Argumentos Necessários, Quem é o interesse nacional?...a hegemonia e a noção clara da hegemonia...

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28-02-2019 PEDRO GOMES . Sem título (2000) (fotos de aAlberto Mayer) . Museu de Arte Contemporânea de Elvas, até 31 de Dezembro Política externa Sobre Argumentos Necessários, de Augusto Santos Silva Quem é o interesse nacional? O ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva publicou recentemente um livro que sublinha uma realidade perene: a existência de uma espécie de «consenso centrista» sobre a política externa portuguesa. O que explica essa continuidade, que atravessa governos mais à esquerda e mais à direita, e quais as suas consequências? JOSÉ MANUEL PUREZA * D e todas as políticas de que se faz a política em Portugal, a política ex- terna é porventura aquela em que o consenso centrista se afigura mais robusto e resistente a alternativas. Diversos estudos têm sublinhado esse traço forte de continui- dade da política externa de Portugal, tomada uma espécie de invariância programática as- sente num pacto de regime permanente que consagra uma combinação entre a assunção da União Europeia como espaço de inser- ção estratégica do país e de um papel desta- cado no fortalecimento do laço transatlântico como desígnios nacionais acima da diferença entre partidos no exercício da governação. Augusto Santos Silva reitera esse consenso no livro Argumentos Necessários - Contribu- tos paru a Política Europeia e Externa de Por- tugal, publicado em 2018 pela Tinta da China Neste volume, reunindo as suas mais impor- tantes intervenções nos dois primeiros anos do seu mandato como ministro dos Negócios Estrangeiros, identifica as referências estrutu- rantes do que tem sido a política europeia e a política externa do actual governo. O que fica claro, e é aliás assumido pelo autor, é que es- sas referências têm um traço que lhes dá sen- tido: a continuidade das escolhas estratégicas feitas pelos intérpretes anteriores do que se designou - com especial ênfase nas chama- das políticas de soberania (política externa, política de defesa, política de segurança in- terna) - por arco da governação. A obra está organizada em cinco partes. Na primeira, é elencado o que Santos Silva considera deverem ser as orientações e os objectivos principais da política externa de PortugaL Na segunda, é analisado mais em detalhe o campo da integração europeia como área nuclear da nossa política externa A terceira parte incide sobre a cultura como foco específico da política externa A quarta parte lança um olhar sobre a importância da diáspora portuguesa pelo mundo como uma expressão singular dos desafios da mo- bilidade e da realidade migratória Por fim, a quinta parte debruça-se sobre recursos dife- renciadores da política externa portuguesa: a língua, a cooperação para o desenvolvi- mento e o estatuto dado à diplomacia dos di- reitos humanos. Pelo que diz e pelo que não diz, esta obra suscita uma questão fundamental: porque pára a mudança de políticas, resultante da diferença de inclinações ideológicas dos pro- tagonistas da governação, à porta da política externa? É a política externa um reduto de invariabilidade imune às mudanças na polí- tica interna? Santos Silva assume essa inva- riabilidade no essencial. Logo nas primeiras linhas afirma que a política europeia e a po- lítica externa «são políticas de Estado» e «são políticas de continuidade, informadas pela ge- ografia e a história nacionais e pelos interes- ses estratégicos a elas associados e desenvol- vidas harmoniosamente, nos seus traços fim- damentais, ao longo de todo o período demo- crritico». E clarifica: «a integração europeia, a ligação transatlântica, a cooperação com os países de língua portuguesa e o elo com as co- munidades portuguesas no estrangeiro» têm «um caráter verdadeiramente nacional», de- finindo, em conjunto, «o espaço comum em que o país se revê». E, dentro desse quadro de invariância, é missão de cada governo «pro- curar capitalizar e exprimir esta opção ma- tricial, adequando-a a cada ci cunstância e concretizando-a em iniciativas consistentes e produtivas». Europeísmo convicto e realpolitik Delimitado assim o quadro estratégico da política externa, Santos Silva defende que dentro dele deve registar-se uma interven- ção nacional marcada a um tempo pela am- bição de «reforço» e pelo pragmatismo da «plasticidade». No seu entender, «é do nosso interesse estratégico» reforçara ligação norte- -atlântica, quer no quadro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) quer no quadro bilateral com os Estados Unidos, assim como «Portugal quer estar na linha da frente da elaboração de r twostas positivas e mobilizadoras» de integração europeia, de- signadamente «a consolidação e o aperfei- çoamento da Zona Euro». E, para a gestão deste empenhamento activo nas duas fren- tes principais, Santos Silva defende a plasti- cidade do pragmatismo: «se me perguntam qual entendo dever ser o posicionamento es- tratégico de Portugal na Europa (..), se há de ser mais continental ou mais atlântico, mais apostado em solidariedades de sul ou em liga- ções aos espaços centrais mais amigo da co- esão ou da competitividade, motivando mais as cumplicidades de periferias ou a confiança nas hegemonias "benévolas': eu respondo que seria um erro acantonar num só lado de cada uma destas dicotomias um país cujo principal trunfo histórico, cujo principal recurso con- temporâneo é exactamente a capacidade de jogar com elas Advogo, pois plasticidade no nosso posicionamento europeu». Europeísmo convicto articulado com realpolitik - eis a síntese definidora do que deve ser para San- tos Silva a nossa política externa Regressemos então à nossa pergunta de partida: é a política externa, por definição, um reduto de invariabilidade imune às mu- danças na política interna? Em Portugal, a política externa de um governo de direita não se distingue no essencial da política ex- terna de um governo de esquerda? A ques- tão está longe de ser um exclusivo portu- guês. E a escassez de respostas articuladas também não. Precisamente numa das raras excepções a esse vazio de reflexão sobre as formas e os conteúdos de uma política ex- terna de esquerda, o filósofo político Michael Walzertlt definiu o que chamou posição de base (default posítion) da esquerda: «a me- lhor política externa é uma boa política in- terna». Entende-se este enunciado não no sentido da apologia do isolacionismo mas sim como entendimento de que a política ex- terna há-de prolongar «lá fora» os referentes

