ARTE INDÍGENA KINIKINAU EM MATO GROSSO …© du Quebec en Outaouais. Ao Professor Ph.D Thibault...

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1 UNIVERSIDADE ANHANGUERA-UNIDERP KAROLINNE SOTOMAYOR AZAMBUJA CANAZILLES ARTE INDÍGENA KINIKINAU EM MATO GROSSO DO SUL, BRASIL CAMPO GRANDE – MS 2016

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UNIVERSIDADE ANHANGUERA-UNIDERP

KAROLINNE SOTOMAYOR AZAMBUJA CANAZILLES

ARTE INDÍGENA KINIKINAU EM MATO GROSSO DO SUL, BRASIL

CAMPO GRANDE – MS 2016

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KAROLINNE SOTOMAYOR AZAMBUJA CANAZILLES

Arte indígena Kinikinau em Mato Grosso do Sul, Brasil

Tese apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Meio Ambiente e

Desenvolvimento Regional da

Universidade Anhanguera-Uniderp, como

parte dos requisitos para a obtenção do

título de Doutor em Meio Ambiente e

Desenvolvimento Regional.

Comitê de Orientação:

Prof. Dr. Gilberto Luiz Alves

Profa. Dra. Rosemary Matias

CAMPO GRANDE – MS 2016

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Anhanguera-Uniderp

Canazilles, Karolinne Sotomayor Azambuja.

Arte indígena Kinikinau em Mato Grosso do Sul, Brasil / Karolinne

Sotomayor Azambuja Canazilles. -- Campo Grande, 2016.

81f. : il. color.

Tese (doutorado) – Universidade Anhanguera-Uniderp, 2016.

“Orientação: Prof. Dr. Gilberto Luiz Alves. ”

1. Artesanato indígena – Mato Grosso do Sul. 2. Artes gráficas. 3.

Ceramistas Kinikinau. 4. Inovação tecnológica. 5. Políticas públicas.

Título.

CDD 21.ed. 745.5098171

760

C221a

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus, que me fortalece todos os dias.

Agradeço também ao Igor, meu companheiro amado, e à nossa filha Nickole,

que é o principal motivo de todas as nossas conquistas. Aos meus pais, à

minha tia Stella, à minha avó Eva, às minhas irmãs, Jackelinne e Katiuscia, e

aos meus familiares pelo incentivo afetuoso.

Ao meu querido Professor e orientador Dr. Gilberto Luiz Alves, grande

amigo, que me passou conhecimentos valorosos nesses cinco anos e meio,

entre mestrado e doutorado. À minha coorientadora e amiga Professora Dra.

Rosemary Matias, pelo encorajamento, pelo carinho e pela orientação zelosa.

Ao Prof. Dr. Sandino Hoff, à Profa. Dra. Silvia Helena Andrade de Brito, ao

Prof. Dr. José Francisco Ferrari, à Profa. Dra. Samira Saad Pulchério Lancillotti

e à Profa. Dra. Lucia Elvira Alicia Raffo de Mascaró por todas as consideráveis

contribuições dadas a este trabalho durante a qualificação e a defesa.

À Professora Ph.D Charmain Levy, pelas orientações relevantes durante

o período de estágio sanduíche no Canadá e pelo recebimento acolhedor na

Université du Quebec en Outaouais. Ao Professor Ph.D Thibault Martin pelas

contribuições significativas dadas à tese durante o congresso realizado na

Université du Québec à Rimouski. Aos Professores e colegas que também

colaboraram indiretamente com este trabalho durante o congresso ocorrido na

Carleton University, em Ottawa. À artista indígena Mohawak, Natasha Smoke

Santiago e toda a sua família, por nos receberam com tanto apreço em sua

residência em Fort Covington, NY. Aos indígenas norte-americanos

entrevistados nos centros culturais que visitei. Aos amigos que fiz no decorrer

dessa trajetória.

À Universidade Anhanguera Uniderp, aos Professores Doutores, aos

colegas e aos funcionários do Programa de Pós-graduação. À Capes pela

concessão da Bolsa de estudos no Brasil e no exterior. À Funarte pelo

incentivo na realização do projeto Moté Ypoti Kinikinau: por um fortalecimento

étnico aprovado em 2013. À Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural

do Minc pelo Prêmio Pontos de Cultura Indígena em 2015. Ao Rodrigo Gomes

dos Santos, coordenador da Funai de Bonito-MS, e a toda a equipe da

FUNASA. À grande artista e amiga Agueda Roberto e toda a sua família, pela

hospitalidade, pelo imenso carinho e pela troca de informações preciosas.

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SUMÁRIO 1. Resumo Geral................................................................................................6

2. General Summary..........................................................................................7

3. Introdução Geral............................................................................................8

4. Revisão de Literatura..................................................................................12

5. Referências Bibliográficas.........................................................................18

6. Artigos Artigo I..............................................................................................................24

O artesanato como instrumento de identidade étnica: o caso dos Kinikinau de Mato Grosso do Sul, Brasil......................................................24 Resumo............................................................................................................24 Abstract............................................................................................................25 Introdução................................................................................................. .......25

Procedimentos Metodológicos......................................................................27

Resultados e Discussão.................................................................................29

Conclusão........................................................................................................45

Referências Bibliográficas.............................................................................46

Artigo II.............................................................................................................50 Arte indígena Kinikinau em Mato Grosso do Sul, Brasil.............................50 Resumo............................................................................................................50 Abstract............................................................................................................50 Introdução........................................................................................................51

Procedimentos Metodológicos......................................................................54

Resultados e Discussão.................................................................................56

Conclusão....................................................................................................... .73

Referências Bibliográficas.............................................................................75

7. Conclusão Geral..........................................................................................80

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1. Resumo Geral

Os Kinikinau foram considerados “extintos” e sofreram um período de

invisibilidade por quase um século. Sua resistência influenciou na busca por

tradições esquecidas que resultou na “reinvenção” do artesanato. Este, na

condição de mercadoria, tornou-se instrumento de identidade étnica e na

atualidade vem apresentando valorosas expressões estéticas. Assim, este

trabalho tem por objeto a arte indígena Kinikinau em Mato Grosso do Sul. Integra a linha de pesquisa Sociedade, Ambiente e Desenvolvimento Regional

Sustentável. O objetivo geral deste estudo é discutir a relação da cerâmica

Kinikinau produzida na atualidade com o caráter de objeto artístico, envolvendo

também seus aspectos sociais, econômicos e políticos. Para isso, o primeiro

objetivo específico procura explicar como e por que o artesanato Kinikinau

contribui para a afirmação da identidade do grupo e qual sua relação com o

mercado, bem como sua relação com projetos de inovação instaurados pelo

Estado por meio de políticas públicas. O segundo objetivo específico é analisar

a relação da cerâmica Kinikinau com o elemento formal que a configura como

objeto de arte. As fontes empíricas utilizadas foram levantamentos a campo,

observação sistemática, registros fotográficos, entrevistas semiestruturadas,

além de fontes documentais e fontes historiográficas. Conclui-se que o

mercado é determinante na luta pela afirmação da identidade étnica Kinikinau

porque dá visibilidade ao grupo perante a sociedade capitalista. Porém, as

condições para o escoamento desse artesanato revelam, contraditoriamente,

um grande número de limitações à sua comercialização e apesar de existirem

alguns esforços pontuais, as políticas públicas voltadas a projetos de melhoria

referentes ao processo de produção e comercialização da cultura material

Kinikinau ainda são inexistentes. Também verificou-se que a arte indígena

Kinikinau se manifesta em três diferentes momentos. Quando comunidade

primitiva, no momento do ostracismo e hoje, na perspectiva do mercado. É

nesta última que o artesanato Kinikinau ganha status de arte, e, devido a

ascendência de um valor tipicamente burguês, a individualidade do artista

indígena começa a ser reconhecida.

Palavras-chave: Artesanato indígena, Artes gráficas, Inovação tecnológica,

Políticas públicas.

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2. General Summary

The Kinikinau were considered "extinguished" and suffered a period of

invisibility for almost a century. Its strength influenced the search for forgotten

traditions that resulted in the "reinvention" of the handicraft. This, like

merchandise, became ethnic identity tool and today is showing valuable

aesthetic expressions. This work is engaged in the Kinikinau indigenous art in

Mato Grosso do Sul. It involves researches of Society, Environment and

Sustainable Regional Development. The aim of this study is to discuss the

relationship of Kinikinau ceramics produced today with their artistic character,

involving their social, economic and political aspects. For this, the first specific

objective seeks to explain how and why the Kinikinau handicrafts contributes to

the group's identity statement and what is its relationship with the market and its

relationship with innovation projects performed by the State through public

policies. The second specific objective is to analyze the relationship of Kinikinau

ceramic with the formal element that sets up it as an object of art. Empirical

sources like surveying the field, systematic observation, photographic records,

semi-structured interviews, and documentary sources and historiographical

sources were used. It concludes that the market is decisive in the struggle for

the affirmation of ethnic identity Kinikinau because it gives visibility to the group

in the capitalist society. However, the conditions for the marketing of this

handicraft , contradictorily, show a large number of restrictions on their

marketing and although there are some specific efforts, public policies aimed at

improvement projects for the production process and marketing of Kinikinau

material culture are still inexistent. Also it has been found that indigenous art

Kinikinau manifests itself in three different moments. When primitive community

at the time of ostracism and today, in the market prospect. In this last, Kinikinau

handicrafts wins art status, and because of the ascendancy of a typically

bourgeois value, the individuality of the indigenous artist begins to be

recognized.

Keywords: Indian handicrafts, Graphics arts, Tecnologic innovation, Public

policy.

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3. Introdução Geral

O artesanato indígena ou ancestral (ALVES, 2014) está representado no

estado pelas produções das etnias Kadiwéu (GRAZIATO, 2008; KOMIYAMA,

2014), Kinikinau1 (SANTOS, 2011; CANAZILLES, 2013), Terena (CHAVES,

2015), Guarani (MOTA, 2011; MARQUES, 2016) e Guató (BORTOLOTTO e

GUARIM NETO, 2005). Este trabalho tem por objeto a arte indígena Kinikinau

em Mato Grosso do Sul.

Os Kinikinau foram considerados “extintos” (OLIVEIRA, 1976; RIBEIRO,

1986) por quase um século e, durante todo esse tempo de invisibilidade, foram

obrigados a se registrar como Terena (SILVA, 2007; SOUZA, 2008),

silenciando sua própria identidade. Na atualidade, vivendo em território alheio,

buscam reconhecimento oficial e lutam pela reconquista de seus territórios

tradicionais.

O artesanato Kinikinau, principalmente a cerâmica, torna-se uma

ferramenta importante para auxiliar na busca pelo fortalecimento étnico. Por

meio desse instrumento, os Kinikinau podem ganhar visibilidade no processo

de reemergência desse grupo no atual cenário étnico sul-mato-grossense.

Apesar da cerâmica Kinikinau dar continuidade a uma antiga tradição

cultural Guaná, suas ornamentações produzidas na atualidade não são

inerentes às expressões dos elementos culturais dos antepassados Kinikinau,

mas são uma “reinvenção” das mulheres e homens dessa etnia, devido ao que

Giovani José da Silva e José Luiz de Souza denominam como “vontade de

diferença” (SILVA e SOUZA, 2008).

Dentre os artesãos Kinikinau que se destacam, está Agueda Roberto. A

artesã indígena detém o controle teórico-prático e o domínio de todo o

processo de produção da cerâmica Kinikinau, além de evidenciar em suas

peças manifestações de ordem estética que estão ligadas à “vontade de

beleza” (RIBEIRO, 1980). Ela dedica muitas horas às suas ornamentações. O

1 Durante o Seminário “Povo Kinikinau: Persistindo a Resistência”, realizado na cidade de Bonito – MS, entre os dias 16 e 18 de junho de 2004, foi redigida a Carta de Bonito, que estabelece que o etnônimo do grupo passa a ser Kinikinau, com base em documentação histórica.

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artesanato de Agueda Roberto, por seu valor artístico, tem grande potencial de

consumo no mercado.

Com base nestas informações e com intuito de dar continuidade aos

estudos já desenvolvidos com a cultura material Kinikinau, o objetivo geral

desta pesquisa é analisar a relação da cerâmica Kinikinau produzida na

atualidade com o caráter de objeto artístico que se define, segundo BOAS

(1947), pela presença de um elemento formal que se manifesta, nas artes

gráficas e plásticas, por meio da simetria, da repetição rítmica e da acentuação

da forma. Isso implica analisar também seus aspectos sociais, econômicos e

políticos, que a definem como instrumento de identidade étnica do grupo

(CANAZILLES, 2015).

Para isso, o primeiro objetivo específico é analisar o artesanato Kinikinau

em Mato Grosso do Sul dentro de um contexto sócioeconômico. Procura

explicar como e porque ele contribui para a afirmação da identidade do grupo

indígena e qual o papel do escoamento desse artesanato no mercado, bem

como sua relação com projetos de inovação e melhoria referentes ao processo

de produção e comercialização da cultura material indígena instaurados pela

instância provedora de políticas públicas, o Estado.

O segundo objetivo específico se propõe a analisar a cerâmica

confeccionada por uma das artesãs da aldeia, Agueda Roberto, por meio do

estudo de suas modelagens e ornamentações. Essa pesquisa possibilita

identificar o elemento formal intrínseco das artes gráficas e plásticas que a

qualifica como objeto de arte. Permite também averiguar características

singulares como originalidade, exigência do campo artístico e manifestações de

ordem estéticas ligadas à “vontade de beleza” (RIBEIRO, 1980) que

proporcionam um significado único e diferente para cada peça.

Análises de obras relevantes que conceituam e exploram as categorias

centrais da pesquisa, como identidade étnica (BARTH, 1995), mercado

(ALVES, 2015), artesanato (ALVES, 2014) e arte (BOAS, 1947; RIBEIRO,

1980; RIBEIRO, 1989; VIDAL, 1992; OCVIRK et al., 2014), asseguraram

suporte teórico para discutir o objeto de estudo. Obras de outros autores

(OLIVEIRA, 1976; PEIXOTO e SCHMITZ, 1998; SILVA e SOUZA, 2008;

ALBUQUERQUE SOUZA, 2009; SOUZA, 2009; SANTOS, 2011; CANAZILLES,

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2013) também foram importantes para contextualizar e levantar informações

sobre o objeto.

Dentre essas fontes teóricas, nortearam a análise os estudos

antropológicos de BARTH (1995), sobre a natureza das fronteiras existentes

entre os diferentes grupos étnicos, os estudos de ALVES (2015), que

possibilitaram uma compreensão do mercado do artesanato indígena em Mato

Grosso do Sul, e a obra de BOAS (1947), que permitiu identificar no artesanato

Kinikinau o elemento formal existente nas artes gráficas e plásticas.

Os estudos teóricos de SILVA e SOUZA (2008) sobre o movimento

político dos Kinikinau em direção à sua reemergência contribuíram para obter

informações relevantes sobre o objeto e para a sua contextualização, bem

como as fontes secundárias que tratam da produção e comercialização do

artesanato indígena Kinikinau na região (CANAZILLES et al., 2015).

Quanto ao levantamento de fontes primárias, os dados empíricos

englobaram observações sistemáticas, registros fotográficos e entrevistas

semiestruturadas com comerciantes e artesãos, por meio de visitas a diferentes

postos de troca da cidade de Bonito, bem como levantamentos a campo na

Reserva indígena Kadiwéu, aldeia São João, em Porto Murtinho. As Entrevistas semiestruturadas realizadas na aldeia deram-se com a

Presidente da Associação Indígena dos Ceramistas Kinikinawa, Agueda

Roberto. Os questionamentos principais das entrevistas levaram em

consideração os aspectos relacionados ao escoamento da produção das

artesãs para o mercado e as características do processo de modelagem,

ornamentação e acabamento da cerâmica Kinikinau.

