ARQUIVOS DA REPRESSÃO: MONITORAMENTO E PRISÃO DE ......3 CHAUÍ, Marilena. O mito da não...
Transcript of ARQUIVOS DA REPRESSÃO: MONITORAMENTO E PRISÃO DE ......3 CHAUÍ, Marilena. O mito da não...
ARQUIVOS DA REPRESSÃO: MONITORAMENTO E PRISÃO DE
TRABALHADORES RURAIS EM PERNAMBUCO (1964)
José Rodrigo de Araújo Silva
Doutorando em História (UFPE) 1
E-mail: [email protected]
Em 11 de abril de 1963, o Primeiro Caderno do jornal Diário de Pernambuco
dedica uma extensa página à instabilidade e a “crise no campo”. 2 A matéria refere-se ao
“Memorial das classes produtoras” que fora encaminhado ao então governador de
Pernambuco Miguel Arraes, a respeito das greves e das tensões entre os trabalhadores
rurais e os proprietários de engenho. Segundo os produtores, havia uma crise provocada
pelos trabalhadores que paralisavam suas atividades e ameaçavam violentamente os
proprietários e administradores dos engenhos sob orientação dos sindicatos rurais destes
municípios.
A narrativa é construída com uma clara intenção de criminalizar os trabalhadores
colocando nestes a responsabilidade pelas tensões existentes, não enfatizando, por
exemplo, as condições de vida, moradia e trabalho ao qual eram submetidos. Há nesta
construção argumentativa uma inversão do real que atribui a responsabilidade da
violência às vítimas e não àqueles que a operam.3 Esta construção da imagem do
trabalhador enquanto um “elemento perigoso” estava associado ao fato destes se
organizarem enquanto classe para reivindicação de direitos tanto trabalhistas, quanto de
integridade física e humana, tendo em vista que muitos passaram a denunciar e registrar
judicialmente os abusos do patronato e dos administradores dos engenhos durante ente
período.
Como resposta à classe patronal, o governo do Estado emitiu uma nota oficial
onde esclarece que foram tomadas providências legais a fim de resolver os conflitos
relatados pelos produtores. Na carta publicada em anexo no jornal, Miguel Arraes
1 Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco
(PPGH-UFPE) sob orientação da professora Christine Rufino Dabat. 2 Diário de Pernambuco, 11 de abril de 1963. 3 CHAUÍ, Marilena. O mito da não violência brasileira. In: CHAUÍ, Marilena; ITOKAZU, Ericka; CAUÍ-
BERLINCK, Luciana. Sobre a Violência. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
enfatiza que o governo está trabalhando para mediar tais conflitos dentro do que
estabelece a Constituição e as Leis e enfatiza que para a resolução dos conflitos deve
haver a “colaboração de todos”, ressaltando ainda que “as próprias classes
conservadoras reconhecem a péssima situação em que se encontram os trabalhadores do
campo”. 4
Junto à carta assinada pelo governador, consta na matéria os esclarecimentos
emitidos pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) sobre as ocorrências relatadas pelo
memorial das classes produtoras. Na descrição, o relatório pontua caso a caso listando
as ocorrências e nomeando as cidades, os engenhos e os seus respectivos proprietários.
Os municípios que aparecem descritos são: Aliança, Cabo de Santo Agostinho, Ipojuca,
Jaboatão, Ribeirão, També, Vitória de Santo Antão, Escada, Goiana, Ipojuca e Moreno.
Em contrapartida, o relatório apresenta os registros de reclamações e pedidos de
garantias policiais formulados pelos trabalhadores rurais. O levantamento foi realizado
pela SSP e anexado no relatório publicado pelo jornal. Em todas as ocorrências policiais
existe uma alternância das palavras “ameaça” e “violência” que aparecem associadas às
práticas dos latifundiários aos trabalhadores.
