentido tradicional, mas como uma

    experincia exttica do esprito. O grande meio-dia o instante decisivo e

    crtico, na medida em que o eterno retorno, enquanto pensamento supremo

    afirmativo, deve significar tambm a autossuperao do niilismo35. Vrios projetos

    de continuao do Zaratustra36 atestam que Nietzsche/Zaratustra no atingiu uma

    concluso definitiva, irrevocvel, em que o eterno retorno assumido em todas as

    suas consequncias.

    O carter problemtico da relao entre o niilismo e o eterno retorno,

    segundo Lwith, transparece em dois momentos crticos no Zaratustra. O primeiro

    33 Scarlett Marton, em seu texto A obra feita e a obra por fazer, ao analisar a concluso conceitual da obra, afirma que na seo O convalescente Zaratustra supera o niilismo e leva seu pensamento abissal at suas ltimas consequncias: Transformando-se no que abenoa e diz-sim, realiza vivencialmente o que teria de ensinar. Pondo-se em sintonia com a vida e com o mundo,

    encarna a transvalorao dos valores (MARTON, 1998, p. 125). Concordamos com Marton no sentido de que essa seo decisiva no que se refere ao pensamento do eterno retorno, remetendo

    ao amor fati e atitude dionisaca. Entretanto, questiono se Zaratustra cumpriria, irrestritamente,

    nessa seo (ou onde quer que seja), a proposta afirmativa nietzschiana. Considerando que o

    anncio do eterno retorno feito pelos animais e que Zaratustra se cala diante dele, parece-me que

    Zaratustra ainda no cumpriu o seu destino, e que Nietzsche, do mesmo modo, reconhece a

    dificuldade de cumprir o seu. Isso explicaria a hesitao do filsofo na concluso de sua obra e a

    retomada do personagem Zaratustra em momentos posteriores de seu pensamento. 34 Cf. FP 5[71] .6 Fragmento de Lenzer-Heide, 10 de junho de 1887. 35 Cf. LWITH, 1991, p.78-81. 36 Confira, p. ex., os projetos elaborados em agosto-setembro de 1885: FP 39[3]; 39[22], assim

    como o projeto de 1888, FP 18[15]. Acerca dessa questo, confira tambm MARTON, 1998, p.125 126.

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    ocorre na seo O adivinho. Zaratustra, aps ser tocado pela profecia do

    adivinho, a saber: tudo igual, nada vale a pena..., cala-se, at que seu abismo fale

    novamente, confundindo-se com a mensagem inversa do eterno retorno37. A

    segunda crise ocorre entre as sees A hora mais silenciosa e O convalescente. A

    hora mais silenciosa seria o Getsmani incompleto de Nietzsche, pois ele se recusa a

    tornar-se o que ele , a assumir o seu destino; nesse momento, ele estaria, segundo

    Lwith, entre a verdade dionisaca e a verdade niilista38.

    Zaratustra, parte, ento, para sua ltima viagem, que o leva meia-noite, nas

    Ilhas Bem-Aventuradas39, ao cimo das mais altas montanhas. Mas somente

    quando retorna sua caverna que o pensamento abismal do eterno retorno se eleva

    das profundezas e fala. quando Zaratustra assumiria seu destino, depois de se

    restabelecer de sua conversa com o abismo, atravs da fala de seus animais.

    Ao querer o eterno retorno, Zaratustra se apercebe da verdade da vida una.

    O hino do sim e do amm e o canto repetido da eternidade concluem logicamente

    (se que se pode falar de lgica, nesse contexto) a Terceira e Quarta partes do

    Zaratustra40. Aps analisar a posio do pensamento do eterno retorno em ZA,

    Lwith ressalta o seu carter problemtico. H nele duas coisas discordantes: a

    vontade de eternizar a existncia que se tornou efmera e o curso circular eterno do

    mundo natural. Como seria possvel, ento, compatibilizar o experimentador

    radical do sculo XIX com a persona, ator, de um deus grego? Para Lwith, esse

    duplo sentido incompatvel. Depois que a fora potica cessa, o conjunto divide-

    se em duas partes contraditrias, religadas somente pelo que as separa: o peso tico

    (religio ateia) e a constatao de um fato do mundo fsico (metafsica fsica)41.