Como a pesquisa compreende seres humanos, o presente estudo teve

análise e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade

Anhanguera-Uniderp sob o Parecer Consubstanciado nº 1.410.645. Por se

tratar de uma área temática especial que engloba populações indígenas, este

trabalho também foi analisado e aprovado pela Comissão Nacional de Ética em

Pesquisa (CONEP), por meio do portal Plataforma Brasil, sob o Parecer

Consubstanciado nº 780.523. Todos os entrevistados receberam o TCLE -

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido com os objetivos da pesquisa

expostos claramente e o direito de se retirar a qualquer momento.

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É relevante elucidar que os estudos e projetos voltados à população

indígena Kinikinau são ainda incipientes. Eles abordam a história, a educação

escolar, os aspectos etnolingüísticos, a resistência desse grupo quando da

suposta “extinção” e a produção e comercialização de seu artesanato (SILVA e

SOUZA, 2003; VILHALVA, 2004; COUTO, 2006; SOUZA, 2008;

ALBUQUERQUE SOUZA, 2009; SANTOS, 2011; CASTRO, 2011;

CANAZILLES, 2013).

O assunto a ser discutido neste estudo se diferencia por tratar o

artesanato Kinikinau na sua dupla condição de mercadoria, bem como de

instrumento de identidade étnica. O seu valor de troca, associado na atualidade

também à sua condição de objeto artístico, é determinante para entender a sua

presença no mercado da sociedade capitalista. O seu significado, determinado

pelo próprio grupo, como um instrumento de identidade étnica, passa a auxiliar

na afirmação da etnia. Esses elementos, em conjunto com uma reflexão da

atuação do Estado, são relevantes para favorecer o fortalecimento da produção

e comercialização do artesanato Kinikinau.

É importante informar que, devido a um estágio de pesquisa realizado

entre os anos de 2014-2015 no Programa de Doutorado em Ciências Sociais

Aplicadas da Université du Quebéc en Outaouais, houve modificações no

projeto original. Ao discutirmos o artesanato Kinikinau como instrumento de

afirmação da identidade étnica do grupo, foi acrescentada à tese uma análise

teórica da obra clássica de BARTH (1995), desenvolvida no Canadá sob a co-

orientação da Professora Ph.D. Charmain Levy. No entanto, foram também

suprimidos alguns componentes que, por sua relevância, serão desenvolvidos

posteriormente como parte integrante de um projeto de inovação tecnológica

ao artesanato indígena do estado. Esses componentes englobam análises

laboratoriais da composição química dos pigmentos vegetais utilizados no

processo de ornamentação, identificação fitoquímica e fisico-química das

estruturas envolvidas na produção da cerâmica e a caracterização desta

envolvendo fichas catalográficas e registros fotográficos.

O projeto denominado “Artesanato indígena, mudanças e inovações

tecnológicas em Mato Grosso do Sul” será desenvolvido em conjunto pelas

Universidades Anhanguera-Uniderp, Universidade Federal de Mato Grosso do

Sul e Universidade de Manitoba, Canadá. Contarão com o apoio da Fundect –

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Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do

Estado de Mato Grosso do Sul, da FCMS - Fundação de Cultura de Mato

Grosso do Sul, da Secretaria de Cultura, Turismo, Empreendedorismo e

Inovação de Mato Grosso do Sul e do Canadian Consortium for Performance

and Politics, Canadá.

4. Revisão de Literatura Primeiramente, para introduzir este trabalho, foi fundamental relatar uma

breve trajetória histórica da etnia Kinikinau. Para isso o artigo de CANAZILLES

et al. (2013), intitulado “Os Kinikinau: trajetória histórica e a reinvenção do

artesanato”, esclareceu aspectos da origem da etnia, seu desaldeamento, a

suposta “extinção” étnica, o reagrupamento de seus membros na Reserva

Indígena Kadiwéu e os aspectos da mobilização política associados à

reivindicação de etnicidade própria.

Analisou-se também a dissertação de Mestrado do biólogo e indígena

Kinikinau Rosaldo de Albuquerque Souza, “Sustentabilidade e Processos de

Reconstrução Identitária entre o Povo Indígena Kinikinau (Koinukunôen) em

Mato Grosso do Sul” (ALBUQUERQUE SOUZA, 2012), a qual está

fundamentada na memória de anciãos Kinikinau, que abordam a trajetória

histórica ocorrida entre as décadas de 1920 a 1940, e de outros entrevistados

que descrevem também as manifestações culturais da etnia incorporadas na

atualidade, como a dança, a produção do artesanato e a extração do mel.

Para José da Silva e Souza, “a força da identidade étnica Kinikinau está

expressa e impressa na produção de cerâmicas. [...] há entre os Kinikinau toda

a força identitária da diferenciação, uma verdadeira ‘vontade de diferença’”

(SILVA e SOUZA, 2008, p.30). Acentue-se que a “reinvenção” do artesanato

Kinikinau, na atualidade, é uma evidência da necessidade de autoafirmação

desse grupo étnico, que, ao mesmo tempo, supera a confusão que os

identificou, no passado, com a etnia Terena.

Estudos e conceitos teóricos que envolvem categorias como identidade

étnica, mercado, artesanato e arte asseguraram suporte para discutir a arte

indígena Kinikinau em Mato Grosso do Sul. A obra denominada “Les groupes

ethniques et leurs frontières” (BARTH, 1995) sobre o processo de constituição

dos grupos étnicos e a natureza das fronteiras existentes entre eles foi

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extremamente relevante porque discute a manutenção das fronteiras sociais

para a preservação da identidade étnica de um grupo.

Segundo o autor as fronteiras sociais estabelecem, por meio da

existência de critérios de avaliação e de julgamento, se uma pessoa pertence a

um determinado grupo étnico ou não. Elas implicam, também, uma

organização do comportamento e das relações sociais. BARTH (1995), afirma

que “as diferenças culturais podem persistir apesar do contato interétnico e da

interdependência entre etnias”, devido a existência dessas fronteiras.

Seus estudos podem explicar porque diferentes etnias preservaram suas

identidades mesmo passando por processos de aculturação. O foco de análise

da obra de Fredrik Barth evidenciou a afirmação da etnia Kinikinau por meio do

artesanato e esclareceu a razão pela qual o grupo manteve sua identidade

étnica, apesar do grande período de invisibilidade quando foram identificados

como Terena.

Os estudos de ALVES (2015), igualmente relevantes, possibilitaram uma

análise mais aprofundada do papel do escoamento do artesanato Kinikinau no

mercado. Para o autor a afirmação da identidade étnica por meio do artesanato

é essencial ao movimento político organizado pela etnia, porém ela está

subordinada ao mercado, elemento definidor da sociedade capitalista.

ALVES (2015) afirma categoricamente que o mercado foi determinante

para a sobrevivência da cerâmica das diferentes etnias de Mato Grosso do Sul,

inclusive do emergente artesanato Kinikinau que já nasceu sob o signo da

mercadoria. “Sob essa forma, se igualam. Só na condição de mercadorias

puderam superar a crise de meados do século XX e só nessa condição sua

reprodução tornou-se viável” (ALVES, 2015, p.18).

Segundo o autor, a partir da década de 1970 houve uma intensificação

no consumo dos artefatos indígenas, no Estado, por determinação do mercado

turístico, de pesca, inicialmente, e do ecoturismo, em seguida. O autor também

discute as mudanças ocorridas no artesanato indígena produzido em Mato

Grosso do Sul, como decorrência de demandas também geradas pelo

mercado.

No trabalho “O artesanato em Mato Grosso do Sul: análise centrada na

organização técnica do trabalho” ALVES (2014), conceitua e esclarece o

significado de artesanato. Para ele, o artesão tem o domínio teórico-prático de

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todas as operações técnicas necessárias à produção do objeto artesanal e se

configura como um trabalhador qualificado. Logo, o artesanato se contrapõe à

manufatura, que introduz a divisão do trabalho, expropriando o trabalhador de

muitas das habilidades do processo de trabalho como um todo. O trabalhador

deixa de ser qualificado para se transformar em especialista. Ainda observa

que muitas atividades “artesanais”, na atualidade, incorporaram a organização

técnica manufatureira e não podem se configurar mais como artesanato. Essa

organização técnica manifestada entre os “artesãos” está relacionada ao que

ele denomina como a ideologia do empreendedorismo, disseminada por muitas

instituições sociais. A visão empreendedora passa a considerar o artesanato

como um negócio. A manufatura foi a maneira encontrada por essas

instituições de ajustar o “artesanato” às exigências do mercado.

O autor também constrói uma visão geral das diferentes modalidades de

artesanato no Estado, classificando-as em artesanato ancestral, espontâneo e

induzido. O artesanato indígena está compreendido na modalidade ancestral

porque é um artesanato “de caráter coletivo. As atividades artesanais

correspondentes tendem a reiterar, no geral, os procedimentos, as técnicas, a

utilização de recursos naturais e a divisão sexual do trabalho praticados por

gerações anteriores” (ALVES, 2014, p.5-6). Essa condição não elimina a

possibilidade de que se torne objeto de arte.

Para compreender o elemento formal existente nas artes gráficas e

plásticas a obra de Franz Boas “El Arte Primitivo” (BOAS, 1947) foi de extrema

importância. Considerada um clássico na análise das características

fundamentais da arte primitiva, determina as circunstâncias dinâmicas em que

surgem os estilos de arte. Ela examina o valor estético de uma obra de arte e

relaciona sua perfeição formal ao grau de excelência proporcionado pelo

tratamento técnico em conjunto com o sentimento de beleza. Franz Boas

também verifica que os ornamentos de muitas etnias, que nos parecem

puramente formais, estão associados a inúmeros significados. Esse

simbolismo, segundo o autor, é encontrado por STEINEN (1886) nos padrões

geométricos dos índios do Brasil, padrões que representam a flora e diferentes

animais da fauna brasileira. Nessa obra também são elucidados os princípios

com os quais podem ser descritos os estilos de arte distintos, além de tratar de

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produções artísticas que envolvem literatura, música e dança de povos

primitivos que possuem pouca ou nenhuma cultura material.

Também foram muito importantes as obras do antropólogo Darcy

Ribeiro, a exemplo de “Kadiwéu – ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e

a beleza” (RIBEIRO, 1980) para efeito comparativo, já que na cerâmica

Kinikinau percebe-se influência da ornamentação Kadiwéu, principalmente

pelos motivos utilizados, como espirais, curvas, contra-curvas, losangos,

triângulos e degraus intercalados. Além disso, como a Kinikinau, a cerâmica

Kadiwéu também é considerada frágil. O autor aponta essa fragilidade em

relação à cerâmica Terena, principalmente quanto à técnica de fabricação e

questiona a utilização pelos Kadiwéu de uma técnica oleira tão pobre se

contrapondo com uma arte ornamental tão complexa. Segundo ele, essas duas

técnicas não teriam se desenvolvido em um mesmo espaço temporal.

Darcy Ribeiro define o sentimento estético presente na arte indígena

Kadiwéu como “vontade de beleza”. A arte extremamente elaborada da

cerâmica, provavelmente foi transposta da ornamentação corporal dos

cavaleiros guerreiros e é uma técnica muito mais antiga do que a da fabricação

oleira. A incorporação da ornamentação na cerâmica provém do ingresso de

prisioneiros de guerra entre o grupo étnico e da introdução do trabalho servil

que possibilitou que as mulheres de casta superior gozassem de tempo

disponível para desenvolvê-la e praticá-la (RIBEIRO, 1980).

Muitos estudiosos supõem que os Kadiwéu (Mbayá-guaicuru)

aprenderam o ofício da técnica oleira com os ancestrais dos Kinikinau e Terena

(Guaná). Essa conclusão decorre do fato de que, durante a fase nômade dos

‘Cadiguegodi’ (Kadiwéu), não se tem registro da produção de cerâmica. “A

cerâmica, [...] está intimamente associada à domesticação das plantas e à vida

sedentária” (RIBEIRO, 1989, p. 46).

As pesquisas da etnóloga SUSNIK (1978) também evidenciam que os

Kadiwéu assimilaram a arte da cerâmica com os Guaná, ancestrais dos atuais

Kinikinau, Terena e Layana, pela proximidade entre as aldeias, gerando uma

convivência intercambial.

“[...] as aldeias dos ‘Cadiguegodi’ [Kadiwéu] não tinham

locação separada das aldeias Guaná; a plantação, [...] e o

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lote apto para o pastoreio de cavalos [...] se uniam; no

habitat ‘Cadiguegodi’ se intercambiavam as ‘dimi’ (casa

grande de esteiras) com as ‘peti’ (casas comunais) Guaná.

Esta estreita convivência local contribuiu para uma maior

‘guana-ização’ dos elementos culturais dos ‘Cadiguegodi’

que se transformaram posteriormente em excelentes

ceramistas e bons tecedores” (SUSNIK, 1978, p.11-12).

Acredita-se que os artefatos cerâmicos só começaram a ser produzidos

quando os Mbayá-guaicuru ou ‘Cadiguegodis’ se fixaram em aldeias, conforme

registros do padre jesuíta SANCHEZ LABRADOR (1911), que conviveu com

essa população no século XVIII no período de 1766 a 1767. Portanto, a técnica

oleira Kadiwéu é mais recente e menos habilidosa que a técnica ornamental.

Na obra da etnóloga Branislava Susnik, “Etnografia Paraguaya”

(SUSNIK, 1978), como já visto, é evidenciada essa origem da produção da

cerâmica Kadiwéu influenciada pelo intercâmbio cultural existente no passado

entre as diversas etnias indígenas. Intercâmbio perceptível, ainda hoje, na

produção do artesanato indígena de Mato Grosso do Sul, inclusive da cerâmica

Kinikinau.

Esse intercâmbio artístico entre as etnias interferiu também na produção

atual das cerâmicas Terena e Kadiwéu, que cada vez mais modificam a forma

(zoomorfismo, cinzeiros, porta-lápis) e incorporam materiais novos em seu

artesanato. Esse emprego de novos materiais na produção de cerâmica

demonstra que “apesar de todos estes percalços e em virtude deles, a antiga

tradição Kadiwéu sobrevive pelo único modo possível, que é alterando-se

continuamente” (RIBEIRO, 1980, p.8). Essa alteridade cultural contínua não

vale apenas para os Kadiwéu, mas para todas as etnias indígenas.

A obra de RIBEIRO (1989) denominada “Arte indígena, linguagem

visual” verifica a importância da arte em todas as esferas da vida do indígena

brasileiro.

“A casa, a disposição espacial da aldeia, os utensílios de

provimento da subsistência, os meios de transporte, os

objetos de uso cotidiano e, principalmente, os de cunho

ritual estão embebidos de uma vontade de beleza e de

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expressão simbólica. Estas características transparecem

quando se observa que o índio emprega mais esforço e

mais tempo na produção de seus artefatos que o

necessário aos fins utilitários a que se destinam; e quando

passa horas a fio ocupado na ornamentação e

simbolização do próprio corpo. Neste sentido, a arte

indígena reflete um desejo de fruição estética e de

comunicação de uma linguagem visual” (RIBEIRO, 1989,

p.13).

VIDAL (1992), em um estudo voltado à antropologia estética: “Grafismo

Indígena: estudos de antropologia estética” afirma que,

“O homem ocidental tende a julgar as artes dos povos

indígenas como se pertencessem à ordem estática de um

Éden perdido. Dessa forma, deixa de captar, usufruir e

incluir no contexto das artes contemporâneas, em pé de

igualdade, manifestações estéticas de grande beleza e

profundo significado humano. [...] decididos a continuar

como índios, [eles] ainda criam e sempre recriam

importantes obras de arte dotadas de notável

especificidade histórica e cultural” (VIDAL, 1992, p.13).

De acordo com Darcy Ribeiro e Franz Boas, nem todo artesanato

indígena pode ser considerado arte. Para os autores as produções indígenas

que podem ser cogitadas como objetos artísticos são “aquelas entre todas que

alcançam tão alto grau de rigor formal e de beleza que se destacam das

demais como objetos dotados de valor estético” (RIBEIRO, 1987, p.29) e que

apresentam um elemento formal que se manifesta, nas artes gráficas e

plásticas, por meio da simetria, da repetição rítmica e da acentuação da forma

(BOAS, 1947). Logo evidencia-se que apenas certos tipos de artesanato

indígena, ou melhor, somente algumas peças podem ser elevadas à condição

de obra de arte. Segundo ALVES (2014), objetos artísticos apresentam

características singulares em sua concepção como originalidade, vontade de

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beleza e busca de apuramento técnico, portanto, cada exemplar é único

tornando-se impossível de ser dissociado de seu criador.