O final do relatório contém um parecer do Coronel Humberto Freire de Andrade,
Secretário de Segurança Pública, que foi encaminhado ao governador do Estado. Na
nota, o Secretário esclarece que as solicitações dos proprietários estão sendo atendidas
com máxima eficiência. As que ainda não foram atendidas, de acordo com o texto, são
as que deixaram de ser notificadas à SSP. Uma particularidade do relatório divulgado é
o alerta ao governador quanto a conduta do patronato. O secretário afirma que se faz
necessário lembrar “os inúmeros pedidos de garantias formulados à Secretaria de
Segurança Pública, por trabalhadores rurais que se dizem vítimas de ameaças ou de
violências já consumadas, por parte de proprietários ou de prepostos seus”.5
A instabilidade percebida através do caso citado é sintomática para a conjuntura
política e social das décadas de 1950-1960 em Pernambuco. Durante este período, os
trabalhadores rurais passaram a se organizar em torno de sindicatos e com isso as
tensões no campo aumentaram consideravelmente, pois através da orientação dos
4 Diário de Pernambuco, 11 de abril de 1963. 5 Diário de Pernambuco, 11 de abril de 1963.
sindicatos, estes trabalhadores, antes silenciados diante dos desmandos e abusos do
patronato, passaram a questionar e reivindicar seus direitos através de greves e
intervenções na justiça.
Muitas eram as dificuldades para este tipo de organização: a legislação
trabalhista fora feita para os trabalhadores urbanos, não considerando a
especificidade do trabalho no campo, além do que quase não existiam Juntas
de Conciliação e Julgamento em cidades do interior, o que seria necessário
para que a lei fosse aplicada. O Código Civil, utilizado para o trabalho nas
Ligas, permitia a organização autônoma dos camponeses, mas não a
formação de sindicatos rurais. Além disso, havia grande resistência, por parte
dos proprietários rurais, em aceitarem qualquer tipo de organização vinda dos
trabalhadores. A polícia era acionada sempre que preciso, de tal modo que “a
lei e a ordem” não corressem o risco de serem alteradas (ABREU E LIMA,
2005, p. 37).
O ano de 1963 foi emblemático no sentido de percebermos o resultado do
avanço da sindicalização rural. Inúmeras greves, orientadas pelos sindicatos, ocorreram
em Pernambuco durante este período. As mobilizações foram acentuadas após a
promulgação em março daquele ano do Estatuto do Trabalhador Rural (ETR) que
expandiu aos trabalhadores do rurais os diretos trabalhistas já desfrutados pelos
trabalhadores urbanos. “As greves e ocupações de terra tomavam vulto, a tal ponto que
o Estado adotou, paulatinamente, uma atitude menos sistematicamente omissa a seu
respeito, por uma estreita janela de tempo, antes do golpe militar de 64” (DABAT,
2007, p. 103-104).
Como resposta às tensões no Estado, Miguel Arraes assina o ‘Acordo do
Campo’, também no mesmo ano. O acordo visava efetivar o ETR determinando a base
salarial destes trabalhadores, além de estabelecer a Tabela de Tarefas como norte das
atividades laborais. Destaca-se ainda o movimento das Ligas Camponesas que durante
as décadas de 1950 e 1960, resistia à pobreza extrema através da luta pela dignidade
humana e pela terra. “As Ligas Camponesas organizaram fortes efetivos de canavieiros
e pequenos produtores da região, forçando as autoridades e a opinião pública a tomar
uma aguda consciência dos problemas sociais dessas populações” (DABAT, 2007, p.
116).
Em consonância com a política norte-americana fruto da Guerra Fria, os
militares, articulados à setores do empresariado, da Igreja Católica e dos meios de
comunicação de massa, executaram um plano para deter o avanço dos setores
progressistas e das reformas de base propostas pelo presidente João Goulart, depondo-o
através de um movimento golpista em março de 1964. 6 Em Pernambuco, o golpe não
divergiu do projeto político nacional. Com a finalidade de conter as conquistas sociais
no Campo, Miguel Arraes foi deposto e preso após o golpe. Junto com ele, diversos
setores sociais tiveram as suas liberdades cerceadas sob a justificativa de serem
comunistas e subversivos da ordem. Artistas, intelectuais, estudantes, trabalhadores, etc.