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28-02-2019

PEDRO GOMES . Sem título (2000) (fotos de aAlberto Mayer) . Museu de Arte Contemporânea de Elvas, até 31 de Dezembro

Política externa

Sobre Argumentos Necessários, de Augusto Santos Silva

Quem é o interesse nacional? O ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva publicou recentemente um livro que sublinha uma realidade perene: a existência de uma espécie de «consenso centrista» sobre a política externa portuguesa. O que explica essa continuidade, que atravessa governos mais à esquerda e mais à direita, e quais as suas consequências?

JOSÉ MANUEL PUREZA *

De todas as políticas de que se faz a política em Portugal, a política ex-terna é porventura aquela em que

o consenso centrista se afigura mais robusto e resistente a alternativas. Diversos estudos têm sublinhado esse traço forte de continui-dade da política externa de Portugal, tomada uma espécie de invariância programática as-sente num pacto de regime permanente que consagra uma combinação entre a assunção da União Europeia como espaço de inser-ção estratégica do país e de um papel desta-cado no fortalecimento do laço transatlântico como desígnios nacionais acima da diferença entre partidos no exercício da governação.

Augusto Santos Silva reitera esse consenso no livro Argumentos Necessários - Contribu-tos paru a Política Europeia e Externa de Por-tugal, publicado em 2018 pela Tinta da China Neste volume, reunindo as suas mais impor-tantes intervenções nos dois primeiros anos do seu mandato como ministro dos Negócios Estrangeiros, identifica as referências estrutu-rantes do que tem sido a política europeia e a política externa do actual governo. O que fica claro, e é aliás assumido pelo autor, é que es-sas referências têm um traço que lhes dá sen-tido: a continuidade das escolhas estratégicas feitas pelos intérpretes anteriores do que se designou - com especial ênfase nas chama-das políticas de soberania (política externa, política de defesa, política de segurança in-terna) - por arco da governação.

