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DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS AO TERRITÓRIO: PRIMEIRAS ACHEGAS À NECESSÁRIA RELEITURA DO DIREITO AGRÁRIO NA AMAZÔNIA Marlon Aurélio Tapajós Araújo 1 A MODO DE INTRODUÇÃO O estudo que ora se apresenta visa discutir, sem a pretensão de esgotar o tema, como as práticas jurídicas das comunidades, especialmente as voltadas ao direito ao território tradicional, por estes povos titularizado, pode ser eficiente constructo hermenêutico na potencialização da eficácia do direito agrário na Amazônia. Enceta-se com proposta, ainda atual, liderada por Alcir Gursen de Miranda no sentido de conformar-se a disciplina jurídica autônoma denominada Direito Amazônico. Estuda-se o que autor pretende com tal proposta e como sua validade e revitalização atuais podem conduzir a resultados científicos úteis para os operadores do direito agrário na Amazônia, quando pensada à luz das práticas jurídicas das comunidades. A seguir, avaliam-se os dois diplomas normativos que autorizam falar nessa relação entre direito agrário e práticas jurídicas dos povos e comunidades tradicionais, sobretudo tendo em conta o direito ao território que, indubitavelmente, é linha condutora útil desta relação, mas não apenas ele, como será visto. Referimo- nos à Convenção 169 da OIT e ao Decreto Federal nº 6.040/2007. Finalmente, faz-se uma apreciação inicial da necessidade de superar cânones positivistas e avançar na direção de um direito sintonizado com a realidade, no caso específico, com a realidade amazônica. 1 UM DIREITO AGRÁRIO DA AMAZÔNIA: A PROPOSTA DE GURSEN DE MIRANDA, O DIREITO AMAZÔNICO O direito agrário na Amazônia deve ser o direito agrário da Amazônia. A assertiva dita, assim, de modo singelo e quase elementar, pode sugerir que se diz algo vazio, a não passar de um jogo vão de palavras. Todavia, não o é. Trata-se de assentar, sem delongas e do modo mais claro possível, a necessidade premente de que o Direito Agrário seja refletido e afinado com o modo-de-ser amazônida, isto é, a maneira própria pela qual o homem e a mulher desta região lidam diuturnamente com os bens que lhe marcam a feição: a terra, a água e a floresta. As reflexões sobre a necessidade de o direito estar atento às necessidades do “locus" em que irá ser aplicado vêm à tona sempre que se reconhece o descompasso entre as normas e a realidade sobre a qual estas irão atuar. A profilaxia jurídica, ante tal quadro, recomenda e determina que o direito seja ajustado à situação da vida que pretende tutelar. Silvio Meira 2 lançando notas sobre o Direito Colonial no Brasil revela que esse problema é dos mais antigos no direito brasileiro: 1 Advogado. Mestrando em Direitos Humanos e Meio Ambiente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPA – PPGD/UFPA. Especialista em Gestão Ambiental (Núcleo de Meio Ambiente da UFPA – NUMA/UFPA). Técnico – área: Direito, da Procuradoria Geral do Estado do Pará. Endereço eletrônico: [email protected]

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DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS AO TERRITÓRIO: PRIMEIRAS ACHEGAS À NECESSÁRIA RELEITURA DO DIREITO AGRÁRIO NA AMAZÔNIA

Marlon Aurélio Tapajós Araújo1

A MODO DE INTRODUÇÃO

O estudo que ora se apresenta visa discutir, sem a pretensão de esgotar o tema, como as práticas jurídicas das comunidades, especialmente as voltadas ao direito ao território tradicional, por estes povos titularizado, pode ser eficiente constructo hermenêutico na potencialização da eficácia do direito agrário na Amazônia.

Enceta-se com proposta, ainda atual, liderada por Alcir Gursen de Miranda no sentido de conformar-se a disciplina jurídica autônoma denominada Direito Amazônico. Estuda-se o que autor pretende com tal proposta e como sua validade e revitalização atuais podem conduzir a resultados científicos úteis para os operadores do direito agrário na Amazônia, quando pensada à luz das práticas jurídicas das comunidades.

A seguir, avaliam-se os dois diplomas normativos que autorizam falar nessa relação entre direito agrário e práticas jurídicas dos povos e comunidades tradicionais, sobretudo tendo em conta o direito ao território que, indubitavelmente, é linha condutora útil desta relação, mas não apenas ele, como será visto. Referimo-nos à Convenção 169 da OIT e ao Decreto Federal nº 6.040/2007.

Finalmente, faz-se uma apreciação inicial da necessidade de superar cânones positivistas e avançar na direção de um direito sintonizado com a realidade, no caso específico, com a realidade amazônica.

