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Educação Unisinos 9(3):229-236, set/dez 2005 © 2005 by Unisinos Resumo: A partir do reconhecimento da dimensão crítica e contestadora de alguns quadrinhos e cartuns, o trabalho tem como objetivo analisar e cotejar as representações de professora encontradas nas obras Toda a Mafalda, do argentino Quino, e Com olhos de criança, do italiano Francesco Tonucci. Parte-se do conceito de representação trazido pelos Estudos Culturais e consideram-se, também, estudos sobre trabalho e representações docentes, em especial sobre o humor na docência, além das peculiaridades das obras dos dois autores. A análise de 40 cartuns e historietas de Tonucci, e de 66 tiras de Quino, nas quais a figura da professora está presente ou é referida, permite-nos sintetizar alguns achados; assim, a professora aparece de acordo com uma imagem bastante utilizada no discurso tradicional, em especial no discurso humorístico – falastrona, ensinante, disciplinadora, irritada; a questão da avaliação é recorrente no trabalho dos dois desenhistas, sendo que, no trabalho de Tonucci, encontramos a crítica sutil às avaliações atualmente apregoadas. O autor italiano também satiriza aspectos das novas pedagogias ativas, assim como novas exigências feitas às professoras. Por fim, os dois autores reconhecem, através de algumas tiras, o caráter fatigante de “ser docente”: trabalhar com alunos indisciplinados, ser mal remunerado, etc. Pode- se dizer que o desencontro entre dois atores e dois mundos envolvidos na escola – professora versus alunos, ensinamentos escolares versus vivências cotidianas – é que serve de fonte para grande parte das situações cômicas apresentadas. Palavras-chave: representações docentes, quadrinhos, humor. Abstract: Starting from the acknowledgement of the critical and challenging dimension of some comics and cartoons, this work has the purpose of analyzing the teacher representations found in the work Toda a Mafalda, by the Argentinean Quino, and in Through the eyes of a child, by the Italian Francesco Tonucci. We start from the concept of representation brought by Cultural Studies and studies on the teaching work and representation are also considered, especially the humor in the instruction, besides both authors´ peculiarities. The analysis of 40 cartoons and stories by Tonucci, and of 66 comic strips by Quino, in which the teacher is present or referred, allows us to synthesize some findings: the teacher appears as an image much used in the traditional discourse, especially in the humor discourse – talkative, teaching, disciplinarian, irritated. The issue of the evaluation is recurring in the work of both designers, but in Tonucci´s work we found the subtle criticism to the evaluations that are currently advised. The Italian author also satirizes some aspects of the new pedagogies in force, as well as the new demands made to the teachers. Finally, in some strips the two authors recognize the tiring feature of the “being a teacher”: to work with undisciplined students, to be badly Quino e Tonucci vêem a professora: uma análise de quadrinhos 1 The teacher according to Quino and Tonucci: an analysis of comics Rosa Maria Hessel Silveira [email protected] 1 Trabalho resultante do Projeto de Pesquisa “Rindo de professores/as: um estudo do humor sobre a docência”, coordenado pela autora. 06_Art05_RMHSilveira.pmd 01/02/2006, 16:55 229

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Educação Unisinos99999(3):229-236, set/dez 2005© 2005 by Unisinos

Resumo: A partir do reconhecimento da dimensão crítica e contestadora de alguns quadrinhos ecartuns, o trabalho tem como objetivo analisar e cotejar as representações de professora encontradasnas obras Toda a Mafalda, do argentino Quino, e Com olhos de criança, do italiano FrancescoTonucci. Parte-se do conceito de representação trazido pelos Estudos Culturais e consideram-se,também, estudos sobre trabalho e representações docentes, em especial sobre o humor nadocência, além das peculiaridades das obras dos dois autores. A análise de 40 cartuns e historietasde Tonucci, e de 66 tiras de Quino, nas quais a figura da professora está presente ou é referida,permite-nos sintetizar alguns achados; assim, a professora aparece de acordo com uma imagembastante utilizada no discurso tradicional, em especial no discurso humorístico – falastrona, ensinante,disciplinadora, irritada; a questão da avaliação é recorrente no trabalho dos dois desenhistas, sendoque, no trabalho de Tonucci, encontramos a crítica sutil às avaliações atualmente apregoadas. Oautor italiano também satiriza aspectos das novas pedagogias ativas, assim como novas exigênciasfeitas às professoras. Por fim, os dois autores reconhecem, através de algumas tiras, o caráterfatigante de “ser docente”: trabalhar com alunos indisciplinados, ser mal remunerado, etc. Pode-se dizer que o desencontro entre dois atores e dois mundos envolvidos na escola – professoraversus alunos, ensinamentos escolares versus vivências cotidianas – é que serve de fonte paragrande parte das situações cômicas apresentadas.

