Arte Popular com A maiúsculo - Ângela Mascelani

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  • 8/3/2019 Arte Popular com A maisculo - ngela Mascelani

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    Arte Popular com A maisculo

    Giovnia Costa e Karla Hansen

    Entrevista - ngela Mascelani

    A idia original de nossa visita ao Museu Casa do Pontal era l termos uma conversa com a diretora da

    Instituio, ngela Mascelani, antroploga e pesquisadora especializada em Arte Popular. Mas isso no foi

    possvel, na ocasio. Poucos dias depois, no entanto, fomos convidadas pela ngela para conversarmos em sua

    casa, o que foi uma longa e prazerosa aula sobre a Arte Popular brasileira.

    Portal - O que voc gostaria de falar sobre o Museu Casa do Pontal?

    ngela Mascelani - Primeiro, que o projeto educativo o principal projeto do Museu hoje. Embora a gente

    tenha vrias frentes ligadas divulgao da Arte Popular brasileira, por meio desse projeto, podemos fazer algo

    que muito importante que seja feito: mostrar a rica produo desses artistas, que so originrios de camadaspopulares e tm um pensamento sobre o pas que eles vivem, sobre a realidade que vivem, sobre os hbitos, as

    crenas e os costumes, e fazer essa divulgao junto a estudantes.

    O Museu atende a crianas bem pequenas, com quatro, cinco anos, at adultos de programas sociais.

    importante mostrar que, dentro do universo de Museus - se a gente pensar o Museu, na sua origem, voltado

    para a perpetuao de uma memria das elites, ou seja, dos grandes feitos, das grandes representaes - existem

    outras possibilidades, como o Museu Casa do Pontal, que est interessado no pensamento e nas obras que

    surgem nos segmentos populares. E, alm disso, esse Museu visitado por crianas de escolas pblicas e

    privadas. Acho importante atravessar todos os segmentos sociais, ao invs, de voc fazer uma "guetizao", demodo que s as crianas das escolas pblicas vo ver o Museu de artistas populares.

    Ou seja, temos essa possibilidade de mostrar que essa instituio, museu, deve ser mais abrangente do que

    normalmente e tradicionalmente foi. E, j , na realidade. No cenrio brasileiro, j existe essa compreenso.

    um setor que teve um avano muito grande nos ltimos tempos. Se a gente pegar os dez anos anteriores

    veremos uma mudana grande no cenrio do papel do museu e do centro cultural. E eu acho que isso uma

    coisa importante: existir um museu de Arte Popular abrangente, porque faz com que esse segmento saia da

    invisibilidade e que tenha uma conscincia de direitos.

    Quais foram as mudanas significativas nos ltimos dez anos?

    Bem, primeiro existe uma preocupao com a questo do popular. Voc no pode ignorar que existe essa

    categoria. A gente que trabalha nessa rea sabe que no campo da arte, o adjetivo popular, num certo sentido,

    restringe, diminui. Por outro lado, acredito que ele ainda seja necessrio. Porque o uso da "Arte Popular" tem

    uma dimenso estratgica de fazer ver que, fora dos meios cultos, tambm h arte, e arte com A, maisculo.

    Mas, evidentemente, que qualquer pessoa pensa: "bem, os artistas se dividem em artistas populares, artistas

    elitizados..." No. Os grandes artistas so grandes artistas, independentemente, do rtulo que eles venham a ter.

    Mas a gente mantm a denominao Museu de Arte Popular Brasileira, de forma consciente, porque as pessoasainda tm uma viso bastante preconceituosa, ou seja, tem preconceitos, que so algumas idias do que seria

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    tpico do povo. Sejam idias romnticas - achar que o povo sempre faz coisas incrveis -, sejam idias como

    achar sempre que o povo, por no ter acesso a informaes acadmicas, por no ter acesso escolaridade plena,

    por no ter acesso a livros, a filmes etc. v produzir uma arte que seja de menor qualidade.

    O Ferreira Gullar fala uma coisa legal que : "no a erudio que produz a Arte Popular". Mas a prpria

    arte. Assim como no a erudio que produz a filosofia, como dizia o Guy, meu marido (filho de Jacques Van

    de Beuque, filsofo e um dos principais articuladores do Museu como instituio, falecido em 2004). nisso

    que a gente entra, a gente entra meio que desmontando esses preconceitos.

    Qual a diferena entre Arte Popular, Artesanato, Arte Naf?

