Armários de pedra na arquitectura tradicional do Alto Côa. Testemunhos de culto judaico?

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SABUCALE 71 Armários de pedra na arquitecura tradicional do Alto Côa. Testemunhos de culto judaico? Marcos Osório Introdução O recente incremento do estudo dos vestígios da presença judaica em Portugal tem avivado o interesse por todos as marcas e monumentos existentes nos centros históricos das antigas Vilas, que de alguma forma possam estar associados a estas primitivas comunidades. À falta de outros objectos ou representações de origem nitidamente hebraica, na pedra, no metal, na cerâmica ou em pergaminho, tem-se falado muito de cruzes, concavidades ou rasgos longitudinais nas ombreiras das portas, e também dos nichos de pedra encastrados nas paredes interiores das moradias que são interpretados como os armários sagrados da liturgia judaica – denominados por aron hakodesh entre os judeus Asquenazi ou hekhal entre os Sefarditas (Katz, 2007: 5). A popularidade que estes traços de religiosidade judaica têm ganho ultimamente, sobretudo ao nível da divulgação das rotas turísticas e patrimoniais, permitiram que tomássemos conhecimento da existência de três destes famosos armários de pedra no concelho do Sabugal. O caso mais falado ocorreu na recentemente restaurada Casa do Castelo do Sabugal, onde a sua proprietária decidiu preservar um armário detectado no interior da moradia devoluta, após a reabilitação do imóvel, dando-lhe enorme realce e visibilidade, o que tem trazido a esta cidade, curiosos e estudiosos do fenómeno judaico. Com a visita de alguns destes especialistas e a respectiva troca de informações, constatámos que existem muitas incertezas sobre esta matéria, evidenciando a relativa ignorância a que se tem votado o estudo e a análise deste mobiliário arquitectónico. A própria bibliograa especíca que existe sobre a presença judaica em Portugal (elencada no nal deste texto) concede poucas linhas ou é quase omissa

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OSÓRIO, Marcos (2008) - Armários de pedra na arquitectura tradicional do Alto Côa. Testemunhos de culto judaico? Sabucale. 1. Sabugal, p. 75-88.

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Armários de pedra na arquitecura tradicional do Alto Côa.

Testemunhos de culto judaico?Marcos Osório

IntroduçãoO recente incremento do estudo dos vestígios da presença judaica em Portugal tem avivado o interesse por todos as marcas e monumentos existentes nos centros históricos das antigas Vilas, que de alguma forma possam estar associados a estas primitivas comunidades. À falta de outros objectos ou representações de origem nitidamente hebraica, na pedra, no metal, na cerâmica ou em pergaminho, tem-se falado muito de cruzes, concavidades ou rasgos longitudinais nas ombreiras das portas, e também dos nichos de pedra encastrados nas paredes interiores das moradias que são interpretados como os armários sagrados da liturgia judaica – denominados por aron hakodesh entre os judeus Asquenazi ou hekhal entre os Sefarditas (Katz, 2007: 5).

A popularidade que estes traços de religiosidade judaica têm ganho ultimamente, sobretudo ao nível da divulgação das rotas turísticas e patrimoniais, permitiram que tomássemos conhecimento da existência de três destes famosos armários de pedra no concelho do Sabugal.

O caso mais falado ocorreu na recentemente restaurada Casa do Castelo do Sabugal, onde a sua proprietária decidiu preservar um armário detectado no interior da moradia devoluta, após a reabilitação do imóvel, dando-lhe enorme realce e visibilidade, o que tem trazido a esta cidade, curiosos e estudiosos do fenómeno judaico.

Com a visita de alguns destes especialistas e a respectiva troca de informações, constatámos que existem muitas incertezas sobre esta matéria, evidenciando a relativa ignorância a que se tem votado o estudo e a análise deste mobiliário arquitectónico. A própria bibliogra a especí ca que existe sobre a presença judaica em Portugal (elencada no nal deste texto) concede poucas linhas ou é quase omissa

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acerca dos armários pétreos. Em todo o país, apenas se ouve falar de 4 ou 5 casos: Castelo de Vide, Castelo Mendo, Guarda, Freixo de Espada- -à-Cinta, e mais recentemente, do Porto.

