Aristoteles e a Linguagem

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Filosofia

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  • RVIA SILVEIRA FONSECA

    ARISTTELES E A LINGUAGEM: Estudo e traduo do Per hermeneas (partes 1-6)

    Tese apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas, como requisito parcial, para obteno do Ttulo de Doutor em Lingstica.

    Orientador: Prof. Dr. Flvio Ribeiro de Oliveira

    Co-orientador: Prof. Dr. Marcos Aurlio Pereira

    CAMPINAS 2009

  • 2

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca do IEL - Unicamp

    F733a

    Fonseca, Rvia Silveira. Aristteles e a linguagem : estudo e traduo do Per hermeneas

    (partes 1-6) / Rvia Silveira Fonseca. -- Campinas, SP : [s.n.], 2009.

    Orientador : Flvio Ribeiro de Oliveira. Co-orientador : Marcos Aurlio Pereira. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto

    de Estudos da Linguagem.

    1. Aristteles. Per hermeneas - Traduo e interpretao. 2. Linguagem. I. Oliveira, Flvio Ribeiro de. II. Pereira, Marcos Aurlio. III. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. IV. Ttulo.

    oe/iel

    Ttulo em ingls: Aristotle and the language: study and translation (parts 1-6). Palavras-chaves em ingls (Keywords): Aristotle. Per hermeneas - Translating and interpreting; Language.

    rea de concentrao: Lingustica. Titulao: Doutor em Lingustica.

    Banca examinadora: Prof. Dr. Flvio Ribeiro de Oliveira (orientadora), Prof. Dr. Daniel Rossi Nunes Lopes, Profa. Dra. Patrcia Prata, Profa. Dra. Josiane Teixeira Martinez e Profa. Dra. Regina Souza Gomes.

    Data da defesa: 27/02/2009.

    Programa de Ps-Graduao: Programa de Ps-Graduao em Lingustica.

  • 5

    Para aqueles que tornaram possvel

    a concluso deste trabalho: irms, amigos, professores.

  • 7

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo,

    Especialmente, ao meu orientador, Prof. Flvio Ribeiro de Oliveira, pela

    confiana, pelo apoio e incentivo, desde de minha entrada no programa de ps-graduao

    da UNICAMP, at o trmino deste trabalho.

    Ao Prof. Marcos Aurlio Pereira que aceitou co-orientar este trabalho e me

    ajudou a realizar a qualificao.

    Aos Profs. Daniel Rossi Nunes Lopes, Patrcia Prata e Josiane Martinez por

    terem aceitado participar da banca de defesa da tese to prontamente.

    amiga e Profa. Regina Souza Gomes por fazer parte da banca de defesa e por

    estar ao meu lado nesse momento difcil que o trmino de um trabalho de doutorado.

    Aos Profs. Trajano Vieira e Lucas Angioni por participarem da banca de

    qualificao deste trabalho, sugerindo mudanas essenciais para que o trabalho se

    concretizasse.

    Profa. Anna Christina Bentes que me orientou no trabalho de qualificao na

    rea de Lingstica Textual mesmo sem me conhecer.

    s Profas. Ingedore Koch e Edwiges Morato que participaram da banca de

    qualificao na rea de Lingstica Textual.

  • 8

    Aos funcionrios da Ps-Graduao, Cludio e Rose, pela ajuda com toda a

    burocracia, garantindo que eu pudesse fazer tudo dentro do prazo.

    A minha amiga Ana que, mesmo sem ser da rea, me ajudou na leitura dos

    textos e comentrios, fundamentais para desenvolver este trabalho. Sem sua ajuda e

    companhia, no teria conseguido chegar ao final do percurso.

    Ao Luiz Antonio por garantir que meu Currculo Lattes estivesse atualizado e

    tambm por tomar conta dos meus alunos quando precisei me ausentar da sala de aula para

    estar na UNICAMP.

    A minha irm e amiga Raquel pela fora nas horas difceis, pela reviso dos

    originais, pelas ligaes interminveis para falar da vida e da tese, e pela companhia da

    vida toda.

    A minha irm Naiara por ter me ajudado com os problemas do meu local de

    trabalho.

    A Profa. e amiga Bethnia Mariani que me incentivou a trilhar o caminho da

    Lingstica e que me ensinou a Anlise de Discurso francesa.

    Profa. Terezinha Bittencourt pelas aulas que inspiraram a realizao de meu

    projeto de doutorado.

    amiga Slvia Maria, ao amigo Gerson Rodrigues, ao amigo Luiz Eduardo, ao

    amigo e Manuel Rolph pelo incentivo durante os momentos mais difceis e por acreditarem

    que eu seria capaz de realizar este trabalho.

    Ao CNPq pela bolsa concedida para realizao desta pesquisa.

  • 9

    Os sentidos viajam em memria des-contnua, reverberando

    filiaes h muito esquecidas e descortinando um tempo em que se

    lineariza por conta do modo ocidental de narrar as coisas

    acontecidas. So sentidos predominantes ou silenciados,

    resultantes do embate entre as interpretaes, e que deixam lacunas

    entrevistas nos resduos, no que escapa ao controle das grandes

    narrativas.

    Bethania Mariani

  • 11

    RESUMO

    Este trabalho constitui-se de estudo e traduo das partes 1-6 do Per

    hermeneas, de Aristteles. Essas partes, de acordo com a crtica especializada, formam

    uma seo lingstica, na qual o filsofo apresenta as linhas gerais de uma teoria da

    linguagem, que lhe serve de base para o desenvolvimento de um estudo a respeito das

    asseres, tipos de sentenas s quais se pode atribuir um valor de verdade ou de falsidade.

    Buscou-se, assim, analisar tais partes a partir de uma perspectiva lingstica e no

    estritamente filosfica, com o intuito de ressaltar a relevncia do tratado para os estudos da

    linguagem, sobretudo, aqueles que se ocupam da questo da significao, incluindo-se

    nessa discusso o debate acerca da arbitrariedade do signo lingstico e do

    convencionalismo da linguagem.

  • 13

    ABSTRACT

    This work constitutes a study and translation of parts 1-6 of Per hermeneas, of

    Aristotle. These parts, according to specialized critics form a language section, in which

    the philosopher presents the outlines of a theory of language, which serves as the basis for

    development of a study about the assertions, types of sentences to which it can assign a

    value of truth or falsehood. It was therefore examine such shares from a linguistic

    perspective and not strictly philosophical, in order to emphasize the relevance of the treaty

    to the study of language, especially those concerned with the question of meaning,

    including in this discussion the debate about arbitrariness of linguistic sign and the

    language conventionalism.

  • 15

    SUMRIO

    APRESENTAO..............................................................................................................09

    1. INTRODUO...............................................................................................................18 1.1. Os limites da traduo....................................................................................................18 1.2. A questo da significao na Grcia Antiga..................................................................33

    2. ARISTTELES E A LINGUAGEM: comentrios ao Per hermeneas....................46 2.1. Estrutura e contedo do Per hermeneas......................................................................46 2.2 O sentido da expresso Per hermeneas: comentrios ao ttulo.....................................50 2.3. O princpio da arbitrariedade do signo lingstico: comentrios parte 1.....................53 2.4. Definies de nome e verbo: comentrios s partes 2 e 3..............................................77 2.5. Sentenas, asseres e contradio: comentrios s partes 4,5 e 6................................89

    3. PER HERMENEAS, de Aristteles: traduo e notas (partes 1-6).........................98 3.1. Parte 1.............................................................................................................................98 3.2. Parte 2...........................................................................................................................100 3.3. Parte 3...........................................................................................................................102

    3.4. Parte 4...........................................................................................................................103 3.5. Parte 5...........................................................................................................................104 3.6. Parte 6...........................................................................................................................105

    4. CONCLUSO...............................................................................................................106

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................110

    ANEXO 1: TEXTO GREGO ESTABELECIDO POR L. MINIO-PALUELLO, OXFORD CLASSICAL TEXT, 1949. ..............................................................................115

  • 17

    APRESENTAO Todos os homens, por natureza, tendem ao saber.

    Aristteles

    Este trabalho resultado das reflexes acerca das questes referentes ao

    fenmeno da linguagem presentes no pensamento de Aristteles, um tema rduo para

    quem, como eu, no tem formao acadmica em Filosofia, rea em que se concentra a

    produo bibliogrfica que trata do assunto. Assim, o texto que segue para o leitor , acima

    de tudo, uma tentativa de explorar, de especular, de pensar sobre o objeto linguagem a

    partir dos conceitos basilares de uma teoria1 da linguagem desenvolvida pelo filsofo

    grego. Devo dizer que o trabalho, de maneira alguma, tem a pretenso de esgotar o tema

    que se mostrou, no decorrer da pesquisa, alm de atual, um terreno frtil para contnuas

    pesquisas.

    A discusso sobre uma teoria da linguagem ou da significao na obra

    aristotlica no recente no mbito da filosofia. No entanto, h algumas dcadas possvel

    observar um interesse renovado e crescente com relao a tais questes na obra do filsofo

    no mbito dos estudos da linguagem. Isso ocorre, muito provavelmente, em funo dos

    1 O termo deve ser entendido aqui em seu sentido mais amplo e comum, como sinnimo de especulao ou

    pensamento.

  • 18

    rumos que a prpria cincia lingstica tomou desde sua inaugurao com Saussure at as

    teorias textuais e discursivas mais atuais, com as quais a questo da significao vem tona

    e se torna objeto de estudo de muitas reas que se interessam pelos processos de produo

    do significado e de atribuio dos sentidos.

    Diferentemente do que possa parecer, em funo de no existir nenhum tratado

    especfico sobre a linguagem de autoria do filsofo, o fenmeno da linguagem questo

    fundamental na filosofia de Aristteles, analisado no s como expresso do pensamento

    racional, que engloba as questes relativas lgica e s condies de verdade ou

    vericondicionalidade, tambm visto como possibilidades de diferentes formas de

    expresso que se encontram na poesia, no teatro, na retrica, no uso dirio, etc.

    So muitas as passagens, ao longo de vrios tratados, tais como a Metafsica, o

    Sobre alma, a Potica, a Retrica, e todo o conjunto de textos que forma o rganon, em

    que as questes relativas ao fenmeno da linguagem so discutidas por Aristteles.

    Selecionar essas passagens e, depois, estud-las separadamente para, ento, contextualiz-

    las no todo da obra, seria uma tarefa ambiciosa que levaria muito mais tempo do que o que

    teria para concluir a pesquisa, considerando-se que a abordagem proposta seria mais

    lingstica do que filosfica.