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6. Artigos

Artigo I O artesanato como instrumento de identidade étnica: o caso dos Kinikinau em Mato Grosso do Sul, Brasil Karolinne Sotomayor Azambuja Canazilles Resumo Este estudo procura explicar como e porquê o artesanato contribui para a

afirmação da identidade de um grupo indígena e qual o papel do escoamento

desse artesanato no mercado. Verifica, ainda, a relação desse artesanato com

projetos de inovação referentes ao processo de produção e comercialização da

cultura material indígena instaurados pela instância provedora de políticas

públicas, o Estado. O caso da etnia Kinikinau é singular porque foi declarada

“extinta” por pesquisadores e órgãos oficiais, sofreu um período de

invisibilidade, deixando de constar nos documentos pertinentes e foi confundida

com os Terena por quase um século. A resistência Kinikinau e a sua “vontade

de diferença” influenciaram na busca por tradições esquecidas, que ocasionou

na “reinvenção” do artesanato. Na passagem do século XX para o século XXI,

a etnia utiliza esse artesanato, aliado ao mercado, como instrumento de

visibilidade e reconhecimento. O argumento demonstra como um grupo étnico

usa a produção e a venda do artesanato para afirmar sua própria identidade, se

diferenciando dos outros grupos indígenas. Procura também explorar os limites

do mercado capitalista na venda do artesanato para dar visibilidade a esse

grupo étnico, bem como a relação da produção e comercialização desse

artesanato com as políticas públicas do Estado. O Levantamento de dados

empíricos foi realizado por meio de visitas a postos de troca da cidade de

Bonito e à aldeia São João, Reserva indígena Kadiwéu, em Porto Murtinho,

Mato Grosso do Sul, Brasil, bem como pela coleta de registros fotográficos e

entrevistas semiestruturadas com comerciantes e artesãos. Assim, este estudo

pretende avançar no conhecimento da reconstrução da identidade indígena

Kinikinau e o papel que ela e o mercado desempenham no fortalecimento

étnico.

Palavras-chave: Cultura material, Arte indígena, Ceramistas Kinikinau,

Fortalecimento étnico.

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Abstract

This study seeks to explain how and why the handicraft contributes to the

affirmation of the identity of an indigenous group and what is the role of this

handicrafts in the market. Checks also the relationship of this handicrafts with

public policy innovation projects for the production process and marketing of

indigenous material culture by the state. The case of Kinikinau ethnicity is

unique because it was declared "extinct" by researchers and government

agencies, suffered a period of invisibility, no longer appear in the relevant

documents and has been confused with the Terena for nearly a century. The

Kinikinau resistance and their "will to difference" influenced the search for

forgotten traditions, which resulted in the "reinvention" of the handicraft. In the

passage from the XX to the XXI century, the ethnicity uses this handicraft,

coupled with the market, as tool of visibility and recognition. The case

demonstrates how an ethnic group uses the production and sale of handicrafts

to assert their own identity, differentiating from other indigenous groups. It also

seeks to explore the limits of the capitalist market in the sale of handicrafts to

give visibility to this ethnic group, as well as the relationship of production and

marketing of handicrafts with state public policy. The survey of empirical data

was accomplished through visits to handicrafts stores in Bonito and in the

village São João, Indian Reservation Kadiwéu in Porto Murtinho, Mato Grosso

do Sul, Brazil, as well as the collection of photographic records and semi-

structured interviews with traders and craftsmen. Thus, this study aims to

advance the knowledge of the reconstruction of indigenous identity Kinikinau

and the role it and the market have in strengthening ethnic.

Keywords: Identidad ethnic, indigenous art, Market, Strengthening Ethnic.

Introdução Os Kinikinau2 foram considerados “extintos” (OLIVEIRA, 1976; RIBEIRO,

1986) por quase um século e, durante todo esse tempo de invisibilidade, foram

“convencidos” a se registrar como outro grupo étnico de Mato Grosso do Sul,

2 Obedecendo a Convenção para grafia de nomes indígenas assinada na 1ª Reunião Brasileira de Antropologia, em 1953, no Rio de Janeiro, os nomes tribais quer usados como substantivos, quer como adjetivos, não terão flexão de gênero e de número, a não ser que sejam de origem portuguesa ou morficamente aportuguesados.

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os Terena, silenciando sua própria identidade (SILVA, 2007; SOUZA, 2008). Na

atualidade, vivendo em território alheio, buscam reconhecimento oficial e lutam

pela reconquista de seus territórios tradicionais3.

O artesanato Kinikinau, principalmente a cerâmica, tornou-se uma

ferramenta importante para auxiliar na afirmação da identidade do grupo. Por

meio desse instrumento a etnia ganha visibilidade no processo de

reemergência no atual cenário étnico sul-mato-grossense e brasileiro.

Apesar da cerâmica Kinikinau dar continuidade a uma antiga tradição

cultural Guaná, principalmente por meio da técnica do acordelado

(CANAZILLES, 2013), as ornamentações produzidas na atualidade não são

inerentes às expressões dos elementos culturais de seus antepassados

Kinikinau4, mas uma “reinvenção” das mulheres e homens5 dessa etnia.

O depoimento dado a Carlito em entrevista, no ano de 2002, pelo

indígena João Moreira Anastácio vem reforçar isso. “A gente não sabe mais as

tatuagens, as pinturas, as cerâmicas, [...]. A etnia já foi considerada extinta e a

maioria foi massacrada, é bem difícil mas a gente vai tentar, mesmo que seja

de outra forma mas nós temos que criar uma da gente mesmo” (CARLITO,

2002). Esta declaração constata que há treze anos atrás houve uma

mobilização do grupo para desenvolver um estilo ornamental próprio. Estilo que

na atualidade tomou forma, graças a um aperfeiçoamento contínuo, revelando

inclusive expressões artísticas de grande valor, como verificado no trabalho de

Agueda Roberto6.

3 Entre os dias 6 e 9 de novembro de 2014, aconteceu no município de Nioaque, Mato Grosso do Sul, no Centro Comunitário da Aldeia Terena de Cabeceira, a 1ª Assembleia da etnia denominada ‘Povo Kinikinau fortalecendo a identidade na luta pelo bem viver’. 4 Importante enfatizar a semelhança que a cerâmica “reinventada” tem com a encontrada nos sítios arqueológicos da grande aldeia dos Kinikinau que existiu durante o século XIX. Os pesquisadores PEIXOTO e SCHMITZ (1998), por meio do artigo denominado: A Missão Nossa Senhora do Bom Conselho, Pantanal, Mato Grosso do Sul, afirmam que tais sítios apresentaram cerâmica pintada com presença de decoração plástica, existindo uma preponderância na pintura vermelha com motivos geométricos impressos por corda. Acentua-se que a impressão por corda sempre foi uma técnica associada aos Kadiwéu. Portanto, somente uma pesquisa histórica mais aprofundada revelará se em algum período os Kinikinau também utilizaram essa mesma técnica ornamental.

5 Frise-se que na atualidade a cerâmica Kinikinau também deixou de ser uma atividade exclusivamente feminina.

6 Ver o artigo denominado “Arte indígena Kinikinau em Mato Grosso do Sul, Brasil”

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É importante acentuar que a cerâmica Kinikinau, no contexto em que se

encontra hoje, não vem imbuída somente de preocupações estéticas que

revelam uma “vontade de beleza”. Vem enraizada, desde sua origem, de um

significado profundo que envolve um sentimento de reafirmação de identidade.

SILVA e SOUZA (2008) definiram esse sentimento como “vontade de

diferença”. Desta maneira, este estudo procura analisar como e por que o

artesanato contribui para a afirmação da identidade Kinikinau e qual o papel do

escoamento desse artesanato no mercado, enfatizando a importante função do

Estado, como provedor de políticas públicas.

Procedimentos Metodológicos A pesquisa envolve a comunidade Kinikinau, localizada na Aldeia São

João, ao sudeste da Reserva Indígena (RI) Kadiwéu, no município de Porto

Murtinho (Figura 1). A aldeia São João está situada a 70 km de distância da

cidade ecoturística de Bonito e a 462 km da capital, Campo Grande, em Mato

Grosso do Sul, Brasil. Os Kinikinau contam com uma população de

aproximadamente 250 indivíduos (SILVA e SOUZA, 2005).

Legenda: Mato Grosso do Sul Porto Murtinho Reserva Indígena Kadiwéu Figura 1. Localização da Reserva Indígena Kadiwéu. Fonte: CANAZILLES

(2013).

Para atender o objetivo geral, foram utilizadas fontes primárias e

secundárias. Sobre as fontes teóricas, nortearam a análise os estudos

antropológicos de BARTH (1995) sobre o processo de constituição dos grupos

étnicos e a natureza das fronteiras existentes entre eles, onde o foco de

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investigação se voltou para as fronteiras sociais e a manutenção da identidade

étnica de um grupo.

Os estudos de ALVES (2015) foram de igual relevância porque

possibilitaram uma compreensão do mercado do artesanato indígena do

Estado e sua relação com a afirmação étnica dos Kinikinau. Sua análise de

RIBEIRO (1980), RIBEIRO (1984) e OLIVEIRA (1968), evidenciou também a

crise do artesanato cerâmico indígena em meados do século XX e clareou o

incremento da atividade oleira indígena, a partir da década de 1970, sob o

influxo do turismo de pesca, inicialmente, e do ecoturismo, em seguida.

Os estudos teóricos de SILVA e SOUZA (2008) sobre o movimento

político dos Kinikinau em direção à sua reemergência também foram essenciais

para contextualizar o objeto, bem como as fontes secundárias que tratam da

produção e comercialização do artesanato indígena Kinikinau na região

(CANAZILLES et al., 2015).

Quanto ao levantamento de fontes primárias, os dados empíricos

englobaram observação sistemática, registros fotográficos e entrevistas

semiestruturadas com comerciantes e artesãos, por meio de visitas a diferentes

postos de troca da cidade de Bonito, bem como levantamentos a campo na

Reserva indígena Kadiwéu, mais precisamente na aldeia São João, em Porto

Murtinho. As Entrevistas semiestruturadas realizadas na aldeia deram-se com a

Presidente da Associação Indígena dos Ceramistas Kinikinawa7, Agueda

Roberto. Os questionamentos principais das entrevistas levaram em

consideração os aspectos relacionados ao escoamento da produção das

artesãs para o mercado.

Como a pesquisa compreende seres humanos, o presente estudo teve

análise e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade

Anhanguera-Uniderp sob o Parecer Consubstanciado nº 1.410.645. Por se

tratar de uma área temática especial que engloba populações indígenas, este

trabalho também foi analisado e aprovado pela Comissão Nacional de Ética em

Pesquisa (CONEP), por meio do portal Plataforma Brasil, sob o Parecer 7 Razão social da associação fundada na década de 80 e formalizada em 2003 por indígenas e

artesãos da etnia Kinikinau.

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Consubstanciado nº 780.523. Todos os entrevistados receberam o Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), com os objetivos da pesquisa

expostos claramente e o direito de se retirar a qualquer momento.

Resultados e Discussão

O conceito antropológico de cultura é designado por GODELIER (2007),

como representações, princípios e valores que ordenam os diversos aspectos

da vida em sociedade, bem como as formas de agir e de pensar. Segundo o

antropólogo essas representações são elementos do campo ideal e compõem

a cultura. Esta somente passa a existir e ter significado quando esses

elementos são associados às práticas materiais e sociais.

A antropóloga Berta Ribeiro enfatiza que o hábito de observar e

desenhar padrões convencionais faz com que os indivíduos de cada grupo

étnico se familiarizem desde cedo com os símbolos peculiares à sua etnia,

construindo a sua personalidade cultural. Esses símbolos passam a ser uma

forma de manifestação do seu modo de ser. “Neste sentido, a arte, tal como a

língua, as crenças, as narrativas míticas e outros elementos da cultura vem a

ser um mecanismo ideológico que reforça a etnicidade e, em consequência, a

resistência à dissolução da etnia” (RIBEIRO, 1989, p.32-33).

O mecanismo ideológico apontado por RIBEIRO (1989) foi definido por

BARTH (1995) como os sinais e signos manifestos e também como as

orientações valorativas básicas, duas ordens que compõem o conteúdo cultural

das dicotomias étnicas. Os sinais e signos manifestos, tais como vestimenta,

língua, etc, “constituem as características diacríticas, que as pessoas buscam e

exibem para demonstrar sua identidade” (BARTH, 1995, p.211). Já, as

orientações valorativas básicas implicam os “padrões de moralidade”, ou seja,

as regras relativas aos costumes, tradições e crenças que orientam o

comportamento do grupo. BARTH (1995) salienta, ainda, que são os próprios

atores que irão definir as características que deverão ser levadas em conta

para reconhecer a sua identidade e diferenciá-los dos demais grupos étnicos.

Sendo assim, na passagem do século XX para o século XXI, um grupo

indígena brasileiro denominado Kinikinau escolheu justamente o artesanato

como uma dessas características diacríticas de reconhecimento étnico. Nosso

argumento demonstra como esse grupo étnico usa a produção e a venda

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desse artesanato para afirmar sua própria identidade, se diferenciando dos

outros grupos indígenas. Procura também explorar os limites do mercado

capitalista em sua comercialização8 para dar visibilidade ao grupo, além de

evidenciar as deficiências encontradas nas políticas públicas praticadas pelo

Estado.

BARTH (1995) define os grupos étnicos como categorias atributivas e

identificadoras determinadas pelos próprios atores. Se um grupo étnico se

autodenomina “A, em contraste com outra categoria B da mesma ordem, [seus

membros] desejam ser tratados e ter seu comportamento interpretado e julgado

como próprio de A e não de B” (BARTH, 1995, p.212). Cabe aqui exemplificar

com pronunciamento de um indígena Kinikinau: “Houve tempo que ninguém

mais falava em nossa existência, mas entre nós sempre soubemos de nossa

origem” (SILVA e SOUZA, 2005).

Para SILVA e SOUZA (2008, p.30), “a força da identidade étnica

Kinikinau está expressa e impressa na produção de cerâmicas. [...] há entre os

Kinikinau toda a força identitária da diferenciação, uma verdadeira ‘vontade de

diferença’”. Trata-se, porém, de um artesanato “reinventado”, ou poderíamos

dizer, atualizado, porque apesar da produção de cerâmica fazer parte da

cultura tradicional de seus ancestrais9, ou seja, das populações Guaná, para os

Kinikinau os ensinamentos dessa produção que são passados de geração para

geração foram esquecidos, ou melhor, ficaram guardados apenas nas

memórias dos mais velhos.

Isso ocorreu devido à sua própria trajetória histórica, que tomou um

rumo de invisibilidade por muito tempo ao serem considerados “extintos”

(OLIVEIRA, 1976; RIBEIRO, 1986) por quase um século. Por causa dessa

“exterminação” dos Kinikinau e por terem “ficado ocultos em meio ao grupo

majoritário Terena, [...], foram pouco mencionados em livros e documentos [...].

Tornou-se natural referir-se a eles como um sub-grupo Terena, [...]” (SILVA e

SOUZA, 2003, p.150-151).

8 Ver “Comercialização do artesanato Kinikinau na cidade ecoturística de Bonito, Mato Grosso do Sul, Brasil” (CANAZILLES et al., 2015).

9 Ver “A Missão Nossa Senhora do Bom Conselho, Pantanal, Mato Grosso do Sul” (PEIXOTO e SCHMITZ, 1998)

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Órgãos indigenistas, como o Serviço de Proteção aos Índios (SPI),

extinto em 1967 para dar origem à Funai (Fundação Nacional do Índio),

deixaram de registrar nascimentos de crianças dessa etnia e os Kinikinau

foram “convencidos” a se registrar como Terena (SILVA, 2007; SOUZA, 2008).