Todavia, a autoria judaica de todos estes armários pétreos não está ainda irrefutavelmente provada, dado que não se consegue, apenas por observação isolada ou por critérios de parecença, a rmar tacitamente essa natureza. Somente através da reunião de um número razoável de elementos liados a este culto e analisando exaustivamente cada exemplar, quanto à dimensão, à morfologia, aos elementos associados e à decoração; desenhando, fotografando, reunindo o máximo de informação e confrontando com outros exemplares conhecidos, seremos capazes de integrá-los no contexto das práticas religiosas, mais ou menos secretas, das comunidades judaicas ou apenas classi cá-los com meras funções domésticas em qualquer edifício medieval ou moderno.

Com este artigo desejamos apresentar três armários existentes no Concelho do Sabugal, caracterizando-os e avaliando as diferenças e semelhanças entre eles, deixando também alguns contributos para esta discussão.

Descrição1. Armário da Rua D. Dinis, 6 (Sabugal 1)

O armário situa-se numa parede interior, na mieira da casa, que dá para as traseiras do imóvel. Fica no 1º andar, ao cimo das escadas, encostando do seu lado direito à parede poente deste diminuto edifício. Está virado para SSE.

É constituído por treze blocos de granito trabalhado que de nem dois nichos de contorno rectangular , sendo o superior rematado em arco ab atido. O compartimento inferior apres enta a base completamente rebaixada (2,5 cm), um vazadouro frontal e possui duas marcas circulares de desgaste (Ø 13 cm). As ombreiras são cortadas em b isel e encontra-se totalmente emoldur ado por cordão e lete estreito (actualmente pintados a cor cinzenta). Um dos blocos da moldura lateral direita enc ontra-se

invertido, talvez por incúria do escultor. Não possui vestígios de utilização de porta, mas talvez de uma cortina, pelos dois orifícios de co ntorno triangular (3X2,5 cm), existentes nas esquinas do topo do armário, para provável colocação de um varão. (Figura 2)

Altura: 141 cm, largura 93 cm, profundidade 40 cmProprietário: João Cardoso (Sabugal).

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2. Armário da Casa do Castelo (Sabugal 2)O armário estava, primitivamen te,

numa parede interior, de separação de divisões da casa, no 1º andar, virado para SSE. Hoje encontra-se no piso inferior do edifício, com a mesma orientação.

É constituído por nove blocos de granito trabalhado que de nem dois nichos perfeitamente quadrangu lares, sendo o superior rematado em a rco abatido ( gura 3). O inferior possui duas cavidades circulares na base (Ø 15 cm), simetricamente dispostas, e uma outra de menores dimensões, ju nto ao rebordo exterior (Ø 7 cm). As ombreiras são cortadas em bisel. Teve po rtas individualizadas para cada nicho.

Altura: 151 cm, largura 76 cm, profundidade 54 cm

Proprietário: Natália Bispo (Sabugal).

3. Armário da Rua da Costa, 5 (Vilar Maior)O armário situa-se numa parede interior, de separação de div isões do

imóvel, encostando do seu lado direito ao canto interior do compartim ento, num edifício térreo. Está virado para a porta de entrada, na direcção NO.

É constituído por quinze bloco s de granito trabalhado que de nem três nichos de contorno rectangular . O superior é mais baixo, os restantes dois são relativamente simétricos. O inferior apresenta a base completamente rebaixada (3 cm), com vazadouro para a parte posterior. O compartimento mesial tem a laje de topo inclinada para a parte posterior ( gura 4). Não tem moldura, nem possui vestígios de possuir porta ou cortina.

Altura: 197 cm, largura 110 cm , profundidade 45 cm

Proprietário: Maria Del na (Vilar Maior).