1 UM DIREITO AGRÁRIO DA AMAZÔNIA: A PROPOSTA DE GURSEN DE MIRANDA, O DIREITO AMAZÔNICO

O direito agrário na Amazônia deve ser o direito agrário da Amazônia. A assertiva dita, assim, de modo singelo e quase elementar, pode sugerir que se diz algo vazio, a não passar de um jogo vão de palavras. Todavia, não o é. Trata-se de assentar, sem delongas e do modo mais claro possível, a necessidade premente de que o Direito Agrário seja refletido e afinado com o modo-de-ser amazônida, isto é, a maneira própria pela qual o homem e a mulher desta região lidam diuturnamente com os bens que lhe marcam a feição: a terra, a água e a floresta.

As reflexões sobre a necessidade de o direito estar atento às necessidades do “locus" em que irá ser aplicado vêm à tona sempre que se reconhece o descompasso entre as normas e a realidade sobre a qual estas irão atuar. A profilaxia jurídica, ante tal quadro, recomenda e determina que o direito seja ajustado à situação da vida que pretende tutelar. Silvio Meira2 lançando notas sobre o Direito Colonial no Brasil revela que esse problema é dos mais antigos no direito brasileiro:

1 Advogado. Mestrando em Direitos Humanos e Meio Ambiente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPA – PPGD/UFPA. Especialista em Gestão Ambiental (Núcleo de Meio Ambiente da UFPA – NUMA/UFPA). Técnico – área: Direito, da Procuradoria Geral do Estado do Pará. Endereço eletrônico: [email protected]

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O estudo de todo esse longo período – 22.04.1500 a 7.09.1822 – apresenta aspectos multiformes, quer no campo do direito público, quer no campo do direito privado. Uma legislação multifária e multiforme, aplicável a região nova e extenssísima, em que condicionantes telúricas começam a repercutir no próprio arcabouço jurídico exigindo adaptações de toda ordem.

Quando se trata de pensar o direito à terra3 na Amazônia, importante se faz ter em linha de conta as práticas jurídicas4 dos povos e comunidades tradicionais. Com efeito, tais práticas são portadoras de juridicidade ímpar, cada vez mais reconhecida e positivada pelo Estado brasileiro5 em vários diplomas legislativos. Esta juridicidade está em harmonia com o meio em que tais comunidades têm seu fazer cultural e é corroborada por práticas sociais que lhe conferem legitimidade supra geracional.

Hodiernamente, já não há dúvida: ou o direito se harmoniza com os seus destinatários e seus anseios ou poderá ser considerado natimorto, texto abortado. A teoria constitucional formulada por Peter Härbele6 nos diz com bastante acento que a Constituição pode e deve ser também o que o povo diz que ela é, relativizando a lição kelseniana acerca do intérprete autêntico, que punha este processo “revelador” exclusivamente nas mãos do Tribunal Constitucional, sugestivamente chamado de guarda da Constituição.

Se esta democrática atividade hermenêutica pode ser feita em relação ao texto jurídico fundante (mais uma conclusão que se revela curial, todavia assume foros de novidade criativa em “país de modernidade tardia”7, como o Brasil, onde ainda se pratica a “baixa constitucionalidade”8) a fortiori deve ser concebida e incentivada em relação à legislação infraconstitucional agrária. Cuidando-se da aplicação de tais preceitos na Amazônia é de se esperar que para tarefa tão grave contribuam decisivamente os povos e comunidades que diuturnamente vivenciam, muitas vezes sem saber, o processo de aplicação de tais normas à realidade amazônica.

2 MEIRA, Silvio Augusto de Bastos. O Direito Colonial no Brasil. Disponível em: <http://www.bibliojuridica.org/libros/2/730/24.pdf> . Acesso em: 20 dez. 2009.3 O direito à terra pode, no caso dos povos e comunidades tradicionais, ser mais bem compreendido como direito ao território. As reflexões sobre este tema tomam cada vez mais conta do debate dada a insuficiência teórica do problema erigido em torno do direito à terra na Amazônia. Se é possível iniciar qualquer discussão acerca do tema a partir desta tradicional categoria jurídica, não será tão fácil encerrá-la em seus apertados lindes, sendo certo que, ou se passa à discussão do direito ao território, ou nada mais de produtivo se poderá fazer. 4 Fala-se em práticas jurídicas, pois falar em costumes ou regras escritas não daria conta ou seria inapropriado de acordo com a maneira que o direito é produzido no seio de tais comunidades.5 Releva notar, nesse passo, que o Brasil, a despeito de inegável evolução, de acordo com sua dinâmica histórica diferenciada na América Latina, avança com acanhamento no tema, se comparado a outros países como a Bolívia que em seu processo constitucional vive tempos de positivar direitos dos povos indígenas bolivianos, livrando-os de qualquer resquício de tutela administrativa ou mesmo segregação, plasmando-os no texto constitucional como altivos condutores dos destinos desse país latino-americano.6 HARBELE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental" da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.7STRECK, Lenio Luiz. Os dezoito anos da Constituição do Brasil e as possibilidades de realização dos Direitos Fundamentais diante dos obstáculos do positivismo jurídico. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (Org.). Direito Constitucional. Salvador: Juspodvm, 2006. p.22.8_______________. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 7. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.p.324.