passaram a responder judicialmente pelos atos cometidos antes mesmo da efetivação do
golpe. 7
A região da Zona da Mata pernambucana recebeu uma intervenção ainda maior
no que se refere ao “problema do campo”. É importante salientarmos que nesta região,
desde o período colonial, desenvolveu-se o complexo de produção açucareira que
abasteceu os mercados internacionais e intensificou o trabalho rural na região. Com o
crescimento da mecanização do campo durante a primeira metade do século XX, os
trabalhadores, que antes executavam o trabalho sob o regime da escravidão, passaram
ao trabalho assalariado. Esta mudança, no entanto, não representou uma melhoria
significativa na vida dessas pessoas. Na medida em que os antigos engenhos foram se
adaptando às novas demandas de mercado, o trabalhador rural foi submetido a uma
precarização cada vez mais acentuada.
Conforme nos ressalta Manuel Correia de Andrade, “à proporção que aumenta a
produção de açúcar e que se usa a técnica agrícola e industrial mais avançada, o homem
do campo fica mais pobre, mais necessitado, com menos direitos” (ANDRADE, 2011,
p. 130). Neste sentido, a organização dos trabalhadores em torno dos Sindicatos Rurais,
6 Sobre as articulações do pré-golpe ver: DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado – Ação
política, Poder e Golpe de Classe. Petrópolis: Vozes, 1981. 7 É importante destacar que muitas dessas pessoas já eram acompanhadas pelos órgãos de segurança e
controle social, à exemplo da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS). Sobre a estrutura
organizacional da Delegacia e as prisões políticas em Pernambuco ver: SILVA, Marcilia Gama da.
Informação, Repressão e Memória: A construção do Estado de exceção no Brasil na perspectiva do
DOPS PE (1964-1985). Recife: Editora UFPE, 2014; SILVA, José Rodrigo de Araújo. Colônia de férias
de Olinda: presos políticos e aparelhos de repressão em Pernambuco (1964). Dissertação (Mestrado em
História). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2013.
das Ligas Camponesas, a implementação do Estatuto do Trabalhador Rural e o Acordo
do Campo foram de fundamental importância para a melhoria de vida desses
trabalhadores.
Junto às políticas de Estado, os registros judiciais expressam a politização desses
trabalhadores. Os documentos das Comarcas da Zona da Mata, por exemplo, contêm
diversos processos em que reclamações trabalhistas, acidentes de trabalho, casos
violência e até de assassinatos de trabalhadores rurais nos ambientam no universo ao
qual estavam inseridos. Em abril de 1959, por exemplo, um dos trabalhadores da Usina
Trapiche moveu uma ação na Comarca de Ipojuca referente a uma indenização por
acidente de trabalho. De acordo com o processo, o trabalhador rural ficou
impossibilitado de exercer as suas funções e ainda assim, não havia recebido a
indenização que lhe era de direito. Afirma o trabalhador:
Que trabalhava para a usina Trapiche quando foi acidentado do serviço,
sendo feito à firma empregadora a devida comunicação, tendo nessa ocasião
recebido atendimento médico, porém, que do acidente resultou uma
incapacidade parcial e permanente, pelo que lhe cabe o direito de receber o
pagamento de indenização respectiva, na base do salário que recebia, pedindo
a condenação dos RR a lhe pagarem a quantia de oito mil oitocentos e oitenta
e cinco cruzeiros e trinta centavos que lhe são devidos em decorrência do
acidente.8
Diante dos avanços, a reação do patronato não poderia ser diferente. Era preciso
deter tais conquistas que estavam refletindo diretamente nas relações de trabalho
historicamente construídas sob a base da exclusão. A prisão do governador Miguel
Arraes e de importantes líderes dos trabalhadores do campo – a exemplo de Gregório
Bezerra – além de pessoas ligadas à grupos e ideias progressistas, são exemplos de
como estavam alinhados os interesses das classes produtoras e do governo instalado.
Assim, como em outros setores da sociedade, o trabalho e a política econômica do
campo passaram a fazer parte dos planos de ação conduzidos pelos militares.