Palavras-chave: representações docentes, quadrinhos, humor.

Abstract: Starting from the acknowledgement of the critical and challenging dimension ofsome comics and cartoons, this work has the purpose of analyzing the teacher representationsfound in the work Toda a Mafalda, by the Argentinean Quino, and in Through the eyes of achild, by the Italian Francesco Tonucci. We start from the concept of representation broughtby Cultural Studies and studies on the teaching work and representation are also considered,especially the humor in the instruction, besides both authors´ peculiarities. The analysis of 40cartoons and stories by Tonucci, and of 66 comic strips by Quino, in which the teacher ispresent or referred, allows us to synthesize some findings: the teacher appears as an imagemuch used in the traditional discourse, especially in the humor discourse – talkative, teaching,disciplinarian, irritated. The issue of the evaluation is recurring in the work of both designers,but in Tonucci´s work we found the subtle criticism to the evaluations that are currentlyadvised. The Italian author also satirizes some aspects of the new pedagogies in force, as wellas the new demands made to the teachers. Finally, in some strips the two authors recognizethe tiring feature of the “being a teacher”: to work with undisciplined students, to be badly

Quino e Tonucci vêem a professora: umaanálise de quadrinhos1

The teacher according to Quino and Tonucci:an analysis of comics

Rosa Maria Hessel Silveira

[email protected]

1 Trabalho resultante do Projeto de Pesquisa “Rindo de professores/as: um estudo do humor sobre a docência”, coordenado pela autora.

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As histórias em quadrinhos e oscartuns têm ultrapassado, em déca-das mais recentes, o seu caráter deentretenimento, para assumirem seupapel no exercício da crítica atravésdo humor. Nesse sentido, algunsdesenhistas, em especial, têm sedestacado, com sua sutileza, mor-dacidade e sagacidade, na exposi-ção de uma “outra face” de váriasinstituições sociais, costumes e prá-ticas, seguindo uma das mais anti-gas funções do humor: a de questi-onar e duvidar da seriedade, coe-rência e lógica das ações e pensa-mentos humanos. Em especial, emse tratando de escola e educaçãoformal, vários quadrinistas, na se-gunda metade do século XX, se des-tacaram nesse campo, entre eles oconhecidíssimo argentino Quino,com sua irreverente e questionadoraMafalda e seus companheiros, e omenos conhecido autor italianoFrancesco Tonucci, que, emboranão trabalhe com personagens in-dividualmente caracterizados e no-meados, nos traz em sua obra Comolhos de criança um notável edesconcertante painel do mundo in-fantil em suas relações com o mun-do adulto.

Por outro lado, as representa-ções e imagens que colocam o pro-fessor e a professora em cenárioshumorísticos já têm ensejado algu-mas análises, entre as quais citaría-mos as de Silveira (2004), em que aautora analisa 300 piadas correntesque envolvem professores e profes-soras, mostrando o quanto, comopersonagens centrais das piadas, osmestres tanto são mostrados comodesconcertados por tiradas esper-tas de seus alunos, quanto, no caso