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Uma vez que não estejam as práticas jurídicas dos povos e comunidades tradicionais decididamente voltadas a afeiçoar o direito agrário à realidade amazônica, por certo não poderão ser ignoradas no processo de aplicação de tal direito nesta Região, tornando-se balizas interpretativas da mais alta envergadura, em ordem a fazer que regras de direito positivo cedam passo à realidade com que se defronta, circunstância que de resto já ocorre quando o direito está efetivamente dissociado da realidade em que deva aplicar-se.

Fala-se, com acento, já parece certo, da proposta de Alcir Gursen de Miranda. Sua formulação está sintetizada na denominação Direito Amazônico. Mais importante do que se afirmar como nova ramificação jurídica, o direito amazônico seria um modo de interpretar o direito a partir de sua necessária contextualização regional. No dizer de Gursen de Miranda9 equivaleria a:

na interpretação, na integração e na aplicação do Direito deve ser observada a realidade amazônica. O Direito Amazônico é a concretude do ensino universitário do Direito na Amazônia. É a formação de juristas na Amazônia visando a dar soluções à problemática amazônica.

Vê-se, sem dificuldade, que é necessário pensar o direito sintonizado com o meio onde vai operar. Não pensar o direito aliado à realidade em que inserto, significa anulá-lo, torná-lo inócuo, semeadura de saída fracassada. Luiz de Lima Stefanini,10 com propriedade, assevera:

(...) o Direito deve estar em harmonia com as instituições sociais, nascidas naturalmente no arcabouço dos usos e costumes sociais. É da depuração histórica destas fontes e suas sedimentações no seio da comunidade que se legitima o Direito. Se assim não fosse o Direito seria uma criação celebrina artificial, vazia de significado na comunidade que deve vivê-lo.

Vislumbrar tal realidade implica necessariamente atentar para o modo de fazer próprio dos povos e comunidades tradicionais amazônicas, com olhar especialmente voltado para suas práticas jurídicas, produzidas na construção do território tradicional.

A proposta formulada por Gursen de Miranda indica claramente, de acordo com os vários instrumentos eleitos para concretizá-la, que o direito deve estar alinhado para pensar esta Região e sua gente, como algo destacado e marcado, particularidades que demandam tratamento diferenciado. Trata-se de reclamar um autêntico direito à diferença e a ser tratado de acordo com essa alteridade. Luiz de Lima Stefanini11 pontua que “(...) a realidade amazônica está a exigir do Direito um posicionamento mais sensível e harmônico com sua realidade agrária”.

Não se pode mesmo imaginar que o problema cuja solução é oferecida pelo direito amazônico vá ser superado exclusivamente com a divisão federativa das competências legiferantes (a União ditando normas gerais a serem regionalizadas/localizadas por Estados e Municípios). O que se vê, recorrentemente, é a repetição indiscriminada de preceitos de ordem geral, postura essa que apresenta o inegável defeito consistente em conferir feição geral à legislação

9 MIRANDA, Alcir Gursen de. Direito Amazônico: a concretude do direito regional. Disponível em: <http://www.anamages.org.br/site/?artigos/2010/02/27/direito-amazonico-a-concretude-do-direito-regional> . Acesso em: 9 set. 2010.10 STEFANINI, Luiz de Lima. A questão jusagrarista na Amazônia. Belém: CEJUP, 1984. p. 52.11 Idem, ibidem, p. 53.

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estadual o que resulta em perda da operacionalidade que se espera ínsita à tal tipo de legislação.

Neste sentido é que se coadunam a proposta de um direito amazônico, imbuído do objetivo acima indicado e a perspectiva, inclusive com avanços legislativos significativos, de emprestar às práticas jurídicas dos povos e comunidades tradicionais foros de fonte do direito ou, quando menos, pauta hermenêutica de subido valor quando se cuida de lhes assegurar direitos dos quais são titulares por sua condição específica ou pelo simples fato de serem brasileiros.

2 A LUTA DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS PARA A POSITIVAÇÃO DE SUAS PRÁTICAS JURÍDICAS: A CONVENÇÃO 169 DA OIT, O DECRETO FEDERAL Nº 6.040/2007 E O DIREITO AO TERRITÓRIO

O direito ao território que povos e comunidades tradicionais da Amazônia têm esteve fundado secularmente na mera ocupação. Difícil será encontrar comunidades tradicionais cujo direito ao território seja postulado ou defendido com base em título cartorário. Entendem ter direito à terra (rectius: ao território) pelo só fato de nela trabalharem e nela encontrarem os registros mais antigos de suas relações sociais e com a natureza, alguma de ordem mitológica como têm estudado antropólogos de renome.12

A centralidade a guiar as reflexões jurídicas sobre o direito ao território como pressuposto para que as comunidades tradicionais logrem alcançar direitos é impostergável, pois deflui de seu discurso objetivado em movimento social, com grande carga de realidade e “sensibilidade jurídica”13 e da prática de mobilização, da legislação que rege o tema, precipuamente a Convenção 169 da OIT e o Decreto Federal nº 6.040/2007, além da literatura jurídica e antropológica que vem debatendo o tema.

