Arroz do céu 2013

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    Lngua Portuguesa 7. ano de escolaridade

    Guio de Leitura

    Orientada

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    Ao longo dos passeios de Nova York, por sobre as estaes e galerias dosubway, abrem-se grandes respiradouros gradeados por onde cai de tudo: o sol e achuva, o luar e a neve, luvas, lunetas e botes, papelada, chewing gum, taces desapatos de mulheres que ficam entalados, e at dinheiro. s vezes, l no fundo, nolixo acumulado ou em poas de gua estagnada, brilham moedas de nquel e mesmode prata. Os garotos ajoelham de nariz colado s grades, tentando lobrigar tesourosna obscuridade donde sopra um hlito hmido e oleoso e o cheiro dos freiosqueimados. Fazem prodgios de habilidade e obstinao para pescar as moedasperdidas. Alguns tm xito nisso, mas depois engalfinham-se em disputas tremendassobre a posse e a partilha do tesouro: nunca se sabe quem foi que viu primeiro.

    Outros, quando a colheita promete, chegam a arriscar nisso algum capital: juntamas posses, e entram dois, quanto basta, no subway; uma vez l dentro, trepam sub-repticiamente aos respiradouros, o que uma difcil operao de acrobacia, paracolher aquele dinheiro-de-ningum, enquanto um ou mais camaradas vigilantes os voguiando c de fora. Tambm os h que entram sem pagar, por entre as pernas dafreguesia e agachando-se por baixo dos torniquetes.

    O limpa-vias trabalhava h muitos anos no subway, sempre de olhos no cho.Uma toupeira, um rato dos canos. Picava papis na ponta de um pau com um prego, emetia-os no saco. Varria milhes de pontas de cigarros, na maioria quase intactos, de

    fumadores impacientes, raspava das plataformas o chewing gum odioso, limpava aslatrinas, espalhava desinfetantes, ajudava a pr graxa nas calhas, polvilhava as viasde um p branco e misterioso, e todas as vezes que o camarada da lanterna soltavaum apito estrdulo l vem o comboio! ele encolhia-se contra a parede negra, ondeescorriam guas de infiltrao, na estreita passagem de servio. At j tinha ajudado arecolher pedaos de cadveres, de gente que se atirava para debaixo dos trens, e atransportar os corpos exangues de velhos que de repente se lembravam de morrer deataque cardaco, nas horas de maior ajuntamento, uns e outros perturbando o horrioe provocando a curiosidade casual e momentnea dos passageiros apressados.Sempre de olhos no cho, bisonho e calado, como quem nada espera do Alto, e noesperava. A vida dele vinha toda do cho imundo e viscoso. Nem sequer olhava alvida claridade que resvala dos respiradouros para o negrume interior, onde

    tremeluzem lmpadas eltricas, entre as pilastras inumerveis daquela florestasubterrnea metalizada: nunca lhos tinham mandado limpar. Eram provavelmente odomnio exclusivo de operrios especializados, membros de outro sindicato, que eleno conhecia. Nem talvez soubesse que existiam os respiradouros. Era estrangeiro,imigrante, como tanta gente, no brincara nem vadiara na voragem empolgante dasruas da grande cidade, e vivia perfeitamente resignado sua obscuridade. Deviaaquele emprego a um camarada que era membro dum clube onde mandavam homensde peso, mas ele de poltica no entendia nada, nem fazia perguntas. Como tinhanascido na Litunia, ou talvez na Estnia, s falava em monosslabos; e, debaixo daptina oleosa e negra que o ar do subwaynela imprimira com o tempo, a sua face eraincolor e a raa indistinta. Antes disso tinha trabalhado em escavaes, umtoupeira. Este emprego era muito melhor, embora tambm fosse subterrneo. E no

    tinha que falar o ingls, que mal entendia.Ora, esquina de certa rua, no Uptown, h uma igreja, a de So Joo Baptista e

    do Santssimo Sacramento, a todo o comprimento de cuja fachada barroca e cinzentaos respiradouros do subway formam uma longa plataforma de ao arrendado. Oscasamentos so frequentes, ali, por ser chique a parquia e imponente a igreja. Oarroz chove s cabazadas em cima dos noivos, sada da cerimnia, num grandeestrago de alegria. Metade dele some-se logo pelas grelhas dos respiradouros, outraparte fica espalhada nas placas de cimento do passeio. Depois dos casamentos, osacristo ou porteiro da igreja, de cigarro ao canto da boca, varre o arroz para dentrodas grades, por comodidade. Provavelmente irlands, o arroz no lhe interessa, nemse ocupa de pombos: pombos l com os italianos, que, apesar de se dizerem

    catlicos, so uma espcie de pagos. O que se derramou no pavimento da rua, lfica: com os varredores municipais.

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    Volta e meia h casrio, sobretudo no bom tempo, ou aos domingos. E umdesperdcio de arroz, no sei donde vem o costume: talvez seja um prenncio votivode abundncia, ou um smbolo do crescei e multiplicai-vos (como arroz). A gentepra a olhar, e tem vontade de perguntar: A como est hoje o arroz de primeira c nafreguesia?

    Aquela chuva de gros atravessa as grades, resvala no plano inclinado dorespiradouro, e, se mo adere sujidade pegajosa ou ao chewing gum (o bairro pouco dado a mastigar o chicle), ressalta para dentro do subterrneo, numa estreitapassagem de servio vedada aos passageiros.

