arquitetura efêmera na metrópole

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arte|sociedade|tecnologia monografia apresentada como trabalho final de graduação para a fauusp em 2010 que trata das possibilidades da prática arquitetônica envolvendo espaços públicos, não-lugares, arte, arte cotidiana, apropriações, práticas coletivas, reutilização de materiais, cenografia e teatro de rua. faz parte do projeto material para atentados - uma cenografia efêmera para teatro de rua, peça do workshop "atentados" conferido pela cia teatral tablado de arruar https://vimeo.com/12779364

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arquiteturae f ê m e r a

material para atentados

arquitetura efêmerana metrólole

arte | sociedade | tecnologia

Universidade de São PauloFaculdade de Arquitetura e Urbanismo

Paulo Adolfo Martinstrabalho final de graduação junho 2010

orientação Marcos Acayaba

A subutilização ou a completa inutilização de espaços na cidade, em especial os localizados em zonas centrais, em meio a grande fluxo de transportes e pedestres e de fácil acesso, causa certa inquietação. São em geral espaços resi-duais, que surgiram principalmente como sobra da implantação de infraestru-turas [espaços sob viadutos, canteiros que sobram da remodelação da rede viária, espaço sob rede de alta tensão]. Estes espaços, quase sempre amorfos, inóspitos e inertes, cada vez mais presentes na cidade contemporânea, embo-ra adquiram uma atmosfera de abandono e isolamento, conferida pelo fato de não fazerem parte da lógica funcional e espacial urbana, são parte da integri-dade da cidade, possibilitando por vezes apropriações informais de diversos tipos pela pressão de muitos usos que neles se instalam de maneira não-oficial. Fazem-se públicos através destas práticas, embora quase sempre modestas e discretas, nestas áreas que muitas vezes não consideradas como espaços com fins públicos [na maioria das vezes, sem fim nenhum]. Aprofundar o olhar so-bre este tipo de espaço na cidade foi o primeiro passo tomado neste trabalho.

Com o intuito de mapear situações como estas, foi proposto um percurso para que elas pudessem ser localizadas com base na experiência cotidiana da vida na metrópole. Este percurso é composto basicamente pelas vias arteriais que ligam a cidade de Osasco ao centro da cidade de São Paulo [avenidas dos Autonomistas, Corifeu de Azevedo Marques, Vital Brasil, Rebouças e Conso-lação]. Como resultado deste mapeamento, chegou-se a quatro pontos, com as seguintes características em comum: grandes áreas planas, proximidade de grande número de equipamentos urbanos, paradas de transporte público próximas [fácil acesso para pedestres] e pouca ou nenhuma utilização [nem mesmo passagem].

nem toda arquitetura é apenas pedra, nem toda música é apenas somPaul Valéry

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Na região central da cidade de Osasco, o Viaduto Reinaldo de Oliveira con-forma um extenso espaço coberto de mais de 1000m², completamente inuti-lizado. Embora localizado entre um grande complexo comercial e a prefeitura, raramente são vistas pessoas que o cruzam. O vão de 150m é vencido por dois arcos metálicos paralelos com 28m de altura, imagem cartão postal da cidade. Dividida pelas vias em três quadrículas, esta área sob o viaduto recebeu cuida-dos de pavimentação e paisagismo após a sua implantação em 1992, consti-tuindo uma espécie de «praça», inclusive com um desenho de piso que sugere palcos – são uma intenção arquitetônica de incentivo ao uso do espaço, e se mostra insuficiente para sua apropriação.

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A Ponte Bernardo Goldfarb, que liga sobre o rio Pinheiros as avenidas Vital Bra-sil e Francisco Morato à rua Butantã foi construída em 1994. Está localizada ao lado da Ponte Eusébio Matoso, que foi construída anteriormente. Para a cons-trução da Ponte Bernardo Goldfarb, foi desapropriada uma quadra inteira com mais de 2000m² sob sua projeção. Nesta área dormem algumas pessoas sob a ponte ou em um abrigo improvisado de papelão, em geral catadores, e serve durante o dia basicamente como passagem de eventuais pedestres, perman-ecendo quase o tempo todo vazia. Pela proximidade do rio, por suas grandes árvores (algumas até mais altas que a própria ponte), o frenesi do trânsito e o skyline da Marginal, este espaço tem uma atmosfera ao mesmo tempo áspera e selvagem.

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No começo da Rua Augusta, quando esta passa sobre a Avenida Radial Leste, uma área de aproximadamente 300m² avança em balanço ao lado do passeio de pedestres. Este espaço, situado sobre um vão de 30m, que aparentemente se pretendia uma pequena praça, foi fechado com um guarda-corpo e apre-senta uma interessante localização: entre um edifício de quatro pavimentos e uma escada que faz a passagem da Rua Augusta para a avenida inferior. Assim, emoldura a vista de quem passa e olha para o lado da Radial Leste, que surge por baixo, erguendo-se até sobrepor a Avenida Nove de Julho, com edifícios altos nos dois lados.

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Estas duas praças são parte de uma extensa área livre localizada atrás da Cate-dral da Sé. Possui árvores de copa alta [que começam a partir de aproximada-mente 10m de altura], o que torna este espaço quase completamente som-breado e distinto do seu entorno. No final do séc. XIX este local ficou conhecido por possuir o maior teatro da época, o Teatro São José. Apesar da proximidade de diversos edifícios muito freqüentados [a Catedral da Sé, a Igreja de São Gon-çalo, o Fórum Civil do Brasil e o Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo] e da sua agradável atmosfera [caracterizando um local de permanência], sua área é utilizada somente para passagem, formando grandes vazios nas áreas inutilizadas.

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Esta pesquisa intuitiva por espaços de interesse na cidade se assemelhou e se inspirou no trabalho que o movimento da Internacional Situacionista desen-volveu na década de 50 e 60. Para eles, a deriva, «modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica de passagem rápida por ambiências variadas» era o exercício prático da psicogeografia, «estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente planejado ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos» [Internacional Situacionista IS nº 1 - 1958 in Jaques, 2003, p. 65]. Assim, através da experiência do caminhar na cidade, desta ação básica da deriva, era possível realizar o estudo do ambiente urbano, principalmente dos espaços públicos, através da psicogeografia, desprezando parâmetros técnicos habituais que não levam em conta aspectos sentimentais, psicológicos e intuitivos – que podem muitas vezes caracterizar muito mais um determinado espaço do que simples-mente os aspectos meramente físicos, formais, topográficos ou geográficos [Jacques, 2003, p. 24].

