ARIÉS, Philippe_O Homem Perante a Morte.

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O homem perante a morte

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BIBLIOTECA UNIVERSITRIA

Philippe Aries

O HOMEM PERANTE A MORTETtulo original: LHomme devamt La Mort

Traduo de Ana Rahaa Traduo portuguesa de P. E. A.

Capa: estdios P. E. A.

Editions du Seuil. 1977

Direitos reservados por Publicaes Europa-Amrica. Lda.

Nenhuma parte desta publicao pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer processo, electrnico, mecnico ou fotogrfico, incluindo fotocpia, xerocpia ou gravao, sem autorizao prvia e escrita do editor. Exceptua-se naturalmente a transcrio de pequenos textos ou passagens para apresentao ou crtica do livro. Esta excepo no deve de modo nenhum ser interpretada como sendo extensiva transcrio de textos em recolhas antolgicas ou similares donde resulte prejuzo para o interesse pela obra. Os transgressores so passveis de procedimento judicial

Editor: Francisco Lyon de Castro

PUBLICAES EUROPA-AMRICA, LDA.

Apartado 8

2726-901 MEM MARTINS

PORTUGAL

[email protected]

Edio n.: 106047/7453 Agosto de 2000

Execuo tcnica: Grfica Europam. Lda.. Mira-Sintra - Mem MartinsNDICE

Prefcio

LIVRO I

O TEMPO DOS QUE JAZEM

Primeira parte: Todos morremos 13

1. A morte domada 13

Adivinhando a chegada da morte 14

Mors repentina 19

A morte excepcional do santo 22

Jazendo no leito: os ritos familiares da morte 23

A publicidade 29

As sobrevivncias: a Inglaterra do sculo xx 30

A Rssia dos sculos xix-xx 31

Os mortos dormem 33

No jardim florido 36

A resignao ao inevitvel 38

A morte domada 40

2. Ad sanctos; apud ecclesiam 41

A proteco do santo ... ... 41

O subrbio cemiterial. Os mortos intra muros 45

O cemitrio: grmio da Igreja 53

A sepultura maldita 56

O direito: proibido enterrar dentro da igreja. A prtica:

a igreja um cemitrio 60

A galeria e o ossrio ou carneiro 66

As grandes fossas comuns 73

Os ossrios 77

O grande cemitrio a descoberto 79

Asilo e lugar habitado. Grande praa e lugar pblico 80

A igreja substitui o santo. Que igreja? 91

Dentro da igreja, onde? 98

Quem na igreja? Quem no cemitrio? Um exemplo de Toulouse 104

Um exemplo ingls 113

Segunda parte: A minha morte 117

3. A hora da morte. Memria de uma vida 117

A escatologia, indicador de mentalidades 117

O ltimo Advento 119

O juzo no fim dos tempos. O livro da vida 122

O Julgamento no fim da vida 129

Os temas macabros 133

A influncia da pastoral missionria? Das grandes mortalidades? 149

Um amor apaixonado pela vida 154

A avarita e a natureza-morta. O coleccionador 159

O fracasso e a morte 165

4. Garantias para o alm 167

Os ritos arcaicos: a absolvio, o luto desmedido, a retirada do corpo 167

A orao pelos mortos 174

A antiga liturgia: a leitura dos nomes 176

O receio da condenao. Purgatrio e espera 180

A missa romana: uma missa dos mortos 183

As oraes da homilia 185

Uma sensibilidade monstica: o tesouro da Igreja 186

Os novos ritos da segunda Idade Mdia: o papel do clero 190

O novo prstito: uma procisso de clrigos e de pobres ... 195

O corpo a partir de agora dissimulado pelo caixo e o catafalco 198

As missas de enterro 204

O servio na igreja no dia do enterro 207

Os servios durante os dias que se seguem ao enterro 211

As fundaes de caridade. A sua publicidade ... 214

As confrarias 217

Garantias para o aqum e o alm. A funo do testamento.

Uma redistribuio das fortunas 223

A riqueza e a morte. Um usufruto 229

Testar = um dever de conscincia, um acto pessoal 232

O testamento, gnero literrio 234

Ainda a morte domada 238

5. Os que jazem, os que oram, e as almas 238

1 Percentagem das sepulturas quer da igreja, quer do cemitrio.

3 9 % = comerciantes; 69 % = mestres + comerciantes.

106O HOMEM PERANTE A MORTE

QUADRO III

Proporo das crianas no conjunto das sepulturas (em percentagem)

Parquia

Dalbalde

1705

Daurade

1699

St.

De IO anos

Igrejas Cemitrios

36

67

57

62,5

32

48

De l ano

Igrejas Cemitrios

10

25,5

18

19

4

39

Comparemos agora, para cada parquia, o nmero dos enterros na igreja (sejam elas quais forem) e no cemitrio.

O cemitrio sempre paroquial. Mas em determinadas parquias, h vrias categorias de cemitrio.

Na Dalbade, encontramos a associao simples da igreja e do cemitrio, tal como a analismos nas pginas precedentes. Em contrapartida, na catedral e na Daurade, a situao mais complexa, porque estas duas igrejas so a sede de comunidades de cnegos e de monges, e tambm por causa da sua grande antiguidade, das modificaes das suas dependncias e da sua vizinhana.

Em Saint-tienne, o mais antigo cemitrio o claustro. Chama-se, ainda no sculo xvn, o cemitrio do claustro, mas em geral, mais simplesmente, o claustro ou o pequeno ptio. De facto, a sepultura a to cara e to procurada como no interior da igreja. No existe portanto nenhuma diferena social entre as duas populaes de mortos. Foi por isso que as confundi na mesma categoria das sepulturas de igreja. Em 23 sepulturas desta categoria, apenas 9 estavam situadas na nave, as outras no claustro. O caso interessante porque mostra que, em determinadas circunstncias, como em Orlees, e sem dvida em Inglaterra, a galeria ou o claustro conservaram a sua funo de cemitrio ao ar livre, nobre e venervel. Para isso era preciso que fossem antigos e que os pobres fossem dele excludos.

A situao aproximadamente a mesma na antiga abadia beneditina da Daurade. De acordo com os costumes muito anti-

107PHILIPPE ARIES

gos, aqui conservados e em geral ignorados (excepto no Sul?), nunca a se enterra na nave nem no coro: os 11 % de sepulturas que associei a sepulturas de igreja eram na realidade sub stillicidio (sob as goteiras) ou in porticu (sob o prtico), para retomar velhas palavras que tm ainda aqui o seu sentido no final do sculo XVII: no prtico desta igreja, em frente da porta desta igreja, no convento da nossa igreja (o claustro?), no corredor desta igreja, no claustro, entrada da igreja. notvel que os padres que mantm os registos nunca empregam a palavra cemitrio para designar o local destas sepulturas de ar livre.

Vejamos agora os cemitrios propriamente ditos de Saint-tienne e da Daurade. O cemitrio onde, no sculo xvn, se enterravam os paroquianos de Saint-tienne no contguo igreja, est mesmo separado dela em primeiro lugar por toda a espessura da muralha, em seguida pelo bairro que a substituiu. Chama-se cemitrio de S. Salvador, devido ao nome da pequena igreja ou capela que foi construda no seu recinto e sem a qual no poderia existir. No h cemitrio sem igreja, no h cemitrio fisicamente separado da igreja. Tal como o cemitrio dos Champeaux era um anexo da pequena igreja dos Santos Inocentes. A diferena que S. Salvador no uma parquia, como os Santos Inocentes. um anexo da catedral. O cemitrio de S. Salvador data de uma poca em que o cemitrio comeava a separar-se da igreja. Veremos outros exemplos em Paris no captulo VI, O refluxo. Foi criado para servir de cemitrio parquia de Saint-tienne.

A parquia da Daurade tem, essa, dois cemitrios (alm do claustro e do adro da abadia), um muito antigo e muito venerado, que se chamava o cemitrio dos condes, o outro muito mais recente e destinado aos pobres, o cemitrio de Toussaint. Este ltimo poderia ser contemporneo do cemitrio de S. Salvador. Os dois cemitrios estavam dentro do recinto da abadia, o dos condes entrada da igreja e ao lado. Prolongava, sem soluo de continuidade, a zona ceniterial do adro: os condes de Toulouse tiveram a a sua sepultura. Um sarcfago do incio do sculo VI, da rainha Pdauque, hoje no museu dos Agostinhos, e sem dvida tmulo de Ragnachilde, tinha o seu lugar, segundo uma descrio antiga, na parte exterior do muro da igreja da Daurade, perto do cemitrio dos condes (talvez num jazigo).

O outro cemitrio estava situado em redor da bside da Daurade. O seu nome deixa entender que era posterior celebrao do dia dos Defuntos, no dia seguinte ao de Todos os Santos, na poca em que se tornou popular.

108O HOMEM PERANTE A MORTE

O caso de vrios cemitrios para uma mesma parquia no excepcional nos sculos XVI e XVII. Em Paris, Saint-Jean-en-Grve tinha um cemitrio novo e um cemitrio verde. O mais cotado era o cemitrio novo. Segundo um contrato assinado em 1624 com os tesoureiros, o coveiro no poder cobrar para as ditas fossas do dito cemitrio novo mais de 20 soldos, e do dito cemitrio verde mais de 12 soldos, tanto para a abertura das ditas fossas e o estabelecimento delas, como descida e enterro dos corpos 1. Vejamos, como elementos de comparao, as condies fixadas no mesmo documento para nas fossas que forem feitas na igreja, onde no h tmulos a levantar, no poder cobrar mais de 40 soldos e onde houver um tmulo a levantar, 60 soldos. Portanto 12 soldos no cemitrio menos desejado, 20 soldos no outro cemitrio, 40 soldos na igreja quando no havia tmulo e 60 soldos quando havia um tmulo, ou seja um monumento.