Para SOUZA (2008, p.30-31), “muitos Kinikinau passaram a se identificar como

Terena, para garantir um lugar para fixar residência”, justamente porque após a

Guerra do Paraguai não conseguiram assegurar o direito às suas terras

tradicionais. Segundo RIBEIRO (1986), as populações indígenas entraram em

competição com os pecuaristas que começavam a ocupar a região.

Conforme ALBUQUERQUE SOUZA (2009), os Kinikinau “ressurgiram”

em 1997, quando a Prefeitura de Porto Murtinho, através da Secretaria

Municipal de Educação, Cultura e Esportes, iniciou um trabalho de Educação

Escolar na Reserva Indígena Kadiwéu, território em que os Kinikinau coabitam

com as etnias Kadiwéu e Terena. Com a perspectiva da implantação de uma

escola que atendesse às necessidades do grupo, começaram timidamente a

revelar suas particularidades e a expressar uma identidade étnica diferente dos

demais.

SILVA (2007, p. 86) afirma que “no final de 1990 os Kinikinawa iniciaram

uma intensa mobilização política, ainda em curso, reivindicando uma etnicidade

própria e distinta dos indígenas Terena”. Em 2003, ocorreram dois eventos

onde foi manifestada a existência dos Kinikinau: O ‘I Encontro Nacional dos

Povos Indígenas em Luta pelo Reconhecimento Étnico e Territorial’, realizado

em Olinda-PE entre os dias 15 e 19 de maio, e o ‘Seminário dos Povos

Resistentes: A presença indígena em Mato Grosso do Sul’, realizado em

Corumbá-MS entre os dias 10 e 12 de dezembro.

Em 2004, a Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul,

organizou o ‘Seminário Povo Kinikinau: Persistindo a Resistência’ na cidade de

Bonito, entre os dias 16 e 18 de junho. Compareceram cerca de quarenta

indígenas Kinikinau que “puderam debater sobre a situação atual em que vivem

e elaboraram um documento, a Carta de Bonito, em que exigem, dentre outras

reivindicações, reconhecimento oficial da existência da etnia por parte do

Estado Brasileiro” (SILVA e SOUZA, 2005).

Finalmente, entre os dias 6 e 9 de novembro de 2014, aconteceu no

município de Nioaque, Mato Grosso do Sul, no Centro Comunitário da Aldeia

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Terena de Cabeceira, a 1ª Assembleia da etnia denominada “Povo Kinikinau

fortalecendo a identidade na luta pelo bem viver”. Inácio Roberto, professor

Kinikinau acredita que essa 1ª Assembleia “significa o fortalecimento deste

povo que nunca deixou de existir, mas que agora reassume a sua grandeza

histórica” (REMPEL, 2014).

Em 2005 estimou-se 250 indivíduos Kinikinau (SILVA e SOUZA, 2005).

A maior parte vive na Aldeia São João, dentro da Reserva Indígena (RI)

Kadiwéu, no município de Porto Murtinho, em Mato Grosso do Sul, Brasil. “Há

notícias de membros desse grupo residindo também em aldeias dos Terena,

nos municípios de Miranda (Cachoeirinha e Lalima) e Nioaque (Brejão)” (SILVA

e SOUZA, 2003, p.152).

O artesanato Kinikinau como instrumento de identidade étnica

O pesquisador Gilberto Luiz Alves evidencia na atualidade a relevância

do artesanato Kinikinau como instrumento de identidade étnica no movimento

político organizado pela etnia no final do século XX. “[...] A cerâmica, que voltou

a ser produzida a partir de 1984, vem tendo importância decisiva nesse

movimento que procura assegurar visibilidade à etnia” (ALVES, 2010, p.15).

Considerando que as tradições culturais de um grupo étnico só

sobrevivem alterando-se continuamente (RIBEIRO, 1980, p.8), a “reinvenção”

do artesanato Kinikinau não retira o mérito de sua importância cultural.

Segundo BARTH (1995, p.203), a cultura de qualquer “unidade étnica” é

suscetível a mudanças e “nada mais é do que uma maneira de descrever o

comportamento humano”.

O aspecto evidente da “reinvenção” ou atualização do artesanato

Kinikinau é a inserção de grafismos ornamentais orgânicos que receberam

influência dos motivos geométricos da célebre cerâmica Kadiwéu. Importante

frisar o afastamento das características da cerâmica Terena devido a

necessidade desse grupo em se diferenciar dessa etnia, com a qual foram

confundidos durante tanto tempo. Os inéditos e contemporâneos traçados

impressos na cerâmica Kinikinau decorrem da “vontade de diferença” (SILVA e

SOUZA, 2008), revelando o papel político desse artesanato, em sintonia com a

“vontade de beleza”, expressão estética que vai ao encontro do termo que

RIBEIRO (1980) criou como sinônimo de arte.

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É importante enfatizar que em suas produções atuais os Kinikinau ainda

utilizam a mesma técnica tradicional empregada na cerâmica há séculos por

seus ancestrais, ou seja, a técnica do acordelado. Esta consiste na

sobreposição de roletes de argila para dar forma ao artefato (CANAZILLES,

2013). Segundo HOBSBAWM (1997), a dificuldade que um grupo social tem

em romper com um passado histórico é característica das “tradições

inventadas”. Quando há um confrontamento com as constantes mudanças e

inovações do mundo moderno o grupo social tenta estruturar de forma imutável

ao menos alguns aspectos da vida em comunidade,

“Por tradição inventada entende-se um conjunto de

práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou

abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou

simbólica, visam inculcar certos valores e normas de

comportamento através da repetição, o que implica,

automaticamente, uma continuidade em relação ao

passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer

continuidade com um passado histórico apropriado”

(HOBSBAWM, 1997, p.9).

Neste sentido, é importante se compreender que a “inovação [presente

em uma tradição inventada] não se torna menos nova por ser capaz de

revestir-se facilmente de um caráter de antiguidade” (HOBSBAWM, 1997,

p.13). No caso dos Kinikinau, apesar de utilizarem técnicas ancestrais na

produção da cerâmica, além de utilizarem recursos naturais do ambiente como

matéria-prima, consequentemente instaurando uma ligação com o passado, a

inovação mostra-se evidente no artesanato que se atualiza de maneira

constante por influência do mercado turístico.

VIDAL (1992, p.13), em um estudo voltado à antropologia estética,

afirma que o homem da sociedade ocidental acredita que as artes dos grupos

indígenas são imutáveis, ou seja, pertencem a uma “ordem estática”. Dessa

maneira, elas tendem a não se incorporar ao cenário das artes

contemporâneas e deixamos de desfrutar e captar obras dotadas de notável

especificidade histórica e cultural. Deixamos de fruir, portanto, “manifestações

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estéticas de grande beleza e profundo significado humano” que são criadas e

recriadas por índios decididos a continuar como índios.

A razão pela qual os Kinikinau se mantiveram Kinikinau, apesar do

grande período de invisibilidade quando foram identificados como Terena,

reafirma o juízo de BARTH (1995) de que um grupo étnico mantém sua

identidade apesar do contato e interação com outros diferentes grupos, porque

é a fronteira étnica que define o grupo e não o conteúdo cultural delimitado por

ela. O conteúdo cultural é importante, mas deve ser visto como “consequência

ou resultado e não como um aspecto primário ou definidor da organização dos

grupos étnicos” (BARTH,1995, p.207).

A fronteira étnica, à qual Barth se refere, são fronteiras sociais que

determinam, por meio da existência de critérios de avaliação e de julgamento,

se uma pessoa pertence a um determinado grupo étnico ou não. Ela implica,

também, uma organização do comportamento e das relações sociais. Há entre

as pessoas de um mesmo grupo étnico “um potencial para diversificação e

expansão de suas relações sociais, de modo a eventualmente cobrir todos os

diferentes setores e domínios de atividade” (BARTH, 1995, p.213). As suas

partes devem estar “jogando o mesmo jogo”.

No entanto, quando existe contato entre diferentes grupos étnicos, a

estrutura de interação se modifica em determinadas situações sociais,

permitindo articulações em setores de atividades específicos e interdições em

outros setores. Essas interdições evitam interações interétnicas e acabam

protegendo partes das culturas da modificação por meio da confrontação.

Isso não significa que a cultura de uma etnia torna-se invariável.

Inegavelmente, os elementos culturais de um grupo se modificarão no decorrer

do tempo, por diferentes fatores, porque possuem caráter histórico. A

manutenção da fronteira étnica apenas demonstra que diferenças culturais

entre determinados grupos tendem a persistir porque percebe-se, nas relações

sociais, um reconhecimento da existência de “limitações [entre membros de

diferentes grupos étnicos] quanto às formas de compreensão compartilhadas”

(BARTH, 1995, p.213).

Se seguirmos a linha de raciocínio de BARTH (1995), chegaremos à

conclusão de que foi justamente a fronteira étnica, com suas interdições em

setores específicos, que possibilitou aos Kinikinau a manutenção, mesmo que

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precária, de uma parte de seus elementos culturais durante o processo de

invisibilidade. São exemplos a língua nativa, a tecelagem, a técnica do

acordelado, dentre outros.

Segundo SOUZA (2008), a língua Kinikinau encontra-se seriamente

ameaçada de extinção por falta da “memória de uso”. A sua utilização se

restringe a poucos falantes nativos. Quanto à tecelagem, não foram

encontrados estudos específicos sobre a sua atual fabricação, mas existem

evidências de anciãos que ainda a produzem, como Dona Zeferina. Ela tece as

fibras do algodão plantado em volta de sua casa, bem como a lã de carneiro.

Conforme SOUZA (2007), a artesã fabrica redes, toalhas e baixeiros, todavia

sua venda é bastante limitada, portanto, “não tem motivação para se dedicar a

uma produção continuada. Ela se dedica mais à tecelagem da lã de carneiro,

pois dá melhor retorno financeiro. Produz baixeiros, que são vendidos para os

peões da aldeia e da região” (SOUZA, 2007, p.121). Já a técnica do

acordelado, considerada também um conhecimento ancestral, ficou muito

tempo “adormecida”, guardada na memória dos anciãos. Hoje, ressurge na

fabricação da cerâmica Kinikinau contemporânea.

Podemos nos perguntar, porque não foi a língua, e sim, o artesanato, o

principal instrumento determinado pelo grupo para afirmar sua identidade

étnica frente à sociedade capitalista. Se analisarmos o setor de atividade

relacionado ao emprego da língua Kinikinau, diríamos que este setor é muito

específico e não permite interações interétnicas devido às próprias barreiras

linguísticas.

No entanto, a língua pode ser encarada como um elemento de

fortalecimento étnico entre os integrantes do próprio grupo e de diferenciação

entre os grupos étnicos que coabitam com a etnia. Mas, o que vem tendo

importante papel de dar ampla visibilidade étnica aos Kinikinau, de maneira a

reafirmar sua identidade diante dos não-índios é justamente o artesanato,

porque a produção artesanal atual está aliada a outro importante setor de

atividade, o comércio de produtos indígenas, o qual está subordinado ao

mercado. Portanto, o mercado passa a ser determinante na afirmação da

identidade étnica Kinikinau.

O mercado do artesanato Kinikinau e suas limitações

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O mercado, elemento estruturante no capitalismo, possibilita que as

fronteiras étnicas dos diferentes grupos sejam ultrapassadas, ou seja, permite

interações interétnicas. A sociedade capitalista possui um conjunto de normas

estabelecidas que organiza as relações entre diferentes etnias por meio do

mercado. Essas relações baseadas, exclusivamente, na troca de bens, inibem

confrontações culturais porque independem das “crenças” das etnias

envolvidas. “A concordância das pessoas quanto a códigos e valores não

precisa estender-se para além daquilo que é relevante para aquelas situações

sociais nas quais elas interagem” (BARTH,1995, p.214), neste caso, situações

que envolvem interações de consumo.

De acordo com ALVES (2015), o mercado foi decisivo para a

sobrevivência da cerâmica das diferentes etnias de Mato Grosso do Sul,

inclusive do emergente artesanato Kinikinau que, “adormecido” por quase um

século, reinventou-se e voltou a ser produzido na década de 80.

“Em Mato Grosso do Sul, no presente, o artesanato

cerâmico indígena é produzido tendo por destino,

exclusivamente, o mercado. Se não fosse o incremento da

comercialização de artefatos cerâmicos, motivado pela

expansão do turismo desde a década de 1970, por certo o

artesanato oleiro indígena já estaria experimentando seus

últimos estertores na região. Essa era a tendência, comum

tanto ao artesanato cerâmico Kadiwéu quanto ao Terena,

segundo os estudos antropológicos levados a cabo entre

as décadas de 1940 e 1960” (ALVES, 2015, p.17).

Cada vez mais os povos indígenas, em contato crescente com a

população das cidades, se integram ao modo de produção capitalista,

mantendo relacionamento direto com o mercado e participando ativamente do

sistema econômico. No caso dos Kinikinau, o escoamento do artesanato no

mercado garante ao grupo a visibilidade desejada para se assumirem

etnicamente perante toda a sociedade, se diferenciando dos outros grupos

indígenas.

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Importante evidenciar que além de possuir o papel político como

instrumento de afirmação de uma identidade étnica, o artesanato Kinikinau, ao

ser produzido na sociedade capitalista, passa a assumir também outra função,

a de mercadoria. Abrem-se, portando, condições para que ocorram

interferências do mercado em sua produção.

O fato é que os artefatos indígenas, de um modo geral, sofreram

profunda transformação cultural ao perderem seus valores de uso originais

para se tornarem, nos dias atuais, valores de troca. O contato com a sociedade

capitalista realizou a instauração de transformações profundas nas funções dos

produtos artesanais indígenas, criados originariamente para atender

necessidades básicas dessa população (AlVES, 2003). Esses novos artigos

passaram a assumir uma função decorativa, visando a atender aos anseios dos

turistas.

Por força de sua progressiva associação ao mercado do turismo, o

artesanato sofreu, na mesma intensidade, mudanças formais nos grafismos e

nas tonalidades da ornamentação. Foi incrementada, também, a tendência de

miniaturização das peças cerâmicas zoomorfas e antropomorfas. Pratos

decorativos, cinzeiros, cofres (com modelos de animais), são bastante

encontrados. Essas peças substituem as travessas, vasos e panelas utilitárias

produzidas no passado. São inovações formais que intentam ampliar o

mercado desses produtos cerâmicos.

A transformação do artesanato indígena em Mato Grosso do Sul tem

sido sistemática. Do mercado produzido pelo turismo advém o estímulo às

inovações formais nos artefatos. Isso demonstra claramente que a reinvenção

do artesanato não é uma característica isolada dos Kinikinau. As outras etnias

do estado, por força do mercado capitalista, também estão atualizando

constantemente suas produções materiais.

O fator mais problemático dessas transformações do artesanato

indígena não são elas próprias, as transformações. É a visão simplista que

ainda persiste, citada anteriormente por VIDAL (1992), de que a arte indígena

pertence a uma “ordem estática”. Para a autora essa visão nos impede de

valorizar as manifestações estéticas atuais dos indígenas brasileiros,

decorrentes de mudanças que com o decorrer do tempo serão inevitáveis, por

conta de um estereótipo. Evidentemente essa visão deve ser repensada,

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porque o indígena de hoje não pode mais ser visto como aquele do passado

que andava nu, caçava, pescava e plantava para sobreviver. As circunstâncias

em que vive hoje não lhe asseguram mais as condições materiais propícias

para sustentar tais atividades.

Em uma discussão, RIBEIRO (1984), no estudo “Artesanato Indígena:

para quê, para quêm?”, descreve de maneira idealizada as consequências do

contato das etnias indígenas com a sociedade capitalista. Segundo a autora,

“[...] a produção artesanal para o mercado proporciona ao

índio a oportunidade de exercer uma atividade a que está

habituado e que faz parte do seu patrimônio cultural; inibe

sua saída da comunidade para alugar sua força de trabalho

como trabalhador braçal, [...]; proporciona a

confraternização dos homens e das mulheres nas horas de

trabalho artesanal coletivo; e lhes garante uma renda que

julgamos deva ser superior à que aufeririam como

empregados de ínfima categoria nos empreendimentos

regionais” (RIBEIRO, 1984, p.14).