Paola Berenstein Jacques em Apologia da deriva analisa como há tipos seme-lhantes desta experiência ou reflexão sobre o espaço urbano que provocam ou consideram a própria experiência estética ou a apreensão afetiva desses espaços. É possível traçar uma linha de artistas e teóricos que vem desde Baudelaire, com a idéia de flâneur, no século XIX, passando pelos dadaístas e as excursões urbanas por lugares banais, que os surrealistas continuaram com a experiência física da errância no espaço urbano [base dos manifestos surre-alistas]. Depois disso, Walter Benjamin retoma o conceito de flâneur e trabalha com a ideia de flânerie, ou seja, de flanâncias urbanas, a investigação do espaço pelo flâneur. Há também uma grande influência dadaísta, por exemplo, da excursão dadaísta a lugares escolhidos precisamente por sua banalidade e falta de interesse.

No caso deste trabalho, o interesse foi pela ambiência inquietante do vazio no meio do caos. Estes espaços, muitas vezes imperceptíveis, invisíveis à experiên-cia na metrópole nestas áreas onde o maior fluxo é o de automóveis, camuflam-se na paisagem urbana e trazem certa melancolia para quem os experiencia. Como uma versão contemporânea das imagens de De Chirico, estes espaços vazios e misteriosos têm uma certa atmosfera metafísica de ausência, solidão e silêncio, embora contornados pelos fluxos frenéticos de pessoas, automóveis e muitas vezes aeronaves que parecem acelerar o tempo ao seu redor.

Esta ambiência particular surge principalmente do sentimento de não-perten-

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cimento que estes espaços possuem. Ao contrário da idéia de espaço público – «espaço que a todos pertence», estes espaços parecem não pertencer a ninguém. Mais claramente no primeiro caso, em que há diferenças de altura no piso sugerindo uma espécie de palco, nota-se um cuidado arquitetônico a fim de favorecer sua apropriação como espaço público. Embora registre a inten-ção de estímulo à apropriação e o espaço disponha de boa pavimentação, boa cobertura e facilidade de acesso, este cuidado com o espaço residual embaixo da ponte não foi suficiente para «avivá-lo» [morando neste bairro desde que este espaço surgiu, nunca o vi sendo utilizado com algum fim que não o de pas-sagem].

Piazza d’Italia con la torre rossa, óleo sobre tela, coleção privada,1943

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Alguns arquitetos têm trabalhado nesta questão com o que já foi chamado de «costura urbana» – a partir do tratamento paisagístico e arquitetônico e de uma tentativa de reagrupá-los, estes espaços poderiam ser reativados. Como cita Manuela Magalhães em A arquitectura paisagista, «a intervenção do Arquitecto Paisagista na reabilitação dos espaços soltos e desarticulados é a de ligar os fragmentos através de uma estrutura que assegure a comunicação simbólica, para além das outras funções ecológicas, económicas e sociais» [Magalhães, 2001, p. 42]. A ideia neste trabalho sempre foi a de buscar nestes espaços seu potencial a partir deles mesmos, de observar que não é o fato de estarem fragmentados que os esvazia, e que o tratamento paisagístico, seja ele com sombreamento, pavimentação diferenciada, palco para eventos, ou alguma intervenção deste gênero possa reintegrá-los totalmente na vida da cidade. Neste sentido, é interessante rever como Guy Debord analisa estas ambiências a partir da psicogeografia durante a deriva: «a brusca mudança de ambiência numa rua, numa distância de poucos metros; a divisão patente de uma cidade em zonas de climas psíquicos definidos; a linha de maior declive – sem relação com o desnível – que devem seguir os mesmos passeios a esmo; o aspecto atraente ou repulsivo de certos lugares; tudo isso parece deixado de lado. Pelo menos, nunca é percebido como dependente de causas que po-dem ser esclarecidas por uma análise mais profunda, e das quais se pode tirar partido» [Debord in Jacques, 2003, p. 41].

Para o antropólogo Marc Augé, o lugar surge da construção concreta e sim-bólica do espaço, e identifica o lugar como princípio de sentido para os que o habitam e como princípio de inteligibilidade para quem o observa. Os lu-gares teriam pelo menos três caracteristicas comuns – «eles se pretendem [pretendem-nos] identitários, relacionais e históricos» [Auge, 1994, p. 52]. A ideia de não-lugar, diametralmente oposta à de lugar, é representada pelos espaços públicos de rápida circulação e não-pertencimento, como aeroportos, rodoviárias, estradas, hotéis, com os quais mantém-se uma relação contratual, simbolizada por exemplo num bilhete de viagem ou num documento como o passaporte; o não-lugar é então onde «nem a identidade, nem a relação, nem a história fazem realmente sentido» [Auge, 1994, p. 81]. A análise da evolução urbana do entorno do espaço sob a Ponte Bernardo Goldfarb representa de forma categórica as ideias de Augé, das relações de lugar às relações de não-lugar que ali se estabeleceram.

Esta região sofreu, ao longo das últimas décadas, uma profunda modificação. Como importante elemento de transposição do rio, a Ponte Eusébio Matoso,

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que teve sua construção iniciada em 1936, ligava o centro de São Paulo, através da rua da Consolação e da estrada que se tornou a rua dos Pinheiros à zona oeste, no sentido Butantã e Caxingui, conformando logo após o cruzamento do rio uma importante área de distribuição para outras vias, como a Rodovia Raposo Tavares, a Av. Prof. Francisco Morato, a Av. Lineu de Paula Machado na direção sul, a Av. Vital Brasil e a Av. Valdemar Ferreira na direção da Cidade Uni-versitária. O cruzamento no fim da ponte com todas estas vias era marcado por uma árvore que o caracterizava, a Paineira. Era comum então tomar a Paineira como ponto referencial no caminho de quase todas as regiões da zona oeste na direção centro e como parada de muitos ônibus, inclusive dos que vinham do interior do Estado pela Rodovia Raposo Tavares.