Havia portanto, tanto na Daurade como em Saint-Jean-en-Grve, uma categoria intermdia entre a igreja e o cemitrio mais comum. Esta categoria no existia nem em Saint-tienne nem na Dalbade.

Dito isto, examinaremos os dados do quadro n e em primeiro lugar os da primeira coluna: a proporo, para cada uma das trs parquias, dos enterros nas igrejas (sejam elas quais forem, incluindo os conventos) e nos cemitrios.

De uma maneira geral, -se impressionado pela importncia das sepulturas dentro das igrejas, um facto que confirma as nossas anlises precedentes. A proporo das igrejas , a maioria das vezes, em redor e acima de metade, no desce abaixo de um tero (sepulturas totais). Esta proporo elevada prova que no fim do sculo xvn cerca de metade da populao das cidades, pelo menos mais de um tero, era enterrada nas igrejas. Ou seja, que o privilgio j no estava reservado nobreza e ao clero, mas a uma parte considervel das classes mdias.

A parquia aristocrtica de Saint-tienne comporta mais enterros dentro das igrejas (64 %) que no cemitrio (36 %). notvel que a proporo aqui verificada seja muito prxima da encontrada por Mlle. Fleury na Paris do sculo XVI, segundo os testamentos de uma categoria abastada, a do estudo vm:

60 % dentro das igrejas e 40 % nos cemitrios. Pode fixar-se como uma caracterstica durvel das parquias ricas e nobres.

me, In, 522 (1624).

109PHILIPPE ARIES

Na Dalbade, as sepulturas so repartidas por metade entre as igrejas e o cemitrio.

Na Daurade, a situao variou durante dois anos consecutivos. Em 1698, a proporo a mesma da Dalbade (em 1705). Em 1699, exactamente a inversa da de Saint-tienne em 1692,

63 % nos cemitrios e 37 % dentro das igrejas.

Passemos agora s trs outras colunas do quadro n, que permitem fazer uma ideia da repartio segundo a condio.

Distingui - muito grosseiramente - trs categorias: em primeiro lugar os nobres de espada e de toga, os capites, os oficiais de pequena e grande magistratura (misturados: conselheiros do Parlamento, advogados, capites, subdelegados, oficiais de senescal, controlador das derramas), o clero, os mdicos: as pessoas de qualidade. Em seguida os comerciantes e os mestres de ofcios. Finalmente, os companheiros, os rapazes, criadas, arraia-mida e os desconhecidos.

A categoria intermdia no deixa de ter ambiguidades. Alguns comerciantes tm o gnero de vida dos oficiais de justia. Alguns mestres distinguem-se mal das pessoas de ofcio da categoria inferior.

Por muito sumria que seja, esta classificao d uma ideia suficiente da repartio das condies.

Salta aos olhos um primeiro facto. No h pessoas de qualidade, da primeira categoria, no cemitrio, excepto alguns dos seus filhos: os 12 % do cemitrio dos Condes, os 6 % do cemitrio da Dalbade so crianas. Voltaremos a este assunto.

A proporo das pessoas de qualidade nas igrejas mais forte em Saint-tienne (38 % das sepulturas totais), ainda notvel na Daurade (20 %). fraca na Dalbade (9 %). Se compreendermos os comerciantes na primeira categoria, obteremos 49 % em Saint-tienne, 18 % na Dalbade. O sentido geral da comparao no mudaria. Os nobres, as pessoas de qualidade, os ricos, nas igrejas, isso certo. Aqueles que no seu testamento tivessem escolhido por devoo e simplicidade o cemitrio e a fossa comum no aparecem nas estatsticas sumrias dos anos de Toulouse aqui mencionados. No devemos contudo esquecer que nunca deixaram de existir do sculo XV ao sculo xvm.

Mas a lio mais interessante destes dados diz respeito proporo das sepulturas das pessoas menos importantes nas igrejas. So em mdia em redor de 10 %, o que no desprezvel. Encontramos a comboieiros, fornecedores de pedra, mulheres de trabalhadores, soldados da guarda, cocheiros, serventes padeiros e alguns outros de quem o padre no indica o ofcio. A filha de um cozinheiro da parquia Saint-tienne ser enter-

110O HOMEM PERANTE A MORTE

rada nos Dominicanos. Filhos de operrios txteis, de soldados da Dalbade esto enterrados nos Franciscanos. Lembremos o que acaba de ser dito do apego s ordens mendicantes. As suas igrejas compreendiam capelas de confrarias. Foi provavelmente graas sua filiao a confrarias que essa arraia-mida e as suas mulheres e filhos tiveram as sepulturas no interior das igrejas.

Claro que, se tinham uma sepultura, no tinham necessariamente tmulos visveis nem epitfios.

Mas a maioria das sepulturas dentro das igrejas provinha da segunda categoria: entre 50 % e 70 %. 51 % em Saint-tienne, 60 % ou 68 % na Daurade, 68 % na Dalbade: comerciantes, mestres de ofcio, com as mulheres e filhos, mestre alfaiate, tapeceiro, pintor-vidreiro, sapateiro, padeiro, tecelo, apoticrio, carpinteiro, cirieiro, tosquiador, fabricantes de sarjas, de arreios... Tambm eles deviam frequentemente pertencer a confrarias: nota-se que os sapateiros vo mais para os Carmelitas, os alfaiates para Saint-tienne, os comerciantes para os Franciscanos.

Assim, as sepulturas dentro das igrejas parecem-nos compostas de quase todos os nobres, magistrados, pequenos e grandes oficiais, e em relao a mais de metade, de uma grande parte da burguesia dos ofcios.

Vejamos agora a composio social dos cemitrios.

O cemitrio de S. Salvador, da parquia da catedral, contm 66 % de gente sem importncia e de pobres, e 33 % da categoria intermdia. A arraia-mida so desconhecidos de passagem, mortos sem bens nem lugares nem nomes, crianas encontradas, soldados da guarda, rapazes de todos os ofcios, lacaios, moos-de-fretes, carregadores de cadeira.

Os mestres de ofcio enterrados no cemitrio distinguem-se aparentemente mal dos outros artesos da segunda categoria inumados dentro das igrejas.

No cemitrio da Dalbade, contam-se tantos mestres de ofcio da segunda categoria como arraia-mida, ao passo que em S. Salvador, na parquia da catedral, h duas vezes mais arraia-mida que mestres de ofcio.

Poder-se- considerar que quanto mais aristocrtica a parquia, mais o cemitrio uma reserva das classes inferiores, e quanto mais popular a parquia, menos forte a oposio entre a igreja e o cemitrio, uma e outro igualmente frequentados pela burguesia dos ofcios?

O caso dos dois cemitrios da Daurade interessante a este respeito, porque precisa a atitude da burguesia artesanal. O cemitrio dos Condes, o mais antigo e o mais prestigiado, contm

111PHILIPPE ARIES

mais de metade (60 %) de defuntos da segunda categoria. Pelo contrrio, o cemitrio de Todos os Santos est sobretudo povoado pela categoria popular: 50 % em 1698, 72 % em 1699. O cemitrio dos Condes deve ser um anexo da igreja, com aquilo a que se chamar no sculo xvm sepulturas particulares, ao passo que o cemitrio de Todos os Santos composto sobretudo das grandes fossas para os pobres.

A concluso que se impe a importncia social da burguesia dos ofcios. As suas camadas superiores invadem as igrejas, ao lado da nobreza, do clero, dos magistrados e dos comerciantes; os mestres artesos mais humildes, pelo contrrio, distinguem-se mal dos companheiros e da arraia-mida dos cemitrios. O limite de condio e de prestgio que separava a igreja do cemitrio passava no entre a nobreza e a burguesia de ofcios, nem entre esta e a arraia-mida, mas no interior da prpria burguesia de ofcios.

Contudo, existia entre a igreja e o cemitrio um outro factor de repartio para alm da condio: era a idade, e a idade de infncia. O cemitrio no era apenas destinado aos pobres, mas tambm aos mais jovens; o que aparece pela leitura do quadro ni, que d a proporo das crianas no conjunto das sepulturas, nas igrejas e nos cemitrios.

De uma maneira geral, esta proporo enorme, o que no surpreender os demgrafos. A mortalidade infantil era ento muito elevada. Aparece no apenas no conjunto das sepulturas, mas mesmo nas sepulturas de igreja, das pessoas de qualidade, onde se esperaria uma mortalidade mais fraca: 36 % dos defuntos da Dalbade, 32 % de Saint-tienne, 57 % da Daurade tinham menos de 10 anos. Representavam um tero das sepulturas anuais nas igrejas, mas mais de metade nos cemitrios (excepto em S. Salvador, 48 %). Notar-se- que se a proporo das crianas com menos de 10 anos mais elevada no cemitrio, continua a ser importante nas igrejas.

Em contrapartida, e o fenmeno notvel, as crianas com menos de um ano esto quase todas no cemitrio. J vimos que as nicas sepulturas de nobres ou de pessoas importantes no cemitrio so sepulturas de crianas muito pequenas: 12 % no cemitrio dos Condes, 6 % no cemitrio da Dalbade. Devia passar-se o mesmo com as burguesias de ofcio e uma grande parte das sepulturas de cemitrio desta categoria era a dos seus filhos pequenos. Assim, as crianas pequenas das melhores famlias acabavam ainda no cemitrio. Entre um quarto e um tero das sepulturas de cemitrio podiam ser as de crianas com menos de um ano. O cemitrio era o seu destino, mesmo se os

112O HOMEM PERANTE A MORTE

seus pais nobres, burgueses, pequeno-burgueses tivessem escolhido a igreja para si mesmos e para as famlias. O cemitrio era o lugar dos pobres e tambm das crianas pequenas.