    Uma boa imagem a seguinte: o artesanato um campo essencialmente democrtico, ele admite todo tipo de

    contribuio desde que feita mo. Esse um grande campo. Agora, cada pas e alguns grupos de pases

    entenderam a produo artstica de segmentos populares de maneiras diferentes. No Brasil, a Arte Naf ficou

    mais associada pintura. Mas essa uma caracterstica s do Brasil.

    E como isso se faz? Isso se fez ao longo da histria. Foi acontecendo, no houve um a priori do pensamento.

    Ela se constitui acontecendo. A primeira exposio importante de Arte Popular foi trazida para o Rio de Janeiro

    por Augusto Rodrigues, que era pintor. E, talvez por ser pintor, ele tenha olhado para a escultura com um olhar

    de absoluta admirao, porque era aquilo que ele no fazia... Ele traz a primeira exposio de escultores

    pernambucanos, entre eles o Mestre Vitalino, em 1947. E ao trazer s escultura, j est definindo e dando esse

    nome de Arte Popular a esse tipo de produo.

    Outra coisa, por que escultura? Porque o conceito de Arte Popular tambm est ligado ao conceito de arteprimitiva que, na verdade, j vem do final do sculo XIX e incio do XX e, pensando mais especificamente, na

    exposio sobre arte negra em Paris, em 1905, que vai influenciar Picasso, e que foi uma exposio

    essencialmente de esculturas. Acho que essa correlao (Arte Popular/Arte Primitiva) ajudou a fazer esse

    recorte, olhando para essa arte escultrica e chamando, ento, "a" Arte Popular, por excelncia. Embora, a

    gente use o termo Arte Popular para muitas reas diferentes: danas, msica, festas...

    Se fssemos fazer uma diviso, o artesanato aquele grande campo, no qual as mudanas que vo ocorrendo

    no so identificadas a um indivduo. So mudanas lentas, a tradio transformada de uma maneira mais

    lenta e sempre coletivamente. Por exemplo, se a gente pegar o fenmeno do carnaval atual de rua do Rio.

    Quem capaz de dizer, exatamente, como foi que comeou essa fartura de blocos, esse "renascimento" do

    carnaval de rua? Foi o "Cordo do Boitat"? Foi o "Cu na Terra"? Foram "As Carmelitas"? "Os Gigantes da

    Lira"? Ser que a renovao do chorinho comeou em Parada de Lucas, com Maurcio Carrilho? Nas escolas

    de msica? Ser que comeou no Circo Voador, na Lapa? A histria que vai podendo dar essas respostas...

    Ento, no artesanato acontecem essas mudanas que a gente no sabe quem fez a mudana aparecer.

    Na Arte Popular, o Museu do Pontal marca uma diferena, porque ele olha para o indivduo, para o artista que

    autor. Ou seja, ele assinala as autorias. Houve um momento que, no Brasil, na dcada de 1950, normalmente se

    pensava a Arte Popular como uma arte annima, ou uma arte de grupos, de coletividades - o que verdade,

    aconteceu assim tambm -, e hoje houve uma aproximao desse mundo da Arte Popular, das "artes cultas", no

    sentido de mostrar que tem uma autoria singular. Quer dizer, aquele autor capaz de, na sua obra, ter marcas

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    A visita do Saramago ao Museu do Pontal, - onde ele viu uma obra que lhe provocou um "insight" para o

    romance que ele estava escrevendo na poca - me fez pensar na experincia de ter contato com uma obra de

    arte e de isso despertar algo transformador numa pessoa... Voc pode falar um pouco sobre isso?

    Voc est falando sobre a questo do sensorial, do contato com a arte, sem os condicionantes culturais, no

    isso?

    isso.

    Ou seja, voc vai l, entra, e mesmo que voc no saiba nada, no fale nada, no converse com ningum, j est

    acontecendo alguma coisa. Foi o que aconteceu com o Saramago. Eram quase cinco horas da tarde quando ele

    chegou, portanto, o Museu estava fechando. Na ocasio, a gente tinha um caseiro que morava l e o caseiro

    disse que ele era um senhor sozinho e tinha um motorista esperando. Hoje no possvel fazer isso, mas

    naquela ocasio foi. E a, o Saramago tem essa experincia de visitar o Museu completamente vazio, num final

    de tarde. E ele vai se deixando tocar por aquele mundo e vai fantasiando a respeito daquilo, ele deixa suafantasia fluir.