Após 1964, a ditadura assumiu a responsabilidade de dirimir conflitos e
promover mudanças. A presença cada vez mais visível do Estado militar –
conduzindo a expansão industrial, tentando quantificar e regular o meio
8 Sentença de AJS. Comarca de Ipojuca - Livro de Sentenças 2. Acervo particular do Desembargador
Manoel Machado da Cunha Cavalcanti
agrícola, e estabelecendo regras para os acordos trabalhistas – dirigiu o foco
do intervencionismo estatal para uma região que só muito lentamente ia
saindo das sombras do patronato e da dominação individualizada. (ROGERS,
2017, p. 232)
O acervo documental da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) de
Pernambuco nos fornece importantes elementos de como se operava a polícia política
no Estado no que se refere às ações combativas no campo. A Delegacia Auxiliar que
funcionava junto à Secretaria de Segurança Pública passou a emitir relatórios no início
da década de 1960 com a finalidade de acompanhar as atividades e conflitos que
envolviam os trabalhadores rurais.
Assim, nos tópicos dos relatórios semanais do Delegado veem-se os
acontecimentos que estavam na ordem do dia no rol de preocupações do
governo e da polícia, sendo considerados de “alto risco às estruturas
econômicas do estado”. Quatro são os aspectos principais presentes nos
relatórios dos anos de 1960/62: as ações do Partido Comunista, os incêndios
nos canaviais, as greves, as Ligas e o problema do campo. (SILVA, 2014, p.
188)
Logo nos primeiros meses após o golpe, os militares iniciaram buscas,
apreensões e prisões orientados pela lógica da suspeição, onde qualquer histórico de luta
progressista poderia ser interpretado como associação ao comunismo e à subversão. Os
trabalhadores do campo que recorrentemente reivindicavam através de suas pautas de
luta melhorias de vida e trabalho, foram classificados como “comunistas” e
“agitadores”, servindo, portanto, como justificativa para suas prisões. Os Processos de
Investigação Sumária que versam sobre os trabalhadores da zona canavieira nos
fornecem elementos de análise a este respeito. Tomaremos como estudo de caso o
julgamento de três pessoas que residiam e atuavam na cidade de Itambé (na época
També) e que responderam ao processo conduzido pela junta militar.
O município de Itambé está localizado na Zona da Mata Norte pernambucana e
durante este período foi cenário de importantes mobilizações no campo. O Partido
Operário Revolucionário Trotskista (POR-T) atuou intensamente na região, desde a
orientação dos trabalhadores quanto aos seus direitos, até a formação de milícias
camponesas para resistências mais radicais. Foi neste contexto que o militante trotskista
Paulo Roberto Pinto, conhecido como Jeremias, foi assassinado em 1963 por capangas
do dono do Engenho Oriente localizado neste município.9 Em entrevista concedida à
Fundação Joaquim Nabuco, Francisco Julião comenta o caso:
Chegou aqui o movimento trotskista, que mandou alguns representantes do
Sul, um deles vítima de assassinato em També. Tinha o apelido de Jeremias e
teve papel destacado, mas muito sectário. Eu tratava de convencê-lo de que
estava em uma região perigosa, fronteiriça, entre Paraíba e Pernambuco.
Quando se matava alguém em Pernambuco se escapava para Paraíba, havia
uma espécie de sindicato da morte, uma aliança natural entre os grandes
senhores de engenho e grandes proprietários. 10
O processo que tomaremos como estudo de caso, referente ao caso de També,
teve início em julho de 1964. Sob a acusação estão o trabalhador rural Francisco
Bernardo do Nascimento, conhecido como “capitão” e na ocasião presidente do
sindicato rural do município; Abel Rodrigues Alves, advogado e interventor do mesmo
sindicato; e José Severino de Oliveira, conhecido como “Marcondes”, sargento e
delegado de polícia no município de També. 11
Em linhas gerais, a formalidade da denúncia acusa o trabalhador Francisco
Bernardo de ser “agitador comunista” e incitar a “luta de classes entre patrões e
empregados” provocando “greves e invasões a propriedades” com a atuação do
advogado e a cobertura e anuência do delegado do município. Ao analisarmos o
processo, destacamos alguns pontos que consideramos relevantes ao entendimento do
caso e da documentação. São eles: depoimentos; complexidade da conjuntura;
condições de trabalho e a ausência da fala dos trabalhadores.