A obra está organizada em cinco partes. Na primeira, é elencado o que Santos Silva considera deverem ser as orientações e os objectivos principais da política externa de PortugaL Na segunda, é analisado mais em detalhe o campo da integração europeia como área nuclear da nossa política externa A terceira parte incide sobre a cultura como foco específico da política externa A quarta parte lança um olhar sobre a importância da diáspora portuguesa pelo mundo como uma expressão singular dos desafios da mo-bilidade e da realidade migratória Por fim, a quinta parte debruça-se sobre recursos dife-renciadores da política externa portuguesa: a língua, a cooperação para o desenvolvi-mento e o estatuto dado à diplomacia dos di-reitos humanos.

Pelo que diz e pelo que não diz, esta obra suscita uma questão fundamental: porque

pára a mudança de políticas, resultante da diferença de inclinações ideológicas dos pro-tagonistas da governação, à porta da política externa? É a política externa um reduto de invariabilidade imune às mudanças na polí-tica interna? Santos Silva assume essa inva-riabilidade no essencial. Logo nas primeiras linhas afirma que a política europeia e a po-lítica externa «são políticas de Estado» e «são políticas de continuidade, informadas pela ge-ografia e a história nacionais e pelos interes-ses estratégicos a elas associados e desenvol-vidas harmoniosamente, nos seus traços fim-damentais, ao longo de todo o período demo-crritico». E clarifica: «a integração europeia, a ligação transatlântica, a cooperação com os

países de língua portuguesa e o elo com as co-munidades portuguesas no estrangeiro» têm «um caráter verdadeiramente nacional», de-finindo, em conjunto, «o espaço comum em que o país se revê». E, dentro desse quadro de invariância, é missão de cada governo «pro-curar capitalizar e exprimir esta opção ma-tricial, adequando-a a cada ci►cunstância e concretizando-a em iniciativas consistentes e produtivas».

Europeísmo convicto e realpolitik

Delimitado assim o quadro estratégico da política externa, Santos Silva defende que

dentro dele deve registar-se uma interven-ção nacional marcada a um tempo pela am-bição de «reforço» e pelo pragmatismo da «plasticidade». No seu entender, «é do nosso interesse estratégico» reforçara ligação norte--atlântica, quer no quadro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) quer no quadro bilateral com os Estados Unidos, assim como «Portugal quer estar na linha da frente da elaboração de rtwostas positivas e mobilizadoras» de integração europeia, de-signadamente «a consolidação e o aperfei-çoamento da Zona Euro». E, para a gestão deste empenhamento activo nas duas fren-tes principais, Santos Silva defende a plasti-cidade do pragmatismo: «se me perguntam qual entendo dever ser o posicionamento es-tratégico de Portugal na Europa (..), se há de ser mais continental ou mais atlântico, mais apostado em solidariedades de sul ou em liga-ções aos espaços centrais mais amigo da co-esão ou da competitividade, motivando mais as cumplicidades de periferias ou a confiança nas hegemonias "benévolas': eu respondo que seria um erro acantonar num só lado de cada uma destas dicotomias um país cujo principal trunfo histórico, cujo principal recurso con-temporâneo é exactamente a capacidade de jogar com elas Advogo, pois plasticidade no nosso posicionamento europeu». Europeísmo convicto articulado com realpolitik - eis a síntese definidora do que deve ser para San-tos Silva a nossa política externa

Regressemos então à nossa pergunta de partida: é a política externa, por definição, um reduto de invariabilidade imune às mu-danças na política interna? Em Portugal, a política externa de um governo de direita não se distingue no essencial da política ex-terna de um governo de esquerda? A ques-tão está longe de ser um exclusivo portu-guês. E a escassez de respostas articuladas também não. Precisamente numa das raras excepções a esse vazio de reflexão sobre as formas e os conteúdos de uma política ex-terna de esquerda, o filósofo político Michael Walzertlt definiu o que chamou posição de base (default posítion) da esquerda: «a me-lhor política externa é uma boa política in-terna». Entende-se este enunciado não no sentido da apologia do isolacionismo mas sim como entendimento de que a política ex-terna há-de prolongar «lá fora» os referentes