    E isso tambm muito importante! A gente no olha para as crianas nem para os professores que vo visitar o

    Museu como uma caixa vazia que possa ser preenchida de contedo e nem que tenha que ser preenchida.

    Porque, s vezes, uma emoo vivida, um sentimento, to mais forte que pode dar estmulo para que a pessoa

    possa se aprofundar na vida fora, por outros caminhos. A gente acha que a visita tem que ser prazerosa e, por

    isso, temos esse projeto educativo com multilinguagens artsticas, para que as pessoas sejam tocadas

    emocionalmente tambm. (ngela se refere visita teatralizada)

    Por outro lado, quanto mais informao se tem, mais se pode aprofundar a experincia sensorial com a arte.

    At porque na Arte Popular, os artistas esto sempre brincando com uma aparncia e uma hipottica essncia.

    Por exemplo, os "retirantes", que consagram aquela imagem da velhinha sentada no burro, na frente, com

    cachimbinho, as trouxas na cabea, expulsos da terra pela seca... e a "volta da roa", so obras muito parecidas

    em termos formais, mas opostas no significados.

    Uma outra brincadeira pode ser percebida na "serraria". Aqueles homenzinhos serrando, naquele mundo

    idealizado, todo mundo firme e contente e, dentro, um gerente, assinando um aviso prvio! So esses pequenos

    truques. E, num certo sentido, eu ainda estou falando do aspecto de contedo, que o aspecto que tem me

    concernido mais em relao ao Projeto Educativo desenvolvido pelo Museu e coordenado pela Juliana Prado.

    Mas, o projeto vai alm disso. Ele prope outros tipos de leituras, outras possibilidades de leituras: sensoriais,

    plsticas, estticas, etc.

    A gente vive num mundo com excesso de apelo visual, e a visita ao Museu pode ser mais um apelo visual, se a

    gente no tem essas outras leituras, ou um olhar mais aguado...

    Essas segundas leituras, esses desdobramentos de leitura, isso uma coisa muito interessante. Tem uma obra

    que um parto de ccoras feito pelo Antnio Poteiro. Tem a parteira sentada no cho e, no mesmo corpo debarro, tem um menino de short e de camiseta de ponta-cabea, de forma que o menino que est nascendo j est

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    rebatido com o que ser o menino. a presena do futuro dentro de uma semente que ainda vai nascer. o

    artista j vendo essa criana que vai nascer - a obra "uma parteira" - e j tem um menino, com quatro anos de

    idade, mas naquela posio rebatida, como se ele fosse toda potncia presente ali. Tem uma dimenso

    filosfica do que viver, do que o vivo, do que o nascimento, que tambm muito rica!

    Outra obra interessante "A volta do cangao". So bonecos animados, mas trata-se de uma sesso de tortura!

    Agora, para comear a tortura, algum tem que ligar. E isso uma cilada, tambm. Eu tive essa experincia

    quando estvamos discutindo o projeto educativo: o que fazer diante de certos temas que so muito polmicos?

    Realmente, uma pea como "A volta do cangao", com os cangaceiros capando homens, degolando, torturando,

    um horror, uma carnificina... como que a gente vai abordar isso numa visita didtica, numa visita

    pedaggica? Vamos ser moralistas em relao a isso? E no ser moralista, ser o qu? A gente vai se

    posicionar enquanto instituio? Como que faz com essa questo?

    No teatro popular, existe uma maneira de lidar com o que criticvel expondo, superexpondo. E nessa

    superexposio - h uma tradio disso no teatro de mamulengo - voc pode mexer com a conscincia crtica, a

    partir do horror que exposto e do riso.

    Diante de "A volta do Cangao", as crianas olhavam em volta e riam daquela coisa. Mas estava tudo

    paradinho. Para ligar, algum tem que botar a mo ali... Ns que no temos "nada a ver com isso"", "eu que no

    tenho nada a ver com a violncia", no ? Mas a gente se implica na violncia, e ali, essa coisa que a gente sabe

    conceitualmente fica clara: estamos todos implicados na violncia, na medida em que a gente est implicada no

    destino do pas, no destino do mundo... e a obra nos permite realizar, experimentar isso. Voc liga e o negcio

    comea a funcionar e voc se d conta que foi voc quem ps para funcionar...