das professoras, podem ser elas re-tratadas em sua identidade de “mu-lher provocante”, que mexe com osinteresses sexuais de alunos; alémdessas duas possibilidades, os/asprofessores/as podem eventual-mente levar a melhor em um con-fronto com alunos ou se revelar ob-cecados por suas disciplinas, a talponto que se desconectam da suavida cotidiana normal, digamos, e aimpregnam do discurso formalizadooriundo de seus campos de saber.Em qualquer dos casos acima, a ima-gem dominante é a do professor queinterroga incessantemente oalunado sobre conteúdos e cobrado mesmo atitudes e obrigações quea escola ocidental tradicionalmentetem consagrado como vitais para ocumprimento de sua funçãodisciplinadora: pontualidade, sub-missão, cumprimento de tarefas, etc.Já outros trabalhos, embora não te-nham como tema central acomicidade do professor e da pro-fessora, ao focalizarem representa-ções do mestre de maneira mais ge-ral, paralelamente apontam algumassituações em que ele se torna obje-to de riso. É o caso do conjunto detrabalhos que tomou como objetode análise livros de literatura infanto-juvenil e foi publicado em Silveira(2002a). Em alguns desses trabalhos,analisa-se como professores de Ci-ência às vezes são representadoscomo estranhos, curiosos, distraí-dos (Wortmann, 2002), analisa-se afala incontrolável, difícil ou em al-tos decibéis (Silveira, 2002b), e asprofessoras de Português, por ve-zes nervosas, gritonas e mal-humoradas, são analisadas por DallaZen (2002).

Para onde se volta nossoolhar?

Especificamente no trabalho oraapresentado, nosso objetivo é o deanalisar as representações de pro-fessora que povoam as páginas deQuino (1989) e Tonucci (1997), to-mando como inspiração teórica, porum lado, o conceito de representa-ção oriundo dos Estudos Culturais,que não a tomam como reflexo maisou menos fiel de uma realidadepreexistente, mas como uma imagemproduzida dentro de jogos de poder-saber, articulada a outras represen-tações, por sua vez constituídas emcircunstâncias culturais específicas.Por outro lado, estudos sobre o tra-balho e a profissão docente, que têmesquadrinhado tanto dimensões pro-priamente pedagógicas – o trabalhodidático, os saberes pedagógicos, os“cacoetes” da profissão –, quantodimensões ligadas à ocupação do-cente – remuneração, sentimentos,imagens sociais da mesma, nos auxi-liaram, ainda que de maneira menosformalizada, na compreensão dos tex-tos visuais dos dois desenhistas.

Embora nosso intuito não sejaproceder a uma comparação estritaentre as representações de profes-sora de Quino e Tonucci, evidente-mente algumas aproximações serãofeitas e, nesse sentido, torna-se im-portante apontar algumas diferençasentre as características da produçãode ambos. As tiras da Mafalda deQuino são constituídas por peque-nas historietas, geralmente com trêsa seis quadrinhos, em que os perso-nagens fazem parte da turma daMafalda: nessa turma se incluem tan-to a própria heroína, quanto familia-

paid, and so on. One can say that the different ways between two players and two worlds involvedin the school – teacher versus students, school lessons versus daily experiences – are the source fora large number of funny situations that are presented.

Key words: teaching representations, comics, humor.

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res (pai, mãe e o pequeno irmão),amigos (Filipe, Susanita, Libertad,Manolito, Miguelito); aparecemeventualmente outros personagensdo contexto social (professores,guardas, amigos dos pais, etc.), rara-mente nomeados. As historinhas sãobem estruturadas, os ambientes sãodesenhados com detalhes e, comotodos sabemos, a personagem setornou famosa pelo teor político econtestatório de suas perguntas eintervenções, onde temas como asguerras, as questões de poder, asdiscriminações de gênero, as regrasocidentais para a educação das cri-anças e os variados tipos de precon-ceito são questionados. Já os dese-nhos de Tonucci têm outra caracte-rística: por vezes temos apenas um(1) cartum retratando uma situaçãodada ou, no caso de haver váriosdesenhos que representam situaçõessucessivas, o autor não utiliza, viade regra, a delimitação em quadri-nhos, mas efetua uma organizaçãoespecial do espaço da página. Nãohá, nos desenhos analisados, a cria-ção e a nomeação de personagensespecíficos; com economia de tra-ços, o desenhista nos traz criançasque se diferenciam por pequenascaracterísticas (o cabelo, a presençaou não de óculos, o gênero aponta-do pela roupa) e uma professora qua-se só representada por um perfil decabelos crespos, vestido e salto alto.Por vezes, apenas os balões da vozda professora aparecem. Diferente-mente dos desenhos sobre aMafalda, os desenhos de Tonuccitrazem pequenos títulos que enqua-dram e/ou contextualizam as cenasretratadas, tais como: Primeiro diana escola: o encontro... / Animaçãoou reanimação / Homenagem aPiaget / “Deve-se observar atenta-mente o comportamento da crian-ça”, etc. Às vezes, é justamente des-ses títulos que advém o humor, emfunção da discordância que se esta-belece entre sua referência e a situa-