No de todas, contudo, pelo menos neste final do sculo xvn, onde sabemos que muda a mentalidade - 10 % da Dalbade,

18 % da Daurade so crianas, apesar de tudo enterradas na igreja, sem dvida ao lado dos pais e irmos. Chegar um dia, um sculo e meio mais tarde, em que ser a criana morta que se representar com mais amor na arte funerria dos grandes cemitrios urbanos de Itlia, de Frana, da Amrica! Que mudana!

UM EXEMPLO INGLS

De uma maneira geral, pode admitir-se que na Frana do Antigo Regime, do sculo XVI ao xvm, a maior parte das escolhas de sepultura, salientadas nos testamentos, diziam respeito s igrejas mais que aos cemitrios. Ainda nas pequenas cidades do sculo xvm, as sepulturas burguesas da igreja pareceram aumentar, a avaliar pelo nmero crescente dos tmulos e dos epitfios.

Em contrapartida, nas parquias rurais parece que a sepultura na igreja esteve sempre reservada a um pequeno nmero de privilegiados: a famlia dos senhores, alguns trabalhadores e habitantes que vivem burguesmente, tambm os padres, quando no escolhem ser enterrados ao p do calvrio, que foi o seu lugar habitual no final do sculo xvm e no sculo XIX.

Supe-se que a situao no devia ser diferente nos outros pases da Europa ocidental, tornando-se as pequenas diferenas, quando existem, significativas.

Uma publicao inglesa dos testamentos do Lincolnshire, no incio do sculo XVI, feita com fins sem dvida genealgicos em 1914, permite-nos avaliar sumariamente semelhanas e diferenas 1. Trinta e quatro dos 224 testamentos no comportam clusulas piedosas: so sem dvida modificaes de um testamento anterior e respeitam apenas partilha dos bens. Restam

190 testamentos que comportam todos eleio de sepultura.

O pargrafo correspondente aos legados ad pias causas por vezes em latim. Se existem determinados costumes particulares, como a ddiva de um animal do rebanho, sob o nome de mortuary, tanto o esprito como a letra so os mesmos do que em Frana. Eis alguns exemplos: Eu [...] quero ser enterrado

1 C. W. Foster, Lincoln Wills, Lincoln, 1914.

113PHILIPPE ARIES

no churchyard de Todos os Santos de Multon. Lego pelo meu mortuary o que o direito diz. No grande altar desta igreja xx d. Para a nossa igreja catedral de Lincoln (mother) iv d. igreja de Multon para as novas salas m s. mi d. Para as trs luminrias da dita igreja ix d. Para a luminria da lanterna que levada frente do Santo Sacramento vista dos doentes n d. a (1513).

Eu [...] quero ser enterrado no churchyard de Todos os Santos de Fosdyke, com o meu mortuary fixado pelo costume. Para o grande altar da dita igreja, para os dzimos e oferendas esquecidas xii d. Para o altar de Nossa Senhora da,dita igreja m d. Para o altar de So Nicolau mi. Para a confraria (Gylde) Nossa Senhora de Fosdyke m s. mi d. Para a confraria da Santa Cruz (rode) de Boston m s. mi d., a fim de que os portadores faam o seu dever no meu enterro. Para a nossa igreja me de Lincoln mi d. Para Santa Catarina de Lincoln nu d. Uma ddiva tirada de uma grene para a manuteno de duas velas renovadas duas vezes por ano, uma de uma libra de cera em frente de Nossa Senhora da Misericrdia, a outra de meia libra para a missa cantada, que sero acesas todos os dias santos perpetuamente 2.

Em outros testamentos (Yorkshire) encontram-se alm disso as quatro mendicantes dos nossos testamentos franceses.

As eleies de sepultura indicam quer a igreja, quer o cemitrio. Quando designam a igreja, a maioria das vezes sem preciso: my body to be berged in the parish church o f the apposilles petur (Pedro) and pall (Paulo) of W.3 Mas quando existem, as localizaes so as mesmas que em Frana, com as mesmas preferncias, em particular pelo coro, o Santo Sacramento, a cruz: no coro ou no alto colo, em frente do Santo Sacramento, em frente do Corpus Christi, na capela de Nossa Senhora, perante a imagem de Nossa Senhora, perante o crucifixo, no meio da nave em frente do crucifixo.

Finalmente, encontram-se nestes testamentos ingleses, e to raramente como em Frana, as intenes de desapego e de humildade; agradar-se- a Deus todo-poderoso, igreja ou ao churchyard, de acordo com a deciso do meu executor testamentrio.

Portanto, grandes semelhanas. Onde a comparao deixa aperceber uma diferena significativa, na repartio entre a igreja e o cemitrio: 46 % dos testadores escolheram o cemitrio,

1 C. W. Foster, Lincoln Wills, p. 54.

2 Ibid., p. 558.

3 O meu corpo dever ser enterrado na igreja paroquial dos apstolos Pedro e Paulo de W. (N. da T.)

114O HOMEM PERANTE A MORTE

sem que o seu testamento os situe numa outra categoria socioeconmica de muitos dos que escolheram a igreja.

No h indicao de lugar particular excepto em frente do prtico da igreja, o adro.

Em Frana, a proporo comparvel de escolha do cemitrio seria muito mais baixa entre os testadores. Parece certo que o churchyard ingls no foi to completamente abandonado durante os tempos modernos pelas pessoas de qualidade como a galeria ou os carneiros franceses que, esses, se tornaram sepulturas de pobres. talvez essa uma das razes por que a imagem potica do cemitrio romntico nascer em Inglaterra, no tempo de Thomas Gray.

No impede que no condado de Lincoln, 54 % das sepulturas se fizessem dentro das igrejas, como no continente.

Vimos, neste captulo, costumes de sepultura estenderem-se a toda a cristandade latina e a persistirem durante um bom milnio, com dbeis diferenas regionais. So caracterizados pelo amontoamento dos corpos em pequenos espaos, em particular nas igrejas que faziam funo de cemitrio, ao lado dos cemitrios ao ar livre - pelo constante manejo dos ossos, e a sua transferncia da terra para os cemitrios -, finalmente pela presena quotidiana dos vivos no meio dos mortos.

115Segunda Parte

A MINHA MORTE

CAPTULO I

A hora da morte. Memria de uma vida

A ESCATOLOGIA, INDICADOR DE MENTALIDADES

At idade do progresso cientfico, os homens admitiram uma continuao depois da morte. Constata-se desde as primeiras sepulturas com oferendas do musteriense e, ainda hoje, em pleno perodo de cepticismo cientfico, aparecem modos debilitados de continuidade, ou recusas obstinadas do aniquilamento imediato. As ideias de continuao constituem um fundo comum a todas as religies antigas e ao cristianismo.

O cristianismo retomou sua conta as consideraes tradicionais do bom senso e dos filsofos esticos sobre a mortificao do homem desde o nascimento: Ao nascer, comeamos a morrer e o fim comea na origem (Manlius), lugar comum que se encontra tanto em S. Bernardo e Brulle como em Montaigne. Tambm retomou a ideia muito antiga de sobrevivncia num mundo c de baixo, triste e cinzento, e a ideia mais recente, menos popular, e mais rigorosa, de juzo moral1.

Recuperou finalmente as esperanas das religies de salvao, submetendo ento a salvao do homem incarnao e redeno de Cristo. Deste modo, no cristianismo pauliniano, a vida morte no pecado, e a morte fsica, acesso vida eterna.

No nos enganamos muito se submetermos a estas poucas linhas simples a escatologia crist, herdeira de crenas mais anti-

1 Montaigne, Essois, l, 19; V. Janklvitch, La Mort, Paris, Flammarion, 1966, p. 174, n. 2.

117PHILIPPE ARIES

gs. Todavia, no interior desta vastssima definio, h lugar para numerosas mudanas: as ideias que os cristos fizeram da morte e da mortalidade variaram durante os tempos. Que sentido reconhecer a essas variaes? Parecero pouco importantes a um telogo filsofo, ou a um simples e piedoso crente, que, tanto um como o outro, tendem a examinar a sua f e a traz-la de novo aos seus fundamentos. Ao historiador, pelo contrrio, parecero cheias de sentido, porque reconhecer os sinais visveis das mudanas, tanto mais profundas quanto despercebidas, da ideia que o homem, e no necessariamente o cristo, fez do seu destino.

O historiador deve aprender a linguagem dissimulada das religies durante essas longas pocas banhadas de imortalidade. Sob as frmulas dos doutores, sob as lendas da f popular, tem de encontrar os arqutipos de civilizao que traduzem no nico cdigo inteligvel. Tal abordagem exige que nos libertemos de determinados hbitos de pensamento.

Imaginamos a sociedade medieval dominada pela Igreja ou, o que o mesmo, reagindo contra ela por meio de heresias, ou por um naturalismo primitivo. certo que o mundo vivia ento sombra da Igreja, mas isso no significava a adeso total e convicta a todos os dogmas cristos. Isso queria antes dizer reconhecimento de uma linguagem comum, de um mesmo sistema de comunicao e de compreenso. Os desejos e os fantasmas, oriundos do fundo do ser, eram expressos num sistema de sinais, e estes sinais eram fornecidos por lxicos cristos. Mas, e isto importante para ns, a poca escolhia espontaneamente determinados sinais, de preferncia a outros mantidos em reserva ou em projecto, porque traduziam as tendncias profundas do comportamento colectivo.