Existia uma forte relação, inclusive emocional, com esta árvore e com o lugar

fonte VivaSP

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que ela representava. Era um importante ponto de encontro, primeiro sím-bolo da Cidade de São Paulo para aqueles que vinham do interior, lugar onde motoristas de ônibus faziam sua pausa na sombra. «[...] a amenidade da fresca sombra da árvore abrandava os irrequietos funcionários – Auxiliares e Guardas Civis – a primavera se sucedia ao inverno, ao verão o outono. E as folhas secas caiam, as flores adornavam a guarita e a paina descia em flocos que realça-vam o ambiente. [...] na roda dos atentos servidores, seus olhares se voltavam para o alto a admirar a frondosa paineira que durante o barulho e movimento constante dos outros dias da semana era esquecida. A natureza, no seu silên-cio, amparava o homem e o guiava para seu próprio interior, para uma divina reflexão» comenta Walter Rossi, para o site VivaSP. Com a ampliação da rede viária, foi cogitada a retirada da árvore, criando muita polêmica. As escolas da região propunham em suas atividades trabalhos com poemas e canções sobre a Paineira, que foi até homenageada com uma placa de bronze [!]. Sua reti-rada, em 1974, tornou-se necessária quando um caminhão a abalroou e ao final a árvore teve que ser sacrificada.

Embora exista hoje em dia um grande número de paradas de ônibus, uma vida comercial ativa que caracteriza o começo da avenida Vital Brasil, uma grande loja de móveis, um grande edifício de escritórios e bares, esta área não pos-sui nenhum espaço público que se caracterize como lugar, sobrando apenas muitos espaços residuais, como canteiros no meio das avenidas, alargamentos de calçada ou os espaços sob as pontes, em um dos quais se pretendeu apro-fundar a pesquisa.

Um dado muito interessante sobre este espaço, sob e ao lado da ponte, foi o fato de ele ser «invisível». É muito difícil explicar para alguém como chegar ali, mesmo com pontos de referência relativamente conhecidos – as pessoas simplesmente não o conhecem, não o localizam em sua imagem mental da cidade, mesmo as que todos os dias passam ao lado dele, o que se deve ao fato dos fluxos que o contornam se darem somente pelas vias de trânsito rápido. Esta imagem também tem sua legibilidade comprometida pelo fato de que, devido à complexidade deste cruzamento com a divisão das diferentes direções e das faixas somente para ônibus, é extremamente difícil para alguém compreender o seu funcionamento em uma primeira experiência.

Kevin Lynch, em A imagem da cidade, quando analisa este processo da apreen-são da imagem da cidade por seus usuários, nota que seus significados indivi-duais são muito variados, mas que ocorre muita semelhança em membros de

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um mesmo grupo. Neste caso, poderíamos prever, entre outras especificações, que estariam num mesmo grupo os usuários do transporte público que vão por uma ou por outra ponte; os motoristas e os passageiros de automóveis que percorrem determinado caminho, os que vão de janelas abertas que sentem o cheiro do rio e os que não o sentem; os motoqueiros; os que já caminharam por ali alguma vez; os que realizam o percurso há muito ou pouco tempo ou pela primeira vez; os que o realizam durante a noite, quando as luzes dos edifícios impressionam mais do que durante o dia, quando é possível perceber ilhas de lixo no rio. Mas de modo geral, para os que já passaram um mínimo de vezes pelas pontes em ônibus ou automóvel, a imagem construída é estruturada basicamente pelo rio, pelas vias de trânsito [marginais e pontes] e pelo skyline de altos edifícios [os comerciais, em geral, high tech, e os residenciais, neoclás-sicos]. Lynch também chama a atenção para o fato de que «apenas recente-mente se tornou possível a consciente remodelação em larga escala de meios ambientes físicos e, por isso, o problema da imaginabilidade ambiental é novo. Do ponto de vista técnico, é possível criar paisagens novas num curto espaço de tempo» [Lynch, 1988, p. 23].

É interessante notar como a percepção imagética desta região da cidade, construída a partir, além da paisagem construída, principalmente pela relação com o rio, se alterou completamente. Este rio já foi sinuoso e limpo, com sua vegetação natural, onde se podia ver banhistas do clube Germânia [hoje clube Pinheiros] e embarcações. Hoje sua mata ciliar postiça neutraliza de maneira artificial um pouco sua imagem degradada e, apesar do lixo visível mesmo para quem passa rápido em automóvel pelas pontes, continua sendo um cartão postal da cidade. Certamente entre a maioria dos habitantes de São Paulo, é uma paisagem bonita a imagem do rio e a paisagem de cidade global expressa pela fluidez das vias, altura e número de edifícios. O espaço em questão, sob a ponte, embora situado a menos de 100m de distância do rio, não mantém com o rio relação nenhuma, já que por ali quase ninguém caminha e que entre eles existe pelo menos 8 faixas de trânsito.

Esta análise fez com que a proposta envolvesse a possibilidade das pessoas estarem no lugar – o potencial estaria aí, nas relações que poderia suscitar a partir desta ação, e na reflexão de como esta ação poderia contribuir na construção da imagem da cidade, de quem participasse construindo a situação e de quem por ali passasse. Vera Pallamin, na revista Caramelo 7, ao escrever sobre Arte Pública, comenta como esta se situa na interface entre a arte e o ur-banismo, suscitando a reflexão sobre como ambos se interpenetram: é interes-

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Era uma vez uma cidade,Onde todos corriam.Pra lá, e pra cá,Não se sabia ao certo por quê.Pelas ruas acidentadas, pelas nuvens pesadas,As pessoas caminhavam;E respiravam profundamente o ar, feito dePedra, luz, petróleo, café.As pessoas, naquela cidade,Amavam sem saber do amor;Transavam sem saber com quem;Dormiam sem esquecer os ponteiros;E sonhavam dias inteiros,Com pedra, luz, petróleo, café.Nessa cidade havia casais de namorados,Que se amavam sem perceber,Depois se casavam, sem perceber,Porque era assim que se fazia,Não se sabia ao certo por quê.E vestiam seus véus e grinaldas de asfalto,E jogavam seus buquês.Esses casais depois tinham alguns filhos, sem perceber.Essas crianças viam a cidade e o seu reflexoNo rio de merda que ali corria.E achavam bonito o reflexoE o rio de merda.Era uma vez uma cidade,Onde se vivia – por vezes ali, por vezes não:Onde se olhava para o céu em buscaDe terrenos baldios,Pois que estavam, os do chão,Sem exceção ocupados, por gente, por coisas,Por pedra, luz, petróleo, café.E todos corriam, todo o tempo,Sem saber ao certo por quê,Pois era assim que se fazia.

sante notar «como o urbano penetra na obra, sob a forma de arte, e como esta nele se insere, qualificando-o» [Pallamin, 1993, p. 157].