    Assim, como no seria possvel examinar toda sua obra para verificar as

    passagens em que o filsofo aborda a questo da linguagem humana2, em funo do tempo

    e dos limites da pesquisa, optei por ater-me somente ao estudo do Per hermeneas, ou De

    2 Empreendimento que ainda pretendo levar adiante em futuras pesquisas.

  • 19

    interpretatione3. Leituras preliminares do tratado mostraram que para um estudo dos

    aspectos lingsticos, a primeira metade do texto, que ao todo apresenta catorze partes,

    aquela em que o autor discute as questes mais relevantes. Ento, por sugesto do professor

    Lucas Angioni4, estabeleci um novo recorte e limitei o trabalho traduo e ao comentrio

    s questes esboadas nas primeiras seis partes do tratado5. Esse recorte amparado ainda

    pelo estudo realizado por C. W. Whitaker (1996), autor cujos comentrios acompanharei de

    perto. Ele afirma que as partes 1-6 do tratado formam uma espcie de introduo,

    constituda por captulos lingsticos, na qual Aristteles apresenta sua viso sobre a

    linguagem a fim criar uma base para o estudo da expresso lgica6 nas partes seguintes o

    qual, segundo Whitaker, o verdadeiro objeto de estudo deste tratado aristotlico.

    no Per hermeneas que se encontra esboada uma das questes mais caras

    lingstica moderna: o princpio da arbitrariedade do signo lingstico. Por causa disto, esta

    questo ocupa uma parte considervel no captulo destinado aos comentrios obra. Alm

    disso, na parte do tratado que ser por mim traduzida, o filsofo trabalha, ainda, as

    definies de nome, verbo, assero e os procedimentos de afirmao e negao. As

    explicaes aristotlicas para tais elementos do discurso, no raro, misturam critrios

    lgicos, gramaticais e semnticos, pois para ele tais critrios no se apresentavam to

    distanciados, tal como hoje, muitas vezes, se v. Tais questes so, a meu ver, bastante

    3 Per hermeneas o nome do tratado em lngua grega e poderia ser traduzido, como se faz tradicionalmente,

    como Sobre a interpretao. No entanto, no utilizamos tal traduo aqui porque mais adiante, no terceiro captul,o dedico uma parte do comentrio s possibilidades de traduo do ttulo. De interpretatione o ttulo latino, mais conhecido que o grego. 4 O Professor Doutor Lucas Angioni, do curso de filosofia da UNICAMP, participou da banca de qualificao

    deste trabalho. especialista na obra aristotlica e publicou a traduo das partes 1-6 para tratar da Teoria da Predicao na obra de Aristteles. 5 A respeito da estrutura do tratado, trataremos mais especificamente na prxima seco.

    6 Aristteles chama essa expresso lgica de logos apophantikos, que ns traduzimos por assero, mas o

    termo tambm se traduz por proposio (Cf. Coseriu, 1987; Neves, 2005; etc.)

  • 20

    instigantes e suscitam o interesse daqueles que se propem realizar pesquisas tanto na rea

    de Semntica e Filosofia da linguagem, quanto daqueles que, como eu, buscam estudar a

    histria das idias lingsticas a partir de uma abordagem discursiva.

    A motivao para realizar a proposta de trabalho aqui esboada oriunda do

    fato de eu ter uma formao acadmica em Letras Clssicas e um desenvolvimento

    profissional na rea da Lingstica.7 O gosto pelos estudos da linguagem no me tirou o

    prazer do estudo da lngua e da cultura gregas, por isso tentei unir dois objetos de meu

    interesse: estudar o texto grego em que se esboaram algumas das primeiras e mais

    importantes reflexes acerca da linguagem humana no Ocidente.

    O que norteou o trabalho desde o incio, ainda que este tenha sofrido desvios

    pelo caminho, sempre foi o fato de que, apesar de apresentar um contedo to rico para se

    discutir a questo da significao, atualssima nos estudos da linguagem modernos, o

    tratado no mbito desta rea no era muito lido ou mesmo conhecido. Foi essa, ao menos, a

    experincia que tive como aluna e como professora de lingstica. Mesmo nos cursos de

    lngua e literatura grega, ouvi falar muito pouco acerca do Per hermeneas.

    A prpria lngua grega em que o texto foi escrito se torna um obstculo difcil

    de ser transposto por quem no da rea de Clssicas. As tradues existentes em lngua

    portuguesa ainda so poucas. Quando iniciei este trabalho no havia tradues do tratado

    em lngua portuguesa do Brasil.8 Algumas apareceram no decorrer dos ltimos quatro anos,

    mas o nmero ainda pequeno se comparado ao nmero de tradues de outras obras do

    7 Quando aluna da graduao, fui bolsista de iniciao cientfica, CNPq e Faperj, em ambas as reas. Depois,

    trabalhei cerca de cinco anos com lngua grega, e nos ltimos seis anos tenho lecionado diferentes disciplinas na rea de Lingstica. 8 Inclusive, em funo disso, inicialmente, minha inteno era traduzir todo o tratado.

  • 21

    filsofo9. Os estudos e comentrios ao texto em questo tambm so escassos em lngua

    portuguesa e, muito mais raros, ainda, aqueles trabalhos que procuram relacionar filosofia e

    lingstica.

    Nesse sentido, para realizar o trabalho proposto, foi preciso delimitar alguns

    princpios terico-metodolgicos. A leitura10 de um texto (independentemente de sua

    materialidade11) precisa ser suportada por uma teoria de interpretao para que no se

    transforme num grande procedimento de parfrase, no qual se repetem as leituras outras, j

    realizadas sem qualquer estranhamento. No caso da traduo, mergulha-se na iluso de que

    ao reelaborar o texto em outra lngua possvel no interpret-lo. Por isso, utilizo como

    teoria de interpretao a Anlise de Discurso francesa, desenvolvida por Michel Pcheux na

    dcada de 60, cujos princpios tericos e procedimentos metodolgicos encontram seu

    fundamento na Lingstica, no Materialismo Histrico e na Psicanlise. Esse ser o lugar

    terico-metodolgico do qual farei minha leitura de Aristteles12.

    Assim, a leitura aqui proposta se circunscreve numa perspectiva discursiva da

    histria das idias lingsticas. No ser uma leitura historiogrfica, nem, como dito

    anteriormente, filosfica. Meus objetivos gerais so: procurar expor pormenorizadamente

    alguns pontos nodais do texto aristotlico; tecer algumas consideraes sobre o modo

    9 A respeito das tradues aqui mencionadas falarei mais adiante, em breve comentrio s tradues por mim

    utilizadas como material de apoio e pesquisa. 10

    Considero, aparada no quadro terico da Anlise de Discurso francesa que a traduo de um texto uma das leituras possveis do texto. Sobre o que se entende por leitura, de acordo com a AD, explico mais adiante, na Introduo deste trabalho. 11

    Trata-se aqui da materialidade lingstica da qual fala a Anlise de Discurso francesa na sua tradicional definio de texto materialidade lingstica, objeto emprico. Esta materialidade pode ser verbal ou no verbal. 12

    Na primeira seo da Introduo, ao tratar mais especificamente dos problemas relacionados ao processo da traduo, abordo alguns conceitos que serviram de pressupostos para realizar esta proposta de leitura.

  • 22

    como Aristteles tem sido lido e interpretado. Por sua vez, os objetivos especficos deste

    estudo so:

    1. Traduzir o texto do Per hermeneas partes 1-6;

    2. Apresentar e elaborar comentrios sobre as reflexes acerca da linguagem

    desenvolvidas por Aristteles no Per hermeneas partes 1-6 e tambm sobre os

    comentrios dos tericos estudados;

    3. Relacionar a questo da arbitrariedade do signo lingstico, tpico principal da parte

    que ser estudada no Per hermeneas, com a abordagem realizada pela Lingstica.

    O texto utilizado para a traduo ser o texto grego estabelecido por L. Minio-

    Paluello, publicado pela Oxford University Press. A primeira edio do texto, que contm

    notas de rodap com indicaes das variantes, data de 1949, e a ltima reimpresso, de

    1989. Algumas tradues servem de referncia para o trabalho: a traduo do grego para o

    francs feita por J. Tricot, publicada pela Librairie Philosofique J. Vrin, em 1984; a

    traduo em lngua portuguesa, feita por Pinharanda Gomes, publicada pela Guimares

    Editores, de Portugal, em 1985. Alm destas, tambm usamos como referncia tradues

    em lngua inglesa elaboradas por Harold P. Cooke, publicada pela primeira vez na Loeb

    Classical Library, em 1938, com a ltima reimpresso publicada em 2002; e por J. L.

    Ackrill, publicada pela Claredon Press, Oxford, em 1963, com reimpresso em 2002,

    seguida de comentrios.

    Durante a elaborao deste trabalho, foi publicada uma traduo de todo o

    rganon, em portugus do Brasil, feita por Edson Bini, lanada pela Edipro em 2005. O

    autor utilizou o texto grego estabelecido por Immanuel Bekker, tendo recorrido aos textos

    de L. Mnio-Paluello, W. D. Ross e J. Brunshwig, quando julgou necessrio. Tambm em

  • 23

    2005, foi publicada a traduo das partes 1-6 do Per hermeneas elaborada pelo Professor

    Lucas Angioni, em obra que se ocupa da Teoria da Predicao.

    As principais referncias tericas sobre a obra aristotlica estudada, usadas

    neste trabalho, so os comentrios ao Per hermeneas dos seguintes autores: Ackrill (1963,

    reimpressa em 2002) e Whitaker (1996). O trabalho de ambos especfico sobre o

    contedo do tratado aristotlico em questo. Alm deles, utilizo tambm partes do trabalho

    de Modrak (2001) e de Angioni (2005), a primeira aborda sobre vrias obras de Aristteles

    na tentativa de delinear uma teoria da linguagem e da significao, numa perspectiva que

    pende para uma abordagem cognitivista; o segundo utiliza trechos do Per hermeneas e

    trechos de outras obras para discutir a teoria da predicao em Aristteles, como dito

    anteriormente.

    No que diz respeito ao dilogo que fao com os estudos da linguagem,

    apresentarei as vises de Saussure e Todorov, explicitadas por Garcia (1994) em tese sobre

    a questo da motivao do signo e a viso de Coseriu (1980a, 1980b, 1987), pois ele

    comenta o percurso do princpio da arbitrariedade desde Aristteles at sua poca. Essas

    referncias sero utilizadas para os comentrios primeira parte do tratado porque nela

    que se encontra esboado o princpio da arbitrariedade do signo lingstico. Para o

    comentrio s outras partes do tratado, utilizo especialmente as explanaes de Ackrill

    (1963), Whitaker (1996) e Angioni (2006).

    O trabalho est dividido em trs pares principais: introduo, estudo e traduo.

    Na introduo, discutem-se os limites da traduo, delineando-se como o trabalho ser

    realizado; apresentam-se, ainda, as noes de leitura e comentrio, tal como formuladas

    pela Anlise de Discurso francesa. Tambm na introduo, busco contextualizar a questo

  • 24

    da significao na Grcia Clssica para que o leitor compreenda melhor a proposta de

    Aristteles com relao arbitrariedade do signo lingstico, dadas as condies scio-

    histricas em que o autor se encontrava no momento da produo do seu texto. Para tanto,

    apoiei-me, principalmente, na explanao de Modrak (2001) sobre o Crtilo, dilogo de

    Plato em que as principais tendncias sobre a natureza da linguagem so esboadas e

    analisadas pelo filsofo e nas consideraes de Martins (2003) sobre as teses em disputa na

    Grcia Antiga.