ção apresentada pelo desenho.A partir de uma leitura interessa-

da de ambas as obras – Toda aMafalda, de Quino, e Com olhos decriança, de Tonucci – foram analisa-dos 40 cartuns ou historietas deTonucci, selecionadas pelo critériode envolverem, de alguma forma, apersonagem professora – às vezesapenas presente através de sua fala.Da autoria de Quino, foram analisa-das 66 tiras, também selecionadaspelo critério de se referirem, de algu-ma forma, à figura da professora, orapresente na cena retratada peloquadrinista, ora constituindo temade conversa do grupo de Mafalda.

Dados os limites do presente tra-balho, não será possível esquadri-nhar todas (ou quase) as possibili-dades analíticas dos desenhos deambos os autores; nos deteremos emalgumas delas, ilustrando-as even-tualmente com alguns dos desenhos.

Uma professoraconforme o velhofigurino

A imagem da professora comoaquele adulto que, na instituição es-colar, cumpre a reiterada função deensinar “conteúdos”, de disciplinaros alunos e de garantir a continuida-de, a ordem e o formato da escola,aparece nas historietas de ambos osdesenhistas. Dentro de uma tradiçãoverbalista continuada, a professoraé continuamente representada comouma incessante palradora, de acor-do, aliás, com o que Silveira (2002b)afirma, a partir de sua análise de li-

vros infanto-juvenis: “A freqüênciae a recorrência da fala do professorna sala de aula é um dos seus traçosrepresentativos mais notáveis.” In-clusive, o mesmo recurso que a pes-quisadora encontrou em tais livros –a utilização de onomatopéias quecaracterizam a fala continuada eincontida – está presente noscartuns de Tonucci, ao representaras lições da professora: Os fenícioseram grandes navegadores e comer-ciantes bla bla bla e rosa viveu oque vivem as rosas bla bla bla blabla bla a soma de dois números blabla a Groenlândia é delimitada aonorte bla bla ao sul bla bla as vér-tebras. Já Quino, entre outros qua-drinhos, nos traz uma cena tradicio-nal em escolas de talhe mais clássi-co, digamos. Frente a uma turma decrianças perfiladas no primeiro diade aula, a diretora pomposamente usada palavra para dar as suas boas vin-das: E a vós, os mais pequeninos,que pela primeira vez vindes a estetemplo do saber, garanto-vos quenele achareis um segundo lar, ondecada professora vos dará aquilo quecada mãe dá a seus filhos: AMOR..

A professora deve ensinar – des-sa caracterização dificilmente have-rá alguma discordância no mundoocidental, e tanto Quino quantoTonucci a ilustram com freqüência.Na tira de Quino (Figura 1), a mestraexerce a tradicional prerrogativa dechamar um aluno, Manolito(Manelinho, no original português),no caso, para responder a uma per-gunta relacionada ao conteúdo porela desenvolvido: a família silábica

Figura 1.

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do P. No caso específico, o humor datira não coloca a professora naberlinda, mas advém da expectativade Mafalda de que o colega, tradici-onalmente um aluno malsucedido emsua carreira escolar, diga um palavrão– tipo de palavra vedada no cotidia-no escolar. Embora Manolito sim-plesmente enuncie a palavra “políti-ca”, Mafalda a considera um pala-vrão, pelas conotações negativasque tal termo carrega.