Sobre os depoimentos, é importante destacar que todos os intimados a prestar
esclarecimentos sobre os acusados (quatro ao todo) são proprietários rurais.
Basicamente os discursos apontam para a atuação do trabalhador Francisco Bernardo no
incentivo à greves e ocupações em propriedades. Uma das testemunhas do caso é Itamir
Cesar de Moura, proprietário de um engenho no município. De acordo com o
depoimento, o proprietário afirma que conheceu o “capitão” em 1963 quando este
9 Sobre o trotskismo no campo e a história de Jeremias ver: GALLINDO, Felipe. Jeremias – O
Trotskismo no campo em Pernambuco. Recife: Editora Universitária – UFPE, 2013. 10 Depoimento de Francisco Julião. Acervo do Centro de Documentação e de História Brasileira –
CEHIBRA – Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ. p. 25. 11 Prontuários 1165 e 1177. Fundo SSP – Acervo APEJE.
passou por sua propriedade para sondar sobre os trabalhadores que eram sindicalizados.
Afirma que em um determinado momento, o acusado incitou uma greve alegando ser o
último dia para sindicalização. O proprietário conseguiu “contornar em partes”, pois
segundo ele “permaneceram trinta por cento em greve”.
Além do trabalhador, o proprietário aponta a participação do advogado do
sindicato e do delegado local. Relatando um episódio em que Francisco Bernardo
ameaçou ocupar seu engenho, o depoente disse que acreditou por bem formalizar a
denúncia contra o acusado em defesa da sua propriedade, sua vida e de “seus
trabalhadores”, encaminhando-se, portanto, para prestar uma queixa ao delegado de
També (Marcondes). Na ocasião, a delegacia estava fechada e o declarante foi até a casa
do delegado que, segundo ele, o “tratou mal” afirmando que este “não deveria ir à sua
casa para levar aborrecimentos”. As visitas à propriedade também eram realizadas pelo
advogado do sindicato (Abel) e, de acordo com o depoimento, este “fazia comícios
agitacionistas ao chegar na propriedade”.
Itamir Cesar de Moura, além de proprietário de engenho era representante da
Associação dos Plantadores de Cana e em 1964 assumiu o cargo de delegado provisório
do Sindicato dos Empregadores Na Lavoura da Cana de Pernambuco.12 De acordo com
as matérias da imprensa local, Itamir também possuía relações pessoais com o alto
comando militar, participando, por exemplo, de eventos e solenidades públicas.13 Em
1963, na ocasião do Memorial das classes produtoras citado anteriormente, o depoente
foi um dos que assinou o documento, afirmando sofrer “sucessivas ameaças de
violência, partidas do Sindicato Rural local”.14
Recorrentes eventos demonstram as tensões entre Itamir e os trabalhadores
rurais de També. Em fevereiro de 1964, por exemplo, o proprietário procurou a
Secretaria de Segurança Pública para denunciar uma possível ameaça de ocupação nas
terras do seu engenho, conforme ilustra a matéria do Diário de Pernambuco.
12 Diário de Pernambuco, 24 de junho de 1964. 13 O nome do proprietário aparece na matéria intitulada Almoço na Usina Maravilhas aos comandantes
militares da região. O evento ocorreu em Goiana e foi oferecido por um grupo de industriários. Ver:
Diário de Pernambuco, 7 de maio de 1964. 14 Diário de Pernambuco, 11 de abril de 1963.
CAMPONESES AMEAÇAM INVADIR TERRAS E DEPENDURAR
CHOCALHO NO PROPRIETÁRIO
Na “mira” dos camponeses encontram-se as terras da Usina Maravilhas, no
município de Goiana, e em seguida, a invasão da propriedade denominada
Engenho “Pangauá”, pertencente ao sr. Itamir Moura que, ontem à tarde, veio
denunciar o fato às autoridades da Secretaria de Segurança Pública,
solicitando-lhes as devidas garantias (...)