    Ento, o acervo um celeiro de oportunidades didticas, de oportunidades de aprofundamento, de pensamento.

    muito legal!

    No d para ver tudo numa visita s, preciso voltar muitas vezes ao Museu...

    Tambm tem isso, a magia do Museu nunca se mostrar todo, embora, esteja tudo exposto. um exposto

    cheio de coisas que no so vistas.

    Tem, por exemplo, o "Boa sorte no amor", do realejo. Essa coisa de relacionar o amor com a boa sorte, uma

    viso to bonita do amor! A boa sorte no amor aparece como um voto, uma ddiva. Voc imagina, aquele cara

    no realejo, sendo capaz de prever a sua sorte no amor, capaz de lhe dar pistas sobre o amor... E, sem esse

    personagem cada um de ns fica s para dar conta de descobrir essas pistas. E o que isso diz dessa sociedade

    que elimina esse personagem? Porque houve um momento na nossa sociedade em que esses personagens

    proliferaram, desejando boa sorte em todas as ruas, em todos os bairros...

    Lembro de Ferreira Gullar quando ele diz que o homem se inventa, que ele inventa a sua cultura, a sua

    religio... Fico pensando como a sociedade urbana vai eliminando ou tentando apagar a dimenso simblica

    da vida, os rituais vo desaparecendo ou se banalizando, perdendo o sentido, perdendo a beleza.

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    Tem essa questo da morte que eu falei, no ? As pessoas no falam da morte, evitam o assunto, isso uma

    construo atual. Mas, por que tem essa construo, atualmente? Ao mesmo tempo, reconstri,

    simultaneamente ao desaparecimento da morte, uma supervalorizao da juventude, essa coisa toda que todo

    mundo tem que ficar jovem eternamente. L, no acervo do Museu, a gente v uma coisa muito interessante que

    , por exemplo, a conjugalidade na velhice, que outro tema muito interessante.

    Para ns, a conjugalidade est s associada juventude. E na Arte Popular a gente v que h muitos casais de

    velhos, fazendo um monte de coisas juntas: sentados, embaixo de uma rvore, merendando, trabalhando na

    roa, andando, danando. Na reserva tcnica, tem um casal de velhos que dana lindamente! Ento, a idia da

    velhice associada ao amor, amorosidade, conjugalidade, tambm est presente.

    So infinitas as possibilidades de se pensar, a partir desses apelos e de trazer essa memria de segmentos, que

    estaravam afastados da alfabetizao - a primeira gerao de artistas populares que ganham projeo, o que se

    d por volta dos anos 1940 e 1950, no tinha acesso educao formal. Eles eram fruto de uma cultura

    basicamente oral, portanto, sem um registro. Esse registro se deu por meio dessa produo.

    Existe uma idia do objeto testemunho, a qual o Jacques se contrapunha, ele dizia: "eu no selecionei esses

    objetos por serem testemunhos de uma poca histrica, mas porque eles so esteticamente interessantes, o meu

    recorte esttico". Mas, agora, ns, num outro momento, como Museu, como instituio, fazemos essa

    correlao. O colecionador pode ser livre para fazer o que ele quiser fazer, porque o compromisso social dele

    de uma outra ordem. Agora, uma instituio tem srios compromissos sociais, no pode se dar ao luxo de ter

    apenas acondicionantes estticos - cores, linhas de fora, formas, matria usada -, mas, tambm, nos interessa,

    o que ali est e o que isso significa para a histria desse segmento.

    Isso que voc falou sobre a primeira gerao. A exposio de Mestre Vitalino foi a primeira grande exposio

    de Arte Popular?

    No, so escultores pernambucanos, entre eles, Vitalino. Vitalino um caso bem curioso. Ele era msico. Ele

    era falante e acessvel, aquela personalidade aglutinadora. Ento, a Histria, a Grande Histria a histria dos

    grandes vultos, no ? Tambm na cultura popular, as pessoas tentam, permanentemente, identificar quem

    "o" primeiro artista popular. Ningum pode dizer sobre isso. Na verdade, a Arte Popular existiu sempre.