    No captulo 2, que se divide em cinco sees, elaboro o comentrio s partes

    traduzidas do Per hermeneas. Na primeira seo, apresento a estrutura e o contedo do

    Per hermeneas a fim de preparar o leitor para o que ele encontrar no texto aristotlico e

    tambm para que se tenha uma idia geral do que discutido no tratado. Isso importante,

    uma vez que o tratado no ser traduzido integralmente. A segunda seo do captulo

    constitui-se de uma breve reflexo sobre os possveis sentidos que o ttulo do tratado

    poderia ter; a terceira seo a mais importante porque ali que se apresenta a discusso

    terica com base nos autores citados anteriormente sobre a questo da significao que

    envolve o princpio da arbitrariedade do signo lingstico; na terceira seo, faz-se o

    contraponto entre os comentrios de Ackrill e Whitaker a respeito das definies de nome e

    verbo; por fim, na quarta seo, continuando com o suporte dos referidos autores, comenta-

    se a definio de assero, os tipos de sentenas, e tambm os processos de afirmao e

    negao das asseres na formao dos pares contraditrios. O captulo 3 destinado

    traduo com notas do Per hermeneas partes 1-6 e o captulo 4, concluso do trabalho,

    na qual se faz uma reviso de tudo o que foi desenvolvido e acrescentam-se consideraes

    pessoais, fruto de todo o processo da pesquisa.

  • 25

    1. INTRODUO

    Um clssico um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. clssico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatvel. Os clssicos so aqueles livros que chegam at ns trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrs de si os traos que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).

    talo Calvino

    1.1. Os limites da traduo

    Os efeitos das muitas leituras da obra de Aristteles (384-322 a.C.) realizadas

    ao longo do tempo, tanto nas reas tecnolgicas e biolgicas quanto nas reas humanas, no

    podem ser ignorados. Desde a Antigidade, com Andrnico de Rodes (130-60 a.C.),

    Alexandre de Afrodisias (170-230), passando por Bocio (470-524), no incio do perodo

    medieval, Aristteles seguiu sendo lido e interpretado por telogos e intelectuais laicos, ora

    em evidncia, ora silenciado, at sua retomada feita pela Escolstica e Toms de Aquino

    (1221-1274); passando por filsofos como Kant (1724-1804), Hegel (1770-1831),

    Heidegger (1889-1976), e outros, como Marx (1818-1883), Feuerbach (1804-1872),

    Kierkegaard (1813-1855), as leituras de sua obra alternaram-se entre veementes defesas e

  • 26

    durssimas crticas. De acordo com Berti (1997, p.18), trata-se, indubitavelmente, de

    diferentes usos de Aristteles (...), mas todos igualmente legtimos. Um fato, no entanto,

    deve ser observado com relao s vrias interpretaes da obra aristotlica: foram, em sua

    maioria, realizadas no interior da Filosofia, seja ela geral, poltica, da cincia ou da

    linguagem.

    Quando, hoje, lemos uma das obras do filsofo, o texto que se l, sua traduo

    do original grego, na maior parte das vezes amparado na viso de um filsofo ou em uma

    teoria filosfica. Poucas so as leituras provenientes de outros lugares, tais como a

    Lingstica. Uma das poucas interpretaes que fez despertar minha curiosidade acerca das

    reflexes sobre o fenmeno da linguagem desenvolvidas pelo filsofo grego a leitura

    realizada por Eugenio Coseriu, lingista e fillogo romeno, que desenvolveu uma vertente

    do Estruturalismo, conhecida como Estruturalismo Coseriano.

    Dois artigos de Coseriu, em especial, chamaram-me a ateno: A

    arbitrariedade do signo: sobre a histria tardia de um conceito aristotlico (1980) e

    Logicismo e antilogicismo na gramtica (1987). No primeiro, Coseriu toma como ponto

    de partida para sua reflexo o princpio da arbitrariedade do signo lingstico registrado no

    Curso de lingstica geral (1916), obra atribuda a Ferdinand de Sassure, com o intuito de

    mostrar que tal princpio foi apenas retomado no Curso pelo lingista genebrs, uma vez

    que a idia da arbitrariedade j havia sido constatada e afirmada no Per hermeneas por

    Aristteles:

    , portanto, perfeitamente legtimo falar de um principe saussurien de larbitraire du signe [princpio saussuriano da arbitrariedade do signo], se por isso se entende a interpretao especial que Saussure d do princpio da

  • 27

    arbitrariedade e da relevncia que ele adquire na teoria saussuriana da linguagem. Mas totalmente falso e ilusrio falar de um principe saussurien, se por isso se

    entende o princpio como tal, pois o princpio mesmo tem j a respeitvel idade de dois mil e trezentos anos. (COSERIU, 1980, p. 63)

    Para Coseriu, o mrito de Saussure, como autor, foi, em primeiro lugar,

    sintetizar uma longa tradio de debates em torno da questo do signo e, em segundo lugar,

    dar nfase ao princpio da arbitrariedade e relacion-lo com a noo de valor. No outro

    artigo (1987), Coseriu problematiza a atribuio de um carter logicista aos estudos

    lingsticos, decorrente de uma leitura, segundo o prprio Coseriu, inadequada e mesmo

    errnea da obra de Aristteles realizada no interior da Lingstica:

    O erro logicista fundamental considerar a linguagem como um objeto de natureza lgica; melhor dizendo, como produto do pensamento lgico. Este erro, como outros que o Estagirita nunca cometeu, costuma ser atribudo a Aristteles.

    A infeliz frase de F. Mauthner se Aristteles tivesse falado chins ou dacota

    sua lgica e suas categorias teriam sido diferentes repete-se amide, ora para

    afirmar que Aristteles deduziu sua lgica da linguagem, que uniu a linguagem lgica. Mas Aristteles no fez nem uma nem outra, estabeleceu, isso sim, com

    toda clareza, a prioridade da linguagem em relao ao pensamento lgico,

    indicando que a linguagem como tal simplesmente logos semntico: expresso significativa, em que no h verdade nem falsidade, pois estas ocorrem apenas na afirmao e na negao, no logos apofntico. Ademais, Aristteles excluiu a possibilidade de equvocos, precisando textualmente que a splica, por exemplo,

    expresso semntica, mas no verdadeira nem falsa e por isso no constitui

    proposio. (COSERIU, 1987, pp.176-177)

    As leituras da obra de Aristteles, a que Coseriu se refere e que construram

    uma imagem logicista da obra do filsofo, foram de certo modo reduzidas s leituras de

    uma parte do rganon, ttulo sob o qual foram reunidos os textos dedicados ao pensamento

  • 28

    lgico. O erro logicista a que Coseriu faz meno diz respeito ao fato de se pensar que o

    aspecto lgico precede a linguagem, reduzindo-a a uma forma de expresso do lgico. Tal

    modo de ler Aristteles se difundiu, sobretudo, durante a Idade Mdia.

    Na tentativa de laicizar os princpios religiosos cristos, amparando-os em

    idias filosficas, os escolsticos medievais atriburam, ao que parece, excessivo valor ao

    aspecto lgico da linguagem, desenvolvido por Aristteles para aplicao muito especfica

    na linguagem cientfica. A difuso da idia de um Aristteles fundamentalmente lgico

    parece-me to reducionista quanto idia de um Saussure exclusivamente sistemtico.

    Essas so leituras possveis, mas no so e no devem ser as nicas.

    A viso de Coseriu ser retomada mais adiante nos comentrios sobre a questo

    da arbitrariedade. Por ora, basta saber que foram seus questionamentos que me levaram a

    traduzir e estudar o texto aristotlico com a finalidade de entender os conceitos aristotlicos

    da linguagem, partindo de um outro lugar que no fosse exclusivamente o da Filosofia.

    importante dizer que a idia no redimir o filsofo perante a Lingstica, mas sim apontar

    uma outra direo para a interpretao do texto aristotlico. Para trilhar essa outra direo

    nos propusemos traduzir e comentar o texto, desse modo, faz-se necessrio estabelecer os

    limites do caminho que ser percorrido.

    A traduo de um texto de Aristteles nunca fcil ou simples de se realizar, e

    existem alguns motivos para isto: a) o texto antigo; b) o texto foi escrito em grego antigo;

    c) o texto filosfico e j se tornou clssico, no sentido de cannico, reconhecido; d) o

    texto se ampara numa longa tradio de leitura e traduo; e) a linguagem do prprio

    Aristteles no clara, acessvel; f) o tipo de texto tambm dificulta sua compreenso

  • 29

    porque so notas de aula e textos para alunos, isto para iniciados; os textos do filsofo que

    restaram, diferentemente do que o que aconteceu com Plato, no so textos de divulgao.

    O vocabulrio do texto aristotlico guarda algumas especificidades. Se por um

    lado antigo para o leitor dos dias atuais, e isso causa equvocos a sua compreenso,

    exigindo desse leitor um conhecimento prvio, que mesmo limitado, das idias do filsofo

    e das leituras que se fizeram do seu texto; por outro lado, esse vocabulrio bastante novo

    se levamos em considerao o contexto histrico de produo do texto, isso porque grande

    parte dos termos que o filsofo utilizou em sua obra foi cunhada ou fixada por ele. Mais

    surpreendente, ainda, o fato de que, apesar de sua complexidade e especificidade, uma

    vez que se aplica a um contexto filosfico, o vocabulrio de Aristteles tenha deslizado

    para o vocabulrio comum, perdurando por sculos no linguajar da sociedade ocidental

    moderna. Isso se observa, por exemplo, no uso de termos em lngua portuguesa, tais como:

    substancial, essencial, forma, matria, universal, potencial, entre outros (MESQUITA,

    2005, p. 469-472).

    Calvino (2004) enumera algumas razes para que se continuem lendo e relendo

    obras que se tornaram referenciais de qualidade literria, os conhecidos clssicos. Antes de

    explicitar tais razes, o autor procura definir o que um texto clssico. Dentre as definies

    possveis, as trs que servem como epgrafe desta introduo destacam-se, pois parecem

    descrever com preciso caractersticas da obra de Aristteles. A obra de Aristteles pode

    ser considerada clssica, em primeiro lugar, porque foi produzida no final do perodo da

    histria da Grcia Antiga denominado Clssico, entre os sculos V e IV a.C; e, em segundo

    lugar, a obra de Aristteles, ou pelo menos grande parte dela, ainda que tantos anos nos

    separem de seu autor, no disse tudo o que tem a dizer, atual e trata de questes que esto

  • 30

    no topo das agendas de muitas disciplinas contemporneas, e, alm de tudo, deixou marcas,

    pistas, vestgios no pensamento ocidental. Assim, parafraseando Calvino, perguntamos: por

    que traduzir um clssico? Mais especificamente: por que traduzir esse texto clssico: o Per

    hermeneas?