A experiência do estar no espaço, a apropriação efêmera do espaço público, além da relação que estabelece com a cidade como cenário [e a possibilidade, assim, de questionar e refletir sobre a imagem que os habitantes têm dela] é muito presente no teatro de rua.

Com muito potencial e um sem-número de vertentes possíveis, o teatro de rua viabiliza uma grande liberdade de criação e de relação com as pessoas que estão no espaço público da cidade. Não escolhe seu público nem tem controle de todos os elementos que compõe as cenas – é capaz de criar uma situação em que os limites do real e do fantástico são diluídos. Vai, neste sentido, ao encontro das idéias situacionistas anti-espetáculo [em que a superação do es-petáculo, elemento básico da não-participação e alienação na sociedade con-temporânea, traz para a arte a tarefa social e política da participação coletiva, transformação e construção da vida cotidiana].

Assim, surgiu uma grande vontade de trabalhar as idéias desenvolvidas até en-tão com esta pesquisa juntamente com o teatro. A cidade de São Paulo atual-mente, em sua categoria de uma das maiores metrópoles do mundo, com sua complexidade de problemas urbanos, sua feiúra e beleza, suas «estranhezas», tem sido um importante campo de investigação para o teatro de rua, o que se reflete no reconhecimento da qualidade do trabalho de grupos sediados nela. A cia Tablado de Arruar, em especial, trabalha com o espaço da metrópole como campo de investigação, trazendo para a dramaturgia o material reco-lhido neste mesmo espaço, as questões que surgem a partir dele.

Foi interessante saber também que no processo de trabalho do Tablado de Arruar já tinham participado arquitetos, em projetos, estudos e seminários, inclusive uma peça do grupo, A rua é um rio, que trata as relações de poder que existem na disputa pelo solo paulistano, foi também baseada no livro da arquiteta Mariana Fix, Parceiros da exclusão. Pela experiência do grupo em se apropriar do espaço urbano para nele trabalhar as questões que dele sur-gem, me interessou muito conhecê-los e propor um trabalho conjunto. Por sorte, o grupo desenvolvia então o projeto Atentados, para o qual produzia a peça Helena pede perdão e é esbofeteada e uma oficina de teatro de rua. Esta oficina tinha como proposta trabalhar com os atores as técnicas que o grupo desenvolve para o teatro de rua, e aconteceu em março e abril de 2010. Eu

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criado desde 2001, o Tablado de Arruar tem desde o início a cidade de São Paulo como tema central de seus trabalhos. A metrópole e suas contradições, o sujeito que a habita, nós mesmos, a lógica econômica que a rege, as relações que nela se estabelecem. Em geral, é disso que se trata, e cada uma das peças, seminários e publicações do grupo tentou, à sua maneira, tratar de um dos lados desse assunto interminável. [www.tabladodearruar.com.br]

os procurei e, por sorte, tive a oportunidade de criar com eles o trabalho que concluiria a oficina, que se tornou então a aglutinação das ideias que eu havia desenvolvido para o meu trabalho. Foi muito enriquecedor o trabalho conjun-to, pois pude concretizar a vontade que havia desde o início, de ação proposi-tiva a partir da pesquisa feita ao longo do primeiro semestre de 2009, motivo pelo qual eu havia pedido a um professor de projeto da faculdade, o arquiteto Marcos Acayaba, que me orientasse.

A idéia era então utilizar o material que o grupo desenvolvia na oficina, que acontecia em espaços públicos no centro da cidade, para uma intervenção que aconteceria no espaço analisado neste trabalho, sob a ponte Bernardo Goldfarb.

Acompanhei alguns dias da oficina, e fiquei surpreso com a qualidade do que desenvolviam. Os atores, extremamente bem afinados com tudo que acontecia ao redor e com uma grande capacidade de tirar proveito de diferentes situações e espaços, inspiravam ideias do que poderia ser trabalhado na intervenção cole-tiva já nas cenas de exercício.

Alguns elementos em especial nas oficinas foram interessantes de se observar – a maneira como se apropriavam de situações dadas, as quais por si já são um material para reflexão das relações na metrópole, para com eles construírem as cenas como, por exemplo, quando faziam um baile na Rua Barão de Itape-tininga, ao som de um camelô de CD’s piratas. O camelô, quase que como um DJ dentro da cena, fazia parte também do teatro, as pessoas que por ali pas-savam tinham a liberdade de entrar para o teatro ou de assisti-lo, criando na rua uma nova espacialidade e uma nova situação, onde antes as pessoas antes simplesmente andavam rapidamente. Era interessante notar o uso da música do camelô como uma forma de ready-made revisitado [pois sendo um pouco diferente da concepção duchampiana de completa subversão de valor do que já é dado, fazia uma reinterpretação em que o produto novo final parece fazer um sentido especial]: como poderia não ser instigante encontrar pelo seu caminho um grupo de pessoas felizes dançando ao som desta música ocasional em um lugar qualquer da cidade? Sem atrapalhar o caminho, sem ferir os ouvidos... Pudesse a cidade vivenciar este tipo de situação nos dias comuns, dentro do cotidiano das pessoas, não apenas no dia da Virada Cultural.

O desafio foi, a partir de então, transpor este trabalho já realizado nos lugares do centro, onde há pessoas, para o não-lugar, vazio, em questão.