A mestra também deve disciplinarcorpos e mentes infantis, e essafaceta aparece nas historietas deambos os desenhistas. Assim, a pro-fessora de Libertad, uma das origi-nais personagens de Quino, reagecom indignação à recusa da aluninhaem “apontar o rio Neuquén” e grita:Sou a tua professora e tens obriga-ção de me respeitares!! TambémTonucci, ao narrar os “passeios ins-trutivos”, reproduz a profusão deordens disciplinadoras magistraispara os pequenos alunos: Crianças,hoje vamos passear! Sairemos paraver o bairro! / Em frente, em fila dedois / Dêem-se as mãos... não se dis-traiam... / ...Não desçam da calça-da... / E agora, vamos voltar para aaula e cada um de vocês desenha-rá o que mais impressionou. Talvezseja interessante apontar que, a essaúltima ordem, um aluninho desenhajustamente a nuca do coleguinhaque passou todo o passeio na suafrente...

Acima, já citamos uma passagemem que a irritação da professora éretratada por Quino; tambémTonucci a ilustra, através da repro-dução do grito – CHEGA!!! – da pro-fessora, que reage a uma história in-conveniente de um aluninho. Afinal,ser perguntadora, disciplinadora,ensinante e irritada parece que fazparte das imagens de professor/a emvários produtos culturais nãocompromissados com ideários peda-gógicos mais oficiais, digamos – his-tórias em quadrinhos, livros infanto-

juvenis, filmes, etc..Julgo importante registrar o quan-

to o humor de tiras de Quino e dese-nhos de Tonucci provém, por vezes,do costumeiro “descompasso” en-tre o universo escolar – trazido nafigura da professora – e o mundo quese desenrola “lá fora” – concretiza-do nas respostas, expectativas e pen-samentos dos alunos. Em achadosemelhante ao de Silveira (2004), emsua análise de piadas, este é um filãofreqüentemente explorado pelos de-senhistas que analisamos. No casode Tonucci, que trabalha mais espe-cificamente com um personagem alu-no criança, de alma infantil (ao con-trário da precocidade política deMafalda), esse descompasso é insis-tentemente explorado. Ele está pre-sente, por exemplo, numa tira em que,face ao pedido da professora de quetodos os alunos levem prendedoresde roupa no dia seguinte, quatro cri-anças são retratadas ao entrarem naescola imaginando diferentes usospara tais prendedores – como ins-trumentos para brincadeiras, comoenfeites de cabelo, como suportespara a feitura de brinquedos, etc. Nacena seguinte, os mesmos quatro alu-nos saem com objetos padronizadosfeitos com seus prendedores de rou-pa, enquanto se ouve a voz da mes-tra: Levem este lindo porta-canetasao papai. Efetivamente este é um dosgrandes motes do desenhista italia-no – o confronto entre amultiplicidade de possibilidades deação ou de produção que o aluninhoprojeta para o espaço escolar, por umlado, e a padronização e restrição de

atividades imposta pela instituiçãoescolar. Também nas tiras deMafalda, personagem aluna maismadura, mais crítica, mais politizada,e seus amigos, freqüentementeinconformados com o teor das regrase conteúdos escolares, encontra-secom freqüência tal desencontrocomo fonte do humor. Assim, na Fi-gura 2, Miguelito reclama a Mafaldaque a professora havia ensinadouma notícia de 1492 (a descoberta daAmérica), como se o ensino de His-tória não tivesse mais significadonum tempo de tanta ênfase àcontemporaneidade e à novidadecomo o atual...

