arqueologia O homem e · a paisagem o ambiente não é visto como um mero espaço de origem...

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OLIBERAL tes antropogênicos relacionados, onde uma dada população se orga- niza e se identifica socialmente. O uso objetivo do ambiente co- meçou quase junto com o surgimen- to do Homem na Terra. Obviamente, a Amazônia não está excluída des- Todo ambiente ocupado por uma população é um nicho culturalmente projetado, cuja herança é reforçada e transmitida às gerações futuras pela aprendizagem. Os ambientes deixam de ser um mero efeito da seleção natural e expressam valores simbólicos que são culturalmente selecionados e transmitidos O homem e a paisagem ARQUEOLOGIA Paisagem e ambiente como artefatos sociais e objetos culturais Todo espaço que apresenta locais com ocorrências mate- riais diversos pode representar a organização e a identidade de uma dada sociedade IGOR MOTA / O LIBERAL U ma das principais linhas de pesquisa da arqueologia é aquela que estuda a pai- sagem. Dentro desta linha, a mais interessante é que considera a pai- sagem como um espaço construído. Para os arqueólogos que estudam a paisagem o ambiente não é visto como um mero espaço de origem natural, mas como um artefato so- cial que transforma o ambiente em um objeto cultural. São os costumes culturais que modelam as paisagens segundo as suas representações so- ciais. Assim, a maneira como as sociedades alteram os ambientes, seja interferindo na topografia, no solo, criando, semeando ou cul- tivando espécies selecionadas, indica como atividades técni- cas adequadas e diversas torna-os mais produtivos e, simultaneamen- te, familiares e culturalmente identi- ficáveis. Todo espaço que apresenta locais com ocorrências materiais e recursos naturais diversos pode representar um território cultural construído, com diferentes ambien- te processo e, como a arqueologia comprova, as suas paisagens come- çaram a ser construídas há milhares de anos. Primeiro quando os caça- dores-coletores pioneiros chegaram. Depois com as populações agricul- toras posteriores, que consolidaram as paisagens amazônicas como as conhecemos. Hoje o processo de construção continua, porém, infe- lizmente, o patrimônio da herança recebida (o saber sobre a floresta e a diversidade de espécies úteis) vem sendo destruída em nome da ganân- cia e do lucro fácil. Texto Marcos Pereira Magalhães

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Page 1: arqueologia O homem e · a paisagem o ambiente não é visto como um mero espaço de origem natural, mas como um artefato so-cial que transforma o ambiente em um objeto cultural.

o liberalo liberal

tes antropogênicos relacionados, onde uma dada população se orga-niza e se identifica socialmente.

O uso objetivo do ambiente co-meçou quase junto com o surgimen-to do Homem na Terra. Obviamente, a Amazônia não está excluída des-

Todo ambiente ocupado por uma população é um nicho culturalmente projetado, cuja herança é reforçada e transmitida às gerações futuras pela aprendizagem. Os ambientes deixam de ser um mero efeito da seleção natural e expressam valores simbólicos que são culturalmente selecionados e transmitidos

O homem ea paisagem

arqueologia

Paisagem e ambiente como artefatos sociais e objetos culturais

Todo espaço que apresenta locais com ocorrências mate-riais diversos pode representar a organização e a identidade de uma dada sociedade

igor mota / o liberal

uma das principais linhas de pesquisa da arqueologia é aquela que estuda a pai-

sagem. Dentro desta linha, a mais interessante é que considera a pai-sagem como um espaço construído. Para os arqueólogos que estudam a paisagem o ambiente não é visto como um mero espaço de origem natural, mas como um artefato so-cial que transforma o ambiente em um objeto cultural. São os costumes culturais que modelam as paisagens

segundo as suas representações so-ciais. Assim, a maneira como as sociedades alteram os ambientes, seja interferindo na topografia, no solo, criando, semeando ou cul-tivando espécies selecionadas, indica como atividades técni-cas adequadas e diversas torna-os mais produtivos e, simultaneamen-te, familiares e culturalmente identi-ficáveis. Todo espaço que apresenta locais com ocorrências materiais e recursos naturais diversos pode representar um território cultural construído, com diferentes ambien-

te processo e, como a arqueologia comprova, as suas paisagens come-çaram a ser construídas há milhares de anos. Primeiro quando os caça-dores-coletores pioneiros chegaram. Depois com as populações agricul-toras posteriores, que consolidaram as paisagens amazônicas como as conhecemos. Hoje o processo de construção continua, porém, infe-lizmente, o patrimônio da herança recebida (o saber sobre a floresta e a diversidade de espécies úteis) vem sendo destruída em nome da ganân-cia e do lucro fácil.