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[para os situacionistas] o território não é um fim em si, não é suficiente para si mesmo, sob pena, justamente, de provocar o fechamento. E, por outro lado, o território só vale se se põe em relação, se remete a uma outra coisa ou a outros lugares, e aos valores ligados a esses lugares. [...] neste sentido é que o espaço pode ser uma base de exploração. Aquilo que em compensação o torna flutuante, nebuloso, quase imaterial. É isto que, [...] os situacionistas nos anos 60 tinham percebi-do muito bem praticando o que chamavam a deriva urbana ou a psicogeografia. A cidade era, desde então, um terreno de aventura, em que o lúdico e o onírico tinham lugar especial. Aventura que era um modo de viver as experiências de toda a ordem, de suscitar encontros, de fazer da existência uma espécie de obra de arte. A deriva numa cidade, vivida em grupo ou por alguém sozinho permitia, já se vê, explorar um espaço determinado, espaço esse confrontado com possíveis e múltiplas estranhezas.[Maffesoli, 2001, p. 88]

O grupo raumlabor, em Berlin, tem realizado trabalhos em que pesquisam formas de atuação neste tipo de espaço. «Somos fascinados por espaços es-peciais na cidade, espaços que têm um potencial especial, que são atmosferi-camente fortes, que irritam [...]. Utilizamos estes espaços como veículos com os quais levamos as pessoas do seu cotidiano para espaços onde elas em geral nunca iriam. [...] Desenvolvemos idéias que possibilitam às pessoas usarem o espaço público. Confrontação direta torna-se parte de processos de plane-jamento urbano, abrindo espaço nas discussões para as pessoas envolvidas» [raumlabor, 2008, pg 11]. Alguns dos projetos do grupo, categorizados como «objetos relacionais», propõem a apropriação temporária destes espaços com uma arquitetura efêmera e multifuncional, cuja presença atrai a atenção por dar ao espaço novas identidades, encorajando sua apropriação.

No caso do lugar onde interviríamos, parecia importante a incorporação de uma materialidade extra, que pudesse tornar o espaço outro não só pela pre-sença humana, mas também por sua imagem. Como é um espaço «invisível», como dito anteriormente, torná-lo visível teria um significado importante.

Além de alterar, assim, a imagem do lugar e sua relação com quem o vê, a in-tervenção alteraria a percepção de quem estivesse no espaço. A experiência de chegar até ele, por si só, já gera certo encantamento e estranhamento. O fato de ser vazio e os elementos que o estruturam, como comentado no começo do trabalho – as árvores muito altas, a imagem das pontes e os automóveis em alta velocidade – criam uma atmosfera que gera um certo estranhamento. Yves Klein, quando comenta sua tela A arquitetura do ar, diz que «o homem livre está no ponto em que pode levitar. Os obstáculos que em outros tempos atra-vancaram a arquitetura tradicional foram eliminados». Trata-se da busca pela beleza que, no momento do desaparecimento, testemunha a impermanência dos seres e dos objetos, como uma árvore florida na primavera. E se a filosofia e a arte podem construir esta relação com o tempo no paradoxo do permanen-te fluxo da mudança, em que condições a «arquitetura do ar» deixa a imateri-alidade deste conceito para se fortalecer e constituir espaços? [L’architecture d’oujourd’hui n. 367 p.42, 2006].

Na última Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2008, que tinha como tema out there: architecture beyond building, foram realizados trabalhos como o do grupo International Festival que, interessado «em expandir o campo do que a arquitetura pode ser», instalou um difusor de perfume com cheiro doce de mo-rango. «Perfume é tudo o que a arquitetura não tem sido: efêmero, invisível,

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instantâneo, ligeiro e a princípio foge ao controle». Outros grupos apresen-taram leituras urbanas inspiradas na dérive situacionista, que argumentam ser ato de construir, em arquitetura, um dos menos importantes: «if you want to change society don’t build anything» [capa da revista Icon n.65, que reportou esta bienal]. A investigação do tema atmosfera na arquitetura vem sendo cada vez maior, como também reflete o prêmio Pritzker atribuído a Peter Zumthor no ano passado [2009], arquiteto que chama a atenção pelo cuidado com que trabalha materiais e espaços – diz freqüentemente que seu objeto de trabalho na arquitetura são as sensações e atmosferas.

Buscando uma proposta a partir da idéia para Atentados do Tablado de Arruar, em que viriam a público «falar contra São Paulo com as armas que São Paulo lhes deu», surgiu a vontade de utilizar algum material residual, pois precisava também ser uma proposta de baixíssimo custo e fácil aquisição. Dentro desta ideia, um material que sempre me chamou a atenção pela sua armazenagem a céu aberto, muitas vezes em espaço público, e pela sua enorme quantidade, é o palete de madeira, também conhecido como pallet. E nesta região da cidade, a oeste, pela proximidade do CEAGESP, existe em grande quantidade.

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Foi interessante pensar na relação semântica que este tipo de material teria com o tipo de espaço em que se propunha o trabalho. Rem Koolhaas, em El espacio basura [Arquitectura Viva 74, 2000, p. 23], analisando as seqüelas da modernização, mostra como o espaço residual é um elemento chave na compreensão do processo de construção da cidade contemporânea [a Cidade Genérica]. «Se se chama de resíduo espacial os dejetos que sujam o universo, o ‘espaço residual’ é o dejeto que a humanidade deixa sobre o planeta. O produ-to da modernização não é a arquitetura moderna, mas sim o espaço residual». Assim, o lixo espacial e o espaço-lixo seriam a matéria-prima do trabalho. Outra imagem que faz um paralelo entre as duas idéias (do espaço e do mate-rial) é a da sua repetição pela Cidade Genérica, «o espaço residual sempre se modifica, mas nunca evolui. O programa do espaço residual é o crescendo, como no Bolero de Ravel. Tomando histórias de um lado e outro, seu conteúdo é repetitivo e estável; multiplica-se como em uma clonagem: mais do mesmo» [Arquitectura Viva 74, 2000, p. 25]. O resíduo espacial também funciona assim: é possível ver pilhas e pilhas de paletes espalhadas pela cidade, que assumem uma dinâmica semelhante ao espaço residual [normalmente, inclusive os dois juntos].