Avaliando sempre: umatarefa de professora

Dentre as atribuições de uma pro-fessora conforme o velho figurino,certamente está a prática das formasmais tradicionais de avaliação, e adestacamos em item específico devi-do ao expressivo espaço que elatoma nos desenhos de ambos osautores. Manolito, o personagem deQuino, que é mais ligado a questõescomerciais e costuma interpretar omundo sob tal ponto de vista, recla-ma, por exemplo, da constância comque a professora coloca MAU emseus trabalhos, sem considerar queele é um “cliente” (nesse sentido, ojovem personagem parece prefigurar,em décadas, a lógica atual da educa-ção neoliberal). Já em outra tira, aprofessora, da qual apenas aparecea voz, questiona Miguelito sobre os“nossos antípodas”. Ao ouvir a es-

Figura 2.

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tranha resposta “japonésidos”, elaproclama: “zero, estúpido”, eviden-ciando a tradicional função avaliativadas perguntas de sala de aula. Tam-bém em outra historieta, vê-se a pro-fessora encenando o tradicional ri-tual prévio às provas escritas, ao pro-clamar: “Bom, agora podem guardaros livros todos. Mas deixem o lápis,a borracha e uma folha em branco naqual vão escrever: Prova Escrita”.

Se voltarmos ao questionamentooral dos alunos com vistas a umaavaliação, podemos interpretar tira(Figura 3) em que Libertad é questio-nada. O foco na resolução de opera-ções matemáticas embutidas em“problemas escolares” – gênero tex-tual em que a história contada, comomero pretexto para a contextualizaçãode uma pergunta matemática, deveser desprezada – está presente natira acima. Nela, a raiz do humor resi-de no desrespeito de Libertad a essaregra escolar e sua interpretação doproblema como a descrição de umasituação de relacionamento humano.Dentro desse quadro interpretativopeculiar, não escolar, mas respeitan-do, por outro lado, a regra pedagógi-ca do discurso docente de que umasílaba pode ser entendida como umapista para a resposta correta (com...conflituoso), Libertad desconcerta aprofessora e nos provoca o riso.

Mas, mesmo nos moldes das no-vas pedagogias, tão marcadas pelasteorias psicológicas, a avaliação nãodeixa de ser um dos principais moto-res da vida escolar, e algumas des-sas mais recentes inspiraçõesavaliativas – que têm florescido maisna educação infantil e nos anos ini-ciais de escolaridade – não passamincólumes pelo traço de Tonucci.

Comecemos por um cartum (Figu-ra 4), cuja expressividade parece dis-pensar qualquer interpretação adici-onal. Se aí já não encontramos a apli-cação de uma prova ou a obsessãopor notas, exames e aprovação, no-vas facetas de uma avaliação preo-

cupada com a normalidade(freqüentemente inspirada nos diag-nósticos médicos e psicope-dagógicos) são sugeridas através dacaneta da professora que atribui umcaráter “especial” (anormal, diría-mos) ao menino, que parece se dis-tinguir dos outros, homogeneizados,apenas pela diferença dos cabelos...

Em outro cartum, intitulado “Aavaliação (1)”, que se tornou bastan-te conhecido por ter sido utilizadoem uma questão de um Provão dePedagogia do Ministério de Educa-ção e Cultura, a professora tambémescreve breves frases descritivas de

seus alunos – Luis é vivo demais /Ana é desorganizada / Pierre éabúlico / Henrique é deficiente /Carlos é temperamental / Luísa étímida demais / Maria é mal-educada – para concluir com Só Joséé normal. A leitura das imagens dosalunos descritos e da professora in-dica que José e a professora são se-melhantes, o que sugere o quantode busca do próprio espelho podeestar implícito em pareceres escritose impressionísticos das novas avali-ações formativas ou somativas.

Vale a pena referir, ainda, outra tirade Tonucci, que parece especialmen-

Figura 3.

Figura 4.

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te interessado em problematizar ocaráter das avaliações mais recente-mente apregoadas. Assim, em umatira intitulada “Deve-se observaratentamente o comportamento dacriança”, o desenhista italiano repro-duz um menino em várias atividadesda educação infantil – montando blo-cos, brincando, participando deteatrinho, colocando um casaco – ea professora, que o “espiona”. Aochegar em casa, o aluninho (no caso,uma espécie de miniMafalda) fala àsua mãe: Mamãe, estou preocupa-do... Acho que a professora está sus-peitando de mim... Não por acaso,vários analistas das novas pedago-gias já apontaram o caráter de con-trole e vigilância das novas avalia-ções, constantemente descritascomo libertadoras...