Análise comparativaEstes três armários pétreos, apesar de serem relativamente distintos entre si, foram construídos com um propósito funcional semelhante e através de processos construtivos comuns.

Ambos empregam grandes blocos de cantaria de granito trabalhado (entre 9 a 15 elementos), montados e embutidos na

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parede de forma a criarem nichos com amplo espaço de arrumação. Os dois armários do Sabugal têm maiores semelhanças pelo facto de apresentarem apenas dois nichos, sendo o nicho superior rematado em arco abatido.

O nicho inferior dos três armários parece ter a mesma funcionalidade, talvez relacionada com a guarda/manuseamento de recipientes com líquido, como se deduz das cavidades circulares existentes na base desse espaço (Sabugal 2) e do rebaixamento da base, com escoadouro frontal (Sabugal 1) ou para a parte posterior (Vilar Maior). O armário Sabugal 1 apresenta também dois desgastes circulares na laje inferior, provocados pela repetida utilização de um objecto de base redonda ( gura 2).

Existem, porém, diferenças entre estes três monumentos, mais agrantes entre os do Sabugal e o de Vilar Maior, facto que pode dever-se, entre outras coisas, a diferentes artí ces.

Para além do armário de Vilar Maior ter três compartimentos e os do Sabugal possuírem apenas dois nichos, também a inclinação do topo do nicho intermédio do armário de Vilar Maior ( gura 4) não se repete nos armários sabugalenses (1).

O armário da Rua D. Dinis do Sabugal é o único que está ricamente decorado, evidenciando preocupações estéticas pouco comuns para simples mobiliário doméstico, com uma moldura de cordão entrelaçado ( gura 2), tipicamente Manuelina, que combina com a decoração dos vãos da fachada desse imóvel.

Por m, só o armário da Casa do Castelo parece ter sido feito com o intuito de levar portas (que talvez expliquem a natureza da cavidade circular menor junto ao rebordo: gura 3), enquanto o da Rua D. Dinis poderia ter um varão para uma cortina, a cobrir os nichos.

Um outro aspecto comparável prende-se com a orientação dos armários: os do Sabugal estão, curiosamente, virados para o mesmo lado (SSE) e localizavam-se ambos no 1º andar, enquanto o de Vilar Maior ca num piso térreo e numa parede de orientação completamente distinta (para NO).

Análise dos dados e hipóteses interpretativas Numa simples observação preliminar, estes elementos arquitectónicos serão apenas meros recessos na parede para arrumação doméstica. A arquitectura tradicional beirã, mesmo em casos mais humildes, recorre aos armários embutidos nas paredes, especialmente na cozinha, para arrumos (Amaral et alii, 1988: 38-39 e 99). É frequente identi car nichos de alvenaria de xisto ou granito, mais ou menos toscos, encastrados nas paredes, com uma ou duas divisões separadas por uma simples laje horizontal. É um costume que se repete e que poderia,

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nalguns casos, revestir-se de maior esmero e cuidado, ao sabor do gosto e das capacidades nanceiras do proprietário.

Figura 1 – Mapa do Sabugal e de Vilar Maior com a localização dos imóveis com os armários referidos no texto.

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Assim, com base nesta hipótese, considerar-se-ia que os compartimentos inferiores se destinavam ao armazenamento de cântaros de água – o que explicaria as cavidades e desgastes circulares dos armários do Sabugal ( guras 2 e 3) e a ligeira depressão escavada na base do nicho inferior, com vazadouro da água vertida, em Vilar Maior e no Sabugal 1. O nicho superior albergaria outro tipo de loiça doméstica, talvez de ir à mesa.

No entanto, o cuidado decorativo do armário Sabugal 1 parece-nos invulgar para um mero contentor de loiça doméstica. Este aprumo decorativo confere, indubitavelmente, alguma importância.