Como eu não conhecia como funcionava o comércio de paletes de madeira na cidade, comecei a pesquisa sobre o material no CEASA. Antes mesmo, nos arredores, é possível ver as pilhas, que pessoas colecionam para a revenda, num comércio informal; como catadores de papel, estas pessoas os recolhem, os reparam e os revendem. Estes paletes, porém, são de qualidade baixa, pois ficam por muito tempo em espaços abertos sem proteção contra as intempéries [chuva e sol]. Dentro do CEASA, pude ver que também há o comércio informal de paletes, que acontece de forma discreta, pois os comerciantes normalmente são também carregadores, que praticam a atividade complementarmente, no horário de trabalho. Principalmente nos boxes que recebem importações, é pos-sível ver a pilha de paletes que se acumula no dia em que a mercadoria chega, basicamente do Chile e Argentina, com uvas, maçãs e outros vegetais. O preço destes paletes ali é de menos da metade de um palete novo, sendo que estão ainda praticamente novos, embora já tenham feito uma viagem. Os vende-dores, muito simpáticos na venda dos 180 paletes utilizados para a intervenção, sugeriram um caminhão para o transporte que estaria disponível no horário da compra, e ainda se ofereceram para comprá-los de volta por 60% do seu valor futuramente, pois também os revendem para uma usina em Embu-Guaçu, onde são reparados e revendidos ou desmontados para servir de lenha. Com isso, estava já garantida a destinação dos paletes que não fossem destruídos.

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Pensando hoje em dia em qual é o tempo da descartabilidade, da instantanei-dade e da efemeridade, em todos os aspectos da vida, é interessante notar como o tempo de giro, troca e consumo tornam-se cada vez mais rápidos. Não só na moda, na telecomunicação e no transporte, mas também nos valores morais, relacionamentos pessoais, a idéia de que tudo é descartável por a partir de um tempo não ser mais adequado, embora ainda «sirva». Foi importante então pensar neste trabalho a quarta dimensão da arquitetura – a temporal.

Sobre a efemeridade, um inseto efêmero é o inseto que dura um só dia, ou seja, que tem a vida muito curta. Em seu trabalho teórico, o arquiteto Buck-minster Fuller, estabelece um conceito interessante para o princípio da efeme-rização em arquitetura, em que considera também a tecnologia: «significa mais trabalho com menos energia, mais competência com menos mão de obra de obra, mais produção total com menos especialização. A efemerização funciona em todos os níveis do sistema industrial – desde o design de instrumentos até o que Fuller chama de total energy-wealth system» [Kuhns, 1971, p. 234].

Assim, a efemerização neste trabalho foi pensada não somente no sentido de ser temporária, mas também em como aconteceria o «rearranjo material» que seria proposto, no seu processo como um todo. Se hoje em dia o termo susten-tável tem a ver com um ar de atualidade e responsabilidade social que muitas vezes se busca já que pode valorizar um empreendimento, a preocupação neste trabalho se aproxima mais do que Vitrúvio, já há mais de dois mil anos, tratava em seus escritos de arquitetura sobre o critério no uso de materiais e o reaproveitamento que o arquiteto também deveria prever – algo que não parece ter motivo para ter se dissociado da ação de pensar e construir.

O passo seguinte então foi descobrir a melhor maneira de manejar, transpor-tar, montar e desmontar o que fosse construído com os paletes. As 180 peças estavam empilhadas no Canteiro Experimental da FAUUSP e permaneceram ali durante um mês antes da intervenção. Assim, era possível estudá-las e experimentar possíveis métodos de agrupá-las, no espaço do próprio canteiro e no laboratório de modelos e ensaios [LAME] com facilidade.

O processo de projeto pretendia compreender, além dos fatores básicos do processo [transporte e montagem], também a idéia central do trabalho – a do trabalho coletivo, da arquitetura não espetacular, da arquitetura que, em seu processo, tem a capacidade de gerar co-autores, tornando-se anônima. Mui-

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Nesse momento é necessário que eu digaPorque estou aqui.

Eu vim falar contra São Paulo.Contra os paulistanos.Contra o orgulho paulistano.Contra a ordem paulistana.Contra o cosmopolitismo paulistano.Contra o primeiro-mundismo paulistano.É preciso que isso fique muito claro.É contra vocês todosQue eu falo.E contra mim mesmo.

São Paulo, a locomotiva financeira do Brasil,Com seus cidadãos trabalhadores,Com suas leis respeitadas,Com sua polícia eficiente,Com seu estado administrado,Com suas empresas internacionais,Com seus carros brilhantes,Com suas favelas imensas,Com seus rappers irados,Com seus grupos de teatro,Com seus motoboys.E com seus sindicalistas.

E com isso não venho aquiDefender o Brasil profundo, os rincões,A Bahia, o sertão,E nem o Rio de JaneiroOu outros primitivismos.Não.Eu quero apenas falar contra São Paulo,Com as armas que São Paulo me deu.Eu quero gritar contra isso tudo,Sem colocar nada no lugar.Pago com o dinheiro da prefeitura de São Paulo,Eu venho a público criticar São Paulo,Destrutiva e contundentemente.

E TODAS ESTAS PALAVRAS, COM AS QUAIS VIOLENTOA CIDADE DE SÃO PAULO EU AS COLHI NESSAS MESMAS RUAS,NESSES MESMOS VIADUTOS.ASSIM, POR FIM,AGRADEÇO À CIDADE DE SÃO PAULO,PELO ÓDIO QUE ME ENSINOU A TERCONTRA ELA MESMA.

tas referências teóricas e projetuais foram importantes para que se pudesse pensar no projeto de arquitetura não como um processo que se encerra em si. O trabalho arquiteto espanhol Santiago Cirugeda, em recetas urbanas, por exemplo, ao criar «estratégias subversivas de ocupação urbana» ou «arquitetu-ras colaborativas», disponibiliza no seu site o registro e um manual para cada projeto realizado, tornando as recetas urbanas de uso público, uma «arquit-etura de código aberto», podendo ser repetidas, modificadas ou não por quem se animar a fazê-las. Caio Vassão, em sua tese de doutorado Arquitetura livre [Vassão, 2008], propõe uma abordagem de projeto que pode ser consi-derada uma generalização da abordagem do Software Livre para outras áreas de cria-ção como o design e a arquitetura, o Metadesign [numa reelaboração da idéia de metadesign descendente da abordagem formalista da Escola de Ulm].