Essa discussão, manifestada na década de 80, revela mais um anseio

da autora do que a realidade dos indígenas brasileiros daquele período. Na

atualidade essa situação ainda não se modificou. Muitos artesãos que

produzem para o mercado continuam vendendo sua força de trabalho em

“empreendimentos regionais”. Exemplifica-se aqui a família de Agueda

Roberto. Ela e seu marido, José Hugo Albuquerque, hoje aposentados,

trabalharam como empregados durante muito tempo nas fazendas da região.

Dois de seus filhos e nora se mudaram para a cidade, um iniciou a faculdade

de zootecnia em Aquidauana/MS, o outro, trabalha como motorista em

Bonito/MS, já sua esposa, trabalha em uma lanchonete. Ambos são artesãos

indígenas e conhecem as limitações do mercado do artesanato indígena,

principalmente as concernentes à geração de renda, as quais não impediu que

eles deixassem sua comunidade. Demonstra-se aí uma necessidade de

reflexão das políticas públicas praticadas.

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O mercado do artesanato indígena da cidade ecoturística de Bonito,

Mato Grosso do Sul, é determinante na luta pela afirmação étnica Kinikinau

porque dá visibilidade ao grupo perante a sociedade, afirmando sua identidade,

porém, as condições para o escoamento desse artesanato revelam,

contraditoriamente, um grande número de limitações à sua comercialização.

CANAZILLES et al. (2015), em uma análise sobre a comercialização do

artesanato produzido pelos Kinikinau apontou os diversos obstáculos

encontrados durante o seu escoamento para o mercado. São eles a localização

geográfica das aldeias, o número limitado de artesãos, a pequena

produtividade, as esporádicas e inexperientes negociações com os

comerciantes, os baixos preços praticados durante essas negociações, a

fragilidade do artesanato e a falta de apoio de políticas públicas.

São muitas limitações. Elas impedem que o artesanato Kinikinau se

consolide no mercado de uma maneira satisfatória, para atender às

expectativas do grupo em relação à sua afirmação e, inclusive, às suas

necessidades concernentes à geração de renda. Por isso é preciso a

interferência do Estado para melhor prover o escoamento do artesanato

indígena no mercado e estimular a sua produção.

Políticas públicas voltadas para a produção e comercialização da cultura material Kinikinau em Mato Grosso do Sul

A Reserva Indígena (RI) Kadiwéu em que os Kinikinau residem, mais

precisamente a aldeia São João, situa-se próxima a um importante entreposto

comercial com elevada capacidade turística e onde há um número expressivo

de postos de comercialização de diferentes tipos de artesanato, a cidade de

Bonito, Mato Grosso do Sul, porém, é importante enfatizar a preocupação de

BOGGIANI (2012) ao constatar a profusão de “artesanato asiático” nesses

estabelecimentos comerciais. De acordo com o autor, a atual implementação

do Geopark Bodoquena-Pantanal na cidade ecoturística deveria proporcionar

ao visitante o contato com o “espírito do lugar”. O “artesanato asiático” não

atende essa proposta.

Essa discussão levanta o questionamento feito por Alves (2015), sobre o

que de fato é artesanato e o que não é. Segundo o autor existem três

diferentes tipos de modalidades de artesanato no Estado, o artesanato

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ancestral, o espontâneo e o induzido. O artesanato indígena está

compreendido na modalidade ancestral porque é um artesanato “de caráter

coletivo. As atividades artesanais correspondentes tendem a reiterar, no geral,

os procedimentos, as técnicas, a utilização de recursos naturais e a divisão

sexual do trabalho praticados por gerações anteriores” (ALVES, 2014, p.5-6).

O artesanato espontâneo é aquele produzido por artesãos que

respondem a uma necessidade interior de bel prazer e que “pela perfeição de

seus produtos, pelo apuro técnico, pela sistemática busca de beleza e pela

criatividade, são guindados à condição de artistas” (ALVES, 2014, p.48).

Nesses dois tipos de modalidade o artesão tem o domínio teórico-prático de

todas as operações técnicas necessárias à produção do objeto artesanal.

O artesanato induzido é aquele que ajusta-se às exigências do

mercado. É visto como negócio e está relacionado ao que ALVES (2015)

denomina como “ideologia do empreendedorismo”. De fato, esse artesanato, já

não pode mais ser entendido como tal porque incorpora, em seu processo de

produção, a divisão do trabalho. Neste sentido, grande parte do “artesanato

asiático”, citado por BOGGIANI (2012), é fruto da produção fabril que está

invadindo o mercado de souvenirs em Bonito. Contraditoriamente, o artesanato

ancestral, manifestação cultural da região, não consegue se inserir nesse

mercado porque os estímulos quanto à sua comercialização são mínimos.

Enfatiza-se que o artesanato indígena pode ser peça fundamental no

fortalecimento da proposta do Geopark, ligada ao turismo cultural.

Em Bonito existe um grande número de estabelecimentos privados que

comercializam artesanato induzido, mas não há um centro de comercialização

de artefatos indígenas promovido ou incentivado por órgãos governamentais.

Sendo assim, os artesãos das etnias Kadiwéu, Kinikinau e Terena, dependem

desses estabelecimentos privados para vender seus artefatos. Outra opção é a

venda ambulante, praticada principalmente nos dias em que ocorrem festivais

culturais na cidade.

O maior problema encontrado na venda do artesanato indígena em

estabelecimentos privados é a existência de uma tensão sensível nas relações

entre o artesão indígena e o comerciante, quando se trata de discutir o valor

das peças artesanais. Este tende a frequentemente ser remetido para baixo.

Por outro lado, o valor de revenda do artesanato, quando já se encontra no

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estabelecimento, tende a sofrer um acréscimo que às vezes supera o valor de

compra em 100%, gerando uma desproporcionalidade na distribuição do lucro

(CANAZILLES et al., 2015).

A comercialização do artesanato Kinikinau está restrita a apenas dois

desses postos comerciais da cidade e os artesãos não se beneficiam de

nenhum tipo de incentivo financeiro para a produção ou escoamento desse

artesanato no mercado (CANAZILLES et al., 2015). A iniciativa parte deles

próprios. Ambrósio Góes, indígena Kinikinau que há vinte anos se transferiu

para Bonito, enfatizou a importância de um lugar apropriado para a venda do

artesanato indígena. “O turista não está procurando comprar nas lojas, está

procurando [...] comprar direto da gente. Aqui na frente de casa estou fazendo

essa choupana para expor o artesanato” (Góis apud CARLITO, 2002, s/p).

Sonho interrompido em 2012, após o seu falecimento, aos 62 anos de idade.

Dentre os estabelecimentos incentivados por órgãos governamentais

que comercializam o artesanato indígena de Mato Grosso do Sul, temos em

Campo Grande, capital do estado, o “Memorial da Cultura Indígena”,

subordinado à Prefeitura Municipal, onde é comercializado,

predominantemente, o artesanato de três etnias: Kadiwéu, Terena e Guarani. É

um local de referência do artesanato indígena do estado. Está localizado na

Aldeia Urbana Marçal de Souza, ponto turístico da capital.

A cidade de Campo Grande dispõe, também, da “Casa do Artesão”,

estabelecimento onde é comercializado o artesanato regional. Localizada no

centro da cidade, é intensamente visitada pela população da capital e por

turistas. Subordina-se à Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul – FCMS.

No que se refere ao artesanato indígena, predominam as cerâmicas das etnias

Kadiwéu e Terena. Não há peças da etnia Kinikinau. Em entrevista, a

atendente do centro não soube responder o porquê, supondo, inclusive, que o

grupo parou de produzir artesanato.

Destaca-se que todos os anos a Casa do Artesão promove uma mostra

de artesanato indígena, evento que celebra o dia do Índio, envolvendo uma

parceria entre a FCMS e a Funai. Importante enfatizar que, em 2011, o

artesanato Kinikinau foi citado no material de divulgação da mostra como parte

do acervo da exposição, realizada entre os dias 21 de abril e 18 de maio,

porém, durante o evento, os únicos artesanatos indígenas expostos eram das

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etnias Kadiwéu e Terena. De acordo com a Gerência de Desenvolvimento de

Atividades Artesanais da FCMS, os índios Kinikinau seriam os responsáveis

em dispor seus produtos para o evento. O descaso do Estado mostra-se

evidente, segundo Agueda Roberto, os artesãos Kinikinau nem sequer ficaram

cientes do evento.

Existem, ainda, dois centros de comercialização do artesanato indígena

em Mato Grosso do Sul. Em Miranda foi implantado o “Centro Referencial da

Cultura Terena”, subordinado à Prefeitura Municipal, onde são comercializados

apenas artefatos dessa etnia, e, na cidade de Bodoquena, o “Memorial Serra

da Bodoquena”, também subordinado à Prefeitura Municipal, destinado à

comercialização do artesanato Kadiwéu. Quanto ao artesanato Kinikinau, não

encontramos evidência de sua comercialização em nenhum desses centros,

além disso, foi possível observar certo descuido em relação aos artefatos

mantidos nesses espaços, seja a má disposição dos objetos expostos, a não

identificação de sua autoria e a falta de manutenção do próprio acervo como,

por exemplo, o acúmulo de poeira.

De qualquer maneira, a inserção desses postos de comercialização nos

municípios e nas proximidades onde a cultura material indígena é produzida

torna-se uma ação válida, porém, pode não ser a principal solução para o

escoamento desse artesanato. Confinados em aldeias, os artesãos às vezes

possuem certas dificuldades em distribuir essas mercadorias, já que a iniciativa

de levar os artefatos aos centros comerciais deve ser dos próprios indígenas. A

distância da aldeia; o meio de transporte e a topografia de difícil acesso pode

dificultar esse escoamento que, em conjunto com a fragilidade das peças

(CANAZILLES et al., 2015), facilitam a quebra e resultam em prejuízo ao

artesão.

As políticas públicas voltadas para a cultura material das populações

indígenas de Mato Grosso do Sul são gerenciadas pelo Plano Estadual de

Cultura - PEC-MS (MATO GROSSO DO SUL, 2014), elaborado em 2014 na

gestão do governador André Puccinelli. Este mesmo Plano coordena toda a

produção cultural do estado. O PEC-MS tem como principal articulador o

Sistema Estadual de Cultura - SIEC-MS, que tem a missão de estabelecer

mecanismos de gestão compartilhada entre Estado, Municípios e a sociedade

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civil. Uma de suas estratégias e ações discriminadas na seção única do

capítulo I é:

“1.6.2 Garantir aos povos e às comunidades tradicionais

direitos sobre o uso comercial sustentável de seus

conhecimentos e expressões culturais; estimular e

assegurar sua participação na elaboração de instrumentos

legais que assegurem a repartição equitativa dos

benefícios resultantes desse mercado” (MATO GROSSO

DO SUL, 2014, p.13).

No capítulo III uma outra estratégia e ação do PEC-MS é:

“3.1.17. Estimular a criação de centros de referência e

comunitários voltados às culturas populares, ao artesanato,

à gastronomia, às técnicas e aos saberes tradicionais com

a finalidade de registro e transmissão da memória,

desenvolvimento de pesquisas, valorização das tradições

locais e comercialização” (MATO GROSSO DO SUL, 2014,

p. 20).

No entanto as políticas que englobam a cultura material indígena se

limitam aos quatro centros de comercialização citados anteriormente; ao

mapeamento e difusão de acervos históricos; à preservação do patrimônio

tradicional por meio de processos de salvaguarda e registro realizados pelo

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan; e alguns esforços

pontuais executados por meio dos editais elaborados pela Fundação de Cultura

(FCMS) para apoiar projetos culturais de iniciativa de pessoas físicas ou

jurídicas por meio do Fundo de Investimentos Culturais (FIC-MS).

Frise-se a presença de alguns esforços de pesquisadores em parceria

com a comunidade no desenvolvimento de projetos culturais. O projeto “Moté

Ypoti Kinikinau: por um fortalecimento étnico” foi uma dessas iniciativas.

Aprovado em 2013 pela Funarte (Fundação Nacional das Artes) no “Programa

Mais Cultura: Microprojetos do Pantanal”, teve como proponente principal

Agueda Roberto. Idealizado por Canazilles e realizado em 2014, disponibilizou

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oficinas de artesanato Kinikinau aos jovens da etnia e contou com o apoio do

Instituto Cultural Gilberto Luiz Alves. Em dezembro de 2015 este mesmo

projeto foi selecionado ao Prêmio Pontos de Cultura Indígena gerenciado pela

Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural do Minc - Ministério da

Cultura –, em parceria com a Secretaria do Audiovisual do Minc e com a

Fundação Nacional do Índio - Funai.

Em 2015, na gestão do atual governador Reinaldo Azambuja, criou-se a

Subsecretaria de Políticas Indígenas, tendo uma liderança indígena como um

de seus representantes. A subsecretária, Silvana Dias de Souza Albuquerque,

é indígena Terena. Subordinada à Secretaria de Estado de Direitos Humanos,

Assistência Social e Trabalho – Sedhast, o intuito da subsecretaria é de auxiliar

na elaboração de um Plano Estadual de Políticas Públicas para a População

Indígena. Suas ações pretendem se voltar para a agricultura familiar, a cultura,

a educação, o esporte, o lazer e a segurança nas aldeias.

Ainda são inexistentes projetos de melhoria referentes ao processo de

produção e comercialização da cultura material Kinikinau, de iniciativa do

Estado. Encontra-se em fase de concepção, porém, um projeto pioneiro de

inovação tecnológica que poderá colaborar para dar um outro direcionamento à

cultura material indígena de Mato Grosso do Sul, incentivando a criação de

políticas públicas. A Universidade Anhanguera-Uniderp conta com a parceria

das Universidades de Manitoba, Canadá e Universidade Federal de Mato

Grosso do Sul - UFMS. O projeto denominado “Artesanato indígena, mudanças

e inovações tecnológicas em Mato Grosso do Sul” tem por objetivo instaurar

discussão sobre a produção e a comercialização de peças cerâmicas das três

etnias oleiras de Mato Grosso do Sul, ou seja, dos Kadiwéu, Terena e

Kinikinau, de forma a explicitar limitações imanentes, subsidiar propostas

políticas de melhoria dos produtos e animar projetos de pesquisa sobre a

temática. É apoiado pela Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul - FCMS,

pela Secretaria de Cultura, Turismo, Empreendedorismo e Inovação de Mato

Grosso do Sul e pelo Canadian Consortium for Performance and Politics,

Canadá.

Neste sentido, a elaboração de políticas públicas que incentivem

projetos de desenvolvimento tecnológico e econômico do artesanato Kinikinau,

que elevem o padrão de qualidade, melhorem as técnicas produtivas e

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viabilizem a expansão de seu mercado, ampliando seus limites, estarão

auxiliando, de fato, no fortalecimento dessa etnia. A criação de centros de

comercialização nas proximidades da aldeia São João, tanto em Porto Murtinho

quanto em Bonito, além de outros projetos que valorizem esses elementos

culturais, poderão contribuir para a autoestima da etnia e para geração de

renda capaz de lhe garantir uma qualidade de vida melhor.

Conclusão A cerâmica Kinikinau, no contexto em que se encontra hoje, vem

enraizada de um significado profundo que envolve um sentimento de

reafirmação de identidade étnica por um grupo considerado “extinto” por quase

um século. Apesar do grande período de invisibilidade identificado como

Terena, esse grupo se manteve Kinikinau.

A resistência à dissolução da etnia possibilitou a manutenção de uma

parte de seus elementos culturais, como por exemplo, a técnica do acordelado,

utilizada atualmente na produção artesanal. Neste sentido, o artesanato, hoje

“reinventado”, vem tendo relevante papel ao dar ampla visibilidade étnica ao

grupo. Isso porque a produção atual está aliada a um importante setor de

atividade, o comércio de produtos indígenas, subordinado ao mercado do

turismo.

Portanto, o mercado é determinante na luta pela afirmação da identidade

étnica Kinikinau porque dá visibilidade ao grupo perante a sociedade

capitalista. Porém, as condições para o escoamento desse artesanato revelam,

contraditoriamente, um grande número de limitações à sua comercialização.