    Assim, ele conclui que no h unidade no pensamento do eterno retorno entre a

    constituio do mundo e o comportamento pessoal, entre a cosmologia e a tica.

    incompatvel a tentativa de Nietzsche de reconquistar o mundo dos gregos (a bela

    37 Cf. LWITH, 1991, p.78. 38 Cf. LWITH, 1991, p.85-86. 39 Segundo Paolo DIorio, a ilha vulcnica de Ischia, que Nietzsche via do terrao de seu quarto em Sorrento (na estada de 1876) servir de modelo para as Ilhas Bem-Aventuradas, em Assim

    falou Zaratustra. Cf. DIORIO, 2012, p.17. 40 Cf. LWITH, 1991, p.93. 41 Cf. LWITH, 1991, p.10-104.

  • DAS TRS MUTAES CLADEMIR ARALDI

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    circularidade csmica) com o ensaio do experimentador radical do sculo XIX,

    imbudo das pretenses do ego moderno, e das energias niilistas modernas.

    Considero ser muito instigante o modo como Lwith elabora a incompatibilidade

    e a ambiguidade entre o niilismo e o eterno retorno.

    Assim falou Zaratustra resume, para Lwith, o conjunto da filosofia

    nietzschiana; um sistema em parbolas levado s ltimas consequncias42. Essa

    obra tambm a legitimao de tudo o que Nietzsche viveu, fez e sofreu, seu

    testamento, encerrando em toda a sua preciso a imagem de seu ser (id.).

    Reconhecemos o rigor e a ousadia da interpretao de Lwith que, na

    dcada de 1930, articulou o discurso Das trs transmutaes com os temas

    fundamentais da filosofia nietzschiana: a morte de Deus, o niilismo, o alm-do-

    homem, a vontade de poder e o eterno retorno do mesmo. Este ltimo dos cinco

    termos capitais (tal como Heidegger desenvolver posteriormente) considerado

    por ele como o pensamento fundamental unificante da obra nietzschiana.

    No discurso Das trs transmutaes, o caminho para a suprema afirmao

    posto como assegurado, na figura da criana que joga na inocncia csmica do

    mundo natural, para alm do peso da obedincia e da libertao negativa do leo. A

    criana, desse modo, simboliza a postura afirmativa do homem no mundo.

    Entretanto, esses movimentos ou transmutaes no ocorrem do mesmo modo ao

    longo do Zaratustra. O destino de Zaratustra o de se tornar o mestre do eterno

    retorno. Quando tal destino cumprido, o personagem atinge tambm o seu ocaso.

    Zaratustra no se tornou criana, jogando na inocncia, no esquecimento...; no se

    tornou ainda um primeiro movimento (atentemos para o pathos melanclico de

    Zaratustra na seo O convalescente, aps o anncio do eterno retorno). Ao invs

    disso, Nietzsche se ocupou, desde a poca inicial de elaborao de sua obra mais

    criativa, da temtica da morte de Zaratustra.

    42 Cf. LWITH, 1991, p.78.

  • SEARA FILOSFICA, N. 9, VERO, 2014, P. 7-26. ISSN 2177-8698

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    O interesse intenso por essa temtica expressa-se em um fragmento pstumo

    do vero de 1883, em que o filsofo solitrio projeta uma tragdia em quatro atos,

    acerca do Zaratustra:

    1 ato. Zaratustra entre os animais. A caverna.

    A criana com o espelho. ( tempo!)

    As diferentes perguntas se intensificam.

    Finalmente seduzem-no as crianas com cantos.

    2 ato. A cidade, propagao da peste. Cortejo de Zaratustra

    Cura da mulher. Primavera.

    3 ato. Meio-dia e Eternidade.

    4 ato. Os barqueiros.

    Cena do vulco, Zaratustra morrendo entre crianas

    Festa dos mortos. (FP 13[2] vero de 1883)

    H nesse escrito, claramente, uma retomada dos projetos de 1870-1871, de

    elaborao de uma tragdia sobre a morte de Empdocles43, em que so elaborados

    os temas da peste, da cena do vulco e da morte do filsofo de Agrigento. O que

    nos chama a ateno que, em 1883, Zaratustra quem morre no vulco, e no

    mais Empdocles. O final do Zaratustra, em que o personagem sai de sua caverna

    ao amanhecer, saudando o sol, parece no encerrar definitivamente a obra, pois o

    filsofo manifestou interesse de escrever um novo Zaratustra a partir da quarta

    parte44.