Considerando o transporte, que deveria poder ser realizado por pessoas e por automóvel para transporte [caminhão, caminhonete ou pick-up], e o arma-zenamento em pilhas dos paletes, pensei em agrupá-los com um sistema de dobradiças, intercalados de um lado e de outro na pilha, de modo que as dobradiças pudessem ser instaladas nas peças ainda empilhadas, e quando abertas, essas «sanfonas» pudessem se abrir em planos verticais como peças flexíveis, que poderiam também ter rodas. As dobradiças metálicas, além de caras, não convinham à ideia de utilização de materiais residuais. Em uma conversa no LAME, foi sugerido o uso de borracha de câmeras de pneus reuti-lizadas que, em tiras reforçadas em camadas, poderiam ser somente pregadas, permitindo a articulação flexível e o agrupamento das peças ainda em pilhas. Descobri que a obtenção deste material é muito simples, pois é um resíduo que as borracharias eliminam em grande quantidade. Porém, durante os testes, este sistema não pareceu adequado porque, como o tempo que necessitava para que fossem pregadas era grande e as peças prontas tinham um transporte muito difícil [cada «sanfona» teria 8 paletes que pesam de 15 a 20kg cada], não seria possível confeccioná-las nem antes do transporte nem no local da inter-venção.

Para que pudéssemos experimentar a interação dos atores com os paletes e que os atores pudessem experimentar e conhecer o espaço proposto, durante uma tarde realizamos um ensaio, que foi essencial para a continuidade do pro-cesso projetual. Notamos como no horário logo antes do anoitecer a luz do sol no noroeste incidia no ambiente [pois no outro lado da rua o gabarito é baixo] com uma luz dourada muito bonita, agradável também porque a tempera-tura já esfriava. Com 10% das peças [18 delas] e uma maquete em escala para

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que pudéssemos testar a espacialidade que as 180 peças teriam, chegamos a diretrizes do que deveria ser desenvolvido para a intervenção: uma estrutura na qual as pessoas que fossem permanecer no espaço pudessem se acomo-dar como quisessem, e um cenário de peças soltas, com as quais os atores interagiriam. A ideia das peças pré-montadas que gerariam planos verticais foi descartada, ficou claro para os atores neste dia como o que interessava ali, es-pecialmente, era como estar no lugar estabelecia relações visuais interessantes com todos os lados.

Em uma conversa com meu orientador sobre o resultado da experimentação desenvolvida com os atores e no canteiro da faculdade, chegamos à conclusão de que os paletes não deveriam sofrer intervenções: haveria mais eficiência no transporte, mais facilidade na montagem e mais liberdade de criação das estruturas que por sua vez também poderiam ser mais livres. Busquei, então, encontrar uma forma de empilhamento em que se pudesse obter o maior efeito como dispositivos para sentar/estar, de forma intercalada, porque o empilhamento simples utilizaria muito mais peças para um efeito semelhante. Foi possível criar, assim, um layer de paletes sobre a área que, em alguns mo-mentos empilhados, criavam uma topografia que seria ideal para se sentar, e em alguns momentos, diluída e mais baixa, seria suporte livre para os atores interagirem. Assim, evitava-se a formação de algo que aludisse à ideia conven-cional de «platéia»: os lugares de sentar espalhavam-se pelo espaço criando um ambiente com visão multidirecional, e o layer de peças estabelecia uma conexão visual e material entre atores e público. Quando isto estivesse mon-tado, não seria possível perceber que ali haveria algo teatral, público e atores, mas sim uma nova espacialidade inclusive para a vida do espaço no cotidiano – ficaria com mais identidade de um lugar para se estar do que normalmente [já que ali não há bancos, por exemplo].

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Este processo de montagem rápida foi muito importante para que se man-tivesse a idéia central da peça de teatro, chamada Material para atentados – bolado em sigilo, o material para a intervenção chegaria inesperadamente de caminhão e ela aconteceria.

Ainda dentro da ideia de que este processo de montagem não se tornasse um fim em si, foi pensado um manual de apropriação do espaço com paletes, em conjunto com outros amigos que desenvolvem outros trabalhos dentro da ideia de ações para apropriação do espaço público, que também fizeram manuais para as suas intervenções. Estes manuais, com desenhos em seqüên-cia do processo de montagem em formato A5 fotocopiado e um link para onde é possível ver o registro fotográfico destas intervenções, seriam distribuídos nos locais onde aconteceram, para quem tivesse o interesse de utilizar a ideia, modificando-a e, principalmente, encorajando as pessoas para que realizem este tipo de ação, mostrando que elas são possíveis. Adesivos com estes manu-ais foram postos nestes locais, com finalidade também de registro na memória do espaço do que e de como aconteceu um dia ali, ou em locais onde podem ser provocações para idéias semelhantes, de ação e apropriação.

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A intervenção, que aconteceu no dia 22 de maio de 2010, não foi um fim em si, mas o material para uma série de reflexões, inquietações, provocações, cria-ções e transformações que a arquitetura, como arte, é capaz de incitar.

A situação foi para todos surpreendente. Desde o envolvimento com os vizinhos – no caso do som, por exemplo, que pode acontecer graças aos que trabalham em um edifício comercial, que ofereceram sua energia elétrica e vieram no sábado para ligá-lo e acabaram assistindo à peça; os amigos que aju-daram no transporte e na montagem com os paletes que, se parecia impossível quando começamos em duas pessoas, acabou de repente quando trabalháva-mos em muitos; o público convidado que se misturava ao público espontâneo, que resolvia parar um tempo para assistir ou apenas passava e acabava partici-pando do teatro; até os atores espontâneos, em especial o catador que entrou em cena com sua carroça e construiu um dos momentos mais inesperados e uma das ações cênicas mais ousadas, no ápice do roteiro, que era realizado com uma fogueira na qual jogávamos tudo o que quiséssemos queimar, en-trando nela.