    A traduo de um texto escrito numa determinada lngua para outra sempre

    um movimento de reescritura do texto original. Este, por sua vez, deixa de ser o original e

    torna-se outro, de certa forma atual, ainda que se possam encontrar nele os vestgios dos

    sentidos do primeiro. Nesse sentido, o tradutor tambm autor nesse movimento. Traduzir

    textos escritos de uma lngua clssica, como o grego, para uma lngua neolatina moderna,

    como o portugus do Brasil, , sem dvida, um empreendimento rduo, visto que a

    disparidade dos contextos em que essas lnguas se inserem bastante grande.

    A lngua grega clssica utilizada por Aristteles em sua obra, alm de pertencer

    a um universo que j no temos mais como alcanar, a no ser pelos estudos dos estudos da

    Antigidade, encontra-se imersa no pensamento filosfico de seu usurio. Do ponto de

    vista do aspecto lingstico, como foi dito, o texto no regular, uniforme, mas se

    apresenta com as caractersticas prprias de sua formulao: so notas de aula, escritos cujo

    objetivo didtico se evidencia na maneira como o autor se detm nas tentativas de oferecer

    minuciosas explicaes sobre conceitos, mas que em vrios momentos deixa lacunas,

    explanaes inacabadas. O texto cheio de referncias a outros textos do prprio autor e

    tambm, mesmo que implicitamente, cheio de referncias a uma tradio de estudos

    filosficos sobre a linguagem existente j naquela poca.

    Em virtude de tudo o que foi dito, pensamos que uma proposta de traduo do

    Per hermeneas no pode ser considerada suprflua ou incua. justamente por suas

  • 31

    caractersticas que o texto deve ser lido e traduzido tantas e quantas vezes forem

    necessrias. Como, certa vez, afirmou Ribeiro13, num encontro na UNICAMP, o texto de

    Aristteles no pode, nem deve ser lido como uma relquia, no sentido de algo

    ultrapassado, velho, distante de nossa realidade e, por isso mesmo, sem valor. Nas palavras

    de Berti (2002, p. 7), em obra que avalia a influncia do filsofo grego no sculo XX,

    seria sinal de ignorncia acreditar que Aristteles tenha desaparecido da cena da filosofia

    europia (...). Seria ignorncia ainda acreditar que tenha sobrevivido somente na tradio da

    escolstica, rejuvenescida pela Igreja Catlica (...). Berti apresenta, nesse texto, uma bela e

    fundamentada defesa do filsofo grego, mostrando que o sculo XX, apesar dos avanos

    cientficos, continuou devedor do estagirita, no sentido de se manter fiel tradio

    inaugurada com as leituras de sua obra no Ocidente. E, ao justificar, na concluso do livro,

    o porqu de ainda se ler e estudara Aristteles, Berti afirma (op.cit., pp. 319-320):

    Que sentido tem, ento, esta ilustrao da presena de Aristteles no sculo XX, alm daquela, completamente bvia, de fornecer uma srie de informaes? Por

    que, em outras palavras, Aristteles ainda to presente, depois de todo o mal (e o bem) que se falou dele no curso de dois mil e trezentos anos? Porque, respondo, a filosofia de Aristteles talvez seja um caso nico, na histria, de sistema aberto, isto , de filosofia que, por um lado, um verdadeiro sistema, vale dizer,

    um complexo articulado e orgnico de partes, dotado de uma grande diferenciao interna, mas igualmente tambm de uma certa unidade; e, por

    outro, um sistema aberto, no sentido de que suscetvel de contnuas

    integraes, ou melhor, de mltiplas utilizaes, dada a sua grande versatilidade,

    atestada por uma fortuna entre as maiores que jamais se deram e por uma presena macia, como vimos, na prpria filosofia do sculo XX.

    13 Refiro-me ao Professor Doutor Flvio Ribeiro de Oliveira, orientador deste trabalho.

  • 32

    Analisar a obra de Aristteles, seguindo a orientao de Berti, como um

    sistema aberto, desconsiderando-se, aqui, qualquer acepo tcnica do termo sistema,

    mas entendendo-o como um conjunto de idias que se articulam um modo de ver e saber

    a realidade fundamental para que se possa ler Aristteles hoje, e em especial, para que

    se possa ler e traduzir o Per hermeneas, entendendo que o tratado parte de uma proposta

    de anlise do fenmeno da linguagem feita pelo filsofo. Basta ver que reflexes sobre a

    linguagem aparecem em diferentes obras do autor grego, citadas anteriormente, com

    diferentes aspectos em destaque. Essa talvez seja a razo de o texto sobreviver a tantas

    leituras em diferentes abordagens.

    Retomando a questo do trabalho de traduo, devemos frisar que seus

    impasses no sero sanados, pois no temos tal pretenso; por isso, buscamos seguir uma

    linha que equilibre no a fidelidade, visto que esta no possvel nesse movimento, mas a

    fidedignidade, com uma leitura interpretativa baseada em pressupostos da Anlise de

    Discurso francesa. Nesse sentido, os parmetros que nortearam a traduo do texto

    aristotlico neste trabalho no esto relacionados a nenhuma teoria de traduo especfica.

    Procurou-se, contudo, seguir, o mais possvel, as caractersticas do texto original, o estilo

    do autor, sem deixar, claro, de interpretar o texto (ANGIONI, 2006, pp. 13-14). A

    linguagem usada na traduo, e tambm nos comentrios, pretende ser acessvel, ainda que

    vise manter o nvel culto da lngua. Os exemplos do texto sero, sempre que possvel, todos

    traduzidos e adequados ao uso da lngua portuguesa do Brasil, de forma que sua

    compreenso seja imediata.

    Faz-se necessrio, agora, explicitar os pressupostos terico-metodolgicos que

    permearo todo o trabalho. Ainda que em algumas partes eles no apaream explicitamente,

  • 33

    so condio sine qua non para a constituio dos comentrios. Entendemos a ao de

    traduzir um texto como uma possibilidade de leitura deste texto, pois quando realizo a

    traduo, fao-a do meu ponto de vista, dentro do meu lugar social, de condies scio-

    histricas muito diferentes daquelas em que o texto foi produzido e, tambm, muito

    diferentes das condies em que foram realizadas as outras tradues.

    Uma das questes fundamentais para a Anlise de Discurso francesa (AD) em

    sua fundao, na dcada de 60, foi a leitura. Mais especificamente, a des-naturalizao das

    leituras. Entendendo a leitura como processo de produo e compreenso de sentidos, era

    preciso encontrar um modo de produzi-la sem cair na anlise de contedo, muito em voga

    na poca. A AD, elaborada pelo filsofo Michel Pcheux entre as dcadas de 60 e 70, no

    nem uma teoria lingstica, nem filosofia, nem histria. Ela tem lugar no entremeio das

    cincias humanas e se distancia de todas elas, primeiro, por propor um novo objeto de

    estudo, o discurso, entendido como efeito de sentidos entre interlocutores, mas tambm por

    trabalhar com a noo de um sujeito assujeitado scio-historicamente, entendido no em

    sua forma emprica, mas como papel, lugar social, ancorado numa formao discursiva que

    lhe diz o que ele pode ou deve dizer.

    Os fundamentos epistemolgicos da AD so oriundos de trs outras reas do

    conhecimento: 1. materialismo histrico, tomado como teoria das formaes sociais e suas

    transformaes, incluindo-se a uma teoria das ideologias; 2. lingstica, tomada como

    teoria dos mecanismos sintticos e tambm dos processos de enunciao; 3. teoria do

    discurso, como teoria da determinao dos processos semnticos. Essas regies so

    perpassadas por uma teoria da subjetividade, de base psicanaltica. Assim concebida, a AD

    propiciou a possibilidade de pensar no processo de produo de leituras no-subjetivistas.

  • 34

    Ainda que considere o sujeito, a AD opera uma descentralizao desse sujeito porque

    mostra como ele interpelado pela ideologia, que, para a AD, se constitui em processos de

    naturalizao de sentidos, cujos resultados so os efeitos de evidncia. As evidncias so

    assim, cristalizaes, produto naturalizado, e s podem s-lo pela relao com o poder

    (ORLANDI, 2008, p.43). Nesse sentido, ideologia e interpretao se conjugam:

    Finalmente, podemos dizer que a ideologia no dissimulao, mas

    interpretao do sentido (em uma direo). No se relaciona falta, mas, ao contrrio, ao excesso: o preenchimento, a saturao, a completude que produz o

    efeito da evidncia, porque se assenta sobre o mesmo, o j-l. Ento isso a ideologia, na perspectiva do discurso: h uma injuno interpretao, j que o homem na sua relao com a realidade natural e social no pode no significar; condenado a significar, essa interpretao no qualquer

    uma, pois sempre regida por condies de produo de sentidos especficos e determinados. O processo ideolgico, no discursivo, est justamente nessa injuno a uma interpretao que se apresenta sempre como a interpretao. Esse um dos princpios bsicos do funcionamento da ideologia, apreendida pelo

    discurso. (ORLANDI, 2008, p.43)

    Uma vez que nos propusemos apresentar uma traduo com comentrios e

    notas de uma obra de Aristteles, em outras palavras, nos propusemos interpretar uma parte

    da obra do filsofo, no poderamos faz-lo sem o suporte de um lugar terico. Isso porque

    um de nossos objetivos no produzir uma parfrase das leituras realizadas, mas sim

    analisar o processo de produo de sentido que propicia o efeito de evidncia Aristteles,

    filsofo lgico, ou ainda Aristteles, o pai da lgica, e produzir comentrios sabendo

    que estes so j parte de um processo de produo de sentidos na nossa prpria leitura.

    Uma grande parte dos trabalhos de traduo, seja de textos antigos, seja de

    textos modernos, prope(ORLANDI, 2008, p.43). fazer, paralelamente ao texto traduzido,

  • 35

    comentrios e/ ou notas de rodap, alm de estudos introdutrios, dependendo do tipo de

    assunto tratado. Todo esse aparato, em geral, utilizado com o objetivo de esclarecer,

    contextualizar, explicar o texto para o leitor. Entretanto, se analisarmos a presena deste

    tipo de aparato14 margeando os textos, observaremos que, mais do que explicar ou

    explicitar sentidos, as notas e comentrios, por exemplo, tendem a limitar a produo de

    sentidos. Como afirma Orlandi (2008, p. 120), as notas so o sintoma do fato de que um

    texto sempre incompleto, e que se podem acrescentar novos enunciados,

    indefinidamente.