A professora exigida pornovos discursos

De certa maneira, ao final do tópi-co precedente, já efetuamos uma li-gação com o presente subtítulo,onde comentamos brevemente osdesenhos em que os autores retra-tam as novas exigências e preceitosque se colocam para as professoras,a partir das pedagogias mais recen-tes, em geral inspiradas pelas áreaspsi. Quino é bastante parcimoniosonessa área, e, evidentemente, issoestá relacionado à época em que osdesenhos foram feitos: os anos com-preendidos entre 1964 e 1973, quan-do, possivelmente na escola argen-tina (e também diríamos que na bra-sileira), esses novos ventos aindasopravam de forma tímida. Tonuccijá é bastante mais contundente nosseus cartuns; em um deles, intitulado“Entre a casa e a escola”, uma pro-fessora de escola “ativa” incentivao aluno da educação infantil a fazermuitas e variadas atividades: E ago-ra, crianças, vamos pintar com asmãos / Mais uma volta... depressa! /

Você também quer estes aqui? (aooferecer mais blocos de construçãopara o aluninho). Em outro hilariantedesenho, a professora parece se es-merar em seguir uma receita pedagó-gica atualizada para explicar corres-pondência entre conjuntos, ao ma-nusear material concreto e descre-ver concomitantemente suas ações:Queridas crianças, hoje brincare-mos com as quantidades. No círcu-lo grande, há cubos e, no círculopequeno, há bolinhas. Em qual cír-culo há mais objetos? Se colocar-mos uma bolinha ao lado de cadacubo, vocês verão que sobram cu-bos. Isto quer dizer então que...Oefeito cômico se origina do breve di-álogo entre duas alunas, quedesmistifica a pretensa simplificaçãoda operação concreta feita pela pro-fessora: – Mas, o que ela está falan-do? – Nada, ela quer explicar demaneira simplificada que 6 é o do-bro de 3. Ainda na área das opera-

ções lógicas matemáticas, Tonuccidesenha uma “Homenagem a Piaget”(sic), sob a forma de uma historietaem que a professora aplica o teste deconservação da massa ao pequenoaluno, que responde “erroneamen-te” à pergunta “Onde há mais?”, emface da comparação entre dois volu-mes iguais de massa, distribuídos emuma única bola, por um lado, e emcinco bolinhas, por outro. A lógicainfantil, não captada pela professo-ra, é mostrada no diálogo do peque-no aluno e sua mãe: – O que vocêsfizeram na escola hoje? – Bom, aprofessora queria me convencer queum é igual a cinco...

Mas as novas exigências que sefazem à professora não se restringema aplicações da teoria piagetiana àescola: assim, a conveniência de au-las de educação sexual faz parte daagenda dos mestres atuais, e isso éilustrado pelo cartum da Figura 5.Evidentemente perturbada – o rubor

Figura 5.

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das faces, as hesitações e as frasesincompletas, as mãos em um gestonervoso revelam isso – a professorainicia sua preleção de educação se-xual, lançando mão dos tradicionaiselementos dos reinos vegetal e ani-mal, enquanto os aluninhos, senta-dos, estão pensando, todos, numarelação sexual humana, entre homeme mulher, conforme é sobejamentemostrada na mídia contemporânea.Mais uma vez, a repetida questão dodescompasso entre escola – vida forada escola, conteúdo escolar – conhe-cimentos e interesses dos alunos étematizada.

Como é extenuante serprofessora!

A professora nos desenhos deQuino e Tonucci, entretanto, não évista apenas em sua face irascível,controladora, disciplinadora, avalia-dora e transmissora de conteúdos.Se, na obra dos dois desenhistas, elanão aparece como uma mulher sen-sual – traço com que ela é retratadaem outros artefatos culturais –, étrazida, por vezes, não na sua facepedagógica, mas numa perspectivaque privilegia a docência como pro-fissão e ocupação também extenu-ante. A tira (Figura 6) mostra a refle-xão de Mafalda que também inclui amestra em seus pensamentos.