Texto Marcos Pereira Magalhães

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A floresta nunca foi um fator restritivo para o progresso dos homens

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Cultura e natureza

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Natureza e cultura, geralmente, são consideradas dois campos de co-nhecimento complementares, porém vistos separadamente. Mas para a arqueologia da paisagem a cultura nada mais é do que uma expressão da natureza. Assim, a cultura pode ser tida como um sistema de padrões de comportamento, preferências e produtos da atividade humana que são socialmente transmitidos e que caracterizam uma população em de-terminado lugar. A cultura evolui e sua evolução pode ser definida como a mudança, ao longo do tempo e do espaço, na natureza e na frequência de preferências, padrões e produtos do comportamento socialmente trans-mitidos numa população. A evolução cultural é em parte independente da variação genética das populações. Tal independência, entretanto, não dura para sempre, pois em algumas circunstâncias existe uma interação entre os sistemas genético e cultural. Por outro lado, as culturas transmi-tem informação através de aprendi-zagem social. Com isto, o aprendiza-do socialmente mediado é um meio de mudança no comportamento que resulta de interações sociais com ou-tros indivíduos, geralmente da mes-ma sociedade, cujas representações se refletem na paisagem construída e alteram o ambiente natural.

A idéia da cultura enquanto natu-ral facilita o reconhecimento de que toda sociedade constrói um nicho culturalmente identificável através de símbolos, praticas e comporta-mentos. Esse nicho é construído no espaço de ocupação sócio-ambien-tal, de modo que não só a sociedade possui informações que ajudam a determinar preferências e identida-des, bem como o ambiente é mo-delado e tornado familiar segundo essas mesmas informações. Sendo assim, todo ambiente ocupado por uma população humana é um ni-cho culturalmente projetado, cuja herança é reforçada e transmitida às gerações futuras pela aprendizagem. Ou seja, os hábitos, práticas e cos-tumes de uma sociedade afetam o valor adaptativo das variações com-portamentais das pessoas. Por conta disto, os ambientes construídos por elas deixam de ser um mero efeito da seleção natural e expressam valores simbólicos que são culturalmente se-lecionados e transmitidos.

Domesticação do ambienteQuando o Homem coloniza uma

região ele manipula o ambiente de tal modo, que a persistência dessa ação afeta o desenvolvimento socio-cultural de seus descendentes, bem como sua própria identidade cultural e a vida das espécies que seleciona. O Homem age independente da com-plexidade cultural que ostenta, como engenheiro ecológico, já que o pro-duto das suas práticas se difunde no ambiente e o transforma, alterando o regime seletivo de seus vizinhos e descendentes bem como a sua pró-pria identidade frente a eles. Os seres humanos, na verdade, são o maior agente seletivo do planeta Terra, e executam as mais drásticas cons-truções ambientais. Pode-se dizer que na história humana a evolução adaptativa tem sido guiada pelo sis-tema cultural, que cria as condições necessárias nas quais os genes e o comportamento são expressos e se-lecionados. Portanto, o Homem não depende do sistema genético, cego e casual, para transmitir informações adaptativas adiante. Pelo contrário, sua capacidade adaptativa é induzi-da ou adquirida em resposta às con-dições de vida. E são as diferentes respostas culturais às diversas condi-ções de vida que garantem aos gru-pos humanos a construção de paisa-gens e cartografias com cenários e símbolos socialmente organizados e cotidianamente reproduzidos.

Amazônia CulturalEstudos recentes nas mais diver-

sas partes do mundo vêm mostrando que a influência humana sobre a na-tureza é condição da sua existência e da própria evolução coletiva das es-pécies. Acredita-se hoje em dia, que alguns dos padrões mais importantes de migração e colonização humanas durante os últimos 15 mil anos resul-taram da domesticação de plantas e animais, que tornaram algumas espécies parte inseparável do nicho ecológico humano. Assim, se a evolu-ção cultural das antigas populações Amazônicas resultou em sociedades desenvolvidas por agentes que domi-navam práticas e técnicas de manejo e cultivo de plantas domesticadas, é porque elas percorreram uma longa duração onde acontecimentos histó-ricos precedentes desenvolveram e conquistaram essas práticas e técni-

cas. Mas não é só isto. O domínio téc-nico do manejo seletivo de espécies permitiu que diferentes sociedades pudessem relacionar algumas delas com a sua própria formação e identi-dade cultural.