Além disso, apesar de existirem alguns esforços pontuais, as políticas públicas

voltadas a projetos de melhoria referentes ao processo de produção e

comercialização da cultura material Kinikinau ainda são inexistentes.

Esses fatores impedem que o artesanato Kinikinau se consolide no

mercado de uma maneira satisfatória, para atender às expectativas do grupo

em relação à sua afirmação e, inclusive, às suas necessidades concernentes à

geração de renda, elemento determinante para a valorização cultural. Por isso

é necessário a interferência do Estado com ações governamentais repensando,

junto com os artesãos Kinikinau, as práticas vigentes e instaurando novas

estratégias por meio de políticas públicas, no sentido de incentivar e inovar a

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produção, bem como melhor prover o escoamento do artesanato indígena no

mercado.

Agradecimentos A autora agradece a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

Nível Superior (CAPES); a Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino,

Ciência e Tecnologia de Mato Grosso do Sul (FUNDECT), a Universidade

Anhanguera – Uniderp e a Université du Quebéc en Outaouais, Canadá.

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Artigo II Arte indígena Kinikinau em Mato Grosso do Sul, Brasil Karolinne Sotomayor Azambuja Canazilles Resumo

Este trabalho tem por objeto a arte indígena Kinikinau em Mato Grosso do Sul,

produzida por um grupo considerado “extinto” e confundido com outra etnia

durante muito tempo. A resistência desse grupo evidenciou uma “vontade de

diferença” que influenciou na busca por tradições esquecidas. Isso ocasionou a

“reinvenção” do artesanato, o qual se tornou instrumento de identidade étnica.

Mais tarde, esse mesmo artesanato começou a apresentar preocupações

estéticas. Frise-se aqui o trabalho singular de Agueda Roberto, artesã indígena

que detém o controle teórico-prático e o domínio de todo o processo de

produção da cerâmica Kinikinau que evidencia em suas peças manifestações

de ordem estética ligadas a “vontade de beleza”. Portanto, o objetivo geral

deste estudo foi discutir a relação da cerâmica Kinikinau produzida na

atualidade com o caráter de objeto artístico. Este trabalho procura explicar

como e porquê a cerâmica Kinikinau pode ser caracterizada como arte. O

argumento demonstra os principais elementos estéticos que qualificam esse

artesanato. Os instrumentos empíricos para atender ao objetivo foram

entrevistas com roteiro semiestruturado e observação sistemática do processo

de modelagem, ornamentação e acabamento da cerâmica de Agueda Roberto

coletadas por meio de visitas à aldeia São João, Reserva indígena Kadiwéu,

em Porto Murtinho. Utilizou-se também fontes documentais e fontes

historiográficas. Constatou-se que o artesanato Kinikinau deve ser considerado

objeto de caráter artístico porque evidencia, além de um domínio técnico, todos

os “elementos determinantes da arte ornamental” como a simetria, o ritmo e a

acentuação da forma.

Palavras-chave: Cerâmica indígena, Arte ornamental, Domínio técnico.

Abstract This work is engaged in the indigenous art Kinikinau in Mato Grosso do Sul,

produced by a group considered "extinct" and confused with another group for

a long time. The strength of this group showed a "will to difference" that

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influenced the search for forgotten traditions. This led to the "reinvention" of the

handicraft, which became ethnic identity tool. Later, this same handicraft began

to present aesthetic concerns. It should be stressed here the singular work of

Agueda Roberto, indigenous craftswoman which has the theoretical and

practical control, besides the domain of Kinikinau ceramic production process

evident in her manifestations linked to "beauty will." Therefore, the aim of this

study was to discuss the relationship of Kinikinau ceramics produced today with

the character of the art object. This paper seeks to explain how and why

Kinikinau ceramic can be characterized as art. The argument shows the main

aesthetic elements that qualify this handicraft. The empirical instruments were

semi-structured interviews and systematic observation of the modeling process,

ornamentation and finishing of Agueda Roberto ceramic collected through by

visits to the São João village, Indian Reservation Kadiwéu in Porto Murtinho. It

also used documentary sources and historiographical sources. It was found that

the Kinikinau handicraft should be considered artistic object because it

highlights, in addition to a technical field, all the "elements determinants of the

ornamental art" as symmetry, rhythm and accentuation of the form.

Keywords: Indian pottery, ornamental Art, Technical field.

Introdução

A etnia indígena Kinikinau10 em Mato Grosso do Sul, passou por um

período de invisibilidade que perdurou quase um século. Joaquim Alves

Ferreira, representante da Diretoria Geral dos Índios11 declarou o

desaparecimento do grupo logo após a Guerra do Paraguai. Em 1872

apresentou um relatório ao ex-ministro do Império, José Pedro Dias de

Carvalho, divulgando notícias sobre as diversas etnias da Província de Mato

10 Durante o Seminário “Povo Kinikinau: Persistindo a Resistência”, realizado na cidade de Bonito – MS, entre os dias 16 e 18 de junho de 2004, foi redigida a Carta de Bonito, que estabelece que o etnônimo do grupo passa a ser Kinikinau, com base em documentação histórica. Obedecendo a Convenção para grafia de nomes indígenas assinada na 1ª Reunião Brasileira de Antropologia, em 1953, no Rio de Janeiro, os nomes tribais quer usados como substantivos, quer como adjetivos, não terão flexão de gênero e de número, a não ser que sejam de origem portuguesa ou morficamente aportuguesados. 11 A Diretoria Geral dos Índios foi estabelecida pelo decreto n. 426 de 24 de julho de 1845, para desempenhar ações exigidas pelo regulamento acerca das missões de catequese e civilização dos índios.

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Grosso. Conforme BUENO (1880, p.96), o diretor geral dos índios afirmou que

durante a batalha os Kinikinau “foram conduzidos pelos paraguaios para

Assunção e lá morreram todos”.

Essa “extinção” também foi decretada por órgãos indigenistas como o

Serviço de Proteção aos Índios (SPI) criado em 1910 e substituído em 1967

pela Funai (Fundação Nacional do Índio). Segundo SILVA (2007), esses órgãos

deixaram de registrar nascimentos de crianças da etnia Kinikinau e o grupo foi

“convencido” a se autodenominar Terena12, outra etnia existente em Mato

Grosso do Sul, originária do mesmo tronco linguístico. A partir da segunda

metade do século XX a hipótese da “extinção” do grupo foi aceita por muitos

pesquisadores (OLIVEIRA, 1976; RIBEIRO, 1986), porém, estes ainda

chegaram a afirmar a existência de alguns remanescentes que se dispersaram

no pós-guerra.

Para SOUZA (2007), muitos Kinikinau assumiram a identidade Terena

como estratégia para garantir um território onde pudessem se instalar com

suas famílias, justamente porque após a Guerra do Paraguai, ocorrida entre

1864 e 1870, não conseguiram assegurar o direito às suas terras tradicionais.

Os grupos indígenas “entraram em competição com os criadores de gado que,

nesse período, começavam a ocupar a região. A maior parte dos grupos Guaná

perdeu suas terras, sendo compelidos a trabalhar para os que delas se

apossaram, ou a se dispersar” (RIBEIRO, 1986, p.84).

ALBUQUERQUE SOUZA (2003), esclarece que os Kinikinau

conseguiram se instalar definitivamente em 1940, após inúmeras expulsões

territoriais e perseguições por parte de fazendeiros, posseiros e invasores. O

SPI indicou ao grupo a Aldeia São João, onde a etnia reside atualmente

coabitando com os Terena e com os proprietários da área, os Kadiwéu13. Essa

aldeia faz parte da Reserva Indígena (RI) Kadiwéu, no município de Porto

Murtinho, em Mato Grosso do Sul, Brasil. “Há notícias de membros desse

grupo residindo também em aldeias dos Terena, nos municípios de Miranda

12 Os Terena e os Kinikinau têm proximidade linguística porque são descendentes dos Txané-Guaná ou Guaná, como afirmam alguns pesquisadores, e pertencem ao tronco lingüístico Aruak, assim como as etnias Exoaladi (também conhecida como Guaná) e Layana. Conforme Oliveira (1976), esses quatro grupos migraram para o Brasil em meados do século XVIII e se instalaram no sul de Mato Grosso. 13 Grupo indígena originário da família linguística Mbayá -Guaicurú.

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(Cachoeirinha e Lalima) e Nioaque (Brejão)” (SILVA e SOUZA, 2003, p.152).

Em 2005 estimou-se o total de 250 indivíduos (SILVA e SOUZA, 2005).

Os Kinikinau “ressurgiram” em 1997, quando a Prefeitura de Porto

Murtinho, através da Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Esportes,

iniciou um trabalho de Educação Escolar na Reserva Indígena Kadiwéu. Com a

perspectiva da implantação de uma escola que atendesse às necessidades do

grupo, começaram a revelar suas particularidades e a expressar uma

identidade étnica diferente dos demais14 (ALBUQUERQUE SOUZA, 2009).

Iniciaram a partir daí” uma intensa mobilização política15, ainda em curso,

reivindicando uma etnicidade própria e distinta dos indígenas Terena” (SILVA,

2007, p. 86).

“Extintos”, confundidos com outra etnia durante muito tempo e pouco

mencionados em livros e documentos oficiais (SILVA, 2007), a resistência

Kinikinau influenciou na busca por tradições esquecidas que ocasionou a

“reinvenção” do artesanato. Apesar da produção desse artesanato dar

continuidade a uma antiga tradição cultural Guaná, muitos de seus produtos,

concebidos por mulheres e homens da etnia, apresentam atributos inéditos,

pois não são inerentes às expressões culturais de seu passado, mas criações

atuais motivadas pelo que SILVA e SOUZA (2008, p.30) denominaram de

“vontade de diferença”. O artesanato emerge, então, estabelecendo um

contraponto de auto-afirmação do grupo. Ele se torna um elemento veemente

de fortalecimento da etnia.

Além dessa “vontade de diferença”, o artesanato Kinikinau começou a

expressar cada vez mais uma preocupação estética que vai ao encontro do

termo que RIBEIRO (1980) criou como sinônimo de arte, a “vontade de beleza”.

Portanto, este trabalho tem por objeto a arte indígena Kinikinau em Mato

14 Ver Histórias de admirar: os Kinikinau, por Giovani José da Silva (SILVA, 2014).

15 Em 2003, ocorreram dois eventos onde foi manifestada a existência dos Kinikinau: O ‘I Encontro Nacional dos Povos Indígenas em Luta pelo Reconhecimento Étnico e Territorial’, realizado em Olinda-PE entre os dias 15 e 19 de maio, e o ‘Seminário dos Povos Resistentes: A presença indígena em Mato Grosso do Sul’, realizado em Corumbá-MS entre os dias 10 e 12 de dezembro. Em 2004, a Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul, organizou o ‘Seminário Povo Kinikinau: Persistindo a Resistência’ na cidade de Bonito, entre os dias 16 e 18 de junho. Entre os dias 6 e 9 de novembro de 2014, aconteceu no município de Nioaque, Mato Grosso do Sul, no Centro Comunitário da Aldeia Terena de Cabeceira, a 1ª Assembleia da etnia denominada ‘Povo Kinikinau fortalecendo a identidade na luta pelo bem viver’.

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Grosso do Sul. O objetivo geral deste estudo foi discutir a relação da cerâmica

Kinikinau produzida na atualidade com o caráter de objeto artístico que se

define, segundo BOAS (1947), pela presença de um elemento formal que se

manifesta, nas artes gráficas e plásticas, por meio da simetria, da repetição

rítmica e da acentuação da forma. Este trabalho procura explicar como e

porquê o artesanato Kinikinau pode ser caracterizado como objeto artístico. O

argumento demonstra os principais elementos estéticos que qualificam esse

artesanato como arte.

Para isso, foi preciso caracterizar a cerâmica confeccionada por uma

das artesãs da aldeia, Agueda Roberto, por meio do estudo de suas

modelagens e ornamentações. Esse estudo possibilitou identificar o elemento

formal intrínseco das artes gráficas e plásticas que a qualifica como objeto de

arte. Permitiu também averiguar características singulares como originalidade,

exigência do campo artístico e manifestações de ordem estética ligadas à

“vontade de beleza” (RIBEIRO, 1980) que proporcionam um significado único e

diferente para cada peça.

Procedimentos Metodológicos

A pesquisa envolve a produção de cerâmica de uma artesã Kinikinau,

Agueda Roberto, Presidente da Associação Indígena dos Ceramistas

Kinikinawa16 e moradora da Aldeia São João. A aldeia se localiza ao sudeste

da Reserva Indígena (RI) Kadiwéu (Figura 1), no município de Porto Murtinho,

a 70 km de distância da cidade ecoturística de Bonito, em Mato Grosso do Sul,

Brasil.

Segundo PEREIRA et al. (2009), a Reserva Indígena Kadiwéu é

considerada uma área de Proteção Legal e possui uma extensão de 5.413,41

km², equivalentes a 30,62% de Porto Murtinho. O município de Porto Murtinho

localiza-se na região oeste do Estado do Mato Grosso do Sul (56,40° e 58,05°

de longitude oeste e 20,15° e 22,10° de latitude sul), correspondendo a uma

superfície de aproximadamente 17.680 km.

16 Razão social da Associação fundada na década de 80 e formalizada em 2003 por indígenas

e artesãos Kinikinau.

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Figura 1. Localização da Reserva Indígena Kadiwéu: aldeia São João

e demais aldeias em Mato Grosso do Sul, Brasil. Fonte: CANAZILLES

et al. (2015).

Para atender ao objetivo geral foram utilizadas fontes documentais e

fontes historiográficas. Os instrumentos empíricos, englobando entrevistas com

roteiro semiestruturado e observações sistemáticas do processo de

modelagem, ornamentação e acabamento da cerâmica, foram coletados por

meio de levantamentos a campo, na Reserva indígena Kadiwéu, mais

precisamente na aldeia São João, em Porto Murtinho, localizada a 462 km da

capital, Campo Grande.

Essas observações em conjunto com as entrevistas serviram para

descrever as características do processo de produção ou técnicas de

confecção e conferir as razões da singularidade estética de Agueda Roberto,

que envolvem a natureza do objeto. Segundo THOMPSON (1992), a análise

das memórias captadas pelo pesquisador por meio de entrevistas pode revelar

relações sociais e fatos ocultos que às vezes não são evidenciados na

literatura. “Sem a evidência oral, o historiador pode, de fato descobrir muito

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pouca coisa, quer sobre os contatos comuns da família com os vizinhos e

parentes, quer sobre suas relações internas” (THOMPSON, 1992, p.27).

Como a pesquisa compreende seres humanos, o presente estudo teve

análise e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade

Anhanguera-Uniderp sob o Parecer Consubstanciado nº 1.410.645. Por se

tratar de uma área temática especial que engloba populações indígenas, este

trabalho também foi analisado e aprovado pela Comissão Nacional de Ética em

Pesquisa (CONEP), por meio do portal Plataforma Brasil, sob o Parecer

Consubstanciado nº 780.523. A artesã entrevistada recebeu o Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) com os objetivos da pesquisa

expostos claramente e o direito de se retirar a qualquer momento.

Resultados e Discussão

Em “A arte primitiva” BOAS (1947) enfatiza que todos os povos que

conhecemos não conseguem investir todo o seu tempo apenas na obtenção do

próprio sustento. Necessitamos do dolce far niente17 para produzir obras que

proporcionem prazer estético. “A mera existência do canto, dança, pintura ou

escultura nas tribos que conhecemos é uma prova da ânsia de produzir

aquelas coisas que causam satisfação por sua forma e da aptidão do homem

para gozar delas” (BOAS, 1947, p.15).

ALVES (2016), em uma análise da obra de Mário de Andrade, contrapõe

a visão de BOAS (1947) e argumenta que as manifestações artísticas das

comunidades do passado podem não ter decorrido, necessariamente, da

aspiração pelo prazer estético,

“Não se pode afirmar, segundo Andrade (1963), que a

beleza tenha sido a motivação mobilizadora dos artistas

primitivos, clássicos e medievais. A beleza só emerge

como elemento vital da arte com o Renascimento. Está

indissoluvelmente ligada à emergência do indivíduo e do

individualismo. A arte deixa de celebrar os mortos e os

deuses para celebrar o próprio homem. Para o artista a 17 Expressão italiana que significa "o ócio que é bom".