Se nos detivermos nos lxicos e nos repertrios, encontramos muito em breve todos os temas da escatologia tradicional: a nossa curiosidade historiadora da variao depressa frustrada. O Evangelho de S. Mateus 1, em relao com as tradies pags, egpcias em particular, continha j toda a concepo medieval do alm, do Juzo Final, do Inferno. O velhssimo Apocalipse de S. Paulo descrevia um Paraso e um Inferno rico em suplcios 1. Santo

1 J. Ntedika, Lvocation de lau-del dons ls prires pour ls morts, Lovaina, Nauweaerts, 1971, p. 55 e seg. Uma tese espanhola indita (Madrid) consagrada morte em Tertuliano, por Salvador Vicastillo (1977).

118O HOMEM PERANTE A MORTE

Agostinho e os primeiros padres desenvolveram uma concepo da salvao quase definitiva. por isso que os livros dos historiadores das ideias do ao leitor, talvez demasiado preocupado com a mudana, uma impresso montona de imobilidade.

Os repertrios dos autores eruditos em breve ficam completos. Mas, na realidade, s uma parte era utilizada, e esta, escolhida pela prtica colectiva, que devemos tentar determinar, apesar dos riscos de erro e das armadilhas deste gnero de investigaes. com efeito, tudo se passa ento como se a parte assim escolhida fosse a nica conhecida, a nica viva, finalmente a nica significativa.

Vamos aplicar este mtodo s representaes do Juzo Final.

O LTIMO ADVENTO

A primeira representao, no nosso Ocidente, do fim dos tempos no o Juzo.

Lembremos em primeiro lugar o que foi dito no captulo I deste livro a propsito dos cristos do primeiro milnio: depois da morte, como os sete adormecidos de feso, repousavam, enquanto esperavam o dia do regresso de Cristo. Deste modo, a sua representao do fim dos tempos era a de Cristo glorioso, tal como subiu aos cus, no dia da Ascenso, ou como o descreve o visionrio do Apocalipse: sentado sobre um trono, erguido no cu, e sentando-se no trono; cercado na sua majestade por uma glria: um arco-ris envolvia o trono; rodeado pelos quatro vivos alados, os quatro evangelistas, e pelos vinte e quatro ancios.

Esta imaginaria extraordinria muito frequente na poca romana, em Moissac, em Chartres (fachada real). Descobria o cu e as personagens divinas ou as criaturas sobrenaturais que o habitavam. Os homens da primeira Idade Mdia esperavam o regresso de Cristo sem recearem o Juzo. Foi por isso que a sua concepo do fim dos tempos se inspirou no Apocalipse e calou a cena dramtica da Ressurreio e do Juzo, consignada no Evangelho de S. Mateus.

Quando aconteceu excepcionalmente arte funerria figurar o Juzo, avalia-se at que ponto este era pouco temido e considerado sempre na perspectiva nica de um regresso de Cristo e do despertar dos justos, sados do seu sono para entrarem na luz. O bispo Agilberto foi enterrado em 680 num sarcfago da capela

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dita cripta de Jouarre \ Num pequeno lado deste sarcfago, Cristo glorioso foi esculpido, rodeado dos quatro evangelistas: a imagem tradicional que a arte romana repetir. Num grande espao, vem-se os eleitos, com os braos erguidos, aclamarem a segunda vinda de Cristo. Apenas se vem os eleitos e no os condenados. No se faz qualquer aluso s maldies anunciadas por S. Mateus. Sem dvida porque no diziam respeito aos santos e porque eram reputados santos todos os crentes adormecidos na paz da Igreja, confiados terra da Igreja. com efeito, a Vulgata chamava sancti queles que os tradutores modernos designam sob o nome de crentes ou de fiis.

Os santos nada tinham a temer das severidades do Juzo. O Apocalipse, num texto que est na origem do milenarismo, di-lo expressamente de alguns deles que ressuscitaram uma primeira vez: A segunda morte no tem poder sobre eles. 2

Talvez os condenados no fossem to visveis como os eleitos, quer porque tivessem menos ser, quer porque no ressuscitassem, quer porque no recebessem o corpo glorioso dos eleitos. No se dever interpretar neste sentido a verso da Vulgata: Todos ressuscitaremos, mas nem todos seremos mudados 3, verso hoje rejeitada?

O tema do Juzo Final encontra-se no sculo XI, associado j no a um sarcfago, mas a uma pia baptismal. A mais antiga pia assim ilustrada est em Neer Hespin, perto de Landen na Blgica. Uma outra, atribuda, como a primeira, s oficinas de Tournai, foi recuperada em Chlons-sur-Marne 4. No pode ser posterior a 1150: os ressuscitados saem nus do sarcfago. Esto aos pares, o marido e a mulher enlaados. O anjo sopra numa soberba trompa de marfim. exactamente o fim dos tempos, mas, como em Jouarre, no h juzo. A aproximao entre o baptismo e a ressurreio sem juzo tem um sentido claro: os baptizados tm a garantia da ressurreio e da salvao eterna que ela implica.

Um outro testemunho confirma o da iconografia. Em epitfios cristos do primeiro sculo, reconhecem-se os fragmentos de uma antiga orao, que a Igreja talvez herdasse da sinagoga,

1 J. Hubert, Ls Cryptes de Jouarre (4 Congresso da Arte da Alta Idade Mdia), Melun, Imprensa da prefeitura de Seine-et-Marne, 1952.

2 Apocalypse, 20, 5-6.

3 Bible de Jerusalm, I Cor 15, 515-2. A traduo actual : Nem todos morremos, mas todos seremos transformados.

4 J. Dupont, La Salle du Trsor, de Ia Cathdrale de Chlons-sur-Marne, Bulletin ds monuments historiques de la France, 1957, p. 183,

192-193.

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que portanto anterior ao terceiro sculo e subsistiu na prtica religiosa at aos nossos dias1. Recolhemo-los dos lbios de Rolando moribundo 2. Fazia parte das oraes de recomendaes a Deus da alma do defunto que o francs dos sculos XVI e xvn designava correntemente nos testamentos sob o nome de Recomendaces 3. Encontrava-se ainda recentemente nos missais usados antes das reformas de Paulo VI *.

A orao judia para os dias de jejum ter-se-ia portanto tornado a mais antiga orao crist para os mortos. Ei-la:

Liberta Senhor a alma do teu servidor, como libertaste Enoch e Elias da morte comum a todos, como libertaste No do dilvio, Abrao fazendo-o sair da cidade de Ur, Job dos seus sofrimentos, Isaac das mos de seu pai Abrao, Lot da chama de Sodoma, Moiss da mo do Fara rei do Egipto, Daniel da fossa dos lees, os trs jovens Hebreus da fornalha, Susana de uma falsa acusao, David das mos de Saul e de Golias, S. Pedro e S. Paulo da sua priso, a bem-aventurada Virgem Santa Tecla de trs horrveis suplcios.

Esta orao era to familiar que os primeiros cortadores de pedra cristos de Aries se inspiraram nela para decorarem os seus sarcfagos.

Ora - e a observao j foi feita por J. Lestocquoy - os precedentes invocados para inclinar a misericrdia do Senhor no dizem respeito aos pecadores, mas aos justos experimentados: Abrao, Job, Daniel, e, para terminar, os santos apstolos a uma bem-aventurada mrtir da virgindade consagrada, Tecla.

Deste modo, quando o cristo da primeira Idade Mdia recitava na hora da morte, como Rolando, a commendacio animae, pensava nas triunfantes intervenes de Deus para pr fim s provaes dos seus santos. Rolando tinha tambm batido a sua culpa, o que era talvez o incio de uma nova sensibilidade. Mas a comendacio animae no suscitava o remorso do pecado, nem sequer apelava para o perdo do pecador, como se este j tivesse sido perdoado. Associava-o aos santos, e os tormentos da agonia s provaes dos santos.

1 Mle, La Fin du paganisme en Gaule, Paris, Flammarion, 1950. p. 245 e seg.

2 Supra, cap. i.

3 Encomendaes. (N. da T.)

R. P. Feder, Misse! romain, Mame, Tours, pp. 1623-1624.

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O JUZO NO FIM DOS TEMPOS. O LIVRO DA VIDA

A partir do sculo xn, a iconografia desenrola, durante quatro sculos aproximadamente, sobre a tela das fachadas historiadas o filme do fim dos tempos, as variantes do grande drama escatolgico que deixa transparecer, sob a sua linguagem religiosa, as novas inquietaes do homem descoberta do seu destino.

Os primeiros juzos finais, os do sculo XII, so constitudos pela sobreposio de duas cenas, uma muito antiga, a outra muito recente.

A mais antiga no passa daquela que acabamos de evocar: o Cristo do Apocalipse na sua majestade. o fim da discontinuidade da criao provocada pela falta de Ado, o aniquilamento das particularidades de uma histria provisria, nas dimenses inimaginveis da transcendncia: o brilho dessa luz j no d lugar histria da humanidade e ainda menos biografia particular a cada homem.

No sculo xn, a cena apocalptica subsiste, mas abrange agora apenas uma parte da fachada, a parte superior. Em Beaulieu, no incio do sculo xn, os anjos que tocam trombeta, as criaturas sobrenaturais, um Cristo gigantesco que estende os braos enormes abrangem ainda a maior superfcie e deixam apenas pouco lugar a outros elementos e a outros smbolos. Ainda um pouco mais tarde, em Sainte-Foy de Conques (1130-1150), o Cristo no seu oval semeado de estrelas, que flutua sobre as nuvens do espao, sempre o do Apocalipse. Mas em Beaulieu, e ainda mais em Conques, sob a representao tradicional do segundo Advento, aparece uma nova iconografia, inspirada no Evangelho de S. Mateus, 25: o juzo do ltimo dia e a separao dos justos e dos condenados. Esta iconografia reproduz essencialmente trs operaes: a ressurreio dos corpos, os actos do juzo e a separao dos justos, que vo para o cu, dos malditos, que so precipitados no fogo eterno.