Os camponeses, segundo ainda conseguiu apurar o senhor Itamir Moura,
prometeram reeditar o episódio ocorrido semanas atrás em “Mari”, no Estado
da Paraíba, levando sua audácia ao ponto de afirmar que haveriam de colocar
um chocalho no pescoço daquele proprietário, a quem obrigariam depois, a
ingerir dejetos de animais.
O senhor Itamir Moura nada adiantou quanto ao que lhe responderam as
autoridades da S.S.P., que se supõe tenham tomado as providências cabíveis,
a fim de evitar a consumação de fatos deploráveis.15
Os demais depoentes, assim como Itamir, assinalam a inconformidade quanto ao
posicionamento do delegado local a respeito das atuações de Francisco Bernardo e do
advogado do sindicato Abel Rodrigues. Um dos depoentes afirma, por exemplo, que
Francisco Bernardo vivia na delegacia conversando com o delegado e que eles tinham
uma boa relação, pois “eram vistos juntos em todos os cantos da cidade”. O declarante
afirma ainda que as atuações no campo “provocadas pelo ‘capitão’ eram de comum
acordo com o sargento Marcondes”. A insatisfação em todos os depoimentos acontece
no sentido de que estes esperavam um posicionamento mais incisivo do delegado
coibindo as manifestações e a organização dos trabalhadores no campo. Esperavam,
portanto, que as relações de poder, exercidas neste caso pelo órgão policial,
favorecessem ao patronato como era de costume.
As acusações que versam sobre o delegado de polícia de També nos remete à
complexidade da conjuntura da época. Os depoentes afirmam que o delegado possuía
estreitas relações com os demais acusados, na medida em que as decisões não eram tão
enfáticas quanto eles esperavam. Desta forma, o delegado passou a ser considerado
suspeito e conivente com as ações do sindicato rural. Ressaltamos o aspecto complexo
do caso, pois o mesmo delegado efetivava as prisões de “elementos subversivos” que
atuavam no campo junto aos trabalhadores. Entre as prisões podemos citar o caso de
Jeremias e de outros membros trotskistas, a exemplo de Ayberê Ferreira de Sá, Cláudio
Antônio Vasconcelos e Carlos Montarroyos.
15 Diário de Pernambuco, 04 de fevereiro de 1964.
Em 1963 enquanto estavam organizando um congresso com os trabalhadores
rurais da região os estudantes foram presos. Na ocasião, antes de serem transferidos
para a Secretaria de Segurança Pública, ficaram detidos em També. Em suas memórias,
Carlos Montarroyos descreve o ocorrido relatando sua experiência enquanto esteve nas
dependências. Relatando as péssimas condições, relembra o contato que teve com o
delegado após a primeira noite no local. Após fazerem a higiene pela manhã, não havia
pão ou qualquer comida para os detentos, sendo oferecido apenas uma xícara de café.
Exigindo maiores explicações, os estudantes solicitaram a presença do delegado.
De volta à cela, ficamos esperando o café. Nos trouxeram depois, três
canecas de café, e nada mais. Não havia pão. Chamamos pelo guarda e
reclamamos. Ele deu de ombros e foi chamar o sargento. Ainda sonolento,
parecendo que havia dormindo na Delegacia, e com o maior cinismo, tentou
nos explicar a situação. Disse ele que a cadeia não tinha dinheiro, para
alimentar os presos. Todos os que estavam ali eram da região mesmo e,
portanto, já estavam acostumados a passar fome. Disse ainda que os presos
ficavam por ali pouco tempo, e que ninguém cumpria pena. Enquanto
estavam presos, as famílias, às vezes, levavam alguma coisa para melhorar a
boia. De sua parte, com os recursos que recebia, ele só podia dar uma caneca
de café pela manhã e uma sopa à noite. Ainda tentamos discutir com ele,
dizendo ingenuamente que, se não tinham condições para alimentar os
presos, não deveriam então receber ninguém. Ele riu muito e foi embora sem
responder. (MONTARROYOS, 1982, p. 75)
No depoimento prestado no Quartel do Derby em 9 de abril de 1964, o delegado
José Francisco de Oliveira (Marcondes) confirma as prisões utilizando-se delas como
argumento favorável a ele no combate à “subversão do campo”.16 De acordo com o
delegado, ele foi o responsável pela prisão de Paulo Roberto Pinto (Jeremias)
assassinado no Engenho Oriente em També. Além da prisão do Jeremias, o delegado
afirma ter detido Montarroyos e Cláudio na sede do Sindicato Rural e logo em seguida
deixou-os recolhidos na delegacia local. Após a prisão, o delegado encaminhou todos à
Secretaria de Segurança Pública no Recife.