    Os textos aristotlicos possuem uma tradio de mais de dois mil anos de

    produo de estudos, prembulos, notas de todos os tipos e comentrios. Mas, ao menos na

    produo a que tivemos acesso, o teor dos comentrios gira em torno das mesmas questes

    ou dos mesmos pontos em que o texto grego apresenta dificuldades de traduo para a

    lngua portuguesa ou outra lngua qualquer. A presena de tal aparato acompanhando as

    tradues de obras antigas to esperado pelos leitores que, geralmente, eles tendem a

    desprezar as tradues que no apresentem os limites para sua leitura.

    Foucault (1996) apresenta a noo de comentrio a partir de uma perspectiva

    discursiva bastante relevante para nossa proposta de estudo e traduo do Per hermeneas.

    O autor define e analisa o comentrio como sendo um dos procedimentos de controle e

    delimitao dos discursos, no de ordem externa, mas de ordem interna ao prprio processo

    discursivo. Para Foucault, o comentrio pode, em algumas situaes, permitir a construo

    de novos discursos, no entanto, por outro lado,

    14 Chamamos de aparato todo tipo de material lingstico posto nas margens de um texto com o objetivo de

    orientar ou facilitar sua leitura, limitando, assim, o processo de produo de sentidos: estudos, comentrios, prefcios, posfcios, introdues, notas, etc.

  • 36

    o comentrio no tem outro papel, sejam quais forem as tcnicas empregadas, seno o de dizer enfim o que est articulado silenciosamente no texto primeiro. Deve, conforme um paradoxo que ele desloca sempre, mas ao qual no escapa

    nunca, dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, j havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, no havia sido jamais dito (FOUCAULT, 1996, p.25).

    A anlise do comentrio como procedimento de controle discursivo se aplica

    com sucesso aos comentrios por ns utilizados como fundamento para a elaborao de

    nossos prprios comentrios. Uma vez que nos propusemos elaborar comentrios a um

    texto outro, no h como fugir do jogo que, ento, se estabelece. Seria ingnuo imaginar, ou

    melhor, ambicionar escapar a ele, contudo consideramos que, ao aceitar as regras do jogo

    discursivo, possvel faz-lo de modo crtico, da a necessidade desse recorte terico-

    metodolgico: no cair na iluso de poder absoluto sobre o dizer, nem na vontade de

    verdade, nem na idia de que se pode dizer tudo.

    interessante analisar, nesse sentido, ainda que de modo breve, pois este no

    o ponto central deste trabalho, as tradues e comentrios usados por ns para realizar o

    estudo do Per hermeneas. As obras, em primeiro lugar, podem ser divididas em quatro

    grupos, considerando-se o seu aparato (notas e comentrios):

    1. apresenta o texto em grego com aparato, porm sem a traduo do grego;

    inclumos neste grupo a edio com o texto de Mnio-Paluello, publicada pela

    Oxford Classical Texts, em 1949. A edio traz estudo escrito em latim e notas

    filolgicas e inclui, ainda o texto do Categorias.

  • 37

    2. apresenta o texto grego, traduo e aparato; neste grupo encontra-se a edio

    do texto de Mnio-Paluello, acompanhado da traduo para o ingls, de H. P.

    Cooke, publicada em 1938. O aparato constitudo de brevssimo prefcio,

    pequena introduo, relacionada no apenas ao Per hermeneas, mas tambm

    aos outros textos apresentados: Categorias e Primeiros analticos. As notas so

    muito pouco numerosas e de natureza filolgica.

    3. apresenta traduo, comentrios e notas, sem o texto em grego; neste grupo

    encontram-se: a) o texto traduzido para o francs de J. Tricot, publicado pela

    Libraire philosophique J Vrin, 1984. A obra contm uma quantidade

    considervel de notas e uma breve introduo. Alm do Per hermeneas,

    apresenta tambm o Categorias; b) o texto traduzido para o portugus (de

    Portugal) de Pinharanda Gomes, publicado pela Guimares Editores, 1985. A

    obra contm prefcio, notas localizadas no final do texto e uma breve biografia

    de Aristteles, escrita com base na obra de Digenes Larcio. A autora tambm

    traduz na mesma obra o Categorias; c) o texto traduzido para o ingls por J. L.

    Akcrill, publicado por Claredon Press, em 1963, reimpresso em 2002, que

    contm uma ou outra nota filolgica e comentrios ponto a ponto ao texto, tanto

    do Per hermeneas quanto do Categorias; d) a traduo para o portugus (do

    Brasil) de todo o rganon (Categorias, Da interpretao, Analticos

    anteriores, Analticos posteriores, Tpicos, Refutaes sofsticas) feita por

    Edson Bini, publicada pela Edipro, 2005. Apresenta notas de natureza filolgica

    e explicativa junto com notas do tradutor, dados biogrficos de Aristteles,

  • 38

    introduo e cronologia; e) a traduo em lngua portuguesa (do Brasil)

    realizada por Lucas Angioni, publicada pela Unicamp, 2006. A obra apresenta

    estudo introdutrio e comentrios no s ao Per hermeneas, mas tambm a

    outros trechos de outras obras de Aristteles em funo do estudo realizado

    acerca da Teoria da Predicao.

    4. apresenta somente comentrios: constitui-se de estudos sobre o Per

    hermeneas, como o texto de C. W. Whitaker, em lngua inglesa, publicado pela

    Oxford University Press, em 1996; e o texto de Dbora Modrak, 2001, um

    estudo aprofundado da questo da significao na obra de Aristteles, no

    apenas no Per hermeneas.

    O texto de Paluello totalmente voltado para aqueles que so realmente

    especialistas em letras clssicas, isso se observa e se confirma no s porque ele no

    apresenta traduo, mas tambm e, sobretudo, porque o texto introdutrio est escrito em

    latim. S conseguir l-lo quem conhecer tanto o grego clssico quanto o latim. O texto

    grego estabelecido por ele o mais utilizado como base para tradues do Per hermeneas.

    A traduo de Cooke, a partir do texto de Paluello, referendada por

    especialistas na rea e considerada uma das melhores. Mas h que se observar que o texto

    em ingls no acompanha exatamente o texto grego e em muitos pontos ajeita o texto,

    inserindo, inclusive, na traduo em ingls muitos termos que, no grego, esto

    subentendidos, mas no explcitos. O mesmo procedimento pode ser observado nas

  • 39

    tradues francesa, de Tricot, e portuguesa, de Gomes. A traduo em portugus (do Brasil)

    de Bini, acompanha muito de perto a traduo inglesa de Cooke.

    As tradues de Ackrill, para o ingls, e de Angioni, para o portugus, so as

    mais concisas, mais parecidas com o texto grego. Pode-se notar claramente que os autores

    se esforaram para manter a aparncia do texto original. Dentre todas, estas duas foram

    as preferidas por ns para serem usadas como principal contraponto, em virtude do fato de

    aparentarem ser mais literais, de se aproximarem mais da proposta de traduo desta tese

    que de, no deixando de interpretar, conservar o mais possvel a forma do texto primeiro.

    A respeito das notas e comentrios, observamos que, em alguns casos, como

    ocorre com os textos do quarto grupo, eles ganham tamanha independncia em relao

    obra que acabam por, prescindindo do texto primeiro, constituir um outro texto, formas

    discursivas que, colocando-se como suplementares ou como acrscimos marginais ao texto,

    constituem no um discurso sobre o discurso, mas um discurso paralelo (posterior)...

    (ORLANDI, 2008, pp. 130-131).

    H que se ressaltar, ainda, as caractersticas lingsticas dos comentrios lidos e

    analisados aqui: apresentam-se todos muito elaborados, no sentido de que imprescindvel

    ao leitor ser um iniciado, isto , esse leitor deve ter j um conhecimento prvio sobre as

    questes debatidas; as referncias que os comentadores fazem a outros comentadores, na

    maior parte das vezes, so as mesmas, logo os nomes dos estudiosos se repetem

    praticamente em todas as referncias bibliogrficas. Por exemplo: Whitaker (1996) cita

    Ackrill (1963); Modrak (2001) cita Whitaker e Ackrill; Angioni (2005) cita Ackrill,

    Whitaker e Modrak; e ns citamos todos eles. Como afirma Foucault, no comentrio, o

  • 40

    novo no est no que dito, mas no acontecimento de sua volta (FOUCAULT, 1996,

    p.26).

    O desenvolvimento dessa questo demandaria um outro trabalho, por isso

    consideramos que para o que se prope nesta tese suficiente a explanao dos conceitos

    de leitura e comentrio elaborados at aqui. importante destacar que nosso comentrio

    obra de Aristteles se insere nessa mesma rede discursiva, contudo buscamos deslizar desse

    lugar para outro, no s demarcando o lugar terico de onde lemos o Per hermeneas, mas

    tambm estabelecendo um dilogo entre a filosofia e os estudos lingsticos. Talvez, assim,

    consigamos concretizar um efeito metafrico, isto , um desvio na produo de sentidos

    que resultar da leitura da obra aristotlica.

    1.2. A questo da significao na Grcia Antiga

    Seria a linguagem humana um fenmeno natural ou convencional? A

    linguagem, se natural, espelharia o mundo, ou, se convencional, seria fruto de um acordo

    entre seus usurios, os quais estabeleceriam previamente valores para os elementos que a

    constituem? A questo ainda continua em aberto, apesar de a hiptese da

    convencionalidade ter ganhado inmeras disputas ao longo do tempo. A discusso antiga

    no percurso da histria das idias lingsticas e o debate que teve incio nos primrdios do

    pensamento ocidental ainda se mantm atual. Afinal, a linguagem humana se estabeleceu

    por physis (natureza) ou por nomos (conveno)? Examinemos um pouco mais de perto

    como se formalizou essa controvrsia.

  • 41

    O que atualmente discutido, sobretudo, no mbito dos estudos de linguagem,

    para os gregos se apresentava como sendo parte de uma discusso filosfica mais

    abrangente sobre a verdade. Assim, debater acerca do carter consensual ou natural da

    linguagem, de certa forma, equivalia a discutir se o mundo pode ou no ser conhecido por

    meio da linguagem. No que diz respeito a este tema, possvel observar trs pontos de vista

    distintos que se desenvolveram na Antigidade Clssica: a viso dos sofistas; a viso de

    Plato; a viso de Aristteles, cada uma delas apresentando uma soluo para a questo.

    Contudo, a controvrsia physis nomos no que diz respeito linguagem, pode se

    condensada em duas vises mais abrangentes e mais radicais, analisadas por Plato no

    dilogo Crtilo. Para tratarmos, ento, da questo, seguimos a explanao de Martins

    (2004) e, para um exame mais minucioso da discusso contida no Crtilo de Plato,

    utilizamos como referncia principal Modrak (2001).

    Um espectro da viso dos filsofos sofistas a respeito da linguagem se torna

    uma tarefa complexa de se realizar em funo dos poucos fragmentos de textos legados a

    ns pelas circunstncias histricas. O perfil destes pensadores, em grande parte, s pode ser

    conhecido por meio da opinio de seus contraditores sobre eles. O principal autor que nos

    apresenta o pensamento sofstico Plato, um de seus crticos mais vorazes.