    4. Indicaes para uma nova arte de viver

    Com maestria, Lwith interpretou o surgimento e o acabamento do

    pensamento fundamental unificante, enquanto movimento do tu deves e do eu

    quero ao eu sou. Essa interpretao foi relevante para a compreenso do sentido

    e dos horizontes da filosofia nietzschiana. Ainda questiono, com Lwith, se o

    filsofo alemo, ao radicalizar o niilismo, buscando revert-lo no pensamento

    43 Cf. FP 8[30-39] do inverno de 1870-1871. 44 Cf. MARTON, 1998, p.133.

  • DAS TRS MUTAES CLADEMIR ARALDI

    24

    afirmativo, no estaria imbudo da crena na potncia criadora da negao. Nesse

    ponto, contudo, eu aponto para uma guinada radical. Em vez de seguir a sugesto

    da travessia do niilismo rumo ao pensamento supremo afirmativo do eterno

    retorno, proponho o seguinte deslocamento: interpretar as Trs transmutaes

    como indicao para uma nova arte de viver, para seres humanos finitos e

    mortais. Questiono o valor do eterno retorno, ao enfatizar a singularidade e a

    irrepetibilidade da existncia no mundo.

    O ascetismo do esprito45 (der Asketismus des Geistes) no se dirige

    apenas ao camelo, mas tambm ao leo, tarefa do homem de reconquistar sua

    natureza: Eu quero re-naturalizar tambm a asctica (FP 9[93] outono de 1887).

    Para chegar ao domnio de si, fruio superior, vitria no combate das paixes,

    preciso que muitos homens, em diferentes pocas, tenham obedecido, padecido

    fome, praticado exerccios de privao corporais-anmicos, como os ascetas da

    filosofia vedanta, na asctica prtica dos filsofos gregos, ou no ascetismo mais

    popular dos germanos vidos de rapina46. Assim sendo, a enkrateia e a askesis

    presentes no tu deves do camelo e no eu quero do leo so meios para a

    intensificao do poder, na inocncia da criana no devir (FP 25[351] primavera

    de 1884); so meios, por fim, para dar estilo ao carter, e existncia humana

    singular.

    Nietzsche condensou na figura do camelo (nas Trs transmutaes) vrios

    exerccios de ascetismo que a humanidade praticou por milnios, e que

    determinaram o seu carter. O que mais lhe importava, no entanto, era a prtica

    asctica do Esprito Livre (der Freigeist). Imbudo do Pathos des Asketenthums, o

    esprito do Leo pratica de bom grado, com disciplina e rigor, a ginstica da

    vontade, fruindo do sentimento transbordante de poder e plenitude, no deserto

    solitrio de sua libertao. No Esprito Livre, o ascetismo do esprito e o

    ascetismo da virtude (der Ascetismus der Tugend) so meios para o aumento do

    poder. Entretanto, as consequncias mais prximas da tentativa asctica de viver

    45 Nietzsche empregou vrios termos para designar ascese e ascetismo: Asketismus, Ascetismus, Ascetism, Asketism, Ascetik, Asketik, Asketenthum, Askese, Askesis, ascese. 46 Cf. GM III, 12, A 195.

  • SEARA FILOSFICA, N. 9, VERO, 2014, P. 7-26. ISSN 2177-8698

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    sem moral so negativas: a pobreza de soldado, a proximidade da morte (FP 6[4]

    inverno de 1882 1883). O tipo asctico-moral , para o Nietzsche tardio,

    desprezvel; o modo de vida dos malogrados, que querem fugir do mundo que

    lhe diz respeito. O filsofo de esprito livre constri, com pacincia e determinao,

    o ascetismo dos fortes (der Asketismus der Starken) (cf. FP 15[117] primavera

    de 1888). preciso concentrar, alimentar e intensificar os pendores mais fortes e

    naturais de cada um, para poder estilizar a existncia singular. necessrio

    restabelecer o esprito do Leo na asctica, a saber, praticar exerccios de

    autocontrole, persistir em hbitos saudveis, exercitar os seis modos de combate

    veemncia das paixes (cf. A 109), para que o ser humano tenha contentamento

    consigo mesmo, fruindo de si mesmo at mesmo na renncia, na dor e no

    desprendimento dos valores do rebanho.

    Nietzsche esforou-se muito para inventar receitas vlidas para melhorar sua

    sade e para construir uma nova arte de viver, em meio s ameaas internas e

    externas de seu tempo, o tempo do niilismo. difcil, em meio nossa poca to

    confusa, prescrever receitas prontas e universalizveis. Entretanto, uma coisa

    necessria: que cada um se dedique com vigor e determinao para forjar novas

    artes de viver, singulares, na relao ou no confronto com outros. Ainda bem que

    h espao para, quando necessrio, fugir dos outros, e correr para o deserto de cada

    um, onde cada um pode encontrar o seu melhor refgio e pode tentar cuidar de

    si.

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    Recebido em: 15/08/2014

    Aceito em: 29/09/2014