Quando se pensa num povo ou comunidade tradicional, pouco se pode fazer em termos de políticas públicas sem que se garanta previamente o direito ao território, meio pelo qual os Povos e Comunidades têm plenamente garantida a possibilidade de afirmar sua identidade, proteger os recursos naturais dos quais historicamente se valem, além de garantir a reprodução da simbólica e vital relação que travam com seus territórios.

O direito fundamental ao território tradicional traz acoplada à sua enunciação a política pública central para os povos e comunidades tradicionais, a saber: a regularização fundiária de seus territórios.

Este direito fundamental está fundado em atos normativos internacionais e nacionais e deve ter aplicação imediata no Brasil.14 Pode-se validamente extraí-lo da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), incorporada ao 12SEEGER, Anthony; CASTRO, Eduardo Batalha Viveiros de. Terras e territórios indígenas no Brasil. Revista Civilização Brasileira, v. 12, n. 1-2, p. 101-114, 1979. O que os renomados antropólogos deste seminal artigo apontam em relação ao território indígena aplica-se perfeitamente aos demais povos e comunidades tradicionais.13GEERTZ, Clifford. O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa. In: O Saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis:Vozes, 2007. p.259.

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direito brasileiro pelo Decreto Federal nº 5.051/2004: artigos 16 a 19, no plano internacional, e, da Constituição brasileira de 1988: artigo 216 e do Decreto Federal nº 6.040/2007: artigo 3º do texto do decreto, artigos 1º, inciso VII e 3º, incisos I e IV do texto da Política, no plano interno.

A ideia de território tradicional impõe ao jurista a tarefa primeira de desvencilhar-se dos embolorados cânones juscivilistas sobre a ideia de propriedade, pois entre os povos e comunidades tradicionais tal noção não tem nenhuma repercussão ou é de diminuta influência em suas práticas jurídicas. Almeida,15 em seu clássico trabalho sobre territórios tradicionais, aponta a constituição destes territórios em torno do trinômio amazônida, por excelência, terra, água e floresta:

[...] registra-se que este campesinato pós-plantation não procedeu necessariamente a divisão da terra em parcelas individuais. A garantia da condição de produtores autônomos uma vez ausente o grande proprietário ou por demais debilitado o seu poder, conduzir a formas organizativas, sendo os ditames de uma cooperação ampliada e de formas de uso comum da terra e dos recursos hídricos e florestais. Tais formas se impuseram não somente enquanto necessidade produtiva, já que para abrir roçados e dominar as áreas de mata e antigas capoeiras uma só unidade familiar era insuficiente, mas, sobretudo, por razões políticas e de autopreservação.

Diante destas precisas observações e advertências é que emerge o marco jurídico do território tradicional no Brasil,16 a Convenção 169 da OIT e o Decreto Federal nº 6.040/2007.

A Convenção 169 da OIT foi internalizada no direito brasileiro pelo Decreto Federal nº 5.051, de 19 de abril de 2004.

Deve-se anotar que, tendo sido a Convenção 169 ratificada, aprovada e promulgada pelo Brasil antes da Reforma Constitucional do Poder Judiciário de 2004, que inseriu por meio da Emenda Constitucional nº 45 o parágrafo terceiro no artigo 5º do Texto Constitucional, a referida convenção tem natureza de texto normativo supralegal, consoante entendimento recentemente vencedor no Supremo Tribunal Federal.17

Cuidando a Convenção 169 de Direitos Culturais e Sociais, mas estando fora do regime constitucional de 2004, possui natureza supralegal. Assim, está acima das Leis Ordinárias (Código Civil, Código Minerário, Leis Ambientais restritivas dos direitos territoriais das comunidades etc.) e abaixo da Constituição.

A Convenção 169, em seus artigos, faz um conjunto de referências às práticas dos povos e comunidades como pauta de interpretação do direito nacional que deve ser observado pelas autoridades brasileiras implicadas com a 14 SHIRAISHI NETO, Joaquim. Reflexão do Direito das “Comunidades Tradicionais” a partir das declarações e convenções internacionais. Hiléia. Revista de Direito Ambiental da Amazônia, v. 2, n. 3, Universidade do Estado do Amazonas, 2006. 15 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de preto, terras de santo, terras de índios: uso comum e conflito. In: CASTRO, Edna; HÉBETE, Jean (Orgs.). Na trilha dos grandes projetos: modernização e conflito na Amazônia. Belém: UFPA/NAEA, 1989. p. 172-173.16 Está-se a excluir deste marco aqui estudado o tratamento constitucional conferido expressamente e já com consolidação administrativa de implementação, comunidades remanescentes de quilombos e aos índios.17 HC 87585; RE 349703; RE 466343.