    O pensamento sofstico conhecido caracteriza-se por um aspecto relativista,

    manifesto na impossibilidade de existirem verdades absolutas, aceitas universalmente, que

    existam independentemente das circunstncias concretas e que funcionem fora dos aspectos

    contingentes e variveis da experincia humana. Este ponto de vista confirma-se em

    expresses clebres como a de Protgoras: O homem a medida de todas as coisas.

    Assim, o lugar da linguagem, no pensamento sofstico, tambm o da relatividade e

  • 42

    instabilidade. Para esses filsofos a linguagem no diz o real, no o representa e, muito

    menos, o espelha. A linguagem constri a realidade, pois a verdade est no discurso.

    Para os sofistas o real se manifesta no discurso. Por meio da linguagem o

    homem expressa suas impresses sobre o real, que no pode ser diretamente acessado; com

    as palavras o homem vai constituindo o seu mundo. De acordo com Martins (2004, pp. 452-

    453), a proposta sofstica aponta para a desestabilizao de qualquer distino absoluta

    entre verdade e falsidade capaz de regular os usos lingsticos por assim dizer, de fora,

    nesta perspectiva a linguagem e os assuntos humanos mantm uma relao de constituio

    mtua, de modo que aquilo que uma expresso vem a significar algo mutvel, que se

    institui no prprio curso das prticas, no entrelugar deixado pela no-fixidez de nossas

    crenas e pelo potencial persuasivo e mesmo demirgico da linguagem.

    Tomando como ponto de partida a declarao de Parmnides, o ser , o no ser

    no , os sofistas afirmavam que o que no era verdadeiro no existia, logo qualquer

    enunciado que faa sentido verdadeiro. Conclui-se, de acordo com Martins (2004, pp.

    452-453), que a implicao radicalmente relativista embutida nesse raciocnio clara: se

    no possvel dizer o falso e todos os enunciados so igualmente verdadeiros se Scrates

    inocente to verdadeiro quanto Scrates culpado -, ento, a rigor, a verdade como

    parmetro absoluto e distintivo no existe, ilusria; (...). A anlise do fenmeno da

    linguagem que Plato desenvolve em sua obra tambm uma forma de argumentar a favor

    da verdade e de que esta prevalece sobre o consenso. O que Plato faz a respeito da

    interpretao sofstica afirmar a idia de que possvel existir um discurso que seja falso.

    Para entender a perspectiva platnica sobre o fenmeno da linguagem

    necessrio rever alguns pontos fundamentais de sua Teoria das Idias, mesmo que de forma

  • 43

    sucinta. Isso porque, como foi dito, estudos da linguagem na Antigidade foram

    desenvolvidos dentro do campo da Filosofia, visto que a capacidade humana de expresso

    verbal era observada pelos filsofos como sendo uma forma de manifestao do

    pensamento e estud-la poderia ser uma forma de conhecer o pensamento e de se chegar a

    um tipo de conhecimento.

    Para Plato, o mundo apresenta uma realidade aparente, perceptvel para os

    sentidos humanos e, por isso mesmo, mutvel, inconsistente e imperfeita; e apresenta

    tambm uma realidade ideal, que guarda as coisas em si mesmas, ou a essncia de todas

    coisas, as suas idias. realidade aparente denomina-se mundo sensvel e realidade ideal,

    mundo inteligvel. importante registrar que ao falar de mundo das idias, estas no podem

    ser entendidas como idias contidas na mente humana, ou produzidas pelo homem, como

    conceitos ou representaes mentais do mundo que o cerca. Para o filsofo, estas idias

    constituem uma espcie de mundo paralelo e existem por si mesmas.

    Na viso de Plato, a variao e a mutabilidade das coisas defendidas

    veementemente pelos sofistas, eram caractersticas desse mundo de aparncias, do mundo

    que est ao alcance dos sentidos: ali habitaria de fato tudo o que corpreo, imperfeito e

    mutvel; por exemplo, as coisas muito diferentes e variadas que designamos belas (ibid.,

    p.454). Desse modo, Plato assegura a existncia de uma Verdade para alm do homem. Se

    o verdadeiro existe, ento, existe o que falso. Para pensar a viso platnica da linguagem

    preciso dar-se conta deste fato: as lnguas em sua multiplicidade, no seu uso prtico,

    fazem parte deste mundo de aparncias. Isso explica, ao menos em parte, o fato de que a

    linguagem no ocupa um lugar de destaque em sua obra tal como ocupar na filosofia de

    Aristteles.

  • 44

    No debate com os sofistas, Plato se posiciona contrariamente idia de que

    qualquer coisa que se diga com sentido verdade por definio (ibid., p.456), dado que

    se no se pode dizer o que falso, logo todos os discursos so verdadeiros. Seu argumento

    a esse respeito, ele desenvolveu no dilogo Sofista, no qual discute a relao entre os

    enunciados e a realidade a que eles se referem. O filsofo demonstra que sim possvel

    dizer o que no : toda vez que a linguagem se apresenta em descompasso com o real, o

    discurso falso porque afirma o que no .15

    Nosso maior interesse na discusso que Plato delineia no Crtilo de Plato,

    cujo tema a correo, ou a justeza, dos nomes. no Crtilo que Plato vai se posicionar

    criticamente frente s teorias sobre a significao que estavam em voga na sua poca. No

    texto, o filsofo apresenta duas perspectivas que vo se mostrar inadequadas: naturalismo

    versus convencionalismo. Ambas aparecem nas suas formas mais radicais, como se pode

    observar, a seguir, por meio da apresentao e comentrio de Modrak (2001) sobre o

    dilogo, que passo a examinar.

    A autora, Modrak (op. cit.), inicia seu comentrio com a apresentao da viso

    de cada um dos dois personagens, Crtilo e Hermgenes, representantes das duas correntes

    de pensamento analisadas no dilogo. Alm deles, h um terceiro personagem que

    desempenha a funo de mediador do debate: Scrates, personagem por meio do qual

    Plato expe o seu prprio posicionamento acerca da natureza da linguagem.

    J no incio do dilogo, Hermgenes no apenas sustenta que no existe outra

    forma de instituir o uso correto de uma palavra, um nome, alm de conveno e acordo

    entre os membros de uma comunidade lingstica, mas tambm acredita que qualquer

    15 Para um aprofundamento da questo, o que no o caso aqui, cf. MARTINS , 2004.

  • 45

    indivduo pode estabelecer um nome para uma classe de objetos, como por exemplo:

    homem para cavalo. Nesse sentido, se o indivduo realmente denomina uma classe com um

    nico nome, ento este nome est correto para ele, mesmo quando entra em conflito com o

    uso comum em sua comunidade. O personagem, conduzido por Scrates, acaba por chegar

    a uma proposio extrema, dizendo que a atribuio de nomes exatos se d pela vontade de

    cada indivduo. J o personagem Crtilo acredita que um nome correto, ou exato, seja ele

    um nome prprio ou comum, descreve corretamente seu referente. Assim, de acordo com

    ele o nome Hermgenes, por exemplo, no seria o nome correto para Hermgenes a quem

    falta o talento para os assuntos relativos aos negcios. 16

    Segundo Modrak, de uma perspectiva moderna, ambas as posies parecem

    confusas. Nenhum esforo feito para distinguir entre nomes prprios e nomes comuns, no

    momento da anlise etimolgica, ou entre referncia e significao e, ademais, nenhum dos

    personagens reconhece consistentemente a funo comunicativa da linguagem. A confuso,

    a meu ver, se estabelece no apenas pelos motivos apresentados pela comentarista, mas

    tambm por que a questo lingstica especificamente falando no examinada. A palavra

    aqui aparece como uma espcie de etiqueta para os objetos no mundo. No se deve,

    entretanto exigir do filsofo algo que ele no podia ou no tinha interesse em fazer.

    Modrak, talvez, incorra em seu comentrio no problema identificado por Piqu (1996),

    ao afirmar que a caracterstica mais importante do tratado justamente seu estilo

    pardico, e que este no foi devidamente analisado. Segundo Piqu:

    16 O nome Hermgenes significa nascido de Hermes, o mensageiro dos deuses, intrprete e portador da

    palavra divina, ele o fornecedor de bens e seus principais atributos so a astcia e a inventividade. De acordo com a viso de Crtilo, o personagem Hermgenes no possui tais caractersticas, essenciais para os negcios, logo houve uma falha na aplicao de seu nome.

  • 46

    Em geral as interpretaes dos historiadores da Lingstica sobre o Crtilo apresentam uma abordagem ingnua em relao ao texto. Sem dar ouvidos aos

    avisos que Plato tantas vezes, como vimos acima, coloca na boca de Scrates,

    levam a srio seu longo exerccio etimolgico, que nada mais do que a

    desmontagem desse mtodo e concluem que o autor ao final no toma qualquer partido na controvrsia physis nomos (ibid., pp.6-7)

    Para Piqu, no h nada de confuso no texto, o dilogo no aportico como

    muitos consideram, ao contrrio, nele Plato toma um posicionamento positivo: os nomes

    so tanto convencionais quanto naturais. Mas antes de concordar com Piqu, retomemos a

    exposio de Modrak.

    Para Crtilo, um nome uma descrio definitiva e o sucesso do uso de um

    nome requer que tanto o falante quanto o ouvinte concordem com pelo menos alguns dos

    elementos da descrio. Por exemplo, um falante poderia ter muitas informaes sobre

    Scrates e, desse modo, teria uma descrio bastante rica na qual fixar o referente do nome

    Scrates, ao passo que o ouvinte poderia ter uma descrio pobre, por exemplo, o filsofo

    que bebeu cicuta; apesar disso, falante e ouvinte concordaro sobre o objeto ao qual

    Scrates se refere. Se um nome uma descrio disfarada, ento podemos acreditar,

    como Crtilo o faz, que os mesmos requisitos para a correo asseguram ambos nomes e

    termos descritivos (MODRAK, op. cit., p. 15).

    Assim, enquanto o acordo entre os usurios de um nome for suficiente para

    assegurar seu uso como uma expresso referencial, o nome est correto, na medida em que

    uma ferramenta para distinguir coisas de acordo com suas essncias. Essa ferramenta

    mais bem utilizada quando se utilizam palavras que descrevem precisamente o objeto e

  • 47

    quando a significao dos elementos da palavra est de acordo com a natureza do referente

    do(s) objeto(s) nomeado(s) pela palavra.