Tem vindo a ser atribuída uma outra funcionalidade a estes elementos arquitectónicos, relacionada com o culto judaico: estes armários seriam o espaço onde eram guardados os rolos dos manuscritos da Torah, sendo por isso chamados de Armário da Lei ou Arca Sagrada (2) (Adler et alii, 2002). Os aron ou hekhal judaicos são normalmente compostos por dois compartimentos diferenciados (Barroca, 2001: 193), o que coincide com os armários do Sabugal. Esta divisão em duas partes era concebida para receber respectivamente os livros sagrados, na inferior, e a lâmpada perpétua (Ner Tamid) no cimo (Barroca, 2001: 193).

Deste modo, só faria sentido que as cavidades na base dos nichos inferiores que se observam em alguns armários fossem o assento dos rolos da Torah, que eram colocados em posição vertical (tal como são abertos e lidos), e nunca para colocação de jarros sagrados (Marques e Fernandes, 2004: 271) ou óleos sagrados (Fernandes, 1997: 30; Marques e Fernandes, 2004: 274), como já foi proposto.

Todavia, para dar credibilidade a esta hipótese, necessitávamos de conhecer exemplos concretos do recurso a este artifício, em armários de sinagogas judaicas conhecidas em Portugal ou em outras partes do Mundo, porque não nos parece, mesmo assim, que estas cavidades de grande diâmetro (13 a 15 cm) e de pouca profundidade (Sabugal 2) ou apenas esboçadas (Sabugal 1), pudessem constituir um testemunho do suporte dos cilindros sagrados.

Diante destes armários prestava-se culto, no dia de Shabat ou dias de festa, através da leitura da Torah e do aprofundamento do conhecimento do Talmud. Os armários cavam usualmente a uma certa altura do piso, sendo acedidos, sobretudo nas sinagogas, através de degraus (Adler et alii, 2002). Nas sinagogas menos importantes a arca podia ser feita de madeira, de fácil remoção em caso de perigo, constituindo uma mera peça de mobiliário fechada e su cientemente alta para a congregação poder ver os rolos sagrados, quando as portas estavam abertas. Só em algumas situações se procedia à concepção de nichos pétreos nas paredes, acompanhados de elementos decorativos,

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como colunas, cornijas e arcos, feitos em materiais nobres (Adler et alii, 2002).

Em Portugal têm sido estudados e propostos como armários sagrados, de eventuais sinagogas, o hekhal (3) de Castelo de Vide (Balesteros e Oliveira, 1993: 130), o da Guarda (Fernandes, 1997 e Marques e Fernandes, 2004), outro em Castelo Mendo (Barroca, 2001), recentemente na cidade do Porto (Josué, 2005) e também em Freixo de Espada-à-Cinta (Barros, 2008).

Não queremos nestas linhas estabelecer quaisquer conjecturas sobre estes monumentos, mas apenas recorrer a eles para estabelecer algumas comparações que liem ou não os armários do Sabugal a este fenómeno cultural e religioso.

Figura 2 – Planta, alçado frontal e corte do armário da Rua D. Dinis do Sabugal (Sabugal 1).

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Um primeiro aspecto a considerar é a localização do armário no interior dos imóveis. Tal como os exemplares de Castelo de Vide (Balesteros e Oliveira, 1993: 151), Castelo Mendo (Barroca, 2001: 192), Guarda (Marques e Fernandes, 2004: 272, g. 7) e Freixo, somente os dois exemplares do Sabugal se encontravam no 1º andar do imóvel.