    A primeira vez que viu aquele arroz derramado no cho, e sentiu os bagos aestalar-lhe debaixo das botifarras, o limpa-vias no fez caso; varreu-os com o resto dolixo para dentro do saco cilndrico, com um aro na boca. Mas como ia agora por alicom mais frequncia, notou que a coisa se repetia. O arroz limpo e polido brilhavacomo as prolas de mil colares desfeitos no escuro da galeria. O homem matutou:donde que viria tanto arroz? Intrigado, ergueu os olhos pela primeira vez para o Alto,e avistou a vaga luz de masmorra que escorria da parede. Mas o respiradouro, se bemme compreendem, obliquava como uma chamin, e a grade, ela prpria, ficava-lheinvisvel do interior. Era dali, com certeza, que caa o arroz, como as moedas, a poeira,a gua da chuva e o resto. O limpa-vias encolheu os ombros, sem entender.

    Desconhecia os ritos e as elegncias. No casamento dele no tinha havido arroz dequalidade nenhuma, nem cru, nem doce, nem de galinha.At que um dia, depois de olhar em roda, no andasse algum a espi-lo,

    abaixou-se, ajuntou os bagos com a mo, num montculo, e encheu com eles umbolso do macaco. Chegado a casa, a mulher cruzou as mos de assombro: alvo,carolino, de primeira! Dias depois, sempre sozinho, varreu o arroz para dentro de umcartucho que apanhara abandonado num cesto de lixo da estao, e levou-o paracasa. Pobres, aquela fartura de arroz enchia-lhes a barriga, a ele, patroa e aos seisou sete filhos. Ela habituou-se, e s vezes dizia-lhe: V l se hoje h arroz, acabou-se-nos o que tnhamos em casa. Confiada naquele remedeio de vida!

    O limpa-vias nunca perguntou donde que chovia tanto gro, sobretudo no bomtempo, pelo Vero, e aos domingos, que at parecia uma colheita regular.

    Embrulhava-o num jornal ou metia-o num cartucho, e assim o levava famlia.Ignorando que l em cima era a Igreja de So Joo Baptista e do SantssimoSacramento, e como tal de bom-tom, no sabia a que atribuir o fenmeno. Pelo ladoda raiz, no subway, os palcios, os casebres e os templos no se distinguem.

    E foi assim que aquela chuva benfica, de arroz polido, carolino, de primeira,acabou por lhe dar a noo concreta de uma Providncia. O arroz vinha do Cu, comoa chuva, a neve, o sol e o raio. Deus, no Alto, pensava no limpa-vias, to pobre ecalado, e mandava-lhe aquele man para encher a barriga aos filhos. Sem ele terpedido nada. Guardou segredo mau contar os prodgios com que a graa divinanos favorece. Resignou-se a ser o objeto da vontade misericordiosa do Senhor. Ecomeou a rezar-lhe fervorosamente, noite, o que nunca fizera: ao lado da mulher.Arroz do Cu...

    O Cu do limpa-vias a rua que os outros pisam.

    in Gente da Terceira Classe, Jos Rodrigues Miguis, Lisboa, Editorial Estdios Cor, 1971, pp. 67-71 (1 ed. 1962)

    As professoras de LnguaPortuguesa 7.ano

    1. Interpreta agora o ttulo de acordo com o conto.

    2. Identifica a personagem principal deste conto.

    2.1. Caracteriza-a fsica, psicolgica e socialmente.

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    2.2. Algumas dessas caractersticas so comuns a muitos emigrantes. Refere-

    as.

    2.3. Menciona a nacionalidade do limpa-vias.

    3. Identifica as restantes personagens do conto.

    3.1. Caracteriza-as quanto ao relevo.

    4. Enumera os vrios espaos onde decorrem as aes.

    4.1. Caracteriza os dois espaos principais, com palavras ou expresses do

    texto.

    4.2. De que forma podemos afirmar que esses dois espaos so sociais?

    5. Refere as expresses informantes do tempo.

    6. Como classificas o narrador quanto sua presena? Justifica com um exemplo

    do texto.

    6.1. Ser o narrador objetivo/imparcial ou subjetivo/parcial? Justifica com

    exemplos textuais.

    7. O narrador identifica o limpa-vias com dois animais. Quais? Explica a

    sugestividade das metforas.

    7.1. De que tarefas se ocupa o limpa-vias no seu dia-a-dia de trabalho?

    7.2. Qual o acontecimento que veio alterar a rotina da vida do limpa-vias?

    7.3. Qual foi a primeira reao do limpa-vias ao sucedido?

    7.4. Que ritual passou a fazer parte do quotidiano do limpa-vias?7.5. A quem atribuiu o limpa-vias esta ddiva?

    7.6. Compreende e explica as seguintes passagens textuais:

    a) O arroz chove s cabazadas em cima dos noivos, sada da cerimnia, num

    grande estrago de alegria.

    b) O arroz limpo e polido brilhava como as pro las de mil colares desfeitos no

    escuro da galeria.

    c) (...) a vaga luz de masmorra que escorria da parede(...)d) Pelo lado da raiz, no Subway, os palcios, os casebres e os templos no se

    distinguem

    e) Resignou-se a ser objeto da vontade misericordiosa do Senhor.

    f) O cu do limpa-vias a rua que os outros pisam.

    7.7. Identifica os recursos expressivos presentes nas frases a), b) e f).

    BOM TRABALHO!

    A professora