De fato, desde a última década do século XX, pesquisas arqueológicas vêm comprovando que a floresta tro-pical, mesmo há milhares de anos, nunca foi um fator restritivo para o progresso dos Homens que nela viveram. Isto é: uma restrição ao florescimento de novas e melhores possibilidades; uma barreira ao pre-enchimento de todo nicho disponível; um obstáculo ao desenvolvimento de organizações sociais cada vez mais elaboradas. Muito pelo contrário, os arqueólogos têm confirmado que não havia uma diferença marcante na adaptação dos povos que habita-vam a terra firme daqueles que ha-

bitavam as várzeas e, inclusive, que a formação dos nichos explorados passou por forte influência antrópi-ca. Na Amazônia, a exploração dos

recursos naturais, por parte das populações antigas, inclui um território com ecossistemas di-

ferenciados, explorados e manejados complementarmente. Na verdade, a ocupação territorial era o modo como diferentes áreas de várzea, de interflúvios e terras firmes eram economicamente conectadas, cultu-ralmente integradas e socialmente construídas.

Relações sociais, culturais e am-bientais são fatores interdependentes. Assim, a seleção, manejo, organiza-ção e domesticação do espaço, dos recursos e organismos naturais são aspectos gerais da cognição e da cul-tura. Não podem ser isolados uns das outros; não podem ser isolados dos sistemas econômicos, legais e polí-ticos em que estão embutidos e são construídos e nem das práticas das pessoas que os constroem.

Na inter-relação cultura/natureza, o intercâmbio entre os comportamen-tos e o ambiente é ecológica e simbo-licamente representado. Por exemplo, quando as pessoas guardam em tem-

Alguns padrões de migração e colonização humana, durante os útlimos 15 mil anos resultaram da domesticação de plantas e animais, que tornaram algumas espécies parte inseparável do ni-cho ecológico humano. Pastagem no município de Salinópolis, PA.

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O nível de interferência depende das necessidades geradas pela com-plexidade social. Portanto, entre as sociedades mais simples, como as de caçadores-coletores, as necessidades, geralmente, não implicam em altera-ções radicais do ambiente, tais como aquelas exigidas para a construção de canais, de tesos e outras obras urba-nas. O tipo de interferência que exe-cutam não caracteriza domesticação da paisagem em si, já que não envolve o manejo coletivo de animais, plantas ou da geografia. A interferência dos caçadores-coletores, consciente ou inconscientemente, só se caracteriza como domesticação porque eles in-terferem, em um primeiro momento, na distribuição das espécies cultural-mente selecionadas e, no momento seguinte, na concentração e compor-tamento delas. Há, portanto, uma di-ferença no tipo de interferência que a cultura faz sobre a natureza. De todo modo a cultura só domestica a natu-reza quando age sobre os seres vivos, incluindo aí os próprios seres huma-nos. Paisagem domesticada, assim, é o espaço cuja distribuição, compor-tamento e concentração de espécies foram induzidos intensamente por práticas culturalmente orientadas.

No início a domesticação da pai-sagem pode ser aleatória e conscien-temente involuntária, mas ela resulta num produto de reconhecido valor para as gerações beneficiárias. Con-seqüentemente, esse produto pode se tornar não só fundamental para o desenvolvimento histórico da socie-dade ou sociedades que o produziu, bem como se tornar consciente e tec-nologicamente mais elaborado pelas sociedades herdeiras.

Por outro lado, quanto mais com-plexa for a organização cultural de uma sociedade menos aleatória é a sua evolução histórica, pois compor-tamentos aprendidos interagem com todos os eventos recorrentes no desen-volvimento das mudanças. Ao se re-fletirem sobre a construção ou recons-trução dos nichos que os abrigam, as mudanças são reforçadas pelas ações pedagógicas ao mesmo tempo em que interferem mais intensamente na evo-lução paisagística dos ambientes e das espécies a eles relacionadas. Porém, a cultura além de interferir positiva-mente no que seleciona, também ex-clui tudo aquilo que não atende suas necessidades, o que tem levado mui-

tas espécies à extinção. A partir do momento em que a

ação coletiva promovida pela sele-ção cultural implica na produção si-multânea de símbolos com os quais a sociedade se identifica e se comu-nica, a própria paisagem construída reproduz a simbologia e a comunica-ção embutidas nelas. Assim, a flores-ta tropical dos ambientes manejados pelo homem, são bens culturais de valor simbólico e objetivo, tal como a própria cultura material. Deste modo, se existem áreas onde pa-drões culturais e históricos são iden-tificados na cultura material deixada por antigas populações amazônicas, é de se esperar que as paisagens onde esses materiais se encontrem também reflitam esse padrão.