Já quanto à orientação, a não ser em escassas situações, os armários sagrados eram sempre destinados a uma parede Nascente, para os crentes fazerem os seus rituais virados para o armário, na direcção de Jerusalém (4) (Adler et alii, 2002). Apenas temos conhecimento de que o exemplar de Castelo Mendo (Barroca, 2001: 192) e o de Castelo de Vide (Balesteros e Oliveira, 1993: 126 e 151) estão abertos para ocidente, na parede leste do respectivo edifício – o que não acontece com nenhum destes três exemplares do concelho do Sabugal, que ignoram por completo essa disposição, estando virados para SSE (Sabugal 1 e 2) e para NO (Vilar Maior). Não há qualquer motivo aparente – como falta de espaço – para não terem sido colocados na respectiva parede oriental da moradia. Para lhe atribuirmos funções de culto judaico, só poderemos explicar esta “incongruência” devido a qualquer reutilização posterior, fora do contexto funcional primitivo, em outro edifício ou em outra parede deste mesmo edifício (5).

Quanto ao estilo arquitectónico, os dois armários do Sabugal apresentam a mesma solução que o hekhal de Castelo Mendo (BARROCA, 2001: 192), tal como o do Porto e o da Guarda, sendo o nicho superior rematado por arco abatido. No caso do armário Manuelino do Sabugal, o remate do topo é análogo ao de Castelo de Vide, e somente este armário manifestou preocupações decorativas como os de Castelo Mendo, Guarda e Freixo de Espada-à-Cinta. Todavia, apesar de decorados, todos eles revelam temáticas e elementos decorativos distintos entre si e pouco liados na iconogra a hebraica.

Não é fácil datar estes monumentos arquitectónicos. Apenas o armário Sabugal 1, pela presença da ornamentação Manuelina, associada à decoração com arco conopial, cordames e esferas esculpidas nos vãos da fachada desse mesmo imóvel, nos permite recuar a sua cronologia ao século XVI. Serão os restantes exemplares contemporâneos? É possível, tal como não seria estranha a sua feitura em época mais recente. A proposta cronológica do armário de Castelo Mendo, para o século XVI, a partir da análise da ornamentação, é coincidente com este exemplar decorado da Rua D. Dinis – o que surpreende pela sua cronologia tardia - «posterior à promulgação do decreto manuelino que, por sua vez, ditou a expulsão dos Judeus de Portugal, em 5 de Dezembro de 1496» (Barroca, 2001: 192). Também o imóvel que alberga o armário judaico de Freixo de Espada-à-Cinta é considerado quinhentista (Barros, 2008: 89) e o de Castelo de Vide data do século XV (Barroca, 2001: 193). Estas

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cronologias comuns dos armários, con rmando-se a origem judaica, podem colocar-nos «perante um inédito testemunho da resistência que certas comunidades sefarditas ofereceram ao decreto régio, não abandonando o reino mas também não abdicando das suas convicções religiosas mais profundas» (Barroca, 2001: 195).

A localização do hekhal da Rua D. Dinis seria mais coincidente com uma lógica de culto clandestino e privado, do que o armário da Casa do Castelo, situado no Largo principal do burgo, defronte da Igreja da Senhora do Castelo, a não ser que este tivesse uma cronologia mais antiga, numa altura em que ainda não havia necessidade de esconder a fé. Tal como em Castelo Mendo, o armário da casa manuelina do Sabugal situa-se num ponto periférico na trama urbana do centro histórico, perto de uma das portas da muralha (Barroca, 2001: 195).

Figura 3 – Planta, alçado frontal e corte do armário da Casa do Castelo do Sabugal (Sabugal 2).

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Um dado interessante de re exão, para atribuição de causalidade religiosa a estes armários, seria a presença de vestígios de portas. Os armários sagrados do Judaísmo tinham, usualmente, portas que fechavam os livros sagrados, sendo ainda cobertos por intermédio de uma cortina de material nobre (denominada como paroket) (Adler et alii, 2002, Peláez del Rosal, 1994). No entanto, esta prática diferiu entre as diferentes comunidades judaicas, pois enquanto no rito azquenazi a cortina cava sempre por fora das portas, nas sinagogas sefarditas cava dentro da porta (Adler et alii, 2002; Katz, 2007: 6). Apenas o exemplar do Sabugal 2 denota preocupações de fecho por intermédio de portas independentes e o do Sabugal 1 por meio de uma cortina. O armário de Freixo de Espada-à-Cinta encontra-se, ainda hoje, cerrado por portas gradeadas de madeira. Pelo contrário, o de Castelo Mendo, tal como o do Porto e o da Guarda não têm vestígios de encaixes de dobradiças (Barroca, 2001: 193), assim como o de Vilar Maior, o que só pode ser entendido numa lógica de uso doméstico.