O argumento também foi utilizado pelo advogado de defesa do delegado. Em
uma carta anexa ao processo, o advogado argumenta a boa conduta do delegado e
apresenta cartas de recomendação assinadas pelos juízes das Comarcas por onde passou
16 Prontuário 1177. Fundo SSP – Acervo APEJE.
nas cidades do interior do Estado. O advogado ressalta a complexidade de exercer um
cargo como delegado tendo que tratar de conflitos sociais diante das desigualdades.
Um descontentamento geral assolou o município de També, à época em que
serviu como Delegado e, como tal, procurou resolver todos os casos com a
maior imparcialidade e justiça que era possível lançar mão. Quem não
conhece que a ânsia do rico exacerbava a insatisfação do mais pobre que
ganhava pouco e sonhava muito por dias melhores? Quem desconhece que
“cerca ruim é quem ensina o boe [sic] a ser ladrão?”... e, desse destempero
social surgiram os Jeremias, os “capitães”, Júlios Santanas, Gregório Bezerra
e tantos outros legítimos agitadores desse destempero e aproveitadores dos
desentendimentos sociais entre trabalhadores do campo e senhores de
engenho.17
Embora a sua argumentação seja pautada na ideia de que os conflitos no campo
são frutos da pobreza extrema e das desigualdades sociais, o advogado constrói o
discurso colocando os líderes da resistência como “agitadores” e “aproveitadores” das
tensões sociais. O texto é pensado com a finalidade de convencer os militares do não
envolvimento do acusado em qualquer indício de relação entre o delegado e os demais
envolvidos. Para isso, constrói o argumento reforçando a ideia de que a culpa e
responsabilidade pelos conflitos é daqueles que resistem e não dos que cometem as
injustiças – fenômeno parecido com a inversão do real como explicitado no caso da
violência.
As condições de vida e trabalho dos trabalhadores rurais também podem ser
identificadas através dos depoimentos prestados. No geral, as motivações que levavam
os trabalhadores às paralizações no trabalho giravam em torno das melhorias no
trabalho. Os depoentes alegam que as reivindicações eram por cobranças de taxas para
moradia chamada “da habitação” que era descontada direto na folha de pagamento;
contestações quanto ao número de feixes de cana por dia de trabalho; sindicalização; e
tratamento violento dos administradores de engenho.
Ao prestar o depoimento no Fórum de També em agosto de 1964, o trabalhador
e presidente do sindicato rural Francisco Bernardo recorda ter ajudado, na época das
atribuições do sindicato, uma viúva com oito filhos moradora do Engenho Jardim que
17 Prontuário 1177. Fundo SSP – Acervo APEJE.
fora ameaçada, tendo a família recebido três tiros do administrador da propriedade para
que fossem expulsos sem indenização. Por entrar em defesa da viúva, Francisco foi
intimado a comparecer à Federação de Trabalhadores Rurais em Recife e à SSP.