Esse argumento é fortalecido quando verificamos que os vestígios de manejo associados às populações agricultoras antigas e muitos à pró-pria população contemporânea eram as mesmas plantas utilizadas (como a mandioca, por exemplo) e consu-midas por populações pioneiras mi-lenares. Assim, teria ocorrido uma continuidade, principalmente no que se refere aos recursos explorados e aos hábitos alimentares e sociais, todos regionalmente provenientes e consumados na floresta neotropical amazônica. Foram as persistentes ações voltadas para o manejo dire-to e indireto do ambiente, que cria-ram nichos culturais cada vez mais abrangentes e deixaram um legado transmitido de geração para geração, até ser definitivamente incorporado aos padrões culturais regionais mais complexos.

Tem ficado cada vez mais cla-ro que na Amazônia os ambientes transformados em paisagens cultu-ralmente reconhecidas não podem ser vistos como um mero substrato natural (no sentido de selvagem), mas sim como espaços simbolica-mente construídos. Neles, há toda uma dinâmica entre o mundo natu-ral e a imagem social da paisagem, que permanece permanentemen-te em obra em favor dos interesses culturais, sociais e políticos dos Ho-mens. Pode-se afirmar, então, que parte significativa das florestas ama-zônicas seria, efetivamente, uma paisagem eco-fatual resultante da in-terpretação e idealização do mundo por meio da cultura.

Engenheiro ecológico

pos de escassez e/ou transportam de um lugar para outro as sementes de suas plantas preferidas e os seus ani-mais de estimação, elas acabam au-mentando a chance de que esse comportamento seja preservado em gerações subsequentes. Mas também, que as sementes e animais transportados representem aspec-tos importantes de representações culturais tradicionais. Isso acontece porque, no caso das sementes, elas acabam se espalhando e germinando nos lugares por onde essas pessoas passaram, o que garante um estoque de alimentos para as gerações futuras e uma identidade de pertencimento a esses lugares. Por isso a probabilidade de que esse comportamento se repita nas gerações seguintes aumenta, pois são criados símbolos e informações pedagógicas que preservam os hábi-tos e as práticas relacionadas a esse costume.

Ao colonizar a região amazônica, a persistência das ações humanas de manejo afetou o desenvolvimento sociocultural de seus descendentes, a sua identidade cultural e a vida das espécies que selecionou. Tendo isto ocorrido desde o início do Ho-loceno, os atributos culturais desen-

volvidos foram frutos da inteiração regional e da longa duração da rela-ção cultura/natureza. Nessa relação não só os produtos culturais se iden-tificam com a floresta tropical onde se desenvolveram, como a própria floresta tropical reproduziu, de um modo ou de outro, o produto dessa relação. De fato, o Homem agiu, in-dependente da complexidade cultu-ral que ostentava, como engenheiro ecológico. Mas o produto das práti-cas que se difundiram no ambiente e o transformaram está atrelado à evolução histórica das sociedades ao longo do tempo. Desde a sua chega-da, os seres humanos, como agentes seletivos da Amazônia, executaram em determinados territórios da re-gião, as construções do ambiente segundo o nível de complexidade social que ostentaram, intermitente ou continuamente.

A cultura só domestica a natureza quando age sobre os seres

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Imagem social da paisagem

caminhos para aprofundamentos

Jablanka, E. & Lamb, M.J. 2010. Evolução em quatro dimensões: DNA, comportamento e a histó-ria da vida. São Paulo, Companhia das Letras. Magalhães, M.P. 2007. Evolução e seleção cultural na Amazônia Ne-otropical. Revista Amazônia: Ci. & Desenv., Belém, 3:93-112. Magalhães, M.P. 2010. Natureza

selvagem e natureza antropogê-nica na Amazônia Neotropical. In: Pereira. E. & Guapindaia, V. (Orgs.). 00. Arqueologia da Amazônia . Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi, 00, p0-. Pinto-Correia, C. 1998. O ovário de Eva. Lisboa. Relógio D’Água Editores.