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arte, sendo reconhecida, representa sua própria glória

pessoal” (ALVES, 2016, p.2-3).

A visão, um tanto generalizada, de BOAS (1947) impede que se tenha

clareza das diferenças existentes entre a arte das comunidades primitivas e a

arte da nossa sociedade. Ele deixa de considerar um fator importante de

diferenciação. No caso da comunidade primitiva, a arte indígena e sua autoria

são manifestas coletivamente, além de ser indissociável da vida cotidiana.

Todo o grupo se envolve simultaneamente no trabalho para subsistência e na

criação artística. Segundo RIBEIRO (1989, p.13), a expressão simbólica e a

vontade de beleza fazem parte tanto da disposição espacial da aldeia, quanto

dos utensílios para prover subsistência, como também dos meios de transporte

e dos objetos de uso cotidiano ou ritual. Isso “reflete um desejo de fruição

estética e de comunicação de uma linguagem visual”.

Ao mesmo tempo, não há garantia de que todas as produções indígenas

possam ser consideradas objeto artístico. Para terem esse caráter BOAS

(1947) enfatiza que deve existir, nas artes gráficas e plásticas dessas

comunidades, um elemento formal que se revela por meio da simetria, da

repetição rítmica e da acentuação da forma.

Na sociedade capitalista, diferente das comunidades primitivas, a arte se

dissocia das atividades voltadas à subsistência porém, paralelamente, se torna

mercadoria. Normalmente encontra-se ligada às atividades de lazer e emerge

apenas em certos indivíduos da sociedade. Aqueles que têm aptidão para

desenvolver e se dedicar para a sua criação artística individual.

No entanto, BOAS (1947) esclarece que a disponibilização de tempo

para se concretizar e aprimorar uma obra artística é imprescindível. Isso vale

tanto nas comunidades primitivas,quanto nas comunidades indígenas de hoje,

bem como nas sociedades de classe. Neste sentido, podemos exemplificar a

própria cerâmica Kadiwéu, que alcançou a sua mais alta expressão artística no

momento em que houve uma especialização no trabalho das artesãs

ocasionada pelo tempo disponível. A cerâmica Kinikinau de Agueda Roberto

também vem alcançando um patamar artístico ao considerar que a

aposentadoria da artesã lhe possibilitou dedicar-se com mais afinco ao seu

artesanato.

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O trabalho individual de Agueda Roberto também levanta outra

discussão, a da “impersonalidade coletiva” (ALVES, 2016) existente na arte das

comunidades primitivas, e que ainda se faz presente na arte indígena

manifestada na atualidade. Ela evidencia que a arte de um único autor

representa a arte de toda a comunidade. Berta Ribeiro declara existir poucos

estudos sobre a individualidade do artista indígena.

“Poucos estudiosos procuraram enfatizar a individualidade

do artista, sua criatividade pessoal, que caracteriza arte na

nossa sociedade. Isto se explica pelo fato de que, nas

sociedades mais simples, qualquer indivíduo é capaz de ter

todos os comportamentos culturalmente prescritos,

inclusive os artísticos, constituindo limitações as derivadas

apenas da condição de sexo e idade” (RIBEIRO, 1989,

p.29-30).

Nas sociedades de classe as principais características da arte, como

originalidade e singularidade, estão associadas à capacidade artística

individual. O artista é reconhecido individualmente pela sua arte. Algo que

ainda não ocorre nas manifestações artísticas do índio brasileiro. O porquê

pode estar relacionado a discussão de Darcy Ribeiro,

“O artista índio não se sabe artista, nem a comunidade

para a qual ele cria sabe o que significa isto que nós

consideramos objeto artístico. O criador indígena é tão

somente um homem igual aos outros, obrigado, como

todos, às tarefas de subsistência da família, de participação

nas durezas e nas alegrias da vida e de desempenho dos

papéis sociais prescritos de membro da comunidade.”

(RIBEIRO, 1987, p.30).

Para ALVES (2016), esse cenário está começando a se modificar. Falta

pouco para que a individualidade do artista indígena seja reconhecida, de

modo que ele possa assinar as suas obras. Isso decorre da emergência do

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indivíduo despertada por um valor tipicamente burguês. O reconhecimento

artístico, portanto, é criado pelo mercado. Utilizando expressões de ANDRADE

(1963, p.24), o pesquisador acentua que “está em curso, na produção do

artesanato indígena, a transição da ‘impersonalidade coletiva’ da arte primitiva

para o ‘personalismo da arte contemporânea” (ALVES, 2016, p.3). Se referindo

ao artesanato indígena de Mato Grosso do Sul o autor evidencia já haver

reconhecimento, pela sociedade, das habilidades artísticas de algumas

artesãs,

“Algumas ceramistas já são reconhecidas [no mercado] por

suas habilidades especiais e suas peças são mais

procuradas. Entre as Terena são exemplos Rosenir e sua

filha Rosilene, ambas da aldeia Cachoeirinha. Em Campo

Grande é bastante conhecido o trabalho de Élida. Quanto

às artesãs Kadiwéu, as peças de Creuza Vergílio

dominaram uma expressiva fatia do mercado em Campo

Grande. Entre os Kinikinau, Agueda Roberto é considerada

a principal artesã” (ALVES, 2016, p.3).

Portanto, procurou-se destacar neste trabalho um grupo que na

atualidade vem afirmando sua identidade por meio da arte. Considerado

“extinto” e confundido com outra etnia, esse grupo indígena decidiu utilizar o

artesanato como instrumento de identidade étnica18, tendo como fator

determinante, o mercado.

A produção desse artesanato na atualidade, mais precisamente a

cerâmica, permitiu que a etnia aflorasse expressões artísticas de grande valor,

outrora reprimidas durante o longo período de invisibilidade. Vale destacar o

trabalho singular de Agueda Roberto, objeto deste estudo. A artesã indígena

detém o controle teórico-prático e o domínio de todo o processo de produção

18 CANAZILLES (2015), comprova tal proposição em um trabalho denominado “L’artisanat comme instrument de l'identité ethnique: le cas de Kinikinau au Mato Grosso do Sul, Brésil”, apresentado no “83e Congrès de L’association francophone pour le savoir” ocorrido no Canadá entre os dias 25 e 29 de maio de 2015.

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da cerâmica Kinikinau, além de evidenciar em suas peças manifestações de

ordem estética que estão ligadas à “vontade de beleza” (RIBEIRO, 1980).

Domínio Técnico A habilidade técnica alcançada por Agueda Roberto não ocorreu de uma

hora para a outra. O amadurecimento de sua arte se deu mediante a prática

constante que perdura há mais de uma década. A artesã afirma ter aprendido a

fazer cerâmica com sua avó, Dona Francisca Pereira, aos 10 anos de idade,

mais precisamente em 1964. Frisa-se que a tradição oral se manteve. Esse

ensinamento ficou guardado em sua memória durante toda a juventude,

quando precisou trabalhar como empregada doméstica nas fazendas da

região. A prática, portanto, ficou adormecida. “Eu, com 10 anos eu já comecei

fazer. Modelei o meu primeiro pote. Eu aprendi a fazer cerâmica com minha vó,

ela gostava de fazer cerâmica, eu ia lá na casa dela, daí eu via ela fazendo”

(CANAZILLES, 2014, p.1).

A retomada da produção aconteceu no ano de 1984 (ALVES, 2015), e

se ampliou com a criação da Associação Indígena dos Ceramistas Kinikinawa,

fundada na década de 1980 (ALBUQUERQUE SOUZA, 2012) e formalizada

em 2003. Agueda Roberto, já aposentada, começou a dispor de tempo

suficiente para aperfeiçoar seu artesanato, além de passar seus

conhecimentos para as novas gerações. O esmero encontrado hoje no trabalho

da artesã indígena provém de muitas horas de dedicação e empenho. Natasha

Smoke Santiago, ceramista Mohawk do território de Akwesasne, Nova York,

EUA, acentua em entrevista concedida a CANAZILLES (2015a), que uma

década é suficiente para que se tenha um aperfeiçoamento técnico satisfatório

do trabalho em cerâmica: “I have been working with traditional Mohawk pottery

for over a decade, and am becoming pretty good at it”.

Em 2009 a pesquisadora Lucicleide Gomes dos Santos acompanhou a

produção do artesanato de Agueda Roberto na Aldeia São João. “Percebemos

que a cerâmica Kinikinau passa por um processo de estruturação, pois a cada

visita notam-se elementos novos tanto na técnica quanto na forma, o que de

forma alguma desmerece a cerâmica produzida” (SANTOS, 2011, p.110). Ao

compararmos os registros fotográficos realizados em 2009 e 2012 (Figuras 2 e

3), percebemos que o domínio dos procedimentos técnicos relacionados a

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forma se manteve. Segundo BOAS (1947, p.27), “Uma vasilha de forma bem

arredondada é igualmente o produto do completo domínio de uma técnica. As

tribos primitivas fazem sua cerâmica sem ajuda do torno de oleiro. O

virtuosismo e a regularidade da superfície e da forma mantêm uma íntima

relação”. Nota-se porém que houve uma evolução nos padrões iconográficos e

na composição ornamental da cerâmica Kinikinau.

Figura 2. Vaso Kinikinau. 2009 Figura 3. Vaso Kinikinau. 2012

Artesã Agueda Roberto Artesã Agueda Roberto

Fonte: SANTOS (2011, p.107) Coleção Gilberto Luiz Alves.

Com o passar dos anos a artesã se apoderou de um domínio técnico

cada vez mais habilidoso. O “estilo de um artista muda a medida que sua obra

se desenvolve e cresce” (OCVIRK et al., 2014, p.4). A aplicação bem

equilibrada de motivos geométricos como espirais, curvas, contra-curvas,

losangos, triângulos e degraus intercalados denotam uma aproximação com a

célebre cerâmica Kadiwéu. Apesar das semelhanças, ALVES (2015), afirma

que a cerâmica Kinikinau tem sua própria singularidade e se distingue

nitidamente da Kadiwéu. Além da ausência dos baixos-relevos, impressos por

meio de cordões tecidos com fibras de caraguatá [e recobertos com o caulim],

as formas geométricas são pintadas com contornos mais espessos,

decorrentes da utilização de “graveto como pincel”. Com isso, se distanciam

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dos delicados filetados Kadiwéu além de incorporarem “uma característica mais

orgânica que expressa maior movimento e dinamismo em sua composição”

(CANAZILLES, 2013, p.44-46).

Porém, há pesquisadores que afirmam que esses grafismos parecem

ser uma imitação, a exemplo de SOUZA (2008). Ela declara que “algumas

práticas atuais, principalmente as referentes ao artesanato, à pintura corporal,

aos adornos, parecem imitações, busca obstinada por uma identidade indígena

que a história perversa das políticas indigenistas tratou de apagar” (SOUZA,

2008, p.17). Outros pesquisadores declaram que os desenhos geométricos

inseridos na cerâmica Kinikinau contemporânea tratam-se de apropriações de

técnicas oleiras Kadiwéu (BOLZAN, 2013).

Analisando a trajetória histórica das duas etnias, em que relações

conflituosas sempre estiveram presentes, os termos imitação e apropriação

devem ser utilizados com cautela. Isso porque podem denotar um sentido

negativo na acepção da sociedade e da própria população que está sendo

pesquisada, além de acentuar relações de tensão entre os artesãos. Este

ponto de vista pode conferir também certa “inautenticidade” ao artesanato

Kinikinau, retirando grande parte do mérito de seus criadores. Um exemplo

disso são os questionamentos desconcertantes dirigidos ao indígena Kinikinau

e pesquisador da etnia, Albuquerque Souza, em uma entrevista realizada em

2014,

“Combate – Sobre as relações dos Kinikinau com os

Kadiwéu, sei que não vêm sendo muito tranquilas, havendo

até mesmo uma disputa pelos trabalhos em cerâmica

desenvolvidos pelas mulheres. Você quer falar a respeito?

Rosaldo – Sim, eu me sinto à vontade para falar, [...]. [...],

não há uma disputa, mas algumas pessoas pensam que as

ceramistas Kinikinau copiaram seus desenhos, o que é um

equívoco” (PACHECO, 2014).

Em sua dissertação o pesquisador complementa, “O grafismo Kinikinau

tem alguns traços parecidos com as pinturas e desenhos Kadiwéu, porém,

segundo as ceramistas, não são cópias nem imitação. São frutos da arte

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própria dos Kinikinau, representam os rios, as florestas, os animais e tudo o

que se observa na natureza” (ALBUQUERQUE SOUZA, 2012, p.33).

Fato que pode dar um outro enfoque à essa discussão são os resultados

de uma pesquisa histórica e arqueológica empreendida no ano de 1994, em um

aldeamento missionário do século XIX, localizado na região do Pantanal sul

mato grossense. O artigo denominado: A Missão Nossa Senhora do Bom

Conselho, Pantanal, Mato Grosso do Sul, foi parte integrante do Projeto

Corumbá do Programa Arqueológico do Mato Grosso do Sul19.

Os pesquisadores PEIXOTO e SCHMITZ (1998) identificaram dois sítios

arqueológicos da antiga missão Nossa Senhora do Bom Conselho, grande

aldeia dos Kinikinau que existiu durante o século XIX. Foi dirigida por Frei

Mariano de Bagnaia entre os anos de 1850 e 185620 e por Frei Ângelo de

Caramânico a partir de 1857 até 1863.

Conforme PEIXOTO e SCHMITZ (1998), os dois sítios apresentaram

cerâmica pintada com presença de decoração plástica, existindo uma

preponderância na pintura vermelha com motivos geométricos e na impressão

de corda (Figura 4), técnica normalmente associada aos Kadiwéu.

Além disso, a partir da reconstrução gráfica determinaram-se seis

formas de vasilhame (Figura 5). Foi possível também saber a técnica de

produção utilizada, ou seja, a técnica do acordelado, que faz parte da tradição

ancestral dos Kinikinau.

Enfim, caso haja comprovação de que o material cerâmico identificado

nos sítios é de autoria da etnia Kinikinau, este poderá auxiliar na revitalização

da cultura material produzida atualmente, libertando o grupo de julgamentos

precipitados que envolvem termos como imitação e apropriação. Vale destacar

aqui as pesquisas da etnóloga SUSNIK (1978), evidenciando que a origem da

produção da cerâmica Kadiwéu foi influenciada por um intercâmbio cultural

existente no passado com os grupos Guaná, ancestrais dos Kinikinau, Terena

e Layana. Portanto, é “muito difícil referir-se às práticas culturais tradicionais,

sejam Kinikinau ou Kadiwéu, como exclusivas desses grupos, quando se

19 O Projeto Corumbá, executado entre os anos de 1990 e 1999, com financiamento do Instituto Anchietano de Pesquisas, da Universidade do Vale do Rio Sinos, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul. 20 Ver Canazilles et al. (2013).

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percebe uma intensa circularidade de elementos culturais, própria de situações

de fronteiras étnicas, [...]” (SILVA e SOUZA, 2008, p.32).

Figura 4. Vestígios Arqueológicos: possível cerâmica Kinikinau

Fonte: PEIXOTO e SCHMITZ (1998, p.151).

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Figura 5. Formas e tratamento da superfície dos vasilhames identificados. Fonte: PEIXOTO e SCHMITZ (1998, p.152-153).

O que se observa hoje é que está em curso um processo constante de

aperfeiçoamento da cerâmica Kinikinau. Restituir aos proprietários um

patrimônio que lhes pertence há mais de um século é dar um novo significado

para a sua cultura material, permitindo devolver ao grupo parte de sua história

e de suas tradições esquecidas. Evidentemente a decisão de utilizar ou não

essa herança cultural21 na produção contemporânea caberá unicamente ao

grupo. Esse assunto deverá merecer aprofundamentos, logo, será alvo de

estudos posteriores.