    Em suma, pode-se, a partir do que foi dito at aqui, afirmar que Hermgenes

    defende uma viso convencionalista da linguagem, enquanto Crtilo defende uma viso

    naturalista. Para o primeiro, a relao entre palavras e objetos no mundo se d por meio da

    instituio e, para o segundo, tal relao ocorre por imanncia, ou seja, o nome reflete a

    essncia das coisas. Pode-se, ento, dizer a partir da explicao oferecida por Modrak e

    tambm pela leitura do dilogo platnico, que a questo lingstica neste caso secundria,

    uma vez que a questo principal em jogo a verdade. Se a verdade existe e se manifesta

    por meio da linguagem, esta, por sua vez, precisa ser capaz de denotar a essncia verdadeira

    das coisas, ou no ser possvel alcanar a verdade por meio da linguagem.

    Em ambas as vises, por causa de seu radicalismo, de um lado Hermgenes

    com seu subjetivismo extremo, do outro Crtilo com um essencialismo exagerado, torna-se

    impossvel dizer o que falso. Logo, durante todo o dilogo vemos Scrates argumentar no

    sentido de que, sim, possvel dizer tanto o falso quando o verdadeiro e, para tanto,

    necessrio uma abordagem que equilibre os dois pontos de vista.

    Assim, depois de persuadir Hermgenes a rejeitar o elemento radicalmente

    subjetivo de sua teoria em favor da viso de que palavras tm usos corretos e incorretos,

    Scrates explora com ele a possibilidade de um convencionalismo modificado, no qual a

    significao original das palavras so dadas por pessoas, mas em que a correo dos nomes

    depende da possibilidade de o termo descrever com sucesso o objeto que ele nomeia.

    Por fim, o que se v uma soluo mediadora apresentada pelo personagem

    Scrates. Os exemplos iniciais de Scrates, isto , nomes prprios cunhados por Homero e

  • 48

    o uso geral dos nomes, parecem prover suporte para essa teoria, ainda mais porque muitos

    destes nomes contm elementos descritivos, logo parecem ser boas descries. Por

    exemplo, Astinax, nome do filho de Heitor composto pela palavra para cidade, em

    grego asty, e pela palavra soberano, em grego anax.

    medida que a discusso progride, entretanto, os exemplos tornam-se cada vez

    mais fantasiosos enquanto Scrates mostra que as palavras nomeiam virtudes morais e as

    artes e mesmo homem e mulher so derivadas de outras palavras que indicam mudana e

    movimento. Esta viso virtuosstica da habilidade verbal sugere a importncia de buscar

    por razes comuns das palavras e induz Scrates a aplicar a mesma tcnica s slabas,

    construindo palavras e, finalmente, sentenas. Os nomes primrios, ele explica, devem

    fazer as coisas existentes aparentes. A respeito dessa passagem do Crtilo, na qual Scrates

    apresenta e exercita o mtodo filolgico, Piqu (op. cit., p. 3) registra o seguinte:

    Paradoxalmente o que Scrates ir demonstrar nessa parte central do dilogo pela

    aplicao da posio de Crtilo a aproximadamente 140 nomes que o mtodo

    etimolgico apenas uma engenhosidade humana, com um carter muitas vezes derrisrio. O que mais propriamente faz parodiar o mtodo etimolgico,

    expondo suas falhas e levantando conexes com doutrinas filosficas certamente

    criticveis para Plato. Essa exposio clara do mtodo levando-o at o seu

    fundamento, que como veremos a imitao da essncia das coisas por meio de sons e slabas, assumida pelo prprio Scrates, e que ocupa uma grande parte do

    dilogo, fundamental para problematizar o naturalismo lingstico. Ao que

    parece, Crtilo, assim como Herclito, um tanto obscuro na expresso (bem no incio do dilogo Hermgenes pedira a Scrates para interpretar o orculo de Crtilo). Sem essa exposio, esse desvelamento do procedimento etimolgico, no seria possvel critic-lo de uma maneira completa.

  • 49

    Crtilo, ento, caminha em direo a incitar o caso do naturalismo. De acordo

    com Modrak, evitando habilmente o primeiro obstculo ou armadilha na qual Hermgenes

    tropea, Crtilo nega que nomes sejam falsos; existem falhas de referncias e, nesses casos,

    o nome to sem sentido quanto uma slaba nonsense, mas isto no quer dizer que seja

    falso. Um nome genuno um signo natural, de acordo com Crtilo, em que a palavra

    parece com aquilo que ela representa. O Scrates de Plato argumenta, ento,

    convincentemente que o naturalista no poderia contar uma histria plausvel, no-

    arbitrria, que justifique a afirmao de que as palavras de uma linguagem natural se

    paream com o mundo extralingstico.

    Em primeiro lugar, como sabemos que a pessoa que originalmente deu o nome

    tinha o conhecimento requerido para delinear o termo que se parece com a realidade que ele

    intenta representar? Em segundo lugar, mesmo se a palavra original tem uma semelhana

    adequada, a partir do momento em que palavras esto sujeitas a mudar durante o tempo, a

    palavra como correntemente usada pode falhar neste teste. Isso leva Scrates a sugerir que

    o conhecimento esteja ligado a uma apreenso direta da realidade no mediada por

    palavras, ao menos num primeiro momento.

    Para Modrak, Plato demonstra a natureza especulativa e suspeita de apelar para a

    semelhana entre palavra e objeto para explicar a significao, porque empregando este

    mtodo ele era capaz de gerar explanaes incompatveis das mesmas palavras gregas;

    notavelmente, episteme inicialmente mostrada para implicar movimento (motion) e,

    subseqentemente, cessao de movimento.

    Em suma, o convencionalismo rejeitado com base no fato de que se a

    linguagem uma ferramenta, ou instrumento, para marcar distines reais na natureza das

  • 50

    coisas, no pode ser meramente uma questo de conveno. O subjetivismo radical tem

    sido rejeitado tendo como base que o que significa uma seqncia particular de sons

    pronunciados por um membro de uma determinada comunidade lingstica determinado

    pelo pblico, critrio interpessoal e no pelos caprichos do falante.

    Por sua vez, o naturalismo rejeitado porque se provou muito difcil contar

    uma histria satisfatria sobre a conexo entre a palavra e o objeto que ela representa, luz

    da natureza da linguagem condicionada historicamente. Vale a pena notar que o ataque de

    Plato em relao ao naturalismo apontado em palavras gregas comuns, simples ou

    compostas, mas sempre uma palavra: Scrates, at, vai ampliando o tema,

    progressivamente, aos nomes comuns, aos verbos e de forma definitiva, aos elementos

    ltimos, porm sempre se coloca sob o umbral da palavra individual (CALVO, 1983, p.

    350).

    Apesar do resultado do dilogo, na viso de Modrak, um estudante

    empreendedor de Plato como Aristteles, no deve perder o mpeto de prospectar a

    formulao de uma teoria satisfatria da significao (op. cit., p.18). Aristteles aceita as

    descobertas positivas de Plato e tenta encontrar um meio-termo entre as posies de

    Hermgenes e Crtilo que possibilitaro a ele se defender das objees que Plato levanta

    para cada posio individualmente; alm disso, Aristteles deve encontrar o desafio

    sublinhado do Crtilo para mostrar que o carter dinmico da linguagem como artefato

    no mina sua habilidade de servir como veculo para a verdade na palavra e no

    pensamento (op. cit., p.19).

    Scrates explora a aparente tenso entre o dinamismo de uma linguagem

    natural e a estabilidade da verdade em seus argumentos contra ambos, Hermgenes e

  • 51

    Crtilo. O dilogo termina com a sugesto de que a linguagem no pode servir como

    veculo para a verdade. Ao final, o que fica claro a inteno de Scrates de desqualificar

    a linguagem como meio para a realidade, mediante a refutao de ambas as teorias que

    pretendiam, cada uma, constituir a si mesma como o nico e mais correto mtodo para tal

    (CALVO, op. cit., p.358). A par das opinies acima, preferimos concordar, finalmente, com

    Piqu (op. cit.) no s em relao aos excessos cometidos muitas vezes pelos intrpretes

    do dilogo, mas tambm com a sua concluso a respeito do posicionamento de Plato:

    Concluindo, a posio de Plato nessa controvrsia contrape-se assim a uma

    oscilao entre dois extremos que as histrias gregas da linguagem manifestam:

    ou uma extrema confiana em que o nome diz a verdade (Herclito e as primeiras tragdias), ou uma extrema desconfiana, em que os nomes so nada mais do que nomes (Parmnides, Demcrito e sofistas), identificando linguagem, opinio e verdade.

    Para Plato o discurso de natureza hbrida, verdadeira e falsa ao mesmo

    tempo (Crat., 408c) como Pan, no por acaso filho de Hermes (5): o que nele h de verdadeiro macio e divino e reside no alto com os deuses, por outro lado,

    o que h de falso mora em baixo, com a multido dos homens. Na viso

    platnica da palavra na sua funo de representao do ininteligvel, mesmo que um tanto degradada, as duas tese contrrias convergem e so superadas, tendo

    ambas algo do verdadeiro eidos do onoma. Desse modo, a linguagem enquanto instrumento tem o seu papel no

    aprimoramento do intelecto um meio na busca do conhecimento da essncia, nesse ir e vir entre onoma, logos, eidolon e to auto, mas divido a sua imperfeio enquanto imitao ao mesmo tempo um obstculo intuio pura da Formas

    Eternas pela alma imortal, que no admitiria nenhuma mediao.

    A estratgia de Aristteles nas Categorias, no Per hermeneas e nos Primeiros

    analticos e Segundos analticos desenvolver o funcionamento passo a passo de elementos

    lingsticos e de seus correlacionados extralingsticos que dissiparo quaisquer reservas

  • 52

    que tenhamos sobre a no utilidade da linguagem como ferramenta para expressar

    verdades. A concluso que Aristteles desenha a respeito dos argumentos do Crtilo que

    uma filosofia da linguagem adequada distinguiria entre a linguagem do pensamento

    (conceitos universais) e a linguagem falada (sons particulares).

  • 53

    2. ARISTTELES E A LINGUAGEM NO PER HERMENEAS

    A interpretao em si no precisa de defesa; est sempre conosco, mas, como a maioria das atividades intelectuais, a interpretao s interessante quando extrema. A interpretao moderada, que articula um consenso, embora possa ter valor em certas circunstncias, de pouco interesse. Uma boa afirmao deste ponto de vista apresentada por G.K. Chesterton, que observa: Ou a crtica no serve para nada (uma proposio absolutamente defensvel) ou ento crtica significa falar sobre um autor exatamente aquelas coisas que o deixariam estarrecido.

    Jonathan Culler

    2.1. Estrutura e contedo do tratado

    Tudo o que Aristteles produziu est voltado para a filosofia, o conhecimento

    primeiro e, de acordo com o prprio filsofo, fundamento para todos os outros

    conhecimentos. De qualquer modo, independentemente de quais tenham sido os objetivos

    de Aristteles ao investigar a linguagem, fato que a parte de sua obra destinada s

    reflexes sobre a linguagem inaugura um discurso sobre tal fenmeno no Ocidente,

  • 54

    instituindo-se, assim, uma espcie de discurso fundador17 de toda uma tradio no campo

    dos estudos da linguagem da qual, ainda hoje, sentimos a influncia.