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PEDRO GOMES . Sem título (2000) (fotos de aAlberto Mayer) . Museu de Arte Contemporânea de Elvas,

até 31 de Dezembro

ideológicos e valorativos essenciais das esco-lhas de política interna Assim, a política ex-terna de um governo de esquerda pressupõe que se repense criticamente o conceito es-tratégico nacional, encarando-o como aquilo que ele é: a projecção externa do projecto de sociedade que norteia as políticas nacionais. Por isso, a política externa de um governo de esquerda será sempre uma política assumi-damente normativa, ou seja, comprometida com uma ordem de valores emancipatória materializada na assunção da promoção dos direitos humanos, da paz, da segurança hu-mana e da justiça ecológica como primados e não como tópicos de segunda ordem.

Essa revisão do conceito estratégico nacio-nal, pressuposto de uma política externa ins-crita numa política geral de esquerda, supõe um método e aponta para uma substância política O método é o da desreificação das noções de interesse nacional e de Estado, ou seja, o do combate à assunção ideológica de que estas noções abstractas são, afinal, coi-sas concretas e excluídas da disputa dos seus conteúdos políticos específicos. E, por isso, a substância política há-de decorrer de um posicionamento de distância crítica face aos mecanismos de configuração hegemónica da ordem internacional.

Uma enunciação de política externa que assenta no entendimento tradicional do in-teresse nacional, reificando-o como se fosse uma caixa negra, condena-se a si mesmo ao conservadorismo e ao cinismo da realpolitík A verdade é que o chamado interesse nacio-nal é sempre para alguém e para algum pro-pósito, para parafrasear o teórico crítico das Relações Internacionais Robert Cox[2]. Ou seja, não é uma realidade neutra e anuladora do conflito entre os interesses dos diferentes grupos sociais, mas sim a reificação, em cada momento, da hegemonia da agenda das clas-ses dominantes, ou seja, do seu poder para que o resto da sociedade represente como sua - ou, pelo menos, como benéfica para si - essa agenda

No concreto, a retórica que usa essa abs-tracção que é o «interesse nacional», como se ele fosse algo univocamente partilhado por um colectivo indiferenciado chamado Portu-gal, tem servido de mecanismo legitimador de escolhas que configuram a sociedade por-tuguesa de uma forma e não de outra. A in-vocação do suposto interesse nacional para estar na linha da frente da construção euro-peia, por exemplo, tem sido um eficaz dis-positivo de legitimação das políticas decor-rentes do Tratado Orçamental e, por conse-guinte, da justificação de que não há recur-sos para a necessária qualificação de servi-ços públicos ou para o resgate de direitos so-ciais suprimidos no quadro da intervenção da Troika. É também o interesse nacional que é convocado para marcar como desíg-nio a filiação do país e das suas forças arma-das numa coligação militar ofensiva como é a OTAN, associando ao dito interesse nacio-nal supostas estabilidades pesadas da Histó-

ria e da Geografia. Ora, na verdade, a assun-ção como desígnio nacional do alinhamento externo de Portugal com uma «construção europeia» que tem no ordoliberalismo a sua ordem de valores natural e insubstituível e que vê na OTAN o garante último de uma perspectiva civilizacional não é desígnio, é escolha É, em última análise, a escolha de um modelo social com contenção de direitos e de rendimentos concentrada nas camadas populares e na pequena burguesia e com re-forço do poder social e económico do capi-tal financeiro que, para o efeito, cultiva ha-bilmente uma relação de intimidade com o poder político. E é escolha de pertença a um hemisfério civilizacional com o traço da colo-nialidade na sua relação com o mundo e da solução armada como inerente a esse traço.

A visão desdiferenciadora (isto é, que mascara a diversidade interna) e neutra do interesse nacional não é exclusiva A ela se contrapõe a visão do interesse nacional como um conceito disputado. De acordo com uma das principais referências de um pensamento crítico sobre política externa, Randolph Persaud[31, o interesse nacional projectado na política externa de um Estado não pode deixar de ser percebido como uma construção histórica específica resultante do confronto de perspectivas contraditórias das forças sociais envolvidas na luta ideológica,

social e política A identificação desses inte-resses sociais diferenciados que disputam a hegemonia e a noção clara da hegemonia conseguida por uns e não por outros tem de ter consequências no desenho de conteúdos da política externa Sim, o que se joga nos enunciados de política externa - como os que Augusto Santos Silva sintetiza nos com-promissos com a construção europeia e com o laço norte-atlântico - é a expressão da he-gemonia de um modelo de sociedade. E essa hegemonia é disputada

A quem serve a «imaginação do centro»?