O estabelecimento do grande drama fez-se lentamente, como se a ideia que se tornar clssica nos sculos XII-XIII do Juzo Final encontrasse determinadas resistncias. Em Beaulieu, os mortos saem do tmulo - talvez pela primeira vez, pelo menos a esta escala -, mas discretamente. Nada evoca o acto de julgar; como no sarcfago de Jouarre e na pia de Chlons-sur-Marne, os mortos, imediatamente ressuscitados, pertencem ao cu, sem sofrerem exame. Esto sempre destinados salvao como os santos da Vulgata. certo que os condenados no esto total-

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mente ausentes. Procurando-os bem, descobrem-se numa das duas filas de monstros que cobrem o lintel. Entre estes monstros, . Mle reconheceu a besta com sete cabeas do Apocalipse 1. Alguns deles devoram homens que devem ser condenados. No se pode deixar de ficar impressionado pelo carcter quase clandestino da introduo do Inferno e dos seus suplcios. Aqui, as criaturas infernais distinguem-se mal da fauna fabulosa que a arte romana recebeu do Oriente e multiplicou para fins tanto decorativos como simblicos.

Em Autun, que posterior a Conques, o Juzo Final est bem figurado, mas o destino dos mortos decide-se no momento da sua ressurreio: uns vo directamente para o Paraso e outros para o Inferno. Perguntamos ento as razes de ser das operaes de juzo que contudo prosseguem ao lado. Tem-se a impresso de que esto aqui justapostas duas concepes diferentes.

Em Sainte-Foy de Conques, no nos podemos enganar sobre o sentido da cena, porque precisado por meio de inscries: na aurola crucfera de Cristo, l-se Judex. O mesmo Judex foi inscrito por Suger em S. Dinis. Noutro local, o escultor gravou as palavras relatadas por S. Mateus: Vinde, abenoados de meu pai, o reino dos cus para vs. Longe de mim os malditos2 [...] O Inferno e o Paraso tm cada um a sua legenda epigrfica. V-se aparecer a cena da instruo judiciria que precede e prepara a sentena: a clebre pesagem das almas pelo arcanjo S. Miguel. O paraso herdado do Apocalipse j s ocupa um lugar igual ao do Inferno. Finalmente, coisa notvel, o Inferno engole tambm homens da Igreja, monges designados pela corona, ou seja a grande tonsura. Terminada portanto a assimilao antiga dos crentes a santos. Ningum, entre o povo de Deus, tem a garantia da sua salvao, nem sequer aqueles que preferiram a solido dos claustros ao mundo profano.

Assim, no sculo xn determinou-se uma iconografia que sobrepe o Evangelho de S. Mateus ao Apocalipse de S. Joo, liga um ao outro, e une assim o segundo Advento de Cristo ao Juzo Final.

No sculo xni, a inspirao apocalptica apagou-se, e j s restam lembranas relegadas para as abbadas. Venceu a ideia de juzo. Representa-se um tribunal: Cristo, rodeado de anjos transportando pendes, est sentado no trono do juiz; desapareceu a aurola oval que o isolava. Est rodeado pela sua corte:

1 . Mle, LArt rdigieux du XX sicle, Paris, A. Colin, 1940.

2 Mateus, 25, 34-41.

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os doze apstolos raramente representados exactamente a seu lado (em Laon), mais frequentemente alinhados no vo da fachada, direita e esquerda.

Duas aces tomam ento uma importncia considervel. Uma a pesagem das almas, que passa para o centro da composio, cena que suscita preocupao e inquietao; inclinados sobre as varandas do cu, nas abbadas da fachada, os anjos observam. Cada vida culmina nos pratos da balana. Cada pesagem chama assim a ateno dos mundos celeste e infernal.

J no se trata de evitar um exame cujo resultado no se conhece previamente. A sua importncia ainda acentuada a ponto de ter parecido por vezes necessrio dobr-lo. Os eleitos e os condenados so indicados pela balana de S. Miguel, mas como se esta operao no bastasse, so uma segunda vez separados pelo gldio do arcanjo Gabriel.

Contudo, o juzo nem sempre segue a escolha da balana. H intercessores que intervm e desempenham um papel que o texto de S. Mateus no previra, o papel conjunto do advogado (patronus), do suplicante (advocare deum), que fazem apelo piedade, ou seja, graa do soberano juiz. O juiz tanto aquele que agracia o culpado como aquele que o condena e compete a alguns dos seus familiares inclin-lo ao perdo. Aqui, este papel pertence me e ao discpulo, que o assistem aos ps da cruz: a Virgem e S. Joo Evangelista. Vem-se primeiramente aparecer discretamente na fachada de Autun, mesmo no cimo do tmpano, de cada lado da grande aurola que envolve Cristo. No sculo xin, tornaram-se actores principais e a sua importncia igual do arcanjo que pesa as almas. Esto de joelhos, com as mos juntas, de um lado e do outro de Cristo que imploram.

O rei tem portanto a sua corte e, como tem assento no tribunal, a sua misso principal fazer justia.

A descida apocalptica do cu para a terra tornou-se um tribunal de justia, o que, aos olhos dos contemporneos, nada lhe retirava da sua majestade, porque o tribunal de justia era o modelo das solenidades supremas, a imagem e o smbolo da grandeza, como a justia era a manifestao mais pura do poder.

Este desvio da escatologia em proveito de um aparelho judicirio, por muito pomposo que seja, surpreende-nos, a ns modernos que nos tornmos to indiferentes e cpticos em relao justia e magistratura. O justicivel de hoje foge delas, muito diferente dos intratveis entendidos em processos, seus antepassados! A importncia reconhecida justia na vida quotidiana e na moral espontnea um dos factores psicolgicos que separam e opem as mentalidades antigas e modernas.

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Esta sensibilidade noo e s manifestaes da justia data verdadeiramente da Segunda Idade Mdia, e durar no Antigo Regime. A vida humana aparece como um longo processo, onde cada aco sancionada por um acto de justia ou, pelo menos, de gente de justia. A instituio pblica ela mesma concebida sobre o modelo dos tribunais de justia e cada comunidade de funcionrios de polcia, de finana, organizada como um tribunal com um presidente, conselheiros, um procurador e um escrivo.

Um texto do sculo XIV mostra at que ponto o apelo ao juiz, nas formas legais, era natural, como um reflexo: a mulher do conde castelhano Alarcos acaba de saber que o marido a vai matar para poder casar-se com a infanta de Castela. Faz a sua orao, as suas despedidas. A sua alma est em paz, no procura a vingana, mas convoca os assassinos perante o juiz divino. A justia, com efeito, deve ser restabelecida e, coisa curiosa, no ser desencadeada pela interveno espontnea do juiz omnisciente: pertence vtima inocente reclamar o seu direito *:

Perdoo-vos, bom conde, pelo amor que tenho por vs,

Mas no perdoo ao rei nem perdoo infanta.

E convoco-os a ambos para comparecerem em justia no

[alto tribunal de Deus dentro de trinta dias.

No deixar de se admirar esta mulher que, a ponto de morrer cristmente, mantm suficiente sangue-frio para lanar uma citao em to boa forma.

Existe uma relao entre esta concepo judiciria do mundo e a nova ideia da vida como biografia. Cada momento da vida ser, um dia, pesado numa audincia solene, na presena de todas as foras do cu e do inferno. A criatura encarregada desta pesagem, o arcanjo signifer, tornou-se o popular patrono dos mortos: no se deve tardar a conquistar os seus favores. Reza-se-lhe como mais tarde se levaro especiarias aos juizes: Que os introduza na santa luz. 2

Mas como conheceu o instrutor anglico os actos que deve avaliar? que estes foram registados num livro por um outro anjo, meio-escrivo, meio-contabilista.

1 L Romanero, op. cit., p. 111.

2 S. Miguel muitas vezes honrado nas partes altas da igreja. Numa capela de S. Miguel em Saint-Aignan-sur-Cher, dois restos de fresco representam um o combate com o drago, o outro a pesagem das almas.

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O smbolo do livro antigo nas Escrituras. Encontramo-lo na viso de Daniel (XI, 1): Nesse tempo erguer-se- Miguel, princeps magnus, que se deter perante as geraes do teu povo. Vir ento um tempo como nunca houve desde o nascimento das naes. Mas nesse tempo, o teu povo ser salvo: todos aqueles cujo nome ter sido encontrado no livro. E ainda, no Apocalipse, V, 1: Vejo na mo daquele que se senta no trono um livro escrito recto verso, selado com quatro selos. Este livro o rolo que o Cristo de Jouarre segura na mo, perante os eleitos que o aclamam. Continha os seus nomes e era aberto no fim dos tempos. Mas na poca de Jouarre, servia de modelo a um outro lber vitae, livro real desta vez, onde estavam inscritos os nomes dos benfeitores da Igreja que se liam durante as oraes galicanas da oblao: o recenseamento dos santos. Esse mesmo livro de Daniel ou do Apocalipse, na fachada de Conques, mantido aberto por um anjo e designado pela inscrio: signatur lber vitae. Contm os habitantes da terra viventium, como diz o Lauda Sion do Corpo de Deus, que assim indica o Paraso.

este o sentido principal do lber vitae, mas vai mudar no sculo xin. O livro j no o census da Igreja universal, tornou-se o registre 1 onde so inscritas as questes dos homens. A palavra registre aparece alis no francs no sculo xin. o sinal de uma nova mentalidade. As aces de cada homem j no se perdem no espao ilimitado da transcendncia, ou ainda, se se pretender falar de outra maneira, no destino colectivo da espcie. Ei-las a partir de ento individualizadas. A vida j no se limita apenas a um sopro (anima, spiritus), a uma energia (virtus). composta por uma soma de pensamentos, de palavras, de actos, ou como se diz num velho Conjiteor do sculo viu2: peccavi in cogitatione et in locutione et in opere, uma soma de factos que se podem detalhar e resumir num livro.