O secretário de segurança pública enviou uma carta recomendando que a
proprietária do engenho indenizasse a viúva, mas a proprietária rasgou a carta dizendo
que “quem mandava no engenho era ela”. Depois a mesma foi notificada com outra
carta, dessa vez da Federação e mais uma vez rasgou a notificação. A proprietária foi
acusada ainda de destruir a lavoura de inhame da viúva e por isso foi feita uma
ocorrência na delegacia local. O delegado fez uma notificação exigindo que a viúva
fosse indenizada, mas a mesma se recusou a pagar. Posteriormente foi feito o
pagamento de seis mil cruzeiros, “quantia irrisória” segundo o depoente. Ao concluir o
depoimento, Francisco afirma que as suas atividades, “na qualidade de presidente do
sindicato rural, foram desenvolvidas no sentido de amparar o espoliado trabalhador
rural, vítimas que eram da prepotência de meia dúzia de senhores de engenho que
mereciam estar na cadeia”.18
Por último, e não menos importante, é importante ressaltarmos a ausência da fala
dos trabalhadores na documentação. Com exceção do depoimento de Francisco
Bernardo - que prestou depoimento por estar na condição de preso e sob interrogatório -
não encontramos uma fala sequer dos trabalhadores que direta ou indiretamente são
citados nos autos do processo. Todos os intimados a depor são proprietários de terras
que falam sobre e pelos trabalhadores, argumentando inclusive o que seria “melhor para
eles”. A ausência das falas nos remete à indagação feita pela historiadora indiana
Gayatri Chakravorty Spivak que ao estudar os grupos subalternos na Índia lançou a
seguinte pergunta: pode o subalterno falar? 19
Os arquivos do acervo DOPS são fontes fundamentais para compreensão de
inúmeros aspectos sobre a violência no campo e as prisões politicas de trabalhadores em
1964. Ao tratarmos de documentos produzidos por órgãos de vigilância e polícia
política, o cruzamento dos dados com outras fontes faz-se necessário, à exemplo dos
periódicos e dos processos judiciais. Diante da argumentação apresentada, acreditamos
18 Prontuário 1177. Fundo SSP – Acervo APEJE. 19 SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
que os arquivos repressivos, para além dos estudos que norteiam as investigações sobre
os agentes do Estado, podem elucidar lacunas sobre a resistência dos grupos e
indivíduos que historicamente foram silenciados ao longo da história.
Referências Bibliográficas
ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Construindo o Sindicalismo Rural: lutas,
partidos, projetos. Recife: Ed. Universitária da UFPE/ Ed. Oito de Março, 2005.
_____. Maria do Socorro de. Trabalhadores rurais diante da violência. In: OLIVEIRA,
Tiago Bernardon de (org). Trabalho e Trabalhadores no Nordeste: análises e
perspectivas de pesquisas históricas em Alagoas, Pernambuco e Paraíba. Campina
Grande: EDUEPB, 2015.
ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o Homem no Nordeste: contribuição ao
estudo da questão agrária no Nordeste. 8° Ed. São Paulo: Cortez, 2011..
AZEVÊDO, Fernando. As ligas camponesas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
BEZERRA, Gregório. Memórias, 1990-1983. São Paulo: Boitempo, 2011.
CAVALCANTI, Paulo. O caso eu conto como o caso foi – Da coluna Preste à queda de
Arraes: memórias. São Paulo: Editora Alfa-Omega. 1978.
CHAUÍ, Marilena. O mito da não violência brasileira. In: CHAUÍ, Marilena;
ITOKAZU, Ericka; CAUÍ-BERLINCK, Luciana. Sobre a Violência. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2017.
DABAT, Christine Rufino. Moradores de Engenho: relações de trabalho e condições de
vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco segundo a literatura, a
academia e os próprios atores sociais. Recife : Ed. Universitária da UFPE,2007.
DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado – Ação política, Poder e
Golpe de Classe. Petrópolis: Vozes, 1981.
GALLINDO, Felipe. Jeremias – O Trotskismo no campo em Pernambuco. Recife:
Editora Universitária – UFPE, 2013.
MONTARROYOS, Carlos. O tempo de Arraes e o contratempo de março. Rio de
Janeiro: Folha Carioca Editora LTDA, 1982.
ROGERS, Thomas D. As feridas mais profundas: uma história do trabalho e do
ambiente do açúcar no Nordeste do Brasil. São Paulo: Ed. UNESP, 2017.
SILVA, José Rodrigo de Araújo. Colônia de férias de Olinda: presos políticos e
aparelhos de repressão em Pernambuco (1964). Dissertação (Mestrado em História).
Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal da Paraíba, João
Pessoa, 2013.
SILVA, Marcilia Gama da. Informação, Repressão e Memória: A construção do Estado
de exceção no Brasil na perspectiva do DOPS PE (1964-1985). Recife: Editora UFPE,
2014
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010.