Vejamos o caso concreto do «desígnio» da participação de Portugal na linha da frente da integração europeia Desde que se tor-nou Estado-membro da então Comunidade Europeia, em meados dos anos oitenta do século passado, Portugal tem vivido a dia-léctica entre a imaginação do centro (para usar a expressão tão sugestiva de Boaven-tura de Sousa Santos) e a realidade da peri-ferização. A imaginação do centro tem sido,

desde então, o leitmotiv do discurso do «eu-ropeísmo convicto» e do monopólio por este reivindicado do apoio ao «processo de cons-trução europeia». Mais que tudo, o discurso do europeísmo convicto alimenta-se da reifi-cação de um mito - o de um país pobre que se torna igual aos países ricos por conviver de perto com eles («a Europa connosco»). Ao longo do tempo, esta operação ideoló-gica teve nas metáforas da «locomotiva», do integrante da «linha da frente» e do «bom aluno» dispositivos eficazes na mobilização de apoio social alargado.

Essa operação de conquista de hegemo-nia através da imaginação do centro tem um registo moralista indisfarçável. Sobre-tudo depois da capitulação imposta a Ate-nas, o discurso dos europeístas convictos está povoado de chamamentos das econo-mias periféricas como a portuguesa a uma exibição pública de virtudes, sendo a mais importante de todas a de «remarmos to-dos para o mesmo lado» no cumprimento pleno - e, de preferência, mais que pleno -dos ditames do Eurogrupo. O que essa lin-guagem moralista dos europeístas convic-tos evidencia é que a relação de poder en-tre centro e periferia no espaço europeu se passou a fazer cada vez mais da exigên-cia de que os governos das periferias de-monstrem obediência - se não mesmo en-tusiasmo... - na moldagem das relações so-ciais nos seus países de acordo com a disci-plina canónica dos gastos públicos querida às elites europeias. A ilusão de uma partici-pação igual das periferias na linha da frente da União Europeia traduz-se cada vez mais nesse exercício de excessiva exibição da vir-tude e na veemência com que cada perife-ria castiga as outras periferias por se afasta-rem do cânone do centro.

Ora, esse mito de um Portugal-feito-cen-tro-por-convivência-com-o-centro, foi e é um instrumento ao serviço de um modelo de desenvolvimento que perpetua as ra-zões mais perenes do atraso estrutural do país: uma distribuição marcadamente desi-gual da riqueza e uma cultura rentista e alér-gica ao risco por parte das elites económicas e empresariais. Nesse paradoxo que é uma modernização conservadora consiste o re-verso periférico concreto da idealização do centro. E sobram as perguntas: por que ra-zão é esta modernização conservadora um desígnio nacional? Quem e como determina que seja o interesse particular de alguns seja o interesse dito como nacional? E há-de a es-querda, na definição da política externa, jun-tar-se aos defensores desse interesse feito desses interesses? o

* Professor de Relações Internacionais na Faculdade

de Economia da Universidade de Coimbra e

investigador do CES-UC. Deputado.

[1] Michael Walzer, «A foreign policy for the left», DissQnt, Primavera de 2014.

[2] Robert Cox, «Social forces, states and world orders: beyond International Relations theory»,

Millennium, vol. 10, n.° 2, 1981, pp. 126-155. [3] Randolph Persaud, Counter-hegemony and foreign policy: the dialectics of marginalized and global forces in Jamaica, State University of New York Press, Albany, 2001.

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POLÍTICA EXTERNA

Quem é o interesse nacional?