O livro , portanto, simultaneamente a histria de um homem, a sua biografia, e um livro de contas (ou de razo), com duas colunas, de um lado o mal e do outro o bem. O nosso esprito contabilstico dos homens de negcios que comeam ento a descobrir o seu mundo prprio - que se tornou no nosso aplica-se ao contedo de uma vida como mercadoria ou moeda.

Assim, o livro manteve o seu lugar nos smbolos da vida moral at ao sculo xvm, quando a balana foi cada vez menos

Registo. (N. da T.)

Confitear de Chrodegang de Metz (morto em 766).

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representada e quando S. Jos ou o Anjo da Guarda tomaram o lugar do arcanjo signifier ou psicopompa.

Um sculo depois da fachada de Conques onde o sentido ainda o do Apocalipse, os autores franciscanos do Dies irae fazem-no levar perante o juiz na confuso aterradora do fim do mundo, e um livro de contas.

Lber scriptus proferetur In quo totum continetur Unde mundus judicetur.

Coisa muito curiosa e significativa, o livro que fora primeiramente o dos eleitos vai tornar-se o dos condenados.

Um sculo ainda depois do Dies irae, um quadro de J. Albergno, de meados do sculo XIV, mostra Cristo-juiz num trono e segurando nos joelhos o livro aberto onde est escrito: Chiunque scrixi s questo libro sara danadi (quem quer que esteja inscrito neste livro ser condenado). Apesar de reservado aos condenados, um livro recapitulativo da humanidade. Mais notveis so as almas que esto representadas abaixo do Cristo-juiz, sob a forma de esqueletos. Cada uma dessas almas segura nas mos o seu prprio livro e exprime pelos gestos como essa leitura a aterra.

Em Albi, no final do sculo XV ou no incio do sculo XVI, no grande fresco do Juzo Final, no fundo do coro, encontram-se os mesmos livrinhos individuais que os ressuscitados, nus, usam pendurados ao pescoo, como nico vesturio, como uma pea de identidade 1.

Veremos mais adiante que, nas artes moriendi do sculo XV, o drama passou para o quarto do moribundo. Deus ou o Diabo consultam o livro cabeceira do leito do agonizante. Mas dir-se-ia que o Diabo guarda perante si o livro ou o cartaz que agita com veemncia para exigir o que lhe devido2.

A arte barroca provenal dos sculos xvn e xvm conservou o livro: em Antibes, o Tempo, um velho, levanta o sudrio que tapa o corpo de um jovem e mostra ao mesmo tempo um livro; em Salon, na igreja de S. Miguel, patrono dos mortos, um retbulo do sculo xvm contm, entre os instrumentos macabros clssicos, um livro aberto onde se pode ler: lber scriptus pro-

1 A. Tenenti, // Senso, op. cit., fig. 40 e p. 443.

2 A. Tenenti, La Vie et Ia Mort travers lart du XV sicle, A. Colin, 1952, Cahier ds Annales, n.s 8, fig. 17 e p. 103.

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fect (...) Existir uma relao entre este livro e o das vaidades*?

No fim da Idade Mdia, nos sculos XVI e XV, as contas so feitas por aqueles que com elas aproveitam, pelos diabos, certos de que o mal deveria vencer. Concepo sinistra de um inferno sobrepovoado, excepto interveno gratuita da misericrdia divina.

Depois da reforma tridentina, o equilbrio, comprometido na poca macabra, foi restabelecido. A contabilidade abandonada ao Diabo no fim da Idade Mdia j no satisfazia o devoto ou o moralista da poca clssica. No deixaram de surgir os tratados de preparao para a morte. Num deles, Espelho da alma do pecador e do justo durante a vida e hora da morte, de 1736, cada homem possui dois livros, um para o bem mantido pelo seu anjo-da-guarda (que retomou um dos papis de S. Miguel), o outro para o mal mantido por um demnio.

A imagem da m sorte assim comentada: O seu anjo-da-guarda aflito abandona-o (ao moribundo), deixando cair o livro onde esto apagadas todas as suas obras que a estavam escritas, porque tudo o que fez de bom no tem mrito para o cu. esquerda, v-se o demnio que lhe apresenta um livro que encerra toda a histria da sua m vida (sublinhei a palavra histria, confisso significativa de uma concepo biogrfica da vida)2.

Sobre a imagem da boa morte, passa-se o contrrio: O seu anjo-da-guarda, com um ar alegre, mostra um livro onde esto escritas virtudes, as suas boas obras, jejuns, oraes, mortificaes, etc. O Diabo confuso retira-se e lana-se no Inferno com o livro onde nada h escrito, porque os seus pecados foram apagados por uma sincera penitncia. 3

O grande livro colectivo da fachada de Conques tornou-se no sculo xvm um livrinho individual, uma espcie de passaporte, de registo criminal, que preciso apresentar s portas da eternidade.

Com efeito, o livro contm a histria inteira de uma vida, mas redigido para s servir uma vez: no momento em que as contas estiverem fechadas, onde passivo e activo sero compa-

1 G. e M. Vovelle, La mort et 1au-del en Provence cTaprs ls autels ames du Purgatoire, Cahier ds Annales, n.2 29, Paris, A. Colin, 1970.

2 Miroir de lme du pcheur et du juste pendant la vie et Vheure de la Mort. Mthode chrtienne pour finir saintement Ia vie, nova edio, Lyon, em F. Viret, 1752, p. 15. O privilgio de 1736.

3 Ibid., p. 35.

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rados, onde o balano termina. A palavra balano provm, na linguagem do sculo XVI, do italiano balancia. A etimologia sublinha a relao entre o simbolismo do livro e o da pesagem. Concebe-se portanto, desde o sculo xn pelo menos, que existe um instante crtico. Na antiga mentalidade tradicional, uma vida quotidiana imvel misturava e confundia todas as biografias individuais. No tempo da iconografia do Juzo, cada biografia j no aparece dissolvida numa longa durao uniforme, mas precipitada no instante que a recapitula e singulariza: Dies illa. a partir deste resumo que deve ser avaliada e reconstituda.

A conscincia da vida longa passa portanto pelo tempo de um instante. notvel que esse instante no seja o da morte, mas que tenha sido situado depois da morte, e na primeira verso crist, referido ao fim do mundo que uma crena milenar pensava ainda prximo.

Encontra-se aqui a recusa inveterada de assimilar o fim do ser dissoluo fsica. Imaginava-se um prolongamento que nem sempre ia at imortalidade do bem-aventurado, mas que arranjava pelo menos um espao intermdio entre a morte e a concluso definitiva da vida.

O JULGAMENTO NO FIM DA VIDA

Desde o sculo XIV, o tema do Juzo Final no foi totalmente abandonado: encontramo-lo nos sculos XV e XVI na pintura de Van Eyck ou de J. Bosch, no sculo xvn ainda aqui e alm (Assis, Dijon). Todavia, sobreviveu a si mesmo, perdeu a sua popularidade e j no verdadeiramente sob essa forma que se imagina em seguida o fim ltimo do homem. A ideia de julgamento separou-se ento da ideia de ressurreio.

A ressurreio da carne no esquecida; a iconografia e a epigrafia funerrias, tanto protestantes como catlicas, no deixaram de lhe fazer referncia. Mas separou-se do grande drama csmico e foi colocada no destino pessoal de cada homem. O cristo afirma ainda por vezes sobre a pedra tumular que ressuscitaria um dia; j no lhe importava que esse dia fosse o do segundo Advento ou do fim do mundo. O essencial era ento a certeza da sua prpria ressurreio, ltimo acto da sua vida, de uma vida que o obcecava a ponto de o tornar indiferente ao futuro da criao. Esta afirmao da individualidade opunha a atitude dos sculos XIV-XV, ainda mais que a dos sculos xn-xn, s mentalidades tradicionais. O futuro sobrenatural, apaziguado, liberto do clima dramtico do juzo onde se situava a

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partir de ento a ressurreio, pode parecer um regresso concepo confiante do primeiro cristianismo; a aproximao superficial e enganadora, porque, apesar das afirmaes da epigrafia funerria, o medo do julgamento no deixou de vencer a confiana na ressurreio.

A separao da ressurreio e do juzo tem uma outra consequncia mais evidente. Desapareceu o intervalo entre o juzo, concluso definitiva da vida, e a morte fsica, e esse um grande acontecimento. Enquanto este intervalo existiu, o morto no estava completamente morto, o balano da sua vida no estava encerrado, sobrevivia a si mesmo parcialmente na sua sombra, Meio vivo, meio morto, tinha sempre o recurso de voltar e exigir aos homens da terra a assistncia, os sacrifcios ou as oraes que lhe faltavam. Era consentido um arrependimento que os bem-aventurados intercessores ou os piedosos fiis podiam aproveitar. Os efeitos longnquos das obras de beneficncia realizadas durante a vida tinham ainda tempo para se fazerem sentir.

A partir de ento, o destino da alma imortal decidido no exacto momento da morte fsica. Haver cada vez menos lugar para os que regressam e as suas manifestaes. Em contrapartida, a crena, durante muito tempo reservada aos sbios e telogos ou poetas, no purgatrio, lugar de espera, tornar-se- verdadeiramente popular, mas no antes de meados do sculo xvn, e substituiu-se ento s velhas imagens do sono e do repouso.

O drama abandonou os espaos do alm. Aproximou-se e joga-se agora no prprio quarto do doente, em redor do seu leito.