Um elemento recorrente nestes monumentos, e presente apenas em Castelo Mendo (Barroca, 2001: 192-193), Castelo de Vide (Balesteros e Oliveira, 1993: 130) e Freixo de Espada-à-Cinta (Barros, 2008: 90), é a mísula para suster o candelabro sagrado de sete braços (Menorah), colocada num dos lados do armário. Nos três armários do concelho do Sabugal não temos quaisquer indicações da sua existência. Este pode ser outro factor fundamental à atribuição de carácter sagrado a estes armários.

Concordamos que é preciso ter cuidado, como alguém lembrou (Rodrigues, 1999), em classi car um imóvel como sinagoga, apenas pela existência de um destes armários da lei. O culto judaico «podia ter lugar num edifício erguido com outro propósito e apenas adaptado a esse m» (Barroca, 2001: 196), não tendo necessariamente que ser numa sinagoga. O aron ou hekhal seria, nestes casos, o único «equipamento imprescindível» (Idem: 196), dado que continha o mais precioso e sagrado bem para os Judeus – a Torah.

A posse de um armário em matéria nobre como a pedra, ainda por cima decorado, seria um sinal de riqueza e de alguma prosperidade do imóvel, pois a normalidade seria pautada por armários de madeira «como a esmagadora maioria do mobiliário de uso quotidiano» (Barroca, 2001: 193), e «adequa-se também melhor a um m sagrado do que a uma utilização quotidiana» (idem: 193). Os dois imóveis do Sabugal, onde se encontram estes elementos, detêm algum valor arquitectónico tal como os respectivos armários. Já a casa de Vilar Maior não apresenta qualquer traço de riqueza ou requinte, tratando-se praticamente de um palheiro e estábulo de animais.

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Considerações naisAlguns autores que se debruçaram sobre os armários judaicos têm vindo

a expressar as suas di culdades na classi cação destes monumentos, pois levantam «problemas de datação e compreensão» (Balesteros e Oliveira, 1993: 139), ou negam simplesmente qualquer conotação judaica (Rodrigues, 1999).

Considerando os pressupostos aqui expressos, também não podemos asseverar com segurança que estes três armários do Sabugal são de culto judaico. No entanto, essa possibilidade não se pode excluir liminarmente. Faltam mais elementos para que possamos garantir ou excluir a natureza religiosa dos monumentos em questão. O nosso conhecimento actual destas práticas cultuais antigas é limitado, sobretudo acerca dos contornos deste fenómeno em meios periféricos

Figura 4 – Planta, alçado frontal e corte do armário da Rua da Costa de Vilar Maior.

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e afastados dos principais centros de animação cultural judaica. Estes armários apresentados podem não se assemelhar, em requinte e esmero, aos monumentos sagrados de uma importante sinagoga de qualquer grande cidade espanhola ou portuguesa, não invalidando porém que fossem usados como tal, nesta região mais recôndita e em contexto de cripto-judaismo.

Não seria uma surpresa a identi cação de um espaço de culto judaico no Sabugal ou em Vilar Maior, pois conhecem-se referências a comunidades judaicas aqui presentes (Tavares, 1982: 75; Balesteros, 1996a: 143; Balesteros, 1996b: 182), embora se desconheça a exacta demarcação das primitivas judiarias destas Vilas, ao contrário de outras povoações portuguesas. No entanto, isso não autoriza que um simples armário doméstico encontrado num edifício destes centros históricos seja imediatamente associado a uma sinagoga judia. Descartando a hipótese de uma sinagoga, mesmo assim, poderia ser um nicho que temporariamente tivesse albergado os escritos sagrados, dado que as celebrações também se podiam realizar nas casas dos crentes (BARROS, 2008: 89) ou simplesmente guardados aí os rolos para serem levados para a Sinagoga apenas no dia de culto (PELÁEZ DEL ROSA, 1994).