JOSÉ MANUEL PUREZA

MONDE • EDIÇÃO PORTUGUESA

ue MENSAL . II SÉRIE . N.° 148. FEVEREIRO 2019 . 4,90 EUROS . DIRECTORA: SANDRA MONTEIRO

Os riscos de gerir a divida pública no espartilho da zona euro EUGÉNIA PIRES

Luta de classes em França SERGE HALIMI e PIERRE RIMBERT

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O medo. Não o de perder uma eleição, o de não conse-guir «reformar» ou o de ver cair os activos que se tem em Bolsa. O medo da insurreição, da revolta, da desti-

tuição. Há meio século que as elites francesas já não experimen-tavam este tipo de sentimento. No sábado dia 1 de Dezembro de 2018, de repente o medo estarreceu algumas consciências. «O que é urgente é que as pessoas regressem às suas casas», afirma, assustada, Ruth Elkrief, a jornalista estrela da BFM TV. Nos ecrãs do seu canal sucedem-se as imagens de «coletes amarelos» bem determinados a conseguir uma vida melhor.

Alguns dias mais tarde, a jornalista de um diário próximo do patronato, o L'Opinion, revela num estúdio de televisão a que ponto a borrasca foi forte: «Todos os grandes grupos vão dis-tribuir prémios, porque realmente a dada altura eles tiveram medo que lhes cortassem as cabeças. Ah sim, as grandes em-presas, quando foi aquele sábado terrível, com todos os estra-gos causados, telefonaram ao patrão do Medef [Movimento das Empresas de França], Geoffrey Roux de Bézieux e disse-ram-lhe: "Tu cedes em tudo, porque senão..." Elas sentiram-se ameaçadas, fisicamente».

Sentado ao lado da jornalista, o director do instituto de son-dagens refere-se, por sua vez, aos «grandes patrões, efectiva-mente muito inquietos», e a um ambiente «que se assemelha ao que eu li sobre 1936 ou 1968. Há um momento em que se diz: "É preciso saber ceder largas somas para não perder o es-sencial"»[1]. Bendit Frachon, dirigente da Confederação Geral do• Trabalho (CGT), lembrava que, durante a Frente Popular, ao longo das negociações com o primeiro-ministro, que se se-guiram a uma explosão de greves imprevistas com ocupação de fábricas, os patrões de facto haviam «cedido em todos os pontos».

Este género de decomposição da classe possidente é raro, mas tem como corolário uma lição que atravessou a história: os que tiveram medo não perdoam nem aos que os assusta-ram nem aos que foram testemunhas do seu medo[2]. O ma vimento dos «coletes amarelos» = duradouro, inatingível, sem líder, que fala uma língua desconhecida das instituições, tenaz apesar da repressão, popular apesar da mediatização malevo-lente das depredações — provocou, portanto, uma reacção rica em precedentes. Nos instantes de cristalização social, de luta de classes sem artifícios, todos têm de. escolher o seu campo. O centro desaparece, o pântano seca. Então, mesmo os mais liberais, os mais distintos, esquecem as dissimulações do viver em comum.

Apavorados, perdem o sangue frio, tal como Alexis de Toc-queville quando evocava nas suas Recordações os dias de Junho de 1848. Os operários parisienses reduzidos à miséria foram nessa altura massacrados pelas tropas que a burguesia no po-der, persuadida de que «só o canhão pode resolver as questões [do] século» [3], arremessou contra eles. Descrevendo o dirigente socialista Auguste Blanchi, Tocqueville esquece-se então das sua boas maneiras: «O ar doente, malévolo, imundo, uma palidez desagradável, o aspecto de um corpo bafiento (...). Parecia ter vivido num esgoto e estar a sair dele. Tinha em mim o efeito de uma serpente a que se aperta a cauda». » p. 20

[1] «L'info du vrai», Canal Plus, 13 de Dezembro de 2018. [2] Cf. Louis Bodin e Jean Touchard, Front populaire, 1936, Armand Colin, Paris, 1961. 131 Auguste Romieu, Le Spectre rouge de 1852, Ledoyen, Paris, 1851, citado em Christophe Ippolito, «La fabrique du discours politique sur 1848 dans L'Éducation sentimentale», Op. Cit., n.° 17, Pau, 2017.

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