    Em qualquer campo da arte, muitas vezes, um grande artista se torna um arteso, em alguns momentos de sua

    prpria trajetria. O artista tem uma criao e pode repetir essa criao at que ele tenha outra criao. Existe

    aquela pessoa altamente inovadora que todos os dias vai fazer uma coisa nova, como vai ter aquele artista que

    no. Se a gente pensar no Volpi, que ficou em torno de uma temtica e criou uma obra imensa. As pessoas

    podem banalizar e dizer "puxa, mas ele s fazia bandeirinhas"! Mas to genial! A gente v que existem

    mudanas profundas naquelas bandeirinhas, que ele no est sendo um arteso de bandeirinhas, no sentido do

    repetidor, ele est sendo um autor, fazendo uma coisa nova a cada momento, mesmo que as formas sejam

    muito parecidas.

    A diferena, ento, da Arte Popular e do artesanato uma mistura do que se repete com a criao?

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    . Do que surge originariamente com o que se repete. E a repetio interessante. Agora, evidentemente, que

    h um sentido de raridade na obra nica - a a gente teria que ir na Histria da Arte, na "Obra de Arte na Era da

    Reprodutibilidade Tcnica", de Walter Benjamin. H um pensamento que se legitima em cima da obra nica, e

    a acaba que ela tem um valor econmico maior. Embora, a cultura popular bagunce com isso, ela no

    consegue fazer com que a produo seja muito controlada, porque so muitos agentes atuando nesse campo.

    Voc pode encontrar uma obra valendo 2 mil reais, e voc pode compr-la por 50 reais ou voc pode compr-la

    por 16 reais. H um descontrole, um campo muito aberto.

    Voc fala na questo da autoria na Arte Popular, mas as esculturas so bem parecidas, as diferenas entre

    elas so muito sutis...

    Mais ou menos. Eu no concordo com isso, no. Existem algumas constantes, como a prevalncia de certos

    tamanhos nas esculturas. Mas, a gente v que, conforme se aprofunda no conhecimento da Arte Popular, que

    ela muito varivel. Porque a Arte Popular no um estilo de arte. E isso uma outra diferena em relao

    Arte Naf. A Arte Naf um estilo de pintura. Voc pode ser mdico, dentista, gari, empregada domstica, voc

    vai pintar naquele estilo reconhecvel - "isso pintura Naf". Na Arte Popular, no assim. A Arte Popular

    vem por uma questo de origem, de origem sociocultural. E no porque ela tenha em si, como uma obra de

    arte, coisas que s poderiam ser feitas dentro da cultura popular. No, no tem.

    Voltando ao Mestre Vitalino, houve alguns facilitadores para que ele se projetasse nacionalmente, naquela

    poca. Tem a questo do cangao, o fato de o Brasil ganhar o Festival de Cannes com os Cangaceiros (1953), o

    interesse pelos fatos da cultura popular em geral e nordestina, em particular, os movimentos da contracultura,

    os Centros Nacionais de Cultura (CPCs), o Teatro Popular do Nordeste. Esses e outros eventos vo construindo

    uma centralidade para os personagens da cultura e da Arte Popular.

    A, tem o Adalton, que um artista genial! Ele conta que j fazia os bonequinhos de barro, mas resolveu ser

    artista, quando ele viu a mostra do Vitalino no jornal: "mas isso que eu fao arte", disse. Ao escutar no rdio

    que Vitalino estava sendo recebido em Braslia, pelo presidente da Repblica, ele pensou: "mas eu sei fazer

    isso". E assim comea a carreira dele. Quer dizer, tem uma informao que circula, que vai contagiando e

    comea a aparecer esse tipo de produo em vrios lugares...

    Hoje, por exemplo, esse tipo de obra (apontando umas esculturas de sua casa) do Joo Alves, quem criou foi a

    Maria Assuno, foi a grande criadora, que fazia umas bonequinhas pequenininhas assim. O Joo Alves j fazum pouco maior e, atualmente, como j tem muitas pessoas na regio dele (norte de Minas) fazendo, ele est

    tentando fazer umas bonecas enormes!

    Ao mesmo tempo, esses artistas vivem do que fazem e, para eles, a definio, se isso arte ou no , no to

    importante. Quem se interessa por isso quem no se nomeia como parte do popular. Sou eu e voc que vamos

    dizer para ele que aquilo Arte Popular, so os estudantes, os crticos, os marchands. E no se pode ignorar

    que existe um ambiente altamente interessado, que formado pelo mercado. Porque tambm tem um mercado

    ditado pelas leis capitalistas, reservando coisas, deixando para vender s daqui a dois anos, fazendo valorizar,

    fazendo exposies, catlogos... Tem as estratgias de mercado de arte que tambm funcionam nesse mercado.