Por outro lado, a arca sagrada do período anterior à expulsão dos judeus seria um monumento muito mais elaborado e característico do que um armário cultual pós-1496, que poderia ser construído de forma mais dissimulada, para o tornar menos óbvio. Isto poderia explicar também a simplicidade destes três exemplares.

Convém dizer que se conhecem outras marcas atribuídas ao cripto-judaísmo nos próprios edifícios onde se encontram os armários. Na Casa do Castelo ainda se preserva hoje, mesmo após o restauro do imóvel, uma estranha marca cruciforme, na porta de entrada. Já em Vilar Maior, a casa do armário pétreo integra-se numa ada de edifícios que ostentam abundantes marcas cruciformes e testemunhos de mezuzot. Apenas por esse motivo, estes armários poderiam estar associados a estas comunidades.

Falta ainda lembrar que qualquer testemunho da natureza religiosa destes aparatos arquitectónicos pode ter sido apagado ou perdido, e eles reconvertidos em funcionalidades domésticas, estando hoje muito distantes da utilização original para a qual foram concebidos.

Assim, as dúvidas em classi car estes armários do concelho do Sabugal como judaicos resumem-se ao seguinte:

- O armário de Vilar Maior ( gura 4) possui um terceiro compartimento, o nicho inferior revela uma depressão e um escoadouro de líquidos para as traseiras e não tem qualquer traço de existência de portas. Encontra--se num edifício pouco digno para espaço de culto religioso, além da sua orientação discordante com o costume judaico.

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- Os armários pétreos do Sabugal, apesar de apresentarem melhores paralelos morfológicos e estilísticos, exibem também problemas: a orientação errada das paredes onde foram embutidos, a proximidade à igreja matriz católica do armário Sabugal 2, as estranhas cavidades circulares das bases dos nichos inferiores, mais concordantes com outras utilizações domésticas, e a mesma depressão e escoadouro de líquidos na base do nicho inferior do armário Sabugal 1 ( guras 2 e 3).

Após a re exão em torno destes três armários, não fomos capazes, em boa verdade, de atribuir uma natureza precisa a ambos monumentos pétreos. Qualquer a rmação sobre a funcionalidade destes elementos deve ser precedida de investigação cuidada, pois certamente observações e análises banais não conferem cunho de autenticidade. Talvez com a prossecução do estudo conjunto dos armários pétreos de outras regiões portuguesas, se possa reunir mais documentação que caracterize este fenómeno ainda desconhecido. É pois o desa o que intentaremos atingir, futuramente, de forma a contribuir para o esclarecimento destas e outras questões em torno da presença judaica na nossa região.

Notas:(1) Curiosamente, este pormeno r arquitectónico apenas se repete na laje que separa

os dois nichos do armário da propalada sinagoga recentemente descoberta na cidade do Porto (Josué, 2005).

(2) Em memória da Arca da Alia nça do Êxodo do povo de Israel (ver Livro do Êxodo 25:10).

(3) Preferimos usar, de agora em diante, o termo sefardita hekhal sempre que nos referirmos ao armário sagrado dos judeus peninsulares, porque foi esta a comunidade que aqui residiu durante a Idade Média e Época Moderna.

(4) Práctica também seguida pe lo Cristianismo na orientação da capela-mor e do altar das igrejas.

(5) Sabemos que um dos armário s da Guarda foi transferido de uma parede norte do 1º andar do imóvel para a parede leste do rés-do-chão desse mesmo edifício (Marques e Fernandes, 2004: 272 e 273). Também o armário do Sabugal 2, após as obras de reabilitação do imóvel, foi recolocado na cave, embora preservando a mesma orientação.

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