Arseni Tarkovski - Poemas Soltos

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  • 7/24/2019 Arseni Tarkovski - Poemas Soltos

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    O Vero Partiu

    O vero partiu

    e nunca devia ter vindo

    ser quente o sol

    mas no pode ser s isto

    tudo veio para partir

    nas minhas mos tudo caiu

    corola de cinco ptalas

    mas no pode ser s isto

    nenhum mal se perdeu

    nenhum bem foi em vo

    luz clara tudo ardemas no pode ser s isto

    agarra-me a vida

    sob a sua asa intacto

    sempre a sorte do meu lado

    mas no pode ser s isto

    nem uma folha se consumiu

    nem uma vara quebradavidro lmpido o dia

    mas no pode ser s isto

    Eurdice

    Temos um s corpo

    singular, solitrio

    a alma teve que baste

    ali dentro fechada

    caixa com olhos e orelhas

    do tamanho de um boto

    e a pele costura aps costura

    cobrindo a estrutura ssea

    sai da crnea voando

  • 7/24/2019 Arseni Tarkovski - Poemas Soltos

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    para o clice celeste

    para o gelado raio

    da roda voadora das aves

    e escuta pelas grades

    da sua cela viva

    o crepitar do bosque e da seara

    e a trombeta dos sete mares

    corpo sem alma pecado

    um corpo sem camisa

    nada feito sem inteno

    sem inspirao, nenhuma linha

    insolvel charada:

    quem no fim ir voltar pista de dana quando

    ningum houver para danar?

    sonhei com uma alma outra

    de um modo outro vestida:

    ardia na fuga

    da timidez esperana

    espirituosa e lmpida

    como o fogo habita a terrasobre a mesa pondo lilases

    para que lembrada seja

    corre, criana, no pares

    pela pobre Eurdice

    rola o arco e a gancheta

    no mundo roda

    at subires uma oitava

    no tom alegre, e calma

    porque a cada passo a terra

    faz soar guizos nos teus ouvidos

    bernardo lins Brando

  • 7/24/2019 Arseni Tarkovski - Poemas Soltos

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    Vida, Vida

    No acredito em pressentimentos, e augriosNo me amedrontam. No fujo da calniaNem do veneno. No h morte na Terra.Todos so imortais. Tudo imortal. No h por queTer medo da morte aos dezesseteOu mesmo aos setenta. Realidade e luzExistem, mas morte e trevas, no.Estamos agora todos na praia,E eu sou um dos que iam as redesQuando um cardume de imortalidade nelas entra.

    Vive na casa e a casa continua de pVou aparecer em qualquer sculoEntrar e fazer uma casa para mim por isso que teus filhos esto ao meu ladoE as tuas esposas, todos sentados em uma mesa,Uma mesa para o av e o netoO futuro consumado aqui e agoraE se eu erguer levemente minha mo diante de ti,Ficars com cinco feixes de luz

    Com omoplatas como esteios de madeiraEu ergui todos os dias que fizeram o passadoCom uma cadeia de agrimensor, eu medi o tempoE viajei atravs dele como se viajasse pelos Urais

    Escolhi uma era que estivesse minha alturaRumamos para o sul, fizemos a poeira rodopiar na estepeErvaais cresciam viosos; um gafanhoto tocava,Esfregando as pernas, profetizavaE contou-me, como um monge, que eu pereceriaPeguei meu destino e amarrei-o na minha sela;E agora que cheguei ao futuro ficareiEreto sobre meus estribos como um garoto.

    S preciso da imortalidadePara que meu sangue continue a fluir de era para eraEu prontamente trocaria a vidaPor um lugar seguro e quenteSe a agulha veloz da vidaNo me puxasse pelo mundo como uma linha.

    (in Tarkvski, Andrei.Esculpir o tempo, traduo de Jefferson Luiz Camargo. So Paulo:

    Martins Fontes, 1990. - trata-se de um dos poemas recitados por Arseni Tarkvski no filme O

    Espelho, de 1975).

    :

    Outra traduo:

    VIVA, VIDA!

    No acredito em premonies, no temo supersties,

    veneno e calnia no vigoram sobre mim.

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    No existe morte, seno plenitude no mundo.

    Somos todos imortais; tudo imortal.

    No preciso temer a morte,

    seja aos dezessete ou aos setenta.

    Nada h alm de presente e de luz;

    escurido e morte no existem neste mundo.Chegados que somos todos margem, sou um dos escolhidos

    para puxar as redes quando o cardume da imortalidade as cumular.

    Habitai a casa, e a casa se sustentar.

    Invocarei um dos sculos ao acaso: eu o adentrarei

    e nele construirei minha morada.

    Sento-me portanto mesma mesa

    que vossos filhos, mes e esposas.

    Uma s mesa para servir bisav e neto:

    o futuro se consuma aqui agora,

    e quando eu erguer a minha mo,

    os cinco raios de luz convosco ficaro.

    Omoplatas minhas como vigas mestras,

    sustentaram por minha vontade a revoluo dos dias.

    Medi o tempo com vara de agrimensor:

    eu o venci como se voasse sobre os Urais.

    Talhei as idades minha medida.

    Rumamos para o sul, um rastro de poeira pela estepe.

    As altas ervas agitavam-se entre vapores

    e o grilo danarino,ao perceber com suas antenas as ferraduras faiscantes,

    profetizou-me, como monge possudo, a aniquilao.

    Atei ento, rpido, meu destino sela,

    ergui-me sobre os estribos como um menino

    e agora cavalgo os tempos vindouros a meu ritmo.

    Basta-me minha imortalidade,

    o fluir de meu sangue de uma para outra era,

    mas em troca de um canto quente e seguro

    daria de bom grado minha vida,

    conquanto sua agulha voadora

    no me arrastasse, feito linha, mundo afora.

    (Verso a partir de tradues para o ingls e outras lnguas ocidentais: lvaro Machado).

    Cai a noite sobre as montanhas da Gergia;

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    minha frente ruge o Aragva.

    Estou em paz e triste; h um lampejo em meus suspiros,

    Meus suspiros so todos teus,

    Teus, e de mais ningum... Minha melancolia

    Est insensvel a angstias e apreenses,

    E meu corao arde e ama mais uma vez,Pois nada pode fazer alm de amar.

    Todo instante que passvamos juntos

    Era uma celebrao, uma Epifania,

    No mundo inteiro, ns os dois sozinhos.

    Eras mais audaciosa, mais leve que a asa de um pssaro,

    Estonteante como uma vertigem, corrias escada abaixo

    Dois degraus por vez, e me conduzias

    Por entre lilases midos, at teu domnio

    No outro lado, para alm do espelho.

    Enquanto isso o destino seguia nossos passos

    Como um louco de navalha na mo.