    De acordo com Santoro (2006), a linguagem na obra de Aristteles ocupa lugar

    privilegiado, uma vez que ela essencial para a questo da ontologia. A linguagem seria,

    ento, o suporte do conhecimento, especificamente do conhecimento filosfico, que para o

    filsofo precede qualquer outro tipo de conhecimento. Santoro entende a linguagem, do

    ponto de vista aristotlico, como multiplicidade de potncias, ela no tem apenas o poder

    de ser instrumento do conhecimento, ela tambm um lugar privilegiado para o

    acontecimento e aparecimento do real, ela tambm o substrato em que se instaura a

    humanidade do homem como ser pensante (ibid., p.1)

    Observe-se que o filsofo grego escreveu sobre linguagem no apenas nos

    textos que compem o rganon, mas registrou, ainda, um tratado sobre retrica e outro

    sobre potica. Nesse sentido, pode-se afirmar que no lhe escapa que a linguagem humana

    pode suportar diferentes discursos, diferentes modos de dizer em diferentes situaes e no

    apenas servir para expressar o pensamento lgico, o falso e o verdadeiro.

    Ainda de acordo com Santoro, o rganon, incluindo-se nele o Per hermeneas,

    constitui, e assim foi interpretado durante sculos, desde o fim da Antigidade at o fim do

    sculo XIX, uma anlise de um discurso prprio para a demonstrao cientfica, uma

    tentativa de dar conta de uma linguagem que pudesse ser lgica, que pudesse expressar

    verdades. Mas este no foi seu nico interesse na linguagem, nem se pode afirmar que o

    filsofo considerava a lgica a melhor forma de linguagem ou que esta deveria ser a nica

    forma de expresso do homem. Ao contrrio, a linguagem, ainda que no tenha constitudo

    17 Utiliza-se aqui a noo de discurso fundador desenvolvida por Orlandi, 2003.

  • 55

    um problema filosfico para ser desenvolvido num tratado, foi um dos mais importante

    assuntos tratados na obra do filsofo, pois ele reconheceu as potncias da linguagem, seu

    carter multifacetado. Segundo Santoro:

    As investigaes de Aristteles sobre o problema fundamental da linguagem

    perpassam toda a sua obra, no apenas como um problema acessrio ou

    instrumental, mas muitas vezes como o fundo orientador para vrios mbitos do

    conhecimento filosfico, o fundo que ao mesmo tempo sustenta o modo filosfico de investigao em geral, como instaura uma gama variada de

    conhecimentos ou cincias, distintas justamente pelo que aqui denominamos de mltiplas potncias da linguagem, a linguagem no tem apenas o poder de ser

    instrumento do conhecimento, ela tambm o substrato em que se instaura a humanidade do homem como ser pensante, ela tambm o elo de comunicao

    sem o qual no se fundariam as cidades nem haveria o jogo poltico dos cidados livres, ela tambm o solo constituidor da cultura que se estabelece na memria das obras de arte, sobretudo na poesia recitada, cantada, encenada. As potncias

    da linguagem abrem diversos domnios do real, especialmente aqueles ocupados

    pelo homem, que no apenas fala para conhecer, mas tambm para decidir, para

    agir, para se divertir, para se elevar e, no fundo e no fim disso tudo, para existir

    (ibid., 2006, pp. 1-2).

    possvel, ento, observar duas grandes novidades com relao linguagem,

    introduzidas nas reflexes filosficas por Aristteles: em primeiro lugar, o fato de afirmar

    que a linguagem tem um carter simblico, isto , que a linguagem no se relaciona

    diretamente com a realidade emprica, mas sim com uma realidade da psych; em segundo

    lugar, de mostrar que a linguagem possui diferentes usos, podendo ser construda para

    representar um tipo de discurso como o racional, que segundo ele deveria ser verificvel,

    verdadeiro ou falso.

  • 56

    rganon o termo grego, cuja traduo instrumento, que d ttulo ao

    conjunto de seis textos (Categorias, Per hermeneas, Primeiros analticos, Segundos

    analticos, Tpicos e Rrefutaes sofsticas) escritos por Aristteles e que tm em comum

    abordar aspectos da linguagem. O Per hermeneas constitudo por catorze partes, que

    podem ser divididas em dois blocos, segundo Whitaker: o primeiro compe-se das partes 1

    a 6; o segundo, das partes 7 a 14. A parte 1 seria uma espcie de sumrio-introduo, no

    qual o autor apresenta as linhas gerais do trabalho e, alm disso, comea a introduzir

    algumas consideraes a respeito da significao (WHITAKER, 1996). Na partes

    seguintes, o filsofo vai definir, ento, o que o nome, parte 2; o verbo, parte 3; tipos de

    frases, afirmao e negao, partes 4 e 5, at chegar aos pares contraditrios, na parte 6.

    Essas partes constituem, assim, a seo lingstica do tratado. As partes restantes, 7 a 14,

    contm o verdadeiro objeto de Aristteles neste texto: o estudo da contradio,

    especialmente dos pares contraditrios, que so elementos fundamentais para o

    desenvolvimento da dialtica.

    Ackrill (1963, p.70) apresenta uma outra estruturao para o tratado, que

    segundo ele pode ser dividido em 4 partes: a) partes 1 a 5, que contm as definies

    bsicas: nome, verbo, sentena, assero, afirmao e negao; b) partes 6 a 11, que

    constituem o cerne do tratado, e nas quais o filsofo aborda os diferentes tipos de assero

    e algumas de suas propriedades e relaes lgicas; c) partes 12 e 13, concernem s

    asseres modais: mostra-se como se afirma e se nega o possvel e o impossvel, o

    contingente e o necessrio; e d) parte 14, a qual, de acordo com Ackrill, provvel que

    constitua um ensaio independente do resto do tratado. Trata-se de uma discusso sobre

    aspectos relevantes da contradio.

  • 57

    Aqui, adotamos, com algumas adaptaes, a diviso de Whitaker, ainda que

    consideremos bastante interessante a proposta de Ackrill. Mas Whitaker atende melhor ao

    nosso propsito. Optamos por comentar a seo lingstica do tratado, organizando-a da

    seguinte forma: a) parte 1, na qual o filsofo apresenta a questo da convencionalidade da

    linguagem e arbitrariedade do signo lingstico, b) partes 2 e 3, apresentando-se as noes

    de nome e verbo; c) partes 4, 5 e 6, que constituem a anlise de sentenas e de sua

    afirmao e negao, e definio de assero.

    2.2. Consideraes acerca do ttulo Per hermeneas

    Para o leitor que no conhea as possibilidades de significao da expresso em

    lngua grega, o ttulo Per hermeneas na sua traduo em lngua portuguesa, Sobre a

    interpretao18, pode gerar certos equvocos com relao ao que esse leitor espera

    encontrar no texto. Isso porque a palavra interpretao, em portugus, ganhou outros

    sentidos ao longo do tempo. Em geral, as pessoas, ao lerem ou ouvirem o ttulo em

    portugus, tendem a pensar que o tratado concerne a questes de interpretao no seu

    significado mais banalizado, ou seja, como uma possibilidade de compreenso de textos,

    no sentido de anlise dos contedos de um texto, tal como nos procedimentos de

    interpretao de textos escolares tradicionalmente realizados.

    18 A expresso grega Per hermeneas, que d nome ao tratado aristotlico forma-se de uma preposio per, a

    respeito de, sobre, mais o genitivo da palavra hermenea, cujos sentidos, em grego, so expresso de um pensamento, conseqentemente, capacidade de expressar algo, interpretao de um pensamento, esclarecimento, explicao. (Bailly, 1950, p.806)

  • 58

    O termo interpretao tem uma histria antiga na lngua portuguesa porque

    praticamente uma variante do termo latino interpretatio. Em ingls, por exemplo, ocorre

    algo semelhante, pois o ttulo do tratado se traduz como On interpretation. Whitaker

    (op.cit., p.57) afirma que as tradues, tanto latina quanto inglesa, e de acordo com sua

    explicao a portuguesa tambm, so tradues rudes, foradas porque, provavelmente,

    remetem a significaes no desejadas por Aristteles quando elaborou o tratado. Mas

    devemos lembrar que este ttulo no foi dado por Aristteles ao tratado.

    Segundo Whitaker (ibid., pp. 5-7), o ttulo aparece na lista de trabalhos de

    Aristteles fornecida por Digenes Larcio. E muitas outras referncias deixadas por

    escoliastas confirmam que Andrnico de Rodes j conhecia o tratado por esse ttulo em

    questo. Mas, nos textos aristotlicos, no se encontra nenhuma referncia a este trabalho

    do filsofo com este ttulo. Esse fato, entretanto, no quer dizer muito, j que tambm no

    se acha outro tipo de referncia, ou seja, no h indcios na obra aristotlica que permitam

    imaginar qual seria o verdadeiro nome do tratado.

    O mais interessante, a meu ver, pensando numa perspectiva discursiva, que, ainda

    que seja considerado inadequado, o ttulo segue sendo utilizado tradicionalmente,

    mantendo-se, inclusive, em sua verso latina, De interpretatione, pela qual o tratado mais

    conhecido. A argumentao de Whitaker (op. cit.) para defender a autenticidade do ttulo,

    d algumas pistas sobre o porqu da manuteno do nome. De acordo com o comentarista,

    na Antigidade e na Idade Mdia, presumia-se, geralmente, que o ttulo geral de uma obra

    era realmente o correto e designava seu contedo, e por isso era considerado importante

    explicar seu sentido. O tratado era visto tradicionalmente como sendo um estudo da

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    assero, complementar ao Categorias, que trata das expresses, e um preparatrio para o

    Primeiros Analticos, que diz respeito aos silogismos.

    Em virtude desta relao que o tratado mantm com os outros textos do rganon,

    estudiosos explicam que Per hermeneas, significa em relao assero. Segundo esta

    tradio, interpretao, hermeneas em grego, equivale a assero, apofantikos logos, a

    partir do momento em que de acordo com a explanao oferecida por Amonius a assero

    interpreta, isto , hermeneuon, o conhecimento na alma. Esta tradio seguida por Pacius,

    que afirma que uma interpretao (interpretatio) uma proposio convencional que d

    sentido s experincias da mente (WHITAKER, op. cit.).

    Esta viso do sentido do ttulo o resultado da deciso de que o tratado diz respeito

    assero e que por isso o ttulo deve significar Sobre a assero. O termo interpretao

    torna-se carregado de sentido tcnico para que possa servir exatamente ao suposto

    propsito do tratado, entretanto no h evidncia nos prprios textos de Aristteles para

    fazer a conexo do termo com a noo de assero. Ao invs disso, a palavra usada para

    qualquer tipo de expresso lingstica e at para a comunicao animal. Os termos

    expresso ou at mesmo