Arte indígena na perspectiva de Franz Boas Antes de discutir a relação da cerâmica Kinikinau com o caráter de

objeto artístico sob a perspectiva da “arte primitiva” de BOAS (1947) é preciso

esclarecer que a cerâmica produzida na atualidade nasceu ou “renasceu” no 21 Importante exemplificar aqui o trabalho da artesã indígena Natasha Smoke Santiago de Nova York, EUA. Com o intuito de restaurar o que foi perdido há mais de dois séculos, uma parte de seu trabalho cerâmico se inspirou nos vestígios arqueológicos da cerâmica tradicional Mohwak.

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interior da sociedade capitalista. Portanto, sua reprodução tornou-se viável

somente sob a condição de mercadoria (ALVES, 2015). No entanto, esta

possui evidentes traços ancestrais tanto em sua técnica de produção, quanto

na matéria-prima empregada. Os próprios vestígios arqueológicos encontrados,

caso se comprovem Kinikinau, acentuam a presença de grafismos geométricos

nas ornamentações do passado, incorporações também evidenciadas hoje.

Deste modo, para evitar disparidades de ordem teórica, achamos fundamental

examinar o valor estético da cerâmica Kinikinau sob essa ótica, já que as

manifestações atuais, apesar de apresentarem atributos inéditos, remetem às

expressões tradicionais.

Além disso, se considerarmos a visão de Walter Benjamim, não existe

diferença entre obra de arte e mercadoria, no sistema capitalista. No passado a

atividade humana estética era apenas uma conduta cultural. “Assim que a arte

[burguesa] se constitui, no sentido próprio que hoje lhe damos, ela é

inseparável da forma de mercadoria” (BOLZ, 1992, p.92).

O elemento formal

O primeiro ponto a ser considerado na produção de cerâmica artística é

a execução de seu aspecto formal. A paciência e a destreza durante todo o

processo, principalmente o de modelagem, devem revelar o domínio de uma

técnica. BOAS (1947), acredita que existe uma íntima relação entre a

habilidade empregada pelo artesão e a atividade artística. A forma da cerâmica

tem que ser harmoniosa e deve haver uniformidade em seu tratamento externo.

Isso porque se converterão na base da decoração. “Toda falta de controle

automático produz irregularidades no desenho da superfície” (BOAS,1947,

p.26).

Durante a observação sistemática da produção da cerâmica Kinikinau

realizada a campo pudemos constatar a maestria de Agueda Roberto. No

processo de modelagem (Figura 6), ela sobrepõe os cordões em espiral

empregando uma pressão constante no “barro”. O alisamento une o conjunto

de cordões deixando a superfície uniforme e perfeitamente arredondada. Além

disso, o domínio técnico de que a artesã dispõe possibilita lhe conferir

agilidade. “[...], o virtuosismo, o domínio completo dos procedimentos técnicos,

significa uma regularidade automática de movimento” (BOAS, 1947, p.26).

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Figura 6. Processo de modelagem da cerâmica Kinikinau. Artesã

Agueda Roberto.

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A habilidade de Agueda Roberto permite também fazê-la ousar em suas

criações. Além de vasos tradicionais, modelagens zoomorfas são

confeccionadas representando a natureza (Figura 7). Manifesta-se na forma,

além de um estilo tradicional, também um “estilo figurativo” (RIBEIRO, 1980,

p.264).

Figura 7. Modelagem zoomorfa. Cerâmica Kinikinau.

Artesã Agueda Roberto.

Com o aspecto formal bem resolvido, outro elemento a ser considerado

é a existência de simetria nos padrões ornamentais, a qual “podemos observar

na arte de todos os tempos e de todos os povos. [...] até nas formas mais

sensíveis de arte decorativa se encontram formas simétricas” (BOAS, 1947,

p.37). Na própria fabricação da cerâmica acordelada “a simetria é o resultado

do procedimento empregado para fazê-la. Girando a vasilha [...] regularmente

obtém-se uma forma circular” (BOAS, 1947, p.40).

Seu uso tão frequente pode estar relacionado a uma razão fisiológica. A

sensação dos movimentos de direita e esquerda do corpo humano produzem

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esse sentimento simétrico horizontal. Por outro lado, é menos comum

detectarmos na arte decorativa a aplicação de simetria vertical porque os

movimentos verticais do corpo humano são naturalmente assimétricos (BOAS,

1947).

Além da simetria bilateral, em que os dois lados de um único eixo são

exatamente iguais, temos a simetria invertida (Figura 8), que nada mais é que

“uma inversão das metades simétricas” (BOAS, 1947, p.42). Ou seja, há uma

rotação do desenho decorativo em um dos lados. Nas formas circulares

podemos ter também a simetria radial (Figura 9), em que “as zonas simétricas

estão desenhadas em forma radial, podendo existir [...] repetições” (BOAS,

1947, p.42). Neste caso, o objeto tende a apresentar vários eixos de simetria.

Eixo Eixos

Figura 8. Análise da simetria invertida

usada na cerâmica Kinikinau com

base em BOAS (1947).

Figura 9. Análise da simetria radial

usada na cerâmica Kinikinau com

base em BOAS (1947).

No trabalho de Agueda Roberto os três tipos de simetria apontados

acima se fazem presente. Percebe-se também o esforço em produzir padrões

simétricos pelas novas gerações. “Uma imagem simétrica representa a forma

mais elementar de equilíbrio artístico. Esse atributo imponente pode prender

nossa atenção, mas sua influência é breve, pois a composição é estática”

(OCVIRK et al., 2014, p.68). Essa composição estática está relacionada ao que

chamamos de simetria pura, em que um lado é exatamente igual ao outro. A

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encontrada na obra de Agueda Roberto não é pura, denomina-se simetria

aproximada, porque os lados divididos pelo eixo central apesar de

semelhantes, não são idênticos. Isso decorre do caráter orgânico de suas

ornamentações. “Em geral, as composições com simetria aproximada são

muito mais interessantes do que as com simetria pura – as diferenças criam

maior interesse e, portanto, prendem a atenção do observador (OCVIRK et al.,

2014, p.68).

É preciso considerar que nestes últimos anos, Agueda Roberto vem

apresentando inovações em seus padrões ornamentais. A assimetria é uma

delas (Figuras 10 e 11). “O estilo expressivo de um artista realmente se

desenvolve por meio do tempo e da prática repetida” (OCVIRK et al., 2014,

p.6).

Figura 10. Composição assimétrica. Cerâmica Kinikinau.

Artesã Agueda Roberto. Coleção Gilberto Luiz Alves.

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Figura 11. Composição assimétrica. Cerâmica

Kinikinau. Artesã Agueda Roberto.

Somente o senso de proporção compositivo permite que se alcance

equilíbrio em uma composição assimétrica, de maneira a harmonizar as

diferentes forças visuais. Agueda está se apropriando dessa técnica e tem

revelado obras auspiciosas. “Não há regras para se conseguir o equilíbrio

assimétrico”, mas o artista precisa tratar as “forças opostas e suas tensões

para que pareçam equilibrar umas às outras dentro da totalidade de uma obra,

[...]” (OCVIRK et al., 2014, p.72). Destaca-se neste trabalho a assimetria como,

também, elemento formal de valor artístico, confrontando um dos critérios

definidos por BOAS (1947). Neste sentido presume-se que é o equilíbrio o

elemento fundamental em uma obra de arte, tanto simétrica quanto

assimétrica.

Outro ponto fundamental é a existência de repetição rítmica, ou seja, a

repetição regular de um padrão ou motivo. Geralmente os elementos se

repetem horizontalmente realçando as divisões do campo decorativo. “As

atividades técnicas [como a do acordelado] em que empregam movimentos

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repetidos regularmente conduzem a repetição rítimica na direção seguida pelos

movimentos” (BOAS, 1947, p.47).

Essa foi outra característica encontrada na cerâmica de Agueda

Roberto, revelada com propriedade. A mesma série de formas repetidas

normalmente em faixas horizontais produz uma sensação de movimento à sua

obra. “Um dos atributos da repetição é a capacidade de produzir ritmo. [...]

Dependendo de como são utilizados, a repetição e o ritmo podem despertar o

interesse em uma obra de arte e lhe conferir harmonia” (OCVIRK et al., 2014,

p.47).

Finalmente, outra característica encontrada na arte decorativa em todas

as partes do mundo é a aplicação de padrões marginais, ou seja, bordas que

destacam o artefato. “[...] não podemos referir essa tendência mundial a

nenhuma outra causa senão a um sentimento da forma, ou, em outras

palavras, a um impulso estético que move o homem a acentuar a forma do

objeto que sai de suas mãos” (SCHELTEMA apud BOAS, 1947, p.65).

Agueda Roberto normalmente divide o campo decorativo de um vaso em

três partes. O pescoço se destaca do corpo pela aplicação de um coroamento

que faz o arremate da borda superior. Já o campo inferior é dividido em duas

metades compostas por faixas ornamentais distintas (Figura 12).

Figura 12. Divisão do campo decorativo e repetição rítmica

Repetição rítmica

Divisão do campo decorativo

Parte I

Parte II

Parte III

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Na cerâmica “não só a forma geral é acentuada e limitada, bem como

suas divisões naturais são também determinantes na aplicação dos padrões

decorativos e fazem com que a decoração se distribua em campos bem

distintos” (BOAS, 1947, p.66).

De acordo com essas considerações podemos concluir que está

presente na cerâmica de Agueda Roberto o elemento formal que se manifesta,

nas artes gráficas e plásticas, por meio da simetria, da repetição rítmica e da

acentuação da forma. (BOAS, 1947). Portanto o artesanato de Agueda Roberto

deve ser considerado objeto de caráter artístico.

Podemos também configurar o trabalho de Agueda como fruto de um

“trabalho qualificado” porque contrapõe-se ao “trabalho especializado” imposto

pela manufatura, ou divisão do trabalho (ALVES, 2014). A artesã tem revelado

domínio técnico. Ela conhece bem todas as operações necessárias para a

produção do objeto artesanal. Destaca-se que esse artesanato tem grande potencial de consumo no

mercado. Pudemos constatar em dois momentos, no Festival de Inverno de

Bonito em 2014 e 2015, que suas obras despertaram nos consumidores grande

fascínio.

Conclusão

A arte indígena Kinikinau é manifestada em três diferentes momentos.

Quando comunidade primitiva, no momento do ostracismo e hoje, na

perspectiva do mercado.

Na comunidade primitiva, os Kinikinau manifestaram uma arte ceramista

representada com motivos geométricos e impressão de corda, técnica

normalmente associada aos Kadiwéu. Porém, é evidente o intercâmbio artístico

entre diferentes etnias, tanto no passado, quanto ainda no presente. Enfatiza-

se aqui a importância em não se considerar os elementos culturais exclusivos

de apenas um grupo étnico. Frise-se que a necessidade de comprovação da

autoria da cerâmica ancestral encontrada não anula o fato de haver existido no

passado uma cerâmica Kinikinau.

Durante o período do ostracismo, observa-se que o artesanato Kinikinau

se manteve “adormecido” esperando o momento exato para emergir. A técnica

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do acordelado, guardada na memória dos mais velhos e manifestada na

atualidade, evidencia o desejo em dar continuidade em aspectos do passado

histórico da etnia.

Hoje, na condição de mercadoria, o artesanato Kinikinau se “reinventa”

e passa a aflorar expressões artísticas de grande valor outrora reprimidas

durante o longo período de invisibilidade. O trabalho singular de Agueda

Roberto é um exemplo disso. A artesã indígena detém o controle teórico-

prático e o domínio de todo o processo de produção da cerâmica Kinikinau,

além de evidenciar em suas peças características singulares como

originalidade, exigência do campo artístico e manifestações de ordem estéticas

ligadas à “vontade de beleza” (RIBEIRO, 1980) que proporcionam um

significado único e diferente para cada peça.

É também na perspectiva do mercado que a individualidade do artista

indígena começa a ser reconhecida. Isso decorre da emergência do indivíduo

despertada por um valor tipicamente burguês. ALVES (2016, p.3) acentua que

“está em curso, na produção do artesanato indígena, a transição da

‘impersonalidade coletiva’ da arte primitiva para o ‘personalismo da arte

contemporânea”.

O artesanato de Agueda Roberto possui todos os “elementos

determinantes da arte ornamental” (BOAS, 1947, p.69), os quais englobam a

execução de um aspecto formal bem executado, a existência de simetria nos

padrões ornamentais, a repetição rítmica e a aplicação de padrões marginais.

Conclui-se, portanto, que este pode ser considerado objeto de caráter artístico.

Destaca-se também que a cerâmica Kinikinau tem grande potencial de

consumo no mercado, despertando nos consumidores grande fascínio. Talvez

aí esteja a sua maior semelhança com a cerâmica Kadiwéu. Agradecimentos

A autora agradece a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

Nível Superior (CAPES); a Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino,

Ciência e Tecnologia de Mato Grosso do Sul (FUNDECT), a Universidade

Anhanguera – Uniderp e a Université du Quebéc en Outaouais, Canadá.

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7. Conclusão Geral

O artesanato Kinikinau “reinventado” foi determinado pela etnia na

atualidade como instrumento de identidade étnica porque a sua produção vem

enraizada de um significado profundo que envolve um sentimento de

reafirmação do grupo. SILVA e SOUZA (2008) definiram esse sentimento como

“vontade de diferença”.

É importante acentuar que a cerâmica Kinikinau, no contexto em que se

encontra hoje, vem imbuída também de preocupações estéticas que revelam

outro sentimento, a “vontade de beleza” (RIBEIRO, 1980). Este permitiu ao

grupo aflorar expressões artísticas de grande valor outrora reprimidas durante

o longo período de invisibilidade.

O mercado do artesanato indígena da cidade ecoturística de Bonito,

Mato Grosso do Sul, é o fator determinante na luta pela afirmação da

identidade étnica Kinikinau porque dá visibilidade ao grupo frente à sociedade

capitalista. Destaca-se ainda que a cerâmica Kinikinau, especialmente a da

artesã Agueda Roberto, tem grande potencial de consumo no mercado porque

desperta nos consumidores um grande fascínio.

É também na perspectiva do mercado que a individualidade do artista

indígena começa a ser reconhecida. Isso decorre da emergência do indivíduo

despertada por um valor tipicamente burguês. ALVES (2016, p.3) acentua que

“está em curso, na produção do artesanato indígena, a transição da

‘impersonalidade coletiva’ da arte primitiva para o ‘personalismo da arte

contemporânea”.

O trabalho singular de Agueda Roberto é um exemplo disso. É

reconhecida como a principal artesã da etnia na cidade de Bonito. Agueda

Roberto expressa em seu trabalho originalidade e busca por apuramento

técnico. Cada exemplar da artista é único tornando-se impossível dissociar sua

autoria. Ela detém o controle teórico-prático e o domínio de todo o processo de

produção da cerâmica Kinikinau, além de evidenciar em suas peças

manifestações de ordem estética que estão ligadas à “vontade de beleza”. O

artesanato de Agueda Roberto pode ser considerado objeto de caráter artístico

porque possui todos os “elementos determinantes da arte ornamental” (BOAS,

1947, p.69).

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Importante acentuar que as condições para o escoamento do artesanato

Kinikinau no mercado revelam, contraditoriamente, um grande número de

limitações. Além disso, as políticas públicas voltadas a projetos de melhoria

referentes ao processo de produção e comercialização da cultura material

Kinikinau ainda são inexistentes.

Esses fatores impedem que o artesanato Kinikinau se consolide no

mercado de uma maneira satisfatória, para atender às expectativas do grupo

em relação à sua afirmação e, inclusive, às suas necessidades concernentes à

geração de renda. Por isso é necessário a interferência do Estado com ações

governamentais repensando as práticas vigentes e instaurando novas

estratégias por meio de políticas públicas no sentido de incentivar e inovar a

produção, bem como melhor prover o escoamento do artesanato indígena no

mercado. Dessa maneira será possível proporcionar atalhos para a afirmação

da identidade, além da melhoria do bem estar social nesses grupos por meio

da geração de renda, elemento determinante para a valorização cultural.