Tambm iconografia do Juzo Final se substituiu no sculo XV uma nova iconografia de gravuras em madeira, difundida pela tipografia: imagens individuais em que cada um meditava em sua casa. Estes livros so tratados sobre a maneira de bem morrer: artes moriendi. Cada pgina de texto ilustrada com uma imagem a fim de que os laici, ou seja, aqueles que no sabiam ler, pudessem compreender o seu sentido tanto como os litterati1.

Esta iconografia, apesar de nova, remete-nos para o modelo arcaico do jacente no leito, doente, que as cenas do Juzo Final tinham coberto: como vimos, o leito era o lugar imemorial da morte. Continuou a s-lo at ter deixado de ser leito, smbolo do amor e do repouso, para se tornar hoje nesse material tecnolgico de hospital, reservado aos grandes doentes.

1 A. Tenenti, La vie, op. cit., p. 98 e seg.

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Com efeito, morria-se sempre na cama, quer fosse de morte natural, ou seja, segundo se julgava, sem doena e sem sofrimento, quer da morte mais frequente por acidentes, de puta 1, de febre, ou de apostema2, ou outras doenas graves, dolorosas e longas 3. A morte sbita, improvisa, essa, era excepcional e muito temida; mesmo os ferimentos graves, os acidentes brutais deixavam tempo para uma agonia ritual no leito.

O quarto devia contudo tomar um sentido novo na iconografia macabra. J no era o lugar de um acontecimento quase banal, apenas mais solene que os outros, tornava-se o teatro de um drama onde o destino do moribundo se jogava uma ltima vez, onde toda a sua vida, paixes e apegos eram postos em causa. O doente vai morrer. Pelo menos sabemo-lo pelo texto onde se diz que crucificado pelo sofrimento. No aparece nas imagens onde o seu corpo no emagreceu, ou mantm ainda fora. Segundo o costume, o quarto est cheio de gente, porque se morre sempre em pblico. Mas os assistentes nada vem do que se passa, e, pelo seu lado, o moribundo no os v. No porque tenha perdido o conhecimento: o seu olhar fixa com uma ateno tenaz o espectculo extraordinrio que o nico a perceber, seres sobrenaturais invadiram o quarto e comprimem-se sua cabeceira. De um lado a Trindade, a Virgem, toda a corte celeste, o Anjo da Guarda; do outro, Sat e o exrcito monstruoso dos demnios. A grande reunio do fim dos tempos faz-se dentro do quarto do doente. A corte celeste est l, mas j no tem todas as aparncias de uma corte de justia. S. Miguel j no pesa na balana o bem e o mal. substitudo pelo Anjo da Guarda, mais enfermeiro espiritual e director de conscincia que advogado ou auxiliar de justia.

Contudo, as mais antigas representaes da morte na cama conservam ainda a encenao a partir da clssica do julgamento, tratada no estilo dos Mistrios. este o caso de uma ilustrao da orao dos mortos, de um saltrio de 1340*. O acusado exige o recurso ao intercessor: Pus em vs a minha esperana, Virgem Maria de Deus me. Tirai o pecado da minha alma e do inferno onde a morte amarga. Sat, atrs do leito, exige a alma: Exijo ter para mim, Por justia segundo o direito, A alma deste corpo que parte, Que est cheia de grandes manchas.

1 Ferimento grave. (N. da T.)

2 Abcesso. (N. da T.)

3 A. Tenenti, La Vie, p. 108.

* Manuscrits peinture du XIII au XIV sicle, catlogo da exposio, BN, 1955, n.9 115.

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A Virgem descobre o seio, Cristo mostra as chagas e transmite ao Pai a orao de Maria. E Deus concede a sua graa: Se h razes para que o teu pedido seja plenamente satisfeito, comove-me o Amor de quem honesto, Neg-lo no posso certamente.

Nas artes moriendi, a Virgem e Cristo crucificado esto sempre presentes; todavia, quando o moribundo exala a sua alma num ltimo suspiro, o Pai no ergue nem o gldio nem a mo do justiceiro, mas o dardo misericordioso da morte que abrevia os sofrimentos fsicos e as provaes espirituais. Acontece ento que Deus seja menos juiz no tribunal que rbitro de uma luta entre as foras do bem e do mal, de que a alma do moribundo seria a aposta.

A. Tenenti, na sua anlise da iconografia das artes moriendi, pensa que o moribundo assiste ele mesmo ao seu prprio drama como testemunha mais que como actor: Um combate entre duas sociedades sobrenaturais no qual o fiel tem uma fraca possibilidade de escolher, mas nenhum meio de se furtar. Em redor do seu leito, uma luta sem merc, tropa diablica de um lado, legio celeste do outro.

Isto sobressai com efeito de determinadas imagens: assim, podem interpretar-se os desenhos pena que ilustram um poema, o Espelho da Morte, num manuscrito datado de 1460 aproximadamente 1. Um representa a luta do diabo e do moribundo; outros, a interveno do anjo bom, a crucificao, instrumento da salvao, o ltimo, finalmente, o combate do Anjo e de Sat cabeceira do moribundo.

Existia portanto a ideia de uma confrontao entre as foras do bem e do mal. Mas no parece vencer na ars publicada por A. Tenenti. Parece-me, pelo contrrio, que a liberdade do homem a respeitada e que, se Deus pareceu depor os atributos da Justia, foi porque o prprio homem se tornou no seu prprio juiz. O Cu e o Inferno no lutam, como no Espelho da Morte de Avinho, assistem ltima provao proposta ao moribundo e cujo sentido de toda a vida ser determinado pelo resultado.

So eles os espectadores e as testemunhas. O moribundo, esse, tem o poder, nesse instante, de tudo ganhar ou de perder: A salvao do homem est estabelecida no seu fim. J no convm portanto ento examinar a biografia do moribundo como era costume no tribunal das almas, no ltimo dia do mundo. ainda muito cedo para este balano definitivo, porque a biografia no est encerrada e deve ainda sofrer modificaes retroactivas. No se

1 Manuscrts peinture du XIII au XVI* sicle, n.9 303; A. Tenenti, La vie, op. cit., p. 55.

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poder portanto avaliar globalmente se no depois da concluso. Esta depende do resultado da ltima provao que o moribundo deve sofrer in hora mortis, no quarto onde vai entregar a alma. Compete-lhe vencer com o auxlio do seu anjo e dos seus intercessores, e ser salvo, ou ceder s sedues dos diabos, e estar perdido.

A ltima provao substituiu o Juzo Final. Jogo terrvel, e em termos de jogos e de apostas que Savonarole fala: Homem, o diabo joga xadrez contigo e esfora-se por te agarrar e te dar xeque-mate nesse ponto (a morte). Portanto, apronta-te, pensa bem nesse ponto, porque se ganhares nesse ponto ganhaste tudo o resto, mas se perderes, o que fizeste nada valer. 1

Tal risco tem qualquer coisa de aterrador e compreende-se que o medo do alm tenha podido conquistar ento populaes que ainda no receavam a morte. Este medo do alm traduzia-se sem dvida pela representao dos suplcios do Inferno. A aproximao entre o ponto da morte e o momento da deciso suprema arriscava estender prpria morte o medo suscitado por uma eternidade infeliz. Ser assim que se deve intrepretar o macabro?

OS TEMAS MACABROS

Os temas macabros aparecem na literatura como na iconografia aproximadamente ao mesmo tempo que as artes moriendi.

H o hbito de chamar macabras (por extenso, a partir das danas macabras) s representaes realistas do corpo humano enquanto se decompe. O macabro medieval, que tanto perturbou os historiadores desde Michelet, comea depois da morte e detm-se no esqueleto. O esqueleto ressequido, Ia morte secca, frequente no sculo xvn e ainda no sculo xvm, no pertence iconografia caracterstica do sculo XIV ao sculo XVI. Esta dominada pelas imagens repugnantes da corrupo: O cadver que j no . 2

Temos a impresso, folheando os autores, vendo as obras de arte, de que aparece um sentimento novo. A iconografia macabra contempornea das artes moriendi: exprime contudo uma mensagem diferente - apesar de talvez menos diferente do que

1 A. Tenenti, La vie.

2 P .de Nesson, Vigile ds Morts, Paraphrase sur Job, em Antologie potique franaise du Moyen Age, Paris, Garnier-Flammarion, 1967, t. n, p. 184.

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pretendem os historiadores, impressionados pela originalidade dos temas.

Claro que no difcil encontrar-lhe antecedentes. A ameaa da morte, a fragilidade da vida tinham j inspirado os artistas romanos que modelavam um esqueleto numa tigela de bronze ou desenhavam uma outra sobre o mosaico de uma casa: carpe dietn. Teriam os cristos sido insensveis a este sentimento, quando a sua religio se baseava na promessa da salvao? Tambm se encontra aqui e alm a figura da morte, sob a forma de um cavaleiro do Apocalipse. Num capitel de Nossa Senhora de Paris, na fachada do Juzo Final de Amiens, uma mulher, com os olhos vendados, retira um cadver que leva na garupa do seu cavalo. Algures, o cavaleiro segura nas mos a balana do julgamento ou o arco que mata. Mas estas ilustraes so pouco numerosas, discretas, marginais, comentam sem insistir muito nos lugares comuns da humana mortalitas.

mais explcita a literatura antiga do cristianismo? A reflexo sobre a vaidade da vida terrestre, o contemptus mundi, constante. Suscita imagens que sero retomadas pelos grandes poetas macabros.