O trabalho com o teatro demonstrou como dentro dos diversos âmbitos de criação artística existe uma afinidade no interesse pelas questões que a ci-dade nos impõe e que estes esforços, juntos, se completam. A atmosfera da metrópole contemporânea, que parece fazer com que as pessoas, no caminho entre seus ambientes protegidos para habitar e trabalhar, tapem todo o tempo seus ouvidos com seus fones de ouvido, se fechem em seus automóveis com ar condicionado para não sentir seu cheiro, leiam seus livros dentro do ônibus para que a paisagem se passe cada vez mais desapercebida, é o campo de experimentação desta ação criativa que, ao enfrentá-la, grifa na cidade como uma palavra num texto confuso, mostrando o que é capaz de mudar.

Décio Pignatari, quando analisa o embate entre universo verbal [da lógica, da hierarquia] o universo não-verbal [da analógica], reconhece que os artistas desvendaram a natureza de signo e de código de suas artes, abrindo o cami-nho para o múltiplo relacionamento entre elas, mostrando que há um «rigor científico no próprio processo do ato criativo – rigor que inclui, e não exclui a analógica, como podem pensar os falsos pregadores de posturas científicas» [Pignatari, 2004, p. 53]. Assim, por exemplo, a litografia no século XVIII, a fo-tolitografia, a fotografia influenciaram e foram influenciadas mutuamente pe-las artes visuais, que a partir de então ampliaram imensamente seu campo de experimentação de cor e luz [Seurat, o cientista da cor], e daí seguindo para os

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notáveis avanços e revoluções do cinema, da televisão. Acredita-se que, com a arquitetura, o teatro de rua e outras ações que envolvam o pensar criativo e a participação coletiva é possível estabelecer parâmetros de experimentação no espaço público urbano suscitando estados de intervenção em que se possa in-verter esta imagem – a de que a cidade, como uma engrenagem desenfreada, se constrói e funciona por si só, na qual vivemos como «meros figurantes».

Os paletes de madeira, acomodados como previsto, já eram um sinal da apro-priação do local, mas a mudança sensorial a respeito do lugar se deu quando as pessoas começaram a chegar, a conversar, a subir neles, a trocá-los de posição como lhes convinha, e então a peça, os paletes, tudo toma vida. Não há nada melhor do que, ao final da peça, as pessoas conversando... sensibilizadas pela situação que elas próprias construíram.

o que em mim sente está pensandoFernando Pessoa

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E era naquela cidade que viviam algumas pessoas,Das quais queremos falar.Elas viviam ali naquela cidade, eAndavam pelas ruas, pensando no futuro.Em como ganhar dinheiro, Pensando nos filhos que teriam.Quando iriam se casar, com quem.Pensavam em coisas banais, diariamente,Coisas que pareciam ser da maior importância.Essas pessoas, em algum momento,Começaram a perceber que tudo isso em que pensavam,Todos os planos que faziam para si mesmosE para os outros, tudo issoEra parte de uma grande história, mais ampla que eles, escrita por alguém,Em que eram meros figurantes.Nesse momento, essa história da vida daquelas pessoasDe repente lhes pareceu falsa.Ela já não lhes dizia respeito,Já não significava nada para eles.E no entanto eles continuaramVivendo a sua vida, dentro daquela história,Com começo, meio e fim, sem perceber,Não se sabe ao certo por quê,Mesmo sabendoQue aqueles planos, que aqueles sonhos,Que aquelas opiniõesNão significavam absolutamente nada para eles.Continuaram vivendo aquela vida,Mesmo sabendo ser uma vida fake –Pois não tinham outra opção à frente,Nem capacidade para imaginarAlgo de realmente novo.

Aquelas pessoas estavam se debatendoContra as palavras de suas bocas de suas cabeças,Pois aquelas palavras já não lhes pertenciam.Queriam destruir uma a uma,Na esperança de que outras pudessem surgir,Sem esforço, espontaneamente, ao desfazer das primeiras.

É claro que isso era bastante ingênuo da parte deles.

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Vassão, C. A. Arquitetura livre: complexidade, metadesign e ciência nômade. Tese de doutorado. São Paulo, FAUUSP, 2008.

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créditos material para atentados

atores Oficina Atentados realização cia Tablado de Arruarcoordenação Alexandra Tavares e Vitor Vieiratexto Alexandre Dal Farrafotografia Ana Beatriz Nestlehner, Ana Luiza de Paula, Ana Ramacciotti, Laura Sobral, Paulo Martinsvídeo Laura Sobral, Paulo Martinsilustração manual Bruno Nogueira

material para atentados surgiu como experimentação conjunta, a partir da primeira parte deste trabalho final de graduação realizada no primeiro semestre de 2009 e da oficina de teatro de rua atentados promovida pela cia Tablado de Arruar em março e abril de 2010 em São Paulo.

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Este trabalho não seria possível sem a ajuda e o incentivo de todas as pessoas que participaram dele. Por isso, agradeço infinitamente a todos meus amigos da FAU pelas conversas carinhosas de incentivo, aos meus amigos Bewridj, Henry, Paulinha, Betom, Greg, Aninha, Birá, Tchutchu, Bruno, Diabreu, Se-ninha, Rê, Bistrô, Dou, Ana B, Stucchi, Edu, Kiko, Lud e Naná, pela energia com a qual o trabalho foi construído, especialmente à Laura, pela companhia tão atenciosa, em todos os momentos; aos meus pais, Liuba e Nelson, pelo cui-dado e apoio psicológico fundamental e ao meu irmão Nelson, pela disponibili-dade em me ajudar a cuidar bem dos paletes; à cia Tablado de Arruar, por me inspirar e pela disponibilidade em pensar coletivamente o espaço da cidade, especialmente à Alexandra, Vitor e aos atores da oficina Atentados, cujos talentos sempre me surpreenderam; aos arquitetos e funcionários do LAME, pela disponibilidade e boas ideias; aos arquitetos professores Caio Vassão, Guilherme Wisnik e Jorge Bassani, pela disponibilidade e pelas conversas ins-piradoras, principalmente ao Marcos Acayaba, por me ensinar arquitetura de forma especial em conversas tão agradáveis e tão ricas, pelo incentivo e pela liberdade de criação.