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implementação dos direitos ali relacionados. Serão avaliadas com mais vagar as disposições normativas que estão assim insculpidas.

No artigo 8º, item 1, estabeleceu-se que: Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário.

A fórmula normativa é sintética e bastante clara: a legislação nacional não poderá ser aplicada aos povos e comunidades tradicionais, sem que se tenha em apropriada linha de conta seus costumes ou seu direito consuetudinário, expressões às quais preferem-se práticas jurídicas, como se vem averbando.

O que se encontra, aqui, destarte, é a pauta principiológica fundamental para a aplicação do direito nacional (minerário, civil, ambiental etc.) aos povos e comunidades tradicionais. Tal artigo figuraria cabidamente em qualquer norma de introdução à legislação, tal a nossa Lei de Introdução ao Código Civil, dado seu (do artigo citado) caráter extremamente propedêutico de qualquer exercício de interpretação/aplicação normativa.

A Convenção 169 da OIT dedica uma parte inteira de seu texto às “Terras” dos povos interessados. Postura sintomática da centralidade do direito ao território de que também já se falou neste trabalho, agora o detalhamento é realmente bússola interpretativa da legislação nacional, e, mais que isso, pode ser perfeitamente aplicado aos povos e comunidades tradicionais da Amazônia.

O artigo 13 é composto de dois itens assaz importantes à compreensão de como o direito ao território é assegurado aos povos e comunidades tradicionais:

1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação.2. A utilização do termo "terras" nos Artigos 15 e 16 deverá incluir o conceito de territórios, o que abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma.

Este artigo, como se vê, destaca de modo bastante eloquente que as terras (em verdade territórios) têm para os povos e comunidades tradicionais. Tal importância está bem destacada no conceito que o Decreto nº 6.040/2007 adotou, sem dúvida, também inspirado neste tópico da Convenção 169/OIT.

Ademais há uma regra de interpretação (hermenêutica) bastante viva no item 2 deste artigo que extravasa os limites da Convenção, e se irradia sobre todo o direito nacional quando aplicado a povos e comunidades tradicionais: a ideia de terra engloba a de território, com todos os elementos que esta ideia contém.

Isto quer significar que quando o direito brasileiro usa o vocábulo terra em relação a uma demanda territorial dos povos e comunidades tradicionais, está tratando não somente de terra em sua acepção regularmente aplicada no direito agrário/fundiário, mas também, ou mais que isso, de território tradicional, o que

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implica um olhar renovado do aplicador do direito, em ordem a contemplar tal direito com todos os consectários que dele decorrem.

O item 1 do artigo 14 traz a seguinte formulação:

Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.

Duas diretrizes fundantes do direito ao território. A primeira assenta que se trata de reconhecer o direito dos povos e comunidades tradicionais ao território. Não se cuida de constituir tal situação, mas reconhecer, tão somente. A importância teleológica de tal preceito é praticamente importante e está sintonizada com o critério, outrossim trazido pela Convenção 169, no sentido da auto-definição como povo ou comunidade tradicional.

A prática jurídica dos povos e comunidades tradicionais demonstram que seu interesse realmente nunca foi o de constituírem juridicamente seus direitos sobre seus territórios, mas o de que tais direitos fossem singelamente reconhecidos. Benedicto Monteiro18 nos informa que:

(...) a ocupação das terras da Amazônia sempre se fez através dos rios, furos e igarapés, únicos meios de acesso durante séculos e únicos meios de escoamento de produção e trânsito de comércio, salvo raríssimas exceções de pequenas ferrovias e estradas de penetração. Assim mesmo sempre ligando um rio a outro rio.Dessa forma, existiam e ainda existem, ocupantes e posseiros nas margens desses rios, que nunca tiveram um registro civil ou um documento de identidade para provar sequer a existência jurídica da sua própria pessoa. Não podendo imaginar, portanto, que houvesse necessidade de um documento ou registro para provar que a terra onde nasceram e viveram, era de seus avós ou pais, e passaria a ser sua por direito de herança e ocupação.

Nos itens 2 e 3 do artigo 14, supracitado, encontram-se disposições voltadas às máquinas administrativa e legislativa estatais:

2. Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse.3. Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados.

Notabilizam-se as disposições convencionais em razão do expresso estabelecimento de normas voltadas a compelir os Estados convenentes a adotar medidas que tratem a demanda fundiária dos povos e comunidades tradicionais com a especificidade que lhe marca o cariz. Exsurge, com bastante acento, a necessidade

18 MONTEIRO, Benedicto Wilfredo. Direito Agrário e Processo Fundiário. Rio de Janeiro: PLG Comunicação, 1980. p. 150.

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de que os Estados operem transformações em suas ordens normativas a fim de implementar tais compromissos internacionais, que antes mesmo de o serem, são compromissos com o povo do qual o poder exercido pelo Estado emana.