Os ecossistemas sobre os quais os Homens intervêm devem ser vistos como ambientes que ultrapassam os preceitos de uma entidade física intacta e onde ocorre uma relação intrínseca com a dinâmica cultural, compreendi-da como uma construção social, fun-damentada pelos processos que atuam em uma sociedade. A construção so-cial, por sua vez, é a construção social do mundo, em que os agentes sociais, são eles próprios, em sua prática cole-tiva, os sujeitos de atos de construção desse mundo. O Homem, ao construir a imagem social da paisagem, sela sua identidade nesta mesma paisagem, por-que neste ato de construção incorpora o conhecimento adquirido no decorrer da história de construção dessa ima-gem. Ora, mas o conhecimento incor-porado é o conhecimento proveniente do ambiente transformado em paisa-gem, de modo que ao incorporar esse conhecimento o Homem é alterado pelo próprio ambiente transformado.

Mudanças culturaisA domesticação coletiva, ou seja, a

construção de paisagens simbolizadas por espécimes culturalmente selecio-nados alterou os ambientes em que as sociedades humanas viveram e se identificaram. Isto permitiu mudanças culturais cada vez mais complexas, que expandiram a percepção e produziram mais informação. Tal processo co-evo-lutivo (seleção natural e cultural) tam-bém é observado na Amazônia desde os tempos mais remotos. Por outro lado, na Amazônia, a fronteira geopolí-tica dos territórios culturais conquista-dos pelas populações agricultoras pos-teriores era definida não pela formação e controle de aparelhos de estado, mas, fundamentalmente, pela representação subjetiva do poder, expressa na organi-zação da paisagem como um instru-mento de força cultural.

Foram essas populações agricul-toras, cujas sociedades detinham o domínio técnico e econômico do cul-tivo de plantas neotropicais locais, que montaram os cenários culturais e modelaram os ambientes amazônicos em paisagens familiares, coletivas e re-gionalmente integradas. Em síntese, as sociedades indígenas agricultoras não só são fruto da reorganização histórica de ações humanas milenares, efetiva-das na floresta úmida amazônica, bem como é um fenômeno cultural que fez dos ecossistemas neotropicais, um ob-

jeto manufaturável! Portanto, a ação humana sobre o ambiente não deve ser entendida como uma mera atividade predadora, de impacto exclusivamente negativo sobre o destino das espécies. Na verdade, o destino humano tem sido planejado traçando o traço da pró-pria paisagem. Isto é, a humanidade não só seleciona e domestica espécies, como também domestica os ambientes enquanto educa a si mesma. O que o Homem faz a si faz à natureza, o que faz à natureza, faz a si mesmo. A Ama-zônia se sustenta pelo o que fazemos e não pelo o que a natureza faz. En-tretanto, a entropia das nossas ações, isto é, as ações que causam extinção através da seleção cultural, podem ser mediadas pela valorização da natureza em si e pela produção diversificada de mais vida.

Como conseqüência da compre-ensão de que boa parte da Amazônia conhecida é fruto da ação humana pode-se levantar uma questão em re-lação à sutentabilidade econômica da natureza. É comum os ecologistas defenderem a conservação de determi-nados ambientes, sem considerar que a distribuição e concentração de es-pécies nele podem ter se originado de ações culturais orientadas. Na verda-de, a evolução exclusivamente natural aparente refere-se apenas à condição atual de isolamento de determinado ambiente. Mas, se formos considerar a história, dificilmente encontraremos um ambiente que ao longo do tempo não tenha sido, direta ou indiretamen-te, transformado pelo Homem. E essa ação transformadora, apesar de seleti-va, sempre foi de aumento dos recursos disponíveis. Neste sentido, portanto, a exploração sustentável de todo ambien-te é aquela que é capaz de aumentar a produtividade da natureza.

Marcos Pereira Magalhães é graduado em Ciências Sociais, mestre em História Antiga e Medieval, doutor em História Social e pesquisador arqueólogo do Museu Paraense Emílio Goeldi.

O homem é alterado pelo próprio ambiente transformado

O produto das práticas humanas se difunde no am-biente e o transforma, alte-rando o regime seletivo de seus vizinhos e descendentes, bem como sua própria identi-dade. Petrogrifos em Monte Alegre, PA.