    Mas essas pessoas (os artistas) vivem do seu trabalho?

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    Atualmente, muita gente j est vivendo de seu trabalho. Por exemplo, vamos pensar numa artista de Campo

    Alegre: ela faz barro, mas o marido vai buscar o barro (so quase que s mulheres que trabalham na cermica),

    refaz o forno, porque o forno estraga, vai pegar a lenha, cuida da roa. Tem uma presena de autores muito

    ligados com a vida rural, mas tem isso tambm nas periferias em torno de grandes centros urbanos. Existem

    artistas, aqui, no Rio, o Adalton, o Dadinho, de Nova Iguau, o Jonjoca, em Niteri. O Antnio de Oliveira,

    que faz aquelas esculturas de madeira, expunha no Po de Acar. Todo mundo que ia ao Po de Acar via o

    "mundo encantado" de Antnio de Oliveira, cuja grande parte est no Museu do Pontal. So quase 3 mil peas

    s do Antnio de Oliveira.

    Hoje mesmo a gente teve uma reunio com pesquisadores do Museu do Folclore e ficamos nos perguntando:

    ser que o Adalton foi influenciado pelo Antnio de Oliveira? So hipteses!

    Conforme o tempo vai passando, vou conhecendo mais gente, e descubro cada artista completamente original,

    alucinado, que no se interessa em fazer nada relacionado a uma carreira, tem artistas que nunca vendem o que

    fazem. Uma vez, Guy e eu fomos atrs de um artista em Penedo, Alagoas. Ele fazia uns barcos, aqueles barcos

    que tem l no Museu, e foi difcil localizar, ele tinha mudado. At que, no terceiro dia que estvamos na cidade,

    achamos.

    Conversamos com ele e ele nos falou uma coisa muito interessante. Ns dissemos que queramos ter uma obra

    dele recente, a, ele falou assim: "olha, eu s trabalho quando eu quero. E quando me pedem eu perco a

    vontade". Entendeu? No havia sada - um paradoxo!

    Voc falou uma vez sobre essa coisa da relao do artista com a obra, de se misturar, de no se misturar,

    como isso?

    , falei da Noemisa, que responde que sempre faz em suas obras os outros. Os artistas tm que ter uma

    pacincia enorme, porque todos os pesquisadores fazem praticamente as mesmas perguntas e os jornalistas

    idem! Vamos todos repetindo aquelas mesmas perguntas para ela e, cada vez, ela vai elaborando uma

    resposta... Se lhe perguntam mil vezes a mesma coisa, se voc uma pessoa criativa, vai inventando outras

    respostas, vai elaborando coisas que, s vezes, nunca tinha pensado sobre aquilo, a coisa da criao mesmo.

    Ento, a gente pergunta: "Noemisa, por que voc faz noivas se voc nunca se casou?". "Porque noiva so as

    outras", ela responde. uma coisa de um olhar de cronista, de algum que est olhando o mundo de fora.

    Outros artistas, como Ulisses, que da mesma regio, de Cara (MG), j diz que a obra ele, que a obra dele se

    comunica com ele, que conversa com ele, esteja ele onde estiver. Ele diz que a obra produzida pelas foras da

    natureza, que ele s um veculo para essa produo. Quer dizer, ele j tem um outro envolvimento, ele e a

    obra, no tem uma diferena muito grande.

    E aquela obra, que eu gosto muito, que a roda, que o artista era um vigia. Conta essa histria...

    Muitos artistas falam sobre isso, como uma espcie de sonho, usada essa imagem de sonho, como a

    idealizao da coisa. Ele era vigia noturno e comeou a ter sonhos acordado. E, em sonhos, apareceu o que ele

    tinha que fazer. Ele, ento, comea a fazer, a partir de uma imagem mental que ele nem sabe como surgiu. Mas

    ele sabe, exatamente, o que quer produzir.

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    Acabei puxando para essa coisa mais pessoal dos artistas, porque eu tinha ficado l trs, quando voc falou do

    Vitalino, que ele era falante e ganha essa projeo...

    Ele era uma pessoa generosa. Todo mundo que voc entrevista e que conheceu o Vitalino artista, conta que ele

    achava que todo mundo tinha que vender suas obras, que no podia ser s um. E os jornalistas, todo mundo, s

    queriam entrevistar e comprar obras de Vitalino. Ele dizia "vocs tem que ver meu compadre tal", "tem uma

    coisa legal no compadre tal". Essa conscincia da parte dele de que era importante para os outros vender, torna-

    se decisiva porque ele era uma pessoa atenta a essa coisa do social.