A Convenção não cuida pura e simplesmente de Terras, disse-o ela mesma em um de seus dispositivos, já citado, expressamente. Uma interpretação açodada poderia sugerir isso, mas não é assim. E para debelar qualquer dúvida, a Convenção por meio do art. 15, composto de dois itens estabelece a interface necessária entre Territórios Tradicionais e Recursos Naturais:

Artigo 15

1. Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas terras deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito desses povos a participarem da utilização, administração e conservação dos recursos mencionados.

2. Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos do subsolo, ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes nas terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão participar sempre que for possível dos benefícios que essas atividades produzam, e receber indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades.

Conforme se disse acima, a Convenção 169 paira sobre diplomas normativos com estatura de norma ordinária, o caso do Código de Mineração, verbi gratia. Havendo prejuízo decorrente de atividade de mineração para algum povo ou comunidade tradicional - o que na Amazônia é muito comum - estes povos e comunidades serão titulares de todos os direitos contra empresas mineradoras, como indenizações por danos e prejuízos (artigos 27, 47, inciso VIII, e art. 60, §2º, do Código Minerário) e Participação no resultado da Lavra (art. 11, alínea “a” e parágrafos), bastando para tanto simples reconhecimento pelo Estado à luz da Convenção 169 da OIT.

Mas, afinal o que seriam os territórios tradicionais?

Para o Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, Territórios Tradicionais são “os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária (...)”. Registre-se que esta definição figura ao lado dos conceitos de Povos e Comunidades Tradicionais e de desenvolvimento sustentável.

A inserção deste último no Decreto Federal nº 6.040/2007 é o resultado do que Lima e Pozzobon19 identificaram como a incorporação, pelos povos e 19 LIMA, Deborah; POZZOBON, Jorge. Amazônia socioambiental: sustentabilidade ecológica e diversidade social. Estudos avançados, São Paulo, v. 19, n. 54, p. 45, ago. 2005 . Disponível em: <http://www.scielo.br >. Acesso em: 28 abr. 2009.

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comunidades tradicionais, da “marca ecológica às suas identidades políticas como estratégia para legitimar novas e antigas reivindicações”. Quanto ao conceito de Povos e Comunidades Tradicionais, é o resultado do que se pode chamar de consenso mínimo acerca da ideia ali referida.

Tal como na Convenção 169 da OIT, a demanda central, nas discussões que antecederam o Decreto Federal em referência, voltou-se à garantia do direito sobre o território tradicional. Todas as discussões que antecederam e construíram a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) têm como epicentro o tema da regularização fundiária dos territórios ou coisa que o valha. Garantir o território das comunidades e povos, então, é a primeira e primordial tarefa do Estado brasileiro, pois assegura a fruição dos recursos naturais e a afirmação e exercício da identidade destes povos.20

No que tange à Política dos Povos e Comunidades Tradicionais é importante não perder de vista que se trata de autêntica macropolítica pública. E como tal, dela devem participar, ativamente, Governo (como coordenador e executor), Sociedade Civil (especialmente a organizada, como colaboradora e fiscalizadora do andamento e das metas da Política) órgãos do Estado: Ministério Público etc. (como fiscais dos procedimentos adotados pelo Governo e eventualmente colaborador), Empresas implicadas na garantia ou violação dos direitos que tal política visa garantir, e, por último, mas não menos importante, bem ao contrário, o público alvo da Política, os Povos e Comunidades Tradicionais, pois ninguém melhor que eles pode dizer do que tais povos e comunidades necessitam.

Colhem-se no artigo art. 3º os objetivos específicos da PNPCT:

I - garantir aos povos e comunidades tradicionais seus territórios, e o acesso aos recursos naturais que tradicionalmente utilizam para sua reprodução física, cultural e econômica;(...)XV - reconhecer, proteger e promover os direitos dos povos e comunidades tradicionais sobre os seus conhecimentos, práticas e usos tradicionais;

Ao constituírem objetivos, sem dúvida, são os parâmetros para atingirem-se metas reais acerca de tais direitos. Não se atingem os dois objetivos citados, porém, sem conjugá-los. O território tradicional precisa ser continuamente garantido por legisladores e aplicadores das normas que asseguram direitos aos povos e

20 ALMEIDA, Roberto Alves de; COSTA FILHO, Aderval; MELO, Paula Balduíno. Comunidades Tradicionais e as Políticas Públicas. Disponível em: <http://www.mds.gov.br>. Acesso em: 20 fev. 2009.

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comunidades tradicionais,21 que devem reconhecer como determinado pela Convenção 169 da OIT as práticas jurídicas das comunidades.