Assim, Odon de Cluny, no sculo XI, desvenda a fisiologia humana em termos que valem os de P. de Nesson: Considerai o que se esconde nas narinas, na garganta, no ventre: por todo o lado sujidades... Mas, a bem dizer, trata-se menos de nos preparar para a morte, que de nos desviar da intimidade das mulheres, porque, prossegue o moralista: Ns, a quem repugna tocar mesmo com o dedo no vomitado ou no esterco, como podemos desejar ento apertar nos nossos braos o prprio saco de excrementos? 1

Do mesmo modo, os poetas latinos do sculo xn celebravam j a melancolia das grandes desaparecidas: Onde est agora Babilnia, a triunfante, onde esto Nabucodonosor, o Terrvel, e a fora de Dario [...]? [...] apodrecem [...]. Onde esto aqueles que estiveram neste mundo antes de ns? Vai ao cemitrio e olha para eles. J s so cinzas e vermes, as suas carnes apodreceram [...]. E mais tarde, Jacopone de Todi: Diz-me onde est Salomo, outrora to nobre, onde est Sanso, o guerreiro invencvel? 2

Nos claustros no deixava de se lembrar a monges demasiado tentados pelo sculo as vaidades do poder, da riqueza, da beleza.

J. Huizinga, L Dclin du Moyen Age, Paris, Payot, 1975, p. 144. J. Huizinga, op. cit., p. 142.

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Em breve, pouco antes da ecloso macabra, outros monges, os mendicantes, sairo dos claustros e difundiro, com grande reforo de imagens, temas que, ento, impressionaro a massas urbanas. Mas os temas destes sermonrios j se tornaram os mesmos dos poetas macabros, e pertencem a essa cultura, aparentemente nova.

Podemos desprezar esses raros e poucos expressivos predecessores das grandes vozes macabras dos sculos XIV e XV. com efeito, a imagem que a Idade Mdia, anterior ao sculo XIV, nos d da destruio universal de uma natureza completamente diferente: a poeira ou o p - no a corrupo fervilhante de vermes.

Na linguagem da Vulgata e da antiga liturgia da Quaresma, confundem-se as noes de p e de cinza. A palavra cinis tem um sentido ambguo. Designa a poeira dos caminhos com que os penitentes esto cobertos como marca de luta e de humildade, como se vestem de sacos ou de crina (in cinere et in cilicio, sacum et cinerem sternere). Designa tambm a poeira da decomposio: Lembra-te, homem, que s pulvis e que in pulverem te tornars, diz o celebrante impondo as cinzas, na primeira quarta-feira da Quaresma. Mas as cinzas entendem-se ainda como o produto da decomposio pelo fogo, que ento uma purificao.

Este movimento do p e das cinzas, constituindo a Natureza ou a Matria, pelas suas camadas sempre desfeitas e renovadas, prope uma imagem da destruio muito prxima da imagem da morte tradicional, do todos morremos.

imagem nova da morte pattica e individual do julgamento particular, das artes moriendi, dever corresponder uma nova figura da destruio.

As mais antigas representaes dos temas macabros so interessantes, porque em algumas a continuidade com o Juzo Final ou particular ainda sensvel. Por exemplo, no grande fresco do Campo Santo de Pisa, que se pode datar das vizinhanas de

1350, toda a metade superior, celeste, representa o combate dos anjos e dos demnios que disputam as almas dos defuntos. Os anjos levam os eleitos para o Cu, os demnios precipitam os condenados no Inferno. Habituados iconografia do Juzo, no ficamos desambientados. Em contrapartida, na metade inferior, procuramos em vo as imagens tradicionais, da ressurreio. No seu lugar, uma mulher envolta em longos vus, com os cabelos soltos, sobrevoa o mundo e atinge com a sua foice a juventude de uma corte de amor que no esperava isto, e despreza uma corte dos milagres que lhe suplica. Estranha personagem que tem a

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ver com o Anjo, porque voa e o seu corpo antropomorfo, e tambm com o Diabo e com a bestialidade, porque tem asas de vampiro. com efeito, ser-se- muitas vezes tentado a retirar morte a sua neutralidade, e a anex-la ao mundo diablico.

Velha sombra da terra antiga sombra do inferno

(Ronsard).

Mas tambm se considerar como dcil executora da vontade de Deus, boa comissria: Sou de Deus a isto cometida (P. Michault). Ainda se parece tambm com o juzo final de Van Eyck onde cobre o mundo com o seu corpo, como a Virgem de misericrdia cobre a humanidade com o seu manto; os abismos infernais abrem-se sob as suas pernas gigantescas. Mas aqui a morte perdeu a forma de uma mulher viva que tinha em Pisa 1.

Em Pisa, sob os golpes da sua foice, os corpos dos homens atingidos jazem no cho, com os olhos fechados, e anjos e demnios vm recolher as almas que exalam. A cena do ltimo suspiro substituiu a da ressurreio, a dos corpos reanimados saindo da terra. A passagem do Juzo Final no momento decisivo da morte individual, que j observmos nas artes moriendi, bem perceptvel ainda aqui.

Mas h uma outra cena ao lado da morte universal. Um grupo de cavaleiros fica alerta perante o espectculo terrvel de trs caixes abertos. Os mortos que a jazem esto todos num grau de decomposio diferente, segundo as etapas conhecidas h muito tempo pelos Chineses. O primeiro manteve o rosto intacto e pareceria semelhante aos jacentes que a morte abateu, mas que ainda no alterou, se o ventre no estivesse j inchado pelos gases. O segundo est desfigurado, apodrecido e ainda coberto de bocados de carne. O terceiro est reduzido ao estado de mmia 2.

O cadver meio decomposto vai passar a ser o tipo mais frequente de representao da morte: o transido. J se v cerca de 1320 nas paredes da baslica inferior de Assis, obra de um discpulo de Giotto: tem uma coroa ridcula, S. Francisco aponta-o. o principal figurante da iconografia macabra do sculo XIV ao sculo XVI. Sigamo-lo por um momento.

Encontramo-lo sem dvida nos tmulos e no poderamos, mesmo hoje, dizer muito mais que os admirveis comentrios

1 Nova Iorque, Metropolitan Museum.

2 J. Baltrusaitis, L Moyen Age fantastic, Paris, A. Colin, 1955.

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de . Mle e de E. Panofsky1. Todavia, os tmulos que analisaram so as sepulturas de grandes personagens, e de grande arte em que o transido preenche um dos andares de um monumento que muitas vezes comporta dois: em baixo, o jacente ou o transido que o substitui, e em cima o bem-aventurado no Paraso (voltaremos a esta iconografia no captulo V). Por exemplo, o tmulo do cardeal Lagrange, no museu de Avinho, o do cnego Yver, em Nossa Senhora de Paris (ver tambm em Gaignires o tmulo de Pierre dAilly, bispo de Cambrai2). Bastar lembrar aqui obras poderosas, to poderosas que podem criar iluses sobre a sua generalidade. So, na realidade, pouco numerosas e no exprimem, s por si, uma grande corrente de sensibilidade.

Existem contudo tmulos mais banais, onde os sinais cadavricos so tambm aparentes, mas sem as formas repugnantes da decomposio. O jacente est envolvido na mortalha que deixa a cabea descoberta e um p descalo. Este tipo parece frequente em Dijon (tmulo de Joseph Germain no museu de Dijon, 1424; tmulos dos dois fundadores de uma capela em S. Joo, Dijon). Reconhece-se o cadver pela salincia do maxilar descarnado. As mulheres tm os cabelos soltos desordenadamente. Os ps descalos saem da mortalha. o cadver tal como vai ser posto na terra, por pouco que tenha esperado. Ainda hoje, aos nossos olhos insensveis, no solo de uma igreja de Dijon, o espectculo impressionante.

Coisa estranha, esses transidos nem sempre ficam na posio realista dos jacentes. Sobre uma outra laje tumular de Dijon (S. Miguel, 1521), os dois transidos, em vez de estarem deitados lado a lado, esto ajoelhados de cada lado de um Cristo majestoso. Ocuparam o lugar dos que oram ao cu e no dos jacentes.

Num tmulo da Lorena do sculo XVI, proveniente do espao descoberto de um cemitrio ( uma esteia encimada por uma cruz), uma mmia est sentada, com a cabea na mo (Nancy, museu da Lorena); todavia, o pintor e o seu cliente sentiram reticncias em mostrar os sinais da decomposio e o seu transido discreto.

Ficamos hoje impressionados quando essa discreo ultrapassada e substituda por um expressionismo macabro. Mas no devemos enganar-nos sobre a raridade destes casos. Se se elaborasse uma estatstica dos tmulos do sculo XIV ao sculo XVI,

1 Mle, LArt rligieux en France, Paris, A. Colin (1931-1950); E. Panofsky, Tomb Sculpture, Londres, 1954.

1 J. Adhmar, ,MaiceloRe\x\o de Sousa

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60 - A Opinio e a Multido. Gabriel Tarde

61 - A Simetria

62 - As Morais da Histria. Tzvetan Todorov

63 - O Mtodo IV -As Ideias. Edgar Morin

64 - Introduo Histria e Cultura Pr-Clssica, Jos Nunes Carreira

65 - Introduo Qiimica-Fsica, Guy Emschwiller

66 - Introduo Filosofia de Heidegger. Alain Boutot

67 - Mito. Mundo e Monotesmo. Jos Nunes Carreira

68 - Textos Essenciais sobre Literatura, Arte e Psicanlise. Sigmund Freud

69 - A Ps-Meidernidade. Barry Smart

70 - Direito Internacional, Jean Touscoz

71 - Filosofia Antes ele>s Gregos, Jos Nunes Carreira

72 - Histria e Poltica no Pensamento de Kant. Viriato Soromenho-Marques

73 - Entropia - Teoria Geral deis Sistemas, ). Pinto Peixoto e F. Carvalho Rodrigues

74 - A Era da Cidadania - DeMa/uiavelaJefferson, Viriato Soromenho-Marques

75 - Outra Face do Oriente1. Jos Nunes Carreira

76 - Utopia: Unta viso ela engenharia de>s sonhos, Antnio Marques Bessa

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