    Voc continua fazendo pesquisa, viajando?

    Ah, sim. Esse ano, a gente vai publicar um livro sobre o Vale do Jequitinhonha. o Vale do Jequitinhonha que

    chegou no Pontal. O grande problema da Arte Popular que ningum capaz de saber tudo sobre Arte Popular,

    porque ela muito varivel, se voc pegar as indumentrias, as peas, os chapus, os instrumentos...

    Como vocs registram essas pesquisas...

    Temos registro de fotos das prprias obras e dos artistas das pesquisas que ns estamos fazendo. Nos ltimos

    dez anos, a gente vem fazendo bastante pesquisa. Cada perodo, a gente escolhe uma regio e faz uma visita.

    A, faz um pequeno inventrio daquela regio. Em outro momento, faz um outro livro. Ou seja, se a gente

    consegue recursos, a gente aprofunda algumas...

    E, permanentemente, a gente est fazendo esse levantamento, at para ficarmos atualizados em relao ao que

    est acontecendo.

    Este ano, a gente tambm fez em Santa Catarina. Tinham muitos artistas em Santa Catarina que a gente no

    sabia quem eram, no sabia a histria da vida... muito difcil recuperar isso em algumas regies que deram

    menos ateno Arte Popular e Santa Catarina deu pouca ateno a isso. No ano passado, foram quatro

    viagens para o Vale do Jequitinhonha.

    Voc teria algum recado especial para o professor de Ensino Mdio?

    Se a gente pensar nessa faixa de idade, (adolescentes) uma faixa de idade que est muito voltada para a

    descoberta da vida e para sua insero na sociedade. Est pensando no seu projeto de vida, no que vai fazer, equestes mais concretas j esto tocando esse pblico, inclusive, um pblico que tem aulas noite, tambm.

    A visita ao Museu permite que a gente discuta muitos temas ligados compreenso da sociedade e da vida

    social, nas suas diversas fases, o que muito bom. Voc pode abordar, em termos temticos, assuntos que vo

    desde a questo da sexualidade at hbitos e costumes que existem, existiram, esto em desaparecimento, esto

    reaparecendo. Se voc faz uma leitura histrica daquelas obras que esto no Museu, voc pode realmente

    perceber como que a sociedade foi elaborando as suas questes fundamentais.

    Voc acha que importante que o professor v ao Museu antes de levar a turma?

  • 8/3/2019 Arte Popular com A maisculo - ngela Mascelani

    10/10

    Esse o nosso sonho dourado, o ideal! Tem muitas instituies que tem isso como precondio. Ns no

    podemos fazer isso, at porque estamos muito longe, significaria duas visitas. Normalmente, o que est

    acontecendo, na prtica, que os professores vo, ficam encantados e voltam! Ento, pelo prprio

    encantamento que eles vem l, eles querem aprofundar. Tem sido muito interessante esse retorno dos

    professores.

    Vocs comearam esse ano com as visitas de professores?

    No, a gente j faz isso h algum tempo. A gente recebe h dez anos, grupos de professores. S que agora a

    gente tem um programa especial de visitas para professores. No lembro bem, mas tenho quase certeza de que

    foi a Escola Nova, que fez, no ano retrasado, uma coisa muito interessante. Todos os funcionrios da escola,

    merendeiras, pessoal da limpeza, secretaria, telefonista, professores, coordenadores, diretores, todos juntos

    foram fazer a visita ao Museu do Pontal. E foi uma coisa genial, porque, esse Museu muito representativo dos

    costumes de todos os brasileiros e de muitas geraes, de diferentes camadas sociais. Eles trazem temas que

    no so s afeitos s camadas populares, mas que atravessam todas as camadas da sociedade.

    Acho que a grande vocao do Museu esse projeto educativo. Outra vocao a vocao turstica, 40% da

    visitao de turistas, e tambm, as visitas itinerrias. Alm disso, o Museu tem uma proposta de apresentao

    de Arte Popular. Durante muito tempo, se tratava Arte Popular como se fosse uma arte de segunda. No Museu

    do Pontal, as obras esto expostas como toda obra de arte, de qualquer Museu do mundo.

    8/5/2006