O Decreto Federal nº 6.040/2007, enquanto pauta privilegiada de reconhecimento dos direitos, está em perfeita sintonia com a ideia até aqui defendida de que o direito produzido pelos povos e comunidades tradicionais da Amazônia tem o condão de adequar a aplicação do direito nacional à região amazônica, o que traz a necessidade de que os operadores do direito na Amazônia estejam imbuídos de maior refinamento hermenêutica na aplicação do direito agrário aos povos e comunidades tradicionais.

É válido o registro final de que o direito dos povos e comunidades tradicionais advém de fonte que o Estado brasileiro se negava a recusar: a vida dos que lidam com a terra e dela vivem como se dela fizessem organicamente parte.22

Ocorre que a Constituição brasileira de 1988 e a legislação que a secundou estão fundadas no pluralismo jurídico, que oferecem instrumentos de reconhecimento e libertação, conferindo valor jurídico a normas não produzidas pelo Estado.23

3 PARA ALÉM DE DIREITOS POSITIVADOS: PRÁTICAS JURÍDICAS DOS POVOS E COMUNIDADES COMO MARCO HERMENÊUTICO DO DIREITO AGRÁRIO NA AMAZÔNIA

Conforme se viu nos dois itens anteriores deste trabalho o Direito na Amazônia não pode ser aplicado nem produzido de maneira idêntica ao resto do país. Poder-se-ia apresentar aqui razões de diversas ordens para que tudo seja assim. Basta uma, porém: a vida reclama que o direito a ela se adapte e não o contrário. E assim deve ser.

É por isso que tanta estranheza causa aos povos e comunidades tradicionais tão extenso repertório de normas escritas a tutelar até indevassáveis escaninhos da vida. O direito que as comunidades vivenciam é o que efetivamente entre elas opera, sejam por razões de ordem cultural ou técnica.

Desta forma, se por uma lado é assaz importante a positivação de normas acerca dos direitos dessas comunidades, sem dúvida alguma a riqueza normativa de 21 Afinal, alguns posicionamentos públicos de setores conservadores da sociedade brasileira, na defesa de seus históricos privilégios, combatem a emergência político-social de algumas comunidades tradicionais, o que pode vir a tornar-se deletério dos interesses destas comunidades. Pode-se falar, a modo de exemplo, da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3239, ajuizada pelo antigo Partido da Frente Liberal (PFL, agora Partido Democratas – DEM) que tenta retirar do ordenamento jurídico o Decreto Federal nº 4.887/2003 que garante a demarcação e titulação dos territórios tradicionais quilombolas. Apesar de ser direito assegurado aos quilombolas desde 1988, ano em que foi promulgada a atual Constituição Federal (o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias assegurou tal direito), a demarcação e titulação dos territórios quilombolas somente contou com marco jurídico verdadeiramente viabilizador, a partir de 2003, com a edição do Decreto em questão. Isto indica que a visibilidade pela qual estas comunidades e povos lutaram está sempre ameaçada por articulações que tentam reinvisibilizar tais comunidades e suas demandas, isto é, lançá-las novamente em um ostracismo social e político, estorvando a luta por seus direitos, a luta por sua vida, neste caso específico, a luta pelo direito de ser quilombola e ter reconhecido como seu o território tradicional que habitam.22 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Alfa Ômega, 1994.23 BENATTI, José Heder. Posse Agroecológica e Manejo Florestal. 1. ed. 5. reimp. Curitiba: Juruá, 2008.

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tais diplomas reside nas práticas jurídicas comunitárias que lhes informam. Assim, apesar de já contarem com várias leis municipais que asseguram a proteção aos babaçuais, as quebradeiras de coco babaçu continuam a ter postura muito crítica diante dessa legislação e continuam a defender seu direito de acesso aos babaçuais e sua conservação com fundamento em seu fazer cultural e no modo como entendem o direito a este recurso natural.

Quando se pensa o modelo de regularização fundiária na Amazônia, não se pode prescindir das práticas jurídicas das comunidades tradicionais em relação ao território/terra. Neste sentido, quando se analisa a proposta federal de regularização fundiária para a Amazônia, percebe-se, sem demora, que a Lei tenta conectar-se ao modo que o homem amazônida percebe a terra e sobre ela atua e muito disso é e será fruto da relação que os povos e comunidades tradicionais estabelecem com o território.

O direito vivido pelas comunidades tradicionais é tão importante, ou até mais que o direito positivo, a ponto de Luiz de Lima Stefanini24 asserir que:

Nesta população amazônica, dispersa pelas matas, a lei, por mais humana que seja, é observada como uma inimiga, posto que altera a harmonia de um direito vivido e seguido por todos, esteriotipado que está no âmago do caboclo amazônico.Na verdade, a legislação agrária brasileira, com seus subidos méritos sócio-agrários, surgiu no revolver de uma realidade agrária nordestina e do sul do país, omitindo aquela realidade amazônica.