Interessante relembrar que umamestra cansada e desanimada de seutrabalho profissional também apare-ce nos quadrinhos do personagemChico Bento, de autoria doquadrinista Mauricio de Sousa, con-forme analisa Lemes (2005), em suadissertação de mestrado.

Já em outra tira de Mafalda, a per-sonagem central tece, para sua mãe,algumas considerações sobre o com-portamento de sua mestra, que reve-lam uma consciência do que ator-menta aquela para além da sala deaula: Mas se nos portamos mal, [aprofessora] desorienta-nos porque

se põe a olhar com olhos de fúria eficamos a tremer de medo... ou en-tão usa sua expressão de escassoordenado e faz-nos chorar de pena.

Problemas dentro e fora da salade aula – indisciplina, alunos quenão aprendem, baixos ordenados –fazem com que seja “necessário au-xiliar o professor”, que é o título dosugestivo desenho de Tonucci (Fi-gura 7), em que a professora, des-maiada, é socorrida por um profissi-onal da saúde.

Mas mais previsível do que a ne-cessidade de ajuda de um agente desaúde numa ocasião de desmaio, éa chegada das férias escolares. Naseqüência de desenhos (Figura 8)do autor italiano, a despedida cho-rosa (autêntica? encenada?) do

Figura 6.

Figura 7.

Figura 8.

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aluninho e da professora é sucedidapela explosão de alegria de ambos,que jogam para o alto seus objetosescolares e desandam a correr desa-baladamente para longe do prédioescolar. Como anuncia o título do de-senho, para ambos é chegada a horado desejado “Tchau, escola!”

Últimas palavras

Sem que nosso intuito tenha sidoaqui esgotar as leituras e interpreta-ções dos mais de cem desenhos deQuino e Tonucci, apenas rastreamose agrupamos os traços mais eviden-tes com que a professora compareceem tais desenhos. Temáticas tradici-onais do humor sobre a escola alicomparecem, como a exibição de umaprofessora controladora, ensinante,perguntadora contumaz e irritada,confrontada com alunos que nãoatendem aos preceitos escolares, nãoestudam o suficiente e dão respos-tas absurdas do ponto de vista dacultura escolar. O desencontro entreesses dois “lados” – professora ealunos, ensinamentos e cultura es-colar e vivências mundanas e cotidi-anas – é responsável por grande partedas situações cômicas criadas, comespecial ênfase às situações de ava-liação, tanto de corte tradicional,quanto aquelas informadas pelas

mais recentes visões pedagógicas.O caráter extenuante e estressantedo ofício de mestre também serve depano de fundo para o humor sobre aprofessora, profissional que precisa,ainda, se adequar aos novos discur-sos pedagógicos. Deixamos para tra-balho posterior, entretanto, outrastemáticas menos recorrentes nos de-senhos de ambos os autores anali-sados, quais sejam as questões degênero envolvidas em algumas situ-ações, a paixão do aluninho pela pro-fessora, a ênfase a algumas práticasescolares tradicionais, como a “pes-quisa” escolar, a cópia, etc. Taistemáticas, aliadas à possibilidade deaprofundamento das aqui focaliza-das, apontam para a complexidade einteresse da análise do discurso dosquadrinhos e cartuns sobre a educa-ção, na medida em que, com maiscontundência e economia semântica,eles colocam o dedo nas feridas deuma escola que se reconhece em crise,por um lado, mas que, por outro, nãoescapa às injunções da racionalidademoderna que a vê como uma potentemáquina “produtora de cidadãos”.

Referências

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TONUCCI, F. 1997. Com olhos de crian-ça. Porto Alegre, Artes Médicas.

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Rosa Maria Hessel SilveiraULBRA / UFRGS

06_Art05_RMHSilveira.pmd 01/02/2006, 16:55236