Resta evidente, então, que, em tempos nada alvissareiros, em termos de eficácia do Direito, este ramo do conhecimento volte sua atenção para modelos normativos bem sucedidos, como o dos povos e comunidades tradicionais.

Nos marcos de um Estado pluriétnico, como o brasileiro, isto que à primeira vista poderia parecer uma opção, em verdade constitui autêntico imperativo. De certa maneira, o Estado brasileiro ao ratificar a Convenção 169 da OIT e ao editar o Decreto Federal nº 6.040 está cumprindo sua tarefa25 no sentido de reconhecer que há fontes do direito fora do direito estatal e que devem ser levadas em conta para o fim de tutelar direitos específicos.

Pensar adequadamente o direito dos povos e comunidades tradicionais, com as diferenças que demarcam suas práticas jurídicas do direito nacional ajuda a entender uma necessidade tão antiga quanto à aplicação de normas neste país de adequar a legislação pensada para operar uniformemente, o que a toda evidência não daria certo em país de dimensões continentais como o Brasil, por isso mesmo marcado por diferenças culturais que a Constituição Federal estabeleceu devam ser respeitadas, pois ínsitas à formação do país e do povo brasileiro.

24 STEFANINI, Luiz de Lima, Op. cit., 1984. p. 53.25 A despeito da incorporação da Convenção 169 da OIT no direito brasileiro, algumas entidades ligadas aos povos e comunidades tradicionais, aí incluídos indígenas e quilombolas, têm questionado o cumprimento das normas convencionais pelo Estado brasileiro. Ver: Entidade quilombola denuncia descumprimento de convenção internacional. Disponível em: <http://www.amazonia.org.br/noticias/noticia.cfm?id=291530>. Acesso em: 20 nov. 2009 e Indígenas encaminham à OIT avaliação sobre aplicação da Convenção 169 no Brasil. Disponível em: <http://www.amazonia.org.br/noticias/noticia.cfm?id=28378>. Acesso em: 20 nov. 2009.

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Parece fora de dúvida, então, que o direito agrário precisa sintonizar-se com o direito dos povos e comunidades tradicionais e daí colher elementos que lhe permitam redimensionar seu foco de atuação e sua forma de atuar na Amazônia. Não se pode esperar que normas de direito agrário possam aplicar-se sem qualquer adequação à realidade amazônica.

Resta evidente, ainda, que o direito brasileiro, conforme visto, contempla a possibilidade de que as práticas jurídicas dos povos e comunidades tradicionais sejam pautas hermenêuticas do direito nacional quando aplicados àqueles povos e comunidades, sobretudo no que diz respeito ao direito ao território, embora tal não exclua a possibilidade de que a ideia central defendida neste trabalho possa ser aplicada a outros direitos.

O saldo hermenêutico positivo, decorrente de maior eficácia do direito agrário, sintonizado este com a realidade amazônica, autoriza dizer que os direitos dos povos e comunidades tradicionais tornam-se efetivamente diretrizes interpretativas do direito agrário na Amazônia, o que corrobora a ideia de que o direito deve sintonizar-se como o povo, e seus interesses, ao qual serve, revelação máxima da soberania popular.

À GUISA DE CONCLUSÃO

O estudo do Direito na Amazônia, a partir de uma perspectiva de eficácia, vai levar inevitavelmente a se pensar num Direito Amazônico, nos moldes sugeridos por Alcir Gursen de Miranda. Não parece ser necessário criar nova disciplina jurídica, mas agrupar formulações teóricas e iniciativas práticas em torno dessa ideia que quer significar, singelamente, que o Direito precisa ver e ouvir o homem amazônida antes de formular normas que a ela e ele devam ser aplicadas. Ou, quando menos, já tendo sido criadas, estar conscientes da provável necessidade de relativizá-las ante uma norma que não contemple a realidade amazônica.

O fio condutor da proposta, ao que se pode ver, hodiernamente, são as práticas jurídicas dos povos e comunidades tradicionais. Não há dúvida de que tais práticas, devendo ser levadas em conta, formalmente pelo Estado brasileiro, constituem útil pauta de interpretação do direito agrário na Amazônia, na perspectiva, sobretudo do direito ao território dos povos e comunidades tradicionais, o que está decididamente regulado pela Convenção 169 da OIT e pelo Decreto Federal nº 6.040/2007, que contém disposições que autorizam a falar nessa relação de normas, fitando a dinamização da eficácia das normas de direito agrário na Amazônia.

A discussão sobre o território tradicional, as práticas jurídicas das comunidades e a legislação analisada neste estudo permitem concluir que o direito agrário na Amazônia pode e deve valer-se desse arcabouço normativo citado para o fim de adequar-se à realidade amazônica uma vez que pensado, muitas vezes, em descompasso com a realidade a que deva aplicar-se, o que compele o teórico e o prático do direito na Amazônia a abandonar cânones positivistas e passar a uma compreensão plural do problema jurídico e das demandas por regulação normativa eficiente.

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